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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE MÚSICA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA UM HORIZONTE DA INTERPRETAÇÃO: O CONCERTISTA NO UNIVERSO DIGITAL FELIPE DE OLIVEIRA AMORIM Salvador 2010

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE MÚSICA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA

UM HORIZONTE DA INTERPRETAÇÃO: O CONCERTISTA NO UNIVERSO DIGITAL

FELIPE DE OLIVEIRA AMORIM

Salvador 2010

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  II

FELIPE DE OLIVEIRA AMORIM

UM HORIZONTE DA INTERPRETAÇÃO: O CONCERTISTA NO UNIVERSO DIGITAL

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Música da Escola de Música da Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor em Música. Área de concentração: Execução Musical Orientador: Prof. Dr. Lucas Robatto

Salvador 2010

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De Oliveira Amorim, Felipe A524u UM HORIZONTE DA INTERPRETAÇÃO: o concertista no

universo digital / Felipe de Oliveira Amorim – 2010. X, 153 p. :il. UFBA Orientador: Prof. Dr. Lucas Robatto Tese (Doutorado) – Universidade Federal da Bahia, Escola de Música. 2010. 1. Flauta Transversal. 2. Interpretação Musical. 3. Eletroacústica. I. Robatto, Lucas. II. Universidade Federal da Bahia. Escola de Música. III. Título.

CDD 786.74 CDU 631.317.35

 

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TERMO DE APROVAÇÃO

FELIPE DE OLIVEIRA AMORIM

UM HORIZONTE DA INTERPRETAÇÃO: O CONCERTISTA NO UNIVERSO DIGITAL

Tese aprovada como requisito parcial para a obtenção do grau de Doutor em Música, Universidade Federal da Bahia, pela seguinte

banca examinadora:

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  IV

para minha mãe Flávia

e meus amores Tacy e Iasmim

que além de ajudarem a encontrar o meu caminho a muito o percorrem comigo.

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  V

"A verdade é transparente e não a notamos, mas a mentira é opaca e não deixa passar nem a luz nem o olhar. Existe um terceiro estado, onde as duas estão misturadas e é o mais frequente. Com um olho olhamos através da verdade, e este olhar se perde para sempre no infinito; com o outro não vemos nem mesmo um dedo através da mentira, e este olhar não pode ir mais longe, permanece sobre a terra e completamente nosso; assim, de soslaio, vamos abrindo um caminho pela vida. Por causa disto, a verdade não pode ser compreendida de modo direto, como a mentira; apenas, pela comparação entre os espaços em branco e as letras de nosso Livro. Pois os espaços em branco do Dicionário Kazar correspondem às janelas transparentes da verdade e do nome do divino (do Adão Kadmon), e as letras negras entre os espaços em branco são os lugares onde nosso olhar tropeça na superfície... As letras podem igualmente ser comparadas às diversas peças do teu vestuário. No inverno, tu te cobres de lã e peles, colocas um cachecol, uma touca forrada e agasalhas-te bem; no verão, tu te vestes de linho, abres as roupas e rejeitas tudo o que é pesado; mas entre o verão e o inverno acrescentas ou retiras partes do teu vestuário - assim também se dá com a leitura. Nas diferentes estações da tua vida, o conteúdo dos teus livros parecer-te-á diferente, pois combinarás tuas roupas de diferentes maneiras. No momento, o Dicionário Kazar é apenas um amontoado de letras, de nomes e pseudônimos do Adão Kadmon, em desordem. Mas com o tempo tu te vestirás e obterás mais coisas... O sonho é uma sexta-feira para o que, na realidade, é chamado de sábado. Conduz a Ele e torna-se um com esse dia, e é preciso proceder do mesmo modo com os outros dias (quinta para domingo, segunda para quarta etc). Aquele que souber ler os sonhos em conjunto possuirá e terá uma parte do corpo (de Adão Kadmon)..." kazares, livro amarelo, Dicionário Kazar.

Mirolad Pavitch

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  VI

AGRADECIMENTOS

Ao professor Lucas Robatto, pelo conhecimento, atenção e confiança. Aos professores, colegas e amigos que me acolheram em Salvador.

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  VII

RESUMO Este trabalho estuda aspectos da relação entre o concertista e a música eletroacústica sob o ponto de vista do intérprete, tendo o repertório para flauta transversal como base de análise. São apresentadas obras em que a eletroacústica está fixada em um suporte de reprodução de áudio, obras em que o intérprete controla a eletroacústica através de alguma interface e obras em que a eletroacústica é gerada pela máquina no momento da performance. O suporte teórico fornecido por Adorno confronta o repertório com uma teoria de interpretação desenvolvida antes da eletroacústica, que tem como alicerce três pontos: a historicidade intrínseca das obras, a mimese e o aspecto idiomático. O processo de observação deste repertório, através do estudo e performance das obras, levantou uma série de questões e necessidades específicas para a construção de uma interpretação, que quando vistas sob a ótica de Adorno, nos apontam para a compreensão de uma mudança na prática interpretativa, um novo capítulo nesta história, que é a busca pelo equilíbrio e fusão das vozes do intérprete e da eletroacústica.

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  VIII

ABSTRACT This study deals with aspects of the relationship between electroacoustic music and its interpreter, taking the transverse flute repertoire as a basis for analysis. The study presents three kinds of specific repertoire: (1) music in which the electroacoustic resources are supported by audio reproduction; (2) eletroacoustic music controlled by the interpreter through the use of some kind of interface; (3) electroacoustic music generated by the machine during performance. The theoretical support of the study, based on Adorno, offers an interpretation of the electroacoustic phenomenon considering three points: the intrinsic historicity of the pieces of music; its mimesis and its idiomatic aspect. The process of observation generated by the practice and performance of the pieces of music in connection with the theoretical support offered by Adorno lead to an important consideration: the need for the construction of an interpretation of electoacoustic music that seeks balance, as well as the fusion between the voice of the interpreter and the voice of the electroacoustic resources.

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  IX

SUMÁRIO

AGRADECIMENTOS.................................................................................................VI

RESUMO...................................................................................................................VII

ABSTRACT..............................................................................................................VIII

1. INTRODUÇÃO 1

2. A INTERPRETAÇÃO 7

2.1. O percurso.......................................................................................................9

2.2. O intérprete....................................................................................................13

2.3. Uma leitura de Adorno...................................................................................22

2.3.1. A historicidade......................................................................................22

2.3.2. A obra musical e o objeto notado.........................................................28

2.3.3. O sentido..............................................................................................37

2.3.4. O sentido em Adorno............................................................................44

2.3.5. O idiomático..........................................................................................47

3. A INTERPRETAÇÃO FIXADA 54

3.1. A gravação....................................................................................................56

3.2. A performance construída.............................................................................58

3.3. Flauta e Fita Magnética.................................................................................64

4. A INTERPRETAÇÃO FLEXIBILIZADA 73

4.1. A Interface.....................................................................................................75

4.2. O Pedal..........................................................................................................77

4.3. A Hiper-Flauta...............................................................................................81

4.4. Score following..............................................................................................85

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  X

5. A INTERPRETAÇÃO VIRTUAL 95

5.1. Interação........................................................................................................95

5.2. As máquinas..................................................................................................98

5.3. O virtual.......................................................................................................101

5.4. O instrumento virtual...................................................................................102

5.5. O intérprete e o computador........................................................................106

5.6. Obra em Movimento....................................................................................118

6. O GESTO 121

6.1. Gestos individuais.......................................................................................124

6.2. Gesto orquestral..........................................................................................126

6.3. Gesto vetorial..............................................................................................129

6.4. A integração das vozes...............................................................................132

7. CONCLUSÃO 139

8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 146

9. ANEXOS 151

9.1. Lista de gravações das obras citadas.........................................................151

9.2. Lista de partituras das obras citadas...........................................................151

9.3. CD com gravações das obras citadas.........................................................153

9.4. CD com arquivos das partituras em PDF das obras citadas………………..153

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1. INTRODUÇÃO

Na metade do século XX surge a música eletroacústica, fruto das grandes

transformações tecnológicas ocorridas no século passado. Esta nova forma de fazer

música ampliou os horizontes do timbre - qualquer som passa a poder ser

controlado e transformado musicalmente - do ritmo e das alturas, que praticamente

não têm limites de exequibilidade; das dinâmicas, que podem ir do inaudível ao

ensurdecedor, entre outros fatores. A eletroacústica foi vista, a princípio, como uma

grande solução para o serialismo integral, que era de grande dificuldade de

execução pelo intérprete em virtude da criação de séries para todos os parâmetros

musicais.

Entretanto, a música eletroacústica deparou-se com o problema da falta de

expressividade decorrente da fixidez da fita magnética, que era o meio de difusão

desta nova música, como relata Stockhausen (STOCKHAUSEN apud MOTTA, 1997,

p. 7). O processo de composição consistia em gravar ou produzir sons em

laboratório, editá-los em uma fita magnética, para posteriormente apresentar o

resultado ao público. A difusão da música através de um gravador de rolo, máquina

que transforma os impulsos eletromagnéticos da fita em som, é sempre a mesma,

sem as variações performáticas do intérprete, o que imediatamente despertou os

compositores para a busca de soluções que incrementassem a expressividade

musical na eletroacústica.

A solução encontrada na época foi criar obras eletroacústicas que

envolvessem seus sons e formas de difusão com o intérprete instrumentista

tradicional. Esta junção deu origem à música eletroacústica mista - obras compostas

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  2

para um instrumento tradicional e sons eletroacústicos - formação que é o objeto de

estudo deste trabalho.

Este primeiro passo foi significativo, sendo esta, talvez, a forma de

composição mais utilizada até hoje. No entanto, os esforços continuaram no

desenvolvimento de novas práticas, paralelamente ao desenvolvimento tecnológico

da humanidade. O resultado foi o aparecimento de várias formas de interação entre

o intérprete e os meios eletroacústicos: formas simples de controle da máquina

através de pedais; ou mais complexas, como programas capazes de ouvir e

acompanhar o intérprete em relação à partitura e até mesmo de executar ações em

relação ao ponto em que se encontra o intérprete na partitura.

A explosão tecnológica também ampliou o horizonte dos instrumentos. Foram

inventados inúmeros novos instrumentos eletrônicos, capazes de interagir com o

intérprete das mais variadas formas que se possa imaginar. Dos antigos Theremim e

Ondas Martenot, passando por luvas capazes de produzir sons de acordo com o

movimento das mãos até o uso de sensores, presos no corpo ou não, podemos

construir instrumentos controladores do som praticamente a partir de qualquer objeto

e utilizar qualquer parte do corpo para controlá-los.

No entanto, a intenção dos primeiros compositores de obras eletroacústicas

mistas era acrescentar toda uma tradição interpretativa acumulada ao longo de

séculos da história àquela que era então uma nova prática musical. Por isso, um

delimitador deste trabalho é a utilização da flauta transversal europeia como

representante da tradição. Portanto, são sempre abordadas obras mistas que

envolvam a flauta, sendo o choque entre a tradição interpretativa e as novas

necessidades interpretativas o objeto de investigação específico.

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  3

A tradição e o novo levantam questões como: O que ocorre entre o intérprete

flautista e os meios eletroacústicos? Quais as necessidades específicas para se

montar uma interpretação e realizar uma performance? Como se relacionar com os

meios eletroacústicos?

Como forma de imersão nestas questões, realizei pequenos estudos de caso

que abrangem todo o período da história da música eletroacústica mista para flauta,

da década de 1960 até os dias de hoje. Estas obras apresentam diversas técnicas

de composição quanto à forma de relação com a eletroacústica, constituindo uma

amostra rica das possibilidades mais comuns de interação praticadas.

A escolha do repertório não obedeceu um critério científico mais específico, a

dificuldade de se conseguir o material eletroacústico é em grande parte dos casos

um obstáculo. No entanto o repertório estudado abrange a primeira obra para flauta

e fita magnética composta na história e obras para tape compostas mais

recentemente, com processamento de áudio, com acompanhamento da partitura

pelo computador e sua participação na criação de parte do material composicional

em tempo real. Outro fator importante é a proximidade com alguns compositores1.

O estudo das obras envolveu não somente o processo de estudo tradicional

de uma obra musical - leitura, construção da interpretação e apresentação em

concerto - como também a participação no processo composicional, sendo que duas

das obras foram compostas por mim e tive a oportunidade de desenvolver e estrear

junto com os compositores João Pedro Oliveira e Rogério Vasconcelos suas

respectivas obras. O resultado da experiência está exposto em cinco capítulos que

                                                                                                               1 Uma lista abrangente do repertório para flauta e eletroacústica pode ser encontrada em http://www.subliminal.org/flute/

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  4

apresentam alguns aspectos envolvidos na interpretação de obras para flauta e

meios eletroacústicos.

O capítulo “A Interpretação” apresenta e delimita o conceito de intérprete e

interpretação, segundo a teoria de Adorno (2006). O ponto de partida são os

conceitos de historicidade intrínseca e sentido da obra, que nos permitem considerar

que ela modifica-se no transcorrer da história em virtude das ações de intérpretes,

ouvintes e compositores. Estes conceitos nos levam às lacunas da partitura, que

devem ser completadas pelo intérprete, cuja função é resgatar suas características

miméticas - capacidade da música de imitar o movimento - e realizar a conversão do

elemento simbólico, a escrita musical, em som. Ao mimético e ao simbólico é

adicionado o idiomático, a maneira de tocar de uma época ou intérprete, que juntos

completam a ideia de interpretação de Adorno.

“A Interpretação Fixada” traz a discussão sobre a primeira forma de interação

entre o intérprete e a eletroacústica, obras para flauta e fita magnética ou tape. Um

pequeno histórico do processo de gravação do início do século XX é apresentado,

assim como seu resultado, que é a música eletroacústica - a obra totalmente fixada,

segundo Freire (2004). Como solução à fixidez é levantada a questão da

necessidade do intérprete tradicional junto com a eletroacústica, a partir de

Stockhausen (1997) e Bassingthwaighte (2002). Por fim, são apresentadas duas

obras, Synchronisms nº1 (1963), de Mário Davidovsky, e a Escada Estreita, de João

Pedro Oliveira, e são abordadas questões relativas à interpretação desse tipo de

obra.

“A Interpetação Flexibilizada” trata da flexibilização da parte eletroacústica

das obras mistas. São apresentadas interfaces, formas de conexão entre o

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intérprete e a máquina que permitem interferir no processo de geração do material

eletroacústico. Dentre as inúmeras interfaces existentes, foram escolhidas o pedal, a

hiper-flauta e o score following, por sua praticidade e acessibilidade. Este capítulo

mostra como as interfaces atuam na obra musical e quais novas necessidades criam

para o intérprete.

As interfaces na música eletroacústica podem ser comparadas com os órgãos

sensoriais humanos. O microfone funciona como o ouvido e as caixas de som como

o sistema vocal, por isso são chamadas de máquina sensórias por Santaella (1997).

Essas máquinas, associadas ao computador, a máquina cérebro, ampliaram

infinitamente os horizontes de possibilidades do som e da música. Esta associação

transforma a flauta, com suas possibilidades sonoras, em um instrumento virtual,

capaz de produzir e controlar qualquer som. A virtualidade, segundo Lévy (2000), é

uma nova qualidade musical criada pela máquina cérebro, capaz não apenas de

acompanhar a posição do intérprete na partitura, como de criar vozes paralelas ao

intérprete em tempo real, no momento da performance. “A Interpretação Virtual”

apresenta este contexto através da obra Três janelas, de minha autoria, resgatando

em seu final um conceito de Eco (1986): a obra em movimento.

Por fim, no “Gesto”, recuperamos a ideia de mímese de Adorno (2006), por

meio do conceito de gesto musical. Sendo o equilíbrio o amálgama entre sons

eletroacústicos e acústicos, uma das questões fundamentais para compositores e

intérpretes, o conceito de gesto é apresentado como um objeto que ajuda na

compreensão da obra mista como composta de linhas sonoras, e não por vozes

determinadas segundo os instrumentos. Defende-se que esta forma de pensamento

traz para o intérprete uma compreensão um pouco diferente no relacionamento

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  6

camerístico entre os instrumentos, acústicos ou não, que privilegia mais a dualidade

separação/amálgama que a dualidade voz principal/secundária, defendida por

Wagner (1989) e Adorno (2006) em relação à música clássico-romântica.

Este trabalho foi escrito com a intenção de atingir aos flautistas,

principalmente os estudantes de graduação. Este pequeno panorama da música

eletroacústica mista é apresentado com o objetivo de levantar questões sobre um

repertório relativamente novo e suas implicações para o concertista. Um repertório

que permanece distante dos desejos dos jovens intérpretes e dos cursos de flauta

transversal no Brasil, que pode ser tachado como difícil em razão das necessidades

tecnológicas. Mas talvez sejam justamente estas necessidades que possam

acrescentar novas qualidades ao intérprete, na compreensão da música de hoje e

na música de outros tempos.

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2. A INTERPRETAÇÃO

A interpretação é uma atividade intrínseca do homem. Nós a

realizamos continuamente ao longo de nossas vidas. Ainda na barriga de

nossas mães, somos provocados por uma série de sensações externas, os

primeiros sons, gostos, a luminosidade, as sensações de movimento, de tato,

por exemplo. Os primeiros sinais externos que recebemos são os sonoros,

compostos pelas batidas regulares do tímpano-coração, pelos sons

borbulhantes do sistema digestivo ou pelos seus quasi-trombones. Aos

poucos, outros sons vão sendo associados e formam nossa primeira

paisagem sonora.

Paralelamente, outros sentidos vão se formando, incorporando novas

sensações, que trazem junto nossas primeiras interpretações. Em sua rotina

no útero, os bebês já se movimentam, esticam e encolhem as pernas,

demonstrando estar em plena atividade. Um impacto qualquer que sofra o

útero, como uma queda da mãe, é interpretado pelo bebê como uma

ameaça à vida, o que o leva a cessar os movimentos, como forma de

prevenir um nascimento precoce. Por sua vez, a mãe, acostumada com a

rotina dos movimentos em sua barriga, interpreta esta parada como algo ruim

e se pergunta se o bebê está vivo.

O nascimento nos desvela um mundo novo, recheado de novas

sensações, novos sons, cores, formas, criaturas, objetos naturais e

artificiais... Partindo das interpretações mais básicas, passamos a formar o

conhecimento, a elaborar relações, até criar sistemas abstratos, como a

escrita e a matemática. Esses sistemas estão em expansão pelo mundo, com

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  8

seus suportes próprios, multiplicam-se à medida que são inventados novos

meios de produção, reprodução, divulgação e armazenamento. Sua rapidez

de crescimento e complexidade exigem que nossa interação não se dê mais

apenas de forma intuitiva. Cada vez mais, sua interpretação necessita de um

nível crítico e reflexivo.

Peirce diz que "percebemos o que estamos preparados para

interpretar" (PEIRCE, 2005, p. 227), ou seja, que a capacidade de alguém

compreender algo depende de sua familiaridade com este objeto. Já

Gombrich defende que "se confiamos em nossos olhos, e não em nossas

idéias pré-concebidas sobre como as coisas devem parecer, de acordo com

as regras acadêmicas, faremos as mais excitantes descobertas"

(GOMBRICH, 1993, p. 406). Peirce remete a interpretação a um universo

particular. Gombrich, por sua vez, estende as possibilidades ao infinito,

conferindo um caráter mais criativo e ilimitado à interpretação. Porém, ambos

os autores concordam que a percepção é essencial para a interpretação.

A percepção dos fenômenos à nossa volta é o ponto de partida da

interpretação. Tudo o que possa vir à nossa mente, seja sonhado, imaginado,

concebido ou vislumbrado, possui três elementos formais universais: o

primeiro está relacionado aos aspectos qualitativos do fenômeno; o segundo,

às relações de ação e reação, de causa e efeito, à experiência; e o terceiro

elemento refere-se à mente, ao pensamento, a tudo que diz respeito à

representatividade, à mediação entre duas coisas (Netto, 1983, p. 61)

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  9

2.1 O percurso

Segundo a semiótica de Peirce e roteiro de análise desenvolvido por

Vieira (1997), nosso processo de perceber um fenômeno, de perceber a

música, pode passar por três etapas.

A primeira é a contemplação, ou seja, devemos apenas estar abertos

ao que nos chega através de nossos sentidos. Devemos, na medida do

possível, nos relacionar com o fenômeno sem qualquer tipo de juízo,

conclusão ou qualquer outra reação. Contemplar significa desarmar os juízos

da percepção, deixando apenas que as coisas entrem. Aus den sieben

Tagen (Dos Sete Dias) de Stockhausen, composto em 1968, é um bom

exemplo de busca por um estado contemplativo pleno. O compositor pede ao

intérprete:

"Vive completamente só durante quatro dias guardando jejum em silêncio absoluto,

com a possível imobilidade. Dorme apenas o necessário, Pensa o menos possível.

Depois de quatro dias, bem tarde da noite, Sem prévia conversação Toca sons

simples. SEM PENSAR no que está tocando Fecha os olhos, Simplesmente ouve."

Goldstaub (Pó de Ouro) - Aus den sieben Tagen (GRIFFITHS, 1998, p. 168)

O desejo do compositor é o que poderíamos considerar uma

interpretação contemplativa, ou seja, a mais espontânea possível. O nível

contemplativo é o que poderíamos desejar como ideal para a escuta musical,

pois busca a apreensão da música apenas por suas qualidades, sem se

preocupar com outros significados que ela possa ter.

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  10

Da contemplação passamos para a observação, que é a percepção

das particularidades dos fenômenos, de sua existência, de suas

características próprias que o tornam único e o separam de um contexto.

Neste estágio, nossa atenção está voltada para o fenômeno em sua

realidade física, corporificado, observando suas características existenciais.

Podemos falar a respeito da Sonata ao Luar de Beethoven. Se

ouvimos a interpretação musical de um pianista, sua interpretação da obra é

a corporificação, faz com que a obra exista no mundo físico e seja acessível

à nossa percepção. A partir de então, podemos observar o fraseado, o toque,

as relações dinâmicas, os andamentos, a articulação, a forma, como as

estruturas temáticas se desenvolvem, como caminha a tensão musical.

Porém, a forma como estes elementos estão dispostos e se

relacionam é segundo a interpretação de Nelson Freire, por exemplo, se

escutamos a versão de Wilherm Kempf, observaremos outras formas de

equilíbrio entre os elementos musicais, estaremos de fato diante de outro

objeto sonoro. Como nesta etapa observamos o objeto físico, seria mais

correto dizer que não escutamos a sonata de Beethoven, mas a interpretação

de Nelson Freire da Sonata ao Luar.

A terceira etapa de percepção do fenômeno é a generalização, ou

seja, ser capaz de retirar o geral do particular, extrair de um fenômeno

particular o que ele tem em comum com todos o outros e assim identificar

uma classe geral a que ele pertença. A generalização é a capacidade que

temos de associar coisas em classes, conjuntos, grupos nos quais seus

componentes têm características comuns.

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  11

Ao compararmos as interpretações de Freire e Kempf da Sonata ao

Luar, somos capazes de identificá-las como duas versões de uma mesma

obra. Ao identificarmos, por meio da escuta, que as interpretações possuem

a mesma forma, os mesmos temas, tonalidades, notas, ritmos, perfil

dinâmico, entre outros aspectos, dizemos tratar-se da mesma obra. A

generalização não está interessada nas diferenças dos objetos, nas suas

particularidades, mas nas suas semelhanças, para obter um objeto genérico

que inclui, neste exemplo, todas as interpretações da Sonata ao Luar de

Beethoven. Da mesma forma, poderíamos falar de todas as obras do

período clássico romântico, ou de todas as músicas de concerto, e assim por

diante.

Obviamente, a percepção da música é uma condição básica para que

possamos interpretá-la, assim como qualquer outro fenômeno. São três os

níveis em que podemos interpretar algo. O primeiro é o imediato, trata-se do

potencial da música de produzir certos efeitos e não outros. São as

possibilidades interpretativas latentes, prováveis, que estão à espera de uma

mente que as realize. O potencial da música é provocar emoções,

sensações. Ela pode até produzir outras coisas, porém não se espera ver

cores ou se descobrir a distância entre a terra e o sol, pelo menos não

atualmente, na audição de um concerto.

O segundo nível é o fechado. Este é o caso em que o que vemos e

ouvimos estão conectados diretamente, portanto o potencial interpretativo é

reduzido à relação. No caso da música, ao vermos alguém pressionar a tecla

da nota “Lá” em um piano, em condições normais, ouviremos o som relativo à

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  12

tecla pressionada e não um estouro de um pneu ou o surgimento de uma

imagem divina.

Por último, o nível inexaurível é incompleto e está no território dos

elementos simbólicos da escrita musical. Uma partitura de música clássica

ocidental, que era interpretada de uma forma no século XVIII, adquire novos

ares no mundo moderno. Sua interpretação está em contínua mutação, de

acordo com a percepção de quem a lê. A tentativa de uma reprodução da

forma como se tocava no século XVIII, hoje, pode até resultar em um objeto

idêntico fisicamente, porém, a percepção por parte de uma sociedade

altamente ruidosa, que vive mergulhada em velocidades astronômicas,

rodeada de informações novas a cada segundo, nunca será a mesma.

Portanto, nunca se interpretará a música do passado como se fazia no

passado.

No processo interpretativo, a análise da partitura com o objetivo da

compreensão da obra deve visar o levantamento do máximo de

possibilidades interpretativas, para num segundo passo fazermos as

escolhas, optarmos por uma interpretação, assumimos uma posição única.

Quando chegamos a este ponto, quando um intérprete toca uma música no

palco, apresentamos todos os níveis interpretativos reunidos e as diferentes

faces que a partitura efetivamente produz no intérprete (Santaella, 2002, p.

40). Ou seja, podemos dizer que o intérprete-músico revela no palco os

efeitos que a partitura produziu e está produzindo nele naquele momento.

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  13

2.2 O intérprete

O intérprete é quem, ou o que, reage ao contato com determinado

objeto. No caso do intérprete-músico, sua função básica é criar uma ligação

entre a obra musical e a partitura, fazendo escolhas entre as várias

possibilidades que a escrita pode apresentar. Neste processo, o intérprete

não pode fazer escolhas arbitrárias, tem que seguir uma série de preceitos

que os elementos escritos determinam, além de outras ações que não estão

escritas mas são necessárias para que, no momento da performance, haja a

compreensão de que a obra que estamos ouvindo é a que está escrita no

papel, que o intérprete está respeitando seus preceitos.

O momento da performance, da execução da obra, é quando todos os

elementos que a envolvem estão atuando e se relacionando

simultaneamente. Ou seja, a partitura, um objeto simbólico, produto da

seleção feita pelo compositor de certas variáveis pertencentes ao universo

sonoro (NATTIEZ, 1990, p. 78), está delimitando ao intérprete as ações que

deve realizar. Este, por sua vez, está apresentado o resultado de suas

escolhas, dentre as possíveis proporcionadas pela partitura e pela obra, por

meio da ação física de tocar um instrumento, ao produzir o som que torna

possível o estabelecimento de relações que são entendidas como música

pelo ouvinte. O intérprete é quem faz escolhas, redimensiona a idéia musical

delimitada pelo compositor em som, em algo físico, e apresenta o resultado a

alguém. Ele "apresenta o sentido da composição musical na performance"

(WALLS, 2002, p. 17).

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  14

Considerando os níveis interpretativos, ao tocarmos ou ouvirmos uma

música, podemos simplesmente sentir emoções, sermos compelidos a reagir

a uma ação, ou produzir algo a partir de instruções dadas. O intérprete, seja

ele músico ou simplesmente ouvinte, sempre estará em contato com estes

três níveis, em maior ou menor intensidade. A interpretação na música,

portanto, ocorre nestes três níveis: o das qualidades, o da ação e reação e o

dos símbolos.

