tese andre peixoto de souza - pdf

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  • ANDR PEIXOTO DE SOUZA

    DIREITO PBLICO E MODERNIZAO JURDICA:

    Elementos para compreenso da formao da

    cultura jurdica brasileira no sculo XIX

    CURITIBA

    2010

  • ii

    ANDR PEIXOTO DE SOUZA

    DIREITO PBLICO E MODERNIZAO JURDICA:

    Elementos para compreenso da formao da

    cultura jurdica brasileira no sculo XIX

    Tese apresentada ao Programa de Ps-

    Graduao em Direito, Setor de Cincias

    Jurdicas da Universidade Federal do Paran,

    como requisito parcial obteno do ttulo de

    Doutor em Direito.

    Orientador: Prof. Dr. Ricardo Marcelo Fonseca

    CURITIBA

    2010

  • iii

    TERMO DE APROVAO

    ANDR PEIXOTO DE SOUZA

    DIREITO PBLICO E MODERNIZAO JURDICA:

    Elementos para compreenso da formao da

    cultura jurdica brasileira no sculo XIX

    Tese aprovada como requisito parcial obteno do grau de Doutor em Direito,

    no Programa de Ps-Graduao em Direito, Setor de Cincias Jurdicas da

    Universidade Federal do Paran, pela seguinte banca examinadora:

    Orientador: Prof. Dr. Ricardo Marcelo Fonseca

    Examinadores: Prof. Dr. Arno Dal Ri Jnior

    Prof. Dr. Celso Luiz Ludwig

    Prof. Dr. Srgio Said Staut Jnior

    Prof. Dr. Eduardo Henrique Lopes Figueiredo

    Curitiba, 1 de julho de 2010.

  • iv

    O ponto de referncia necessrio do direito

    somente a sociedade, a sociedade como realidade

    complexa, articuladssima, com a possibilidade

    de que cada uma das suas articulaes produza

    direito (...).

    Paolo Grossi,

    Em Primeira lio sobre direito

    (...) a histria (e, em particular, a histria do

    direito) pode ter outro escopo: o de explicar e

    problematizar criticamente (e no somente

    denunciar dados sepultados, como numa

    curiosidade necrfila tanto intil quanto nociva),

    fazendo-o de um modo tal que esse saber sirva,

    de algum modo (de um modo crtico, que

    complexifique e problematize), ao nosso

    presente.

    Ricardo Marcelo Fonseca,

    em Introduo terica histria do direito

  • v

    Essa vai para o Rapha...

  • vi

    AGRADECIMENTOS

    de mxima importncia expressar, antes de tudo, minha gratido a

    todos os que, direta ou indiretamente, contriburam para com essa pesquisa.

    Em primeirssimo lugar, ao meu orientador, Professor Doutor

    Ricardo Marcelo Fonseca, quem me tem aturado h quase dez anos, desde o

    mestrado, na perseguio insistente sobre o direito no Brasil imperial. Orientador

    que aproximou o meu referencial terico e, na verdade, tem aproximado todas as

    pesquisas na rea da histria do direito no Brasil escola florentina, desde seu

    ps-doutoramento juntamente com o Maestro Paolo Grossi. Sem o seu incentivo e

    as suas preciosas diretrizes esse trabalho certamente no teria acontecido. Ao

    Maestro Ricardo Fonseca a minha eterna e sincera gratido.

    Ao Programa de Ps-Graduao em Direito da Universidade Federal

    do Paran, na pessoa de seu Coordenador, Professor Doutor Jos Antnio Peres

    Gediel, pela aceitao desse projeto e por toda a formao que me tem sido

    proporcionada h quase dez anos.

    Aos Professores do PPGD/UFPR, em especial aos Doutores Abili

    Lzaro Castro de Lima, Cesar Antonio Serbena, Eduardo de Oliveira Leite, Luiz

    Edson Fachin, Luiz Fernando Lopes Pereira, Manoel Eduardo Alves Camargo e

    Gomes e Vera Karam de Chueiri, pela dedicao em trazer aprimoramentos a

    todos os estudantes, sempre ocupados no rigorismo cientfico que faz deste um

    dos melhores centros de estudos jurdicos do Pas.

    Aos Professores que compuseram a banca de qualificao, Doutores

    Arno Dal Ri Jnior, Celso Luiz Ludwig e Srgio Said Staut Jnior, pelas

    preciosssimas contribuies na fase definitiva da pesquisa; reitero o

    agradecimento para composio da banca final, agora acrescida do Professor

    Doutor Eduardo Henrique Lopes Figueiredo, a quem igualmente agradeo.

    Aos queridos e sempre disponveis servidores do PPGD/UFPR,

    Laura, Sandra, Ftima e Rosana, pela dedicao e ateno incansvel no auxlio

    cotidiano de nossas necessidades.

  • vii

    Aos meus colegas e amigos, que so inmeros e cujo rol no caberia

    em todas as pginas dessa tese mas que podem muito bem ser representados

    pelo Professor Fabrzio Nicolai Mancini, e aos professores e estudantes da

    Universidade Tuiuti do Paran, da Faculdade Radial-Estcio de Curitiba e da

    Escola da Magistratura do Paran. Agradeo a todos pelos momentos de rduo

    trabalho, assim como pelos de descontrao, igualmente necessrios.

    s instituies que, de certa forma, sustentaram essa pesquisa,

    aceitando minhas ausncias, e permitindo uma certa interlocuo atravs de

    projetos de iniciao cientfica aprovados, a partir dos quais pude receber de

    vrios colegas e estudantes crticas, comentrios, correes e sugestes.

    Faculdade de Cincias Jurdicas da Universidade Tuiuti do Paran e Faculdade

    Radial-Estcio de Curitiba, pelos seus respectivos coordenadores, Phillip Gil

    Frana, Joo Baptista Nogueira Neto e Fernanda Schaefer Rivabem.

    Por fim, e em verdade a quem mais importa: a minha famlia,

    vastssima, nacional e internacionalmente espalhada, mas que aqui ressalto nas

    pessoas de minha amada Aline, e de nossos pequenos Raphael e Maria Eduarda.

    Vocs trs: razo de minha vida.

    Ainda, aos meus pais, Clovis e Lucia, por tudo!

  • viii

    SUMRIO

    RESUMO ............................................................................................................................. x

    ABSTRACT ........................................................................................................................ xi

    RIASUNTO ....................................................................................................................... xii

    INTRODUO .................................................................................................................. 1

    1. O LUGAR DA FALA ..................................................................................................... 6

    1.1. Cultura e civilizao ................................................................................................ 6

    1.2. Histria cultural e histria do direito ................................................................. 16

    1.2.1. A escola dos Annales, histria das mentalidades e histria cultural ................ 16

    1.2.2. A escola florentina e a historiografia jurdica .................................................... 28

    1.3. Cultura jurdica e pensamento jurdico .............................................................. 33

    1.4. Cultura jurdica brasileira..................................................................................... 41

    2. OS JURISTAS E A OCUPAO COM O DIREITO............................................ 53

    2.1. O papel dos juristas na formao da cultura jurdica: quem o jurista? ...... 53

    2.2. Juristas e cincia do direito................................................................................... 64

    2.3. Pensamento jurdico e discursos jurdicos no Brasil imperial ........................ 70

    2.3.1. Consagrao do Imprio e bacharelismo ............................................................ 72

    2.3.2. Os juristas e o Conselho de Estado .................................................................... 79

    2.3.3. O ensino jurdico ............................................................................................... 85

    2.3.4. O Instituto dos Advogados Brasileiros .............................................................. 92

    3. JURISTAS DO IMPRIO E SUA PRODUO .................................................... 96

    3.1. Bernardo Pereira de Vasconcelos ...................................................................... 100

    3.1.1. Obra ................................................................................................................. 110

    3.1.2. O Cdigo Criminal .......................................................................................... 115

    3.2. Jos Antnio Pimenta Bueno ............................................................................. 125

    3.2.1. Obra ................................................................................................................. 126

    3.2.2. Direito Pblico Brasileiro e Anlise da Constituio do Imprio .................... 128

  • ix

    3.3. Paulino Jos Soares de Sousa ............................................................................. 144

    3.3.1. Obra ................................................................................................................. 147

    3.3.2. Ensaio sobre o Direito Administrativo ............................................................ 148

    3.4. Tobias Barreto de Meneses ................................................................................. 158

    3.4.1. Obra ................................................................................................................. 160

    3.4.2. A Faculdade de Direito do Recife .................................................................... 162

    3.4.3. O pensamento e o germanismo de Tobias Barreto ........................................... 165

    CONCLUSES .............................................................................................................. 175

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS .......................................................................... 188

  • x

    RESUMO

    Esta pesquisa pretende investigar elementos de formao da cultura jurdica no

    Brasil, em tempos de Imprio, desde a produo dos juristas notadamente

    publicistas, no contexto da modernizao jurdica. Parte de uma anlise sobre as

    possibilidades de uma cultura jurdica prpria, na fundamentada distino entre

    cultura e civilizao. Admitindo a civilizao brasileira, e conseqentemente a

    cultura brasileira, a produo doutrinria e legislativa dos juristas Bernardo

    Pereira de Vasconcelos, Jos Antnio Pimenta Bueno, Paulino Jos Soares de Sousa

    e Tobias Barreto de Meneses bem contriburam para com um redirecionamento no

    desenvolvimento jurdico, e derivativamente poltico no Brasil. So ainda

    verificados os espaos por onde a cultura jurdica se manifestava e se desenvolvia,

    como o ensino jurdico, as entidades de classe (IAB), o Conselho de Estado e o

    parlamento. E tem como caracterstica o legalismo, o centralismo e a soberania de

    Estado, a cargo do Poder Moderador.

    Palavras-chave: cultura jurdica brasileira, formao, Brasil Imprio, juristas,

    doutrina, legislao, modernidade jurdica.

  • xi

    ABSTRACT

    The aim of this study was to investigate Brazilians legal culture formation

    elements during the Empire from the work of jurists mainly publicists, in the legal

    modernization context. It starts with an analysis on the possibilities of a legal

    culture of its own, based on the distinction between culture and civilization.

    Considering a Brazilian civilization, and therefore a Brazilian culture, the

    legislative and legal doctrine work of Bernardo Pereira de Vasconcelos, Jos

    Antnio Pimenta Bueno, Paulino Jos Soares de Sousa and Tobias Barreto de

    Meneses contributed to redirect the development of legal and political views in

    Brazil. There are still checked the areas where the legal culture had appeared and

    developed, such as in legal education, representative bodies (IAB), the State

    Council and the parliament. With characteristics including the legal, the centrality

    and sovereignty of State, over Power Moderator.

