tese enrique padros

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA Enrique Serra Padrós Como el Uruguay no hay... TERROR DE ESTADO E SEGURANÇA NACIONAL Uruguai (1968-1985): do Pachecato à Ditadura Civil-Militar Tomo I Porto Alegre, 2005

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Tese do professor enrique padros que discute a ditadura no paraguay

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA

    Enrique Serra Padrs

    Como el Uruguay no hay... TERROR DE ESTADO E SEGURANA NACIONAL

    Uruguai (1968-1985): do Pachecato Ditadura Civil-Militar

    Tomo I

    Porto Alegre, 2005

  • 1

    UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA

    Como el Uruguay no hay... TERROR DE ESTADO E SEGURANA NACIONAL

    URUGUAI (1968-1985): DO PACHECATO DITADURA CIVIL-MILITAR

    ENRIQUE SERRA PADRS

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria do Instituto de Filosofia e Cincias Humanas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul,

    como requisito parcial para obteno do ttulo de Doutor em Histria.

    BANCA EXAMINADORA

    PROF. DR. ALEJANDRA LEONOR PASCUAL - UNB PROF. DR. JESSIE JANE VIEIRA DE SOUZA - UFRJ

    PROF. DR. SELVA LPEZ CHIRICO - UFSM PROF. DR. CLUDIA WASSERMAN - UFRGS

    PROF. DR. CARLOS SCHIMIDT ARTURI - UFRGS

    ORIENTADOR PROF. DR. CESAR AUGUSTO BARCELLOS GUAZZELLI

    Porto Alegre, 2005

  • 2 memria das vtimas

    das Ditaduras de Segurana Nacional.

    Aos sobreviventes que persistem na luta contra a desmemria,

    a impunidade e a injustia.

    Aos familiares, pela inesgotvel coragem

    diante da luta interminvel.

    ___________ NUNCA MAIS!

  • 3

    AGRADECIMENTOS

    1 - s matrizes dos meus afetos, presentes e ausentes. 2 - Aos malas e malinha. 3 - Ao Guazzelli, pela ORIENTAO, pelo apoio, pela confiana, pela tranqilidade, pela

    pacincia, porque gosta de quadrinhos... e porque no me deixou na mo! 4 - Ao PPG, seus coordenadores, funcionrios e professores, especialmente s Professoras

    Slvia e Helga, pelas aulas, pela dedicao e pela compreenso durante a tormenta. 5 - Aos colegas do Departamento de Histria, particularmente Professora Cludia

    Wasserman. 6 - Aos funcionrios da Biblioteca do IFCH/UFRGS, do Acervo da Luta contra a Ditadura, do

    SERPAJ, s gurias do Xerox.... 7 - A Laura Blsamo, do SERPAJ. 8 - Aos colegas e amigos da Comisso do Acervo da Luta contra a Ditadura. 9 - Aos amigos e torcedores. s guerreiras e aos guerreiros de sempre.

    10 - Aos sobreviventes: Aveline, Bona, Gutierrez, Lcia, Minhoca, Noeli e Suzana. 11 - Aos solidrios explorados: Alessandra, Ananda, ngela, Bruno, Daniela, Fabiana,

    Gabriela, Gerson, Hall, Jobim, Leopoldo, Milca, Rodrigo, Slvia, Vanderlise, Vicente, Vincius e aos guris do CD/AIB-PRP.

    12 - Aos companheiros do Curso de Arquivologia/UFRGS: Jorge Vivar, Alexandre, Eduardo e

    Valria. 13 - Cludia Antunes, ao Daniel Caon, ao Daniel Milke, ao Ivonei Freitas da Silva, ao Jorge

    Fernndez e Renata Chimango Fonseca pela inestimvel ajuda, pela parceria, pelo estmulo e pelas indiadas compartidas.

    14 - Caroline Bauer, pela riqussima parceria rioplatense (intelectual,

    bibliogrfica/filmogrfica e afetiva) e por me permitir conviver e contaminar com a sua rebeldia, ousadia e indignao.

    15 - Sempre! Vera Cohen e ao Dario Ribeiro, los ms grandes. Siempre!

  • 4

    Fotografia: Annabella Balduvino Texto: Carlos Caillabet

    No son solo memoria, son vida abierta,

    son camino que empieza y que nos llama

    Cantan conmigo, conmigo cantan.

    Daniel Viglietti

  • 5

    RESUMO

    O presente trabalho analisa a ditadura civil-militar uruguaia (1973-1984) a partir da perspectiva da poltica de Terror de Estado, mecanismo implementado para aplicar as premissas da Doutrina de Segurana Nacional e defender os interesses dos setores dominantes locais. Da mesma forma, possibilitou o disciplinamento da fora de trabalho, exigncia implcita nas novas demandas do capitalismo mundial, o que significou, na prtica, a destruio do questionamento social e das manifestaes por mudanas promovidas pelas distintas organizaes populares nos anos 60 e 70. Este perodo, alis, foi marcado, na Amrica Latina, tanto pela efervescncia produzida pela Revoluo Cubana quanto pelo esforo dos EUA em disseminar as concepes contra-insurgentes e reforar a pentagonizao regional. Foi durante as administraes de Pacheco Areco e de Bordaberry (1968-1973), marcadas por acentuada guinada autoritria ainda em regime democrtico, que comearam a ser aplicadas determinadas prticas repressivas de Terror de Estado, fato que se projetou, ampliou e consolidou posteriormente, com o regime de exceo. O objetivo norteador da pesquisa foi estudar o conceito de Terror de Estado e analisar sua aplicao na experincia concreta da ditadura uruguaia enquanto metodologia de atuao de um sistema repressivo complexo que abrangeu as mltiplas dimenses da sociedade. Assim, procurou-se destacar a diversidade e articulao das diferentes modalidades de atuao implementadas: a interdio do Poder Legislativo; a subordinao do Poder Judicirio Justia Militar; a proibio de partidos polticos, sindicatos e organizaes sociais; a interveno no sistema de ensino; a imposio de uma poltica global de censura; a iniciativa de refundao societria; a subjugao e destruio do inimigo interno; a aplicao de aes contra-insurgentes (a tortura, o grande encarceramento, a poltica de refns e os seqestros seguidos de desaparecimentos forados); etc. A participao ativa uruguaia na conexo repressiva internacional (Operao Condor) expressou o deslocamento da violncia estatal da guerra interna contra os ncleos exilados nos pases vizinhos. Em sntese, a dinmica imposta caracterizou o Terror de Estado implementado no Uruguai como sendo abrangente, prolongado, indiscriminado, preventivo, retroativo e extraterritorial alm de conter pretenses pedaggicas e ser gerador de seqelas que se projetaram no perodo democrtico posterior. PALAVRAS-CHAVE: Ditadura uruguaia: Histria. Terror de Estado. Doutrina de Segurana

    Nacional. Regimes repressivos.

  • 6

    ABSTRACT This paper intends to analyse the Uruguayan civil-military dictatorship (1973 1984) from the perspective of the State Terror policy, mechanism implemented to apply the premiss of the National Security Doctrine and to defend the local dominant groups interests. In the same way it made possible to discipline the workforce, an implicit requirement of the new world capitalism demands, and that meant the destruction of the social questioning and the demonstrations for changes promoted by different popular organizations in the 60s and 70s. This period, as a matter of fact, was marked in Latin America as much by the agitation produced by the Cuban Revolution, as the North American effort to spread the counterinsurgents conceptions and to reinforce the USA influence in the region. It was during the Pacheco Areco and Bordaberry governments (1968-1973), characterized by a strong turn towards authoritarism even in a democratic regime, that some repressive practices of State Terror started to be implemented. These practices were projected, enlarged and consolidated subsequently, during the authoritarian regime. The main aim of this paper was to study the concept of State Terror and analyses its application in the Uruguayan dictatorship experience, as an acting metodology of a complex repressive system which covered the multiple dimension of the society. Thus, it was intended to emphasize the diversity and the articulation of the different ways of acting implemented: the injunction in the Parliament; the subordination of the Judiciary to the Military Justice; the prohibition of political parties, trade unions and social organizations; the intervention in the educacional system; the imposition of a global censorship policy; the establishment of a new social order; the subjugation and destruction of the internal enemy; the application of counterinsurgents measures (the torture, the grande encarceramento, the hostage policy and the kidnappings followed by disappearance); etc. The effective Uruguayan participation in the international repressive connection (Condor Operation) expressed the movement from the internal war state violence to an action against the exiled activists in neighbour countries. Briefly, the strategies implemented characterized the Uruguayan Terror State as being extensive, prolonged, indiscriminate, preventive, retroactive, and beyond territorial limits, besides having pedagogical intentions and producing sequels in the subsequent democratic period.

    KEY WORDS: Uruguayan dictatorship - History. State Terror. National Security Doctrine. Repressive Regimes.

  • 7

    LISTA DE ANEXOS

    ANEXO I - Vista al frente ANEXO II - A simbologia das susticas: violncia de extrema-direita

    nos anos 60 ANEXO III - Cuando un amigo se va... - Embarque do corpo de Dan

    Mitrione ANEXO IV - Constancia de Allanamiento ANEXO V - Presidente Bordaberry, aps os acontecimentos de

    fevereiro de 1973 ANEXO VI - Encapuchados ANEXO VII - Medo, insegurana, desconfiana... ANEXO VIII - Inimigos internos? ANEXO IX - Charge de Santiago ANEXO X - No olho do furaco

  • 8

    LISTA DE SIGLAS

    AAA (ou Triple A): Alianza Anticomunista Argentina - (AR). ACNUR: Alto Comissariado das Naes Unidas para Refugiados AEBU: Associacin de Empleados Bancrios del Uruguay - (UY) AFE: Administracin de Ferrocarriles del Estado - (UY) AI: Acto Institucional - (UY) AI-5: Ato Institucional N 5 - (BR) AID: Agncia Internacional de Desenvolvimento - (EUA) ALN: Ao Libertadora Nacional - (BR) ALPRO: Aliana para o Progresso - (EUA) ANCAP: Administracin Nacional de Combustibles, lcohol y Portland - (UY) ANTEL: Administracin Nacional de Telecomunicaciones - (UY) ASCEEP: Asociacin Social y Cultural de Estudiantes de la Enseanza Pblica - (UY) CDPPU: Comit de Defensa por los Prisioneros Polticos del Uruguay - (UY) CIA: Agncia Central de Inteligncia - (EUA) CIDE: Comisin de Inversiones y Desarrollo Econmico - (UY) CIEX: Centro de Informao do Exrcito (BR) CIOSL: Confederacin Internacional de Organizaciones Sindicales Libres CMI: Complexo Militar-Industrial - (EUA) CNT: Convencin Nacional de Trabajadores - (UY) COHA: Council on Hemispheric Affairs - (EUA)

    CONADEP: Comisin Nacional sobre el Desaparecimiento de Personas - (AR) CONAE: Consejo Nacional de Educacin - (UY) CONSUPEN: Consejo Superior de Enseanza - (UY)