É fácil observarmos estes níveis na imagem clássica de um músico

que interpreta um concerto com seu instrumento. Ele lê ou memoriza uma

partitura, geralmente um objeto confeccionado de papel branco com manchas

pretas, ou colorido, como ocorre na música do ocidente na Idade Média e a

partir do século XX. As manchas são símbolos, convenções criadas pelos

homens que tornam possível a compreensão por parte do intérprete de uma

idéia musical proposta pelo compositor. Existe toda uma cadeia de ações e

reações físicas e mentais por parte do intérprete, para que o som seja ouvido

e a música aconteça, quando ele fricciona a corda de um violino e produz

uma nota, por exemplo.

Por fim, a expressividade musical, entendida como "um conjunto de

qualidades perceptivas que refletem relações psicológicas entre propriedades

objetivas da música e impressões subjetivas do ouvinte”, (JUSLIN, 2003, p.

276) é responsável pelas qualidades, sensações e emoções, parte

fundamental para o entendimento da música como arte.

No entanto, quando avaliamos um caso limite, como a obra 4'33''

(Quatro Minutos e Trinta e Três Segundos), de John Cage (19912-1992), qual

o papel do intérprete numa peça em que o compositor pede apenas que ele

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  15

suba ao palco e fique em silêncio? A música de Cage pode ser tocada em

qualquer instrumento e possui três movimentos, 30″, 2′23″ e 1′40″. A

realização do pianista David Tudor2, que a estreou e para quem a obra foi

dedicada, acontece da seguinte forma: ele sobe ao palco, ajeita a partitura e

toma nas mãos um cronômetro. Ao disparar o dispositivo, ele fecha a tampa

do piano e fica em silêncio, repetindo a ação de abrir e fechá-la aos 30″, 2′23″

e 1′40″, marcas que determinam os três movimentos da obra. Tudor passa as

páginas da partitura e ao fim de 4'33'', ele abre a tampa do piano pela última

vez, pega a partitura e o cronômetro e se levanta. A partitura original foi

perdida, mas existem várias versões. Basicamente, o que ela mostra é o

número do movimento seguido da palavra tacet (pausa).

A análise mais comum que se faz das intenções do compositor, em

relação a esta obra, é de que o silêncio do músico no palco permite ao

ouvinte prestar atenção em outros sons, provenientes do ambiente que os

envolve. No vídeo de Tudor podemos supor dois ambiente sonoros

diferentes. O primeiro é o do local em que está sendo realizada a obra.

Ouvimos o tic-tac do cronômetro, as páginas sendo passadas, a tampa do

piano abrindo e fechando, sons do corpo de Tudor e um pequeno burburinho

da platéia. O segundo ambiente é o que envolve quem está assistindo o

vídeo e varia conforme o lugar.

Se consideramos a interpretação musical como uma "realização

sonora de uma obra ou trecho musical – com existência anterior ao ato da

interpretação musical – por parte de um indivíduo ou grupo de indivíduos,

                                                                                                               2 Link para o vídeo da performance de David Tudor: http://www.youtube.com/watch?v=HypmW4Yd7SY&feature=PlayList&p=9C649354FDF43658&playnext_from=PL&playnext=1&index=14

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  16

sendo esta realização sonora reconhecida por um indivíduo ou grupo de

indivíduos como interpretação musical da tal obra” (ROBATTO, 2005, p. 6-7),

4'33'' pode ser entendida como tal. Sua realização sonora são os sons

ambientes, ainda que aleatórios. A obra existia antes de sua realização, não

se trata de uma improvisação espontânea, e sua realização é notadamente

reconhecida pela comunidade. Apesar de outros compositores terem tratado

o silêncio de forma semelhante à de Cage, sua obra dificilmente não é

reconhecida nos meios musicais cultos.

A figura central da obra é o intérprete. Há todo um referencial

simbólico que ele representa, a forma como se veste, sua postura no palco, o

instrumento à sua frente, além de seu currículo pessoal no mundo da música,

que o qualifica como um intérprete musical. Um aspecto importantíssimo é a

presença da partitura, o objeto que melhor representa a música de concerto

ocidental. Ao contrário de uma interpretação de um concerto de Mozart, os

sons não são produzidos pelo intérprete diretamente. Porém, é ele quem

conduz a atenção dos ouvintes à paisagem sonora presente, sua não-ação é

de fato uma ação para a produção sonora resultante. Por fim, as sensações e

interpretações dos ouvintes são fruto do que Eco chama de interpretação

semântica, que é "o resultado do processo pelo qual o destinatário, diante da

manifestação linear do texto, preenche-a de significado" (ECO, 2004, p. 12).

Há interpretação como realização sonora e viva de uma partitura, mas,

também, interpretação como ato de compreensão (Nattiez, 2005, p. 143). Ao

analisarmos os motivos que levam o público a ouvir os sons ambientes

através de 4'33'', estamos realizando uma interpretação crítica, que é "aquela

por meio da qual procuramos explicar por quais razões estruturais pode o

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  17

texto produzir aquelas interpretações semânticas" (ibidem, p. 12), ou mesmo

interpretar o texto musical de outra forma, visando levantar outros tipos de

conhecimentos extra-musicais. Levison propõe conceitos semelhantes,

porém especificamente voltados para música, quando fala de interpretação

performática - o momento da performance na música, e interpretação crítica,

que “tem a intenção do entendimento, por parte do intérprete, do sentido da

obra” (LEVINSON: 1993, 37).

Inúmeras interpretações, performáticas ou críticas, existem sobre

4'33''. Em uma delas, o próprio Cage interpreta a obra em cima de um

caminhão em praça pública. Ele simplesmente se senta em frente ao piano,

abre a tampa, dispara o cronômetro, fecha a tampa e se levanta após o limite

do tempo.

Porém, algumas vezes os intérpretes costumam provocar

intencionalmente sons durante a performance da obra com o objetivo de criar

um ambiente sonoro "aleatório". Eco diz que o texto interpretado impõe

restrições aos seus intérpretes, que "os limites da interpretação coincidem

com os direitos do texto (o que não quer dizer que coincidam com os direitos

de seu autor)" (ECO, 2004, p. XXII). Será que a atitude destes intérpretes

não vai contra a intentio operis, a intenção da obra? Os sons produzidos

intencionalmente podem ser justificados pelo fato de que dentro de uma sala

de concertos não temos muitos sons ocasionais, mas uma interpretação mais

coerente não seria deixar o silêncio quase total destes ambientes? Esse

conflito nos remete à discussão travada por Eco com alguns pensadores a

respeito da validade de uma interpretação (Eco, 2004), sobre qual o limite do

intérprete em relação à obra.

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  18

Segundo Eco, "interpretar um texto significa explicar porque essas

palavras [os sons para a música] podem fazer várias coisas (e não outras)

através do modo pelo qual são interpretadas" (ECO, 2005, p. 28). Ele

acrescenta: "o texto é um dispositivo concebido para produzir seu leitor-

modelo. Repito que esse leitor não é o que faz a 'única' conjectura 'certa'. Um

texto pode prever um leitor-modelo com o direito de fazer infinitas

conjecturas" (ibidem, p. 75).

Temos, então, dois aspectos delimitadores da interpretação. O

primeiro é o que pode ser feito. O segundo, a expectativa de como a obra vai

ser compreendida. O ouvinte-modelo da obra de Cage é alguém com

mínimos conhecimentos da música de concerto. Sua expectativa ao ver um

piano, com uma pessoa sentada à sua frente, é de que ela vá tocar alguma

coisa, produzir algum som. Se esta pessoa produz o som, a expectativa do

ouvinte é confirmada; se não, há um aumento de tensão, devido ao

rompimento da expectativa.

A expectativa do ouvinte confirma o limite do que o intérprete pode

fazer em 4'33''. Ele pode, por exemplo, ficar em uma posição que indique que

pode tocar o instrumento a qualquer momento, mas se ele produz algum

som, o ato faz com que o ouvinte perceba o fato como mais uma "música

tradicional", talvez com ritmos muito lentos, sons em pianíssimo. A intenção

desta obra é de gerar tensão através da não-ação do intérprete. Fazer algo

que contrarie isto pode levar ao questionamento sobre interpretações válidas

ou não.

Porém, vivemos num tempo sem muitos limites com relação ao fazer

artístico, com a multiplicação de linguagens muito diversas no início do

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  19

século XX. As obras muitas vezes adquirem funções que não foram previstas

pelo autor, pela intentio auctoris (intenção do autor), como diria Eco. Os

intérpretes sentem-se muito livres, apropriam-se da obra e nem sempre

respeitam sua intenção, que "desempenha um papel importante enquanto

fonte de significados que, embora não sejam redutíveis à intentio auctoris

pré-textual, funcionam mesmo assim como restrição à liberdade da intentio

lectoris" (intenção do leitor) (COLLINI, 2005, p. 11).

Os impulsos incontroláveis dos intérpretes atuais produzem dois tipos

de interpretações extremas. Primeiro, versões de uma obra que

simplesmente desrespeitam a intentio operis. A versão em ritmo de discoteca

da 5ª Sinfonia de Beethoven, muito popular na década de 70, por exemplo,

desfigura toda a estrutura da obra elaborada pelo compositor, toda a

narrativa e expressividade harmônico-melódica deixa de existir em função de

uma melodia metronomicamente achatada. Considerando o conceito de

interpretação de Eco e a intentio operis, podemos dizer que este caso não é

de uma interpretação musical, mas de um uso da obra de Beethoven.

No outro extremo, temos interpretações que criam uma nova obra de

arte. Deleuze, em Platão e o Simulacro (DELEUZE, 1998, p. 259-271),

apresenta o ideal dos modelos e cópias do universo platônico, no qual as

coisas dos homens sempre têm um modelo no mundo das idéias. Ele propõe

uma expansão e transformação desta relação modelo-cópia, dizendo que à

medida que fazemos muitas cópias de um modelo, elas se modificam tanto

que, por fim, produzem um simulacro, coisa que vagamente se assemelha a

outra, um objeto tão distante do modelo que passa a ser entendido como

uma nova coisa. Deleuze rebaixa a noção de modelo de Platão para uma

Page 31: Tese Felipe de Oliveira Amorim.pdf

  20

relação cópia-cópia ad infinitum. Como exemplo, podemos tomar o III

movimento da Sinfonia, de Luciano Berio (1925-2003), que é a resultante de

uma estrutura, uma textura formada por trechos que vão de citações de obras

importantes da história a formas de vocalizes mais simples, tudo ligado por

um narrador. Ou ainda a música eletrônica, em que muitos compositores

utilizam como matéria prima de suas obras outras músicas e sons que são

transformadas pelos processos digitais.

Boulez (1925-) diz: "todas as obras que escrevo nada mais são, no

fundo, do que as diferentes facetas de uma só obra central, de um conceito

central" (BOULEZ, 1975 apud NATTIEZ, 2005, p. 91), o que coloca sua obra

como um bom exemplo da filosofia de Deleuze. A idéia de Boulez é

considerar seus conceitos a respeito da música e seus meios compositivos,

suas estratégias composicionais como os elementos temáticos das obras, e

não os objetos sonoros.

Podemos considerar o tema beethoveniano um modelo central que vai

sendo "copiado" ao longo da sinfonia, sofre transformações, porém sem

nunca deixar de estar ligado ao tema. As variações que o tema sofre no

desenvolvimento da forma sonata não são nada mais do que cópias do

modelo e, por serem cópias, sempre sofrem algum tipo de transformação.

Uma cópia xerox não é nunca idêntica ao original.

Boulez unifica sua música a partir de um nível mais profundo. Ao

contrário de uma harmonia, ele pensa em processos de organização

harmônica, como um sistema harmônico pode ser estruturado por exemplo.

Processos de estruturação dos parâmetros musicais, e não modelos sonoros,

constituem o fundamento do sistema que permite ao compositor utilizar um

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  21

mesmo procedimento e gerar músicas diferentes em sua superfície auditiva.

Comparando com o DNA, que contém as informações genéticas dos seres

vivos, sempre temos uma mesma estrutura, o reconhecemos como similar

em todos os seres, porém a recombinação de seus elementos constituintes

produz espécies completamente diferentes. Podemos dizer que a música

produzida por Boulez é produto de um sistema a-centrado, não proveniente

de um núcleo específico, mas sim composto por conexões múltiplas que

podem ser estabelecidas em qualquer parâmetro, tanto na estrutura interna

da música como entre obras diferentes.

Para estas e outras situações mais radicais em que a interpretação

extrapola a intentio operis, Eco propõe a idéia de “superinterpretação”. Se

"compreender é fazer as perguntas e encontrar as respostas em que o texto

insiste. [...] Supracompreender, por outro lado, consiste em fazer perguntas

que o texto parece não colocar a seu leitor-modelo" (CULLER, 2005, p. 135).

Isto é, perguntar-se que outras coisas pode um objeto prestar ao fazer

artístico. Para Eco, “superinterpretação” é a prática de fazer exatamente

aquelas perguntas que não são necessárias à comunicação normal, mas que

nos possibilitam refletir sobre seu funcionamento" (ibidem), perguntas que os

artistas têm feito e respondido com obras cada vez mais inusitadas.

Podemos dizer que a superinterpretação é uma expansão da abertura

de interpretação presente em qualquer objeto, sendo que a interpretação é

limitada pela intenção da obra, e a superinterpretação extrapola seus limites.

Comentando sobre seu livro A Obra Aberta, escrito entre 1952 e 1962, Eco

diz que sua intenção era de demonstrar as múltiplas interpretações presentes

nas obras criativas, nas obras de arte de qualquer natureza, e não apenas

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  22

nas declaradamente abertas à interferência do intérprete em sua composição

estrutural (Eco, 2004, p. 27) (Eco, 2005, p. 5).

A preocupação com a abertura interpretativa do discurso artístico já é

presente na Estrutura Ausente, 1ª edição de 1968, em que ele prevê um

modelo de comunicação que contempla um tipo específico de mensagem,

uma "mensagem com função estética [que] é, antes de mais nada,

estruturada de modo ambíguo em relação ao sistema de expectativas"

(ibidem, p. 52), uma mensagem aberta.

Se Peirce diz que "um signo deve deixar que seu próprio intérprete o

dote de parte de seu significado" (CP 5.449), Eco organiza e define limites

para a ação do intérprete, limites para que não haja uma desfiguração da

obra, não no sentido de tolher sua liberdade, mas de organizar seu fazer no

infinito universo da arte.

2.3 Uma leitura de Adorno

2.3.1 A historicidade

No século XVIII, François Couperin (1668-1733) escreveu a respeito

de um problema particular com a música:

"Na minha visão há algumas deficiências no caminho da notação

musical que estão relacionados com a maneira como escrevemos nossas

idéias. Escrevemos algo diferente do que está sendo tocado. Isto é porque

os estrangeiros tocam nossa música pior do que nós o fazemos" (WALLS,

2002, p. 18).

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  23

Vivemos um momento histórico no qual o músico deve ser capaz de

tocar um repertório de grande diversidade estética e cultural e de períodos

históricos muito diferentes. Diferentemente de hoje, os músicos que

trabalhavam com Johann Sebastian Bach (1685-1750) tinham o hábito de

tocar obras compostas em seu momento histórico, sempre de acordo com

concepções estéticas similares e em um mesmo ambiente sócio-cultural. À

medida que retrocedemos na história, temos cada vez mais um maior contato

do compositor com o intérprete. De fato, na música antiga não há uma

separação do compositor, que é também intérprete de sua obra, o que não

cria a necessidade de uma partitura muito específica, pois o compositor está

ali para dizer o que quer.

No curso da história, a figura do compositor se separa do intérprete e a

partitura se distancia de seu criador, fazendo com que ela cada vez mais

ganhe detalhes de escrita das dinâmicas, dos andamentos e marcas de

expressão, o que pode ser facilmente comprovado comparando a partitura de

Bach com a de Claude Debussy (1862-1918), ou mesmo Pierre Boulez

(1925-). Os compositores modernos têm uma maior necessidade de detalhar

a escrita, por estarem afastados fisicamente do intérprete. O pensamento é

de que quanto maior a quantidade de informação escrita, maior será a

fidelidade da interpretação.

No entanto, o intérprete em frente à partitura é confrontado com

questões que não podem ser imediatamente resolvidas "nem pelo recurso às

obras, nem pelas exigências da própria execução, mas sim somente pelo

conhecimento da relação essencial entre ambas" (ADORNO, 2001 apud

CARVALHO, 2005, p. 204). Isto significa dizer que, mesmo a partitura mais

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  24

minuciosamente escrita, com a maior quantidade possível de informações

relativas à sua forma de execução, como as de muitos compositores

contemporâneos, permite de imediato uma interpretação adequada. Ao

mesmo tempo, não há princípio interpretativo, práticas pessoais do intérprete,

quanto à abordagem do material, que bastem para conferir à interpretação

"aquele caráter de verdade que, enquanto idéia, rege necessariamente

qualquer realização musical" (ibidem).

A chave para o conhecimento da relação essencial entre os dois

planos, a partitura e as práticas do intérprete, está no conceito de História,

segundo a teoria de interpretação de Adorno (2006). A história não deve ser

aqui entendida como uma sucessão de fatos coletados, mas sim como "o

modo fundamental das empiricidades, aquilo a partir de que elas são

afirmadas, postas, dispostas e repartidas no espaço do saber para eventuais

conhecimentos e para ciências possíveis" (FOUCAULT, 1999, p. 300),

entendendo que empiricidades remetem a um sistema que só reconhece a

experiência como guia seguro, que atribui exclusivamente à experiência dos

sentidos a origem dos conhecimentos, ou seja, a história como algo prático e

vivenciado.

Quando uma obra é escrita e interpretada, ela traz consigo o seu

momento inserido na história. O surgimento desta consciência, em meados

do século XIX, contribui para distinguir uma interpretação verdadeira de uma

falsa, separando o que parece ser determinado pelo texto do que se

apresenta como arbitrário. Para Adorno, "reconheceu-se a mudança histórica

enquanto tal", e esta "foi posta em relação com a idéia de interpretação

verdadeira" (ADORNO, 2006, p. 215).

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  25

Mais importante do que a classificação de uma interpretação

verdadeira ou falsa, é o que Richard Wagner (1813-1883) destaca em seus

escritos sobre a regência de orquestra (Wagner, 1989), destacando a

mudança da interpretação em função das mudanças das técnicas

composicionais e históricas da música.

Na leitura de Adorno, Wagner atrela as mudanças das técnicas

composicionais à necessidade de mudança na maneira de tocar - uma está

em função da outra. O compositor toma como exemplo a música de

Beethoven e todo o classicismo vienense que tem sua origem histórica com a

introdução do que Adorno chama de cantabile, mais conhecido como tema

nos manuais de análise: "uma construção que se constitui, através de um

processo mediado dialeticamente, a partir de figurações temáticas

qualitativamente diferentes" (CARVALHO, 2005, p. 205).

Segundo Wagner, as práticas interpretativas oriundas dos

kappelmeister da tradição barroca ignoravam a existência deste novo canto.

Esta prática de regência não buscava revelar melodias enfronhadas na

textura sonora de Beethoven, criando, nas palavras de Adorno, um conflito

entre a nova música e o "crispado e inflexível bater do compasso dominante

na era do baixo contínuo" (ibidem). Para Wagner, a correspondência entre a

estrutura da composição dos clássicos e sua execução musical consistia em

deixar claro o novo tecido temático em seu movimento ao longo da obra. Isso

só era possível através do tempo musical, ou seja, o caminho para o desvelar

da nova música não estava escrito no texto, mas no momento da execução.

Sob uma partitura com uma mera indicação de andamento, nascia

uma nova necessidade interpretativa: o classicismo vienense impunha uma

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  26

nova prática, diferente da exigida na música pré-clássica, e se estabeleceria

como princípio geral até a época de Wagner. Desta forma é que Wagner

relacionava a verdade da interpretação e a história. Uma verdade que não

está presente na história; pelo contrário, a história é que está na "verdade da

interpretação como algo que se desenvolve segundo as leis imanentes da

própria interpretação" (ADORNO, 2006, p. 217-219).

Esta idéia de que o movimento da história é inseparável da "verdade

da interpretação", e não algo que impõe uma determinada interpretação a

partir do exterior, configura uma idéia de que "não há obra em si que exista

em si mesma" (ibidem, p. 259) e de que ela pode ser compreendida em

épocas diferentes, porém com limites para cada uma de suas concepções.

Desta forma, a história não é exterior, mas parte da obra, é um substrato,

uma categoria que Adorno denomina de "desenvolvimento no tempo" e que é

importante na sua definição de "essência da obra" ; é uma lei permanente e

inseparável que faz a obra mudar ao longo do tempo. Esta historicidade

interior das obras musicais provoca mudanças na interpretação, que então

são testemunhas do "conteúdo das obras", assim como, inversamente, o

"conteúdo das obras" é testemunha da história.

Adorno, portanto, distingue uma interpretação verdadeira - a que capta

a essência da obra no seu movimento histórico - da interpretação falsa, que

se impõe à obra a partir do exterior através de meras contingências, como o

gosto puramente pessoal do intérprete ou a moda, incorporando coisas

estranhas à obra interpretada. Esta submissão a um gosto puramente

subjetivo do intérprete, ou ao gosto dominante de um contexto histórico-

social, abre caminho para um relativismo estético baseado em uma relação

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  27

arbitrária com a obra, o que vai contra a idéia da relação entre os planos da

partitura e da interpretação mediadas pela história.

Assim, se existem mudanças históricas nas práticas interpretativas,

estas mudanças só correspondem a uma interpretação verdadeira se forem

determinadas pela própria historicidade interna das obras. Neste sentido,

observamos que a interpretação é um processo em mudança permanente em

função do movimento da história, o que nos remete à idéia de que a obra

também é algo inconcluso. As obras modificam-se no tempo; as novas

transformam as antigas, uma vez que criam novas tendências de percepção

ao apresentarem novos problemas e soluções interpretativas, como o

exemplo descrito por Wagner.

Isso nos leva a duas constatações importantes para a interpretação

musical: a primeira é que a obra musical não é idêntica ao texto notado; a

segunda, que o gesto imanente da música é sempre atualidade, ou seja, os

mais antigos signos musicais não são para o agora, nem para qualquer outro

tempo (Adorno, 2006, p. 250). Dahlhaus argumenta que o que fez a história

da música diferente de outros tipos de histórias é o fato dela não somente dar

importância às coisas do passado - eventos, documentos - mas olhá-las com

a estética do presente (Dahlhaus, 1983, p. 5).

As idéias de que a obra é algo não concluído, em estado de

permanente transformação devido ao movimento da história, e de que os

signos musicais são atuais, são idéias próximas da teoria da História da

Walter Benjamim. Ele considera a obra como um evento histórico, por isso

um processo sem conclusão, e diz que "articular o passado não consiste em

conhecê-lo como realmente foi, mas sim ganhar a transmissão do novo ao

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  28

conformismo que dela [da obra] pretende apoderar-se" (BENJAMIM, 1991

apud CARVALHO, 2005, p. 207).

Não conhecer o passado como ele realmente foi pode ser entendido

como a impossibilidade de se retornar à música de Bach ou Beethoven.

Mesmo que fosse possível reproduzir fielmente a forma de se tocar da época,

não é mais possível ouvir estas obras como se ouvia. No entanto, o conceito

de historicidade interna torna esta música viva, uma vez que a dialética da

contemplação pode ser sempre de novo subtraída pela interpretação ao

continuum do academismo, porque a própria obra mudando intrinsecamente,

confere objetividade à interpretação (Adorno, 2006, p. 213).

2.3.2 A obra musical e o objeto notado

O século XX trouxe uma grande quantidade de transformações para a

estética musical. Se na produção da música tonal os compositores produziam

a partir de um único sistema, a nova música ampliou os sistemas, permitindo

ao compositor a tarefa de criar o seu próprio sistema.

A profusão de novas formas de organização da música teve reflexo

nos intérpretes, que se viram diante de um repertório novo, sem muito tempo

para adaptações. Trata-se de um intérprete proveniente da prática romântica,

acostumado à textura tonal, aos temas, à melodia bem definida, ao percurso

de tensão musical muito claro, elementos musicais que, se não foram

totalmente erradicados, sofreram transformações muito drásticas. Se hoje

ainda temos dificuldades em interpretar a música do século passado, os

intérpretes responsáveis por este repertório então contemporâneo

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  29

certamente tinham também. Ravel bradava que "não estava pedindo para a

música ser interpretada, mas somente tocada" (WALLS, 2002, p. 17).

Esta dificuldade em entender o novo repertório, aliada à prática da

interpretação do repertório romântico, provoca duas reações por parte dos

compositores: houve um aumento acentuado do detalhamento do texto

musical, as partituras passaram a apresentar um número maior de signos e

os compositores passaram a defender mais veementemente uma leitura mais

literal da partitura.

Podemos tomar Stravinsky como um representante destes

compositores, que muitas vezes viam suas idéias completamente

"destruídas" nas mãos de determinados intérpretes, alertando : "o pecado

contra o espírito da obra sempre começa com um pecado contra sua

literalidade, e leva às intermináveis loucuras que uma literatura sempre

florescente, do pior mau gosto, faz o possível para sancionar"

(STRAVINSKY, 1996, p. 113). Ele continua, dizendo que "a música deve ser

transmitida e não interpretada, porque a interpretação revela a personalidade

do intérprete mais do que a do autor, e quem pode garantir que um

determinado executante refletirá a visão do autor sem distorção?” (WALLS,

2002, p. 17). Stravinsky estava propondo uma mudança na interpretação

vigente, formada pelo romantismo. Ele propunha uma leitura mais literal, a

restrição à personalidade do intérprete, defendendo que não há o que

procurar nas notas senão o que está lá, bastando tocá-las corretamente para

se realizar a obra.

Entretanto, as diferenças entre compositores e intérpretes sempre

existiram ao longo da história, pois estes desvios fazem parte da música: "o

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  30

desvio entre a partitura e o resultado sonoro é tão grande que a notação não

pode ser pensada como uma imagem válida da obra" (NATTIEZ, 1990, p.

79). Nas palavras de Adorno, "nunca e em passagem alguma o texto musical

notado é idêntico à obra"; para ele ser fiel ao texto é preciso captar aquilo

que está oculto, senão "a fidelidade transforma-se em traição" (CARVALHO,

2005, p. 210). A busca deste sentido oculto deve ser uma preocupação da

interpretação, pois não se pode considerar que um texto musical revela-se a

partir de si mesmo. Deve-se considerar que ele é "algo que ainda tem de

constituir-se a si próprio" (ibidem, p. 210-211).

Se fizermos uma comparação com a poesia, poderemos entender um

pouco melhor o que se quer dizer com "constituir-se a si próprio". A poesia

permite uma performance; no entanto, ela não é absolutamente necessária,

visto que o texto poético escrito já está num formato sensivelmente captável:

qualquer um pode tomar o livro, ler e interpretar de acordo com seu universo

cultural.

Já o texto musical precisa de algo de fora, precisa necessariamente da

performance para converter os signos da partitura, sem sacrificar o que está

e o que não está escrito, o oculto. O texto musical precisa do intérprete, que

é o responsável pela zona de indefinição na notação musical. Desta forma,

não podemos dizer que o texto musical está completo, uma vez que, sem o

intérprete, ele não passa de uma folha de papel; isso quer dizer que a música

só se constitui verdadeiramente como texto através da interpretação (Adorno,

2006, p. 181).