    Key-words: Brazilian legal culture, formation, Empire of Brazil, law, doctrine,

    legislation, legal modernity.

  • xii

    RIASUNTO

    Questo studio intende indagare elementi di formazione della cultura giuridica in

    Brasile allepoca dellimpero. Dalla produzione di giuristi soprattutto pubblicisti,

    nel contesto della modernizzazione giuridica. Parte di unanalisi che riguarda la

    possibilit di una cultura giuridica propria, basata sulla distinzione tra cultura e

    civilt. Ammettendo la civilt brasiliana, compreso la cultura stessa, vero che le

    inumerevole produzione delle dottrine giuridiche e legislative di nomi come

    Bernardo Pereira de Vasconcelos, Jose Antonio Pimenta Bueno, Jos Paulino

    Soares de Souza e Tobias Barreto de Meneses, contribuirono, di forma cospicua,

    alla formazione di um nuovo pensiero legato allo sviluppo del diritto, della

    poltica e dei derivati nel nostro paese. Sono controllati gli spazi in cui si

    manifestano allinterno delle culture giuridiche e si sviluppano come l'istruzione

    giuridica, associazioni di categoria (IAB), Consiglio di Stato e del parlamento. Con

    caratteristiche tra cui legale, il centralismo e la sovranit del Stato sul Potere

    Moderatore.

    Parole chiave: cultura giuridica brasiliana, la formazione, Impero del Brasile, del

    diritto, dottrina, legislazione, modernit giuridica.

  • 1

    INTRODUO

    A presente pesquisa surge num contexto de busca incessante pela

    formao da cultura jurdica brasileira. Ciente de ser, no Brasil, a histria do

    direito disciplina ainda embrionria, tem sido objeto de pesquisa, em diversas

    vertentes e em alguns programas de ps-graduao em direito e em histria, a

    passagem das caracterizaes do direito portugus ao direito brasileiro, com

    especial destaque cultura jurdica, expresso de uma nova modalidade de

    pensamento jurdico aps 1822.

    Alguns trabalhos de peso foram desenvolvidos no mbito do direito

    privado1, at porque a tradio privatista no Brasil mais clara e contundente do

    que a prtica no direito pblico: seus conceitos e categorias ainda estiveram

    implicados, ao menos na primeira metade do sculo XIX, com as ordenaes

    portuguesas, ao passo que a cultura jurdica de direito pblico no Brasil partiu da

    negao s tradies at ento consolidadas, no evidente objetivo de modernizar

    o Estado-nao que se constitua.

    As diferenas de tratamento entre o pblico e o privado so ntidas e

    merecem chaves de compreenso igualmente distintas. No perodo de transio

    em que se configura o sculo XIX no Brasil, sob o ponto de vista poltico e jurdico,

    1 A ttulo de exemplificao, apenas para ficar no PPGD-UFPR, cita-se a tese de STAUT JNIOR, Srgio

    Said. A posse no direito brasileiro da segunda metade do sculo XIX ao Cdigo Civil de 1916. Tese doutoral

    apresentada ao PPGD-UFPR, 2009. Ainda, a dissertao de FERREIRA, Breezy Miyazato Vizeu. O direito

    matrimonial na segunda metade do sculo XIX: uma anlise histrico-jurdica. Dissertao de mestrado

    apresentada ao PPGD-UFPR, 2008. E os textos de FONSECA, Ricardo Marcelo. A cultura jurdica

    brasileira e a questo da codificao civil no sculo XIX. In: Revista da Faculdade de Direito. Universidade

    Federal do Paran, v. 44, p. 61-76, 2006. _____. A lei de terras e o advento da propriedade moderna no

    Brasil. In: Anuario Mexicano de Historia del Derecho, Mxico, v. XVII, p. 97-112, 2005. _____. Dal diritto

    coloniale alla codificazione: appunti sulla cultura giuridica brasiliana tra setecento e novecento. In:

    Quaderni Fiorentini Per La Storia Del Pensiero Giuridico Moderno, Milano, v. 33/34, p. 963-984, 2005.

  • 2

    o Estado-nao chegou dizendo-se estatal, pretendendo de incio uma

    organizao poltica centralizada, em cuja modernidade estaria presente a

    herana de princpios dos recentssimos Estados liberais burgueses.

    Nessa toada, o Brasil (Imprio) nunca quis ser pr-moderno, nem

    arcaico. E a fuga a esse expediente, to natural quanto bvio em termos de

    tradies (portuguesas), estaria no ferramental elaborado pelo direito pblico. A

    cultura jurdica de direito pblico se tornou, assim, verdadeiro instrumento de

    emancipao do Brasil moderno.

    A partir dessas observaes, torna-se oportuno o estudo dos

    interstcios de direito pblico em formao, no Brasil imperial. Optou-se, para

    tanto, a anlise interna das obras (ou produes) dos juristas publicistas de ento,

    notadamente aqueles que contriburam efetivamente para com a construo desse

    arcabouo tcnico capaz de alar o Brasil modernidade jurdica (e poltica, na

    origem).

    Eis o critrio para escolha desses autores: o encadeamento das

    fontes dos juristas ligados quilo que a cincia jurdica passou a tratar como

    direito pblico, tendo como objeto de anlise, portanto, a tentativa de

    entendimento da cultura jurdica brasileira de direito pblico no j apontado

    contexto histrico de transio. No Brasil, esses juristas o que se nota pelas suas

    obras, referenciadas em inmeros outros trabalhos daquele mesmo contexto

    histrico so os primeiros a colocar as tenses e distines no campo do direito

    pblico.

  • 3

    A atividade legislativa de Bernardo Pereira de Vasconcelos crucial

    para a instaurao do legalismo que pairava nessa modernizao jurdica e poltica

    do Brasil imperial. As doutrinas de Jos Antonio Pimenta Bueno e Paulino Jos

    Soares de Sousa, igualmente, demonstram uma das principais caractersticas desse

    novo regime, o centralismo, pautado na fora do Poder Moderador e de seu rgo

    auxiliar, o Conselho de Estado. Pimenta Bueno, ademais, discute as diferenas

    entre pblico e privado, o que, em si, moderno e novo! Em Tobias Barreto de

    Meneses, j em fins do Imprio, possvel observar o contraste dado a partir de

    sua visualizao no direito comparado, especialmente no germanismo que lhe

    peculiar.

    E para encadear o tratamento comparativo dessa cincia jurdica

    em ebulio durante o Imprio, prope-se as seguintes temticas: o papel da lei

    como agente das liberdades; o papel da lei diante de outras fontes, alm da anlise

    de direito comparado; os mtodos de interpretao da lei; o princpio da

    soberania. Pois sabido que o princpio da legalidade, primazia fundamental da

    Declarao de 1789, d o tom para a prpria liberdade! A redistribuio do poder

    est, na modernidade, vinculada ao comando da lei, cuja definio fica a cargo do

    Estado, englobante da vontade geral. Pois que a lei o critrio da liberdade.

    Um novo sentido de cidadania vem tona, onde a relao entre

    sujeito, comunidade poltica (Estado) e direito redesenhado: na modernidade, os

    direitos dos sujeitos s podem ser expressos em lei, e estas, por sua vez, so

    seguradas e garantidas pelo Estado.

  • 4

    Da Europa para o Brasil devem ser guardadas as propores, pois de

    uma tradio medieval, de longa durao, a pesquisa presente passa para um

    certo localismo, que nem tradio contm ainda. Mas, de qualquer forma, no se

    pode menosprezar o intuito dos juristas do Imprio brasileiro em se espelhar no

    modelo europeu liberal que consagra a cidadania no pretenso Estado-nao j

    politicamente emancipado2.

    claro que esses critrios (o legalismo, as fontes e o direito

    comparado, a hermenutica e a soberania) aparecem em maior ou menor grau

    numa ou noutra obra analisada, de modo que so reciprocamente

    complementares, dando vazo, no todo, aos aspectos primordiais de redefinio

    para a modernidade jurdica no Brasil, a partir das produes de direito pblico.

    Assim, se a cultura jurdica de direito pblico que se coloca

    explicitamente no projeto de modernizao do Brasil eficaz, parece estar

    registrada de plano na cincia jurdica do Imprio, o que culmina com a tese aqui

    proposta, levantada por hora enquanto problemtica: como esses juristas

    publicistas ou o que a cultura jurdica de direito pblico brasileiro, por eles

    representada entendiam a modernizao com relao aos pontos cardeais no

    direito pblico? possvel identificar esses juristas como portadores de uma

    cultura jurdica de direito pblico de transio?

    2 A esse respeito, Pietro Costa bem define cidadania: (...) il termine cittadinanza ha acquisito un significato

    pi ampio, tanto da divenire un termine corrente del discorso pubblico odierno. In questa prospettiva conviene intendere per cittadinanza il rapporto politico fondamentale, il rapporto fra un individuo e lordine politico-giuridico nel quale egli si inserisce. (...) Cittadinanza unespressione utilizzabile per mettere a fuoco il rapporto politico fondamentale e le sue principali articolazioni: le aspettative e le pretese, i diritti e i

    doveri, le modalit di appartenenza e i criteri di differenziazione, le strategie di inclusione e di esclusione.

    Studiare questi temi dal punto di vista della cittadinanza significa assumerli come profili di un oggetto di analisi di cui si intende sottolineare lunitariet. Em COSTA, Pietro. Cittadinanza. Roma-Bari: Laterza, 2005, pp. 3-4.

  • 5

    Para responder, o texto ser encadeado de maneira a abordar, numa

    primeira parte, o referencial metodolgico da pesquisa. O lugar da fala contm

    precisamente o posicionamento do historiador do direito que pretende verificar a

    possibilidade de uma cultura jurdica no Brasil imperial. Para tanto, parte da

    discusso acerca de cultura e civilizao, atinge o debate metodolgico entre a

    Escola dos Annales e a Escola de Florena, e responde a indagao sobre cultura

    jurdica brasileira.

    Num segundo momento, ser importante definir jurista, em mais

    uma clara inteno de posicionamento acerca do modo como ser tratada a

    produo da cincia jurdica no contexto de anlise. O papel do jurista sua

    produo, suas obras, suas atividades assume importante denominador na

    construo de uma cultura jurdica, e as suas prticas podem ser percebidas no

    Conselho de Estado, na instituio do bacharelismo, nos rgos de classe

    (notadamente o Instituto dos Advogados Brasileiros) e no ensino jurdico.