  • 9COSENA: Consejo de Seguridad Nacional - (UY) CSU: Confederacin Sindical del Uruguay - (UY) DII: Departamento de Informacin e Inteligencia - (UY) DINA: Direccin de Inteligencia Nacional - (CH) DINARP: Direccin Nacional de Relaciones Pblicas - (UY) DOP: Departamento de Orden Poltico (BO) DOPS: Departamento de Ordem Poltica e Social - (BR) DSN: Doutrina de Segurana Nacional ERP: Ejrcito Revolucionario del Pueblo - (AR) ESEDENA: Escuela Superior de Seguridad y Defensa Nacional - (UY) ESMA: Escuela de Mecnica de la Armada - (AR) ESMACO: Estado Mayor Conjunto - (UY) ESNI: Escola Nacional de Informaes (BR) EUA: Estados Unidos da Amrica FARO: Frente Armado de Revolucin Oriental - (UY) FAU: Federacin Anarquista Uruguaya - (UY) FBI: Departamento Federal de Investigaes - (EUA) FEUU: Federacin de Estudiantes Universitarios del Uruguay - (UY) FIDEL: Frente Izquierdista de Liberacin - (UY) FLN: Frente de Libertao Nacional - (Arglia) FUSNA: Fusileros Navales - (UY) GAU: Grupos de Accin Unificadora - (UY) ICEX: Programa de Coordenao e de Explorao da Informao - (EUA) IPA: Academia Internacional de Polcia - (EUA) JCJ: Junta de Comandantes en Jefe - (UY)

  • 10JCR: Junta Coordenadora Revolucionria JID: Junta Interamericana de Defesa JUP: Juventud Uruguaya de Pi - (UY) MAP: Programa de Assistncia Militar - (EUA) MAPU: Movimiento de Accin Popular Uruguaya - (UY) MDB: Movimento Democrtico Brasileiro - (BR) MILGP: Grupo Militar - (EUA) MIR: Movimiento de Izquierda Revolucionaria - (CH) MJDH: Movimento de Justia e Direitos Humanos - (BR) MLN (ou MLN-T): Movimiento de Liberacin Nacional - Tupamaros - (UY) MPS: Medidas Prontas de Seguridad - (UY) MRO: Movimiento Revolucionario Oriental - (UY) NN: Nacht und Nebel (Noite e Nevoeiro) - (Alemanha Nazista). Tambm: Ningn nombre

    (corpo sem identificao) NSC: National Security Council (Conselho de Segurana Nacional) - (EUA) OAB: Ordem dos Advogados do Brasil - (BR) OBAN: Operao Bandeirantes - (BR) OCOA: Organismo Coordinador de Operaciones Antisubversivas - (UY) OEA: Organizao dos Estados Americanos OIT: Organizao Internacional do Trabalho OLAS: Organizao Latino-Americana de Solidariedade ONU: Organizao das Naes Unidas OPR 33: Organizacin Popular Revolucionria - (UY) ORIT: Organizao Regional Interamericana do Trabalho OSE: Obras Sanitarias del Estado - (UY) PCU: Partido Comunista del Uruguay - (UY)

  • 11 PDC: Partido Demcrata Cristiano - (UY) PIT: Plenario Intersindical de Trabajadores - (UY) PSP: Programa de Segurana Pblica - (EUA) PVP: Partido por la Victoria del Pueblo - (UY) RNS: Registro Nacional de Sindicatos - (UY) ROE: Resistencia Obrera Estudantil - (UY) RUSHA: Departamento Superior da Raa e Povoamento - (Alemanha Nazista) SA: Tropas de Assalto - (Alemanha Nazista) SERPAJ: Servicio Paz y Justicia - (UY) SID: Servicio de Inteligencia de Defensa - (UY) SIDE: Servicio de Inteligencia del Estado - (AR) SIJAU: Secretariado Internacional de Juristas por la Amnista en el Uruguay - (UY) SN: Segurana Nacional SNI: Servio Nacional de Informao - (BR) SOPS: Seo de Ordem Poltico e Social - (BR) SS: Tropas de Proteo - (Alemanha Nazista) SUNCA: Sindicato nico Nacional de la Construccin y Afines - (UY) TAMU: Transporte Areo Militar Uruguayo - (UY) TDE: Terror de Estado TIAR: Tratado Interamericano de Assistncia Recproca UGT: Unin General de los Trabajadores - (UY) UNESCO: United Nations Educational, Scientifc and Cultural Organitation UTE: Usinas y Telfonos del Estado - (UY) UTU: Universidad del Trabajo - (UY) URSS: Unio das Repblicas Socialistas Soviticas

  • 12 VCI: Viet Cong Infraestrutura - (EUA) VPR: Vanguarda Popular Revolucionaria - (BR)

  • 13

    SUMRIO GERAL

    TOMO I

    INTRODUO...................................................................................................... 16 Captulo 1 - TERROR DE ESTADO................................................................... 52 1.1 - DOUTRINA DE SEGURANA NACIONAL E TERROR DE ESTADO..................... 52 1.2 - TERROR DE ESTADO: APROXIMAO CONCEITUAL.......................................... 59 1.2.1 - Terrorismo....................................................................................................................... 59 1.2.2 - Estado, violncia estatal e Terror de Estado................................................................... 63 1.2.3 - A violncia estatal na historiografia sobre as Ditaduras de Segurana Nacional........... 76 1.3 - CARACTERIZAO DO TERROR DE ESTADO ....................................................... 85 1.3.1 - Objetivos e elementos essenciais do Terror de Estado................................................... 94 1.4 - O TERROR DE ESTADO NA AMRICA LATINA...................................................... 106 1.4.1 - A conexo EUA Amrica Latina................................................................................. 117 Captulo 2 - OS ESTADOS UNIDOS E A PENTAGONIZAO

    DA AMRICA LATINA ............................................................... 124

    2.1 - AMRICA LATINA: REFORMA, REVOLUO E CONTRAREVOLUO

    NOS ANOS 60.................................................................................................................. 131

    2.2 - OS MECANISMOS DA PENTAGONIZAO DA AMRICA LATINA...................... 148 2.2.1 - O Complexo Militar-Industrial: a influncia estratgico-econmica............................. 164 2.2.2 - A Doutrina de Segurana Nacional: a influncia ideolgica.......................................... 184 2.2.3 - As Escolas Militares: a influncia militar....................................................................... 205 2.2.4 - A CIA: a interveno encoberta...................................................................................... 228 2.2.5 - A Aliana para o Progresso e a Misso Rockefeller: a influncia

    poltico-econmica.......................................................................................................... 241

    Captulo 3 - DO PACHECATO AO GOLPE DE ESTADO: TERROR

    DE ESTADO EM GESTAO (1968-1973)................................. 256

    3.1 - CRISE E ESGOTAMENTO DO MODELO SUIA DA AMRICA............................... 266 3.2 - A ESCALADA AUTORITRIA DO PACHECATO...................................................... 272 3.2.1 - Escalada Autoritria e Medidas Prontas de Seguridad ................................................. 274 3.2.2 - Fermentao social: os alvos do Terror de Estado em gestao..................................... 282 a) A Frente Ampla............................................................................................................ 284

  • 14 b) O Movimento de Libertao Nacional-Tupamaros.................................................... 289 c) A Convencin Nacional de Trabajadores.................................................................... 299 d) O Movimento Estudantil.............................................................................................. 302 3.3 - O PROCESSO ELEITORAL DE 1971............................................................................ 307 3.3.1 - Amigo Externo contra Inimigo Interno? O fator Brasil.......................................... 316 3.4 - A GESTAO DO GOLPE DE ESTADO...................................................................... 336 3.4.1 - A administrao Bordaberry: da eleio ao golpe de Estado......................................... 337 3.4.2 - A ascenso militar ao poder............................................................................................ 348 Captulo 4 - A CONSOLIDAO DO TERROR DE ESTADO:

    A DITADURA DE SEGURANA NACIONAL URUGUAIA .... 376

    4.1 - ESBOO HISTRICO DO PERDO DITATORIAL.................................................... 377 4.1.1 - A consolidao da Ditadura (1973-1976)....................................................................... 377 4.1.2 - O ensaio fundacional (1976-1980)................................................................................. 391 4.1.3 - A procura da sada negociada (1980-1984).................................................................... 396 4.2 - A DOUTRINA DE SEGURANA NACIONAL............................................................ 408 4.2.1 - Antecedentes................................................................................................................... 409 4.2.2 - A doutrina no Uruguai: princpios e aplicao............................................................... 413 4.2.3 - Caractersticas................................................................................................................. 425

    TOMO II Captulo 5 - DITADURA MILITAR E TERROR DE ESTADO

    INSTITUDO .................................................................................. 441

    5.1 - A ABRANGNCIA DO TERROR DE ESTADO........................................................... 443 5.2 - A LEGISLAO REPRESSIVA..................................................................................... 448 5.3 - A JUSTIA MILITAR E A MILITARIZAO DA JUSTIA..................................... 470 5.4 - REPRESSO E CONTROLE CULTURAL.................................................................... 488 5.5 - REPRESSO E MILITARIZAO DO ENSINO......................................................... 509 Captulo 6 - MODALIDADES PARTICULARES DO TERROR DE

    ESTADO URUGUAIO ................................................................... 539

    6.1 - O GRANDE ENCARCERAMENTO........................................................................... 541 6.2 - A POLTICA DOS REFNS............................................................................................ 563 6.3 - A POLTICA DA TORTURA MASSIFICADA.............................................................. 582

  • 15

    Captulo 7 - A POLTICA DOS DESAPARECIMENTOS E O TERROR DE ESTADO ...................................................................................

