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Dissertaçãoapresentadaparacumprimentodosrequisitosnecessáriosàobtençãodograude
MestreemAntropologiaeCulturasVisuais,
realizadasobaorientaçãocientíficadaProf.Dra.MariaCardeiradaSilva
ecoorientaçãodaProf.Dra.CatarinaAlvesCosta.
Agradecimentos
Ao longo desta pesquisa, pude contar com a ajuda de várias pessoas, a quem não
posso deixar de agradecer. À minha orientadora, a Prof. Dra. Maria Cardeira da Silva,
cujas orientações me foram essenciais, e à minha coorientadora, a Prof. Dra. Catarina
Alves Costa que me incentivou e me fez crer na importância de acabar o meu
documentário. Ao Bruno Raposo, pela dedicação com que mantém o blog “A casa da
Mosca”, que tanto enriquecera o meu trabalho. Aos meus pais, pela consistência da
formação que me deram. A Diana Diegues, João da Ponte, Susanne e Ian, Mário Zé e
André Almeida, que em hora de aperto me disponibilizaram apoio técnico e logístico.
Ao meu marido, Eduardo, por ter feito esta viagem comigo, pelo incondicional apoio,
paciência e companheirismo. E sobre tudo, a todas as pessoas que fui conhecendo e
entrevistando neste processo: ao Dídiu, aos pescadores de Porto Formoso, aos
filósofos do miradouro, aos habituais da tasquinha do Viana e ao tio Américo, ao
Liberato Fernandes, ao Daniel de Sá e ao Luís Rodrigues, entre outros. Aos que ainda
cá estão e aos que já partiram, a todos, muito obrigada.
APANHADOS NA REDE
Considerações acerca das noções de progresso e
modernidade na comunidade piscatória de Porto Formoso
Amaya Sumpsi Langreo
Dissertação de Mestrado em Antropologia e Culturas Visuais.
Julho 2012
PALAVRAS CHAVE: modernidade, progresso, pesca, turismo, natureza, património.
RESUMO- Um porto de pesca natural e a ruína de um “castelo”. Uma pequena comunidade de pescadores, na costa norte da ilha de São Miguel, que se quer integrar nos circuitos globais e discute como. Em Porto Formoso ninguém parece duvidar de que o “progresso” não pode ser travado, mas nem todos concordam sobre o modo como esse progresso deve ser concretizado. Se muitos acreditam ser necessário fazer obras em cimento para melhorar o porto e viabilizar assim o futuro da pesca, uma profissão identitária da freguesia, outros preferem desactivar o porto e reconverter o lugar num destino turístico, apostando pelo seu valor natural e histórico e aderindo assim aos discursos do poder que alimentam a ideia de que tornar-se um destino turístico é sinónimo de crescimento, progresso, enriquecimento e emprego. Os habitantes de Porto Formoso movimentam-se assim entre múltiplas opiniões e perspectivas, às vezes contraditórias, que evidenciam diferentes formas de pensamento, de se perceber a modernidade e o progresso, de se sentir no presente e de se projectar no futuro. Questões sociais, culturais, laborais e de identidade complexificam os avanços num ou noutro sentido, e põem em relevo a profundidade dos factores que intervêm na construção identitária de um local e na sua mercadorização. Estão em causa dois modelos de desenvolvimento, dois caminhos possíveis para integrar esta localidade nos circuitos globais através da sua modernização. Mas é a “modernidade” a valorização do passado ou o afastamento do mesmo? Museus ou cais? Turistas ou pescadores? E ainda mais: qual é esse passado de que se fala em Porto Formoso? Pesca ou história? O Homem ou a Natureza? As discussões que se vivem no Porto Formoso reflectem uma discussão que se propaga pelo mundo, e num momento em que as estruturas tradicionais e os sistemas de valores estabelecidos cambaleiam, a ausência de referências firmes, característica da “modernidade”, faz com que os conceitos de futuro, em relação ao presente e ao passado nadem na ambiguidade e na incerteza. Neste sentido, este trabalho pretende reflectir sobre os valores que se põem em causa e os que prevalecem aquando desta discussão.
KEYWORDS: modernity, progress, traditional fishing, tourism, nature, heritage.
ABSTRACT- A natural fishing harbour and the ruins of a “castle” A small fishermen community in the north coast of São Miguel Island that wants to be integrated in world circuits and is discussing how to. In Porto Formoso no one seems to have any doubt on the fact that “progress” cannot be blocked, but there is no agreement how this progress must become a reality. If for many people there is a need to use concrete to improve the harbour so to visualize the future of fishing, a trade that gives identity to the village, many other prefer to defuse the harbour and make of this place a tourism destination, betting on its natural and historical values and embracing the discourse from power that feeds on the idea that becoming a tourism destination is synonymous to development, progress, richness and employment. The inhabitants of Porto Formoso move themselves among multiple opinions and perspectives, sometimes contradictory, showing different ways of thinking, of approaching modernity, of feeling up to date and projecting themselves into the future. Social, cultural, labour and identity issues make advances in any direction more complex and reveal the depth of the factors that take part in building up a place’s identity and its marketing. Two development models are under discussion, two possible ways to integrate this place into global circuits throughout its modernization. But what “modernity” is it about: to value the past or to move from it? Museums or docks? Tourists or fishermen? And even more: What past are they talking about at Porto Formoso? Fishing or History? Man or Nature? Discussions in Porto Formoso reflect a concern that spreads through the world, and in a moment when traditional structures and established value systems are teetering, the absence of firm references that are characteristics of “modernity” make ambiguous and uncertain concepts of future in relation to present and past. In this sense, this study tries to reflect which are the values that are under dispute and which ones prevail in this debate.
ÍNDICE
Introdução ........................................................................................................... 1
Capítulo I. O litoral como espaço limiar: tensões entre turismo e pesca na
ilha de São Miguel ........................................................................................... 17
I. 1. Breve introdução à história económica de São Miguel ................... 18
I. 2. O estado actual da pesca: Considerações da realidade micaelense
relevantes para o estudo .............................................................................. 20
I. 3. A explosão turística em São Miguel. Do papel à prática ............... 25
I. 4. A convivência das práticas turísticas e as práticas haliêuticas em
São Miguel ................................................................................................. 30
Capítulo II. Porto Formoso: passado, presente e futuro .................................. 36
II. 1. Porto Formoso em retrospectiva .................................................... 37
II. 2. Porto Formoso nos dias de hoje. .................................................... 47
II. 3. Potencialidades de Porto Formoso: qual a visão de futuro? .......... 59
Capítulo III: Cada um por si e todos por todos: Mestres e pescadores de
Porto Formoso .................................................................................................. 69
III. 1. Noções Gerais sobre as comunidades piscatórias ......................... 70
III. 2. A comunidade piscatória de Porto Formoso. ................................ 78
III. 3. O Carnaval de 2005: um ponto de inflexão ................................. 82
Capítulo IV: Discursos e práticas de futuro : uma etnografia polifónica ........ 87
IV. 1. Barcos novos na costa! Verão de 2006 ......................................... 88
IV. 2. Revisitação do trabalho de campo. Verão de 2007 ..................... 110
IV. 3. Nada será como dantes: Reacções à primeira apresentação do
projecto de requalificação do porto. Dezembro de 2007 ......................... 114
IV. 4. Eis o projecto! .............................................................................. 118
IV. 5. Novo Postal .................................................................................. 125
Conclusão ....................................................................................................... 129
Epílogo ............................................................................................................ 136
Referências Bibliográficas ........................................................................... 139
Anexo 1: o filme documentário ...................................................................... 144
1
Introdução
“Active social interaction and direct intellectual
engagement that was for me the most rewarding
aspect of field research, both personally and
data-wise.” (Hutchinson,1996: 45).
2
O desembarque na ilha de São Miguel
Imagine o leitor que, de repente, desembarca sozinho numa praia tropical, perto de uma aldeia nativa, rodeado pelo seu material, enquanto a lancha ou pequena baleeira que o trouxe navega até desaparecer de vista. (Malinowski, 1997 [1922]: 19)
Pode parecer exagerado, mas as célebres palavras escritas por Malinowski em
19221, podiam muito bem resumir o que eu senti quando cheguei por primeira vez à
ilha de São Miguel, no arquipélago dos Açores, em Setembro de 2002. É necessário,
porém, salvaguardar o contexto temporal e espacial: a praia não era tropical (embora o
clima sim), e não havia ali nenhuma aldeia nativa, tal e como Malinowski as
descrevia: o mundo em que ele viveu, onde ainda era possível achar aldeias e
sociedades “puras e intocadas” , tinha desaparecido. Mas a separação radical entre a
“minha casa” (as ruas centrais de Madrid) e este lugar, onde se viria a desenvolver o
meu trabalho de campo, exaltava o seu exotismo e a sua “pureza”. Como reconhecem
Gupta & Ferguson (1987) na sua crítica ao confinamento local da etnografia, há
lugares mais plausíveis para serem escolhidos para o trabalho de campo que outros :
Although anthropologists no longer think in terms of natural or undisturbed states, it remains evident that what many would deny in theory continues to be true in practice: some places are much more “anthropological” than others according to the degree of Otherness from an archetypical anthropological “home”. (id.: 13)
Por razões que aqui não interessam, tinha partido do centro de Madrid, o meu
“habitat natural”, apenas com uma mala e uns conhecimentos básicos de português,
que mal entendia. Antes de partir, fiz uma breve pesquisa na internet, pois embora
quisesse manter o sentimento de exotismo, precisava de saber as coisas mais básicas:
onde ficava, a que país pertencia, que língua se falava. Pouco tempo depois ali estava
eu, no aeroporto de Lisboa, esperando um daqueles aviões de duas hélices,
característicos do imaginário dos aventureiros como Indiana Jones. Devo reconhecer
que senti alguma desilusão quando vi aparecer o moderno aparelho da companhia
aérea SATA, mas enquanto sobrevoava o Atlântico continuava a sentir a vertigem de
quem voa para o desconhecido.