    Finalmente os juristas viro tese, numa abordagem estrutural de

    sua produo legislativa ou doutrinria, para concluir a pretensa modernidade

    jurdica. A anlise dos principais escritos de Bernardo Pereira de Vasconcelos, Jos

    Antonio Pimenta Bueno, Paulino Jos Soares de Sousa e Tobias Barreto de

    Meneses podem demonstrar que, apesar das dificuldades peculiares do Brasil em

    transio, houve claro intento de definio de um modelo de Estado e de direito

    prprios no sculo XIX, dentro dos parmetros do publicismo, que em muito se

    diferem daquela tradio privatista remontante, ainda no Brasil imperial, ao jus

    commune, ao direito romano e ao direito cannico.

  • 6

    1. O LUGAR DA FALA

    Quando se pretende construir a tese que defende a formao da

    cultura jurdica brasileira, inmeros conceitos preliminares devem ser

    apresentados a fim de nortear a pesquisa. Para se atingir a concluso acerca de

    uma possvel cultura jurdica brasileira mister decompor: seguir os conceitos

    de cultura, de cultura jurdica, de cultura brasileira e, finalmente, de cultura

    jurdica brasileira. Epistemologicamente, a pesquisa se encontra no campo da

    histria do direito, razo para, em outro panorama, buscar as diferenas e

    proximidades entre a historiografia social e a historiografia jurdica.

    Por isso, antes de tudo cumpre demonstrar o lugar da fala, a

    perspectiva do pesquisador, os conceitos fundamentais que embasam a tese e o

    seu referencial terico-metodolgico de abordagem. Em suma, o posicionamento

    sobre os conceitos de cultura jurdica e cultura jurdica brasileira, bem como as

    bases tericas de tal posio.

    1.1. Cultura e civilizao

    Uma mesa cheia de feijes.

    O gesto de os juntar num monto nico. E o gesto de

    os separar, um por um, do dito monto.

    O primeiro gesto bem mais simples e pede menos

    tempo que o segundo.

    Se em vez da mesa fosse um territrio, em lugar de

    feijes estariam pessoas. Juntar todas as pessoas num

  • 7

    monto nico trabalho menos complicado do que o de

    personalizar cada uma delas.

    O primeiro gesto, o de reunir, aunar, tornar uno,

    todas as pessoas de um mesmo territrio o processo

    da CIVILIZAO.

    O segundo gesto, o de personalizar cada ser que

    pertence a uma civilizao o processo da

    CULTURA.

    mais difcil a passagem da civilizao para a cultura

    do que a formao de civilizao.

    A civilizao um fenmeno colectivo.

    A cultura um fenmeno individual.

    No h cultura sem civilizao, nem civilizao que

    perdure sem cultura.

    Jos Almada Negreiros, em Ensaios

    Os textos redigidos na dcada de 1930 O processo civilizador (Norbert

    Elias) e Histria da gnese das funes mentais superiores (Lev Vygotsky) esto muito

    prximos na idia de que o homem obra do prprio homem. O processo

    defendido por Elias pretende justificar uma lenta construo do homem pelo

    homem, descartando fatos eventualmente provenientes da natureza, da metafsica

    ou de qualquer outro fator externo. A constituio cultural percebida por

    Vygotsky, na mesma medida, d sentido aos acontecimentos que constituem o

    homem, em virtude de suas articulaes no decorrer do prprio processo

    civilizador/cultural.

    certo que os lugares da fala destes dois tericos so diferentes, pois

    abordam a partir de questes terico-metodolgicas distintas: de um lado as

    cincias sociais, de outro a psicologia da educao. Mas o ponto de encontro est

  • 8

    impressionantemente presente, pois o socilogo admite a obrigatoriedade de uma

    passagem de cada indivduo pelo processo civilizador, a fim de que possa atingir

    o padro em que a sociedade, pela histria, chegou, vertente essa que se identifica

    na tese do educador, quando elabora que o desenvolvimento intelectual da criana

    est diretamente vinculado s suas interaes sociais: ou seja, em Elias e em

    Vygotsky, definitivamente, o homem se forma na e em funo da sociedade.3

    O trabalho de Elias suscita desde o incio a clssica relao entre os

    termos Kultur e Zivilisation, que, em ltima anlise, expressa a conscincia que o

    Ocidente tem de si mesmo4. Para o autor, Zivilisation descreve um processo,

    indica movimento, dinmica permanente com pretenso de resultados futuros,

    estes tambm em constante movimento para a frente. J o conceito alemo de

    Kultur implica em algo no necessariamente dinmico, mas delimitador: produtos

    do homem e sistemas sociais onde sejam perceptveis as caracterizaes dos

    povos.

    A partir da apropriao da idia de Kultur possvel perceber a

    nfase dada especialmente identidade de certos grupos sociais, posto refletir este

    conceito na conscincia de si mesma de uma nao que teve de buscar e constituir

    incessante e novamente suas fronteiras, tanto no sentido poltico como espiritual, e

    repetidas vezes perguntar a si mesma: Qual , realmente, nossa identidade?5.

    3 Essa tese que aborda a concepo de civilizao em Elias e Vygotsky foi desenvolvida em PINO, Angel.

    Cultura e processo civilizador: um confronto de idias de N. Elias e Lev S. Vigotski. IX Simpsio

    Internacional Processo Civilizador, Ponta Grossa, 2005. 4 ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador, v. 1: Uma histria dos costumes. Traduo de Ruy Jungmann. 2

    ed., Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994, p. 23. 5 Idem, p. 25.

  • 9

    Elias aborda com preciso as distines e proximidades entre os

    conceitos alemo e francs, destacando Civilisation francesa, emergente dos

    movimentos de oposio travados na segunda metade do sculo XVIII, pelo

    contexto da Revoluo Francesa, uma correspondncia Kultur germnica. Em

    bela pgina que retrata o discurso de Mirabeau, na dcada de 1760, o autor

    surpreende com esta mxima dita pelo orateur du peuple:

    Se perguntar o que civilizao, a maioria das pessoas responderia:

    suavizao de maneiras, urbanidade, polidez, e a difuso do conhecimento

    de tal modo que inclua o decoro no lugar de leis detalhadas: e tudo isso me

    parece apenas a mscara da virtude, e no sua face, e civilizao nada faz

    pela sociedade se no lhe d por igual a forma e a substncia da virtude.6

    A partir das consideraes acerca da sociedade de corte, encontrada

    nessa e em muitas outras obras de Elias7, destaca o autor que Mirabeau, com esse

    discurso, vinculara o conceito de civilizao s caractersticas especficas da

    aristocracia de corte, e com razo: isto porque o homme civilis nada mais era do

    que uma verso um tanto ampliada daquele tipo humano que representava o

    verdadeiro ideal da sociedade de corte, o honnte homme8. Dessa forma, se por um

    lado o conceito de civilizao constitui a anttese de seu estgio anterior (a

    barbrie), sentimento esse que verdadeiramente permeava a sociedade de corte

    desde fins do sculo XVII, por outro lado a classe mdia burguesa

    6 Idem, p. 54.

    7 ELIAS, Norbert. A Sociedade de corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. _____. A sociedade dos

    indivduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. _____. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das

    relaes de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. _____. Mozart:

    sociologia de um gnio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. 8 ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Op. Cit., p. 54.

  • 10

    revolucionria estava convicta de que os povos ainda no estavam suficientemente

    civilizados, acarretando nessa idia a perspectiva de que civilizao no pode ser

    apenas um status (esttico), mas igualmente um processo (dinmico).

    Enfim, para a corte, por si mesmo considerada civilizada, partcipe

    de um padro elevado de sociedade em termos de moral e costumes, a barbrie

    (burguesia) correspondia sociedade incivilizada: eis aqui a conotao francesa

    da Civilisation. Assim,

    o conceito francs de civilisation reflete o fado social especfico da burguesia

    da nao exatamente como o conceito de Kultur reflete o alemo. O conceito

    de civilisation inicialmente, como acontece com o de Kultur, um

    instrumento dos crculos de classe mdia no conflito social interno. Com a

    ascenso da burguesia, ele veio, tambm, a sintetizar a nao, a expressar a

    auto-imagem nacional. Na prpria revoluo, a civilisation (que,

    naturalmente, refere-se sobretudo a um processo gradual, a uma evoluo,

    e no abandonou ainda seu significado original como programa de

    reforma) no desempenha qualquer papel de relevo entre slogans

    revolucionrios.9

    Sendo de natureza interna, a civilizao se faz inicialmente mediante

    conscientizao da classe e dos povos, e das naes acerca do processo pelo

    qual devero passar, como fase primitiva fundamental na pretenso de atingir

    determinado comportamento ou grau de Zivilisation, a sim dinmica, ou ao

    menos paradigmtica (na cincia, na educao, na tecnologia, na arte e na poltica).

    Essa fundamentao permite retomar a discusso sobre as

    proximidades e distines entre cultura e civilizao.

    9 Idem, pp. 63-64.

  • 11

    A primeira histria de Herdoto suscitou uma primeira problemtica

    no que tange s diversidades dos costumes, ao observar a singularidade dos lcios:

    Eles tm um costume singular pelo qual diferem de todas as outras naes

    do mundo. Tomam o nome da me, e no o do pai. Pergunte-se a um lcio

    quem , e ele responde dando o seu prprio nome e o de sua me, e assim

    por diante, na linha feminina. Alm disso, se uma mulher livre desposa um

    homem escravo, seus filhos so cidados integrais; mas se um homem livre

    desposa uma mulher estrangeira, ou vive com uma concubina, embora seja

    ele a primeira pessoa do Estado, os filhos no tero qualquer direito

    cidadania.

    Ao considerar os costumes dos lcios diferentes de todas as outras

    naes do mundo, Herdoto estava tomando como referncia a sua

    prpria sociedade patrilineal, agindo de uma maneira etnocntrica, embora

    ele prprio tenha teoricamente renegado esta postura ao afirmar:

    Se oferecssemos aos homens a escolha de todos os costumes do mundo,

    aqueles que lhes parecessem melhor, eles examinariam a totalidade e

    acabariam preferindo os seus prprios costumes, to convencidos esto de

    que estes so melhores do que todos os outros.10

    possvel destacar desta idia, alm daquilo que j restou observado

    entre as concepes germnica e francesa dos termos, que a civilizao e a cultura

    podem ser interpretadas, analisadas, entendidas ou compreendidas de distintas

    maneiras, consideradas ou criticadas a partir do ponto de vista do lugar da fala

    do crtico ou do considerante. E mais: que a civilizao e a cultura podem ser

    forjadas a partir dos costumes, dos usos, das prticas daqueles que as vivenciam,

    sendo essa forja pessoal/coletiva, dinmica e pragmtica, a verdadeira essncia

    do processo civilizador/cultural.