    613

    7.1 - ANTECEDENTES HISTRICOS DA POLTICA DE DESAPARECIMENTOS......... 613 7.1.1 - Um caso em aberto: os desaparecidos da Espanha franquista..................................... 615 7.1.2 - O Decreto Noite e Nevoeiro nazista............................................................................... 618 7.1.3 - A Batalha de Argel: a represso colonial francesa......................................................... 628 7.1.4 - Banhos de Sangue e desaparecimentos no Vietn....................................................... 635 7.2 - A METODOLOGIA DOS DESAPARECIMENTOS...................................................... 640 7.2.1 - O conceito de desaparecido............................................................................................ 640 7.2.2 - O desaparecimento como sistema................................................................................... 653 7.3 - O DESAPARECIMENTO COMO PRTICA DO TERROR DE ESTADO.................. 672 7.3.1 - Os desaparecidos uruguaios............................................................................................ 676 7.3.2 - A dinmica dos desaparecimentos no Uruguai............................................................... 683 Captulo 8 - CONEXES EXTERNAS: A COORDENAO

    REPRESSIVA.................................................................................. 702

    8.1 - A REPRESSO EXTRATERRITORIAL........................................................................ 704 8.2 - CONEXES ANTERIORES S DITADURAS DE SEGURANA NACIONAL........ 708 8.3 - O URUGUAI NO MARCO DA OPERAO CONDOR............................................... 715 8.4 - NO OLHO DO FURACO: URUGUAIOS REPRIMIDOS NO

    EXTERIOR, ESTRANGEIROS REPRIMIDOS NO URUGUAI.................................... 734

    8.4.1 - Coordenao repressiva em Porto Alegre: o caso Lilian Universindo..................... 755 8.5 - A POLTICA DE APROPRIAO DE CRIANAS...................................................... 766 8.6 - OS ESTADOS UNIDOS DIANTE DA INTERNACIONALIZAO

    REPRESSIVA................................................................................................................... 790

    CONCLUSO........................................................................................................ 807 ARQUIVOS E FONTES CONSULTADAS.......................................................... 840

  • 16

    INTRODUO

    A poltica de Terror de Estado (TDE) implementada pela ditadura civil-militar

    uruguaia (1973-1984) foi o mecanismo utilizado para aplicar as premissas da Doutrina de

    Segurana Nacional (DSN), visando defender os interesses dos setores dominantes locais e do

    capital estrangeiro e destruir as tendncias de questionamento social e de exigncia de

    mudana estrutural promovidas pelas organizaes populares. Essa experincia teve paralelo,

    concretamente, nos regimes semelhantes que se disseminaram pelo Cone Sul latino-

    americano, entre as dcadas de 1960 e 1980.1

    A problemtica sobre as ditaduras cvico-militares de Segurana Nacional (SN), na

    regio, tem sido recorrentes. Seu estudo mantm vigncia diante da necessidade de responder

    aos muitos questionamentos, particularmente dos formulados pelas organizaes de direitos

    humanos, no que diz respeito aos fatos vinculados ao TDE, bem como permanncia de

    feridas produzidas pela impunidade e pela ausncia de esclarecimentos, sobretudo nos casos

    de desaparecimento. Nos ltimos anos, tornaram-se pblicos depoimentos de quadros

    envolvidos no aparato repressivo, que, dependendo de cada caso nacional (Argentina,

    Uruguai, Chile, Brasil e Paraguai), oscilam entre um tnue arrependimento, a justificativa da

    obedincia devida ou a reafirmao anticomunista. O aumento da visibilidade da problemtica

    atravs do Caso Pinochet (desde sua polmica deteno em Londres), as novas descobertas

    sobre a Operao Condor e a desclassificao de documentos da Agncia Central de

    Inteligncia (CIA) e do Departamento de Estado dos Estados Unidos relacionados queles

    eventos2 confirmam os esquemas repressivos das respectivas ditaduras, as conexes entre si e

    a co-responsabilidade dos Estados Unidos da Amrica (EUA), em todo este processo.

    Igualmente, contribuem para valorizar a retomada da centralidade dos estudos e das

    exigncias de esclarecimentos sobre os regimes de Segurana Nacional (SN) e a persistncia

    na luta pelo esclarecimento do seqestro de crianas nos pases platinos -, especificamente, no

    caso uruguaio, a resoluo dos casos de Simn Riquelo e da neta do poeta argentino Juan

    Gelman.

    1 Referncia explcita s ditaduras de Segurana Nacional do Brasil (1964-1985), Argentina (1976-1984), Chile (1973-1989) e Paraguai (nos anos 70 e 80). 2 Em relao ditadura uruguaia, foram divulgados, em 2002, um conjunto de mais de 800 documentos, todos vinculados, entretanto, represso argentina.

  • 17

    necessrio reconhecer tambm que a dinmica neoliberal na regio, desde os anos

    80, derrotou as tentativas de resistncia a ela; ao procurar as razes mais profundas de tal

    desfecho, identificam-se importantes nexos e continuidades entre os regimes de SN e os

    processos posteriores de redemocratizao, o que, sem dvida, tem estimulado a retomada

    e/ou ampliao dos estudos sobre aqueles regimes civis-militares. A permanncia do entulho

    autoritrio, presente tanto no processo de redemocratizao quanto nesse cenrio neoliberal,

    contribuiu para a fragilizao dos regimes democrticos.3 Paradoxalmente, certas empresas de

    comunicao que apoiaram e se beneficiaram daquelas experincias realizam uma

    redescoberta desse passado recente, reciclando-o para descomprometer e desconectar

    responsabilidades de agentes histricos (polticos, empresariais e militares) que tm

    permanecido na vitrine do cenrio poltico.

    A produo historiogrfica e as reflexes de reas afins sobre as ditaduras de SN na

    Amrica Latina sobretudo a uruguaia foram praticamente inviabilizadas durante as

    mesmas. As duras condies de sobrevivncia, o patrulhamento ideolgico, a proibio

    explcita e a autocensura foram empecilhos que restringiram o debate. A censura sobre os

    meios de comunicao comprometidos com posies crticas, a interveno nas redes de

    ensino, o controle dos programas de contedo reflexivo e a perseguio de docentes e de

    estudantes que se opunham lgica dos novos regimes marcaram a expanso autoritria. A

    prpria temtica Amrica Latina foi alvo de interdio, principalmente sua histria recente.4

    Em funo das dificuldades internas diante da ausncia de liberdade restringindo os

    direitos polticos e a democracia representativa, surgiram, no final dos anos 70, os primeiros

    debates sobre o carter das referidas ditaduras como o grande frum promovido pela Revista

    Mexicana de Sociologa.5 Neste espao, debateu-se intensamente a validade ou no da

    aplicao do conceito fascismo latino-americano na realidade dos pases enquadrados pelas

    ditaduras de SN.6 A partir da identificao de uma srie de caractersticas que se

    consideravam comuns quelas experincias clssicas de entreguerras, elaborou-se uma teoria

    3 PETRAS, James. Amrica Latina: pobreza de la democracia y democracia de la pobreza. Rosario: Homo Sapiens Ediciones, 1995. 4 Cabe mencionar o papel importante de certos meios de comunicao que, intermitentemente, sob censura parcial e ameaados de proibio definitiva, persistiram em ressaltar s mazelas da realidade latino-americana. Da mesma forma, enquanto as universidades sofriam interveno e diversas formas de controle, a obra As veias abertas da Amrica Latina, do jornalista Eduardo Galeano, circulava nas redes clandestinas e iniciava uma gerao de latino-americanos na leitura crtica do processo histrico continental. 5 Revista Mexicana de Sociologa, Mxico, v. 39, n 1 e 2, 1977. 6 Participaram do debate, entre outros, Agustn Cueva (La cuestin del fascismo), Atilio Born (El fascismo como categora histrica: en torno al problema de las dictaduras en Amrica Latina), Liliana de Riz (Algunos problemas terico-metodolgicos en el anlisis sociolgico y poltico de Amrica Latina), Theotnio dos Santos (Sociologa y fascismo en Amrica Latina hoy) e Ren Zavaleta Mercado (Nota sobre fascismo, dictadura y coyuntura de disolucin).

  • 18

    explicativa sistematizada, principalmente, por Agustn Cueva.7 Essa abordagem recebeu uma

    diversidade de adjetivaes, expresso de divergncias quanto aos critrios condutores da

    anlise8 sendo, tambm, resultado de uma nfase militante que visava contribuir na denncia

    e na resistncia frente s situaes limite vivenciadas na Amrica do Sul.9 O caso uruguaio

    contou, nessa polmica, com as contribuies, entre outros, de Rdney Arismendi10, Carlos

    Rama11, e Eduardo Gitli.12

    No transcorrer dos anos 80, outro modelo explicativo ganhou espao, assentado nas

    reflexes realizadas por autores como Juan Linz13 e Stanley Payne14 sobre as ditaduras de

    ps-guerra, no sul da Europa (Espanha, Portugal e Grcia), assim como suas transies

    democracia. Dessa base de conhecimento resultante de estudos comparativos e da elaborao

    de tipologias, surgiu, como uma das principais contribuies, a proposio do modelo

    burocrtico-autoritrio de Guillermo ODonnel.15 O mesmo delineava um Estado

    caracterizado por forte presena tecnocrata e por responder acentuada ativao poltica

    popular existente nos cenrios anteriores aos golpes de Estado do Cone Sul. Enquanto modelo

    explicativo, mostrou-se mais aberto s especificidades das ditaduras latino-americanas,

    contrapondo-se, no debate terico, ao esquematismo do uso da categoria fascismo.

    Dentro dos enfoques que pautaram o estudo dos casos de ditaduras de SN, medida

    que os processos de abertura poltica possibilitaram a recuperao de direitos, os subtemas

    relacionados com as questes econmicas e com as formas de Estado ocuparam a centralidade

    da produo historiogrfica. Um tema que parecia vigoroso nos ltimos anos de quase todas

    as ditaduras, mas que logo se esvaziou parcialmente, foi o referente questo dos direitos

    7 CUEVA, Agustn. La cuestin del fascismo. Revista Mexicana de Sociologa, Mxico, v. 39, n 2, p. 469-480, abr./jun. 1977. 8 Na medida em que o foco central variava, entre os defensores da categoria de fascismo latino-americano, apontava-se um fascismo dependente, fascismo primrio, fascismo tpico, fascismo subdesenvolvido, neofascismo, etc. REVELLO, Cecilia; PORRINI, Rodolfo; SCHOL, Alexis. Las Dictaduras Militares en Amrica Latina. Montevideo: Las Bases, 1986. p. 33. FERNNDEZ, Wlson. El gran culpable. La responsabilidad de los EE.UU. en el Proceso militar uruguayo. Montevideo: Atenea, 1986. p. 86. 9 Agustn Cueva, em uma palestra proferida em Porto Alegre, na segunda metade dos anos 80, reconheceu a inadequao explicativa da aplicao da teoria de fascismo realidade das ditaduras de SN latino-americanas. Avaliou que tal abordagem era resultado das difceis condies existentes no momento e do clima que se vivia nos pases atingidos pelas ditaduras e nas comunidades exiladas. Entretanto, feita essa avaliao, destacou a importncia poltica produzida por tal debate, contemporneo das prprias ditaduras, o que permitiu denunci-las, gerando desdobramentos que se somavam a outras manifestaes de resistncia democrtica. 10 ARISMENDI, Rdney. A revoluo latino-americana. Lisboa: Avante, 1977. 11 RAMA, Carlos. Uruguay: de los tupamaros a los militares. Cuadernos Americanos. Mxico, no 4, 1973. 12 GITLI, Eduardo. Uruguay: del fin de la utopa a la independencia. Cuadernos Americanos. Mxico, n o 5, 1976. 13 LINZ, Juan. Regimes Autoritrios. In: ODONELL, Guillermo; LINZ, Juan; HOBSBAWM, Eric; JONG, Rudolf de. O Estado Autoritrio e os Movimentos Populares. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. 14 PAYNE, Stanley G. El fascismo. Madrid: Alianza Editorial, 1982. 15 As teses de Guillermo ODonell foram incorporadas, mesmo que parcialmente, por importantes especialistas como Liliana de Rz, Felisberto Gonzlez e Atlio Born.