Quando as portas do avião se abriram, senti o peso do ar, carregado de
humidade. Sem ninguém que me recebesse, apanhei um táxi até à marginal. Estranhei 1 No texto fundador que viria estabelecer o Método Etnográfico de trabalho de campo como característica essencial e definidora da antropologia.
3
não ver o taxímetro, e quis reclamar. Como o homem não percebia nada, e eu não
queria estragar a minha chegada, limitei-me a pagar o que ele indicou com gestos e
caminhei até à esplanada mais próxima. Enquanto bebia uma cerveja, ia-me distraindo
com as conversas das mesas contíguas. Foi assim de repente que senti o pânico da
distância e da solidão: as pessoas que ia ouvindo nem sequer falavam português2.
Deus!- pensei eu - Enganei-me no idioma! Aqui falam francês!. E nesse preciso
instante senti-me como aquele herói malinowskiano, longe e só, rodeado apenas pelo
seu material.
Naquela altura, porém, estava longe de saber quem era Malinowski, e de
Antropologia apenas sabia o nome3. Eu era licenciada em cinema e estava nessa altura
a tirar o curso de Filologia Hispânica na universidade. A ideia era ficar na ilha 6 meses,
num programa de intercâmbio de estudantes, mas os prazos foram passando e eu fui
ficando. No primeiro ano continuei com os meus estudos literários na Universidade
dos Açores (UA), e depois de concluir a minha licenciatura, em Junho de 2003,
arranjei trabalho numa Cooperativa de Economia Solidária com sede em Ponta
Delgada. Foi nesta altura que estabeleci os primeiros contactos com a comunidade
piscatória da aldeia de Porto Formoso, situada na costa norte da ilha de São Miguel e
onde mais tarde desenvolveria o meu trabalho de campo que serve de base para esta
dissertação.
Ser ou não ser antropólogo: Teorização do trabalho de campo
“O Etnógrafo tem que salvaguardar essa distancia de anos laboriosos, entre o momento em que desembarca numa ilha nativa e faz as suas primeiras tentativas para entrar em contacto com os nativos e o período em que escreve a sua versão final dos resultados. Uma ideia geral e breve das atribulações de um Etnógrafo, pode lançar mais luz sobre esta questão do que qualquer longa discussão em abstracto” (Malinowski, 1997 [1922]: 19)
A antropologia actual dá inúmeras contas da complexidade e profundidade do
lugar do antropólogo no trabalho de campo, refutando assim uma das principais
premissas da Antropologia Moderna, que postulava a objectividade do sujeito
investigador como elemento essencial ao correto desenvolvimento do seu trabalho. Na
2 Na ilha de São Miguel fala-se micaelense, uma variante do português que pela sua fonética, pode parecer-se, num primeiro contacto, ao francês. Para saber mais, ver “O falar Micaelense” (Bernardo e Montenegro, 2003) 3 Como referirei mais tarde, é importante salientar que o meu primeiro contacto académico com a Antropologia deu-se em 2009-2010, quando fui aceite no mestrado para o qual apresento esta tese.
4
actualidade, a produção científica neste campo manifesta de maneira cada vez mais
aberta rasgos de parcialidade, que passam a formar parte, e às vezes a constituir, o
próprio objecto de estudo. Desde a escolha do objecto de trabalho até às conclusões
finais, é inevitável a presença de um Eu marcadamente individual, frente ao Eu
abstracto e neutro que durante muitos anos se defendeu.
É de essencial importância notar que o meu trabalho de campo e as reflexões
feitas a partir do mesmo atravessaram nove anos, que podem ser divididos em três
momentos muito diferentes entre si. Cada um destes momentos está marcado pelas
circunstâncias em que eu acompanhei a comunidade, isto é, pelo papel que por
reacção adoptei perante os sujeitos a quem observava: cada um dos momentos
estabelece uma perspectiva, uma metodologia e uns objectivos diferentes que surgem
de um “Eu” particular, mas que desembocam num único trabalho, que é esta
dissertação. Se num primeiro momento, entre 2003 e 2004, eu posicionei-me perante
a comunidade como um “visitante”, num segundo momento, entre 2005 e 2009,
acrescentei a visão de “documentarista”, e só no terceiro momento, entre 2009 e 2012,
é que adoptei a perspectiva da “antropologia”. Cada um destes três momentos
manifesta-se nesta dissertação de uma maneira diferente; o “eu visitante” a um nível
emocional e subjectivo, o “eu documentarista” a um nível narrativo e visual, e o “eu
antropólogo” a um nível científico e objectivo. Enquanto redigia este trabalho quis
que estes três níveis se complementassem antes de se excluírem, contribuindo de
diferentes maneiras para a produção deste texto e do filme que acompanha o mesmo.
O “Eu” visitante
Como já referi anteriormente, no ano 2003 eu estava longe de ser uma
“antropóloga bem – ou mal- treinada”. Na altura estava a desenvolver projectos de
solidariedade social em vários concelhos da ilha, e conheci o Porto Formoso nos
passeios de fim de semana que costumava dar pela ilha. Gostei da aldeia desde a
primeira vez que a visitei. Porto Formoso é uma aldeia pequena e calma, com uma
praia estupenda, um porto natural deslumbrante , uma gastronomia maravilhosa e uns
habitantes abertos e divertidos. Além disso, o facto de estar afastada de Ponta
Delgada4, de ter na altura uns acessos rodoviários deficientes5, e de estar situada na
costa norte (com um clima mais adverso do que a costa sul), condicionava a chegada
4 Capital da ilha e do arquipélago. 5 A Via Rápida para o Nordeste de São Miguel só foi inaugurada em Agosto de 2011.
5
massificada de turismo a esta localidade. Este conjunto de factores dava a esta
comunidade a aura de pureza genuína que o homem contemporâneo, incluindo-me a
mim, procura incessantemente. Por todos estes motivos, era costume eu passar
frequentemente pela aldeia. A minha presença naquela altura era como a de qualquer
estranho: cumprimentava sempre os habitantes com que me cruzava, obtendo deles
um sorriso, mas a relação não passava da barreira natural que separa um turista e um
local.
A frequência, a forma e o interesse com que visitava o Porto Formoso mudou
assim que conheci o Dídiu. Eu na altura vivia num conjunto de moinhos de água na
Ribeira Grande6, que são propriedade de um casal de alemães. O Dídiu, açoriano de
gerações, mora num terreno por cima dos moinhos e junta-se frequentemente aos
serões, contrariando a ideia geral na Ribeira Grande de que os “estrangeiros dos
moinhos” são esquisitos e vivem à parte. Foi assim que comecei a criar uma amizade
com ele, mais baseada na empatia do que na comunicação, que por problemas
linguísticos nessa altura era ainda bastante deficiente. Ainda assim, não precisei de
muito tempo para me aperceber do carácter carismático, solidário e tolerante do Dídiu,
que lhe outorga um estatuto especial dentro da comunidade, na qual é muito
reconhecido. Vindo de uma família notável da Ribeira Grande, foi sempre uma pessoa
modesta, apesar de ter tido experiências marcantes no continente7 e relações com
pessoas importantes no meio insular. Trabalhador da central geotérmica da EDP,
valora mais a companhia dos seus compadres do que a de outras esferas sociais mais
elevadas e tem amigos de todo o tipo, a quem ajuda sempre que possível. Prefere
andar no mar do que na cidade, beber com os pescadores do que com os funcionários e
falar de pesca do que de política. É precisamente pelo seu gosto pela pesca que o Dídiu
passa a maior parte do seu tempo livre na aldeia vizinha de Porto Formoso, onde a sua
boa reputação é ainda mais perceptível . Ali tem um pequeno barco de pesca e uma
pequena casa de aprestos onde dorme muitos fins de semana. Nas férias é raro ele sair
da aldeia. Ele conhece bem os pescadores e mantém com eles uma relação especial: os
pescadores reconhecem no Dídiu um homem sábio e um amigo. O Dídiu tem a
capacidade de ser visto e percebido como igual a eles, sem que a sua pertença a outra
esfera social (pessoal/ familiar/ profissional) interfira negativamente.
6 Segunda maior cidade de São Miguel, encontra-se na costa norte e é a capital do concelho a que pertence a freguesia de Porto Formoso. 7 Forma como é designado nos Açores o território continental de Portugal, em contraste com as ilhas.