    10

    LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropolgico. 13 ed., Rio de Janeiro: Jorge Zahar,

    2000, pp. 10-11.

  • 12

    A natureza dos homens a mesma; so os seus hbitos que os

    mantm separados, j ensinava Confcio no sculo V a.C. E quando Edward

    Tylor sintetizou os j referenciados termos Kultur e Civilisation, aquele na

    pretenso de simbolizar os aspectos espirituais da comunidade, e este referindo-

    se s realizaes materiais do povo, o vocbulo ingls culture atingiu o seu amplo

    sentido etnogrfico, para dizer que, afinal, cultura este todo complexo que

    inclui conhecimentos, crenas, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra

    capacidade ou hbitos adquiridos pelo homem como membro de uma

    sociedade11.

    A culture de Tylor conseguiu abranger todas as possibilidades de

    realizao humana, marcando definitivamente o seu carter dinmico e

    progressivo, em oposio at ento consagrada premissa esttica de transmisso

    biolgica ou transcendental de todos os conhecimentos e costumes dos povos.

    Assim, definitivamente o homem resultado direto do meio cultural em que fora

    socializado, herdeiro de todas as acumulaes de conhecimentos e experincias

    que o precederam.

    E como o debate ganhou o que era, desde seu projeto, inevitvel

    propores antropolgicas12, cabvel a sntese apontada por Clifford Geertz,

    quem remete ao que considera uma das melhores introdues gerais

    antropologia, o Mirror for Man, de Clyde Kluckhohn, onde a definio de cultura

    se apresenta da seguinte forma:

    11

    Edward Tylor apud LARAIA, Roque de Barros. Op. Cit., p. 25. 12

    Kroeber escreveu em 1950 que a maior realizao da Antropologia na primeira metade do sculo XX foi a ampliao e a clarificao do conceito de cultura. Em LARAIA, Roque de Barros. Op. Cit., p. 28.

  • 13

    (1) o modo de vida global de um povo; (2) o legado social que o

    indivduo adquire do seu grupo; (3) uma forma de pensar, sentir e

    acreditar; (4) uma abstrao do comportamento; (5) uma teoria,

    elaborada pelo antroplogo, sobre a forma pela qual um grupo de pessoas

    se comporta realmente; (6) um celeiro de aprendizagem em comum; (7)

    um conjunto de orientaes padronizadas para os problemas recorrentes;

    (8) comportamento aprendido; (9) um mecanismo para a

    regulamentao normativa do comportamento; (10) um conjunto de

    tcnicas para se ajustar tanto ao ambiente externo como em relao aos

    outros homens; (11) um precipitado da histria (...).13

    Portanto, fcil perceber que o termo cultura pretende indicar a

    maneira ou a forma de um grupo, povo ou nao viver, pensar, comportar-se,

    transmitida / recebida ao longo do tempo, capaz de adaptar (movimento ativo) e

    adaptar-se (movimento passivo) s novas perspectivas, aos novos modelos de

    civilizao, de pensamento e de comportamento. assim que define Geertz:

    A cultura consiste em estruturas de significado socialmente estabelecidas,

    nos termos das quais as pessoas fazem certas coisas como sinais de

    conspirao e se aliam ou percebem os insultos e respondem a eles (...).

    (...) Como sistemas entrelaados de signos interpretveis (o que eu

    chamaria de smbolos, ignorando as utilizaes provinciais), a cultura no

    um poder, algo ao qual podem ser atribudos casualmente os

    acontecimentos sociais, os comportamentos, as instituies ou os processos;

    ela um contexto, algo dentro do qual eles podem ser descritos de forma

    inteligvel isto , descritos com densidade.14

    13

    Clyde Kluckhohn, apud GEERTZ, Clifford. A interpretao das culturas. Traduo de Gilberto Velho.

    Rio de Janeiro: LTC, 1989, p. 14. 14

    GEERTZ, Clifford. Op. Cit., pp. 23-24.

  • 14

    Importa, pois, destacar a precisa significao aqui pretendida, a fim

    de determinar sua base social e sua importncia, ressalvadas as fugas ou

    ciladas que o termo compreende: o folclorismo, o institucionalismo, o

    estruturalismo, as classificaes, as colees, os rtulos.

    No campo diverso porm prximo da historiografia, o historiador

    britnico Edward P. Thompson identifica a cultura nos costumes que se

    manifestaram na vida dos trabalhadores ingleses do sc. XVIII. Defende que parte

    destes costumes eram, em verdade, reivindicaes de novos direitos que foram

    efetivamente conquistados. A partir do momento em que o conjunto de costumes

    adquire esse plural (costumes) e reduzido a mecanismos de sobrevivncia,

    perde-se o sentido do costume no como posterior a algo, mas como sui generis:

    ambincia, mentalit, um vocabulrio completo de discurso, de legitimao e de

    expectativa15.

    Com isso, sem desatentar para uma vertente crtica, Thompson

    encontra no termo costume a origem da moderna expresso cultura:

    No sculo XVIII, o costume constitua a retrica de legitimao de quase

    todo uso, prtica ou direito reclamado. (...) Era um campo para a mudana

    e a disputa, uma arena na qual interesses opostos apresentavam

    reivindicaes conflitantes. Essa uma razo pela qual precisamos ter

    cuidado quanto a generalizaes como cultura popular. Esta pode

    sugerir, numa inflexo antropolgica influente no mbito dos historiadores

    sociais, uma perspectiva ultraconsensual dessa cultura, entendida como

    sistema de atitudes, valores e significados compartilhados, e as formas

    simblicas (desempenhos e artefatos) em que se acham incorporados. Mas

    15

    THOMPSON, Edward Palmer. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional.

    Traduo de Rosaura Eichemberg. So Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 14.

  • 15

    uma cultura tambm um conjunto de diferentes recursos, em que h

    sempre uma troca entre o escrito e o oral, o dominante e o subordinado, a

    aldeia e a metrpole; uma arena de elementos conflitivos, que somente

    sob uma presso imperiosa por exemplo, o nacionalismo, a conscincia de

    classe ou a ortodoxia religiosa predominante assume a forma de um

    sistema. E na verdade o prprio termo cultura, com sua invocao

    confortvel de um consenso, pode distrair nossa ateno das contradies

    sociais e culturais, das fraturas e oposies existentes dentro do conjunto.16

    E alerta, assim como Geertz, para as armadilhas ocultas que

    necessitam ser desarmadas, sob pena de perda do referencial e, afinal, do prprio

    lugar da fala:

    Mesmo assim, no podemos esquecer que cultura um termo

    emaranhado, que, ao reunir tantas atividades e atributos em um s feixe,

    pode na verdade confundir ou ocultar distines que precisam ser feitas.

    Ser necessrio desfazer o feixe e examinar com mais cuidado os seus

    componentes: ritos, modos simblicos, os atributos culturais da hegemonia,

    a transmisso do costume de gerao para gerao e o desenvolvimento do

    costume sob formas historicamente especficas das relaes sociais e de

    trabalho.17

    Cultura e civilizao se encontram e se separam a todo instante. Tal

    qual o corpo e a conscincia: na viglia a conscincia est no corpo; no sono

    profundo est fora do corpo, ou, melhor dizendo, o corpo no detm conscincia.

    Civilizao corpo; cultura conscincia. Um grupo, uma sociedade, um povo,

    uma nao podem, no transcurso do tempo, alterarem-se entre civilizao e

    barbrie, e, seja como for, detero cultura: seus signos e ritos, seus costumes e

    16

    Idem, pp. 16-17. 17

    Idem, p. 22.

  • 16

    comportamentos, suas crenas, suas prticas, suas racionalidades coexistentes, sua

    histria.

    1.2. Histria cultural e histria do direito

    1.2.1. A escola dos Annales, histria das mentalidades e histria cultural

    Le principal pch des historiens vis--vis de lhistoire

    du droit est lignorance.

    Jacques Le Goff

    A histria cultural filha tempor da escola historiogrfica francesa

    dos Annales, movimento iniciado em Estrasburgo nos fins da dcada de 1920, por

    Marc Bloch e Lucien Febvre. Pretendiam os fundadores dessa prestigiada escola

    desenvolver um conjunto de estratgias teis ao combate da histria tradicional,

    historicizante, vnementielle. At ento predominava na academia francesa um

    tipo de histria preocupada apenas com os grandes acontecimentos, com fatos

    singulares de natureza poltica e militar, uma histria que se furtava ao debate e

    ao dilogo com as demais cincias humanas (sobretudo a antropologia, a

    psicologia, a geografia, a economia e a sociologia). Propunham, dessa forma, os

    fundadores dos Annales dhistoire conomique et sociale, uma histria das estruturas

    em movimento, uma nova histria baseada na interdisciplinaridade.

    O que se via na Frana, e praticamente em toda a Europa, antes dessa

    proposta era uma histria escrita sob a forma de crnica narrativa de eventos

  • 17

    especialmente polticos e militares. O dicionrio da Academia Francesa, na

    primeira edio de 1694, assim dispunha sobre o conceito de histria: a

    narrao das aes e das coisas dignas de memria. A oitava edio, de 1935,

    ainda corroborou: histria o relato de aes, de acontecimentos, de coisas

    dignas de memria.18 A segunda metade do sculo XIX foi muito frtil em

    possibilidades metodolgicas, e apesar dos escritos de Jules Michelet, Jacob

    Burkhardt, Marx, Comte, Spencer, Durkheim, Lamprecht, Lavisse, o clima

    histrico, ou historiogrfico, ainda era de culto ao fetichismo dos fatos.

    As produes de Bloch e Febvre cortaram essa tradio: em La societ

    fodale Bloch apresenta toda uma cultura do feudalismo, analisando a sociedade

    feudal como um todo, de 900 a 1300, trabalhando a idia de longa durao,

    termo que ser aperfeioado por Fernand Braudel. Febvre, por sua vez, consegue

    atingir o clmax de refutar toda e qualquer possibilidade de se pensar o atesmo no

    sculo XVI, em seu Le problme de lincroyance au XVIe sicle: la rligion de Rabelais, a

    partir de suas contestaes aos argumentos de Abel Lefranc, editor de Rabelais,

    quem apontava infundadamente o autor da srie Gargntua e Pantagruel como um

    ateu (e por isso injustamente acusado pelo Vaticano e pela Sorbonne).