  • 19

    humanos. Apesar do grande impacto produzido pela onda da elaborao dos relatrios Nunca

    Mais16 e das revelaes e depoimentos que vieram a pblico, a aprovao, por parte do

    sistema poltico, da anistia para os responsveis pelos crimes de Estado cometidos durante as

    ditaduras e a reverso das expectativas de esclarecimento (implcitas na consigna Verdade e

    Justia) reintroduziram uma situao de paralisia e de medo da sociedade civil diante da

    permanncia da impunidade. Em termos prticos, com algumas variveis em cada pas, a

    destruio de documentos, a impossibilidade do acesso pblico aos mesmos e a ameaa fsica,

    verbal ou judicial contra as vtimas daqueles regimes fizeram com que a temtica do Terror de

    Estado e das mltiplas formas de violncia estatal fossem pouco estudadas. A exceo foi a

    atitude das organizaes de direitos humanos, que, atravs de trabalhos multidisciplinares,

    assumiram o confronto pela memria e contra o esquecimento induzido.

    No Uruguai, uma das primeiras obras a tratar dessa temtica foi Os Desaparecidos -

    a Histria da Represso no Uruguai, importante e qualificada contribuio de Baumgartner,

    Durn Matos & Mazzeo.17 Apesar dos seus muitos mritos, falta a ela, todava, a

    especificidade da anlise histrica. importante salientar que, no fim da dcada de 90, a

    descoberta ou disponibilizao de novos arquivos, acompanhado da retomada de um

    posicionamento mais crtico de setores da populao dos pases do Cone Sul em relao

    responsabilizao jurdica dos crimes de Terror de Estado, recolocaram a temtica como

    objeto de pesquisa.18

    A clivagem do aprofundamento da Guerra Fria e sua maior visibilidade na regio, a

    partir dos anos 60, em funo da Revoluo Cubana e dos seus desdobramentos, exigem a

    anlise das diretrizes basilares da poltica externa estadunidense para a Amrica Latina. Entre

    elas, a proposta de Desenvolvimento e Segurana que pautou a criao da Aliana para o

    Progresso (1961) e a poltica de Contra-insurgncia (pentagonizacin19 das Foras Armadas),

    16 Argentina (CONADEP. Nunca mais. Informe da Comisso Nacional Sobre o Desaparecimento de Pessoas na Argentina. Porto Alegre: L&PM, s.d.). Brasil (Brasil: nunca mais. Petrpolis: Vozes, 1986.). Uruguai (SERPAJ. Uruguay Nunca Ms. Informe Sobre la Violacin a los Derechos Humanos (1972-1985). Montevideo: SERPAJ, 1989.). Chile (COMISIN NACIONAL DE VERDAD Y RECONCILIACIN. Informe Rettig. Santiago: 1991.). O relatrio argentino veio a pblico em 1984, o brasileiro em 1986, o uruguaio em 1989 e o chileno em 1991. 17 BAUMGARTNER, Jos Luis; DURAN MATOS, Jorge; MAZZEO, Jorge. Os desaparecidos. A histria da represso no Uruguai. Porto Alegre: Tch, 1987. 18 As discusses e as pesquisas atuais referentes Amrica Latina privilegiam, principalmente, temas vinculados insero da regio no atual processo de mundializao como integrao, neoliberalismo, narcotrfico, transio democrtica, etc. Entretanto, medida que cresce o distanciamento cronolgico e que novas fontes documentais so disponibilizadas aos pesquisadores, os estudos sobre o perodo e outros subtemas vinculados s ditaduras de SN ganham espao como objetos de divulgao jornalstica e de produo cientfica. 19 Vista como subordinao das Foras Armadas locais e tambm como possibilidade de ampliao de lucros. Segundo Gabriel Ramirez , o pentagonismo o complexo militar que, perpassando todos os nveis da sociedade norte-americana, projeta-se para o exterior visando manter a hegemonia mundial dos EUA. Diz Ramirez: El

  • 20

    ambas inseridas na estratgia de resposta flexvel (contendo a possibilidade de implementao de

    todo tipo de ao) que perpassou as administraes Kennedy, Johnson e Nixon.

    Os conceitos bsicos elaborados dentro do pensamento da Doutrina de Segurana

    Nacional (inimigo interno, guerra interna, subverso, contra-insurgncia, Estado como

    ser vivo, objetivos nacionais, etc.) foram disseminados pelos pases da regio atravs de

    diversos mecanismos de transmisso (doutrinao militar, acordos na rea do ensino, bens de

    consumo da indstria cultural). A eles fazem referncia as obras de autores como Vivian Trias20,

    Ramirez21, Ianni22, Selser23, Julien24, Chomsky25 e Chomsky & Herman.26 Quanto s anlises

    das vinculaes da superpotncia com as ditaduras civis-militares, acrescentam-se as

    contribuies de Huggins27, Boersner28, Baumgartner & Durn29, Schoultz30 e Prudencio

    Garca.31

    No Uruguai, com o aprofundamento da crise poltico-econmica dos anos 60, aquelas

    diretrizes e orientaes ganharam espao no embate pblico, sendo alvo de intensos debates na

    imprensa escrita e no mundo editorial. O jornalista Carlos Quijano, diretor do semanrio Marcha

    e dos Cuadernos de Marcha, foi um dos principais artfices do debate que marcou o perodo

    compreendido entre a administrao de Jorge Pacheco Areco (o autoritrio Pachecato) e a

    deflagrao do golpe de Estado em 1973, a partir do qual a censura imposta oposio fez com

    que s o oficialismo pudesse expor sua verso dos fatos. O novo regime divulgou obras de

    flego e de cunho doutrinrio que, publicadas em larga escala para os padres uruguaios,

    tentaram impor uma histria oficial resultante da leitura, interpretao e aplicao dos princpios

    pentagonismo se afianza dentro y fuera de fronteras, cumpliendo entonces objetivos dobles: balas, tanques, aviones, barcos, se fabrican en el pas pentagonista y all mismo se recogen los fabulosos dividendos que producen los contratos; pero ms lejos, all donde los materiales son utilizados para sembrar destruccin y muerte, un nuevo puesto de avanzada imperialista se establece y mayores ganancias se acumulan a favor del poder agresor. RAMIREZ, Gabriel. El Factor Militar. Gnesis, desarrollo y participacin poltica. Montevideo: Arca, 1988. p. 15. 20 TRIAS, Vivian. Imperialismo y geopoltica en Amrica Latina. Montevideo: El Sol, 1967. TRIAS, Vivian. Historia del imperialismo norteamericano. Buenos Aires: Pea Lillo, 1975. 3o vol. 21 RAMIREZ, Gabriel. Las Fuerzas Armadas uruguayas en la crisis continental. Montevideo: Tierra Nuestra, 1971. 22 IANNI, Octavio. Imperialismo e cultura. Petrpolis: Vozes, 1979. 23 SELSER, Gregorio. CIA: De Dulles a Raborn. Buenos Aires: Ediciones de Poltica Americana, 1967. 24 JULIEN, Claude. El imperio americano. Mxico: Grijalbo, 1969. 25 CHOMSKY, Noam. Ao 501. La conquista contina. Madrid: Libertarios/Prodhufi, 1993. 26 CHOMSKY, Noam; HERMAN, Edward. Banhos de sangue. So Paulo: Difel, 1976. 27 HUGGINS, Martha K. Polcia e poltica: relaes Estados Unidos / Amrica Latina. So Paulo: Cortez Editora, 1998. 28 BOERSNER, Demetrio. Relaciones internacionales de Amrica Latina. Caracas: Nueva Sociedad, 1987. 29 BAUMGARTNER; DURAN MATOS, op. cit. 30 SCHOULTZ, Louis. Estados Unidos: poder e submisso. Uma histria da poltica norte-americana em relao Amrica Latina. Bauru, SP: EDUSC, 2000. 31 GARCA, Prudencio. El drama de la autonoma militar. Argentina bajo las Juntas Militares. Madrid: Alianza Editorial, 1995.

  • 21

    da DSN norte-americana. Os diversos documentos produzidos pelas Foras Armadas

    constituem fonte essencial para o levantamento e anlise das argumentaes que do sentido

    ao sistema e que procuraram capitalizar e justificar teses de guerra total, defesa contra

    agresses externas, manuteno da ordem crist e ocidental, biologizao das contradies

    internas da sociedade (o vrus comunista que infecta o corpo social) e at guerra suja.

    Assinadas pela Junta de Comandantes en Jefes, os dois tomos da obra Las Fuerzas Armadas

    al Pueblo Oriental (La Subversin - 1976 - e El Proceso - 1978), junto com o Testimonio de

    una Nacin Agredida (1978), evidenciam dois objetivos das Foras Armadas: ressaltar a

    centralidade do seu protagonismo e divulgar, pedagogicamente, sua verso dos fatos

    populao, mesclando poder de convencimento com aplicao de rigorosa censura aos

    dissidentes.32

    No presente estudo, o contraponto verso oficial feito a partir da leitura de

    informes e obras acadmicas que, muitas vezes, partem dos documentos arrolados pelas

    organizaes de direitos humanos, possibilitando revelar o contraditrio implcito por detrs

    dos conceitos assumidos e divulgados massivamente pelo sistema. So importantes, dentro

    dessa perspectiva, os citados dossis Nunca Mais - no s o uruguaio, mas tambm o

    argentino e o brasileiro -, pois permitem aferir pontos comuns e intercmbio das experincias

    repressivas, assim como as anlises de Baumgartner, Durn Matos & Mazzeo,33 de Perelli &

    Rial34 e de Amarillo,35 entre outros.

    A pesquisa parte do entendimento de que a Amrica Latina, nos anos 60/70, passou

    por uma intensa radicalizao do processo de luta de classes. Projetos de mudana, que

    variavam entre matizes de cunho reformista/nacionalista at outros de contorno socialista,

    foram alimentados pelos exemplos histricos da Revoluo Cubana, da guerra de libertao

    no Vietn e da trajetria revolucionria de Che Guevara. Tais fatos, para o sistema, se

    prefiguraram como elementos desestabilizadores da ordem interna, pois foram referncias de

    mobilizao e potencializao dos setores populares em luta por mudanas estruturais.

    Os regimes de SN (pese as singularidades de cada Estado nacional) foram o

    instrumento de reenquadramento dessas sociedades fortemente mobilizadas. Apesar da

    exposio do protagonismo militar e de certa autonomizao conjuntural do mesmo, tais regimes

    32 A obra La Subversin teve uma edio publicada em fascculos em um dos maiores jornais da poca, El Pas, que dava slida sustentao ao regime. 33 BAUMGARTNER; DURAN MATOS; MAZZEO, op. cit. 34 PERELLI, Carina; RIAL, Juan. De mitos y memorias polticas da represin, el miedo y despus... Montevideo: Banda Oriental, 1986. 35 AMARILLO, Mara del Huerto. El ascenso al poder de las Fuerzas Armadas. Cuadernos Paz y Justicia 1. Montevideo: SERPAJ, 1986

  • 22representaram os interesses da frao burguesa que, hegemnica em termos internos, estava

    vinculada ao capital internacional como associada subordinada. Em termos econmicos, as

    ditaduras consolidaram, como caractersticas gerais, a internacionalizao da economia, a

    aplicao das receitas do Fundo Monetrio Internacional e do Banco Mundial, o crescimento do

    endividamento externo, a concentrao de renda e a explorao das vantagens comparativas

    (sobretudo a baixa remunerao da fora-de-trabalho).