6
Da mão do Dídiu, as minhas visitas a Porto Formoso e a convivência com os
pescadores ganharam uma nova dimensão: mudou logo a forma em que muitos dos
pescadores me passaram a tratar e no tipo de acesso que tive à comunidade. Através do
Dídiu pude observar e participar em momentos de maior privacidade, o que fez
aumentar o meu interesse pelos rituais quotidianos desta comunidade. As minhas
visitas eram cada vez mais frequentes e a relação com os pescadores cada vez mais
profunda: o “regresso”, ano após ano, tornou-me numa “velha amiga” já não só do
Dídiu, mas de muitos pescadores e habitantes de Porto Formoso. Entre 2003 e 2004
observei e participei em numerosas actividades desta comunidade: actos oficias, como
as celebrações religiosas8, outros profissionais, como as saídas á pesca ou a venda de
peixe, e ainda muitos de carácter pessoal, como os serões na tasca, as competições de
matraquilhos, as caldeiradas de peixe depois da pesca, os aniversários, etc. Em geral,
consegui movimentar-me com bastante liberdade entre os diferentes círculos sociais da
aldeia, dos privados aos públicos, e julgo, , que a minha condição feminina contribuiu
a uma maior abertura dos homens, pois “as a girl/woman, I was someone to be
protected and cared” (Hutchinson ,1996:46)
É de salientar que o facto de entrar em contacto com esta comunidade
marcadamente local e masculina através do Dídiu foi essencial à hora de retirar peso a
minha condição de estrangeira e de mulher. Por outro lado, se já não era nenhuma
criança, o facto de eu não ter filhos deixava-me naquele limbo entre a adolescência da
rapariga e a maturidade da mulher9. É verdade que no início a minha presença
produzia algum espanto, mas após iniciar-me no ritual masculino da tasca e começar a
fazer parte nas rodadas de cerveja, convidando e bebendo como eles, a abertura foi
ainda maior, passando cada vez mais desapercebida e participando cada vez mais das
conversas rotineiras dos homens. Claro que isto foi à custa de algumas ressacas, e
muitas enxaquecas. A minha postura descontraída e o tom brincalhão com que
acompanhava as suas conversas também foi chave no desenvolvimento da minha
relação com eles. Em sintonia com Hutchinson “I found humour one of the most
effective ways no only of breaking the ice but also of becoming a full-fledged person in
people´s eyes” (1996:47).
8 A festa religiosa mais importante do Porto Formoso celebra-se em Setembro em honra da Nossa Senhora da Graça, padroeira da aldeia. 9 Em 2003, ano em que entrei em contato com a aldeia pela primeira vez, tinha eu 24 anos.
7
Ainda sob influência do Dídiu, criei uma relação ténue com as mulheres da aldeia. Se
por um lado o meu interesse se foi progressivamente centrando nos homens
(nomeadamente, os da pesca), por outro as mulheres da aldeia também não fizeram
nenhuma tentativa para me conhecer. Embora passasse horas com o Américo10 nunca
cheguei a ver a sua mulher. As mulheres de outros pescadores com quem mais tarde
vim ter conversas apenas sabiam o meu nome. Nas vezes que fui convidada para
almoços nas suas casas, elas cozinhavam e juntavam-se à mesa, mas raramente
participavam nas conversas. E no fim, retiravam-se, ficando apenas eu, os pescadores
e às vezes o Dídiu.
Neste primeiro momento a minha motivação era unicamente pessoal, não tendo
outro objectivo se não perceber estas pessoas e partilhar com elas o meu tempo livre.
Sem o conhecimento antropológico de que disponho actualmente, movimentava-me
pela comunidade ao sabor dos meus instintos e apetências, estabelecendo relações por
empatias e observando aquilo que me chamava a atenção. Sem o peso das ideias
preconcebidas e sem objectivos teóricos, eu era apenas eu, reagindo ao
deslumbramento que costuma provocar o conhecimento de uma forma diferente de
estar na vida.
Fazendo uma análise retrospectiva, o Dídiu pode ser considerado em termos
antropológicos um informante-chave. Ao longo destes nove anos, o Dídiu foi
recomendando falar com esta ou aquela pessoa, ir para um ou outro lugar, ou assistir a
determinado acontecimento, sempre em função daquilo que eu precisava, primeiro em
termos de interesse pessoal, depois como procura visual e finalmente como apoio
científico. A figura do informante-chave levanta toda uma problemática quanto a sua
influência no desenvolvimento da recolha de dados etnográficos. A dependência do
antropólogo dos informantes-chave é evidente em inúmeros trabalhos de campo: é sob
a influência do Dídiu que eu escolho estudar os homens e não as mulheres, os
pescadores e não os lavradores, uns mestres do porto e não outros. De alguma maneira,
ele determina a maneira como eu percebo esta comunidade: a sua visão tem influência
na minha. É pertinente ter esta consciência para perceber que, apesar das tentativas
constantes para fugir da subjectividade, as aproximações são inevitáveis.
10 O Américo é o pescador mais velho e mais carismático de Porto Formoso. Foi com ele que saí pela primeira vez para a pesca e com quem estabeleci a relação mais importante e profunda. Ainda hoje o tratamento entre nós é similar ao de avô e neta.
8
O “Eu” documentarista
Numa noite de carnaval de 2005, uma onda, que a população de Porto
Formoso descreve como um “tsunami” 11 , atinge o porto de pescas da aldeia,
destruindo dois barcos. Eu não estava na altura a viver na ilha, pois tínhamo-nos
mudado para Lisboa no outono de 2004. Assim, só soube do acontecimento no verão
seguinte, quando fui lá passar férias e revisitar os amigos. Na aldeia, a conversa desse
verão girava em torno das consequências do desastrado acidente. Quase como num
efeito dominó, este incidente tinha levantado uma série de questões que já não diziam
respeito apenas aos pescadores, mas sim a todos os habitantes da aldeia. O que fazer a
seguir? Como reinventar a aldeia? Como a apostar na pesca ou procurar alternativas no
turismo? Trazer barcos novos? Fazer obras? Não fazer nada?…. Estas e outras eram as
questões que se discutiam, de manhã à noite, no café, no porto, na praia, nas casas, na
Junta de Freguesia, na Ribeira Grande, na internet. Este episódio tinha posto em relevo
tensões que, se antes apenas se percebiam subtilmente, agora estavam à flor de pele.
Não demorei a perceber que algo de importante se estava a passar. Parecia
como se frente aos meus olhos a aldeia se estivesse a repensar e a reconfigurar, e eu
tinha acesso a esse processo de transformação graças à relação que tinha criado com o
lugar nos anos anteriores. Sendo o cinema uma das minhas áreas de formação, o
aparecimento destas questões deu lugar ao desejo de captar os acontecimentos que se
iam desenrolando em vídeo, com o intuito de recolher os processos que estavam a ter
lugar e com eles depois poder contar uma história em imagens.
Quando voltei a Lisboa, depois desse verão de 2005, sabia já que as filmagens
que tinha começado nesse verão teriam de ter continuação, pois o processo de
transformação seguiria o curso natural da história, prolongando-se por anos (como
depois se viria confirmar). A partir deste momento, as visitas a Porto Formoso tinham
um novo objectivo: fazer um documentário que acompanhasse este processo. Voltei a
Porto Formoso em 2006, 2007 e 2008, enquanto a aldeia continuava a pensar-se e a
transformar-se. Esse registo acabou por ser fundamental para este trabalho, pois a
câmara acompanhou-me em todo o momento, captando não só conversas, discussões,
e opiniões, mas também o meu dia-a-dia na aldeia. Seguindo os acontecimentos, filmei
a construção dos novos barcos, as saídas da pesca, as novas dificuldades do porto, as
11 Provavelmente influenciados pelo mortífero tsunami que teve lugar no Oceano Pacífico apenas uns meses antes, em Dezembro de 2004.
9
discussões no miradouro e na tasca. Marquei e filmei entrevistas individuais e
colectivas com os pescadores, mas também com outros habitantes e com agentes
externos e representantes de instituições envolvidos no processo 12 , enquanto a
discussão se ia desenrolando ao longo dos anos. Com o tempo, os habitantes da aldeia
acostumaram-se a minha câmara, e assim fui acumulando horas e horas de material
audiovisual. Mas de cada vez que me sentava na mesa de edição para tentar dar uma
ordem às imagens, sentia-me mais bloqueada: era demasiada informação, demasiadas
reflexões para incluir apenas num filme. Havia ainda outro elemento que bloqueava o
processo de edição audiovisual do material: eu tinha-me proposto contar esta história
sem recurso a uma voz off: queria que a história se contasse por si própria, que fossem
as pessoas a falar e não eu a narrar. Mas, como? Tantas eram as ideias que nem sabia
como começar.
O “Eu” antropólogo
Em 2009, ainda com a edição do filme bloqueada, inscrevi-me no mestrado de
Antropologia e Culturas Visuais coordenado pelo professor João Leal. Como já foi
referido, este seria o meu primeiro contacto com a perspectiva antropológica e foi
através desta nova janela que muito do meu trabalho ganhou um novo sentido: os
seminários que segui, os textos que li e as discussões que acompanhei fizeram-me
olhar para o meu trabalho de uma nova forma.
Em primeiro lugar, percebi que a experiência que tinha vivido em Porto
Formoso até à data podia tornar-se, sem muitas alterações, num trabalho de campo
etnográfico, pois o mais importante estava lá. Em primeiro lugar a sensibilidade
etnográfica. Esta sensibilidade, que Malinowski (1922) define como a capacidade de
saber ouvir, partilhar, simpatizar, apreciar a companhia e respeitá-la, mostrando boas
maneiras, esteve presente ao longo das minhas visitas e estadias na aldeia,
manifestando-se na maneira em que me relacionei com a comunidade. Observei e
participei, tornando-me num indivíduo socialmente activo no seio desta comunidade.
Assim, esta posição privilegiada validava o meu discurso. Como assinalam Gupta &
Ferguson:
12 Como se verá mais a frente, foram entrevistados, entre outros o presidente da Junta de Porto Formoso, o Sr. Emanuel Faria, o dirigente sindical Liberato Fernandes, e o Luís Rodrigues especializado em assuntos do mar na ilha de São Miguel.