    Braudel, discpulo de Frebvre, escreveu o monumental La

    Mditerrane et le monde mditerranen lpoque de Philippe II. Considerado o cone

    da segunda gerao da escola, nessa obra, escrita praticamente de memria na

    priso de Lbeck, aborda aspectos at ento impensados por historiadores: a

    geologia e a geografia do mediterrneo, as sociedades e suas culturas, as relaes e

    18

    Em DOSSE, Franois. A Histria em Migalhas: dos Annales nova histria. Traduo de Dulce A. Silva

    Ramos. Campinas: Edunicamp, 1992, p. 36.

  • 18

    as barreiras sociais e polticas daquele espao naquele tempo, a economia, a

    conjuntura de um local que, por acaso, no sculo XVI, comandado por Filipe II

    (dedica alis, ironicamente, ao final da obra, pouqussimas pginas a essa

    personagem, quem, na histria tradicional, teria sido o ator principal da trama).

    A partir do final da dcada de 1960 os historiadores recrutados por

    Braudel passam a assumir e pulverizar a escola, fundando extraoficialmente

    uma terceira gerao que se espalha pelo mundo todo: Jacques Revel, Jacques Le

    Goff, Georges Duby, Michle Perrot, Emmanuel Le Roy Ladurie, Philippe Aris,

    Jean Delumeau, Roger Chartier, alm de surtir influncias em inmeros

    historiadores importantes, tais como Robert Darnton e Carlo Ginzburg. Os Annales

    adquirem poder acadmico consistente, desde que passam a ocupar espaos

    consagrados e importantes no meio intelectual francs e mundial: Le Figaro, Le

    Monde, LExpress, Le Nouvel Observateur, Channel 7, Sorbonne, Collge de France,

    Lcole des Hautes tudes en Sciences Sociales, universidades europias e norte-

    americanas... e a crtica imediata, pois o projeto original da escola poderia estar

    sendo abandonado, diante da preocupao hegemnica da nova historiografia

    em aprender, pesquisar, ensinar, escrever, editar, comerciar, vender. Franois

    Dosse chega ao ponto de ironizar a terceira gerao quando aduz que os

    responsveis pelas colees histricas da maior parte das editoras so membros

    dos Annales. Assim, ocupam uma posio de poder essencial, o de selecionar as

    obras consideradas dignas de ser editadas e deixar de lado as outras. (...) A

    produo histrica francesa tornou-se quase um monoplio dos Annales19. Mas o

    19

    Idem, p. 15.

  • 19

    mesmo crtico, por outro lado, assim bem sintetizou o esprito desse clima

    intelectual terceira gerao da escola:

    O Ocidente descobre os charmes discretos do tempo antigo, da idade do

    ouro perdida, da belle poque, que preciso reencontrar. esse tempo

    reencontrado que os historiadores se encarregam de reproduzir ao

    tomarem emprestado os instrumentos de anlise e os cdigos dos

    etnlogos. O reprimido torna-se portador de sentido. Tudo se torna objeto

    de curiosidade para o historiador, que desloca seu olhar para as margens,

    para o avesso dos valores estabelecidos, para os loucos, para as feiticeiras,

    para os transgressores... O horizonte do historiador fecha-se sobre um

    presente imvel, no h mais futuro (...). (...) Abandona-se os tempos fortes

    e os movimentos voluntaristas de mudana, em direo memria do

    quotidiano das pessoas simples.20

    Ora, no difcil imaginar que a conjuntura pela qual passava a

    prpria historiografia daria margem para discusses tericas acerca de seus

    mtodos e conceitos. Convm destacar o debate que ora aproximou e ora

    distanciou a histria cultural da histria das mentalidades. Esta, por vezes, criticada

    em funo de um certo afastamento dos Annales, ou, se no afastada, herdeira de

    seus defeitos.

    A histria das mentalidades surgiu em oposio perspectiva

    econmica da histria, que sob influncia marxista predominou na historiografia

    francesa entre as dcadas de 1950-1960. O termo mentalit, usado para exprimir

    algo prximo a uma psicologia histrica coletiva, pode ser identificado, no

    entanto, com o prprio fundador da escola, Marc Bloch, onde no seu Les rois

    20

    Idem, p. 168.

  • 20

    thaumaturges apresentava um conjunto de crenas populares, um pensamento

    coletivo, uma mentalit acerca do poder de cura do toque real dos reis taumaturgos

    medievais. Alis, o mesmo se verifica no estudo de Febvre sobre a descrena no

    sculo XVI (o suposto atesmo de Rabelais, j mencionado).

    Veja-se o exemplo colhido de Philippe Aris acerca da presena da

    mentalit em Febvre:

    Outro exemplo foi dado por Lucien Febvre, o da compatibilidade entre

    atitudes que se tornaram desde ento incompatveis. Margarida de

    Navarra, irm de Francisco I, podia escrever sem escrpulos exagerados,

    um aps o outro, o Heptamero, coletnea de contos licenciosos, e o Espelho

    de uma alma pecadora, coletnea de poemas espirituais. Nossos costumes

    tambm no tolerariam essa mistura ingnua e essa boa f.

    Certas coisas, portanto, eram concebveis, aceitveis, em determinada

    poca, em determinada cultura, e deixavam de s-lo em outra poca e

    numa outra cultura. O fato de no podermos mais nos comportar hoje com

    a mesma boa-f e a mesma naturalidade de nossos dois prncipes do sculo

    XVI, nas mesmas situaes, indica precisamente que interveio entre elas e

    ns uma mudana de mentalidade. No que no tenhamos mais os

    mesmos valores, mas que os reflexos elementares no so mais os mesmos.

    Eis mais ou menos o que entendemos, a partir de Lucien Febvre, por

    atitudes mentais.21

    Esse importante membro da terceira gerao da escola est convicto

    de que o conceito de mentalit amplia as possibilidades (o territrio22) do

    historiador. Isso est claro na seguinte passagem:

    21

    ARIS, Philippe. A histria das mentalidades. In: LE GOFF, Jacques. A histria nova. Traduo de

    Eduardo Brando. 4 ed., So Paulo: Martins Fontes, 1988, p. 154. 22

    Territrio do historiador termo cunhado por outro partcipe da terceira gerao dos Annales, Emmanuel Le Roy Laudurie, em Le territoire de lhistorien.

  • 21

    O historiador rel hoje os documentos utilizados por seus predecessores,

    mas com um novo olhar e outro gabarito. Os temas freqentados pelos

    primeiros foram os que eram preparados pela histria econmica e

    demogrfica: a vida do trabalho, a famlia, as idades da vida, a educao, o

    sexo, a morte, isto , as zonas que se acham nas fronteiras do biolgico e do

    mental, da natureza e da cultura. As publicaes sobre esses temas,

    inimaginveis h mais de cinqenta anos, constituem hoje um conjunto

    coerente e uma vasta biblioteca. o primeiro domnio conquistado pela

    histria das mentalidades.23

    E impugna toda a crtica (especialmente a de Dosse24) sobre a esttica

    temporal da nova historiografia:

    Assim, o passado, o tempo de diferena, se aproxima de ns, tornando-se

    cada vez mais difcil ignor-lo, do mesmo modo que no nos mais

    possvel ignorar a arte negra, a arte ndia ou a arte pr-colombiana: ela nos

    queima os dedos. As diferenas de todas as idades nos assediam, contudo

    nossa percepo ingnua, imediata, continua sempre sendo de nosso

    prprio presente, nico ponto de ancoragem no tempo. A recente

    aproximao entre presente e passado no ser a verdadeira razo da

    histria das mentalidades?25

    Mas a crtica se segue, ora por considerar a histria das mentalidades

    demasiadamente antropolgica quando privilegia a estagnao das estruturas

    23

    Idem, p. 169. 24

    Quem diz: O historiador dos Annales torna-se o especialista do tempo imvel em um presente congelado, petrificado de pavor diante de um futuro incerto (DOSSE, Franois. Op. Cit., p. 169). 25

    Idem, p. 173.

  • 22

    na longa durao, ora por consider-la insuficientemente antropolgica ao

    analisar e julgar as sociedades passadas com o olhar contemporneo.26

    No Brasil, Ciro Flamarion Cardoso, nessa mesma linha crtica,

    acusou os historiadores das mentalidades de se dedicarem ao estudo perifrico,

    de iluminar fantasmas e, sobretudo, de negar as totalidades sintticas da histria,

    renunciando a posturas explicativas e propagandeando uma histria reacionria

    desprovida de contradies27.

    E Ronaldo Vainfas retomou a crtica apresentando os argumentos do

    novo presidente, Jacques Le Goff, a partir do artigo publicado no Faire de lhistoire

    (1974) sobre a prpria ambigidade das mentalidades:

    Do artigo de Le Goff podem ser extradas trs idias bsicas que, de certo

    modo, procuram delimitar o campo conceitual das mentalidades.

    Primeiramente, a questo do recorte social das mentalidades, que o autor

    diz ser abrangente a ponto de diluir as diferenas inerentes estratificao social

    da sociedade estudada. A mentalidade de um indivduo histrico, sendo esse

    um grande homem, justamente o que ele tem de comum com outros

    homens de seu tempo, afirma o autor logo no incio do artigo. E mais

    adiante: O nvel da histria das mentalidades... o que escapa aos sujeitos

    particulares da histria, porque revelador do contedo impessoal de seu

    pensamento o que Csar e o ltimo soldado de suas legies, Cristvo

    Colombo e o marinheiro de suas caravelas tm em comum. Em segundo

    lugar, quanto a esse domnio de crenas e atitudes comuns a toda a

    sociedade, Le Goff diz situar-se, de preferncia, no campo do irracional e

    do extravagante, do que decorrem a noo de inconsciente coletivo e a

    recomendao de uma pesquisa arqueopsicolgica para desvendar esse

    26

    VAINFAS, Ronaldo. Histria das mentalidades e histria cultural. In: CARDOSO, Ciro Flamarion e

    VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Domnios da histria: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus,

    1997, p. 128. 27

    Idem.