    Em termos polticos, os objetivos foram muito claros: destruir as organizaes

    revolucionrias; desmobilizar e despolitizar os setores populares; aprofundar a associao

    com os EUA e os aliados internos da regio; enquadrar os espaos poltico-institucionais

    (partidos, Congresso, sindicatos, grmios estudantis, etc.); impor uma ordem interna

    disciplinadora de segurana e estabilidade; esvaziar o pluralismo poltico e interromper a

    dinmica eleitoral. A aplicao de tais medidas produziu, como herana, uma cultura do

    medo, que comprometeu o posterior processo de redemocratizao, frustrando as expectativas

    suscitadas e conformando uma espcie de democracia imperfeita, inconclusa.

    Cabe, agora, retomar a discusso sobre o carter dessas ditaduras cvis-militares que

    tambm identificamos como ditaduras de Segurana Nacional. Embora existam outras

    contribuies interpretativas significativas, centra-se a anlise nos trs modelos que se

    entende marcaram, de forma mais profunda o debate sobre as especificidades das experincias

    ditatoriais que ocorreram na regio. Um primeiro modelo explicativo baseia-se na concepo

    do Estado Burocrtico-Autoritrio (BA), desenvolvido por Guillermo ODonell e que partiu

    dos estudos anteriores sobre Autoritarismo36 apoiados na proposio de um tipo ideal

    resultante da comparao de caractersticas - comuns e diferentes - e de uma tipologia que

    acolheu mltiplas formas histricas de manifestao. A procura de especificidades, caso a

    caso, inclusive de aspectos secundrios ou basicamente formais, gerou, muitas vezes, um

    excesso de rtulos que tornou impreciso ou insuficiente tanto a comparao quanto a

    possibilidade de sntese explicativa que extrapolasse o caso em questo.

    ODonell procurou resgatar a especificidade das experincias latino-americanas

    apontando para as seguintes caractersticas: direo tecnocrtica do Estado (pretensamente

    neutra e acima das contradies de classe); excluso e desativao poltica dos setores

    populares; imposio de uma despolitizao generalizada no conjunto da sociedade; formao

    de uma aliana diversificada de setores sociais (burguesia compradora, oligarquia, setores

    mdios urbanos, etc.) em volta de um projeto de interveno cvil-militar e de um forte

    anticomunismo. Destacou ainda a pretenso de reordenamento do status quo diante da

  • 23

    radicalizao dos setores populares e da crise de hegemonia burguesa para garantir os

    interesses do capital internacional e as mudanas nos mecanismos de acumulao. Segundo

    ODonell, o bloco hegemnico resultante foi constitudo pela alta burguesia (vinculada ao

    capital internacional), os tecnocratas, as Foras Armadas e, eventualmente, fraes da

    burguesia nacional. Coube, primeira, imprimir as mudanas estruturais necessrias para

    garantir maior internacionalizao da economia - em detrimento dos interesses e dos projetos

    de desenvolvimento da burguesia nacional - e estabelecer uma oferta de vantagens

    comparativas com o fim especfico de atrair investimentos externos. O papel fundamental do

    Estado BA foi garantir a excluso poltica e econmica, para permitir as mudanas nos

    padres de acumulao que se vislumbravam a partir das transformaes econmicas

    produzidas desde o final da Segunda Guerra Mundial. Em sntese, a interpretao de ODonell

    indica que:

    Os sistemas autoritrio-burocrticos so excludentes (afastam a participao de grupos polticos e econmicos) e enfaticamente no-democrticos. Os atores centrais da coalizo dominante incluem tecnocratas de alto nvel (militares e civis, dentro e fora do Estado) trabalhando em associao ntima com o capital estrangeiro. Essa nova elite elimina a competio eleitoral e controla severamente a participao poltica do setor popular.37

    A instalao do Estado Burocrtico-Autoritrio aconteceu em etapas. A primeira,

    quando se eliminou a ameaa das organizaes populares, com o recurso das Foras Armadas,

    impondo a ordem e a estabilidade necessria para garantir os investimentos externos. A

    segunda, quando a tecnocracia e o capital internacional estabeleceram as medidas econmico-

    sociais exigidas pelo processo de internacionalizao da economia. Finalmente, a ltima

    etapa, quando queles atores se juntaram fraes da antiga burguesia nacional, agora

    subordinada, associada ou cooptada, principalmente pela ao do virulento discurso da

    existncia de uma ameaa comunista. As caractersticas e as etapas apresentadas por ODonell

    variaram de acordo com as especificidades de cada caso nacional. Deve salientar-se, por outro

    lado, que as crticas a este modelo de anlise se pautaram, fundamentalmente, pela escassa

    margem explicativa para as contradies sociais (secundarizao do conflito de classe), pelo

    grande peso concedido tecnocracia militar e civil e pela diminuio do papel e da

    importncia dos EUA na estruturao desses regimes.

    O segundo modelo explicativo baseou-se na citada interpretao sobre a existncia

    36 As citadas obras de Stanley Payne e de Juan Linz, dentre outras. 37 COLLIER, David (org.). O Novo Autoritarismo na Amrica Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. p. 31.

  • 24

    de um fascismo latino-americano, a partir das interpretaes clssicas de Georgi Dimitrov e

    Palmiro Togliatti,38 ambas associadas a uma abordagem marxista-leninista mais ortodoxa

    presente na linha programtica dos Partidos Comunistas da regio. A anlise de Agustn

    Cueva, com algumas variveis pontuais, foi assumida ou defendida por autores como Zavaleta

    Mercado,39 lvaro Briones40 e Teothnio dos Santos41. Cueva transps, realidade latino-

    americana dos anos 70 e 80, o conceito de fascismo como a ditadura terrorista que os setores

    mais reacionrios do capital monoplico exercem sobre a classe operria, primordialmente em

    situao de crise.42 Seus crticos avaliaram que esse referencial terico era anacrnico e sua

    aplicao para a realidade latino-americana dos anos 70 era inadequada e mecanicista. Diante

    de tais objees, Cueva argumentou que o fundamental na anlise da categoria fascismo no

    era a existncia concreta de um partido de massas, de um suporte pequeno-burgus ou de uma

    ideologia chauvinista (de fato, inexistentes na regio). A ausncia desses fatores era, ao

    contrrio, afirmava Cueva, a caracterstica da especificidade perifrica latino-americana e da

    sua forma de insero na economia capitalista mundial.

    O fundamental, nessa linha de anlise, era a natureza de classe do fascismo e a

    mudana qualitativa que impunha s formas de Estado. O controle monoplico dos setores

    chaves da indstria conformava um eixo externo-local vinculado s esferas de dominao

    cvico-militar, com um forte potencial de fascistizao em determinadas circunstncias

    histricas. Mas o carter perifrico das economias regionais inviabilizava que o fascismo

    latino-americano cooptasse algum movimento de massa como base social de apoio. Da

    mesma forma, estava interditada a implantao de uma poltica nacionalista, em funo da

    configurao dependente desses pases em relao s economias centrais, o que, claro,

    assinalava importantes diferenas em relao s experincias clssicas de fascismo. Atilio

    Born,43 um dos principais crticos do uso desta categoria de anlise, a considerava

    insuficiente para explicar a especificidade estrutural das ditaduras do Cone Sul,

    fundamentalmente por que as economias desses pases eram perifricas em relao ao sistema

    capitalista mundial; portanto, inexistiam condies para que uma burguesia nacional pudesse

    38 Posio que resultou do documento apresentado por Dimitrov na plenria do VII Congresso Mundial da Internacional Comunista (3 Internacional), em agosto de 1935. Teve como caracterstica principal a reviso da posio que considerava irmos gmeos o fascismo e a social-democracia. A partir da aprovao da proposta de Dimitrov, o movimento comunista internacional passou a defender a construo de uma frente comum para enfrentar o fascismo envolvendo os setores esquerdistas, a social-democracia e certos setores liberais burgueses. 39 ZAVALETA MERCADO, op. cit. 40 BRIONES, lvaro. Ideologa del Fascismo Dependiente. Mxico: Edicol, 1978. 41 SANTOS, op. cit. 42 CUEVA, Agustn. Teora social y procesos polticos en Amrica Latina. So Paulo: Global, 1983. p. 165. 43 BORN, Atilio. Estado, capitalismo y democracia en Amrica Latina. 3a ed. Buenos Aires: Oficina de Publicaciones del CBC/Universidad de Buenos Aires, 1997.

  • 25assumir papel dirigente.

    Independente das diferenas visveis entre as duas abordagens apresentadas, h, no

    mnimo, um ponto de encontro entre elas: a questo do carter indito e global dos novos

    sistemas repressivos implantados na regio, dentro do mesmo marco cronolgico e numa

    escala sem precedentes na Amrica Latina. Enquanto ODonell afirmava que o grau de

    represso - vista como mecanismo de ao permanente - aumentava quanto maior fosse a

    instabilidade no regime anterior e a capacidade de organizao dos setores populares, os

    defensores da tese do fascismo latino-americano lembravam que o mesmo acabava com todas

    as formas democrticas para exercer uma ditadura terrorista aberta. Este ponto de confluncia

    importante para os objetivos deste trabalho, pois denota um elemento diferenciador dessas

    estruturas de poder em relao a experincias autoritrias ocorridas na regio em outros

    contextos histricos e porque o fator violncia, aplicado em maior ou menor medida num

    patamar indito, esteve presente em todas as ditaduras de SN.

    Uma terceira abordagem que consideramos de maior pertinncia explicativa a que

    identificou as ditaduras latino-americanas dos anos 60 a 80 como regimes de Segurana

    Nacional, o que realou, portanto, o papel que a Doutrina de Segurana Nacional assumiu no

    centro da estruturao desses regimes. As Foras Armadas, nessa perspectiva, receberam uma

    legitimidade poltica para desempenharem o papel de ordenadores do sistema social, diante da

    falncia das instituies da democracia representativa e do sistema poltico em geral, e se

    apresentaram como garantia suprema da unidade nacional ameaada pelos efeitos

    desagregadores do perigo comunista. A DSN foi incorporada como o fundamento terico

    justificador da proteo da sociedade nacional a partir da edificao de um Estado que precisava

    esconder sua essncia anti-democrtica.

    A DSN apontou, da mesma forma, a existncia de um estado de guerra permanente

    contra um (suposto) inimigo interno, que podia ser toda pessoa ou organizao armada,

    poltica ou social de oposio aos interesses da ordem vigente. Embora a DSN e seus defensores

    proclamassem agir em defesa dos valores democrticos, consideravam, no fundo, que a

    democracia era uma fonte geradora de desordens por permitir a atuao dos setores

    desconformes com a ordem vigente, a qual devia ser defendida atravs de todos os meios

    disponveis. O cenrio da guerra interna extrapolou as ruas, as fbricas ou as universidades,

    chegando ao extremo de levar essa batalha aos crceres polticos, onde as mentes dos

    prisioneiros polticos viravam campos de batalha para destruir as conscincias crticas, militantes

  • 26

    e libertrias.44 Esta situao se verificou no Uruguai, onde as autoridades carcerrias, no

    satisfeitas com a deteno dos inimigos, explicitaram o objetivo de enlouquec-los, fato que, em

    si, mostra a diferena qualitativa de uma lgica autoritria clssica para outra pautada no TDE.