Mas a necessidade do intérprete lança um problema para a escrita

musical, inexistente na poesia, fazendo com que a partitura seja um "enigma

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  31

insolúvel" e, ao mesmo tempo, o "princípio da resolução do enigma" -

expressões de Adorno. É um enigma, pois nunca se encontrará uma solução,

cada intérprete achará a sua; e o princípio da resolução está nos próprios

signos, que são o que permite alcançar a música propriamente dita. O

trabalho do intérprete, em relação à escrita, é mergulhar no texto notado e

adquirir um conhecimento que torne possível transformar a indefinição, que é

uma essência do texto, em uma definição que torne a obra legítima (ibidem,

p. 241) e concreta. Assim, pelo caminho inverso, a obra, no momento de sua

execução, não se confunde com o texto notado. O texto é um componente; a

obra, porém, possui uma objetividade, uma existência que legitima a

definição do texto escrito, ou seja, cria uma identidade entre a partitura e a

performance.

A partitura como um enigma; seu estado de definição ou indefinição; a

objetividade (existência) da obra e sua historicidade interna são os pontos

que servem de referência para a abordagem da interpretação como um

problema, segunda a análise de Adorno.

Se compararmos a escrita musical com a escrita da fala temos em

comum que ambas são sistemas de signos. Entretanto, a diferença básica

entre elas é que a escrita musical não tem a possibilidade de formar

complexos sonoros que possam significar coisas ou objetos, o que é possível

com as palavras. Adorno considera a escrita musical como uma escrita não-

intencional, o que faz da música uma linguagem não-intencional, pois sua

interpretação/performance ocorre no terreno qualitativo e não no simbólico,

ou seja, a música atua no nível das sensações (ibidem, p. 168). Mas para a

música se organizar é preciso um elemento articulador que possa ser

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  32

organizado sob o ponto de vista de uma certa lógica; Este elemento é o

mimético.

Em grego, mimeses que dizer imitação ou representação, e tanto para

Platão como para Aristóteles significava a representação da natureza.

Entretanto, para Platão, qualquer criação é uma imitação das coisas

verdadeiras que estão no mundo das idéias. Dessa forma, o processo de

criação artística seria uma imitação de segunda mão, pois a arte imita a

natureza do mundo dos homens. Já Aristóteles via o drama como sendo a

imitação da uma ação. Como rejeita o mundo das idéias de Platão, ele

considera a arte como representação do mundo (Auerbach, 1996, p. 522).

Podemos tomar a música dos Pigmeus como exemplo de como era

sua relação com o mundo que estava ao seu redor. Se a música de concerto

de hoje é algo abstrato e sem um simbolismo direto, para os Pigmeus era a

forma de se relacionar com a natureza e ao mesmo tempo tentar

compreendê-la. Sua atitude era bem simples: copiar as ações de seu

cotidiano. Desta forma, músicas como "Chegada da chuva no

acampamento", ou "A caçada do elefante", tentavam recriar sonoramente

estas situações.

Sob este aspecto, para Adorno a música é uma linguagem puramente

mimética, tanto livre de um objeto concreto como da significação. Ela é um

gesto organizado segundo uma lei, um gesto acima do mundo corporal, um

gesto sensorial. No entanto, quando a música subiu aos palcos das salas de

concerto européias, deslocou o elemento mimético para a periferia da

construção musical. Mesmo assim, os traços deste elemento ainda podem

ser encontrados no nível partitura, da notação. Assim, segundo Adorno, os

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  33

signos musicais, tomados pela ambiguidade e pela transitoriedade do gesto,

são "imagens de gestos" e a notação teria surgido para fixar a prática

mimética, quando a memória desta já começava a desaparecer das práticas

musicais (Adorno, 2006, p. 171).

O surgimento da notação da música da Igreja Católica na Idade Média

demonstra esta transformação. Os primeiros sinais desta escrita do século

IX, que evoluiria até a escrita da música ocidental moderna, eram traços

pequenos e curtos, que indicavam apenas se a voz deveria ir para o agudo

ou para o grave. Até então, a memória dos padres cantores era suficiente

para manter a tradição do canto gregoriano. No entanto, sua difusão pelo

continente europeu e seu uso como instrumento unificador da doutrina

católica começaram a prescindir de uma notação mais esclarecedora. Nas

palavras de Candé, "resolveu-se ajudar a memória dos cantores, colocando

acima das sílabas do texto signos que sugeriam o movimento da melodia".

Os chamados Neumas primitivos não eram mais do que lembretes, mas, "no

início do século X, em razão de um curioso sentimento de analogia entre

sensações visuais e auditivas, imagina-se colocar os signos em alturas

diferentes, conforme correspondam os sons mais ou menos agudos. Com

este processo obteve-se uma "uma guirlanda de Neuma cujo movimento

pode provocar a 'curva' da linha melódica" (CANDÉ, 2001, p. 205-206).

Uma questão importante, da notação no processo de unificação do

culto católico em torno do canto gregoriano, é a necessidade de dominação

de classes. Mais do que preservar um passado musical, passado que nunca

poderia ser recuperado pela notação extremamente vaga da época, a escrita

tinha a função de disciplinar a prática musical, ou seja, fazer com que todos

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  34

falassem "a mesma língua". A intenção era que a tradição musical - devemos

lembrar que a missa era totalmente cantada - não fosse modificada pela

necessidade de expressão das massas, forçando-as à mera transmissão da

tradição, o que era chamado de escola da obediência (Carvalho, 2005, p.

213).

Se retornarmos à defesa de Stravinsky por uma leitura mais fiel da

partitura, podemos traçar um paralelo com o canto gregoriano. Mas neste

caso temos uma defesa de uma estética, um pensamento muito

individualizado dos compositores do século XX, que na maioria das vezes

não era compreendido por intérpretes impregnados dos maneirismos

românticos. Estes fatos levam Adorno a acrescentar um elemento

antimímico, definindo a notação com uma síntese de elementos divergentes;

se por um lado ainda restam traços do mimético, por outro ele acrescenta o

antimímico como sendo o significacional e racional.

O racional, na música, são os elementos da escrita que se

desenvolvem ao longo de sua história e a aproximam da escrita da fala. A

presença de elementos simbólicos - os sinais gráficos de alturas, ritmos,

dinâmicas... - afasta definitivamente o elemento mimético e aumenta a

autonomia da partitura em relação ao criador. Esta autonomia provoca uma

perda da memória e é fundamental para a interpretação:

A notação expropria a memória, na medida em que a auxilia: ela

constitui o primeiro passo para a socialização da memória. A notação quer

que a música seja esquecida, para fixar e gravar na memória: trata-se de a

transformar na repetição idêntica, na reificação, transformação em coisa, do

gesto, À eternização da música pela escrita pertence um momento mortal:

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  35

aquilo que ela, escrita, detém, torna-se simultaneamente irrecuperável

(Adorno, 2006, p. 172). Siohan reforça este pensamento ao considerar a

partitura um mero artefato auxiliar à memória. Ele diz que "o signo musical,

enquanto elemento gráfico, não é música, nem um reflexo, mas somente uma

ferramenta mnemônica" (SIOHAN, 1962 apud NATTIEZ, 1990, p. 71)

A notação pretensamente assume para si a responsabilidade de

manutenção da memória musical. Acredita-se que ela tenha o poder de

transmitir um pensamento musical sem a necessidade da presença do

compositor. Elemento virtualizador da música e da memória, a partitura

começa a ser editada e distribuída em larga escala no classicismo.

O esquecimento da música é o esquecimento das práticas

interpretativas pertencentes a ela, de forma que, neste ponto, Adorno

concorda com Gadamer, que defende uma absoluta coincidência temporal

entre a obra e o ouvinte, acreditando que, por maior que seja a consciência

histórica, esta relação ainda assim permanece imutável. Para ele,

praticamente não há uma herança histórica em uma obra quando ela está

fora de seu tempo, sendo que o ouvinte sempre deve ser um contemporâneo

do compositor (Gadamer apud Carvalho, 2005, p. 208-209).

A impossibilidade de se recuperar a música em sua origem através da

escrita cria uma situação de utopia para a interpretação. No entanto, esta

impossibilidade é justamente a chave para a dialética entre o "rigor" da

partitura e a "liberdade" da interpretação; ou seja, a música só se

desenvolveu em direção à autonomia e agregou toda uma gama de

expressividade através da mediação gráfica, da partitura, que a tornou

disponível, praticável, acessível às pessoas em geral e desmemoriada, o que

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  36

cria um horizonte para a interpretação. Por outro lado, a partitura "reifica" a

música, a transforma em uma coisa qualquer, privada de qualidades e

individualidades, em um objeto de consumo sem personalidade que, sem a

presença da memória como suporte, torna-se algo para uso.

O desenvolvimento da notação, na tradição musical européia, acentua

esta dialética e apresenta uma "visualização", herdada dos antigos Neumas,

que está ligada à idéia de gesto musical. A escrita torna possível

visualizarmos o gesto, descrevê-lo no espaço, estando aí justamente o

elemento mimético. Desta forma, temos um paradoxo: o elemento racional -

os símbolos da escrita musical - que torna possível a tradição e a própria

história, e em certo sentido é inimigo da expressão, é aquele que torna

possível e sob o qual está o mimético. Ao contrário, a música propriamente

dita, no momento da execução, pura gestualidade se formando e se diluindo

no tempo, é absorvida pela escrita através de seus elementos simbólicos.

A racionalização, que corresponde ao desenvolvimento dos elementos

simbólicos na notação, permite organizar fatores como alturas, ritmos e

instrumentação, com o objetivo do controle das estruturas musicais, e

representa a invasão do intencional na notação. Para Adorno, a

racionalização impossibilita uma experiência musical mais sincrética que

envolva, além do som, gesto e movimento, como ocorria antes da ingerência

da igreja nos cantos dos primeiros cristãos.

Já o gestual, o não-intencional, é temporário, efêmero, não sobrevive à

história e não está preocupado com isso. Por outro lado, na escrita, a

intenção é a eternidade, ela mata a música como fenômeno natural e

espontâneo, para a conservar fragmentada no mundo das idéias. Desta

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forma, o elemento mimético da música está ligado aos elementos simbólicos

introduzidos pela notação, aproximando-a da escrita da fala, mas com o

custo de perder sua própria homogeneidade como música (Adorno, 2006, p.

178). Entretanto, o elemento da expressividade está tão ligado ao seu

oposto, ao dos símbolos musicais, que isso torna a racionalização da escrita

um organismo de subjetividade.

Nesta duplicidade entre o elemento mimético, não-intencional, e o

simbólico, intencional, reside o problema da interpretação no sentido mais

rigoroso do termo: a fidelidade gestual-visual da escrita contém algo da

rigidez dos signos linguísticos, assim como a indicação da execução mais

rígida e rigorosa contém algo de necessariamente ambíguo. Esta

característica de duplicidade da escrita como mimese e como linguagem

torna necessária a interpretação musical, cujo objetivo é resolver a questão:

"Como pode a mímica tornar-se linguagem e, inversamente, o signo

transformar-se em imagem?" (ADORNO, 2006, p. 180)

2.3.3 O sentido

Uma primeira noção de sentido é um efeito que um objeto gera

quando entramos em contato com ele de alguma forma. Uma definição geral

pode ser formulada como sendo "um objeto qualquer gera sentido em uma

apreensão individual deste objeto, assim que o indivíduo o coloque em uma

relação com áreas de sua experiência vivida - isto é, em relação à coleção de

outros objetos pertencentes à experiência do indivíduo no mundo" (NATTIEZ,

1990, p. 9). Nesta definição, "objeto" se refere a qualquer coisa, sejam

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  38

elementos simbólicos como as palavras, coisas materiais ou imateriais, fatos

sociais, etc. O uso do "individual" é importante para a compreensão de que o

efeito dos objetos deve ser estudado nos indivíduos como prioridade em

situações de análise de um fenômeno em relações interpessoais ou coletivas.

Por fim, a palavra "apreender", diferentemente de "produzir" ou "perceber",

indica que "o sentido de um objeto existe não só para quem o recebe, mas

também para seu produtor" (ibidem).

Em relação ao objeto, a noção de sentido é um horizonte, é o futuro

que surge e dá vida ao objeto. Horizonte pode ser entendido como destino;

neste caso, o significado que será atribuído pelo indivíduo ao objeto, que sem

esta relação não é nada, só existe no momento em que o objeto é percebido

por alguém.

O horizonte é também um limite da visão, o máximo que ela alcança,

compreendido como o limite da nossa percepção, em função da nossa

experiência de vida. Se estamos num quarto vazio, vemos as paredes, a

porta, as tomadas elétricas, a lâmpada no teto, ou seja, não temos muito o

que ver, nosso horizonte de visão é pequeno. No entanto, ao olharmos pela

janela e avistarmos toda uma cidade, o alcance da visão amplia-se

consideravelmente, temos muito mais coisas que podem ser observadas.

Desta forma, o sentido é uma constelação de significados, de efeitos que um

determinado objeto possui. A capacidade de percebê-los, todos, vai depender

da experiência individual, de cada um.

Porém, no território da música, especificamente, quais horizontes uma

obra musical pode evocar? Obviamente são inúmeros, heterogêneos,

abrangem dimensões diferentes do sentido musical, podendo estar ligados a

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aspectos biológicos, sociais e culturais do homem. Podemos encontrar todo

tipo de sentido para uma música, alguns mais aceitos por uma coletividade e

outros absolutamente individuais, mas eles podem ser classificados em

categorias, de acordo com o julgamento de quem o faz, segundo Francès

(1988, p. 259-260).

A primeira categoria é a Normativa, quando se produz avaliações

pessoais, julgamentos de gosto, o que praticamente é impossível de não

ocorrer na música de concerto ocidental. Em praticamente qualquer fato

musical, incluindo a música das tradições orais, a reação mais comum das

pessoas é avaliar se gostaram ou não.

A segunda é a Objetiva, quando os julgamentos são de natureza

técnica, como analisar alguma propriedade física da música (timbre, tempo,

vibrato); a forma (estrutura, gênero, estilo histórico); ou o tipo de escrita. Esta

categoria é importante em relação à discussão a respeito da música: ela é

apenas uma pura estrutura formal, não se refere a nada a não ser a si

mesma, ou é capaz de inspirar associações externas? A resposta para esta

pergunta é que a música pode ter tanto referências intrínsecas como

extrínsecas (Nattiez, 1990, p. 103). Desta forma, os julgamentos objetivos

são os que envolvem as referências internas da obra, assim como a próxima

categoria está relacionada às referências externas.

Julgamentos a respeito de significados extra-musicais são produzidos

por sujeitos que atribuem à obra fatos extra-musicais. Esta terceira categoria

é dividida em três tipos:

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a. em relação a uma referência individual: o significado está relacionado com

alguma experiência pessoal; esta música é igual a um passeio com meu

carro pelo centro da cidade, por exemplo, podendo ser acompanhado ou não

por imagens.

b. sentido concreto: um aspecto específico da natureza, um fenômeno do

mundo externo ou uma situação dramática. La Mer, de Debussy, pode ser

considerada um exemplo, deixando claro, porém, que é preciso se esclarecer

o contexto ao ouvinte antes da escuta, para que seja possível a

compreensão da obra de acordo com o seu roteiro dramático.

c. sentido abstrato: estado psicológico (alegria, entusiasmo, serenidade); ou

representações generalizadas (ordem, desordem, hierarquia). Uma obra é

alegre ou triste, é caótica ou não.

A quarta categoria são os julgamentos que levam ao relato de

aspectos psicológicos interiores do sujeito em relação à experiência. Neste

caso, os sentimentos que possam ser generalizados são considerados

individualmente. Nem sempre uma obra triste é compreendida como tal por

todos; se a apresentamos a pessoas de uma cultura diferente, teremos

opiniões pessoais muito mais diversificadas, por exemplo.

De forma geral, as opiniões verbais a respeito de uma música são

feitas a partir do mundo próprio de cada um, de sua experiência pessoal, de

forma que sua reação será em função de sua bagagem sócio-cultural. Mas

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  41

outro elemento está também fortemente ligado à produção de sentido na

música, que é o biológico (Nattiez, 1990, p. 104).

Molino divide a apreensão de sentido sob o ponto de vista biológico

em duas dimensões. A primeira é denominada "coenestésica", entendida

como a impressão, ou emoções que se revelam a partir de um conjunto de

sessões internas, não específicas, que habitam em nosso corpo. Molino diz

que gostar ou não de uma obra é uma forma de simbolizar uma reação

corporal, representada pelas emoções. A segunda dimensão é a

"kinestésica", que é a impressão de movimento que alguém sente em

determinado ponto do corpo. Se a música nos desperta, é porque ela está

nos incitando a mover (ibidem).

As categorias de Francès e as dimensões de Molino nos colocam de

frente para o debate a respeito da oposição entre Natureza e Cultura,

presente em inúmeras áreas de estudo do conhecimento humano. No

entanto, elas demonstram que na música não são uma oposição, mas

componentes de uma mesma experiência, que pode produzir conhecimentos

técnicos musicais, a partir dos julgamentos objetivos; conhecimentos a

respeito de aspectos históricos, sociais, ou psicológicos; até a incitação do

movimento e de reações emocionais específicas e individuais.

Ao longo da história, o estudo do sentido na música produziu uma

série de correntes e formas de pensamento. O próprio conceito de música se

modifica, refletindo e sendo reflexo das sociedades nas quais foi elaborado.

Segundo Gilson, a história da estética é dividida em quatro grandes famílias

que se sucedem, sendo que uma é sempre a reação contra a anterior e que

elas podem coexistir em algum momento. As três primeiras são a imitação, o

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expressionismo e a simbólica, nas quais a música é capaz de reproduzir,

expressar ou simbolizar significados, sentimentos e alguma realidade exterior

à obra. Na quarta e última, o formalismo, o sentido da música acontece nela

mesma, é intrínseco à forma, à estrutura e suas relações sonoras, rejeitando

qualquer elemento exterior (ibidem, p. 107).

A doutrina da imitação explica-se pelo próprio nome. Seu princípio

está baseado na poética de Aristóteles: as artes são cópias, representações

da natureza. No universo musical, o princípio da imitação está ligado à

relação entre a música vocal cristã da Idade Média e sua escrita, os Neumas,

que eram inicialmente imitações das inflexões vocais, como apresentado no

tópico anterior, segundo Adorno. Na música vocal é fácil se identificar a

imitação.

Porém, para os filósofos, a chegada da música instrumental autônoma

dificulta este entendimento, por isso o expressionismo gradualmente se

impõe, agora como uma imitação das emoções: "uma importante questão é

saber se o trabalho do artista é ou não uma expressão da emoção e dos

sentimentos, [ser a obra] uma expressão, uma tradução artística destes

sentimentos" (GILSON, 1963, p. 67). Esta questão nos remete ao próximo

passo, que é definir onde está o sentimento, na consciência do artista ou na

obra.

A corrente simbólica define a obra musical como uma forma simbólica,

ou seja, ela simboliza, representa algo. Retomando a corrente expressionista,

poderíamos imaginar que o sentimento está representado na obra, mas

nesta nova corrente a obra pode representar muito mais e, principalmente,

não representa uma única coisa ou fato. Langer diz que a música é um

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"símbolo não consumado" (LANGER, 1957, p. 240), o que quer dizer que é

um objeto que representa algo, mas sem que esta representação se realize

de forma convencional, sem que remeta a um sentido específico. Ela diz que

é um processo que "direciona alguma luz ao obscuro conflito de julgamentos

que são evocados a partir de uma performance" (LANGER, 1957, p. 241)

Considerada uma reação contrária às concepções semânticas das

música, que pressupõem uma ligação da música com algo externo, a

doutrina formalista defende a música por ela mesma. A virada decisiva nesta

direção é marcada pelas idéias de Hanslick, segundo as quais a "beleza da

obra é especificamente musical, produto apenas das combinações de sons e

independente de qualquer coisa externa, qualquer noção extra-musical"

(Hanslick apud Nattiez, 1990, p. 108). Para Varèse, a música não é capaz

expressar nada, senão ela mesma. Stravinsky considera música, em sua

natureza, incapaz de expressar qualquer coisa, seja um sentimento, uma

atitude, um estado psicológico, um fenômeno natural, etc. “Expressividade

nunca foi algo imanente na música" (ibidem). É importante notar que os

formalistas não necessariamente afastam as emoções da música. Stravinsky

não disse que a música não pode provocar associações; o que ele diz é que

em seu nível imanente, enquanto um objeto, a música não é expressiva, ou

seja, a música provoca o nascimento de sentimentos em nós, mas como uma

consequência do ato musical.

A história da estética musical pode ser comparada com um pêndulo

oscilando entre as concepções semânticas, que consideram referências

externas à música, e os formalistas. Neste longo percurso histórico, muitas

vezes as concepções coexistem, às vezes muito proximamente, como no

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  44

século XX de Boulez, que defende uma música livre de relações externas; e

Stockhausen, com toda a sua visão cosmológica e relações espirituais.

2.3.4 O sentido em Adorno

Em Adorno, a imitação é o ponto de partida para se obter o sentido

musical. Em sua teoria da interpretação, a noção de sentido não está ligada à

produção e apreensão de significados, como descrito anteriormente, ou como

resultado de uma combinação de signos que produzam um significado como

na linguagem. Para ele, o sentido da música corresponde ao gesto global

que é recomposto a cada performance de uma obra. Desta forma, os

elementos de uma partitura não dão sentido à música, eles fornecem

caminhos a partir dos quais se realiza a imitação da música, os signos da

partitura como mimese. Este gesto global é o todo, é a forma musical

(Adorno, 2006, p. 191).

Imitar é ter algo como modelo e tentar reproduzir, é fazer algo

semelhante. Se pensamos em seu uso comum, compreendemos que ao

imitarmos algo não estamos realizando uma cópia fiel. O uso da palavra por

Adorno está na base da idéia de que nesta relação música - partitura -

intérprete, um imita o outro. Assim, a partitura imita a música e o seu

movimento, somente sendo capaz de fazê-lo através de um sistema de

signos, que por sua vez é imitado pela interpretação.

Este processo pode ser melhor entendido se tomarmos um desenho

como exemplo: Como fazemos para desenhar uma casa que está à nossa

frente? Analisamos sua forma; se ela é quadrada desenhamos um quadrado,

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  45

se é vermelha colorimos de vermelho. A chave do processo é a análise das

estruturas e das características da casa que possam ser transpostas para o

papel. Da mesma forma, no processo de imitação da música, a partitura

simplesmente apresenta alguns aspectos fundamentais da música. Em uma

partitura gráfica, a relação com o movimento do som é mais próxima, mas

essa relação também está presente na partitura tradicional, na qual o

movimento é representado pelos símbolos musicais. Desta forma, cabe ao

intérprete imitar a partitura. Cada elemento da relação imita o outro: no

entanto, um na dimensão das idéias- a música enquanto composição; outro

na dimensão simbólica- a partitura e o intérprete na realização sonora.

Mesmo não estando preocupado com a capacidade ou incapacidade

de produção e apreensão de significados, podemos notar na teoria de

Adorno aspectos marcantes de duas correntes de Francès, a imitação e a

formalista. Se voltamos ao exemplo dos Pigmeus, temos uma música feita

para se relacionar com a natureza; ela busca imitá-la e podemos dizer que,

para os Pigmeus, sua música tem como modelo a natureza. Temos aqui uma

relação de significação direta: ao ouvir sua música, o pigmeu é remetido a

algum aspecto de sua vida.

Já na música de concerto atual, o processo de imitação ocorre, porém

sem um modelo; são cópias de um original que não existe. Adorno não

credita à música uma capacidade de representar algo e nem discute este

aspecto, o que o aproxima dos formalistas. Podemos, entretanto, propor que

quando ele sugere a idéia de "mimese", deixa uma porta aberta à

significação, pois a música pode se ligar a qualquer significado, devido à sua

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característica mimética; podemos relacionar qualquer coisa de acordo com

uma lógica pessoal no processo de escuta.

À interpretação cabe atuar nestes dois aspectos do texto escrito: o

simbólico e o mimético, que são absolutamente ligados, de maneira que um

não existe sem o outro. Na definição da escrita da música atual, estes dois

pólos são uma linguagem sígnica no singular e gestual ou figurativa no todo.

Cada nota e indicação expressiva têm que ser traduzidas em representação

mental e realizadas sonoramente, como parte integrante da imitação do gesto

da escrita na sua totalidade (Adorno, 2006, p. 205-206).

Devemos observar que a idéia do gesto como figura significa uma

espacialização do percurso do tempo (Carvalho, 2005, p. 218). Uma figura é

uma imagem visual, desta forma podemos ver o que acontece do ponto de

vista do movimento da música no tempo, como em uma partitura gráfica. O

gesto transformado em figura vai contra a idéia de mimeses original. Perde-

se a atualidade do gesto, já que ele é um acontecimento, ele simplesmente

existe, é um momento presente, o que deixa de acontecer para ser

eternizado numa figura. A fixação do gesto em figura permite que ele seja

relacionado a outros, tanto na sucessividade quanto na simultaneidade,

deixando de ser, em certo sentido, "o gesto musical" para ser "o gesto

concreto", passível de análise e de princípios de organização (ibidem).

Ser linguagem sígnica e figurativa aprisiona a escrita musical e sua

insuficiência num paradoxo de ser "signo linguístico do não-linguístico,

significante do não-conceitual, concretização do inconcreto, fixação do não-

fixável" (ibidem, p. 219) e, principalmente, o paradoxo de ser uma coisa, um

objeto que se modifica na história. A interpretação como problema revela

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  47

essa historicidade ao captar e procurar resolver o paradoxo presente no

duplo caráter da escrita musical. É importante realçar que não se trata

simplesmente de se adaptar a obra ao momento histórico em que foi

concebida, mas sim compreender nela própria sua regras interpretativas,

suas leis internas.

Além dos elementos mimético e simbólico, a interpretação ainda

depende de um terceiro elemento, o idiomático. A relação entre estes três

meios é que torna claro o caminhar das obras na história.

2.3.5 O idiomático

O elemento idiomático é ligado à partitura, porém não está escrito, ele

é tudo que, por ser óbvio na prática musical, não aparece na notação, sejam

aspectos dos signos ou aspectos miméticos. O idiomático é ligado à maneira

de tocar aceita por uma maioria, seja no contexto em que a obra nasce ou no

local onde é executada. O idiomático é também a subjetividade do intérprete,

seu estilo pessoal de execução. "O idioma é o contexto que sustenta a obra

no momento histórico em que ela surge e/ou naquele em que ela é

interpretada" (ibidem, p. 220).

É uma cultura de escuta e interpretação que define um coletivo de

coisas a se fazer em determinada música. Sua ligação com a partitura se dá

através desta cultura, que diz como devem-se realizar os elementos da

partitura, não apenas os pertencentes à micro-forma, como ornamentos em

geral, mas também os da macro-forma : andamentos, dinâmicas, articulação

da estrutura formal, instrumentação, entre outros. Adorno considera que "as

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  48

maneiras de tocar e frasear dominantes" (ibidem) asseguram uma

interpretação "correta", que não vai contra a coletividade, considerando esta

prática como uma espontaneidade aparente, que demonstra, efetivamente,

uma ingenuidade.

De fato, o idiomático reflete um pensamento dominante de um meio

musical, o que muitas vezes não permite uma leitura e uma performance

mais críticas da partitura. O problema é que este pensamento dominante

sustenta a obra, o que tende a fazer com que se acredite em uma

coincidência entre a obra e a forma de compreendê-la e interpretá-la; ou seja,

não necessariamente a forma de compreensão de uma obra de determinado

momento é a forma como a obra deva ser interpretada. Este descompasso

entre o idiomático e a obra provoca, segundo Adorno (2006, p. 212), uma

crítica da História a uma tradição interpretativa que oculta ou distorce a

concepção verdadeira da obra, que impede a capacidade de transformação

da obra. Para Mahler, a "tradição é desleixada" (ibidem, p. 67).