  • 23

    ltimo em investigaes concretas. Enfim, a questo do tempo das

    mentalidades que, conforme j disse, o tempo braudeliano da longa

    durao: A mentalidade, afirma Le Goff, aquilo que muda mais

    lentamente. Histria das mentalidades, histria da lentido na histria.28

    Apesar disso, Le Goff revisa determinados conceitos em LHistoire

    Aujourdhui (1980), inclinando a mentalidade ao cotidiano, o que demonstra um

    certo desgaste do termo ou noo mentalidades no circuito acadmico francs.29

    Mas no debate com Michel Vovelle, longe de intencionar uma

    discusso entre no-marxista e marxista, que a noo de mentalidade atinge o seu

    limite, pois este prope uma articulao da mentalidade com a ideologia. Ainda, tal

    discusso permite observar certos dilemas no aparato conceitual das

    mentalidades.30

    A histria das mentalidades, afirmou Vovelle, o estudo das mediaes

    entre, de um lado, as condies objetivas da vida dos homens e, de outro, a

    maneira como eles narram e mesmo como a vivem. A esse nvel, as

    contradies se diluem entre os dois esquemas conceituais: ideologias de

    uma parte, mentalidades de outra. As mentalidades seriam mesmo, para

    Vovelle, um terceiro nvel da estrutura social (ou do modo de produo),

    afirmando-se no como um territrio estrangeiro, extico, mas como o

    prolongamento natural e a ponta fina de toda histria social.31

    Diante de todas essas perspectivas, oportuna a sntese trazida por

    Vainfas sobre as possibilidades histricas ou variantes da histria das

    mentalidades:

    28

    Idem, p. 139. 29

    Idem. 30

    Idem, pp. 140 e 141. 31

    Idem, p. 141.

  • 24

    Numa viso de conjunto, seria pois errneo falar em uma histria das

    mentalidades homognea e unificada, seja quanto a seus pressupostos

    terico-metodolgicos, seja quanto aos resultados das investigaes.

    Considerando apenas a historiografia sobre as mentalidades produzida na

    Frana que, afinal, foi o bero desta corrente de pesquisas, talvez se possa

    falar de pelo menos trs variantes da histria das mentalidades:

    1. Uma histria das mentalidades herdeira da tradio dos Annales, seja

    quanto valorizao do que Febvre chamava de outillage mental, seja

    quanto ao reconhecimento de que o estudo do mental s faz sentido se

    articulado a totalidades explicativas ( o caso de Le Goff, Duby, Le Roy

    Ladurie etc., autores que, em certos casos, tambm transitaram pelo

    marxismo).

    2. Uma histria das mentalidades assumidamente marxista, preocupada em

    relacionar os conceitos de mentalidade e ideologia, bem como em minorar a

    frialdade da longa durao pela valorizao da ruptura e da dialtica entre

    o tempo longo e o acontecimento revolucionrio (caso tpico de Vovelle).

    3. Uma histria das mentalidades, esta sim, descompromissada de discutir

    teoricamente os objetos, e unicamente dedicada a descrever e narrar pocas

    ou episdios do passado, histria ctica quanto validez da explicao e da

    prpria distino entre narrativa literria e narrativa histrica ( o caso de

    alguns estudos da srie Histria da vida cotidiana e de certos trabalhos

    monogrficos sobre microtemas como os cardpios, os modos de beijar ou

    chorar, o imaginrio do onanismo etc.).

    Trs variantes, portanto, trs maneiras de fazer a histria das mentalidades

    que devem ser levadas em conta num balano crtico de conjunto, inclusive

    para que se possa avaliar, sem preconceitos ou parti pris, as potencialidades

    e limitaes desse campo de estudos.32

    A crtica se encerra com os riscos a que a imaginao histrica da

    nova histria assumiu, pois a ausncia de verossimilhana ou de provas das

    32

    Idem, pp. 143-144.

  • 25

    alegaes poderia indeferir a legitimidade da disciplina, pr em risco a sua

    soberania e at mesmo extinguir a proposta da mentalidade. O resultado , alm

    da desero de historiadores do campo das mentalidades para outros campos

    rebatizados, o paradoxo em que se encontra a relao conceitual entre histria das

    mentalidades e histria cultural.

    Assim, a histria das mentalidades como disciplina do saber vem sendo

    substituda por histria cultural alis campo este originrio dos prprios Annales e

    de onde derivou a histria das mentalidades ou ainda por histria das idias,

    histria de gnero, histria da sexualidade, ou at mesmo por conceitos como

    cultura popular, imaginrio, vida privada, micro-histria etc.

    A nova histria cultural rejeita o termo e o conceito de

    mentalidade por ser vago, ambguo e impreciso quanto s relaes entre o mental

    e o social. Mas na verdade histria cultural outro nome, outro rtulo, para a

    histria das mentalidades, com sutis diferenas principalmente no campo do

    popular, pois pretende ou ao menos intenciona resgatar o papel das classes

    sociais, da estratificao, do conflito social, percorrendo enfim caminhos

    alternativos para a investigao histrica.33

    A exemplo disso tem-se a produo de Thompson, quem brindou a

    histria e a historiografia com o clssico The making of the english working class,

    dentre outras obras de mesmo calibre. Nesse trabalho procurou demonstrar a

    formao da classe operria inglesa em meio ao processo de industrializao nos

    33

    Percebe-se esse intento no conceito de cultura popular apresentado por Ginzburg: conjunto de atitudes, crenas, cdigos de comportamento prprios das classes subalternas num certo perodo histrico. Em Ginzburg, a cultura popular se define antes de tudo pela sua oposio cultura letrada ou oficial das classes dominantes. (In: VAINFAS, Ronaldo. Op. Cit., p. 151).

  • 26

    sculos XVIII-XIX. De formao marxista, consagrou sua vertente histria

    cultural, porquanto se afastou da tese tradicional segundo a qual as classes

    dominantes seriam protetoras (e ao mesmo tempo, implicitamente, opressoras)

    das classes dominadas, impedindo dessa forma a construo de valores e

    identidades a estas. O making of de Thompson revela todo o carter autosuficiente

    das classes populares (working class) que so capazes de se tornar classe, mediante

    conscincia de sua explorao no processo capitalista de produo. A sua

    conscientizao enquanto classe lhes permite uma perspectiva revolucionria,

    onde no processo de luta ser forjada sua identidade, sua cultura, sua

    independncia.

    Na abertura do ensaio Centro e periferia nas estruturas administrativas

    do Antigo Regime, sintetizando o que j havia publicado em Histria das instituies

    e Une nouvelle histoire du droit? e que ser retomado no princpio de O direito dos

    letrados no imprio portugus e da Cultura jurdica europia34 Antnio Manuel

    Hespanha consolida a necessidade de um repensar metodolgico para a histria

    do direito, dessa maneira:

    34

    No eram, portanto, estas orientaes metodolgicas que mereciam as crticas de formalismo que a primeira gerao da Escola dos Annales dirigiu contra a histria poltica e jurdica. Os destinatrios destas

    crticas eram antes os historiadores do direito, que dominavam as faculdades jurdicas e que faziam uma

    histria estritamente jurdica, dirigida unicamente para a descrio da evoluo do direito oficial e letrado, dos seus aspectos legislativos e conceituais (...), no considerando nem o contexto social destes, nem as

    mltiplas formas de organizao e de constrangimento que no tm origem no poder oficial, nem abrigo no

    discurso letrado sobre o direito. A crtica da Escola dos Annales era justa, se dirigida apenas contra quem a

    merecia. Mas acabou por ter efeitos excessivos e prejudiciais. (...). HESPANHA, Antnio Manuel. O direito dos letrados no imprio portugus. Florianpolis: Fundao Boiteux, 2006, pp. 18-19.

  • 27

    Desde que, h j uns quarenta nos, a Escola dos Annales lanou a sua

    campanha contra a histria anedtica, a histria poltica, institucional e

    jurdica no cessou de ser apontada como o domnio irrecupervel do facto

    isolado, do documento, do formalismo e do idealismo.

    Verdade que a historiografia dominante neste sector justificava, em geral,

    tal opinio. O poltico era a alta poltica e esta, por natureza, o campo de

    aco das grandes figuras. O direito era o mundo das normas jurdicas

    formais (i.e., expressamente editadas pelos poderes estabelecidos the Law

    in the books), mundo que o direito da vida (the Law in action, produto da

    fora ou da ignorncia e, logo, ignorado pelos jus-historiadores)

    deixaria intocado. No que respeita actividade poltico-administrativa,

    pouco interesse despertava. (...).

    Os tempos mudam, porm. A histria poltica, jurdica e institucional vai

    sendo hoje objecto de um tratamento semelhante ao dos outros territrios

    historiogrficos.35

    Em suma, entre histria das mentalidades, histria cultural e

    novas historiografias a partir dos Annales, ainda no chegado o modelo terico

    capaz de abordar com pertinncia a histria do direito, e que seja capaz de

    contribuir para com a construo de um conceito de cultura jurdica na histria.

    Haver, pois, uma escola italiana que, desde 197136, se ocupar com essa nova

    proposta.

    35

    HESPANHA, Antnio Manuel. Centro e periferia nas estruturas administrativas do Antigo Regime.

    Disponvel em , coletado em 07/01/2010. 36

    Data de fundao, por Paolo Grossi, do Centro studi per la storia del pensiero giuridico moderno,

    vinculado Universit degli Studi di Firenze.

  • 28

    1.2.2. A escola florentina e a historiografia jurdica

    Histria do direito no deixa de ser histria vinculada a determinado

    ramo do conhecimento histrico. Fazer histria do direito pressupe, no entanto,

    conhecimentos especficos acerca de categorias inerentes ao universo jurdico, o

    que no lhe retira a condio de ser gnero da histria, mas que lhe confere uma

    especificidade peculiar sob o ponto de vista historiogrfico.

    Em Florena, desde a dcada de 1960, historiadores do direito vm se

    ocupando com as maneiras de fazer histria do direito, delimitando o territrio

    do historiador do direito, movimento esse que gerou frutos ora espalhados pelo

    planeta: desde Paolo Grossi para Pietro Costa, Paolo Cappellini, Bernardo Sordi,

    Maurzio Fioravanti, Mario Sbriccoli, Giovanni Cazzetta, e destes todos em

    maior ou menor medida para Bartolom Clavero, Ricardo Marcelo Fonseca,

    Arno Dal Ri Jnior, Jos Ramn Narvez Hernandes, Ezequiel Absolo, Srgio

    Said Staut Jnior, dentre outros.

    A smula que inicia o debate pode ser muito bem capturada em

    Pietro Costa, quando expe o direito como objeto do conhecimento histrico e a

    forma a que se deve tratar tal objeto:

    A histria do direito apresenta problemas especficos que seria interessante

    afrontar. Ela , porm, espcie de um gnero: pertence integralmente ao

    ramo do conhecimento histrico. Uma caracterstica atual do conhecimento

    histrico , de fato, de ser no um objeto, mas um ponto de vista: todo

    aspecto da realidade humana pode ser objeto do conhecimento histrico.