10
Unlike tourists and travellers, the fieldworker has experience, obtained by staying a long time, learning the language well, and participating in everyday life, which authorizes his or her discourse. Yet, paradoxically, if that experience is gained outside the institutional framework of a doctoral program in anthropology, it is consistently devalued. (1987: 31)
Além desta sensibilidade, o trabalho prolongado de campo e o conhecimento
da língua foram também apontadas por Malinowski como duas premissas básicas do
Método Etnográfico. Retrospectivamente, o meu trabalho de campo teve início em
2003, tendo-se prolongado até a actualidade, alternando estadias mais curtas e mais
longas. Pode por isso considerar-se um estudo em campo prolongado no tempo. Por
outro lado, o meu conhecimento do português e mais especificamente da variante
micaelense progrediu consideravelmente, e a barreira linguística que se erguia no
início foi ultrapassada. Se no início estava limitada a observar e registar apenas as
formas de cultura que o olho podia ver, ao longo do tempo fui adquirindo maiores
conhecimentos, fui sendo capaz de registar a informação de forma cada vez mais
detalhada. Isto permitiu-me mergulhar em níveis mais profundos desta sociedade,
ultrapassando a superficialidade inicial e recolhendo algumas das suas complexidades.
É claro que mesmo assim ainda tinha algumas limitações, sendo que a conversa era
mais fluida com as pessoas que por hábito já estavam mais acostumadas aos meus
erros e ao meu vocabulário deficiente. Pontualmente, quando não percebia uma
determinada frase, o Dídiu funcionava então como uma espécie de intérprete. Sem o
saber na altura, tinha criado as condições idóneas de trabalho de campo para, mais
tarde, desenvolver a etnografia que venho agora apresentar.
Existe ainda um terceiro ponto essencial no Método Etnográfico de
Malinowski: “o investigador deve guiar-se por objectivos verdadeiramente científicos
e conhecer as normas e critérios da etnografia moderna” (1922: 23). Pelos motivos
que já apontei, não cumpria este requisito: entre 2003 e 2009 não tinha por objectivo
produzir qualquer trabalho científico nem conhecia as bases teóricas da antropologia.
Por um lado, esta ignorância permitiu-me reflectir livremente sobre os processos aos
que assistia, tendo como única ferramenta a minha curiosidade e sensibilidade: não
tendo teorias nem categorias nas que enquadrar os acontecimentos que seguia, criava
as minhas próprias.
11
Existem na história da antropologia numerosos casos de trabalhos de campo
levados a cabo por não antropólogos. Durante o século XIX e as primeiras décadas do
século XX muitos foram os trabalhos de campo encomendados a indivíduos não
especializados, que por alguma razão viviam perto ou mesmo dentro da comunidade a
estudar. Perante este fenómeno, Malinowski reclamou para a antropologia a
necessidade imperante de formar estes trabalhadores, por considerar essencial ao
sucesso do Método Etnográfico a bagagem e o treino teórico do indivíduo observador,
profissionalizando desta forma a disciplina. Esta ideia atravessou toda a produção da
Antropologia Moderna, e ainda da Antropologia Contemporânea , como uma das
premissas mais sagradas do Método Etnográfico: a de que só os observadores
teoricamente treinados podiam ser confiados para a colheita de dados etnográficos.
Porém, na sua revisão do Método Etnográfico, Gupta & Ferguson exemplificam
algumas heterodoxias que defendiam outros pontos de vista. Radin (1970), depois de
se ter visto obrigado a contratar trabalhadores não treinados para levar a cabo o seu
trabalho de campo, devido à grande escala do mesmo, encontrou nesta imposição uma
vantagem, concluindo que a formação académica repercutia negativamente no
estabelecimento de relações com os sujeitos de estudo, pois erguia uma barreira que
dificultava o diálogo. Neste sentido, conclui :
The essential qualification for an observer is that he posses the gift for establishing a direct an immediate contact with his source of information in as unobtrusive as possible manner. (Radin, apud Gupta & Ferguson, 1987:23)
Através do mestrado percebi também que muitas das reflexões que me tinham
surgido ao longo dos primeiros anos de convivência e do período de filmagens em
Porto Formoso tinham sido amplamente estudadas e analisadas da perspectiva
antropológica. Muitos dos fenómenos e conceitos que eu tinha identificando e descrito
instintivamente, afinal tinham nome e história nas ciências sociais. O enquadramento
teórico ajudou-me a organizar os pensamentos, detectar tendências, suprir lacunas, e
adensar reflexões, de forma a situar este trabalho de campo não só no corpus da
antropologia, mas também nos processos de transformação do mundo e de poder. Esta
dissertação surge assim de uma análise retrospectiva sobre um material audiovisual
recolhido previamente e com outros objectivos, mas que tem funcionado na perfeição
como diário etnográfico.
12
Polifonias de Porto Formoso. Para a redacção desta dissertação, tive que completar algumas lacunas que
tinham ficado por resolver e complementar os dados recolhidos no trabalho de campo
com outras fontes que me permitissem contextualizar os depoimentos que fui
recolhendo ao longo de todo o processo e dar uma base mais sólida aos meus
argumentos. Assim foi necessário consultar dados dos censos, arquivos
historiográficos, estatísticas e outros documentos que se apresentam no trabalho e que
foram recolhidos na última viagem que realizei a Porto Formoso, já em 2012 . Houve,
porém, uma descoberta no processo de pesquisa sobre o Porto Formoso que se
revelaria essencial para a elaboração deste texto. Trata-se do blog “A casa da
Mosca”13, que encontrei casualmente na internet por ali se ter publicado um post
sobre o documentário que eu estava a preparar14. O nome do blog refere-se a uma
paragem de autocarros de Porto Formoso onde as pessoas antigamente se juntavam
para passar o tempo: ali se falava de futebol e de política, dos vizinhos e inimigos, de
coisas sérias e brincadeiras, e se discutiam todo o tipo de assuntos que diziam respeito
à aldeia. É com este mesmo objectivo que em 2005, em plena febre dos blogs em
Portugal, nasce da mão de Bruno Raposo, um jovem de 31 anos natural de Porto
Formoso15, a “casa da mosca virtual”. Após a publicação do primeiro post em Julho
desse ano, o blog cresce a uma velocidade estonteante. Desde o seu nascimento em
2005 até hoje, o Bruno Raposo, cujo nickname é “O Regedor”16 publica entre 2 e 5
posts por mês de temas diversos (cultura, política, festas, novidades, etc) , mas sempre
relacionados com o Porto Formoso. Em média, cada post suscita entre 40 a 80
comentários dos bloggers. Se em 2006 cerca de 30 pessoas viam este blog por dia, em
2007 já eram 50. Em Julho desse mesmo ano, A Casa da Mosca atingiu as cem mil
visualizações, e no mês de Julho de 2012 registava um total de 187.953, o que mostra
que o blog não só não tem perdido interesse, mas antes continua a crescer.
Na minha sincera opinião a “Casa da Mosca” está para o Porto Formoso, como o “Prós e Contras” está para o país. JAGPacheco | 3/2/08 16:03
13 http://acasadamosca.blogspot.pt/ 14 http://acasadamosca.blogspot.pt/2008/06/documentrio-porto-formoso.html 15 O Bruno viveu na aldeia até aos 12 anos. Com essa idade mudou-se para Ponta Delgada, onde continuou os seus estudos, e mais tarde mudou-se para Lisboa para tirar o curso de psicologia. Depois de se licenciar voltou para Ponta Delgada, onde actualmente trabalha para a segurança social, numa equipa que dá apoio aos lares que acolhem crianças e jovens sem família. Apesar de viver em Ponta Delgada, o seu contacto e interesse pelo Porto Formoso é permanente. 16 Antiga autoridade administrativa de uma freguesia civil (extinta com o advento do 25 de Abril de 1974).
13
O blog "a casa da mosca" veio divulgar de uma forma pseudo directa a maneira de pensar, de sentir, de exigir, de existir enfim, de ser e de viver da população formorense. Para cada post são vários os comentários que fogem ao tema do mesmo, no entanto, todos vão ao encontro da realidade do Porto Formoso. Os nicks são a forma mais simples eficaz de fugirem ao "mediatismo", numa freguesia aonde todos são conhecidos. Por fim, e para terminar, lembro-me de grandes conversas distribuídas por diversas madrugadas na carismática paragem de autocarros, apelidada por - Casa da Mosca. Acredito que o Regedor fez desse sitio, muitas vezes mal visto, o sitio ideal na internet para o povo formorense valorizar cada canto da sua freguesia. O espaço que ocupamos fisicamente pode depender muito do espaço que damos à nossa imaginação.... A casa da mosca é um exemplo. falange| 12/11/08 13:33
O rápido crescimento e divulgação deste blog deve-se principalmente a três
factores. Em primeiro lugar, para os porto formosenses, o aparecimento de um
“espaço” onde se podiam fazer comentários sobre a sua comunidade livremente e sem
necessariamente dar a cara (graças ao uso de nicknames17) supôs um novo fôlego na
liberdade de expressão, tão difícil em meios pequenos. Foram muitos os que
rapidamente aderiram e começaram a participar nas discussões, incluindo os mais
velhos. Estes, por não estar habituados ao uso desta tecnologia, pediam ajuda a
familiares para participar ou apenas consultar o blog. Em segundo lugar, rapidamente
se viu a importância que o blog estava a ganhar no Porto Formoso como ponto de
referência para os seus habitantes. Não só passou a ser considerado o meio de
divulgação mais importante da freguesia, como começou ainda a ser notada a
influência do blog no desenvolvimento dos acontecimentos em Porto Formoso. Em
mais de uma ocasião as discussões e as críticas publicadas no blog precipitaram
acontecimentos ou marcaram decisões mais ou menos importantes. Assim, o blog
passou a ser tido em conta pelas instituições da freguesia na hora de definir os seus
programas de acção nas mais diversas áreas (culturais, desportivos, políticos, etc).