Se por um lado o idiomático é efêmero, por outro, os signos musicais,

a escrita da partitura, são permanentes. Mesmo que tenhamos algumas

mudanças nos diapasões de cada época, ou que a construção dos novos

instrumentos possibilite novas relações dinâmicas, o sistema continua o

mesmo. A partitura é o esquema da obra, o que garante sua identidade sobre

o curso da história (Ingarden, 1989 apud Nattiez, 1990, p. 69-70).

A relação do elemento permanente com os variáveis, o mimético e o

idiomático, propicia o dinamismo da obra, revela sua historicidade interna. Se

a escrita é permanente, a carga histórica está presente nos dois outros

elementos. O mimético apresenta a história interna, de certa forma o

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  49

pensamento do compositor; e o idiomático, a história externa, o momento

histórico da época em que a obra foi composta ou que é tocada. A relação

entre a escrita e os outros dois elementos é conflituosa, ou melhor, negativa,

pois a necessidade do idiomático e do mimético mostra o seu vazio

significacional, mostra que os signos precisam de ser completados,

necessitam da interpretação, responsável pelos outros dois elementos, para

serem de fato uma obra musical. Devido ao vazio significacional do elemento

escrito, Adorno o considera "a identidade da não-identidade" (ADORNO,

2006, p. 199), ou seja, a partitura que tendemos a considerar como a obra a

identifica, mas de fato não a representa em sua totalidade. Hans-Joachin

Koellreutter (1915-2005) costumava dizer que o mapa não é o território;a

escrita é este mapa, a interpretação percorre o território.

O idiomático, efêmero, não está registrado na escrita. Desta forma, ele

é uma coisa de fora, sendo, no entanto, o elemento capaz de fazer com que

o texto produza sentido. A efemeridade do idiomático e sua ausência no

sistema de codificação do texto o levam a ser perdido, em função das

mudanças das sociedades no decorrer da história. Como ele é o responsável

pelo sentido, isso cria um problema para o texto notado. Órfã do idiomático, a

obra só tem como possibilidade de reconstrução do gesto musical seu

elemento permanente, os signos da escrita. Isso implica também a

reconstrução do elemento idiomático a partir do texto notado, através da

busca do gesto oculto nos símbolos musicais. Todo este processo de

reconstrução, no entanto, só é possível através da análise.

Podemos dizer que esta é uma proposta de mudança de paradigma

para as práticas interpretativas. O comentário de Mahler - a "tradição é

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  50

desleixada"- é a marca de um momento problemático da linguagem musical,

um momento em que o discurso da tradição deve ser substituído por um

discurso analítico-construtivo (Carvalho, 2005, p. 221). Este, por sua vez,

passa a ser o responsável pela reconstituição do gesto musical da obra como

um todo, devido ao fato da escrita levar-nos ao elemento mimético e vice-

versa, como foi dito anteriormente.

O desleixo da tradição é uma crítica, mais do que isso, uma

condenação da distorção provocada pelo elemento idiomático cristalizado,

que rejeita as transformações históricas, sociais e culturais; um idiomático

que tem como base regras externas à obra, formadas por uma consciência

coletiva e que são usadas sem um juízo crítico, quase que como um manual

do proprietário. Esta prática destrói a verdade dinâmica da obra, sua

propriedade de estar em constante transformação ou adaptação a novos

tempos.

Adorno cita como exemplo as práticas de interpretações históricas da

música que negam a história por serem unicamente baseadas na tradição do

momento de nascimento da obra, que buscam reconstruir o idioma do antigo

ideal de execução (Adorno, 2006, p. 229). Este tipo de prática obstrui a

verdade da obra, de sua dinâmica, de três formas:

1. objetiva: o texto notado é confundido com a obra, ou seja, o intérprete

atual, com sua ideologia, busca realizar o mais fielmente as instruções dos

símbolos musicais, o que equivale a aplicar a interpretação objetiva do

pensamento de Stravinsky à música de Monteverdi.

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  51

2. historicista moderna: a leitura de uma partitura de acordo com as

convenções de uma época pode anular a leitura crítica do material em si, ou

seja, não necessariamente o que um compositor pensou e escreveu está de

acordo com a prática interpretativa de seu tempo. Os inovadores,

principalmente, têm grandes conflitos com este descompasso, como

constatamos nas críticas de Stravinsky e Varèse. Adorno, no seu texto Em

defesa de Bach contra seus adeptos, diz que ao falar de Bach, na verdade,

falavam de Telemann, bem mais famoso na sua época; ou seja, ao fazer isto

não estavam captando a verdade dinâmica que projetava suas obras no

futuro, mas simplesmente reproduzindo-a através de meras convenções ou

ideologias dominantes do contexto em que o compositor viveu. A redução de

Bach às convenções de sua época liquida seu estilo; uma interpretação

verdadeira precisa, mais do que de conceitos, de uma razão fria da

musicologia (Carvalho, 2005, p. 222).

3. subjetiva: oposta à objetiva, é extremamente subjetiva, defende um

relativismo estético, na medida que a sua legitimação é a convicção íntima do

intérprete. Cabe a ele julgar o que é mais musical, mais expressivo ou o que

deve ser feito e expor suas convicções ao público.

Segundo a Teoria de Adorno, todos estes caminhos impedem uma

interpretação verdadeira. Seja uma obra do passado ou atual, para o

intérprete escapar do elemento idiomático como ideologia, como convenção,

é preciso um distanciamento da obra, é preciso que ela provoque um

estranhamento. Para se conhecer de fato uma obra, para se construir uma

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  52

interpretação verdadeira, é preciso reconhecer nela o não-idêntico, o que a

torna singular em relação à sua tradição idiomática.

É preciso também que o intérprete encontre e demonstre a sua

singularidade pessoal, o que o distingue da tradição idiomática em que se

formou e que é dominante nas práticas musicais de seu tempo. Desta forma,

a interpretação do sentido da obra, da escrita, é mediada pela subjetividade

do intérprete como condição para a sua compreensão. Portanto, a chave

para a verdade está na compreensão da escrita como algo incompleto, como

portadora de uma historicidade interna, na voz do intérprete e na sua própria

historicidade e subjetividade.

O desafio do intérprete é realizar a historicidade interna da obra contra

a tradição que a encobre e oculta. Para isso, é preciso um domínio da análise

e execução do elemento simbólico, apesar do elemento idiomático que tende

a afastar as descobertas em função de um lugar comum. É preciso a

capacidade de intuir, de experimentar o elemento mimético, apesar da

análise que desconhece o subjetivo. Em poucas palavras, é preciso captar o

outro lado dos elementos musicais.

A obra como algo incompleto só é verdadeira, na sua singularidade,

quando o intérprete nadar contra a correnteza, contra os preceitos frios da

musicologia, contra a segurança proporcionada por um idioma já sepultado,

contra a tradição interpretativa pregada e continuada pelo academicismo.

"As grandes interpretações (...) conseguem, de imediato, situar-se acima dos

conflitos entre preconceitos estéticos, dos enfoques demasiadamente novos

e sobrecarregados da erudição musicológica, em suma, consignam algo de

universal à obra. O sentido, assim revelado, não é mais para este ou aquele

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  53

tipo de homem de tal e qual época, porém, um sentido para o Homem e sua

História" (IMBERTY apud NATTIEZ, 2005, p. 152).

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3. A INTERPRETAÇÃO FIXADA

A escrita musical, mais do que um instrumento transformador da

música de concerto ocidental, é uma das fundadores desta música. Desde os

primeiros neumas até as partituras atuais, ela proporcionou uma capacidade

de representação, de gerenciamento das idéias composicionais. A escrita

acrescentou à obra musical a partitura e seus símbolos. A memória coletiva

das culturas orais, transmitida de forma pessoal, passou a ser registrada

nestas páginas. Assim, as pessoas não precisavam mais estar em contato

umas com as outras para obter uma informação; a escrita afastou a

informação do contexto e diminuiu a mediação humana.

Beethoven, por exemplo, considerava um grande benefício, e um

alento, saber que sua música podia chegar a mãos distantes e interessadas

em sua arte, já que, ao seu redor, a competição com a invasão da música

ligeira italiana o deixava em segundo plano na sociedade vienense. Neste

universo, a interpretação passou a ter importância muitas vezes maior que o

próprio texto. Surgiram as escolas, os grupos intelectuais e seus tratados e,

junto, as disputas pelos significados, "desde então, o mundo [a música] se

oferece como um grande texto a ser decifrado" (LÉVY, 1993, p. 89). A escrita

tornou possível o fortalecimento das teorias, aplicáveis de forma universal -

acessível a quem dominasse a técnica; criou a partitura como um objeto

auto-suficiente, e com os sistemas de impressão, o saber, que já podia ser

estocado, pôde ser também distribuído e comparado, possibilitando a

existência de uma cronologia e o surgimento da história.

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  55

A escrita é uma das esferas que interage, através de seus

componentes simbólicos, com as esferas do compositor e dos intérpretes,

dos músicos e ouvintes, resultando na obra como um fato musical total. Ela é

o traço resultante das estratégias do compositor e o guia para as estratégias

de interpretação (Nattiez, 1990, 70). A escrita foi fundamental na constituição

deste modelo de obra musical que imperou até metade do século XX, e que

sofreu uma modificação profunda com o surgimento de uma outra tecnologia:

o amazenamento do som, a gravação que torna possível se armazenar uma

interpretação.

De fato, a intepretação já podia ser fixada através de instrumentos e

artefatos automáticos como carrilhões, caixinhas de música, realejos, órgãos,

relógios, pianolas, etc. Falamos em interpretação fixada nestes instrumentos

pois, para o seu funcionamento, uma interpretação foi elaborada por alguém

e armazenada de alguma forma, sem que houvesse necessariamente a

performance prévia desta interpretação. A cada instante em que o artefato

toca uma música, ele está reproduzindo a mesma interpretação, com as

mesmas notas, na mesma afinação, com as mesmas relações temporais

previamente estabelecidas. Podem haver pequenas alterações no diapasão e

no andamento, pois estes artefatos sofrem a ação do tempo, mas são

alterações progressivas, ou seja, o instrumento vai perdendo sua eficiência

mecânica, sem modificar as relações sonoras definidas. Em alguns

instrumentos mais complexos, como a pianola, pode-se obter um resultado

musical mais expressivo, devido à sua maior capacidade de controle e

mudança dos parâmetros musicais, inclusive da dinâmica. No entanto, em

artefatos com mecanismos mais simples, o resultado musical parecerá mais

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  56

automatizado (Freire, 2004, p. 14). Cada um destes instrumentos tem seu

encanto e é capaz de cumprir relativamente bem o papel de reproduzir uma

música.

Em 1877, Thomas Edison (1847-1931) inventa o fonógrafo, que torna

possível capturar, mais do que a interpretação, o som no momento da

performance. Se a escrita foi uma revolução na história da música, a

gravação será outra, com impacto direto em todas as esferas da obra.

3.1 A gravação

"Escritor de sons": poderia ser o outro nome do fonógrafo, palavra

derivada do grego, composta por phoné (voz, sons) e graphé (escrita). O

invento de Edison consistia em um cilindro com sulcos, coberto por uma folha

de estanho. À medida que vibrações do ar eram convertidas em impulsos

mecânicos pelo sistema do aparelho, uma ponta aguda se movimentava em

sua extremidade, desenhando um sulco na folha de estanho. Quando a

gravação estava completa, a ponta era substituída por uma agulha que lia os

sulcos, produzindo o som. Outros "escritores e leitores de sons" foram

inventados logo em seguida, como os desenvolvidos por Alexander Graham

Bell (1847-1922) e o "grafofone", ou gramofone, de Emile Berliner (1851-

1929), que estabeleceu a técnica de gravação e reprodução do som que

imperou até os anos de 1950 (Mumma, 2010).

Inicialmente, o fonógrafo era visto como um armazenador de

informação, assim como a escrita ou a fotografia. A sugestão do fabricante

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  57

era utilizá-lo como produtor de cartas faladas, na gravação de conversas

telefônicas, na criação de brinquedos falantes, no registro da fala de pessoas

importantes ou mesmo da família, em anúncios comerciais, etc. Apesar da

simplicidade de uso dos aparelhos, sua qualidade sonora era muito ruim, o

que o afastou da música num primeiro momento. Somente após campanhas

publicitárias agressivas é que passou-se a utilizar o fonógrafo como uma

curiosidade que tocava música em hotéis e outros lugares públicos (Iazzetta,

1996, p. 48).

Com uma pequena melhora na qualidade de reprodução do som,

principalmente com o avanço do gramofone, que apenas reproduzia o som, a

música gravada começou a substituir a apresentação ao vivo. É claro que

nunca um aparelho destes poderia chegar próximo de uma qualidade sonora

comparável à do instrumento tocado ao vivo. No entanto, a música do século

XIX dividiu a atividade de interpretação e performance da música. As

composições daquela época atingiram uma complexidade muito alta, o que

exigia um intérprete com grande capacidade de compreensão da partitura e

de controle do instrumento musical.

Isso leva a uma clara distinção entre a música apresentada nas salas

de concerto e a de uso doméstico, a música amadora. Os amadores,

amantes da música, não tinham a condição de competir com os profissionais,

o que leva este termo a ganhar, com o passar do tempo, um ar pejorativo,

como sinônimo de incapacidade, de falta de talento para se executar a boa

música. Neste cenário, o fonógrafo surge como um substituto do músico

profissional nas casas e reuniões familiares. Aos poucos, as pessoas foram

se acostumando a ouvir seus sons distorcidos e ruidosos, até que esta

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  58

prática tornou-se um padrão de escuta. Se Adorno afirma que a música

ocidental perdeu sua mímese na Idade Média devido à partitura, com os

artefatos de reprodução do som "o público em geral passa a se conformar

com essa nova espécie de fazer musical descorporificado, já que, ao ganhar

a portabilidade da gravação, a música perde o significado corpóreo que

estava associado com a performance ao vivo" (ibidem).

As técnicas de gravação e reprodução do som e o fazer musical

descorporificado provocam o surgimento de uma nova modalidade de

reprodução, chamada de transmissão aural. Nesta nova modalidade, os

ouvintes passam a ter contado direto com gravações produzidas de uma

forma diferente da performance ao vivo, devido aos cortes e edições no

processo de montagem, o que cria uma qualidade sonora específica gerada

no estúdio de som (Freire, 2004, 17).

3.2 A performance construída

Se o fonógrafo e seus sucessores tornaram possível "levar para casa"

uma interpretação profissional, com a substituição da gravação mecânica

pela elétrica começa a surgir, ainda nos anos 1920, uma nova tecnologia que

marcaria a entrada dos meios de gravação e reprodução nos palcos de

concerto: a fita magnética.

O processo de gravação em fitas magnéticas envolve a conversão dos

sinais sonoros captados pelos microfones em impulsos elétricos que são

armazenados analogicamente como fluxos magnéticos ao longo da fita

(Mumma, 2010). A patente deste processo já havia sido requerida em 1898,

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  59

porém, por motivos econômicos e políticos, somente na segunda década do

século XX as pesquisas em torno desta tecnologia avançam. Elas tomam um

grande impulso nos anos 1930 nos Estados Unidos, que desenvolviam

técnicas próprias de gravação em fita magnética em firmas como a Bell

Laboratories e a Brush Soundmirror, com finalidades militares. Durante a II

Grande Guerra, em 1944, os americanos tomam a Rádio Luxembugo,

ocupada pelos alemães, e encontram uma versão aprimorada do

magnetofone AEG, de tecnologia germânica. Este aparelho inspiraria a

criação do primeiro modelo de gravação por fita magnética de alta fidelidade

para uso em estúdios, produzido pela Ampex Corporation, em 1947 (ibidem).

A disponibilidade de uma tecnologia de gravação e reprodução em fita

magnética de alta fidelidade tornou possível a música eletroacústica. De seu

surgimento na década de 1950 até hoje, temos várias definições para o

termo, que foi se transformando à medida que tecnologias de manipulação do

som surgiram. Podemos simplesmente considerar a eletroacústica como "a

tecnologia que converte a energia acústica em energia elétrica e vice-versa

para o uso artístico" (WHITTALL, 2010), mas neste trabalho vamos preferir

considerar a eletroacústica como "a música que envolve a combinação de

sons vocais ou instrumentais com a manipulação eletrônica destes sons, ou

com sons pré-gravados em uma fita magnética"(ibidem).

Nos anos 1950, no entanto, havia uma clara divisão entre as práticas

de composição que utilizavam a fita magnética como suporte. Uma primeira

forma estava ligada a um rigoroso controle das vibrações eletro-magnéticas

(Freire, 2004, 22); era a chamada música eletrônica, composta pela criação,

manipulação e edição de sons em laboratório, sons artificiais. A segunda

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  60

forma era a música concreta, também conhecida como eletroacústica em sua

primeira definição, que manipulava e editava sons acústicos, captados por

microfones e posteriormente difundidos através das caixas de som. Com a

evolução dos meios de manipulação, armazenamento e difusão do som,

estas duas vertentes se fundiram em um só conceito.

Este novo processo composicional, em que a música é montada numa

fita magnética e posteriormente apresentada para o público, através de um

equipamento de amplificação sonora, modifica a relação

compositor/partitura/intérprete, que é substituída pela relação compositor/fita.

A figura do intérprete é trocada pela fita que, mesmo com todo o

equipamento de difusão do som, não podemos considerar que realiza algum

tipo de intepretação, não do ponto de vista musical. Se considerarmos em

sentido amplo, os toca-fitas interpretam as informações contidas na fita

magnética e as transformam em sinal acústico; porém, prefirimos considerar

este processo como mera transformação do sinal. Desta forma, a música

eletroacústica, na sua forma mais primitiva, elimina o intérprete e atribui uma

nova função para o compositor, que passa a ser responsável não só pela

construção do material sonoro enquanto estrutura formal, mas também como

um objeto físico que contém latente a performance da obra.

A dispensa do intérprete significa também a ausência da partitura, o

que poderia representar a solução para compositores como Stravinsky e

Schoenberg. O último dizia:"minha música não é difícil, ela é apenas mal

tocada" (COELHO, 2009). A confecção da fita significa que o compositor

passa a construir uma interpretação, na medida em que fica responsável por

definir como serão realizados todos os aspectos físicos do som, como

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  61

andamentos, dinâmicas e timbres . "O criador termina sua obra e satisfaz

plenamente o desejo de coerência, de unidade, estabelecendo um laço entre

a forma da obra e o material utilizado, entre macro-estrutura e micro-

estrutura" (SAMUEL apud MOTTA, 1997, p. 6).

Outra vantagem em defesa deste processo, assim como ocorreu com

a partitura, foi a difusão da música sem a presença do compositor ou de

qualquer pessoa ligada à confecção da obra. Assim como Beethoven

enviava seus trabalhos para lugares e pessoas desconhecidas, a música

eletroacústica também pode ser enviada, com a vantagem de que não

haverá uma mudança na performance, o que poderia modificar o sentido da

obra - qualidade considerada fundamental por alguns compositores em

momentos de grande instabilidade estética, como o século XX.

A música gravada em uma fita e apresentada para uma platéia é uma

obra totalmente fixada. Alguns compositores só consideram válida a

apresentação deste tipo de música num ambiente de concerto, com todos os

seus rituais envolvidos, o que é um pouco estravagante, "uma obra

totalmente pré-fixada destinada a concretizar-se unicamente ao vivo"

(FREIRE, 2004, 30). Alguns autores defendem que, mesmo nesta situação,

há a figura do intérprete, que tem a incubência de avaliar e tomar as decisões

que influenciem na melhor projeção da obra, tais como posição e tipo das

caixas de som, volume, equalização do som de acordo com o ambiente

acústico, entre outras. (Oliveira, 2009, p. 49).

Se compararmos estas funções, deste intérprete-eletroacústico com o

intérprete de Mozart, por exemplo, poderemos dizer que também em Mozart

é necessária uma adequação acústica do instrumentista à sala; o equilíbrio

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  62

da dinâmica ou o andamento depende do nível de ressonância do ambiente,

equilíbrio que em ambos os casos será conquistado por meio do aspecto

idiomático. Mas a ausência da partitura como um objeto simbólico, e suas

possibilidades interpretativas, nos levanta uma dúvida sobre a real função

deste personagem que opera os equipamentos de difusão sonora no

momento da apresentação eletroacústica.

A eletroacústica expandiu os limites sonoros da música acústica. Se

observarmos as transformações que a música sofreu do Canto Gregoriano

até hoje, constataremos um aumento do contraste de dinâmica, andamento,

densidade, registro, timbre; uma maior subdivisão do ritmo, incluindo valores

assimétricos; a harmonia incorpora todas as notas, o que resulta na música

atonal. Podemos considerar a música eletroacústica como o ponto final desta

evolução das propriedades físicas do som, pois seus recursos técnicos

permitem explorar todo o universo sonoro de forma contínua, devido ao

controle de dinâmicas - das mais pianíssimas até sons que podem ser

ouvidos a distâncias quilométricas; à sua capacitade de gravar e manipular o

timbre, que permite usar qualquer som disponível na natureza, ou mesmo

fabricar um inédito. A música eletroacústica é capaz de executar com

perfeição qualquer subdivisão do ritmo e mesmo tocar em qualquer

velocidade.

Apesar de toda a riqueza de novos sons e possibilidades de seu

controle, Karlheinz Stockhausen (1928-2007), um dos pioneiros da música

eletroacústica, observa que o controle e a fixação da interpretação e

performance resultavam em algo pouco expressivo; a "precisão" da máquina

diminuía a expressividade da música. Segundo Motta, Stockhausen até

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  63

conseguiu resolver alguns problemas de expressividade do timbre com novas

formas de síntese sonora. Porém, o compositor se entregava à

impossibilidade de se determinar, precisa e rigorosamente, a totalidade dos

aspectos constituintes do fato sonoro. Stockhausen diz que

"na música mais severa, aparentemente 'pensada até o fim' e 'precisa'

em princípio nos seus mínimos pormenores, sobrevêm coisas sobre as

quais não temos qualquer poder, que escapam ao pensamento do

ordenador, como a inspiração súbita, como o desejo, em geral, de

fazer música" (STOCKHAUSEN apud MOTTA, 1997, p. 7).

Hoje a música eletroacústica já é mais compeendida e aceita.

Podemos supor que o tempo decorrido de seu surgimento até os dias de

hoje, proporcionaram uma aprendizagem de escuta desta música. A grande

dificuldade de aceitação desta música na década de 50 certamente estava

ligada à novidade estética, novidade que não se apresenta mais.

Logo após seus primeiros passos, a eletroacústica começa a

perseguir a expressividade. Apesar da expansão do universo sonoro que ela

provocou - o que significa até hoje uma série de mudanças nos paradigmas

da música- a ausência do intérprete, e do aspecto idiomático, em seu sentido

estrito, foi notada. Desde então, seus criadores propõem alternativas para

tornar a música da interpretação fixada em algo tão poderoso quanto a

música em sua acepção tradicional. O primeiro passo dado nesta direção foi

a proposta de uma nova formação camerística, a do intérprete que toca junto

com a fita magnética. Nas palavras do compositor argentino Mário

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  64

Davidovsky (1934-), "a introdução do instrumento eletrônico de mãos dadas

com o intérprete ao vivo iria diminuir o impacto de caixas de som gritando

para você. A mistura de sons eletrônicos com instrumentos, que são mais

familiares, torna os eletrônicos mais aceitáveis por parte do ouvinte

(BASSINGTHWAIGHTE, 2002).

3.3 Flauta e fita magnética

A música para instrumento e fita - neste trabalho vamos apresentar

sempre casos que envolvam a flauta - apresenta aos intérpretes, e também

aos compositores, algumas necessidades. A primeira diz respeito ao

conhecimento tecnológico necessário para a interpretação e a performance

deste tipo de repertório. Aparentemente não é preciso muito neste caso,

apenas apertar o play de um reprodutor de som qualquer. No entanto, cuidar

para que o som tenha a melhor qualidade possível também é de

responsabilidade do intérprete. Assim como há a preocupação no estudo do

instrumento, com o objetivo de se obter seu melhor rendimento, na música

para flauta e sons pré-gravados é preciso um conhecimento que permita a

escolha de caixas de som, seu posicionamento, a equalização do som e seu

equilíbrio com o instrumento acústico. Estas decisões nem sempre são

facultadas a quem toca, pois em muitas salas de concerto não é possível se

fazer todos os ajustes, mas alguns deles sempre serão possíveis.

Um segundo aspecto diz respeito à interação entre o intérprete e a fita:

como podemos sincronizar temporalmente as duas vozes e como ocorre a

interação tímbrica entre elas. No caso de uma fita magnética, não temos

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muito controle sobre seu andamento; uma vez fixado o material, ele sempre

será tocado na mesma velocidade. Pode-se no máximo parar e recomeçar a

fita, apertando o pause/play. Justamente este recurso, de parar e continuar,

foi o utilizado por Davidovsky em Synchronisms nº1 (1963) (Gravação e

partitura anexos), uma das primeiras obras para flauta e fita magnética

(ibidem), em que cinco pequenas partes do tape devem ser disparadas em

momentos assinalados na partitura. Este artifício garante a sincronia da

macro-forma entre o intérprete e a fita, sendo que, na micro-forma, o

compositor não exige uma sincronização rigorosa. Como não há

especificação quanto à sincronia da micro-forma, cabe ao intérprete o estudo

da composição sonora da fita para estabelecer ou não pontos de referência.

Esta liberdade interpretativa é uma forma de combater a performance rígida

da parte eletroacústica e, consequentemente, garantir uma maior

expressividade à obra e a maior participação de seu elemento idiomático.

É preciso também pensar a interação entre os sons eletrônicos e os

acústicos do instrumento, para que o resultado não seja apenas uma

superposição de vozes. Além de todos os procedimentos da composição

tradicional, tais como relações temáticas, harmonias e rítmicas, a interação

tímbrica é um elemento-chave nesta relação. Como foi dito anteriormente, a

eletroacústica permitiu à música explorar toda a sua potencialidade sonora,

dos limites auditivos mais graves aos mais agudos, em qualquer velocidade,

ritmo ou timbre sendo que qualquer parâmetro é passível de modulação. Esta

nova cultura sonora tem uma influência direta nos instrumentos acústicos,

que passam a pesquisar e utilizar mais frequentemente o que hoje se

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  66

denominam técnicas estendidas, formas de tocar o instrumento que vão além

das intenções originais do construtor (Davies, 2010).

Em Synchronisms nº1 já podemos observar um uso, ainda que

discreto, em que o compositor pede para que as chaves da flauta sejam

percutidas, simultaneamente ou não, à emissão do som. Este efeito

percussivo aproxima a flauta de alguns sons produzidos sinteticamente na

fita de Davidovsky. Ao falarmos de Synchronisms nº1, estamos falando de

uma obra com pouco menos de quatro minutos, na qual a atuação simultânea

da fita com o instrumento não ocorre em toda a obra. Em sua última parte,

Synchronisms permite ao flautista tocar solo, o que remete o músico aos

cânones da interpretação tradicional. Nos segundos finais, a eletrônica se

junta para finalizar a obra.

Já em A Escada Estreita (1999), do compositor português João Pedro

Oliveira (1959-) (gravação e partitura anexos), temos outra situação. Trata-se

de uma peça de 8 minutos e 30 segundos, em que a fita toca

ininterruptamente e exige uma grande sincronização com o intérprete. Sob o

ponto de vista do conhecimento tecnológico, necessário para a performance,

não há diferença da obra de Oliveira com relação à Synchronisms nº1. De

forma geral, a formação instrumento/tape é extremamente simples sob este

aspecto, o que a torna mais acessível ao intérprete, que normalmente não é

preparado tecnologicamente para a abordagem do repertório da música

eletroacústica.