    Pode-se fazer, e se faz, histria de tudo: da poltica, das religies, da arte,

    da msica, da agricultura, da sexualidade, do trabalho, da cultura material,

  • 29

    dos saberes, do direito. Cada uma destas historiografias afronta aspectos

    especficos da experincia e deve, portanto, dispor de conhecimentos

    adequados compreenso do seu objeto. Espera-se que o historiador da

    msica saiba ler as notas de uma partitura e diferenciar uma fuga de uma

    sonata, que o historiador da arte saiba como pintar um afresco, que o

    historiador do direito no confunda propriedade com usufruto e o juiz

    instrutor com o ministrio pblico (mas no por isso se pretende que o

    historiador da msica componha uma sinfonia, que o historiador da arte

    pinte um quadro ou que o historiador do direito defenda um

    desafortunado no tribunal).37

    Ressalte-se: todo aspecto da realidade humana pode ser objeto do

    conhecimento histrico. E qualquer objeto que seja perseguido pela historiografia

    merece anlise em todos os pontos de vista, sob pena de escapar ao historiador

    e conseqentemente ao conhecimento histrico as nuances, os pormenores e at

    mesmo os contrastes daquilo que se pretende conhecer.

    Sem mutilar a histria38, tal anlise necessita de certo instrumental,

    de um aparato metodolgico e conceitual capaz de adentrar no objeto sem feri-lo,

    sem danific-lo, sem desvirtu-lo de seu verdadeiro ou pretenso sentido.

    Por esse motivo, espera-se que o historiador do direito conhea o

    territrio por onde anda, a rea e o espao em que dever dissecar o objeto do

    conhecimento histrico-jurdico, as categorias e conceitos inerentes ao mundo do

    direito.

    perceptvel desde Marc Bloch, co-fundador dos Annales, a distino

    e a reserva conferidas histria do direito.

    37

    COSTA, Pietro. Passado: dilemas e instrumentos da historiografia. Traduo de Ricardo Marcelo

    Fonseca. In: Revista da Faculdade de Direito da UFPR, n 47. Curitiba: UFPR, 2008, pp. 21-22. 38

    Termo cunhado por Marc Bloch na sua inacabada porm brilhante Apologia da histria.

  • 30

    (...) histria do direito. O ensino e o manual, que so admirveis

    instrumentos de esclerose, vulgarizaram o nome. Vejamos mais de perto,

    porm, o que este abrange. Uma regra de direito uma norma social,

    explicitamente imperativa; sancionada, alm disso, por uma autoridade

    capaz de impor seu respeito com a ajuda de um sistema preciso de coeres

    e de punies. Na prtica, tais preceitos podem reger as atividades mais

    diversas. Nunca so os nicos a govern-las: obedecemos, constantemente,

    em nosso comportamento cotidiano, a cdigos morais, profissionais,

    mundanos, no raro muito mais imperiosos que o Cdigo puro e simples.

    As fronteiras deste oscilam incessantemente, alis; e para ser ou no

    inserida nele, uma obrigao socialmente reconhecida no muda

    evidentemente de natureza. O direito, no sentido estrito do termo,

    portanto o envoltrio formal de realidades em si mesmas extremamente

    variadas para fornecer, com proveito, o objeto de um estudo nico; e no

    esgota nenhum deles. Ser que para explorar a vida da famlia (...) basta

    enumerar uns depois dos outros os artigos de um direito de famlia

    qualquer? (...) No entanto, h, na noo do fato jurdico como distinto dos

    outros, algo de exato. que, ao menos em numerosas sociedades, a

    aplicao e, em larga medida, a prpria elaborao das regras de direito

    foram obra prpria de um grupo de homens relativamente especializado e,

    nesse papel (que seus membros podiam naturalmente combinar com outras

    funes sociais), suficientemente autnoma para possuir suas tradies

    prprias e, com freqncia, at uma lgica de raciocnio particular. A

    histria do direito, em suma, poderia muito bem s ter existncia separada

    como histria dos juristas: o que no , para um ramo de uma cincia dos

    homens, maneira to ruim de existir. Entendida nesse sentido, ela lana

    sobre fenmenos bastante diversos, mas submetidos a uma ao humana

    comum, luzes forosamente incompletas, mas, em seus limites, bastante

    reveladoras. Ela apresenta um ponto de vista sobre o real.39

    39

    BLOCH, Marc. Apologia da histria ou o ofcio do historiador. Traduo de Andr Telles. Rio de Janeiro:

    Jorge Zahar, 2001, pp. 130-131.

  • 31

    A escola florentina dialoga a todo instante com os Annales, e por esta

    razo cabvel retirar de Bloch um dos preceitos da historiografia jurdica:

    apresentando o seu ponto de vista sobre o real, a histria do direito observa que

    o homem obedece no apenas a instrues normativas, legais, formais, mas a

    cdigos morais e invisveis que, se no precedem o prprio direito, servem-lhe de

    base e alicerce. O olhar do historiador do direito captura esse detalhe, o flash que

    converte a idia, nas mos do jurista, em forma.

    Bartolom Clavero, quando comenta o texto de Antnio Manuel

    Hespanha40, oferece especial destaque posio metodolgica do professor

    portugus, quem, ao analisar a doutrina histrico-jurdica, se embasa numa

    historiografia peculiar acerca das presenas e funes de conceitos jurdicos a todo

    um sistema corporativo histrico.41

    A forte crtica de Clavero est na dependncia constante que a

    histria do direito vem demonstrando em face de otras facultades, conquanto

    vergonhosamente no demonstra seu objeto, suas origens, seu lastro doutrinal

    para o prprio estudo do objeto jurdico. As sutilezas jurdicas cabveis e

    perceptveis aos olhos do historiador do direito (e muitas vezes despercebidas ou

    desprezadas pelo historiador social) ainda no so valorizadas, pois o historiador

    do direito se apresenta, hoje, sin capacidad alguna para construir sus propias

    40

    HESPANHA, Antnio Manuel. Historia das instituies. poca medieval e moderna. Coimbra: Almedina,

    1982. 41

    CLAVERO, Bartolom. Del pensamiento juridico en el estudio de la histria. In: Quaderni fiorentini per

    la storia del pensiero giuridico moderno, n. 13. Milano: Giuffr, 1984, p. 564.

  • 32

    herramientas conceptuales y para concurrir al desarrollo de uma ciencia histrica

    con mucho ms que documentacin ordenada42.

    possvel sumular, pois, com Paolo Grossi, a importncia da

    experincia jurdica, ou do manuseio de conceitos e categorias prprias do direito

    historiografia jurdica, da seguinte forma:

    Se cosi , senza voler nulla togliere ai meriti dello storico della filosofia del

    diritto, il personagio professionalmente pi vocato a comprendere il

    divenire del pensiero giuridico ci appare lo storico del diritto. Prprio

    perch avvezzo all globalit dellesperienza, delle singole esperienze che

    ha di fronte, egli sara il pi capace a cogliere i nessi tra pensiero e strutture

    circostanti, a individuare in qual misura la veste tecnico-giuridica abbia o

    non abbia costituito adeguata risposta alle domande delle forze

    economiche e culturali, a storicizzare insomma le trame de un discorso

    giuridico, che potrebbe a tutta prima sembrare artefatto ed astratto.43

    No ensaio eminentemente historiogrfico Uno storico del diritto alla

    ricerca di se stesso, Paolo Grossi brinda o mundo acadmico com a [provavelmente]

    mais completa verificao acerca da formao de sua escola florentina. Partindo

    do questionamento sobre uma possvel identidade para o historiador do direito,

    conduz a (auto)reflexo de que a hermafrodita investigao histrico-jurdica

    necessita, inevitavelmente, de conhecimentos e tcnicas jurdicas somadas s mais

    profundas fundamentaes e sedimentaes histricas.44

    42

    Idem, p. 576. 43

    GROSSI, Paolo. Sulla storia del pensiero giuridico. In: Quaderni fiorentini per la storia del pensiero

    giuridico moderno, n. 11/12, Tomo II. Milano: Giuffr, 1982/1983, p. 1149. 44

    ...che significava essere storico del diritto? storico e giurista? storico o giurista? storia e diritto, che si fondono in uma stessa persona, dano forse vita a un raro quanto negativo esemplare di ermafrodito?. In: GROSSI, Paolo. Uno storico del diritto alla ricerca di se stesso. Bologna: Il Mulino, 2008, p. 22.

  • 33

    Uma vez consciente de sua tarefa, o professor florentino vincula

    definitivamente Faculdade de Direito da Universidade de Florena, em 1980

    (embrionrio, no entanto, desde 1966, e atuante desde 1971), o Centro di studi per

    la storia del pensiero giuridico moderno, com sua clebre publicao, os Quaderni

    fiorentini per la storia del pensiero giuridico moderno (em circulao desde 1972). Este

    projeto cultural amealhou um Gruppo em torno da nova historiografia,

    necessria produo de uma nova histria do direito, para alm do que se fazia a

    partir do direito romano e do direito cannico.

    O Centro di studi e os Quaderni fiorentini chegam hoje ao patamar de

    referncia mundial na produo histrica e historiogrfica jurdica, a partir da

    direo do Professor Paolo Grossi e seu Gruppo. Sumula esse intento as

    seguintes palavras autobiogrficas: A Firenze: un Centro di studi, una Rivista

    scientifica, una comunit di studiosi.

    1.3. Cultura jurdica e pensamento jurdico

    A busca de uma cultura do direito no significa a busca da melhor

    cultura jurdica. a busca por um conjunto de significados que efetivamente

    circulam na produo do direito e so aceitos e prevalecem nas instituies

    jurdicas. O conjunto de significados remete ao arcabouo doutrinrio e aos seus

    marcos de autoridade nacionais e estrangeiras, aos padres de anlise e

    interpretao, s influncias e usos particulares de ideologias e concepes

    jusfilosficas. As instituies jurdicas so as faculdades de Direito, os institutos

  • 34

    profissionais de advogados, magistrados, notrios e juristas, o foro e o parlamento,

    as reparties pblicas, o estamento burocrtico.45

    ainda necessrio delimitar o lugar da fala e perceber as distines

    que a historiografia consagra aos conceitos de cultura jurdica e pensamento

    jurdico. Alertando para uma certa autonomia da epistemologia jurdica, e ao

    mesmo tempo para a impossibilidade de reduo do direito ao campo

    instrumental de poder poltico, assim como para a errnea simplificao do direito

    mera sistematizao de regras, Paolo Grossi ensina que a cincia jurdica,

    alforriada de toda servido exegtica, liberada do condicionamento

    necessrio da vontade do legislador, individuada como intrprete no

    significado mais intenso do termo, no como tecedeira de argumentaes

    lgicas no interior de um sistema fechado que ela no contribuiu a

    construir e do qual ela simplesmente sofreu a incidncia, mas sim como

    mediadora entre as exigncias sociais e culturais gerais e a cultura jurdica,

    fora viva e criativa da histria na elaborao de arquiteturas adequadas e

    eficazes a sustentar, mais que o produto de um legislador contingente, uma

    inteira civilizao em movimento.46

    Assim sendo, somente se o direito est no centro de uma civilizao

    em movimento e dela constitui um tecido fundamental, que se pode afirmar

    correta e plenamente sobre a existncia de um pensamento jurdico47.