Com a entrada em cena da Casa da Mosca, ser dirigente no Porto Formoso tornou-se um acto de coragem e determinação. AGUIA | 19/11/05 21:36
O que poucos sabem é que há muitas pessoas “importantes” da freguesia que vêem o blog quase diariamente, lêem todos os seus comentários, questionam-se sobre quem são os comentadores, mas não o comentam. O blog, para essas pessoas, é uma forma de se inteirarem das opiniões dominantes na freguesia. O
17 O Bruno Raposo refere “o descontrolo inicial na publicação de comentários”, uma vez que durante os três primeiros anos era possível fazer comentários anónimos, o que contribuía para a publicação de insultos e ataques verbais violentos entre bloggers. A partir de 2008, passou a ser obrigatório o registo de um nickname antes de fazer qualquer comentário: assim preservava-se o anonimato mas obrigava a associar os comentários a um nickname específico.
14
que essas pessoas se calhar não sabem é que, ao lerem o blog e os seus comentários, estão a ser influenciadas, obrigadas a pensar na freguesia, nem que seja pelo simples facto da linguagem não ser um acto automático. O Regedor | 11/08/05 13:55
Em terceiro lugar, o Porto Formoso, apesar de ser uma comunidade pequena,
conta com um número bastante elevado de emigrantes dentro e fora de Portugal18. Os
emigrantes porto formosenses expressam em geral um forte arraigo e um sentimento
permanente de nostalgia em relação a Porto Formoso. Neste contexto, o blog
funciona como um novo meio de ligação à sua terra, mais eficaz que os jornais ou as
conversas com os familiares que permanecem na aldeia, pois através dos comentários
e das fotografias publicadas lhes é possível acompanhar os processos de
transformação que acompanham o Porto Formoso e matar saudades do seu passado na
aldeia19 através de pessoas e opiniões diferentes. Neste sentido, é ilustrativo o mapa
de visualizações relativo ao blog, onde se assinalam os pontos geográficos a partir dos
quais são feitas as visualizações:
http://clustrmaps.com/counter/maps.php?url=http://www.acasadamosca.blogspot.com (24/07/12)
A Casa da Mosca mudou a vida dos nossos emigrantes. Os emigrantes querem noticias novas todos os dias neste blog, querem saber o que se passa na freguesia! O outro dia vi uma pessoa com mais de 75 anos com uma fotografia na mão tirada da Casa da Mosca e uma senhora que nunca mexeu num computador sabe ir ver a Casa da Mosca. Parabéns ao Regedor e a todos os comentadores. Anónimo | 20/11/05 13:05
O ser imigrante é viver diariamente com o porto formoso no pensamento, nunca esquecendo os nossos amigos de infância. Muitos de nós têm uma vida melhor, mes todos não podem dizer o mesmo, por isto a casa da mosca tem um valor muito grande para nós. Por isso estas fotografias são muito importante para ao menos
18 Ver capítulo 3.1 19 É interessante a tendência apreciada no blog de publicar fotografias “tiradas do baú”.
15
matar saudades da terra que um dia nos vi nascer.. A palavra saudade nunca teve tanto valor para min. Desculpem o meu portugues o emanuel com muito carinho por voces. Anónimo | 28/2/08 21:01
Em Fevereiro de 2012, quando descobri o blog, fiz uma análise de todos os
posts e comentários ali publicados desde a sua criação, seleccionando aqueles que me
pareceram mais pertinentes para análise que estava a desenvolver. Esta nova fonte de
informação ampliou a minha percepção da comunidade significativamente.
Maioritariamente anónimos, os comentários deixados no blog amplificaram e
aprofundaram, como uma espécie de eco, muitos dos depoimentos que eu tinha
recolhido junto dos pescadores, que por não ser anónimos ficavam às vezes pela
metade. A estrutura desta dissertação pensou-se assim como uma melodia polifónica,
como uma recriação de um diálogo imaginário entre as palavras dos pescadores, os
comentários virtuais do blog e o corpus teórico da antropologia.
O filme documentário
Depois de terminar de escrever a dissertação, sentei-me de novo na mesa de
edição. Foi em Junho de 2012, sete anos depois de começar a filmar e depois de
muitas tentativas de edição, que o filme começou a surgir. Como se de uma catarse se
tratasse, subitamente visualizei o filme como um todo. Trabalhei durante 15 dias sem
pausa, não pela pressão dos prazos, mas antes porque não conseguia parar. A selecção
de imagens, depoimentos e momentos de entre as mais de 60 horas de material bruto
que tinha filmado e que até esse momento se tinha tornado num pesadelo, surgia
agora naturalmente. A ordem das sequencias aparecia clara perante mim e a história
fluía quase por si só. Houve dois factores que considero essenciais para explicar este
processo. Em primeiro lugar, o facto de ter tido um lugar, fora do filme, onde incluir
todas as reflexões que me apareceram ao longo destes nove anos. Com a dissertação
escrita e as questões expostas, o filme podia agora voar mais livremente, sem o peso
de ter de apresentar todas as pessoas e de contar todos os acontecimentos que registei.
Em segundo lugar, perdi o medo de assumir a minha presença no filme. Por um lado,
o contacto com as teorias antropológicas, que giram em torno da análise da relação
entre o Eu e o Outro, deram-me uma nova perspectiva. Por outro lado, as orientações
da professora Catarina Alves Costa, e os filmes que no seu seminário de filme
etnográfico foram vistos e analisados, abriram-me o caminho: uma vez feito o
trabalho científico, agora passaria a contar a minha história. Enquanto na dissertação
16
procurei sempre manter a objectividade, no filme mergulhei na minha própria
subjectividade: de não querer usar uma voz off passei a querer incluir a minha própria,
e em primeira pessoa. O filme contaria a forma como Eu vivi os anos de contacto
com esta comunidade, e não as vivências da comunidade. Esta opção resolveu muitos
dos problemas de edição que tinha encontrado até esse momento, mas mais
importante, permitiu-me fazer o filme que sem saber, sempre quis fazer e que agora
apresento.
Últimas Notas
Passaram nove anos desde que comecei este trabalho em Porto Formoso.
Entretanto vi jovens crescerem e tornarem-se homens, vi outros adoecerem, e alguns
morrerem, vi pessoas partirem e outras chegarem, enquanto no pano de fundo, a
paisagem da baía de Porto Formoso se ia transformando. Eu também me transformei:
arranjei novos trabalhos, voltei a estudar, tive uma filha.
Nesta introdução, procurei analisar todos aqueles factores que de uma maneira
ou outra condicionaram o desenvolvimento do meu trabalho: as minhas origens e o
meu carácter (a partir do qual estabeleço a noção do “Outro”), a minha forma de
entrada no campo (e a especificidade do informante-chave), a minha condição de
mulher (num universo marcadamente masculino), e a minha situação académica (na
ausência inicial de noções de antropologia). Igualmente foram descritos os diversos
momentos que este trabalho atravessou e que o foi marcando ao longo do tempo.
Seguindo o princípio de transparência, procuro assim elucidar da forma mais precisa
possível as condições em que este trabalho fora desenvolvido, pois elas em muito o
influenciam e definem. Sirva pois este primeiro capítulo para estabelecer as bases a
partir das quais possa haver uma leitura e uma interpretação apropriadas do texto e do
filme que fazem parte desta dissertação.
17
CAPÍTULO I
O LITORAL COMO ESPAÇO LIMIAR Tensões entre Turismo e Pesca na ilha de São Miguel
“Os pescadores em plena laboração, com o pitoresco das suas
casas de madeira paupérrimas amontoadas nas dunas, os barcos
coloridos e de perfil luniforme, as redes, o exotismo das gentes
e das actividades quotidianas, são parte integrante do cenário
da beira-mar e das actividades que aí se desenrolam aos olhos,
maravilhados, dos veraneantes e dos turistas” (Nunes,
2003:135)
18
1.1 Breve introdução à história económica de São Miguel20.
A Região Autónoma dos Açores é formada por nove ilhas, divididas em três
grupos. São Miguel, no grupo oriental, é a principal ilha do arquipélago, não só pelo
seu tamanho, densidade populacional e posição geográfica, mas também pelo seu
papel como centro económico e político da Região Autónoma e pela sua diversidade
de paisagens e recursos.