No entanto, existem outras questões numa obra desta natureza. A

primeira diz respeito justamente à sincronização do tempo entre as duas

vozes. Na obra A Escada Estreita, a escrita é tradicional e a parte da

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  67

eletroacústica é quase toda escrita no pentagrama superior, de forma a

possibilitar ao intérprete acompanhar o que está acontecendo e manter a

sincronia. Os sons eletroacústicos, em sua maior parte, seguem as

delimitações rítmicas dos compassos, com suas relações proporcionais

métricas, ou seja, estão construídos ritmicamente a partir de semínimas,

colcheias, etc, e não valores de duração absolutos, o que facilita sua

compreensão e controle no fluxo do tempo. Além disso, o compositor fornece

duas partes gravadas: uma apenas com os sons que ele preparou, editou e

gravou; e outra que acrescenta um click, uma batida de metrônomo sobre os

sons gravados. Estes artifícios são bastante eficazes para o controle da

sincronização por parte do intérprete, sendo que muitos costumam

apresentar-se ao vivo ouvindo o click em um fone de ouvido individual.

Todo este aparato, porém, é contrário à liberdade do intérprete, tolhe

muito o aspecto idiomático e a mimese da música. Seria possível imaginar

um grande concertista tocando com um metrônomo um concerto de Mozart,

por exemplo? Na música contemporânea podem até existir alguns casos em

que tocar ouvindo o metrônomo seja necessário, mas não é o caso da obra

de Oliveira e nem da maioria deste tipo de repertório. Mas mesmo que o

intérprete escolha tocar sem o click, a questão da sua liberdade ainda

persiste.

Uma decisão interpretativa que pode ser tomada é a utilização de

pequenos rubatos, pequenas flutuações rítmicas na voz do intérprete, que o

permitam criar uma flexibilidade melódica sem perder o controle do tempo e

da posição dos sons pré-gravados. Pode-se começar ligeiramente antes do

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  68

pulso uma figura, acelerá-la até alcançar o tempo novamente, como no

exemplo abaixo:

fig. 1 – Rubato. João Pedro Oliveira, A Escada Estreita, comp. 9

Pode-se também fazer um rubato mais livre, como neste caso, em que

a flauta toca sem a eletrônica, tanto no início como no final do gesto:

fig. 2 - Rubato. João Pedro Oliveira, A Escada Estreita, comp. 24

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  69

Ou mesmo realizar um pequeno ralentando em situações como esta:

fig. 3 - Ralentando. João Pedro Oliveira, A Escada Estreita, comp. 96

Estas pequenas alterações, combinadas com as possibilidades da

dinâmica, que se mantêm abertas ao intérprete, como na música tradicional,

diminuem a impressão de se estar tocando com um metrônomo incrustado

nos sons pré-gravados. Também os sons eletroacústicos embaçam o

contorno do pulso, pois muitos deles não têm um ataque muito definido, e

mesmo seu corpo é bastante confuso ritmicamente.

Podemos questionar o motivo da escolha deste tipo de formação e

tecnologia que dificulta a expressividade do intérprete, pois não tem

nenhuma flexibilidade, devido à rigidez da fita e sua interpretação fixada pelo

compositor. Porém, alguns motivos são indicativos desta escolha:

primeiramente, a disponibilidade tecnológica: só é preciso um equipamento

capaz de reproduzir um CD de áudio, numa intensidade que rivalize com o

instrumento acústico em questão. Este CD também é mais fácil de distribuir e

não apresenta muita margem de erro no momento de sua execução. De

forma geral, os intérpretes atuais não têm uma formação que os permita

manipular equipamentos e programas de computador mais complexos, como

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  70

os necessários para o uso em composições nas quais o computador reage

aos gestos musicais do intérprete. Para o compositor é mais fácil elaborar os

sons e fixá-los na fita do que inventar todo um sistema que os crie e

transforme em tempo real, no momento da performance.

Por fim, a defesa que o compositor da Escada Estreita faz da

eletroacústica pré-gravada é composicional. Segundo ele, com este

procedimento pode-se facilmente realizar na fita idéias musicais que serão

completadas pelo intérprete e vice-versa; pode-se criar um diálogo em que os

dois falam e respondem. Isso quer dizer que um motivo qualquer, que tenha

seu início partindo dos sons pré-gravados, pode ser completado ou

transformado pelo instrumentista, o que não é muito comum em outros

sistemas tecnológicos. Nos sistemas em que o computador reage ao

intérprete, sempre é preciso que este produza algo para que aconteça a

reação, mesmo que ela ocorra num momento muito à frente na forma. Não é

a prática comum, neste tipo de repertório, inverter-se a ordem dos fatores;

em certos momentos, isso é até mesmo impossível.

O início da Escada Estreita já demonstra esta possibilidade. Seus três

primeiros compassos são uma miniatura do início de um concerto, onde a

orquestra de sons eletroacústicos se apresenta e, no final, sobra a linha do

intérprete solista que vai se apresentar.

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  71

fig. 4 - Os três primeiros compassos. João Pedro Oliveira, A Escada Estreita,

comp. 1-3

O gesto musical iniciado pela eletroacústica e concluído pelo intérprete

é uma grande solução para a integração entre as duas vozes. Pode-se

utilizar qualquer procedimento composicional da tradição sem o

comprometimento da continuidade, nem qualquer interrupção da linha do

gesto. Esta solução permite ao compositor criar texturas contrapontísticas

imitativas sem qualquer problema de sincronização e com total integração

entre as vozes, uma característica que delimita esteticamente este tipo de

obra.

No entanto, a prática de se agrupar o intérprete com sons pré-

gravados tem seus aspectos limitadores da perfomance. Se Eco diz que "não

é possível 'manter' a "essência" de uma obra, mas sim "revelá-la" a partir das

diversas leituras que cada executante imprime a sua interpretação" (ECO

apud APRO, 2006, p. 29), a capacidade de ser revelada a cada leitura ainda

está presente graças à presença do intérprete de seus ritos tradicionais de

decodificação da partitura. Porém, o elemento idiomático tem a sua ação

diminuída em razão da fixação da interpretação, criada pelo compositor.

A história também tem uma ação diferente sobre estas obras que

envelhecem de um jeito próprio. Por causa da alta velocidade de

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  72

transformação dos equipamentos e softwares utilizados no processamento do

som, A Escada Estreita apresenta uma riqueza tímbrica e gestual muito maior

do que Synchronisms nº1. Apesar de atualmente se utilizarem aparelhos

novos para a difusão do som, o que foi gravado não se modifica, não é o

mesmo que tocar Bach em uma flauta moderna. Estas obras trazem a

história não apenas nas idéias, mas em seu objeto concreto; elas não têm

mais a partitura que amarelava e ficava carcomida com o passar dos anos.

Anteriormente, a obra musical era composta por relações entre o

compositor e o intérprete mediadas pela partitura- dimensão composta pelos

signos musicais dispostos no papel ao gosto do compositor e interpretados

ao entendimento do intérprete. A música para instrumento e sons pré-

gravados acrescenta um novo elemento, que por um lado restringe o aspecto

idiomático, mas por outro aproxima mais o compositor do intérprete, que não

somente lê, como também ouve suas idéias.

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4. A INTERPRETAÇÃO FLEXIBILIZADA

O território da música eletroacústica mista, obra que envolve

conjuntamente os sons eletroacústicos e os produzidos por um instrumento

acústico, pode ser separado em dois. De um lado, temos obras em que os

sons eletroacústicos são fixados pelo compositor, cabendo ao intérprete a

tarefa de tocar seguindo a rigidez da parte dos sons pré-gravados, tema

apresentado no capítulo anterior. A outra parte do território é composta pelas

obras em que o intérprete manipula, ao vivo, os meios eletroacústicos.

Tradicionalmente, a música de concerto eletroacústica é dividida em

três categorias: as obras sonoramente pré-fixadas, em que todos os sons e a

forma estão registrados e fixados num suporte como a fita magnética

(chamada de acusmática); obras que mesclam o intérprete tradicional com

meios eletroacústicos (obras mistas); e as que utilizam instrumentos não-

tradicionais, que podem ser desde microfones, filtros de áudio ou sistemas

digitais interativos (live-electronics ou eletrônica ao vivo) (Freire, 2004, p. 96).

Esta divisão é baseada nos elementos físicos da música: se tem sons pré-

gravados, se há a presença do intérprete ao vivo ou se há a presença de

aparelhos modificadores do som ao vivo.

Para a música praticada hoje esta classificação é, na maioria das

vezes, difícil de ser aplicada. Em uma obra mista, o intérprete pode apenas

tocar junto com sons pré-gravados; ter seu som amplificado por um

microfone, às vezes apenas com o objetivo de amalgamar melhor as duas

vozes; ou pode ter seus sons captados e processados em tempo real pelo

computador. Podemos ainda apontar a possibilidade de uma mesma obra

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  74

apresentar partes pré-gravadas e processadas ao vivo, ao mesmo tempo.

Isso nos leva a concluir que é impossível a divisão entre obra mista e live-

eletronics, conforme esta classificação tradicional, no momento atual.

Freire também considera esta classificação ineficiente e propõe uma

metodologia que aborda os elementos presentes num concerto

eletroacústico: alto-falantes, obras ou partes pré-gravadas, a performance

instrumental tradicional, os novos instrumentos controladores (Freire, 2004, p.

96). Ele propõe ainda uma subdivisão deste último elemento em live-

electronics (uso de microfones, filtros, reverbs, delays) e sistemas interativos,

que utilizam a informática como suporte (ibidem, p. 153). Esta proposta é

interessante, pois permite uma composição entre os diversos elementos, de

acordo com a música apresentada. No entanto, não se utilizam mais

aparelhos de filtragem ou produção de reverberação no palco. Toda esta

parafernália foi substituída pelo computador, assim como toda obra

eletroacústica utiliza de alguma forma um alto-falante.

A velocidade de transformação dos equipamentos utilizados, tanto na

composição como na performance da música eletroacústica, rompe com

qualquer possibilidade de classificação, o que nos remete ao termo música

para flauta e meios eletroacústicos, sejam eles quais forem. No entanto, do

ponto de vista do intérprete, podemos apontar a forma como ele se relaciona

com estes meios, no momento da preparação da interpretação e da

performance.

Page 86: Tese Felipe de Oliveira Amorim.pdf

  75

4.1 Interface

No universo da música feita com computadores, um termo é comum e

importante no estabelecimento da relação da máquina com o homem: a

interface.

Interface é um dispositivo, material e/ou lógico, que permite a troca de

informações entre dois sistemas; ela "conecta dois agentes ou objetos,

permitindo que comuniquem entre si" (IAZZETA, p. 105). A interface tem a

função de codificar e traduzir a informação a ser trocada entre dois agentes,

ou seja, possibilita que a informação atinja seu receptor e possa ser

compreendida por ele.

Embora o termo tenha sido popularizado com a ascensão do

computador, em virtude das suas interfaces de áudio, vídeo ou texto (placas

de som, monitores de vídeo e teclado), sua importância é notada em

qualquer sistema de comunicação. Na música de concerto, talvez a mais

importante e eficaz seja a partitura, uma interface de duplo sentido. De um

lado permite que o compositor registre suas idéias em um suporte, do outro

torna possível alguém resgatar estas idéias sem a presença física do

compositor. Como discutido anteriormente, sua eficácia está justamente na

sua incompletude, na necessidade do intérprete lhe conferir os elementos

ausentes do sistema. Outra interface de destaque na música de concerto é o

instrumento, que traduz as ações físicas e mentais do intérprete em som, o

que torna possível o acontecimento musical.

Dos anos 50 para cá, houve um grande desenvolvimento das

tecnologias eletrônicas, em especial as digitais, o que transformou o cenário

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  76

da música eletroacústica mista. Ao longo de sua curta história, as novas

tecnologias disponibilizadas têm sido resultado da busca de músicos e

engenheiros por soluções que ofereçam ao intérprete pleno domínio dos

meios eletroacústicos e permitam que ele realmente possa ter uma atuação

interpretativa e performática completa, como na música puramente acústica.

Em sua primeira configuração, a obra mista somente exigia o

acionamento de um botão, apertar o play de um reprodutor de som. A

interface do intérprete com a máquina se resumia a este comando, em alguns

casos sendo necessário o uso da tecla pause, como em Synchronisms nº1.

Essas obras para flauta e sons pré-gravados também exigiam a presença de

um técnico responsável pelos acionamentos, pois o intérprete estava

ocupado com o instrumento.

Hoje são inúmeras as possibilidades de interfaces entre o músico e a

máquina. Dos mais simples pedais até a capacidade do computador decifrar

comandos vindos diretamente do cérebro, podemos nos fazer entender pelas

máquinas praticamente através de qualquer um de nossos sentidos, e algo

mais. No entanto, muitas destas interfaces são caras e dependem de

conhecimentos e sistemas tecnológicos muito sofisticados, que não estão

disponíveis para o concertista comum. Mesmo assim, as que são de fácil

acesso oferecem um leque variado de formas de comunicação com a

máquina.

Considerando que o flautista tem suas mãos comprometidas com o

controle e a sustentação do instrumento, algumas interfaces que dependem

do acionamento manual de botões não são práticas; elas necessitam de um

tempo relativamente grande entre tirar a flauta da posição, acionar o

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  77

comando e retornar à posição inicial. É possível que o compositor preveja

este tempo e coloque na parte do flautista um silêncio que permita executar

esta operação. No entanto, a estética da música poderia ficar comprometida

em função da necessidade de um grande número de silêncios operacionais.

Outras interfaces mais sofisticadas como flautas MIDI controladoras,

aparelhos eletrônicos que têm a capacidade de controlar um banco de som e

são tocados de forma semelhante a uma flauta doce ou saxofone, não se

encaixam na proposta do trabalho, que é sempre ter a figura do flautista e

sua flauta de concerto na formação eletroacústica.

Desta forma, são três as interfaces mais práticas e acessíveis ao

flautista: os pedais controladores, o hiper-instrumento e o computador com o

processo de score-following.

4.2 Pedal

O uso de pedais é uma simples troca do acionamento de controles

pelos pés em substituição às mãos, que estão ocupadas com o instrumento.

Em obras com sons pré-gravados, seu uso permite ao intérprete acionar e

parar a reprodução da parte eletroacústica com extrema precisão, no

momento desejado. Esta foi a solução utilizada na obra A Atra Praia de

Saturno (2002), do compositor mineiro Rogério Vasconcelos (gravação e

partitura anexos).

A duração aproximada da obra é de dez minutos e, no processo de

composição, a intenção era de que se produzisse apenas uma faixa com todo

o material eletroacústico gravado. Depois de discussões com o intérprete,

Page 89: Tese Felipe de Oliveira Amorim.pdf

  78

que trabalhou junto ao compositor no processo de criação, decidiu-se dividir a

faixa eletroacústica em dez fragmentos, acionados pelo intérprete através de

um pedal. Sem esta estratégia seria praticamente impossível tocar a peça,

por causa de trechos relativamente longos em que o flautista toca sem a

companhia da eletroacústica. A parte "C", por exemplo, tem um trecho de

seis compassos em que a flauta toca solo, sem a referência externa dos sons

pré-gravados. Caso não se utilizasse o pedal, a única solução para este caso

seria decorar o tempo disponível para se tocar este trecho.

Além de facilitar a sincronia entre partes maiores sem sacrificar a voz

da flauta - que não precisa ser tocada mais rápida ou lentamente para

começar um novo trecho junto com a eletroacústica - a fragmentação em

faixas permite também uma sincronia dos pequenos gestos, momentos em

que a partitura exige uma grande precisão de entrada, como nos fragmentos

3 e 7.

fig. 5 - fragmento 3. Rogério Vasconcelos, A Atra Praia de Saturno, letra C, p. 2.

Antes da entrada do fragmento 3, podemos observar grandes

alterações no andamento com a presença de um poco accelerando, uma

respiração e um calmo subito, seguido de uma fermata. As mudanças no

tempo e suas suspensões, respiração e fermata, conferem à Atra Praia uma

expressividade típica da música instrumental solo, e este efeito só é possível

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  79

graças ao pedal. Ele permite ao intérprete tomar o tempo desejado para se

expressar, realizar todas as indicações da forma sem estar preso ao

"metrônomo" dos sons pré-gravados, e iniciar o próximo trecho da música

sincronicamente com a eletroacústica.

fig. 6 - fragmento 7. Rogério Vasconcelos, A Atra Praia de Saturno, letra D, p.

4.

No caso do fragmento 7, observamos um procedimento típico da

composição para instrumento e sons pré-gravados. O compositor coloca uma

respiração com fermata antes do início de uma parte eletroacústica, de forma

a permitir que o intérprete espere até o momento certo, garantindo a

sincronia na entrada do próximo trecho. No entanto, há uma pequena parte

em que o flautista toca solo após a fermata. Além disso, a entrada do

fragmento 7 ocorre na metade do tempo, o que é um dificultador. Outra

questão é que tanto a eletroacústica como a flauta têm um tipo de ataque

muito marcado, o que torna mais necessária uma sincronia perfeita, pois

neste caso é mais fácil se perceber a defasagem entre as vozes.

O uso do pedal nesta obra confere uma liberdade ao intérprete muito

maior do que se a obra apresentasse apenas uma faixa com os sons pré-

gravados. Mesmo assim, há vários outros trechos que exigem muita precisão

do tempo por parte do intérprete para garantir a sincronia.

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  80

fig. 7 - trecho da parte "B". Rogério Vasconcelos, A Atra Praia de Saturno, letra B, p. 1.

O exemplo acima inicia-se no oitavo compasso da parte "B" da Atra

Praia. Ao ouvirmos a gravação, vamos perceber que há um som bem

acentuado na eletroacústica que preenche a pausa de colcheia da quiáltera

do compasso 10. Os sons que antecedem este momento constituem uma

textura de notas longas que torna impossível ao intérprete perceber qualquer

tipo de pulso. Desta forma, resta ao intérprete apenas o ritmo de sua parte

como referência do tempo. Como ele não tem a precisão do relógio, tem que

realizar um grande esforço para conseguir sincronizar suas colcheias de

quiáltera com a da máquina. Seria até possível criar uma programação para a

utilização do pedal neste momento, mas existem várias outras situações

semelhantes na obra que tornariam seu uso pouco prático.

Na composição da obra, Vasconcelos utiliza muito uma situação em

que a flauta é imitada em seguida pela eletroacústica. Do ponto de vista da

composição é bastante interessante, pois o efeito obtido é que os sons do

instrumento estão sendo transformados em tempo real. Como não é isso que

está acontecendo realmente, cria-se um dificultador para o intérprete, que

tem que tocar e terminar sua frase precisamente antes destes gestos pré-

gravados, de forma a criar a ilusão de imitação. Em todos estes momentos,

exige-se um controle do tempo muito grande do flautista, pois não há como

se interferir na máquina através do pedal.

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  81

Em uma obra para flauta e sons pré-gravados, o uso do pedal é

bastante prático como articulador da forma, como delimitador e iniciador de

grandes partes, mas seu uso na micro-forma não se mostra muito prático.

Teoricamente, pode-se até disparar nota por nota através desta interface,

mas além de inviável em razão do número excessivo de acionamentos, isso

prejudicaria completamente a expressividade por parte do instrumentista.

Como interface, suas qualidades ainda podem ser estendidas pela

simplicidade do uso e programação, disponibilidade de compra e flexibilidade

e pelo preço baixo. Junto com o computador, um pedal pode virtualmente ser

programado para fazer qualquer coisa. Outro aspecto importante é sua forma

de funcionamento: não é preciso o desenvolvimento de uma habilidade física

específica para utilizá-lo, apesar de ser necessário alguma prática para o

intérprete conhecer bem sua sensibilidade ao toque.

4.3 Hiper-flauta

O hiper-instrumento é um instrumento acústico acrescido de sensores

que o conectam ao computador ou a qualquer outro aparelho, tornando

possível controlar os parâmetros de processamento do som digital durante a

performance ao vivo.

A idéia de colocar sensores em um instrumento surgiu nos anos 80,

com o trabalho de Tod Machover e Joseph Chung. A idéia dos dois

pesquisadores era expandir as técnicas instrumentais existentes, construindo

instrumentos capazes de oferecer uma série a mais de controles, além dos já

presentes em uma flauta; ou seja, se era possível controlar a altura das notas

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  82

ao mover as chaves, os sensores permitiram também controlar a mudança

do timbre à medida que se aproxima ou se afasta da luz, por exemplo. Desta

forma, toda uma técnica adquirida ao longo de anos de prática do

instrumento tradicional seria aproveitada, associada às novas formas de

controle passíveis de serem exploradas pelos sensores.

Machover e Chung acreditavam que a expansão técnica do

instrumento, o conhecimento adquirido do performer e a nova música iriam

redefinir a expressão musical. Sua ênfase era num instrumento que fosse de

fácil aprendizado, funcional, dentro de um conceito de simplicidade que

favorecesse o aprendizado e o interesse dos músicos profissionais

(Machover e Chung, 1989, p. 186).

A intenção dos criadores do hiper-instrumento é confirmada pelo

depoimento da flautista Cléo Palacio-Quintin. Ela diz que quando decidiu

tocar flauta com live-electronics queria preservar a intimidade da relação

entre seu corpo, seu instrumento e o som produzido. Esta preocupação de

Palacio se deve ao fato de que muitos instrumentos eletrônicos,

desenvolvidos a partir dos anos 80, não guardavam uma relação direta entre

a forma de tocar e a produção do som. Como exemplo podemos citar um

instrumento desenvolvido por Machover, a exos dexterous hand master.

Trata-se de uma luva que tem a capacidade de controlar sons, assim como

um instrumento tradicional, porém sem uma relação direta do movimento com

a produção do som; ou seja, ao mexer um dedo podemos tocar a nota “Lá”,

uma escala indiana, ou mesmo fazer uma luz acender remotamente. Através

da hiper-flauta, desenvolvida por Palacio, ela afirma: "queria manter intacta a

riqueza acústica da flauta, e meu jeito de tocar. O computador se transformou

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  83

numa extensão virtual do instrumento acústico" (PALACIO-QUINTIN, 2003, p.

206).

A hiper-flauta de Palacio, além de funcionar como uma flauta

tradicional, conta com os seguintes recursos:

- sensores magnéticos, que detectam a posição da chave do sol# e do dó#

grave,

controlados pelos dedos;

- um tradutor de ultra-som, que monitora a distância entre a flauta e o

computador;

- um sensor de movimento, ativado pelo inclinar ou rodar a flauta;

- sensores de pressão, colocados próximos aos pontos de apoio das mãos

direita e esquerda da flauta;

- sensor de luz, que reage à quantidade de luz do ambiente;

- interruptores, que enviam comandos de ligar e desligar algo.

Como observamos, a hiper-flauta é relativamente complexa de ser

montada, se comparada com o pedal, por exemplo. É um instrumento

personalizado, o que dificulta o trabalho do compositor, que tem de escrever

especificamente para aquele instrumento. Mas a proximidade entre

compositor e intérprete possibilita a criação de obras, o que nos remete à

prática interpretativa do período barroco, quando esta situação era a mais

comum.

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  84

fig. 8 – Cleo Palácio-Quintin, Academia de Música da Noruega, setembro de

2009 e uma hyperflute.

A sofisticação da hiper-flauta de Palacio torna seu acesso distante e

difícil para o intérprete comum. A solução encontrada por Matthias Ziegler,

de potencializar o som da flauta, pode ser também categorizada como uma

hiper-flauta. Por ser um especialista e entusiasta das flautas graves, Ziegler

depara-se com uma catacterística destas flautas, que é o baixo volume

sonoro. Isso poderia facilmente ser contornado com o uso de microfones,

porém sua intenção não era apenas amplificar o som tradicional das flautas,

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  85

mas amplificar também outros sons inaproveitados no repertório tradicional,

que fazem parte das técnicas estendidas do instrumento.

Desta forma, com o auxílio da construtora de flautas Eva Kingma,

Ziegler fez vários furos em locais estratégicos de seus instrumentos e soldou

pequenos tubos, que funcionam como encaixes de microfones de lapela.

Este procedimento permite que Ziegler obtenha sonoridades novas no

instrumento, além de amplificar as já utilizadas de uma forma mais eficiente.

Por isso, ele defende que não sejam utilizados metais nobres na fabricação

das flautas, para que não “doa muito em seu coração” na hora de pesquisar

novos lugares a serem perfurados no instrumento (Ziegler, 2007).

4.4 Score-following

Seguir a partitura nada mais é do que um processo no qual o

computador ouve o intérprete ao vivo e é capaz de identificar sua posição na

partitura, em tempo real. Neste caso, temos pelo menos três interfaces

conectadas: o microfone, que capta o som; o computador, que transforma o

sinal do microfone em números; e o programa, responsável pela tarefa de

comparar as informações que chegam do microfone com a partitura.

De fato, a interface neste caso é o computador, mas sua complexidade

nos permite colocá-lo tanto nesta categoria como em outras, dependendo do

uso que lhe é conferido. Se consideramos a partitura uma interface entre o

compositor e o intérprete, o software é uma interface entre o intérprete e o

computador e, no caso do score-following, uma interface entre o intérprete e

a partitura arquivada na máquina.

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  86

Existem infinitas possibilidades de se programar um processo de

score- following, mas basicamente o que ocorre é o seguinte: o microfone

envia um sinal de áudio que é digitalizado pelo computador, ou seja,

transformado em números. No programa existem ferramentas capazes de

identificar qual nota está sendo ouvida; portanto, elas recebem o áudio,

identificam qual nota está sendo tocada e soltam a informação. Por exemplo,

“a flauta tocou a nota dó3”. Esta nota é comparada com uma partitura

numérica arquivada na memória do programa que, por sua vez, executa a

ação prevista para o momento em que a flauta tocar a nota dó3. Esta ação

pode ser tocar um trecho musical pré-gravado, acionar algum dispositivo de

filtragem ou mesmo de síntese do som que está entrando no computador.

fig. 9 - score following. Kaija Saariaho, NoaNoa, comp. 3.

No exemplo fica mais fácil visualizar o funcionamento. Como

observamos na partitura, o intérprete tem que tocar a nota sol bemol. No

momento em que isso ocorre, o computador registra esta nota e realiza a

ação de número 2, ligar a reverberação. Desta forma, o que o intérprete

precisa saber, a princípio, é que cada número dentro de um círculo, abaixo

de sua linha na partitura, corresponde a um comando que será dado pelo

computador quando a nota correspondente estiver sendo tocada, no caso o

sol bemol.

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  87

É claro que em obras grandes existem várias notas que se repetem.

Nestes casos, o computador vai lendo todas, à medida que são tocadas, e

contando até a marca correta. Entretanto, apenas definir as ações do

computador por meio da nota aumenta a possibilidade de erro: o intérprete

pode tocar uma nota a mais ou mesmo errar alguma e atrapalhar a

contagem. Por isso, outros parâmetros também são considerados.

Um deles é uma margem de tempo aproximada. Na programação, se

imagina mais ou menos quanto tempo se leva para chegar a um evento

determinado e se define uma margem para mais e para menos, de forma que

o evento ocorra dentro do limite determinado. Esta janela de tempo deve ser

bem ampla e serve apenas para determinar um campo amplo de ação.

Um segundo parâmetro é o ritmo. Pode-se determinar a duração

aproximada da nota para o computador reconhecer se é ela mesma que deve

ser tocada ou não. Pode-se simplesmente criar na programação duas

categorias, um valor curto e outro longo.

Outro parâmetro é a dinâmica. Pode-se criar uma correspondência

entre um som piano e um volume sonoro de forma que, se a nota é tocada no

volume sonoro correspondente, o computador entende a nota como correta.