    A aplicao das premissas da doutrina destruiu as bases da democracia representativa

    com o fechamento do Parlamento, o controle sobre o Poder Judicirio, a proibio do

    funcionamento dos partidos polticos, a imposio generalizada da censura, a violao

    sistemtica dos direitos humanos e uma represso brutal contra toda a oposio. importante

    sublinhar que a DSN esteve presente em todos os regimes ditatoriais do Cone Sul, no referido

    perodo, independente da especificidade adquirida em cada pas. Portanto, o papel que cumpriu

    no cerne destas experincias constitui, de per si, um elemento indito que, por um lado,

    inviabiliza a possibilidade de associar tais ditaduras com o fascismo clssico e que por outro,

    sendo a DSN fluente elo de conexo entre os novos regimes da regio e os EUA, exige da tese

    do Estado Burocrtico-Autoritrio um redimensionamento da importncia da superpotncia para

    o advento e a consolidao daqueles. Esta a perspectiva que se assume nesta pesquisa a partir

    da contribuio seminal do padre Josep Comblin45 e das contribuies de Jellinek & Ledesma46

    e Baumgartner & Durn Matos,47 entre outros.

    Em relao ao debate sobre o Terror de Estado, deve registrar-se que ele relativamente

    recente, apesar de que tal fenmeno se tenha manifestado, historicamente, pelo menos, desde a

    Revoluo Francesa. Na passagem dos anos 60 para os 70, os setores dominantes introjetaram a

    aceitao da violncia estatal e de aes paramilitares, encobertas ou no, como sendo legtimas

    diante do inimigo, fosse este um outro Estado ou sua prpria populao civil (inimigo

    interno). Fatos assim haviam ocorrido no contexto da Segunda Guerra Mundial, mas haviam

    sido justificados em nome da necessidade real da sobrevivncia. Fora desse contexto particular,

    porm, eram vistos sob o entendimento de que constituam aes terroristas deliberadas do

    Estado ou dos dirigentes que o controlavam, contra sua prpria populao.48

    No cenrio latino-americano, a novidade chegou acompanhada da orientao contra-

    insurgente proposta desde os EUA, no contexto da Guerra Fria, quando identificaram que todo o

    continente americano era rea de interesse nacional. No entendimento da superpotncia,

    44 SAMOJEDNY, Carlos. Psicologa y dialctica del represor y el reprimido. Buenos Aires: Roblanco, 1986. p. 31. 45 COMBLIN, Padre Josep. A Ideologia da Segurana Nacional. O Poder Militar na Amrica Latina. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1978. 46 JELLINECK, Sergio; LEDESMA, Luis. Uruguay: del consenso democrtico a la militarizacin estatal. Estocolmo: Institute of Latin American Studies, 1980. 47 BAUMGARTNER, Jos Luis; DURAN MATOS, Jorge. Amrica Latina: liberacin nacional. Montevideo: Banda Oriental, 1985. 2 Vol. 48 ANDRADE, John. Aco Directa. Dicionrio de terrorismo e activismo poltico. Lisboa: Hugin, 1999. p. 9.

  • 27entretanto, a regio estava muito vulnervel diante do impacto desagregador produzido pelo

    comunismo internacional (exportado pela URSS) e, sobretudo, pelos associados locais, os

    inimigos internos. A defesa do uso ilimitado da fora como mecanismo de controle e de

    combate s mobilizaes sociais produzidas pelas contradies internas dos diversos pases

    tornou-se mais agressiva a partir da vitria e da radicalizao da Revoluo Cubana. Todavia, j

    era um processo em marcha desde o final da Segunda Guerra. Apesar da propaganda dos

    programas de ajuda no marco da Aliana para o Progresso, essas boas intenes no

    passavam de tentativas de cooptao para aumentar o controle sobre a regio. Nesses termos, o

    treinamento de corpos de elite de oficiais latino-americanos em escolas norte-americanas (Escola

    das Amricas, Fort Benning, Fort Leavenworth), a ajuda para o aparelhamento e modernizao

    do fator militar e reconverso deste para enfrentar e destruir o inimigo interno foram

    fundamentais.49 A passagem do Secretrio de Estado Nelson Rockefeller pela Amrica Latina,

    em 1969, serviu para elaborar um preocupante diagnstico:

    [...] hoje nenhum pas [latino-americano], per si s, capaz de garantir a sua prpria segurana interna. [...] Unicamente atravs da cooperao do Hemisfrio podero esses problemas que afetam to vitalmente a segurana interna, ser devidamente enfrentados.50

    Em funo disso, Rockefeller, entendendo que estavam em jogo questes estratgicas

    vitais para a prpria segurana dos interesses estadunidenses, recomendava, como Objetivo da

    Poltica Nacional da superpotncia [grifo meu]: Os Estados Unidos devem cooperar com as

    demais naes do Hemisfrio Ocidental em medidas que fortaleam a sua segurana interna.51

    O chamado Informe Rockefeller foi um dos arcabouos que permitiram ativar uma

    lgica repressiva, que atingiu sua forma mais sofisticada e brutal no s para enfrentar os

    crescentes movimentos guerrilheiros dos anos 60, mas tambm contra amplos setores da

    populao, sobretudo aps a derrota das organizaes revolucionrias. Foi a partir da orientao

    da contra-insurgncia que comeou a manifestar-se, embrionariamente, na regio, o grmen do

    TDE, constitudo como

    [...] un modelo estatal contemporneo que se ve obligado a transgredir los

    49 Em 1963, Robert Mc Namara, Secretrio de Defesa da adminitrao Kennedy, afirmava: [...] provavelmente, o maior rendimento dos nossos investimentos de ajuda militar provm do treinamento de oficiais selecionados e de especialistas chave em nossas escolas militares e seus centros de treinamento nos EUA e ultramar. Estes estudantes so cuidadosamente selecionados em seus pases para converterem-se em instrutores quando voltem a eles. So os lderes do futuro [...] No necessrio explicar o valor que tem dispor de homens com um conhecimento de primeira mo de como os norte-americanos atuam e pensam para os cargos de direo. Para ns, no h preo que pague o fato de sermos amigos desses homens [...]. CONADEP, op. cit., p. 343. 50 ROCKEFELLER, Nelson. As condies de Vida nas Amricas. Relatrio de uma Misso Presidencial dos Estados Unidos ao Hemisfrio Ocidental. Rio de Janeiro: Record, s. d. p. 66. 51 Idem.

  • 28

    marcos ideolgicos y polticos de la represin legal (la consentida por el marco jurdico tradicional) y debe apelar a mtodos no convencionales, a la vez extensivos e intensivos, para aniquilar a la oposicin poltica y la protesta social, sea sta armada o desarmada.52

    Nas experincias concretas latino-americanas, inclusive no caso uruguaio, as

    caractersticas repressivas mais comuns foram a criao de uma estrutura clandestina, paralela

    estrutura legal e visvel do Estado, e a implementao de uma metodologia de seqestro,

    deteno ilegal, tortura e desaparecimento definitivo. No debate centrado nessas prticas,

    destaca-se o questionamento sobre o grau de autonomia dos grupos operativos. A argumentao

    dos antigos responsveis pelas ditaduras e seus associados (polticos e empresrios que se

    reinseriram eficientemente no cenrio redemocratizado) tem sido a de que, se ocorreram

    excessos, estes foram cometidos por grupos autnomos ou por funcionrios do Estado que

    interpretaram as ordens com demasiado zelo. Entretanto, as provas que confirmam a existncia

    de um TDE tornam inconsistentes tais concluses. Ao considerar a represso como um sistema

    eficiente, aceita-se a possibilidade da ocorrncia de autonomizao parcial de certos setores da

    cadeia de transmisso (embora no seja bem o caso do Uruguai), mas isso no contradiz a lgica

    do sistema nem invalida a interpretao de que o TDE foi um mecanismo fundamental para

    viabilizar a nova ordem interna e o estabelecimento de novos padres de acumulao.

    A identificao das ditaduras de SN com prticas de TDE foi uma tendncia que se

    consolidou nos anos 90. Os motivos por no ter ocorrido antes so variados. Talvez porque,

    durante sua existncia, foi difcil dimensionar o que efetivamente ocorria, ou porque as

    negociaes polticas de sada desses regimes foram extremamente difceis e permitiram a

    sobrevivncia poltica de muitos dos atores centrais. Pode ser ainda porque determinados setores

    aceitaram a tese de que a represso estatal foi um mal necessrio e transitrio diante dos

    descalabros cometidos por projetos populistas ou radicais irresponsveis. O fato que a

    associao das ditaduras com o TDE partiu, em primeiro lugar, das organizaes de direitos

    humanos, especialmente as que surgiram como resposta prtica das detenes-

    desaparecimentos. Apesar do enorme esforo de falsificao histrica perpetrado pela

    propaganda oficial ao tentar mostrar o desprendimento dos que se apresentaram como ltimo

    bastio do mundo livre contra a ameaa comunista, os resultados concretos mostraram as

    contradies de um projeto que, para garantir a paz, usou da coero de forma ilimitada.

    Com o transcorrer dos anos, foi possvel armar o quebra-cabea desses regimes. As

    informaes e experincias recolhidas nas prises, na tortura, na clandestinidade, na resistncia,

    52 BONASSO, Miguel. Prefacio. In: PIETERSEN, Jan et al. Terrorismo de Estado. El papel internacional de EE.UU. Navarra: Txalaparta, 1990. p. 9.

  • 29

    no exlio e no reconhecimento da ausncia definitiva dos desaparecidos deram nova fisionomia

    ao esquema repressivo. Nas primeiras anlises, a violncia aparecia como uma questo menor

    diante das questes estruturais. Formularam-se tambm explicaes sobre o uso da violncia em

    doses excessivas, fruto do desajuste patolgico de agentes repressivos. medida que os

    relatrios Nunca Mais foram sendo elaborados, divulgados, analisados e comparados, as

    sociedades atingidas passaram a ter maior conhecimento sobre as especificidades, a dimenso e o

    papel que essas prticas desempenharam em cada pas do Cone Sul.53

    Cabe, ainda, uma ltima observao a respeito de toda esta problemtica. Conhecendo a

    dinmica, os objetivos e os interesses que esto por detrs das ditaduras de SN, inaceitvel a

    tentativa de dissociao entre interesses econmicos e prticas repressivas, como tentou delimitar

    o discurso tecnocrtico. Este procurou marcar distncia das polticas coercitivas do mesmo

    governo do qual fazia parte, tentando isentar-se das responsabilidades pertinentes.

    fundamental, nesse sentido, no perder a perspectiva do fenmeno. O TDE foi a expresso de um

    dos principais aspectos das ditaduras de SN. Embora a centralidade que recebe neste estudo, no

    se entenda, porm, que considerado desconexo das demais dimenses que compem os

    regimes de SN. Pelo contrrio, reafirmamos sua relao intrnseca e subordinada ao processo de

    internacionalizao da economia e de hegemonia do capital internacional e seus associados

    locais. Os mecanismos implementados pela violncia estatal visaram as organizaes e os

    indivduos que podiam representar perigo de resistncia ao projeto em andamento; impuseram

    tambm, a mdio prazo, formas anestsicas de convivncia, fosse atravs da cultura do terror,

    da autocensura ou at da possibilidade de cooptao. A estabilidade e a apatia resultante do medo

    da volta do recurso sistemtico fora condicionou um clima poltico que se ajustou

    adequadamente aos anseios e necessidades da alta burguesia e do capital internacional.