Fig. 1-1. Localização da ilha de São Miguel e distribuição
do Arquipélago dos Açores
A descoberta da ilha deu-se por volta de séc. XIV e o seu povoamento teve
início a 1439, depois de D. Henrique ter mandado lançar gado em sete das ilhas do
arquipélago. Aqui chegaram colonos portugueses vindos da Estremadura, Algarve,
Alto Alentejo e estrangeiros oriundos da França (tradição presente no nome da
freguesia da Bretanha). Graças à fertilidade do seu solo e à sua posição geográfica,
desde cedo a ilha de São Miguel desenvolveu-se economicamente. Aqui produziam-
se enormes quantidades de trigo, vinho, lacticínios, batata-doce, milho, inhame, linho
e laranja. Esta última começou a ser exportada para Inglaterra, trazendo para a ilha de
São Miguel, no final do séc. XVIII, uma grande prosperidade e enriquecimento, que
se traduziu na construção de igrejas e de imponentes palácios e solares para as novas
famílias ricas. Em contrapartida, abandonou-se o cultivo do trigo e de outros cereais,
e quem sofria era a população mais desfavorecida: “As crianças – diz o Professor
Daniel de Sá - chegaram a ter uma cor amarela de tanto comer laranjas”. No entanto,
ao longo do século XIX o comércio deste fruto começa a dar os primeiros sinais de
desgaste, em parte pela concorrência da laranja espanhola (valenciana) e italiana
(siciliana) e também pelo aparecimento dos barcos a vapor e comboios, contra os
20 Esta introdução foi escrita com base na entrevista realizada em Fevereiro de 2012 ao escritor e historiador micaelense Daniel de Sá. Natural da freguesia de Maia, na costa Norte de São Miguel, onde nasceu em 1944, formou-se em Teologia e Filosofia e é autor de uma vasta obra, constituída por romances, crónicas, novelas, ensaios e contos. Para mais informação ver “História dos Açores” (Bento, 2003).
19
quais os barcos à vela dos Açores não podiam concorrer. Essa prosperidade é
definitivamente abalada em 1860, quando a praga de gomose extermina por completo
todos os laranjais, que sustentavam a ilha. Porém, graças à força de vontade dos seus
habitantes e a instituições como a Sociedade Promotora da Agricultura Micaelense21,
essa fase acaba com a introdução de novas culturas — criptoméria (em substituição da
árvore do plátano), tabaco, chá, espadana, chicória, beterraba, sacarina e ananás— que
garantem a sobrevivência económica e às quais se juntam, com o passar dos anos,
indústrias dos mais diversos sectores.
No século XX, dá-se um dos fenómenos mais marcantes da história recente de
São Miguel22. Em 1954, em consonância com os fenómenos vividos no continente na
fase mais dura do antigo regime, tem início o maior fluxo migratório de São Miguel
que, tendo como principal destino o Canadá e os Estados Unidos, reduziu para a
metade a população dos Açores. “Para ter uma ideia –declara Daniel de Sá- no
quinquénio de 1969-1974 emigrou um quarto da população açoriana. Neste momento
está a falar com o único homem nascido no 44 que ainda está na Maia, o resto
emigrou tudo. Na actualidade os Açores tem a metade de população que tinha 50
anos atrás”
Nesta segunda metade do século XX, os micaelenses que ficaram dedicaram-
se principalmente à criação de gado, com vista, sobretudo à produção de leite de vaca.
O sector generaliza-se a partir da década dos 60, repetindo-se o fenómeno de
uniformização dos campos micaelenses que tinha acontecido com o cultivo da laranja.
Mas a verdadeira massificação da lavoura tem lugar a partir de 1986, com a entrada
de Portugal na União Europeia. A política europeia de incentivos à agricultura atraiu
um número excessivo de produtores que ao longo da década de noventa transformou a
paisagem micaelense num mar de pastagens. Perante a sobreprodução de leite, a
União Europeia lança medidas contrárias, sobretudo a partir de 2000, diminuindo as
quotas de leite correspondentes. Na actualidade os lavradores tentam reorganizar-se
em torno de novas actividades, mas nem a lavoura nem a agricultura fazem parte das
21 Esta sociedade começou a preparar plantações novas 30 anos antes do desparecimento da laranja, enviando especialistas ao estrangeiro para estudar as plantas que se podiam adaptar às condições de cultivo de São Miguel. É assim que aparecem, por exemplo, o cultivo de chá e o ananás e a introdução da criptoméria. 22 Existiram fluxos migratórios nos séculos XVIII e XIX, mas nenhum deles teve tanta repercussão como este.
20
prioridades atuais do Governo Regional, devido à sua menor incidência no
rendimento económico da ilha.
1.2 O estado actual da pesca: Considerações da realidade micaelense relevantes
para o estudo23.
A pesca constitui um caso aparte, pois a sua prática tem sido constante ao
longo do século XX, e constitui um elemento identitário de São Miguel, como de
resto é habitual nos meios insulares. Porém, quando comparado com a agricultura ou
a lavoura, os pescadores dos Açores sempre tiveram pouco peso político e económico
no conjunto da região: não existe nos Açores nenhum porto (nem Rabo de Peixe) com
uma influência comparável às comunidades piscatórias da parte continental24. Como
afirma Nunes (2008:127) “nas últimas décadas, com períodos de escassez
aparentemente cada vez mais extensos, com a concorrência do peixe espanhol e a
readaptação do sector às condições de modernização impostos pelos modelos
supranacionais de gestão dos recursos, os pescadores continuam, como outrora, a
queixar-se de serem esquecidos e desprezados pelos poderes públicos”. Da
perspectiva de Liberato Fernandes 25 , presidente da cooperativa açoriana de
pescadores “Porto de Abrigo”, as causas deste esquecimento são simples:
“Proporcionalmente a pesca sempre teve menos poder porque ocupa menos gente, e o
poder político relaciona-se também com o peso eleitoral”.
Segundo dados de 2010 do INE, na Região Autónoma dos Açores existem
2697 pescadores matriculados, sendo que mais de 80% dos pescadores que dependem
exclusivamente da pesca são residentes nas ilhas de São Miguel e Terceira. É de
salientar que na maior parte das vezes a actividade extractiva representa a única fonte
de rendimento de famílias normalmente numerosas. Segundo os mesmos dados do
INE, em 2010 existiam 854 embarcações de pesca com motor, isto é, metade das que
existiam há 20 anos atrás. A pesca açoriana pode dividir-se em dois sectores: um,
com artes de salto e vara dirigidas aos tunídeos, constituído por 20 embarcações
costeiras (das quais apenas 5 são açorianas) com autonomia para pescar fora da
subzona Açores da ZEE (mais de 100 milhas) e outro, polivalente, com artes de linha,
23 Para a redação deste texto, foi utilizado o documento “Breve Avaliação da Política de Pescas do Governo- A valorização dos rendimentos da pesca e a sustentabilidade dos recursos marinhos dos Açores”, redigido pela Cooperativa de pescadores “Porto de Abrigo” em Outubro de 2011. 24 Como Matosinhos, Vila do Conde, Peniche, Nazaré, Olhão, Sesimbra e Setúbal. 25 Declarações obtidas em entrevista realizada em Fevereiro de 2012.
21
anzóis e redes e capturas multiespecíficas, que integra mais de 700 embarcações de
pesca local e costeira, predominando neste subsector as embarcações de pesca local
com menos de 12 metros. Tendo estes dados em conta, conclui-se que não existe nos
Açores frota para ocupar o espaço para além das 100 milhas durante todo o ano nem
para explorar a pesca em alto mar da Dorsal Atlântica confinante com o “Mar dos
Açores”, perdendo assim uma oportunidade única de rendimento pesqueiro. Perto de
95% das embarcações dos Açores são tradicionais, e são conhecidas como barcos de
“boca aberta”. Estas embarcações têm uma autonomia reduzida: carecem de porão e
de convés e portanto de condições para armazenar o peixe por tempo prolongado, e
não apresentam segurança para saídas superiores a 24h, uma vez que não têm cabine.
Estas características manifestam a continuidade de uma tradição de pesca secular
limitada à subsistência das populações: a manutenção da pesca, apesar das limitações
técnicas e da cada vez mais preocupante falta de peixe, deve-se em grande medida ao
facto de que os métodos e técnicas tradicionais ainda utilizadas nos Açores respeitam,
pelas suas características, a sustentabilidade do mar como fonte económica. Mais de
90% do pescado descarregado em lota é produto de uma pesca artesanal, que pelas
suas limitações, respeita mais a natureza e a manutenção dos recursos. A actividade é
realizada recorrendo a saberes, a artes e técnicas tradicionais transmitidas no seio
familiar de geração em geração ou obtidas pela prática individual, e perpetuadas no
arquipélago até aos tempos de hoje.
Porém, na actualidade os pescadores debatem-se com condições de trabalho
muito duras e com uma concorrência avassaladora. Nos Açores, das cerca de 42
comunidades piscatórias apenas 15 dispõem de portos de pesca que garantam algum
abrigo; muitas apenas aproveitam a morfologia da costa. E se antigamente a maior
preocupação dos pescadores era não voltar do mar, hoje acrescentam-se novas
problemáticas. O primeiro dos problemas é a evidente falta de peixe, pois se por um
lado o número de embarcações locais e costeiras diminuiu para a metade nos Açores,
o esforço e a capacidade de exploração de cada embarcação aumentou, graças à
incorporação de novos equipamentos de detecção (sondas e GPS) e ao acesso a
motores com maior potência que permitem um maior afastamento da costa. Os
primeiros signos de modernização da frota local começam a sentir-se na segunda
metade da década dos 90, mas esta actualização teve efeitos perversos: foram dados
estímulos para aumentar a capacidade de pesca das pequenas embarcações, sem ter
22
em conta a limitação física do espaço onde esta frota podia operar. À diferença da orla
costeira continental, com um comprimento de 6 milhas, a orla costeira dos Açores é
muito estreita, tendo um comprimento de 3 milhas, a partir das quais existem grandes
fundões, e portanto uma reduzida produtividade de pesca. Os barcos com menos de 12
metros modernizam-se e aumentam a sua capacidade, mas continuam a não ganhar
autonomia para ir mais longe, pelo que se concentram todos nesta estreita zona,
causando um esgotamento significativo dos recursos, que se tem vindo a acentuar
desde 2007, data a partir da qual é verificável uma quebra constante da pesca
polivalente, tanto em volume como em valor.