Podem-se estabelecer outros parâmetros que comandem a máquina,

como o timbre, o movimento do intérprete, do instrumento, entre outros. No

entanto, a combinação da altura com a duração e a dinâmica já proporciona

uma carga de informação suficiente para que o computador possa seguir o

intérprete.

O score-following foi desenvolvido em 1984, de forma independente,

por Barry Vercoe e Roger Dannenberg, sendo que a primeira obra para flauta

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  88

que faz uso deste processo é Jupiter (1987), de Philippe Manoury (1952-).

Em NoaNoa (1992), de Kaija Saariaho (1952-), podemos observar o

funcionamento do score-following e as possibilidades de interação do

computador com o som do intérprete que este tipo de interface controladora

pode proporcionar numa música para live-electronics.

A mais comum é disparar uma faixa com sons pré-gravados. O evento

de número 16, que inicia-se no compasso 46 e termina no compasso 53, é

composto por uma voz acrescida de sons de flauta processados em

laboratório, ou seja, não são provenientes da flauta que toca ao vivo.

Diferentemente da música para instrumento e sons pré-gravados, em que o

intérprete tem que seguir o tempo da parte eletroacústica, neste caso, assim

que ele chegar ao ponto de acionamento do evento 17, o 16 será desligado

imediatamente. Este processo garante ao intérprete uma liberdade de

andamento que não ocorre no caso da música para flauta e sons pré-

gravados.

fig. 10 - sons pré-gravados. Kaija Saariaho, NoaNoa, comp. 46-47.

Uma segunda possibilidade é a de modificação do som através de

processadores de efeitos. Logo na primeira nota da peça, a compositora

determina a presença de uma reverberação "infinita", que na prática significa

uma reverberação que dura muito tempo. O que é importante para o

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  89

intérprete saber, neste caso, é que a nota disparadora do evento é o dó

porém a nota que a compositora deseja que seja reverberada é o mi. Na

partitura observamos que o dó fusa, sem indicação de dinâmica, e o mi com

um sforzatto. Como o dó aciona o efeito, portanto é também capturado, cabe

ao intérprete equilibrar a dinâmica das duas notas de forma a realçar o mi,

além de tocar o dó com uma duração curta suficiente para que fique mais

discreto e sua reverberação termine rapidamente. O resultado que se tem é a

impressão que apenas o mi foi prolongado.

fig. 11 – reverberação. Kaija Saariaho, NoaNoa, comp. 1.

Por fim, no compasso 163, há um efeito de modificação do som da

flauta através da ação de filtros e processamentos que resultam numa

espécie de acorde distorcido.

fig. 12 - som processado. Kaija Saariaho, NoaNoa, comp. 163-165.

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  90

O score-following é, sem dúvida, uma grande ferramenta para o live-

electronics. Sua capacidade de resposta à ação do intérprete e a dispensa de

outros artefatos, como o pedal, dão para o intérprete quase uma sensação de

estar tocando com um grupo de câmara, em virtude das reações imediatas

do computador.

No entanto, a diferença fundamental é que no score-following toda a

responsabilidade pelas ações interpretativas e performáticas cabe ao

intérprete, ou seja, cabe a ele não só conceber sua interpretação da partitura

tradicional, como também preparar a interpretação eletrônica da máquina.

Isso significa dizer que ele deve calibrar o programa para entender o que está

tocando, assim como calibrar a saída de som; quanto de efeito sofrerá uma

nota, por exemplo.

A fig. 13 é uma página secundária resultado da programação em Pure

Data, um ambiente de programação, feita para a realização do score

following de NoaNoa. Cada figura tem uma função e estão conectadas de

forma a realizar a tarefa esperada. Não é preciso que o intérprete

compreenda quais são é como interagir em todas, no entanto é importante

compreender algumas poucas.

Quanto à entrada do som, é fundamental ajustar os parâmetros para

que o programa responda corretamente. Em NoaNoa, o programa está muito

focalizado na leitura das alturas, para se certificar de que não está lendo

errado. Ele permite ajustar a precisão da afinação, a variação do vibrato, se

está havendo uma repetição da nota, se existe uma pausa (comandos

marcados em vermelho na fig. 13). Todos esses elementos são ajustáveis

pelo intérprete, que deve experimentar várias regulagens durante o processo

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  91

de estudo da peça até descobrir quais são as mais adequadas para sua

forma de tocar. Podemos ficar um pouco assustados com a quantidade de

ajustes, mas o que ocorre na prática é se corrigir discretamente um ou outro

item; o intérprete pode também tocar se adequando à regulagem já

estabelecida.

Em NoaNoa, a calibragem do pitch-accuracy (na fig. 13) é a que mais

tem efeito no sentido de garantir uma resposta precisa do computador.

Apesar de todas estas caixas interligadas, que conferem um aspecto de

coisa complicada, o que se faz é simplesmente escrever um novo valor em

frente ao comando. Como podemos ver, o padrão é "1.2"; pode-se escrever

“1.1”, “0.9”, “0.5”, etc., até se encontrar o que melhor responde à sua

afinação. Em tese, quanto mais preciso melhor. Do contrário, pode-se

extrapolar o limite e o dó pode ser confundido com um dó sustenido pelo

computador. Apesar da simplicidade da mudança do parâmetro, devemos

reconhecer que descobrir qual número deve ser ajustado não é tarefa fácil

para um intérprete não iniciado, ainda mais se considerando que a fig. 13 é

uma página interna do programa, e por isso não é vista no momento de

inicialização do mesmo.

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  92

fig. 13 - ajustes de programação. Kaija Saariaho, NoaNoa, página secundária.

A fig. 14 é a página que vemos quando inicializamos o programa. Para

o intérprete tocar a peça basta clicar em start piece e começar a ler a

partitura; mas alguns ajustes podem ser feitos para um melhor resultado

sonoro. O principal deles é o equilíbrio entre o som da flauta e os

eletroacústicos, que pode ser feito inserindo-se um valor positivo na caixa

que tem o número "0", em “s amp” (ajuste de volume). Ajustes de

reverberação, transposição do som, reverberação da sala e um volume geral

de efeitos também podem ser feitos.

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  93

fig. 14 - página inicial. Kaija Saariaho, NoaNoa.

Quando se toca uma peça do repertório tradicional da flauta, o

intérprete faz pequenos ajustes, dependendo do lugar onde está tocando -

se a sala é grande ou pequena, se tem muita ou pouca reverberação. O

mesmo deve ser feito pelo intérprete eletroacústico: pode-se até tocar com os

valores padronizados, porém uma regulagem fina garante um resultado

melhor.

Os recursos das interfaces não só flexibilizaram a rigidez da música,

em relação à formação para instrumento e sons pré-gravados, como

modificaram alguns dos conceitos tradicionais da música. A principal

modificação diz respeito à partitura. Em NoaNoa, por exemplo, não podemos

considerar que apenas o que está escrito no papel com símbolos musicais é

a partitura. Toda a programação escrita no computador também são

comandos executados no momento da performance, em razão do uso das

interfaces e principalmente do processo do score-following.

Podemos inclusive atribuir elementos idiomáticos à parte

eletroacústica. Desta forma, no nível neutro de Nattiez, temos não só o traço

ajustes de efeitos ajuste de volume

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  94

da escrita simbólica musical, como também as listas de números organizadas

e arquivadas na memória da máquina, apenas aguardando a ordem do

intérprete para serem transformadas em som.

Como consequência da expansão do conceito da partitura temos a

expansão da função do intérprete, que precisa também estudar a parte

eletroacústica. O live-electronics preserva toda a sua técnica de controle e

expressividade do instrumento, porém exige uma compreensão de aspectos

do programa por parte do intérprete, que deve assumir a eletroacústica

também como parte fundamental na construção da interpretação e

performance.

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5. A INTERPRETAÇÃO VIRTUAL

5.1 Interação

Um segundo termo muito utilizado no território da informática, e em

nossas vidas atuais, é a interação. Se a interface é um dispositivo, a

interação é um processo, é a influência recíproca que ocorre entre dois ou

mais elementos. A interação é "um processo de semiose que não é

unidirecional, mas pode ocorrer virtualmente a partir de qualquer um dos

agentes envolvidos" (IAZZETTA, 1996, p. 118). Por semiose entende-se o

processo segundo o qual um signo, que representa algo, age sobre quem

entra em contato com ele, ou seja, a partitura, representante das idéias do

compositor, ao entrar em contato com o intérprete produz uma interpretação,

provoca a reação do intérprete no momento de leitura da partitura, por

exemplo. A não unidirecionalidade do processo significa dizer que, a cada

mensagem recebida, o intérprete elabora uma nova resposta que é enviada

de volta ao compositor.

Iazzetta chama a atenção para o fato de que a resposta tem uma

influência nas ações futuras do compositor, o que estabelece um processo

que não é somente de causa e efeito, mas está baseado no crescimento e na

transformação contínua do signo, neste caso, da partitura. Em um sistema

interativo, cada agente tem a capacidade de modificar o comportamento dos

outros agentes envolvidos.

Desta forma, a transmissão unilateral da informação não constitui um

sistema interativo. Ao olharmos as horas, por exemplo, estabelecemos uma

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  96

relação em que apenas o receptor é modificado: ele adquire o conhecimento

da hora certa, contudo, sem afetar em nada o relógio. Para os "processos

interativos, essa questão de direcionalidade é extremamente importante

porque implica em que os agentes estão constantemente trocando seus

papéis de emissor e receptor sendo, portanto, igualmente afetados pelo

processo de comunicação como um todo" (ibidem).

Por isso, apesar da interação ser um aspecto da moda nas artes de

hoje, podemos considerar a tradicional relação entre a partitura e o intérprete

um processo que funciona nas duas direções. Segundo Nattiez, a partitura

constitui o esquema da obra, que garante sua identidade no curso da história.

Ela garante que a obra será tocada várias vezes. Citando Ingarten, ele parte

da idéia de obra como um "objeto puramente intencional, imutável e

permanente, cuja existência não é mais do que um reflexo de seu ser: a

existência da obra procura sua fonte no 'ato criativo' do performer e seu

alicerce na partitura" (NATTIEZ, 1990, p. 69). Mais à frente, ele diz existir um

processo do compositor que resulta num esquema escrito como a partitura,

que, por sua vez, admite múltiplas interpretações obtidas através de práticas

do intérprete (ibidem, p. 70).

Podemos até não ser capazes de modificar a partitura fisicamente,

apesar do esforço de alguns editores. Porém, a necessidade do intérprete e

toda sua carga idiomática modificam o olhar e a escuta do texto musical.

Outro aspecto transformador deste olhar é a historicidade intrínseca,

defendida por Adorno, que é produto não só da ação do intérprete, mas de

toda a cultura musical pela qual a partitura passa ao longo de sua história.

Por isso, uma partitura de Bach que vagou nas mãos e ouvidos de vários

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intérpretes em três séculos de música não é a mesma. Se pudéssemos

colocá-la no mundo das idéias de Platão, como um objeto isolado, ela

permaneceria intacta, mas sem o olhar do músico a partitura não existe, sua

existência está condicionada a esta relação, que a vem modificando ao longo

dos tempos. A partitura modifica o intérprete, à medida que disponibiliza as

idéias do compositor, capazes de modificar a mente de quem entra em

contato com elas; e o intérprete modifica a partitura, em razão de seu aspecto

idiomático e da historicidade que ajuda a construir.

No palco da música de concerto, a interação pode ser observada nas

relações do intérprete com os compositores, com a platéia, com a mídia, etc.

Entretanto, o processo interativo tem reservado para si uma categoria própria

no palco da música eletroacústica. No capítulo anterior, apresentamos a

forma tradicional de classificação da música eletroacústica e a proposta de

Freire, que defende a classificação de elementos presentes numa

performance de música eletroacústica. O último deles, novos instrumentos

controladores, está subdividido em live-electronics (uso de microfones, filtros,

reverbs, delays) e sistemas interativos, que utilizam a informática como

suporte (ibidem, p. 153). Vamos considerar a interação segundo a

perspectiva de Freire, ou seja, a relação entre o intérprete e o computador,

apesar de podermos identificar vários outros sistemas interativos na música.

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5.2 As máquinas

Em um palco preparado para a realização de uma obra eletroacústica,

que faça uso de sistemas interativos, vamos encontrar uma série de

equipamentos básicos, diferentes tipos de máquinas com diferentes funções.

Apesar da idéia de máquina estar muito identificada com algum

equipamento que disponha de motor, num sentido amplo as máquinas são

definidas como "uma estrutura material ou imaterial, aplicando-se a qualquer

construção ou organização cujas partes estão de tal modo conectadas e

interrelacionadas que, ao serem colocadas em movimento, o trabalho é

realizado como uma unidade" (SANTAELLA, 1997, 33). Elas são projetadas

para realizar um trabalho ou uma tarefa, têm um propósito determinado e

certa autonomia. De forma específica, "no termo está implicado algum tipo de

força que tem o poder de aumentar a rapidez e energia de uma atividade

qualquer" (ibidem).

No palco da eletroacústica vamos identificar três tipos de máquinas. O

primeiro são as musculares, que têm a capacidade de ampliar a força,

mecanizar o movimento e aumentar a precisão humana (ibidem, p. 36).

Existem várias destas no palco; a mais próxima do intérprete é a estante de

partituras, capaz de segurar inerte por horas uma quantidade razoável de

papel. Entretanto, num sistema interativo, as máquinas sensórias e a

máquina cérebro são as de fundamental atuação.

As máquinas sensórias, como o próprio nome sugere, são dispositivos

envolvidos com os sentidos humanos - audição, fala, visão, etc. São,

portanto, máquinas que funcionam como extensões destes sentidos,

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amplificam seu poder, simulando o funcionamento do órgão sensório (ibidem,

p. 37-38). A primeira com que o intérprete tem de lidar é o próprio

instrumento, que amplifica a capacidade de emissão e controle do som,

funcionando como uma ampliação da voz ou de suas formas de expressão.

As outras mais específicas são o microfone, com sua capacidade de ouvir, as

diversas interfaces e as caixas de som, aparelhos que falam pela

eletroacústica. Se as máquinas musculares produzem objetos, como a

estante de partituras, as sensórias produzem e reproduzem signos, como a

música.

No ponto extremo desta família encontra-se a máquina cérebro, ícone

do século XXI. Com capacidade sensória de ver, ouvir e emitir sons, graças

aos softwares, o computador pode também interpretar símbolos e tomar

decisões. O computador é um equipamento eletrônico para guardar e

processar dados, em linguagem binária, de acordo com instruções dadas por

um programa qualquer. Ele amplifica as habilidades mentais, notadamente as

processadoras e as da memória; trata-se de um dispositivo capaz de

processar e interpretar símbolos.

Ao escrever uma tese num computador pessoal, lida-se com símbolos,

letras, palavras, frases e sentido. Para o escritor-usuário, não interessa o que

torna possível esta ação. Pouco importa como se dá a interação entre o

hardware e os softwares, a relação entre o processador de texto e o sistema

operacional, e dele com a bios da máquina. Se pensarmos nas pessoas que

desenvolvem constantemente estes sistemas e em como as informações

transitam entre o ciberespaço e o teclado da máquina, podemos dizer que é

difícil estabelecer as fronteiras de onde começa e termina o computador.

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Cada vez mais miniaturizado fisicamente e universalmente integrado,

o computador é um artefato que apresenta “um agenciamento instável e

complicado de circuitos, órgãos, aparelhos diversos, camadas de programas,

interfaces, cada parte podendo, por sua vez, decompor-se em rede de

interfaces” (Santaella, 1997, p. 41). Por isso, todo o sistema interativo é uma

rede formada pelo intérprete, a flauta, as interfaces, o hardware e software do

computador.

Edgard Varése sonhava com “o dia em que o compositor, uma vez

realizada graficamente a sua partitura, poderá confiá-la a uma máquina que

se encarregará de transmitir fiel e automaticamente o conteúdo ao ouvinte”

(VARÉSE, 1996, p. 37). Esta poderia ser uma primeira função do

computador, um realizador musical - a mesma função cumprida pelo

gramofone ou qualquer outra máquina de reprodução sonora, mas que, como

percebeu Karlheinz Stockhausen, não atenderia à expressão musical para a

qual são imprescindíveis as coisas que escapam ao pensamento do

ordenador e acontecem no momento da interpretação (Motta, 1997).

Ordenador de números, atualmente o computador pode funcionar na

área da composição, por meio de softwares que criam situações musicais a

partir de escolhas pré-definidas, ou na área da análise de interpretações,

classificando o grau de perfeição técnica que um intérprete alcançou em

relação à afinação e ritmo, por exemplo. Pode também funcionar até como

um “intérprete”, tomando decisões, seguindo a partitura e ouvindo seu

“companheiro” de grupo de câmara em uma interpretação ao vivo.

Diferentemente de uma flauta ou do violino, que têm características

sonoras claras e definidas, o universo sonoro deste novo instrumento é

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infinito. Capaz de atuar como modificador de sons acústicos, processador ou

mesmo criador de áudio em tempo real, não podemos definir sonoramente o

que ele é, nem em que naipe da orquestra se encaixaria. A infinidade de

possibilidades sonoras e de execução define a principal característica do

computador: a virtualidade.

5.3 O virtual

Usualmente nos referimos à virtualidade como algo ausente ou irreal.

A expressão “realidade virtual” é empregada de forma a estabelecer que o

objeto que dela participa não é real, não existe, e por isso não pode possuir

as duas qualidades ao mesmo tempo: ser real e virtual.

Para a filosofia “é virtual aquilo que existe apenas em potência e não

em ato, o campo de forças e de problemas que tende a resolver-se em uma

atualização” (Lévy, 2000, p. 47). O virtual é um complexo de problemas,

tendências e forças; o atual é uma resolução para estes problemas. O virtual

existe e o atual acontece. Entre os dois termos há os processos de

atualização, em que uma das infinitas possibilidades existentes no virtual -

ocorre em um dado momento; e o processo de virtualização, no qual uma

solução do atual remonta a uma problemática.

Existir enquanto potência significa que uma coisa pode se transformar

em algo, e que para o mundo virtual esta transformação não

necessariamente tem uma relação causa-efeito direta. Se adotarmos uma

forma de deduzir os signos de forma analógica, um grande embrulho

esconde um grande objeto, algo que produza som de água é um líquido, ou

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alcançar um objeto a uma longa distância toma mais tempo que um próximo.

Considerando a virtualidade das coisas, de uma pequena semente pode

nascer uma grande árvore ou o percurso entre Salvador e Belo Horizonte

pode ser mais curto de avião que o percurso a pé de Salvador para Feira de

Santana.

O primeiro grau de virtualização é a invenção de novas velocidades

(Lévy, 1996, p. 23), que no caso do último exemplo é proporcionada pelo uso

de um dispositivo de virtualização: o avião, que encurtou a distância entre

Salvador e Belo Horizonte. Vários outros dispositivos estão presentes em

nosso dia-a-dia cumprindo diferentes formas de virtualização, como a escrita,

a máquina fotográfica, o telefone, a televisão etc, que têm a capacidade de

virtualizar o corpo, por exemplo3.

De todos os dispositivos, a técnica da informática de se reduzir tudo a

“0 e 1” é a mais virtualizante de todas (Lévy, 1996, p. 88). Ser possível

representar qualquer coisa, criar qualquer simulacro, transformar algo em

outra coisa completamente diferente, cumpre a máxima do estado virtual que

não é um conjunto de possibilidades, mas um universo sem fronteiras e leis

fixas, um universo habitado pelo computador.

5.4 O instrumento virtual

Para inserirmos o computador no universo da música, basta operar

com softwares voltados para esse fim e ele passa a ser um instrumento

                                                                                                               3 Na época de Fernando Pessoa, era elegante enviar uma foto própria com alguns dizeres no verso, como sinal de consideração e status. O poeta português abominava este ritual, pois considerava que a foto representava a pseudo-presença da pessoa e denotava sua real ausência.

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musical virtual. O termo instrumento pode aqui significar muitas coisas, como

um instrumento para análise, para composição, um modificador do som, uma

máquina de escrita, etc. Para o nosso propósito é preciso qualificá-lo como

um instrumento de performance musical ao vivo, como o piano, o violino ou a

flauta.

Na performance seu uso mais corriqueiro é como simulador de

instrumentos tradicionais, sons de orquestra ou violinos por exemplo,, que

são controlados por um teclado mecanicamente similar ao piano. Este

teclado já é uma virtualização do modo de produção do som dos

instrumentos tradicionais, já que, no mundo acústico, o som do violino é

produzido pela fricção do arco e o do trompete pela vibração dos lábios

provocada pelo ar, e não pela pressão de uma tecla em um dispositivo

eletrônico.

Para a música de concerto este uso não interessa muito, pois o som

de um instrumento real sempre superará qualitativamente seu simulacro. O

que interessa são novos sons, novas possibilidades de combinações

temporais e acústicas e novas formas de construção da linguagem musical. A

busca destes novos processos para a música vem sendo feita desde o

surgimento da música eletrônica, na década de 1950, e cunhou o termo live

electronics com o surgimento dos sintetizadores na década de 1960 (Griffths,

1978, p. 149). Atualmente, uma série de dispositivos são usados na

eletrônica ao vivo, em sua maioria dispositivos virtualizantes de vários tipos.

O computador pode ser considerado o mais poderoso deles, por ser

capaz de virtualizar todos os processos que envolvem o fazer musical. Para

exemplificar vamos citar um programa muito utilizado na área, o Max/Msp,

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produzido pelo Cycling’74. Trata-se de um ambiente de programação em que

o usuário pode montar, através da escolha e do agrupamento de algoritmos

com funções específicas, um patch que realize algo de interesse do

programador.

Podemos comparar o processo de programação do Max com o ato da

escrita. Primeiro, pegamos uma folha em branco e começamos a escrever

letras, palavras e partes maiores do texto até completar uma idéia geral. No

processo de escrita, as palavras têm significação e função próprias; não

podemos escrever um texto comum somente usando verbos, ou qualquer

outra função sintática. No Max, o início da programação é também uma

página em branco, que vai sendo preenchida por objetos, as “palavras”, que

têm funções específicas e uma sintaxe própria. A ligação dos objetos cria

uma funcionalidade, um objeto que recebe o som do microfone o envia a

outro que analisa o espectro, por exemplo. Com uma idéia do que se quer

que aconteça com o som dentro do Max, o programador cria esta teia de

objetos que processa o áudio da entrada, soltando para as caixas de som o

resultado desejado. Assim como na página em branco o autor apresenta

suas idéias, na página do Max o programador/compositor cria um caminho

que modifique o som de acordo com seu desejo pessoal.

A possibilidade de criar a função que o programa vai executar já é o

primeiro estágio do virtual no programa, o que não acontece nos programas

musicais tradicionais que têm as funções pré-definidas no seu processo de

confecção. Apesar de o Max/Msp ter seus objetos próprios, existem na

internet inúmeros sites de programadores independentes que criam e

disponibilizam seus objetos. Isso torna o programa um ambiente de

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informação compartilhada em que, no final do processo, uma composição

criada com objetos recolhidos nos diversos pontos da rede será um produto

da atualização do virtual; uma composição realmente coletiva, se

considerarmos que um objeto é um conjunto de atividades a serem

executadas, ou seja, um conjunto de instruções a serem realizadas

similarmente ao que ocorre com a partitura tradicional.

Em um instrumento como o violino, o arco é o objeto que provoca e

controla o som. No computador, estas duas operações são distintas. O som é

sempre produto dos circuitos eletrônicos, mas o seu acionamento pode

ocorrer de diversas formas. Um mesmo som pode ser tocado a partir de um

dispositivo de sopro, de arco, através de um teclado, de uma luva com

sensores, da luz ou da imagem. Quando se fala do uso da imagem para

controlar um som, pode-se pensar em eventos aleatórios, mas não é isso o

que acontece. Através de uma câmara de filmagem digital e um software

como o Max/Msp, pode-se perfeitamente transformar os movimentos

corporais em controladores de um piano virtual, por exemplo.

Quanto à possibilidade de transformação sonora, no momento em que

o som é digitalizado, transformado em conjuntos de “0 e 1”, pode sair

qualquer outro som pelo alto-falante, se falamos de música, ou transformá-la

em imagens, etc. Qualquer som pode, portanto, ser um controlador de

qualquer outra coisa; uma escala de dó maior pode controlar o subir e descer

de um guindaste – claramente essa não é a melhor forma e fazê-lo.

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  106

5.5 O intérprete e o computador

Para se alcançar uma interação plena é necessário que intérprete e

computador sejam capazes de agir de forma a causar mudanças nos estados

presente e futuro de um determinado objeto, em nosso caso, na obra

musical. Neste processo é preciso que ambos tenham conhecimento de pelo

menos dois aspectos do sistema.

Primeiramente é preciso conhecer o estado do objeto. É preciso que o

intérprete conheça não só a dimensão da partitura escrita como também da

partitura programada, ou seja, das possíveis ações previstas para o

computador. Isso é fundamental para a tomada de decisões e para a

condução da forma musical no momento da performance, cabendo ao

intérprete ter uma memória de estados presentes e previsões de estados

futuros da música em questão. Este processo ocorre também em uma

formação camerística tradicional, em que cada instrumentista tem que saber

o que o outro está tocando e ter na memória o que vai acontecer no percurso

da música. Tanto nesta formação tradicional quanto com o computador,

espera-se um tipo de informação pré-determinada para haver uma reação: se

o intérprete tocar algo não previsto, poderá travar o sistema, seja ele qual for.

É importante alertar para o fato de que num processo de interação com o

computador não é necessário o conhecimento da programação ou do que

ocorre com a máquina; é preciso somente conhecer suas reações e como

provocá-las, - da mesma forma que ao escrevermos um texto somente

precisamos acionar as teclas.

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Um segundo aspecto é a necessidade de conhecimento do

comportamento do sistema. Quando escrevemos um texto, precisamos saber

qual tecla acionar e que efeito ela produzirá. Ao tocar uma peça, é preciso

também interagir com o computador no momento de construção da

interpretação; é preciso conhecer os comandos a usar para obter uma melhor

interação com a máquina, assim como descrito no processo do score

following (Iazzetta, 1996, p. 123-124).

Vamos apresentar dois casos com níveis diferentes de interação entre

o intérprete e o computador, ambos construídos com o programa Max/Msp.

Existem muitos outros programas capazes de proporcionar um processo

interativo na música. A escolha do Max/Msp é puramente pessoal, porém

pode ser creditada à sua popularidade, que proporciona grande e variada

produção artística; à sua estabilidade, eficiência e principalmente à baixa

latência; isto é, o programa permite que o som percorra o caminho de entrar

no computador, sofrer um processamento e sair pelas caixas de som quase

que instantaneamente, sem que o intérprete perceba qualquer tipo de atraso.

Outra qualidade fundamental é sua abertura estética. É muito comum

as pessoas perguntarem o que determinado programa faz por você e daí

aprenderem a utilizar suas funções. No Max/Msp, cabe ao usuário criar as

funções, o que proporciona uma liberdade de escolha de acordo com suas

necessidades pessoais. Ou seja, a pergunta não é o que o programa faz,

mas o que você quer que ele faça.

Ele é composto de objetos, pequenas "caixas" com funções

específicas, que são ligadas criando um circuito de ações.

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fig. 14 - exemplo do Max/Msp

Na fig. 14 podemos compreender a composição e o funcionamento do

programa. A caixa "adc~ 1" tem a função de receber o sinal de áudio do

microfone. Ela está ligada à "vst~ MasterVerb", que produz uma

reverberação no som que vai para uma caixa que controla o volume. - Por

fim, o som? é devolvido ao ambiente acústico através de "dac~". As caixas

"wet/dry", "room size" e "decay time" são controladoras da reverberação. O

processo de composição do patch (nome dado a este tipo de estrutura) parte

de uma tela em branco, assim como a tela de um documento de texto a ser

escrito, que vai sendo preenchida por essas caixas e suas conexões, em

função do desejo do programador.