    Coerentemente com a DSN, a guerra contra o inimigo interno implicou numa

    guerra interna, permanente, total e, conseqentemente, suja - ou seja, ilegal e

    clandestina. A necessidade de implementar as diretrizes da SN exigiu o confronto total com a

    oposio, numa luta sem compromissos nem negociaes e que s poderia terminar com a

    destruio total e permanente do adversrio. Respeitadas as assimetrias e independente das suas

    singularidades, esse cenrio se desenhou por quase toda a regio, como ocorreu no Uruguai:

    53 Dentro dessa perspectiva, foram de extrema pertinncia as exposies, no III Frum Social Mundial de Porto Alegre, de Antnio Gonzlez Quintana (Conselho Internacional de Arquivos da UNESCO) sobre o projeto Os Arquivos da Segurana do Estado dos Desaparecidos Regimes Repressivos, e de Julia Mara Rodrguez (Asociacin Espaola de Archivos - ANABAD) sobre a experincia e o impacto social da recuperao dos arquivos do franquismo na Espanha. (Seminrio Memria das Ditaduras - Instrumento para a Consolidao dos Direitos Humanos. Organizado pela Comisso do Acervo da Luta Contra a Ditadura. III Frum Social Mundial, Porto Alegre, janeiro de 2003).

  • 30

    La guerra en Uruguay no tuvo la espectacularidad de la Casa de Gobierno bombardeada por Pinochet en Chile, ni el genocidio cometido por las juntas militares en Argentina con miles de desaparecidos. Pero se caracteriz por una sofisticacin sin par. Fue una represin callada, progresiva en su gradacin, dosificada, perfectamente selectiva hasta llegar a un control perfecto y total de la poblacin. Logr clasificar a los tres millones de habitantes en tres categorias: A, B y C, segn el grado de peligrosidad que les asignaban las Fuerzas Conjuntas. Nuestro pas estaba ocupado por nuestro propio Ejrcito. Todos estbamos fichados, clasificados y vigilados.54

    Para quebrar o inimigo, utilizou-se a deteno sob a forma de seqestro, a tortura, a

    poltica do desaparecimento de pessoas, o extermnio e os instrumentos da guerra psicolgica.

    Semeou-se o temor e a desesperana. Na medida em que se imps a autocensura, o Terror de

    Estado cumpriu sua funo pedaggica, dobrando vontades e resistncias, o que, combinado

    com a sensao de impunidade, gerou medo e imobilismo.

    O sistema tornou-se cada vez mais eficiente, dosificado e seletivo. O

    desaparecimento de pessoas foi seu ponto mximo de sofisticao, configurando um

    mecanismo de extorso tanto para o detido-desaparecido quanto para seus familiares e amigos,

    bloqueados e paralisados diante de uma situao que impedia a aplicao dos dispositivos legais

    de proteo da integridade fsica da vtima. O desaparecido considerado um no-ser. Eles

    no tienen derecho ni a ser procesados y juzgados. No possui direito a conhecer a sua sentena

    e se les niega hasta el derecho de estar en un lugar y fecha.55 No est preso nem morto:

    simplesmente no est. Como metodologia de extermnio, o desaparecimento gerou

    desdobramentos sobre todo o corpo social

    [...] atingindo primeiro as pessoas, alimentando a esperana de que o seqestrado haver de voltar; depois, sonega a documentao e cria a incerteza sobre o que aconteceu; finalmente, desaparece o cadver sem nome, sem identidade, ... o horror sem limites.56

    Esta afirmao est baseada na experincia argentina, onde, inegavelmente, houve uma

    prtica de extermnio. Todavia, nos pases em que houve desaparecimentos sem confirmao de

    intencionalidade de extermnio massiva, como no caso uruguaio, os efeitos sociais produzidos

    foram e continuam sendo (j que se trata de uma questo ainda no esclarecida) muito

    semelhantes.

    A anlise das especificidades da ditadura uruguaia deve partir das relaes intrnsecas

    54 SERPAJ. Uruguay Nunca Ms. Informe Sobre la Violacin a los Derechos Humanos (1972-1985). Montevideo: SERPAJ, 1989. p. 7. 55 Idem, p. 8. 56 CONADEP, op. cit., p. 174.

  • 31existentes entre a realidade dos anos 60 e os diversos projetos em confronto. Nesse sentido, deve-

    se avaliar a introjeo das diretrizes estadunidenses sobre a Guerra Fria e a implementao de

    medidas que, dentro dos marcos gerais da Doutrina de Segurana Nacional, legitimaram a

    organizao de uma superestrutura estatal, a qual cumpriu as exigncias necessrias para

    satisfazer dois objetivos fundamentais atribudos pelos EUA. O primeiro, a liquidao dos

    projetos de mudana social existentes antes dos golpes de Estado. O segundo, a criao de

    condies necessrias para disciplinar a fora de trabalho, em particular, e a sociedade, em geral,

    como fator de atrao de capital internacional - que devia ser protegido sob qualquer hiptese.

    Em nome da defesa da civilizao ocidental e do sistema democrtico, a DSN procurou

    desviar as atenes sobre o crescente mal-estar de uma populao cada vez mais atingida pelo

    crescente desequilbrio da distribuio de renda. Diante dos primeiros sinais de resistncia contra

    esse quadro, a DSN legitimou, em nome do capital internacional e dos seus aliados locais, o uso

    do Terror de Estado. Tudo justificado com o discurso da defesa da ordem, da estabilidade

    poltico-social, da nao ameaada pelo comunismo, das liberdades e da civilizao ocidental.

    A anlise realizada se baseia na premissa de que a especificidade uruguaia da

    problemtica proposta no pode ignorar o seu contexto maior: a realidade latino-americana do

    perodo, a forte presena dos interesses dos EUA na regio e as inflexes produzidas pela

    Guerra Fria. Sendo assim, implica numa perspectiva metodolgica que parte do geral para o

    particular atravs do eixo estruturado ao redor da problemtica e das hipteses que esto no

    cerne da proposta de estudo - e a posterior rearticulao com o geral, possibilitada pelas

    concluses explicativas elaboradas a partir da anlise dos resultados da pesquisa. A

    perspectiva terica da anlise est fundamentada no materialismo histrico e em contribuies

    de outras reas do conhecimento, assim como em outras perspectivas tericas para aspectos

    pontuais da problemtica central.

    A dinmica do estudo realizado, portanto, iniciou com a anlise da produo

    historiogrfica relacionada com essa viso de conjunto articulada, que permitiu identificar os

    marcos histricos de um duplo contexto: o cenrio latino-americano dos anos 60-70 e a

    singularidade da crise uruguaia. Posteriormente, o cruzamento analtico da documentao

    levantada nos arquivos pesquisados com as fontes bibliogrficas, jornalsticas e testemunhais

    permitiu identificar fatos, aferir e comparar informaes e analisar os conceitos bsicos

    explcitos para a resoluo do problema (Terror de Estado, Segurana Nacional,

    desaparecimento, etc.). Particularmente, de extrema valia foi a anlise de documentos e textos

    sobre a Doutrina de Segurana Nacional uruguaia onde procurou-se identificar os elementos

    assimilados da matriz norte-americana, assim como a explicitao das premissas bsicas

  • 32diretamente vinculadas com o estabelecimento do TDE e da modalidade repressiva dos

    desaparecimentos (por exemplo, a teoria dos dois mundos, o inimigo interno, a guerra

    interna, a guerra total e a guerra suja). Foi possvel confrontar e relacionar, desta forma,

    as premissas da DSN com a realidade, avaliando como esta foi justificada pelos responsveis

    pela ditadura, o que possibilitou dirimir imprecises e cercar com maior profundidade a

    problemtica proposta, tanto na lgica interna do sistema repressivo quanto da articulao do

    mesmo com o processo histrico que lhe confere sentido.

    A pesquisa parte do seguinte cenrio: A ditadura uruguaia (1973-1985) apresentou

    uma lgica de poder que se imps sobre o conjunto da sociedade atravs de uma poltica de

    TDE global que implementou mltiplos mecanismos coercitivos e de controle. Essa poltica

    de TDE visou a desmobilizao poltica dos setores populares, a destruio das organizaes

    e instituies pelas quais se manifestavam seus anseios e exigncias, o disciplinamento da

    fora-de-trabalho e a imposio de uma nova ordem fundamentada nos princpios da DSN e

    nas novas necessidades da economia internacional.

    Portanto, o objetivo principal a anlise da poltica do TDE, identificando suas

    relaes com as premissas da DSN nas peculiaridades do caso uruguaio. Alm disso,

    pretende-se:

    a) avaliar o cenrio regional de conflito (Amrica Latina), nos anos 60;

    b) identificar os interesses dos EUA na regio em um contexto de bipolarizao;

    c) articular o processo especfico uruguaio dentro dessa lgica internacional;

    d) identificar os atores sociais e polticos envolvidos neste processo e seus interesses;

    e) compreender o funcionamento dos mecanismos repressivos internos utilizados

    pela ditadura;

    f) dimensionar e particularizar o fenmeno dos desaparecimentos dentro da lgica

    do TDE.

    Nessa perspectiva, a tese proposta parte das seguintes consideraes:

    - o perfil da sociedade uruguaia e sua histrica experincia democrtica de

    participao poltica;

    - o grau de conscincia de classe dos setores populares e a experincia de

    movimentos sociais politicamente ativos;

    - uma situao de crise econmica combinada com o esgotamento do velho

    modelo reformista;

    - a necessidade de implementao de um novo modelo de acumulao;

  • 33- o fortalecimento qualitativo dos desafios ordem vigente e de resistncia

    reconverso econmica em marcha, corporificados, sobretudo, na organizao

    guerrilheira do Movimiento de Liberacin Nacional-Tupamaros e na coalizo de

    esquerda Frente Amplio;

    A partir de tais consideraes, a aplicao das diretrizes resultantes da interpretao

    feita sobre a DSN pelos militares uruguaios e seus associados civis, como mecanismo para

    enquadrar o pas na lgica da defesa hemisfrica promovida pelos EUA, durante a Guerra

    Fria, s foi possvel atravs de prticas repressivas que extrapolaram simples mecanismos

    coercitivos e autoritrios e se configuraram como uma poltica de TDE, essncia do regime de

    SN no Uruguai. Algumas modalidades de TDE comearam a ser aplicadas no pas,

    paulatinamente, durante a vigncia do regime democrtico, nas administraes Pacheco Areco

    e Bordaberry (1968-73), fato que se projetou, ampliou e consolidou durante a ditadura civil-

    militar.

    As hipteses que fundamentam a tese so:

    1) A aplicao das diretrizes da DSN conformou a escalada repressiva caracterizada

    como TDE.