    No obstante o falso reducionismo contido na expresso, essa

    premissa implica em considerar que apenas as civilizaes possuem pensamento

    45

    Conforme FONSECA, Ricardo Marcelo. Os juristas e a cultura jurdica brasileira na segunda metade do

    sculo XIX. In: Quaderni fiorentini per la storia del pensiero giuridico moderno, n. 35. Milano: Giuffr, 2006. 46

    GROSSI, Paolo. Pensamento Jurdico. In: GROSSI, Paolo. Histria da propriedade e outros ensaios.

    Traduo de Ricardo Marcelo Fonseca e Luiz Ernani Fritoli. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 140. 47

    Idem, p. 141.

  • 35

    jurdico, e que este, na realidade, o responsvel por tecer todo o modelo da

    prpria civilizao: num processo simbitico ou matrimonial (relao de co-

    dependncia), civilizao e pensamento jurdico se fazem.

    Mas o pensamento jurdico, importante que se ressalte, no vigora

    desde os mecanismos de poder da civilizao; no nasce no mbito pblico do

    Estado, o que reduziria o seu conceito mera manifestao decorrente das

    estruturas formais da civilizao. No est ligado, como pretende a leitura

    ortodoxa do marxismo, aos mecanismos de coero disponibilizados pelo poder

    poltico. Vem, antes, dos fatos e dos costumes, do cotidiano, e volta-se, ordenado,

    a ele. Possui suas razes na prpria sociedade, constituda anteriormente ao

    Estado. possvel fundamentar em Grossi:

    O pensamento jurdico (...) nasce de baixo, das coisas, dos fatos, e sobre

    estes torna a voltar-se revelando o seu ntimo carter ordenador; a tenso

    co-natural que o domina e o caracteriza encarnar-se, no flutuar sobre as

    experincias, mas orden-las. O pensamento jurdico no pode prescindir

    do mundo da ao, onde est sempre sepultado o grmen que o desperta:

    aes singulares, aes coletivas mas aes particulares que so, no

    momento ordenador, recuperadas dos seus particularismos e subtradas da

    misria do cotidiano. E aqui o pensamento jurdico desvela a sua natureza

    complexa: a dimenso especulativa se insere sempre na capilar vida

    cotidiana, que constitui uma espcie de ineliminvel dimenso submersa.

    Ele no pode nunca prescindir da laboriosa oficina onde, ao lado de

    elaboradssimos princpios, fala-se e opera-se em leis e atos

    administrativos, contratos e testamentos, citaes em juzo e tipificaes de

    crimes, contratos de trabalho e sociedades comerciais, uma dispora de

    fatos sados de suas prprias cascas e inseridos, num nvel mais elevado,

    em uma sociedade e em uma cultura, como objetos de pensamento.

  • 36

    Pensamento jurdico sem dvida uma filosofia, mas muito

    freqentemente uma filosofia subtrada do filsofo profissional: o balbucio,

    que se tornar sucessivamente discurso mas que j um embrio de

    discurso, toma incio no canteiro de obras dos advogados, dos juzes, dos

    notrios, dos doctores iuris, todos partcipes da fundao de um pensamento

    jurdico no menos do que o sapientssimo speculator ou do que o

    legislador. O pensamento jurdico tambm uma mentalidade, uma vez

    que sempre fruto dessa realidade plural exatamente porque sntese de

    ao e conhecimento, de compreenso dos tantos institutos e tipificaes

    legais individuais cada um pesadamente impregnado de lugar, de tempo,

    de motivos, de interesses dentro do tecido dos modelos gerais sobre os

    quais se ordena uma civilizao histrica.48

    Nesse ponto, o pensamento jurdico inerente civilizao remete o

    conceito mentalidade do povo que a participa.49

    Tambm e ainda em Paolo Grossi se encontra a noo de

    mentalidade jurdica, uma fora invisvel e abstrata, mas determinante para se

    precisar todo o universo jurdico observado: il diritto si manifesta attraverso un

    universo di segni che sono i mile istituti della organizzazione e della circolazione

    giuridica, cspidi affioranti di un enorme universo sommerso di valori storici,

    appunto il sostrato delle mentalit50.

    Assim, confia o professor florentino na anlise da vida cotidiana

    como instrumento mais seguro para alcanar a mentalidade jurdica de uma

    48

    Idem, pp. 143-144. 49

    Sobre a concepo de mentalidade no mbito da cultura jurdica, importa verificar o estudo de Grossi que trata da cultura jurdica e direito cannico, onde surge a seguinte mxima: Il diritto canonico non solo un ammasso di regole e di cnoni; , innanzi tutto, una certa mentalit giuridica che, in quanto tipicissima e

    peculiarissima, in quanto provvedutamente costruita da scienza e prassi, in quanto capillarmente assorbita

    nella lunga durata, gnera incisivi influssi proprio a livello di mentalit ben oltre i confini della comunit

    ecclesiale. GROSSI, Paolo. Diritto canonico e cultura giuridica. In: Quaderni fiorentini per la storia del pensiero giuridico moderno, n. 32. Milano: Giuffr, 2003, p. 377. 50

    GROSSI, Paolo. LOrdine giuridico medievale. Roma-Bari: Laterza, 2006. p. 6.

  • 37

    sociedade, o que confere mentalidade um patamar experimental. cabvel,

    pois, a observao dos procedimentos que hoje seriam classificados como direito

    privado como signos mais expressivos e seguros para vislumbrar as idias,

    ideologias e convices de um tempo, em suma, de uma determinada mentalidade

    jurdica.

    Eis o reforo do argumento que coloca o pensamento jurdico como

    arquitetura da vida cotidiana na perspectiva histrica:

    Il pensiero giuridico appare rarefatto, monco, quase insensato, se non si

    propone come architettura sapienziale duma concreta orditura sociale,

    come sapere tecnico che riveste, sorregge, raddrizza istituti del vivere

    quotidiano. Il pensiero giuridico ha e non pu non avere una struttura

    complessa: la capilare vitta quotidiana costituisce la sua ineliminabile

    dimensione sommersa; i suoi canoni logici, la sua cifra teoretica nascono e

    si sviluppano come tentativo di lettura, di interpretazione e comprensione

    di questo o quel mondo storico.51

    E mais: o direito, na vida cotidiana, manifesta-se em usos de

    populaes, leis dos detentores do poder poltico, atos da administrao pblica,

    sentenas de juzes, praxe de operadores econmicos e assim por diante52.

    O direito pode ordenar o social porque realidade com razes, e razes

    profundas; seria um problema se s tantas revelaes no cotidiano usos,

    leis, atos administrativos, sentenas, invenes prticas ns no

    correlacionssemos a intensa e incessante atividade que se d que

    preparatria, mas j direito nos estratos mais recnditos de uma

    51

    GROSSI, Paolo. Sulla storia del pensiero giuridico. Op. Cit., p. 1148. 52

    GROSSI, Paolo. Primeira lio sobre direito. Traduo de Ricardo Marcelo Fonseca. Rio de Janeiro:

    Forense, 2006, p. 69.

  • 38

    civilizao, do mesmo modo como a nascente na qual o revelar-se da gua

    na fenda da rocha apenas o ltimo momento, ainda que o nico aparente,

    de uma longa vida subterrnea.53

    Afinal, esta configurao somente pode ser avaliada a partir de uma

    anlise interna que compreenda seu significado e seus efeitos na sociedade, ou

    seja, a partir de uma anlise eminentemente histrica. Para o historiador do direito

    isso desempenha um papel importante na compreenso do seu objeto, visto que o

    direito escrito na histria.

    Partindo de uma anlise antropolgica e at certo ponto metafsica,

    Otto Brusiin questiona:

    (...) qu consecuencias se desprenden del hecho de que semejantes seres

    vivientes co-existan em sociedad? La fundamental diferencia entre

    sociedad animal y sociedad humana, puede expresarse de la siguiente

    manera: las sociedades de animales se mantienen unidas por el instinto,

    mientras que las sociedades de hombres lo estn, en cambio, por las

    normas. El obrar del animal que vive en una sociedad sigue por su instinto

    patrones de vida biolgicamente condicionados que, con referencia a cada

    espcie zoolgica y dentro de su mundo peculiar, permanecen inmutables

    en lo esencial de generacin em generacin. El hombre no carece por

    completo de los patrones de vida que le marcan los instintos, pero solo

    desempean un papel secundario en su vida social. En su lugar dominan

    normas sociales cuya existncia es una emanacin de la posicin objetivada

    e idealizada del hombre, referida a lo supraemprico. Por tanto, las normas

    53

    Idem, pp. 69-70.

  • 39

    son algo especfico para el hombre y estn condicionadas por su vida en

    sociedad. Las normas contienen esquemas para la accin proyectados hacia

    el futuro y fundametalmente variables, a diferencia de los patrones de vida

    que representan los instinctos.

    Cabe preguntar quines dictan las normas sociales. No cabe duda que es

    procedente formular esta pregunta, pero no parece ser un punto de vista

    adecuado para nuestro presente estdio. Norma y mandato deberan

    mantenerse radicalmente separados. En la situacin creada por un mandato

    tenemos a alguien que manda y a outro a quien se dirige lo ordenado. Por

    el contrario, las normas sociales se desarrollan en la sociedad como una

    manifestacin de la permanente vida en comn de los hombres. Un

    mandato puede dar lugar a una norma vlida para el futuro, pero no es

    indispensable que as suceda. Nos parece indudable que la colectiva

    cualidad humana de producir normas en comn se halla ligada a la

    capacidad del hombre de configurar el mundo a base de su conocimiento.

    Un animal carece tanto de normas como de conocimiento objetivo.

    Las sociedades humanas tienen distinto alcance y duracin. Cuan