Fig. 1-2. Tabela apresentada no documento já referido “Breve Avaliação da Política de Pescas do Governo- A
valorização dos rendimentos da pesca e a sustentabilidade dos recursos marinhos dos Açores”.
Em segundo lugar, a pesca açoriana está sujeita à produção legislativa de três
poderes: o da Europa, o do Estado e o da Região. A União Europeia produz as suas
leis à distância, e como tal não tem em conta as particularidades da pesca dos Açores.
No processo de adesão á União Europeia (1986/1992) a pequena pesca polivalente foi
discriminada negativamente: os beneficiários directos foram o grupo Cofaco26 e um
conjunto de mestres com tradição na pesca do atum, não existindo apoios para a
renovação e modernização da pequena frota local e costeira polivalente, base de
sustentação das principais comunidades piscatórias dos Açores. No período após a
adesão (1992-1998), a pesca polivalente continua a ser discriminada nas ajudas para
as regiões ultraperiféricas, sendo que os Açores só passaram a beneficiar de ajudas
europeias após diversas reivindicações dos pescadores e dos sindicatos, quer através
de tomadas de posição públicas quer através de exposições enviadas à comissária das
26 Maior fábrica de conservas de peixe dos Açores. Aquando da sua inauguração, em 1997, era a maior da península ibérica.
23
pescas. Por outro lado, as aplicações das leis do Estado à Região resultam na maior
parte dos casos, de disputas de poder político-partidárias. Pelo seu lado, o poder
regional instrumentaliza as medidas ao seu gosto. Veja-se o exemplo da distribuição
de potências motoras no segmento de menos de 12 metros: são muitos os casos que
indiciam um claro favorecimento aos mestres que, se não são próximos do poder, pelo
menos não o criticam, e isso é uma óbvia desvantagem para os mais críticos
politicamente.
A sobreposição legislativa e de competências entre estas três sedes de decisão
dá lugar ainda a incongruências jurídicas, com a produção de leis que se contradizem
e às vezes, impossibilitam a sua aplicação. Neste sentido, afirma Liberato Fernandes,
“os profissionais hoje estão sujeitos a cerca de uma dúzia de leis diferentes, sendo
que é praticamente impossível exercer a actividade da pesca profissional sem entrar
em transgressão”.
A sobreprodução de leis provoca também o aumento das exigências legais o
que implica naturalmente um acréscimo de custos: desde as exigências de instalação
de equipamento visando favorecer o controlo da actividade até às exigências higieno-
sanitárias, e as taxas pagas pelos serviços prestados aos órgãos da Autoridade
Marítima Nacional. Na actualidade os pescadores estão sujeitos a uma dezena de
procedimentos burocráticos, dos quais cinco têm validade anual, tendo que ser
continuamente renovados e pagos. “Ora, acrescenta Liberato, este excesso de
legislação e de burocracia numa classe onde os níveis de escolaridade são em regra
bastante baixos também são mecanismos de dominação”. Esta situação torna-se
sufocante para a actividade dos armadores e de todos os pescadores, e este sufoco
atinge toda a comunidade dado o carácter familiar da actividade.
Em terceiro lugar, deve-se prestar atenção ao extraordinário desenvolvimento
doutras actividades que disputam o mesmo espaço marítimo e exercem actividade
extractiva, como é o caso da pesca lúdica e da pesca desportivo-turística. Na
actualidade existem 4000 embarcações de “náutica de recreio”. Mesmo considerando
que apenas 25% exerçam a actividade de pesca, isso significaria 1000 embarcações a
pescar, contra as 700 de pesca profissional. Apesar de, em teoria, esta pesca ser para
“autoconsumo”27, é óbvio que esta actividade tem impactos sobre os recursos da
27 Foram denunciados pelos pescadores profissionais inúmeros casos de prática de pesca comercial encapotada como pesca lúdica.
24
pequena plataforma que raramente ultrapassa as 3 milhas a partir da linha de costa,
mais ainda quando se tem em conta que não existe legislação nem fiscalização sobre
estas embarcações: os pescadores desportivos não pagam impostos nem licenças, não
têm limite de potência motora, e a sua actividade está salvaguardada das práticas de
fiscalização e da recolha de dados para efeitos de estatística. A este respeito, diz ainda
Liberato Fernandes, “Há aqui uma discriminação na forma e já não apenas da pesca
mas no conjunto das actividades ligadas ao mar, com uma justiça que tem contornos
de classe, que é relativamente mansa para quem tem dinheiro e de bom forte para os
profissionais”.
Igualmente, devem ser tidos em conta os impactos das actividades realizadas
ao longo das costas das ilhas, como a construção de estradas e marinhas que
representam a destruição de recifes naturais, assim como os impactos das actividades
agrícolas nas alterações da biodiversidade e geodiversidade marinhas junto da costa.
Por último, a pesca regional reflecte algumas situações que resultam da crise
nacional e internacional: as despesas de exploração aumentaram desde 2002, e desde
2007 é evidente o aumento dos custos do combustível e a descida dos preços de
primeira venda de algumas espécies, fruto da diminuição do poder de compra dos
consumidores e da cada vez maior liberalização dos mercados dos produtos da pesca.
Porém, nem tudo o que vêm da crise é mau: o sector primário, que em determinado
momento era sinal de subdesenvolvimento, ganha uma nova relevância que leva a
uma valorização do ofício da pesca, da agricultura e da lavoura, por serem estes os
ofícios que garantem a necessidade primária da alimentação. O discurso de Liberato
Fernandes parece ir neste sentido quando afirma que, “a entrada em crise de outras
profissões contribui para a revitalização da pesca, onde mesmo ganhando-se pouco,
mata-se sempre a fome”. As dificuldades presentes de acesso ao mercado de trabalho
em Portugal e a instabilidade dos empregos existentes podem igualmente ser factores
que influenciem nesta nova revalorização. Ao trabalharem para companhas familiares
(no sentido literal e/ou figurado) a estabilidade laboral e financeira parece estar mais
assegurada. Um dos meus informantes, o jovem pescador e mestre de Porto Formoso
Paulo Jorge28, declarava em Fevereiro de 2012: “Agora gosto de dizer que sou
pescador. Antes não dizia, tinha vergonha. Agora sinto-me orgulhoso e sinto que as
28 Para mais detalhes sobre este informante ver Capítulo 3.2
25
pessoas olham para nós de forma diferente”. Embora ainda não existam dados neste
sentido, parecem sentir-se os primeiros sinais.
A nova atitude que se começa a perceber perante esta e outras profissões
similares não significa, porém, que a pesca, como ocupação laboral, se esteja a
revitalizar. As dificuldades continuam a ser muitas e a curto prazo não se antevê uma
solução para a crise da sobrexploração na pesca, como de resto acontece na
agricultura e na lavoura: o mundo está superpovoado. Para Liberato Fernandes, o que
hoje está demonstrado é que o futuro das pescas não passa por uma pesca industrial
e em quantidade, mas sim por uma pesca tradicional que aposte em gerir a captura
numa perspectiva de sustentabilidade, premiando uma pesca responsável e
eliminando, tanto quanto possível, a cadeia de intermediação, de forma a que o
pescador ganhasse mais com o seu produto .
1.3 A explosão turística em São Miguel. Do papel à prática.
No fim do século XX e início do século XXI uma nova actividade irrompe
com força na ilha, devido ao seu potencial como motor de desenvolvimento
económico que viesse suplantar outras actividades que passaram a ocupar um segundo
plano, como a agricultura e a pecuária, ou actividades insuficientemente rentáveis,
como a pesca. O fenómeno do turismo, como hoje o percebemos, surge por volta dos
anos 50. Factores como o crescimento demográfico, o progresso técnico (sobretudo ao
nível dos transportes), o aumento dos rendimentos, a melhoria do nível de instrução
(linguístico, mas não só) e o êxodo rural, contribuíram de maneira decisiva para a
criação de uma nova cultura da viagem. Embora com alguns períodos de crise (em
correspondência com crises económicas, como a dos anos 70, e a actual), desde o seu
surgimento têm vindo sempre a crescer, entrando definitivamente na agenda política
na década de 90.
No início desta década, e em consonância com os processos globais e
globalizantes de turistificação, São Miguel começa a receber os primeiros grupos
turísticos, percebendo o potencial que esta actividade encerra. Nesta primeira fase, e
devido às estratégias das agências de viagem, os turistas provêm nomeadamente de
países do norte de Europa (Suécia, Dinamarca) em voos charter e férias programadas.
Durante esta década, o investimento direccionado ao turismo é ainda pequeno,
embora se percebam os primeiros signos de um futuro crescimento.
26
A abertura dos Açores ao turismo, como motor de desenvolvimento
económico principal, acontece ao longo da primeira década do século XXI. Como
reconhecem no fim da década dos 90 Rojeck e Urry (1997), as transformações cada
vez mais globais que atravessam as sociedades contemporâneas afectaram o carácter
das práticas turísticas, colocando o turismo num novo patamar de importância social,
enquanto reflexo de um conjunto de novas condições de mobilidade, num contexto de
crescimento de fluxos, de pessoas e objectos. As práticas turísticas erguem-se
definitivamente como um fenómeno estruturante da modernidade ( “pós-modernidade”
para alguns) e nas ciências sociais “now the tendency seems to be to applaud tourism
as a panacea for achieving a wide array of social, economic and environmental goals”
(Stronza, 2001:275).