    2) A montagem, a manuteno e a qualificao das estruturas repressivas do Estado

    receberam significativa cooperao e suporte do governo dos EUA.

    3) Certas prticas de TDE foram implementadas durante os anos anteriores

    imposio da ditadura, sob um Estado de direito em franco processo de

    deteriorao.

    4) A destruio fsica, psicolgica e/ou poltica do inimigo interno no resultou de

    uma justificada guerra civil, mas de uma opo deliberada do TDE.

    5) O TDE, aplicado com pretenses pedaggicas atravs da violncia irradiada,

    objetivou a conformao de uma cultura de terror, de medo, de efeitos

    devastadores, os quais, em diversos aspectos, se projetaram, inclusive no perodo

    posterior ditadura, como entulho autoritrio.

    6) O fenmeno dos seqestros associados aos desaparecimentos, como prtica do

    TDE, constituiu-se na especificidade mais refinada e complexa da poltica

    repressiva do regime de SN uruguaio.

    7) Os desaparecimentos ocorreram no s como excessos cometidos durante o

  • 34processo de extrao de informaes (em casos particulares), mas tambm como

    evoluo de uma prtica repressiva que, sem ser a marca repressiva principal do

    regime, configurou-se como poltica de Estado.

    8) O regime de Segurana Nacional uruguaio agiu alm das suas fronteiras,

    participou e se articulou com outros esquemas repressivos do Cone Sul,

    compondo uma vasta rede de integrao e cooperao (a coordenao repressiva

    internacional), esquemas articulados juntamente com os EUA.

    9) O TDE no se restringiu s prticas de represso fsica ou psicolgica, mas

    perpassou toda a sociedade e, simultaneamente, instrumentalizou as instituies

    estatais, subordinou o Poder Judicirio, anulou o Poder Legislativo, controlou os

    meios de comunicao, interveio na rede de ensino e calou fundo nas relaes

    cotidianas.

    10) A idia de guerra interna (vinculada necessidade permanente de identificar

    novos inimigos internos) se projetou alm do combate contra as organizaes

    guerrilheiras nas ruas e outros focos de resistncia e foi canalizada para o interior

    dos crceres (outro cenrio da guerra, segundo as autoridades da ditadura), para o

    cenrio do exlio e para todo o territrio nacional, espcie de grande priso para o

    amedrontamento da sociedade como um todo.

    Em suma, esta tese se prope a dimensionar, compreender e analisar o TDE que se

    implantou no Uruguai atravs de diversas modalidades de violncia. H um esforo por tentar

    apreciar a lgica interna das modalidades destacadas no estudo (certamente que no so as

    nicas) e dar-lhes sentido dentro do todo. A essncia da pesquisa no est na anlise

    aprofundada da tortura ou da censura, por exemplo, e sim na compreenso da abrangncia, da

    multiplicidade e da complementao das iniciativas repressivas que, sob hiptese alguma,

    podem ser reduzidas violncia fsica, e que compem esse quadro opressivo, cinzento,

    resultado da dinmica de aplicao do Terror de Estado. Terror de Estado que, no caso

    uruguaio, foi abrangente, prolongado, indiscriminado, retroativo, preventivo e extraterritorial:

    Abrangente porque no houve setor da sociedade que permanecesse imune

    ao alcance das aes repressivas ou estivesse livre das suas ameaas.

    Prolongado porque algumas das suas modalidades foram aplicadas no final

    dos anos 60 e - embora existam perodos de maior rigor -, at o final da ditadura,

  • 35continuou vigorando (alm de gerar seqelas que se projetaram no perodo

    posterior).

    Indiscriminado porque a ao repressiva contra a populao no teve

    limites. O uso flexvel do conceito de inimigo interno atesta que novos grupos

    sociais e/ou polticos foram sendo incorporados como novos subversivos, num

    processo sem fim. A ditadura de SN esteve presa a essa dinmica de tenso que ela

    precisou forjar e alimentar, pois foi sua razo de ser. Por isso que, exceto em uma

    etapa inicial, onde houve certa racionalidade na escolha dos alvos da ao

    repressiva estatal, posteriormente, confirmou-se a inexistncia de limites ideolgicos,

    profissionais, religiosos, de classe ou de idade.

    Retroativo porque, aps o combate contra guerrilheiros, comunistas e outros

    esquerdistas, alvos bvios da lgica da SN, desenvolveu-se uma prtica de vasculhar,

    no passado das pessoas, suas simpatias polticas, a existncia de militncia sindical

    ou estudantil ou qualquer outra atitude que colocasse em questo sua fidelidade ao

    novo regime, tornando-o pouco confivel, o que, em determinado momento da

    ditadura, poderia significar (como realmente significou para muitos) sofrer um novo

    critrio de estigmatizao.

    Preventivo porque um dos seus principais objetivos foi a gerao da cultura

    do medo, e esta, geralmente, contribuiu para dois tipos de comportamento social.

    Por um lado, a quebra das correntes de solidariedade, isolando as vtimas diretas e

    tornando passivas, alienadas, indiferentes ou amedrontadas as demais pessoas

    (vtimas indiretas). Por outro lado, ser conseqente numa linha pedaggica; quer

    dizer, explicitar alguns comportamentos proibidos e ser ambguo em relao a outros,

    alimentando a incerteza e, portanto, induzindo as pessoas a terem muita cautela.

    Logo, seja pela insegurana resultante ou pelo medo das punies violentas e sem

    limites, o Terror de Estado procurou moldar um comportamento padro aceito

    deixando claro que o preo a pagar, por quem andasse fora da linha, seria a

    acusao de subversivo.

    Extraterritorial tambm como caracterstica que pode ser avaliada como

    metfora, pois no houve segurana contra a violncia estatal em lugar algum,

  • 36mesmo dentro de casa, no interior de um templo religioso, no local de trabalho ou

    inclusive para quem j estava preso (porque, mesmo julgado e condenado, o terror

    contra este no terminava, podendo apenas diminuir). Mas extraterritorial

    principalmente como perseguio fora das fronteiras nacionais. Neste sentido, o

    brao da violncia estatal atingiu o interior das embaixadas, as fronteiras vizinhas e o

    territrio de outros pases. Atravs de esquemas repressivos binacionais ou da

    sofisticada coordenao repressiva formatada na Operao Condor, as comunidades

    exiladas foram ameaadas, perseguidas, infiltradas e, no caso traumtico da

    Argentina, brutalmente atingidas.

    H alguns esclarecimentos prvios que devem ser feitos para que sirvam de

    coordenadas durante a leitura do trabalho. O foco da anlise est vinculado ao sistema

    repressivo, seus mecanismos visveis e invisveis, seu impacto na sociedade, etc. Isto no

    significa afirmar, entretanto, que, mesmo nos anos mais duros da ditadura uruguaia, o

    aparato coercitivo reinou absoluto ou que no houvesse possibilidade mnima de explorar

    algum canal de dilogo (alguma fissura nas Foras Armadas, um canal empresarial ou

    diplomtico, etc.). Igualmente deve-se lembrar que, mesmo nesses anos mais duros, sempre

    houve algum tipo de resistncia interna, mesmo que, em determinado momento, fosse mais

    uma questo de atitude do que uma ao poltica conseqente. Por conseguinte, embora o

    texto focalize a eficincia repressiva, no se ignora a persistncia de resistncia individual ou

    coletiva, com sorte variada segundo os diversos momentos conjunturais.

    Um outro esclarecimento que precisa ser reforado que a centralidade da anlise no

    sistema repressivo no deve esconder que este um mecanismo que, geralmente, est a

    servio de um projeto maior, como, por exemplo, a tentativa de imposio de um novo

    modelo econmico, com o devido enquadramento dos diversos protagonistas polticos e

    sociais e com a imposio de uma aliana subordinada entre o capital internacional e seus

    associados locais.

    Outro aspecto a considerar que, no trabalho, se assume uma opo metodolgica

    onde se destaca a vinculao permanente entre as dimenses externa e interna do que diz

    respeito ao caso uruguaio. Apesar do estudo realar os influxos externos (a projeo dos EUA

    sobre a regio, a circulao planetria das experincias repressivas do sculo XX, as snteses

    que delas so feitas at sua implementao no Cone Sul e as conexes da ditadura uruguaia

    com os demais regimes repressivos da regio) no se pretende esconder a especificidade do

    caso uruguaio nem o desenvolvimento interno de fatores e protagonismos explicativos. Deve-

  • 37

    se acrescentar que a importncia de um enfoque global permite avaliar, de forma mais

    pertinente, a circulao de informao e de experincias, tanto do sistema repressivo quanto

    das possibilidades de resistncia. O que h, de fato, uma tentativa de avaliar a influncia e o

    impacto dos acontecimentos regionais sobre o Uruguai, especialmente as projees das

    dinmicas internas dos dois grandes Estados vizinhos, assim como a presso da poltica

    externa dos EUA. Sabidamente, a vulnerabilidade internacional do pequeno pas temtica

    recorrente que freqentemente retomada pela intelectualidade uruguaia. Portanto, no se

    trata de estabelecer uma relao mecnica com os acontecimentos externos (com projeo

    regional importante) e a anular os particularismos uruguaios, mas sim do entendimento de

    que, no caso da disseminao dos regimes de SN pela regio, independente dos fatores de

    escala pertinentes, h aspectos comuns tanto na crise de deteriorao do cenrio democrtico

    quanto na imposio da ditadura civil-militar, o que contribui para melhorar a preciso

    explicativa do caso em estudo.

    Finalmente, o trabalho objetivou, mesmo que secundariamente, potencializar as

    conexes entre as experincias do Uruguai e do Brasil, particularmente envolvendo o estado

    do Rio Grande do Sul. A consulta das fontes documentais do Departamento de Ordem Poltica

    e Social desse estado, as atividades desenvolvidas junto Comisso do Acervo da Luta

    Contra a Ditadura57 e o contato com os depoimentos colhidos dentro do Projeto Memria

    Digital58 reforaram a percepo da importncia que o Uruguai teve para importantes quadros

    polticos e militantes sociais do Rio Grande do Sul. Tal pas foi paradigma de uma sociedade

    com diferenciado amadurecimento de conscincia poltica e sindical, vitalidade das suas

    instituies e estabilidade democrtica. Sobretudo, a partir de 1964, o Uruguai se tornou

    terra livre para muitos cidados brasileiros que l se exilaram fugindo da represso

    desencadeada pela ditadura brasileira. Houve um intenso e profcuo dilogo entre a

    comunidade exilada e amplos setores democrticos orientais. Montevidu, principalmente,

    virou local de articulao da resistncia brasileira. A experincia dessa articulao serviu de

    aprendizado para alguns setores da esquerda uruguaia. Assim, o Rio Grande do Sul se tornou

    corredor de passagem ou de sada para o pas platino. S que esse corredor no foi

    57 A Comisso do Acervo da Luta Contra a Ditadura existe desde o ano 2000. Foi criada para desenvolver aes de identificao, recepo e preservao de documentos sobre a ditadura brasileira. Tal documentao compe o Acervo da Luta Contra a Ditadura que, como a comisso de mesmo n