Na fig. 15 temos o patch principal de Almas (2005) (gravação e

partitura anexos), composição própria, para flauta e meios eletroacústicos.

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fig.15 - patch principal de Almas (2005)

Esta é uma obra que apresenta um sistema interativo que podemos

classificar como básico - além de ser controlado pelo intérprete

manualmente, não cria muitas ações musicais mais autônomas por parte do

computador.

A idéia inicial para a composição da obra era criar um coral,

microtonal, gerado a partir de uma única flauta. Com o desenrolar do

processo composicional surgiram outras necessidades:manter o som do

instrumento enquanto o intérprete fala um texto e criar uma textura que

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caminhasse da melodia solo a uma multiplicidade de vozes simultâneas. O

primeiro passo foi criar um dispositivo que funciona como um pedal tonal do

piano; aperta-se o pedal e a nota que está sendo tocada é reproduzida

infinitamente e continuamente até um novo comando.

fig.16 - Felipe Amorim, Almas, comp. 6-7.

Na fig. 16 temos um exemplo do funcionamento do pedal tonal.

Quando o intérprete toca a nota lá (com som eólio), ele aciona o pedal que

mantém esta nota; o mesmo ocorre com a nota mi bemol. Os números que

vemos abaixo da pauta indicam o acionamento do pedal: 1 para a primeira

vez, 2 para a segunda, etc. No entanto, o pedal muda de função ao longo da

obra: se em 1 e 2 ele mantém o som, em 3 ele extingue. Um exemplo do uso

do pedal tonal com o som tradicional da flauta pode ser ouvido a partir do

compasso 24. Neste ponto da peça começam também as falas do flautista,

que se sobrepõem ao som do instrumento e não ficam descobertas em

virtude da presença do pedal tonal.

Foram criados dois corais, um composto por trinados e outro por notas

lisas. O de trinados tem seu início no compasso 11, número 4 do pedal.

Entretanto, neste momento não há qualquer alteração na música: o intérprete

aperta o pedal e nada acontece; o número 4 apenas envia para a máquina o

comando de gravar e arquivar este trinado. Somente no compasso 36, pedal

número 18, inicia-se de fato a audição do coral de trinados.

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O segundo coral, feito a partir de notas lisas, começa no compasso 46

e a amostra do som do flautista é gravada no pedal 31, nota si. Esta nota é

enviada para três sub-patchs que a transpõem e aplicam pequenos

glissandos, dando a idéia de desafinações microtonais. A intenção é fazer

uma referência ao coral das rezadoras que serviu de inspiração na

composição da obra.

A programação de Almas permite que, a partir da linha da flauta, se

produzam outras oito vozes simultâneas à do solista, todas geradas em

tempo real no momento da performance, sem auxílio de qualquer parte pré-

gravada.

Apesar da complexidade de programação envolvida na composição da

obra, cabem ao intérprete algumas funções simples para sua execução. A

primeira e mais freqüente é o manejo do pedal. O computador grava em torno

de duzentos milisegundos do som do flautista no momento de acionamento

do pedal. Isso significa que é preciso certa estabilidade no som, para que não

sejam gravados outros ruídos como os produzidos no ataque das notas. Ou

seja, ele deve esperar alguns instantes para acionar o pedal. Ainda a este

respeito, é preciso memorizar suas funções, que podem ser de acionar o

pedal tonal, extingui-lo, gravar e acionar os corais. São 50 acionamentos do

pedal ao longo da peça, a grande maioria ligada à função de pedal tonal.

Outro aspecto que cabe ao intérprete é equilibrar o volume do som do

computador com o volume da flauta acústica. Para isso, basta ajustar o

controle do computer master gain para os sons do computador, e o direct

voice para os sons da flauta. É possível fixar os valores escolhidos para

facilitar o processo de escolha em novas apresentações. O resto do trabalho

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  112

de interpretação é como outro qualquer: estudar e tocar várias vezes a peça

para entender o que se passa, como obter o melhor resultado sonoro e

assim por diante.

Em Almas temos um processo de interação totalmente previsível para

o intérprete, tanto do ponto de vista da macro como da microforma. Assim

como numa música tradicional, a forma da música sempre será repetida

tantas vezes quantas ela for tocada, não importando quem seja o intérprete.

O que ocorre no sistema interativo é que as ações do intérprete são

reproduzidas pelo computador, ou seja, o intérprete não só imprime uma

interpretação própria à obra, sem qualquer tipo de restrição musical, como

também o que o computador reproduz é um reflexo de seus aspectos

idiomáticos. Por isso a capacidade de controle da expressividade musical,

neste tipo de obra, é bastante próxima de uma obra tradicional.

Interatividade "não é meramente a habilidade de navegar no mundo

virtual, é o poder do usuário modificar seu ambiente" (RYAN, 1994, p. 99).

Esta é uma propriedade nativa das obras de arte em relação ao ouvinte: o

intérprete tem o poder de modificar a platéia por intermédio de sua

interpretação, quando sobe no palco. Com a incorporação do computador à

música, o processo interativo passa também a atuar no nível da estrutura

física da obra, ou seja, a forma não é mais planejada, mas prevista. Ela é

prevista porque a programação do software pode criar limites para a

intervenção da máquina no processo estrutural da obra, o que garante uma

expectativa de resultado final. Porém, neste caso, lidamos de fato com a

virtualidade em seu stricto sensu, ou seja, pode-se esperar qualquer coisa.

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Em Três Janelas para flauta em sol e meios eletroacústicos (2008)

(gravação e partitura anexos), a relação entre o intérprete e a máquina é

instável visto que, neste caso, o computador cria sua linha melódica em

tempo real no momento da performance. A estrutura de programação da obra

é composta por três módulos que interagem entre si a partir da melodia

tocada pelo flautista ao vivo. Um módulo tem a função de controle de todo o

processo, o outro da criação dos materiais musicais do computador e o

terceiro cuida da distribuição espacial do som através de quatro caixas de

som.

O módulo controlador cuida dos volumes das vozes, tanto as

produzidas pelo computador como a do flautista, recebe e direciona os

acionamentos do pedal e o sinal de áudio do flautista. Podemos dizer que

este módulo é a parte sensória do intérprete virtual, uma vez que ele está

ligado às interfaces. Ele é também o pedal, o microfone e as caixas de som,

o "ouvido" e a "voz" do sistema; coordena suas ações, controlando os

volumes de entrada e saída do som, além de enviar os acionamentos do

pedal para os módulos de criação e espacialização.

O módulo de espacialização distribui as vozes em um sistema

quadrifônico. Nas tradições da música medieval e renascentista, as vozes

eram colocadas em pontos diferentes da igreja, criando um sistema

completamente espacializado, o que tornava mais clara a escuta da polifonia.

Em Três Janelas, a distribuição das vozes através de quatro caixas de som

tem esta mesma intenção- separar mais as vozes e criar para o ouvinte a

sensação de outro intérprete além do que está no palco. Se "a performance

da eletroacústica ao vivo é um tipo de música de câmara, na qual alguns dos

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  114

membros do grupo estão invisíveis” (McNUTT, 2003, p. 299), o módulo

espacializador ajuda na sua separação do visível, individualizando mais sua

presença sonora.

Se podemos falar em forma da espacialização, Três Janelas começa

com o flautista real posicionado no palco, tendo seu som reproduzido pelas

duas caixas de som frontais; e um flautista virtual nas costas da platéia, cujo

som é reproduzido por duas caixas posicionadas no fundo do teatro. Até o

acionamento de número 4 do pedal- números dentro de quadrados que

aparecem abaixo da pauta- não há alteração deste cenário. O objetivo do

compositor, com essa disposição espacial, é claramente criar uma imagem

polifônica de duas vozes em contraponto. Cabe ao intérprete realizar um

fraseado típico de uma textura deste tipo, mostrando seus momentos

importantes e deixando espaço para os do flautista virtual.

No número 4 do pedal, há uma articulação da forma: sai de cena o

virtual, deixando o flautista real tocando sobre uma nota pedal que não tem

uma origem espacial definida. Nos números 7, 8 e 9 do pedal acontecem

novas entradas de flautistas virtuais, criando um quarteto espacializado na

forma de um quadrado: o flautista real no palco, um virtual no fundo e os

outros dois nos lados. No entanto, essas posições não são fixas e as vozes

vão se movendo até o seu final.

No número 10 do pedal, surgem sons múltiplos virtuais que se

movimentam sobre a platéia formando uma nuvem, uma massa sonora de

contorno e posição pouco definidos. A escuta de uma obra como esta em um

aparelho de reprodução em stereo não permite a compreensão do processo

espacial. Acredito, inclusive, que mesmo num equipamento quadrifônico o

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  115

resultado não seja o mesmo, pois devemos sempre considerar a presença do

intérprete real que emite o som acusticamente, o que tem impacto no

resultado auditivo final.

O módulo de criação é o responsável pela geração do material sonoro

do computador. Este módulo é na verdade um software capaz de aprender

em tempo real as características do estilo musical do intérprete e tocar junto

com ele de forma interativa, qualificando a improvisação do computador com

os aspectos idiomáticos do intérprete. O programa chamado de OMax, foi

desenvolvido por Gerard Assayag, Shlomo Dubnov, Marc Chemillier e

Georges Bloch e utiliza o Max/Msp e o OpenMusic como plataformas.

O OMax é um parceiro virtual do intérprete; ele obtém todo seu

conhecimento ao escutar o músico que está tocando, sem nenhum tipo de

supervisão ou controle externo, e se ajusta em tempo real à música. Os

autores do programa chamam este processo de Stylistic Reinjection. Sua

hipótese é de que quando um músico toca e improvisa, ele está ouvindo

material musical proveniente de uma série de fontes, algumas envolvidas

num complexo processo de eterno-retorno do material. O músico ouve seus

parceiros e a si próprio enquanto toca, seus julgamentos sobre o que está

fazendo interferem em seus planos iniciais, influenciados pelas outras fontes,

fazendo com que ele se abra para novas direções. Imagens sonoras sobre

seu momento da performance e dos outros músicos são memorizadas, todas

caminhando na memória, do presente para o passado. Depois de um longo

período memorizando essas imagens, elas passam a agir como fontes

inspiradoras do material musical, que pode ser eventualmente recombinado,

formando novos padrões de improvisação.

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  116

Os autores do OMax acreditam que os padrões musicais não são

arquivados na memória de forma seqüencial, mas como modelos

comprimidos, que ao retornarem da memória para a música aparecem de

forma similar, mas não idêntica aos modelos. Para eles, esta é a questão

chave por trás do processo de recorrência e a inovação que traz interesse à

improvisação.

A idéia do stylistic reinjection é materializar, usando o computador

como uma memória externa, num processo que reinjeta objetos musicais do

passado recombinados dentro de uma característica idiomática, gerando

sempre uma reconstrução renovada do passado (Assayag e Bloch, 2008, p.

3-4). Na prática, o OMax ouve o músico, extrai suas características

idiomáticas e segmenta o sinal de áudio em eventos e frases. Durante este

processo ele constantemente vai construindo um modelo memorizado da

seqüência dos eventos; este modelo é chamado de Oracle. Deste momento

em diante, o programa está apto a criar uma improvisação contínua, feita

através da busca no modelo memorizado dos eventos que são recombinados

e, transformados em som, são tocados.

O OMax é, portanto, o programa responsável pelas vozes dos

flautistas virtuais. No início de Três Janelas, sua programação garante uma

linha melódica muito semelhante à do flautista real; a memória do programa

arquiva tudo o que flautista real toca. Até o pedal de número 3, o programa

pode utilizar qualquer parte do que foi tocado desde o início da música, ou

seja, do ponto em que o flautista real estiver tocando até o início da música,

toda a música foi memorizada e qualquer material pode ser utilizado como

fonte para a recriação. No número 3 há uma modificação neste lapso de

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  117

tempo: ele passa a ser muito curto em relação ao que o intérprete toca- cerca

de 5 segundos- o que significa que apenas os últimos 5 segundos tocados

pelo flautista são processados. Há também alteração na continuidade da

linha melódica, que anteriormente era mais contínua e passa a ser um pouco

mais fragmentada.

No número 4 do pedal, o OMax para de processar e sua memória é

apagada. Deste ponto, até o número 7 do pedal, não há qualquer atividade

audível do programa. Porém, nos números 6 e 7 do pedal há uma

memorização de dois trechos que serão utilizados como matriz para os

flautistas virtuais que surgem nos números 7, 8 e 9 do pedal. Os flautistas

virtuais somem na nuvem de multifônicos por volta do número 10 do pedal.

Três Janelas não é uma obra de improvisação, pelo menos não para o

intérprete que tem a sua frente uma partitura tradicionalmente escrita e sem

possibilidades de escolha, a não ser aquelas que imprimem à música seu

aspecto idiomático. Como controlador do computador, cabe a ele apenas

apertar o pedal nos momentos indicados pela partitura. No entanto, como sua

voz é que serve de matriz para a criação dos flautistas virtuais, é de suma

importância sua forma de tocar. Todos os aspectos que não estão escritos na

partitura e que são função do intérprete fornecer, como prescreve Adorno,

são elementos fundamentais para o melhor desempenho do instrumento

virtual.

Mais uma vez, temos uma grande complexidade e sofisticação no

aparato da informática; porém, para o intérprete, Três Janelas apresenta um

sistema de relativa simplicidade, uma vez que sua interação com o

computador se dá através da própria flauta, em sua maior parte. Seu poder

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  118

de captar os aspectos idiomáticos do intérprete torna este sistema mais

próximo de um conjunto de câmara. No caso das Três Janelas, podemos

argumentar que o flautista real está tocando junto a virtuais com seus

mesmos aspectos idiomáticos; são verdadeiros simulacros do flautista real.

Porém, o OMax tem a capacidade de lidar com memórias de outros

intérpretes, o que torna mais rica a expressividade da música.

5.6 Obra em movimento

A partir da década de 1950, o intérprete de certas obras de concerto

também passa a gozar de uma autonomia na qual não só dispõe da

liberdade de interpretar as indicações da partitura, como também de interferir

na forma da composição, estabelecendo desde valores rítmicos até a

sonoridade geral da peça. Observador deste momento da música e dessas

novas atribuições do intérprete, Umberto Eco (1932-) elaborou a idéia da

Obra Aberta.

Segundo ele, a obra de arte "é uma mensagem fundamentalmente

ambígua, uma pluralidade de significados que convivem num só significante"

(ECO, 1986, p. 22). Isso quer dizer que uma mesma obra é compreendida

diferentemente pelas pessoas. Eco alerta para a confusão que se faz com

seu conceito de Obra Aberta, dizendo que sua intenção com o livro foi tratar

da multiplicidade interpretativa das obras de arte e não somente das que

facultam ao intérprete interferir em sua estrutura (Eco, 2004, p. 27) (Eco,

2005, p. 5). Hoje não podemos negar que o termo obra aberta define as

obras que não têm uma forma fechada, que permitem interferências neste

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  119

aspecto, o que foi reforçado pelo próprio Eco - na exposição do conceito, o

autor sempre utiliza exemplos musicais que permitem a interferência.

Como todas as obras de arte permitem uma multiplicidade de

interpretações, todas as obras seriam abertas, o que não justificaria o

conceito. Diante deste impasse, podemos propor que este tipo de obra

apresenta uma ambigüidade, o que é natural na arte. Já a abertura

conquistada na música de concerto a partir da década de 1950 é definidora

do conceito, indicando obras abertas como as que prescindem da

interferência do intérprete em algum aspecto estrutural.

Com base neste princípio, o interesse da Obra Aberta de Eco "não é a

obra-definição, mas o mundo das relações de que esta se origina; não a

obra-resultado, mas o processo que preside a sua formação; não a obra-

evento, mas as características do campo de probabilidades que a

compreende (CUTOLO in ECO, 1986, p. 10). Uma obra do tipo de Três

Janelas levanta este tipo de problema. Seu interesse está na relação entre o

intérprete e o computador, nas possibilidades de criação em tempo real de

um material musical inédito, que não soa como uma cacofonia, mas preserva

uma unidade estrutural e principalmente estilística com o intérprete.

Se Eco e vários outros autores estão preocupados com o respeito à

intenção da obra- considerando a interpretação como múltipla, porém dentro

deste limite de respeito - em Três Janelas esta relação é transposta para o

computador; este mantém o que poderíamos considerar a intenção do

intérprete, ou seja, ele não só se mantém dentro de um limite que não

desfigure a melodia do flautista real, como sua intenção é também respeitada

enquanto estilo e em seus aspectos idiomáticos.

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  120

O processo improvisador da máquina cérebro, dentro dos limites

impostos pelo compositor, trata a forma, principalmente o seu nível menor,

não como um evento, um objeto definido, mas como um campo de

probabilidades não aleatórias, conduzidas pela linha da voz real. Mas

diferentemente da uma obra aberta tradicional, em que o intérprete interfere

na forma, neste caso sua atuação fica restrita à leitura e interpretação de

uma partitura tradicional. O processo improvisador da máquina é o

responsável pela indefinição da forma, o que confere a Três Janelas um

estado mais restrito dentro do conceito de Eco. Em virtude da sua

capacidade de assumir várias estruturas imprevistas, fisicamente irrealizadas,

podemos definir Três Janelas como uma obra em movimento (Eco, 1086, 50-

51).

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6. O GESTO

O início do século XX marca para compositores e intérpretes um novo

desafio, novos territórios musicais em que a sintaxe não é previamente

conhecida. Até então acostumado com a música tonal e suas formas de

organização consolidadas, o intérprete caminhava por um terreno conhecido,

com limites estabelecidos, em que os objetos mudam de lugar, porém as

funções se mantêm as mesmas. A sintaxe tonal era uma forma de linguagem

falada com diferentes sotaques por todos. O rompimento da discursividade

tonal e de sua estrutura de sintática fundada nas funções tonais perturba este

cenário e lança um novo desafio ao intérprete: mais do que caminhar por

territórios desconhecidos, cada terrítório, cada música, pode apresentar uma

sintaxe própria, uma regra própria de organização do material musical.

Na primeira metade do século XX houveram alguns esforços no

sentido de criar novos sistemas que substituíssem o tonalismo. O mais

relevante deles foi o dodecafonismo de Arnold Schöenberg (1874-1951).

Apesar da expectativa do compositor austríaco de que este sistema garantiria

a supremacia da música germânica por mais cem anos, ele logo se

desfigurou nas mãos de outros compositores, sendo o embrião do serialismo

integral, que não só organiza séries de alturas, como serializa ritmo,

dinâmicas, timbres e qualquer outro parâmetro musical. Apesar do serialismo

integral também não se estabelecer como referência, ele é um indicativo de

um foco da música contemporânea, o estabelecimento de sintaxes por meio

do controle dos parâmetros musicais.

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  122

Embora imanente em toda a música, o gesto musical emerge neste

contexto relacionado às questões da música contemporânea e sobretudo à

sua sintaxe, tornando-se uma possibilidade de organização do discurso. A

coerência gestual de uma obra pode funcionar como um fator de unidade

para o compositor e orientar o intérprete quanto aos fatores da tensão

musical.

Segundo Adorno, os signos musicais, tomados pela ambiguidade e

pela transitoriedade do gesto, são "imagens de gestos" e a notação teria

surgido para fixar a prática mimética quando a memória desta já começava a

desaparecer das práticas musicais (Adorno, 2006, p. 224-225). Como foi

apresentado no segundo capítulo, Adorno define a escrita musical como a

linguagem dos signos no particular, os símbolos musicais, e a linguagem

gestual (ou figurativa) no todo, "onde cada altura ou indicação da partitura

tem que ser traduzida em representação mental e realizada sonoramente

como parte integrante da imitação do gesto em sua totalidade" (AMORIM e

ASSIS, 2009, p. 1).

Podemos distinguir representação mental e realização sonora em

partitura e gesto, em simbólico e mimético, em interpretação e performance,

ou mesmo em reflexão e ação. Para Brian Ferneyhough (1943-) estes dois

estados são divididos em figura e gesto, sendo que a figura "não existe em

termos materiais; ela representa, sobretudo, uma maneira de perceber, de

categorizar e de mobilizar as constelações gestuais concretas"

(FERNEYHOUGH, 2000, p. 136). Segundo esta concepção, o conceito de

figura é um gesto que foi extraído de seu contexto original para se tornar “um

radical significante livre para se recombinar, para se solidificar em novas

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  123

formas gestuais” (ibidem, p. 26). A figura é uma representação; na partitura,

ela é constituída pelo conjunto dos intervalos, dinâmicas, ritmos, pelos

parâmetros musicais, assim como uma figura geométrica é formada por

linhas e ângulos. A figura é abstrata e para que possamos percebê-la sua

manifestação sonora é preciso realizá-la no tempo. Esta realização, que põe

em ação de forma coordenada os parâmetros musicais, é o gesto musical.

Em sua origem, a palavra gesto significa uma ação que controla, que

sustenta, mantém, ou mesmo produz algo voluntariamente. Souza resume os

múltiplos significados da palavra gesto como uma "ação que revela uma

intenção" ou "um movimento que significa". Gesto é um conceito que

apresenta duas faces: por um lado, é um movimento, uma ação intencional;

por outro lado, opera um processo de significação a partir da forma que nele

percebemos (Souza, 2004. p. 39-40), ou seja, a figura de Ferneyhough.

Devemos observar que a idéia do gesto como figura significa uma

espacialização do percurso do tempo (Carvalho, 2005, p. 218). Uma figura é

uma imagem visual; desta forma, podemos ver o que acontece do ponto de

vista do movimento da música no tempo, como em uma partitura gráfica. O

gesto transformado em figura vai contra a idéia de mimese original; perde-se

a atualidade do gesto, já que ele é um acontecimento, ele simplesmente

existe, é um momento presente, o que deixa de acontecer para ser

eternizado em uma figura. A fixação do gesto em figura permite que ele seja

relacionado a outros, tanto na sucessividade quanto na simultaneidade,

deixando de ser, em certo sentido, "o gesto musical" para ser "o gesto

concreto", passível de análise e de princípios de organização (ibidem).

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  124

Podemos reconhecer também em Adorno esta divisão de estados do

gesto, sua formação ou representação, quando ele diz que a natureza

mimética da música pode ser divida em expressão e construção, que se

sustenta no aspecto gestual puro, materializado sem expressão, sem

subjetividade. Desta forma o gesto é único, podendo, porém, assumir dois

estados: o expressivo, no momento da performance; e o estrutural, em que

podemos lidar com o gesto para fins de composição, análise e construção de

uma interpretação. Segundo Adorno, "música como arte é uma tentativa, a

qual transforma a expressão em construção e a construção em expressão"

(ADORNO, 2006, p. 63).

Reconhecida a possibilidade de análise do gesto, não só no tempo

como no espaço da partitura, podemos considerá-lo como um objeto

organizador do discurso musical. A coerência gestual de uma obra pode

funcionar como fator de unidade para o compositor, orientar o intérprete

quanto à construção da interpretação e proporcionar ao ouvinte, senão uma

linguagem, uma referência para a escuta.

6.1 Gestos individuais

Partindo da idéia de Smalley que afirma "estar o gesto relacionado

com uma ação a partir de uma meta previamente atingida ou em direção a

uma nova meta; [e ainda] estar relacionado com a aplicação da energia e

suas conseqüências, podemos propor dois tipos de gestos baseados no fluxo

da energia (SMALLEY, 1986, p. 61). Os exemplos a seguir são retirados da

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  125

obra Entre o ar e a perfeição (2009), para flauta, piano e eletrônica, de João

Pedro Oliveira (gravação e partitura anexos).

O primeiro é o gesto anacrústico, que apresenta um aumento da

energia, do início da anacruse até o som final, a meta do gesto.

fig. 17 - Gesto anacrústico. João Pedro Oliveira, Entre o ar e a perfeição, comp. 9.

Já o gesto desinência cumpre o caminho contrário: parte de um som

estável e termina com acciacaturas, que cumprem a função de diluir a

energia proveniente do primeiro som.

fig. 18 - Gesto desinência. João Pedro Oliveira, Entre o ar e a perfeição, comp. 74-75.

A mistura dos dois tipos básicos pode levar ao gesto transição, que é

definido pela ação de partir de uma meta previamente atingida e se dirigir a

uma nova meta.

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  126

fig. 19 - Gesto transição. João Pedro Oliveira, Entre o ar e a perfeição, comp. 96-97.

A análise geral de Entre o ar e a perfeição mostra que a linha da flauta

é praticamente toda construída com gestos anacrústicos; há apenas um

gesto desinência. Isto não significa que todos tenham o mesmo conteúdo

musical. Não devemos confundir gesto com tema; o que todos apresentam é

o mesmo caminho da energia, que cresce em direção a uma meta sonora, ao

som principal do gesto. A constatação de um tipo de gesto majoritariamente

predominante na obra de Oliveira é um indicador que comprova a hipótese de

Coker (1972) e Wishart (1996), que defendem o gesto como um elemento

unificador da forma. Podemos até questionar esta idéia, porém é inegável

que uma unidade gestual é diretamente ligada a uma coerência

interpretativa, facilitando para o intérprete o entendimento da condução da

forma e do fraseado musicais.

6.2 Gesto orquestral

Estudos sobre a dimensão estética do homem, baseados em

conceitos da psicologia, demonstram que nossa mente tem uma tendência de

perceber as coisas de maneira gestáltica. Nossa percepção procura sempre

compor, com os estímulos que lhe chegam, uma gestalt que se torna o foco

de nossa atenção (Duarte 1991: 65-66). O ouvinte constrói uma imagem

perceptiva ou um sentido musical por meio da fusão das alturas e durações,

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  127

mas também, principalmente, pelo movimento dos gestos musicais. Na obra

Entre o ar e a perfeição para flauta, piano e eletrônica (2009), o compositor

João Pedro Oliveira conta com a percepção da gestalt para criar uma trama

musical na qual o espaço orquestral, formado pelas três vozes, está

interligado pela complementaridade e imitação gestual. A busca do

compositor pelo amálgama entre os instrumentos acústicos e a eletrônica, de

forma que o ouvinte tenha dificuldade de distinguir as vozes, é alcançada por

meio de uma escrita de gestos orquestrais em que uma voz continua o gesto

da outra, formando um tecido complexo. Assim como a klangfarbernmelodie,

levada ao extremo por Anton Webern (1883-1945), as dimensões melódica e

harmônica perdem seu perfil bidimensional e são substituídas por uma

dimensão multidirecional.

Nos quatro primeiros compassos da peça podemos observar este

procedimento: os gestos são sempre compostos por instrumentos diferentes.

O primeiro é um gesto anacrústico, em que a flauta e a eletrônica realizam

um crescendo que é interrompido pelo piano. Na seqüência, temos a

anacruse da eletrônica para o compasso 2, que é continuada pela flauta, e a

anacruse para o compasso 3, que é continuada pelo piano. Já no compasso

3 há uma inclusão da flauta com sons harmônicos que se superpõem ao

piano e à eletrônica, esta responsável por iniciar e finalizar o gesto. Da

mesma forma, no compasso 4, o piano é substituído pela flauta, mas a

eletrônica mantém sua função original. Ou seja, nestes quatro compassos

podemos perceber a coerência composicional em relação à gestualidade,

observando que o compasso 4 (eletrônica-flauta-eletrônica) é uma variante

do compasso 3 (eletrônica-piano-eletrônica). No que diz respeito a todo o

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  128

trecho, temos um adensamento dos gestos, responsável pelo aumento de

tensão:

fig. 20 - João Pedro Oliveira, Entre o ar e a perfeição, comp. 1-4.

Oliveira ainda busca a integração das vozes através de semelhanças

entre os timbres. Na anacruse do compasso 2, a eletrônica realiza sons

flautísticos que são completados pela flauta e na anacruse do compasso 3

sons pianísticos são completados pelo piano. O uso de técnicas estendidas

também alcança o mesmo resultado, como no compasso 39, em que o

pianista deve tocar nas cordas, realizando um glissando que será continuado

pela eletrônica e flauta.

Analisando a linha melódica da flauta e tape podemos observar que,

como procedimento padrão, há acciacaturas seguidas por notas longas com

frullato ou trêmulos. Temos aqui dois tipos de gestos, os móveis evolutivos

(acciacaturas) e os móveis não evolutivos (linhas). Na obra, estes dois tipos

cumprem funções muito claras: um é responsável pelo movimento no sentido

do caminhar, do desenvolvimento da forma, da geração de movimento; o

outro pelo preenchimento do espaço sonoro, gerando polarizações

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  129

harmônicas. A escolha por esta gestualidade garante uma unidade, visto que

os gestos não-evolutivos têm um potencial de integração entre as vozes na

dimensão harmônica, e os evolutivos, na melódica.

Entre o ar e a perfeição é formada por “constelações gestuais” que, na

sucessão, formam o tecido musical. A tendência em toda a obra é que os

gestos móveis evolutivos sejam iniciados pela eletrônica, tornando-se

balizadores importantes no momento da performance.

Para Peirce, "uma coisa sem oposições de fato não existe" 4? (C.P.,

1.457). Na obra observada podemos identificar claramente a existência de

oposições gestuais, seja por tipologias ou funções diferentes. Oposições ou

semelhanças "criam tensões locais, impõem direcionalidades e estriam a

superfície sonora com linhas de força expressiva" (Vasconcelos, 2008, p.56).

Do ponto de vista de sua realização, "O GESTO musical corresponde a uma

VARIAÇÃO em um OBJETO SONORO" (Souza, 2004, p.156). Se a figura de

Ferneyhough é algo abstrato, o gesto é a materialidade da música, cuja

expressão é de responsabilidade do intérprete, que tem o papel de ajustar o

rigor da escrita às pequenas variações presentes na performance.

6.3 Gesto vetorial

Como foi definido por Souza, o gesto é uma ação com intenção, que

produz algo intencionalmente. Ele tem duas faces - por um lado é um

movimento e por outro significa algo (Souza, 2004, p. 39-40). Ele pode ser

observado em dois estados: como figura, quando está descrito de alguma

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  130

forma na partitura; e como gesto, quando está sendo realizado em seu

estado material fundamental (Ferneyhough, 2000, p. 136).

A afirmação de que o gesto como figura significa uma espacialização

do percurso do tempo (Carvalho, 2005, p. 218) enfatiza uma qualidade

importante para a música, que é o deslocamento no tempo. O gesto cumpre

uma trajetória que tem valores quantitativos: pode, por exemplo, ser medida

em segundos ou pulsos; e valores qualitativos, que são obtidos a partir da

performance do músico. Ao executar uma frase musical o intérprete trabalha

com a tensão musical, ele conduz o aumento da tensão para um ponto e

depois diminui até a conclusão da frase, por exemplo. Este controle da

condução da música é basicamente o aspecto qualitativo do gesto, o que vai

ser compreendido como fator de expressividade do intérprete.

Esta forma de percepção da música, como uma linha que conduz a um

ponto, pode ser representada por um símbolo físico-matemático: o vetor que

é "utilizado para representar o módulo, a direção, e o sentido de uma

grandeza física vetorial" (BRASIL, 2008). A palavra vem do latim, vector, que

significa condutor. Das três informações que o vetor contém, o módulo

representa uma intensidade; a direção, o caminho traçado; e o sentido, qual o

percurso desenvolvido no caminho.

Para a física, o módulo é uma grandeza, um número real não-

numérico. Se você está dirigindo um carro a 80 km/h, a velocidade é o

módulo. Fica difícil, no entanto, definir grandezas para a percepção artística -

não somos máquinas de precisão, capazes de identificar uma dinâmica

executada no violino a 67 decibéis, ou uma nota lá tocada a 443 Hz. Com um

certo treinamento até podemos reconhecer estas grandezas físicas. Bons

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  131

profissionais de suas áreas são capazes de fazê-lo, porém as artes não estão

interessadas nelas. As artes estão interessadas mais em nossa capacidade

de perceber qualidades e relacioná-las. Portanto, nossos vetores artísticos,

não científicos, podem associar o módulo a grandezas relativas existentes na

música, tais como dinâmicas e andamentos. Esta definição pode parecer um

paradoxo em relação à definição do conceito físico, mas, de fato, a precisão

da intensidade está presente em ambas definições. A diferença é que para a

física a intensidade é medida com grandezas, com graus diferentes de

precisão, e para as artes a intensidade é uma medida absolutamente

pessoal, captada por nossos sensores, nossos ouvidos, e avaliada por nossa

mente, em graus maiores ou menores de impacto.

Basicamente relacionamos a direção, na música, com as mudanças de

alturas - se deslocamos do grave para o agudo e vice-versa. No entanto, há

outras possibilidades de se relacionar a direção com o deslocamento de uma

tonalidade à outra, a transformação do tema A no B durante a ponte de uma

sonata clássica, ou mesmo a direção temática de uma determinada forma.

Estas várias possibilidades demonstram que o gesto deve ser considerado

não somente no nível mélódico do intérprete solista, mas também em níveis

maiores da forma.

Por fim, o sentido significa qual o percurso tomado. Dizemos que um

gesto partiu do grave e foi para o agudo, por exemplo. Do ponto de vista do

intérprete, sempre haverá um só sentido; seja ele qual for, fisicamente o

gesto não pode ter dois sentidos ao mesmo tempo. No entanto, esta verdade

é válida somente para a realização física, podendo ter outro comportamento

na escuta. Se tocamos as notas lá e sol, nesta ordem, o sentido é da primeira

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  132

para a segunda nota. Ao ouvirmos esta pequena frase, somos compelidos a

ouvir também no sentido contrário à execução. Somente somos capazes de

identificar que foi tocada a nota lá depois que ouvimos o sol e comparamos

com o que foi ouvido; retroagimos no tempo e no sentido da execução,

conseqüentemente. Outra possibilidade de mudança do sentido original

realizada pelo intérprete é o que faz o programa Omax na obra Três Janelas.

A operação mais básica executada pelo programa é gravar a linha melódica

do intérprete e modificar seu sentido original, criando variações das frases.

Todos estes componentes do vetor, o módulo, a direção e o sentido,

nos mostram que um gesto, como vetor, considera seus aspectos

mensuráveis. O vetor é o componente que orienta como, quanto e para onde

está sendo conduzida a energia da música. Imaginar uma música sob o

ponto de vista dos vetores significa visualizar linhas de energia, com

capacidade de mudar suas constituições internas a qualquer momento,

podendo se fundir ou separar sem preparação, típicas representantes do

mundo virtual. Diferentemente de um tema da sonata, comprometido com a

unidade da obra, o vetor é apenas comprometido com a condução da

energia.

6.4 A integração das vozes

O vetor é um condutor, mas não podemos considerar que uma voz da

partitura seja um vetor. O grau de separação ou união das diversas fontes

sonoras presentes na obra define a composição do gesto.

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  133

Ao longo da curta, porém intensa história da música eletroacústica, a

questão da integração das dimensões acústica e eletrônica sempre foi um

item chave neste tipo de formação. Do lado do flautista e do instrumento

acústico, o uso das técnicas estendidas aproximou esta dimensão dos sons

eletrônicos; por outro lado, a eletrônica sempre pode produzir simulacros dos

instrumentos acústicos.

No primeiro gesto de Towdah (2009) de João Pedro de Oliveira

(gravação e partitura anexos), podemos observar que as vozes da eletrônica,

flauta e clarone são aproximadas pelo fator timbre; todas realizam sons de

ar, o que torna muito difícil identificar estas vozes separadamente. Junto com

o piano e a percussão, temos o gesto de abertura da obra.

fig. 21 - Sons de ar. Towdah, João Pedro Oliveira. comp. 1-3.

O timbre, porém, não é o único elemento capaz de promover a

integração das vozes. Outros elementos, tais como freqüências dinâmicas,

ritmo, desenho temático e acentuação também são utilizados, com o objetivo

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  134

de que a escuta de uma obra eletroacústica mista não seja separada em

faixas acústicas e faixas eletrônicas tocadas simultaneamente.

No trecho que vai do compasso 102 ao 105, o compositor aproxima o

registro das freqüências da eletrônica e da flauta, de forma que nos

compassos 103 e 104 não possamos separar as vozes. Ao contrário do que

ocorreu nos compassos 99 a 101, neste trecho a flauta realiza os glissandos,

o que ajuda no amálgama das vozes. O compositor escreve a eletrônica

como se fosse um instrumento tradicional, incapaz de fazer glissandos,

deixando para a flauta a tarefa de fazer o papel do tape.

fig. 22 - Freqüências próximas - Towdah, João Pedro Oliveira. comp. 103-105.

Apesar da busca pelo amálgama, observamos que Oliveira tem como

padrão na composição dos gestos não escrever o mesmo movimento para as

vozes, não realizar uníssonos. Nas figuras 21 e 22, por exemplo, cada voz

tem contornos rítmico e melódico próprios, mas mesmo assim a mistura é

garantida. Um elemento que invariavelmente é tratado desta forma é o ritmo,

sendo que na superposição das vozes o padrão é de figuras com valores

aproximados, mas não iguais. Na página 8 da partitura, compasso 22, a

percussão executa quiálteras de 5, o piano quiálteras de 6, o clarone duas

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  135

semicolcheias, e a flauta e o tape sons rápidos com ritmo livre, tudo em um

tempo de colcheia. Neste caso, a velocidade do gesto dificulta uma escuta

individualizada das vozes e a multiplicidade rítmica uma textura complexa

que não é um contraponto e nem um uníssono homofônico.

fig. 23 - Ritmos. Towdah, João Pedro Oliveira. comp. 22.

Poderíamos mostrar uma série de outros procedimentos de integração

entre as vozes em Towdah. Procedimentos com dinâmicas, tipos de

movimentos das vozes, da harmonia tímbrica, de frequências, etc. Toda esta

atenção em criar um amálgama dos sons na obra resulta para o ouvinte em

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  136

um grande gesto, que vai sendo subarticulado na medida da escuta. O

amálgama é responsável pela escuta dos vetores e linhas de energia, que se

juntam e separam a todo momento, sofrem mutações tímbricas ineperadas e

conduzem à tensão musical.

Obras como Lontano (1967) e Atmosphères (1961) , ambas para

orquestra, de György Ligeti (1923-2006), ao contrário, necessitam de uma

interpretação em que não se escute individualmente os instrumentos, mas

somente uma massa que vai se modificando na harmonia, no timbre e na

dinâmica. Ligeti participou do início da música eletrônica em Colônia, na

Alemanha, e o que ele fez em várias de suas obras foi trazer para o mundo

acústico técnicas eletroacústicas.

Em Towdah temos uma diferença importante para a música de Ligeti,

que é a composição das linha melódicas individuais dos instrumentos.

Oliveira constrói uma textura em que as vozes individualmente realizam

melodias com um alto grau de variação de seus elementos constituintes.

Temos, neste caso, vozes que podem ser compreendidas quando tocadas de

forma isolada, ao contrário de Ligeti, com suas texturas de notas longas ou

mesmo em ostinato em outras obras.

Outra diferença é o uso da voz eletroacústica, coisa que Ligeti não

utiliza em suas obras; ele apenas traz as técnicas composicionais da

eletroacústica para a acústica. Oliveira não só utiliza este mesmo

procedimento como o contrário - técnicas composicionais típicas da escrita

tradicional são utilizadas na voz da máquina, o que também é um fator

agregador das vozes.

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  137

A integração da eletroacústica com os instrumentos acústicos através

de um pensamento gestual, e principalmente pelos gestos orquestrais que

amalgamam os dois tipos de fontes sonoras, tem como produto uma textura

semelhante à das obras de Ligeti, em que as notas longas e os ostinatos são

procedimentos que tendem a anular o individualismo dos instrumentos em

favor do conjunto.

Em Towdah, o que escutamos é também uma tendência a favorecer o

grupo em detrimento do individual, porém com uma diferença: a velocidade.

A forma é articulada rapidamente, a todo tempo, por meio de uma

diversidade de elementos rítmicos e melódicos. O que poderia sugerir uma

textura polifônica soa como movimentos sonoros, gestos constituídos pelos

amálgamas que se juntam ou se separam, formando vozes nas quais, em

grande parte, não podemos identificar seus componentes tímbricos

individuais. A compreensão desta qualidade de Towdah pede ao intérprete

uma postura de busca pela imersão de seu instrumento nestas linhas

gestuais, sem fazer com que ele desapareça ou tenha lugar de destaque,

mas que se movimente e faça parte dos vetores sonoros que conduzem a

tensão musical.

Durante a gravação não só de Towdah, como de outras obras de

Oliveira, realizada pelo grupo de música contemporânea Oficina Música Viva,

de Belo Horizonte, em 2009, sempre houve uma discordância entre

compositor e regente. No curso natural do processo de gravação, o

compositor realizava a edição e a mixagem do material gravado e dos sons

eletroacústicos e apresentava ao regente. Este sempre considerava que o

material acústico estava escondido e pedia ao compositor que aumentasse o

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  138

seu volume; seu argumento era de que a expressividade dos instrumentos

acústicos era prejudicada em função da eletroacústica.

A discordância entre regente e compositor sugere uma encruzilhada:

do lado do regente, o senso de hierarquia das vozes, vozes principais e

linhas que devem ser destacadas, como na concepção clássico-romântica.

Do lado do compositor, a possibilidade de amálgama dos instrumentos, no

sentido de produzir novas resultantes, como em um caleidoscópio que, ao

mexer, muda os objetos de lugar, produzindo novas formas visuais.

A gravação anexa a este trabalho é o resultado final desta discussão.

Cada um cedeu um pouco, porém a recorrência do compositor em mixar os

sons extremamente misturados - foram gravadas cinco obras e o regente

sempre discordou da mixagem - nos aponta para uma mudança em relação à

regência defendida por Wagner. Towdah nos aponta para a necessidade do

intérprete tocar com um outro equilíbrio das vozes, se considerarmos que o

repertório clássico-romântico ainda é muito presente em nossos ouvidos;

mais ainda, para a necessidade do intérprete estar atento à historicidade

intrínseca das obras, de que nos fala Adorno, para se aproximar o máximo

possível da verdade da obra em seu tempo.

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7. CONCLUSÃO

Este trabalho teve o objetivo de levantar alguns aspectos

interpretativos em obras eletroacústicas mistas, especificamente para flauta.

O repertório estudado abrange todo o período de existência deste tipo de

obra, sem, no entanto, ter a preocupação de fazer um levantamento histórico

ou exaurir todos seus aspectos. As obras escolhidas apresentam tipos de

interação e mediação entre os sons acústicos e eletroacústicos que julgamos

serem as mais comuns e de fácil acesso ao intérprete, formando um

panorama representativo sobre características de dispositivos técnicos,

necessidades interpretativas e estéticas das obras eletroacústicas mistas.

Do ponto de vista do aparato técnico necessário à prática da música

eletroacústica, vimos três grupos básicos: da fita magnética, das interfaces e

do uso do computador. Podemos apontar uma evolução natural dos artefatos

tecnológicos entre os grupos, sendo que para se tocar uma obra para fita

precisa-se apenas de um reprodutor de som qualquer, que não é comparado

à potencialidade, ou melhor, à virtualidade infinita do computador. Neste

processo evolutivo, foi fundamental o surgimento das interfaces, as máquinas

sensórias, que tornaram possível o relacionamento das máquinas cérebro

com o mundo externo. A fita magnética representou a possibilidade de

armazenamento do som, as interfaces, o controle dos dispositivos técnicos e

o computador, a manipulação do som em tempo real.

Contudo, hoje não podemos mais criar ou classificar as obras mistas

sob o ponto de vista do aparato técnico, uma vez que o computador

praticamente cumpre qualquer função. O que temos em uma configuração de

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  140

palco para obras mistas é a flauta e o computador, mediado por alguma

interface como o microfone e as caixas de som. A associação dos

instrumentos acústicos com estes dispositivos rompeu com os limites sonoros

dos instrumentos, e as qualidades de uma flauta, tais como timbre

característico, capacidade polifônica, limites de velocidade e dinâmica,

deixaram de ser definidas e limitadas, de certo modo.

A virtualização da flauta, através do computador, é apenas uma forma

de nos lembrar que o instrumento é apenas mais uma interface. A mais

antiga, e por isso a que tem um maior desenvolvimento tecnológico, o que foi

decisivo para sua inclusão junto à eletroacústica pura. De fato, a obra mista

não apenas agrupou duas dimensões sonoras diferentes, como incorporou a

tradição técnica no instrumento, em favor da expressividade musical na

eletroacústica.

Hoje não devemos separar a flauta dos dispositivos técnicos, mas

considerar que estes dispositivos são uma extensão do instrumento ou até

mesmo utilizar o termo hiper-flauta em um contexto mais amplo, de um

instrumento virtualizado, associado ao computador. Se classificamos uma

flauta em virtude das suas características sonoras, a hiper-flauta pode ser

classificada por suas características enquanto interface: um instrumento que

se segura transversalmente, com embocadura livre, determinado dedilhado,

forma de produção do som através do sopro, etc. Identificar a flauta através

da resultante sonora não é mais possível neste contexto em decorrência da

capacidade de manipulação do som pelo computador.

Neste ambiente eletroacústico, a relação mais importante para o

intérprete é entre a flauta e o computador, que conforme o exposto pode se

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  141

dar de três maneiras: De uma forma quase passiva, no caso de obras em que

os meios eletroacústicos estão pré-gravados e não é possível sua

modificação, a não ser de forma indireta. Não podemos atuar diretamente

modificando as ações da eletroacústica pré-gravada, mas, através da ação

do intérprete, podemos criar resultantes sonoras diferentes, modificar

dinâmicas, andamentos, ritmos, impingir toda flexibilidade do instrumento ao

pré-gravado, dando a sensação de flexibilidade ao ouvinte. No entanto, não

podemos deixar de frisar que neste tipo de relação o intérprete tem que

seguir a eletroacústica.

Uma segunda forma de relacionamento é a do intérprete controlador,

na qual ele manipula os controles da máquina através de alguma interface.

Podemos dizer ser um tipo de controle mecânico, que pode se dar pelo

apertar de teclas no computador, ou de um pedal que aciona seus comandos.

Na função de controlador da máquina, o intérprete reverte sua posição em

relação à forma anterior, sendo agora o comandante das ações musicais.

Das formas de controle apresentadas, podemos dizer que o pedal tem uma

resposta mais fácil, basta apertar o dispositivo. Já o processo de score-

following, que funciona a partir dos sons emitidos pelo instrumento, necessita

de uma acuidade do intérprete no sentido de emitir as notas certas, com a

afinação e as dinâmicas pedidas, o que torna o processo a princípio mais

instável. No entanto, com o score-following temos quase uma situação de

música de câmara, em que um instrumento reage ao outro. A diferença é

sempre que o computador vai reagir ao intérprete, neste caso.

A interação é a terceira forma de relação entre intérprete e máquina.

Proporcionada pelo ambiente virtual do computador, neste caso há uma

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  142

reciprocidade, sendo o computador capaz de compreender e criar fatos

novos em função dos estímulos recebidos.

É importante notar que em nenhum caso temos dois intérpretes no

palco. Até então, considerando processos de interação digitais amplamente

acessíveis e não pesquisas de laboratório, consideramos os dispositivos

como uma nova parte da flauta, uma extensão que rompe com suas

potencialidades sonoras. Levando em conta a teoria de Adorno, não

podemos identificar um aspecto idomático próprio no computador, o que

existe é sempre emprestado do intérprete que está ao vivo ou de outro

qualquer, o que descredencia a máquina cérebro de uma posição de

intérprete de algo para o posto de uma ferramenta de valor inestimável a

serviço do concertista.

Para o uso desta ferramenta, o estudo das obras apresentadas

levantou algumas questões importantes para a construção da interpretação e

performance das obras mistas. Do ponto de vista da operação dos

dispositivos, é importante saber quais aspectos devem ser conhecidos pelo

intérprete e como este conhecimento pode produzir uma melhor execução

deste repertório. Ainda com relação ao uso dos dispositivos eletroacústicos,

foram levantadas questões sobre como ocorre a sincronização, o equilíbrio

entre o intérprete e a máquina e como o intérprete pode conduzir a máquina.

Mais do que respostas a estas questões, o importante é tomá-las

como as perguntas básicas que um intérprete deve fazer ao estudar este

repertório. O surgimento destas questões, recorrentes no repertório

apresentado, mostram a importância de um estudo, preliminar à performance,

que as responda minimamente. Em minha experiência como observador de

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  143

montagens de obras eletroacústicas, pude constatar um sem número de

problemas técnicos inesperados, que em grande parte das vezes prejudica

completamente um concerto.

A presença de um grande virtuose do instrumento, que não tenha

estudado minimamente a parte eletroacústica das obras, não garante uma

grande apresentação, necessariamente. Se consideramos os dispositivos

eletroacústicos como parte do instrumento, é preciso que se dispense a esta

parte um estudo, assim como se dispensa ao instrumento.

Mesmo com a presença de um técnico, que conheça profundamente

os aparelhos eletroacústicos, vimos casos em que o controle está na mão do

flautista, e que abdicar deste controle significa também abdicar do controle da

expressividade da música. Não é preciso ser um grande entendedor para

controlar o equilíbrio do volume, é muito comum esta função estar a cargo de

um técnico; porém, de que valem anos de estudo, se no momento da

performance o controle da dinâmica está nas mãos ou ouvidos de outra

pessoa? Por melhor que ela seja, é um outro intérprete, com seus aspectos

idiomáticos particulares. Se a função do intérprete é preencher lacunas

deixadas pela partitura, estas questões nos ajudam a compreender algumas

das perguntas que são levantadas pela eletroacústica, que acrescentam

novos aspectos na construção de uma interpretação de obras mistas.

A qualidade de memória e compreensão de símbolos de alguns

dispositivos eletroacústicos, em especial do computador, estende o conceito

de partitura. As informações armazenadas na máquina têm a mesma função

das contidas na partitura tradicional; ambas contêm instruções de quais

ações o intérprete deve executar para se obter a obra, a diferença é a forma

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  144

como se apresentam. Na escrita tradicional, ou mesmo nas partituras gráficas

desenvolvidas individualmente pelos compositores, o elemento simbólico é o

alicerce desta linguagem. No ambiente digital do computador temos listas de

números, em um nível mais submerso, e uma interface visual gráfica, que

pode ser vista através da tela, no nível mais superficial. Porém, os tipos de

escrita, simbólica ou digital, são interfaces lógicas para as idéias do

compositor com o intérprete. Melhor que a partitura é o traço, segundo a

teoria de Nattiez (1990), em que são reconhecidos neste nível não apenas os

objetos simbólicos, como a partitura tradicional, mas também quaisquer

outros que armazenem a obra em outro estado que não o sonoro.

Todos estes objetos, materiais ou não, incorporados à música de

concerto, operam mudanças na forma de interpretar e ouvir música.

Responder à pergunta sobre o equilíbrio entre intérprete e máquina pode

apontar neste sentido. Se a associação do intérprete com a fita magnética

tinha o objetivo de conferir uma maior expressividade, esta associação trouxe

uma importante questão: como tocar de forma que não tenhamos

simplesmente duas fontes sonoras sendo tocadas simultaneamente?

Cada obra mista é uma resposta a esta pergunta. Quando

comparamos a primeira obra Synchronisms nº1 (1963) com Towdah (2009),

identificamos uma diferença grande: o nível de mistura entre os sons, sejam

eles quais forem, aumenta consideravelmente. Na obra de Davidovsky,

apesar da qualidade da gravação não ser boa, ouvimos mais claramente uma

flauta solista acompanhada pela eletroacústica. O que não ocorre com a obra

de Oliveira, em que não há um ator principal, não temos vozes, mas sons em

permanente mutação, que se unem ou se separam gerando o movimento e

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  145

estruturando a forma musical, uma obra na qual tanto a dimensão acústica

como a eletroacústica atuam como protagonistas. Se Wagner apontou para a

necessidade de uma nova compreensão da interpretação da música em

função das necessidades da melodia clássica, a obra eletroacústica mista

pode representar uma outra opção que, ao contrário do destaque solista,

busque a fusão.

É importante sublinhar que vivemos em um momento histórico plural,

em que várias tendências e pensamentos diferentes coexistem em perfeita

harmonia, especialmente na arte. Isto quer dizer que a eletroacústica não vai

ditar uma nova forma de interpretar ou ouvir a música de concerto, mas

apenas sugerir uma possibilidade, que, por sinal, já ocorreu em outros

momentos da história da música.

Lévy diz que

“vivemos hoje em uma dessas épocas limítrofes na qual toda a antiga

ordem de representações e dos saberes oscila para dar lugar a

imaginários, modos de conhecimento e estilos de regulação social

ainda pouco estabilizados. Vivemos um destes raros momentos em

que, a partir de uma nova configuração técnica, quer dizer, de uma

nova relação com o cosmos, um novo estilo de humanidade é

inventado” (LÉVY, 1993, p. 7).

A eletroacústica é um sinal desta mudança da humanidade, ela traz

para a música novos sons, novos instrumentos e técnicas de se tocar, novas

formas de organizar as idéias composicionais. Ela não é muito tocada, mas é

impossível não considerar seus efeitos para a música e as práticas

interpretativas atuais.

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  146

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  151

9. ANEXOS

9.1 Lista de gravações das obras citadas (CD com as gravações na

próxima página)

1. Almas, de Felipe Amorim. Flauta: Felipe Amorim (7’35)

2. Três Janelas, de Felipe Amorim. Flauta: Felipe Amorim (9’04)

3. Synchronism nº1, de Mário Davidovsky. Flauta: Cynthia Folio (3’54)

4. A Escada Estreita, de João Pedro Oliveira. Flauta: Felipe Amorim

(8’29)

5. Entre o Ar e a Perfeição, de João Pedro Oliveira. Flauta: Felipe

Amorim; Piano: Ana Cláudia Assis. (9’05)

6. Towdah, de João Pedro Oliveira. Flauta: Felipe Amorim; Clarineta:

Flávio Ferreira; Piano: Ana Cláudia Assis; Percussão: Bruno Santos;

Regência: Rubner de Abreu (12’54)

7. NoaNoa, de Kaija Saariaho. Flauta: Camila Oitenga (8’52)

8. A Atra Praia de Saturno, de Rogério Vasconcelos. Flauta: Felipe

Amorim (9’58)

9.2 Lista de partituras das obras citadas (CD com os arquivos na

próxima página)

AMORIM, Felipe. Almas. Obra não editada. 2005.

____________. Três Janelas. Obra não editada. 2008.

DAVIDOVSKY. Mário. Synchronism nº1. New York, McGinnis & Max, 1977.

OLIVEIRA, João Pedro. A Escada Estreita. Obra não editada. 1999.

________________. Entre o Ar e a Perfeição. Obra não editada. 2009.

Page 163: Tese Felipe de Oliveira Amorim.pdf

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________________. Towdah. Obra não editada. 2009.

SAARIAHO, Kaija. NoaNoa. London, Chester Music, 1992.

VASCONCELOS, Rogério. A Atra Praia de Saturno. Obra não editada. 2002

Page 164: Tese Felipe de Oliveira Amorim.pdf

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9.3 CD com gravações das obras citadas 9.4 CD com arquivos das partituras em PDF das obras citadas