Nos Açores, a aposta na natureza como especificidade turística do
arquipélago ganha peso no mercado nacional e internacional a partir da primeira
década do século XXI, altura em que o Governo Regional define o turismo como um
dos sectores com maior potencial de crescimento. A virgindade e a exuberância da
natureza vulcânica que caracteriza o arquipélago, garante um aumento progressivo no
fluxo de turistas, cada vez mais consciencializados com as causas ambientais. O
reconhecimento internacional dos Açores como destino turístico também contribuiu
para o seu rápido crescimento. Em 2007, os Açores obtiveram o segundo lugar na
classificação publicada pela “National Geographic” para “destinos de ilhas”, e em
2011 ficaram em oitavo lugar na classificação dos “melhores destinos de verão”.
Fig. 1.3.Fonte: Serviço Regional de Estatística
dos Açores (SREA)
Esta nova direcção tomada pelo Governo Regional, reflecte-se no Plano de
Ordenamento Turístico da Região Autónoma dos Açores (POTRAA), publicado em
2008:
27
O desenvolvimento económico e social em curso na Região, que se reflecte também na construção de infraestruturas e no crescente fluxo de turistas que a visitam, torna imperativa a definição de estratégias de desenvolvimento turístico, que garantam sustentabilidade, tendo em conta a realidade regional e a consolidação qualitativa da sua imagem de destino de fruição da natureza.
Dentro desta estratégia, o Governo Regional concede uma maior visibilidade à
ilha de São Miguel, que surge neste contexto como a ilha mais completa, acessível e
exposta ao turista. O aumento do fluxo turístico na ilha, e no arquipélago em geral,
tem provocado uma multiplicação da oferta turística que deve concorrer no palco
local, regional e global. Como indica Gotham (2002: 1737), “as different tourist
attractions and cities increasingly compete with each other to attract tourists, the
need to present the tourist with ever more spectacular, exotic and titillating
attractions increases.”. Ao mesmo tempo, as motivações dos turistas se alteram e
complexificam. E neste processo desenfreado por atrair o turismo tudo vale: a
directriz inicial, a aposta pela natureza, fica em muitos casos pelo papel. O
“ecoturismo” enfrenta o seu próprio paradoxo: o turismo (ecológico ou de qualquer
outro tipo) provoca, a maior parte das vezes, transformações que não podem respeitar
o delicado equilíbrio que uma política de preservação da natureza requer, e “o que
acaba acontecendo é a destruição do objecto de atracção e/ou preservação” (Lorenzo,
apud Prado, 2003:212). A edificação de grandes torres de hotéis em detrimento de
pequenas hospedagens rurais e hotéis de charme, a construção do complexo “Portas
do Mar” para a atracagem de cruzeiros, a obra – agora abandonada mas ainda
monstruosa- de um enorme casino na antiga calheta de Porto Teve (único local de
vestígios do povoamento primitivo de Ponta Delgada, do séc. XV), a construção do
novo Museu de Arte Contemporânea dos Açores - que pouco tem para mostrar- são
apenas alguns exemplos que evidenciam a falta de coerência do poder regional.
Durante a conferência organizada pelo OTIE29 no Conselho das Regiões da UE, o
professor Carlos Santos, Director do Observatório de Turismo dos Açores30 acusa a
falta de estratégia e visão no plano de desenvolvimento turístico do arquipélago. “O
29 Conferência “New trends of tourism in European Islands”, Bruxelas, 22 e 23 de Março de 2012, “Observatory on Tourism in the European Islands” (OTIE). 30 Associação privada, sem fins lucrativos, cujos sócios fundadores são a Região Autónoma dos Açores, a Associação de Turismo dos Açores e a Universidade dos Açores, tendo por missão promover a análise, divulgação e o acompanhamento da evolução da actividade turística, de forma independente e responsável, garantindo a idoneidade da sua produção técnico-científica, de modo a contribuir para o desenvolvimento de um turismo sustentável na Região Autónoma dos Açores e integrado nas estratégias globais de desenvolvimento regional. Sítio em http://www.observatorioturismoacores.com/
28
governo, declara o professor, defende que quanto mais generalistas sejam os fluxos
turísticos melhor, uma vez que os nichos de mercado concentrados –como o da
natureza- não são suficientemente rentáveis”. É provável que o afã de captar todo o
tipo de turista (natureza, cultural, lazer e jogo, praia, cruzeiro), se deva também à
necessidade de compensar a falta de estabilidade climática, tanto de temperatura como
de chuva, que não confere aos Açores a atractividade de ilhas como a Madeira em
Portugal e as Canárias em Espanha. Neste sentido é relevante referir a análise
realizada por Elsa Peralta sobre o caso de Ílhavo, onde
“o poder político percebeu que o turismo poderia ser uma alternativa viável para compensar o declínio de outras actividades. Mas percebeu também que o produto “sol e mar” teria, pelas condições climatéricas menos favoráveis e pelas tendências de crescimento identificadas para o sector turístico, que ser reconfigurado em torno de um motivo ou elemento diferenciador, que completasse a oferta existente, se se queria posicionar no conjunto da oferta turística da região” (2003:89)
No caso de Ílhavo o elemento diferenciador escolhido foi “o mar”, na sua
expressão histórica e cultural, e mais especificamente a pesca de bacalhau. Porém nos
Açores, onde tudo indicava que o elemento diferenciador seria a especificidade da sua
paisagem natural (com vulcões e crateras, fumarolas, cascatas, jacúzis naturais)
parece não haver uma aposta séria neste sentido. Pelo contrário, o poder regional
parece não seguir nenhum plano estratégico concreto. Copiando em muitos casos o
modelo seguido na Madeira, as políticas de desenvolvimento turístico estão
desenhadas para tentar agradar tanto o turista de cruzeiro e centro comercial, como o
de sol e praia ou o de natureza, apostando em várias frentes ao mesmo tempo. O
turismo, agora massificado, inclui turistas com perfis de todo o tipo, sendo
enormemente complexo adaptar a oferta a tal variedade. Como aponta Silva (2011)
“isso reflecte-se numa oferta que cada vez mais aposta na multiplicação e
segmentação de produtos –com pacotes específicos e dirigidos a tipos sociais
específicos (famílias, grupos, indivíduos, com perfil social, de idade e ou orientação
sexual particular) ou, alternativamente, na composição de produtos com elementos
combinados (praia + cultura, campo + desporto)”. Mas em São Miguel, onde o
elemento de diferenciação principal é essa natureza vulcânica, a falta de um plano de
desenvolvimento sólido tem consequências que são claramente visíveis na
reconfiguração da paisagem da ilha, onde se percebe a falta de rumo. Perante este
cenário, o Professor Carlos Santos defende uma estratégia “diversificada dentro de
29
uma lógica concentrada”, isto é, focar-se no turismo da natureza e desenvolver apenas
actividades complementares, como o turismo de saúde ou o golfe. As grandes torres
de hotéis, assinala o professor, foram um grande erro de planeamento, uma
consequência perversa dos subsídios da União Europeia. Estes subsídios atraíram
sobre tudo investidores madeirenses que, à imagem da Madeira, construíram
numerosos hotéis em Ponta Delgada que não oferecem ao turista nenhum serviço,
além dos quartos, nem contam com espaços verdes. Em contrapartida não existem
alternativas de alojamento suficientes fora da cidade, o que, num destino de natureza
como São Miguel, “não faz sentido nenhum”. A opinião de Liberato Fernandes vai no
mesmo sentido, pois “O que o turista procura aqui é exactamente aquilo que é
diferente e singular, e essa singularidade não está a ser respeitada nem por este
governo nem por o outro”.
Entretanto, os investimentos direccionados para o turismo continuam a
crescem, dando lugar a infraestruturas cada vez mais complexas e variadas que vão
modificando a configuração física da ilha. Como afirma Anthony Giddens (1997) a
globalização enquanto “acção a distância” reestrutura o espaço, onde a “ausência
predomina sobre a presença”. O turismo é também um fenómeno de ausência uma vez
que “os lugares e as pessoas são afectadas pelas práticas turísticas em diferentes
temporalidades, que não são apenas as temporalidades marcadas pela presença dos
turistas” (Guimarães, 2006:62). Em redor da promessa do turismo a ilha de São
Miguel transforma-se a olhos vistos. O programa político regional foca-se no turismo
como fonte de receitas capaz de suplantar outras actividades de uma forma quase
obsessiva. A maior parte dos investimentos regionais tem como objectivo, directo ou
indirecto, promover o turismo: a construção de novas estradas (para dar maior
visibilidade a locais mais isolados), a requalificação de prédios (para ganharem
estatuto turístico), a patrimonialização do passado (para o expor ao turista), a
construção do centro comercial “Parque Atlântico” (para o turista comprar), a
ampliação das rotas e as novas promoções da SATA, companhia aérea detentora do
monopólio na Região (que favorecem quem vem de fora). Todos estes investimentos
parecem estar mais direccionados para o turismo do que para os locais, que reclamam
outro tipo de intervenções em função das suas prioridades.
30
Mas as transformações decorrentes destes novos processos de turistificação
não são apenas físicas. Socialmente, surgem novas paisagens31 onde se encontram,
entre outros, locais, turistas, imigrantes e repatriados, fenómeno característico da nova
configuração do mundo em movimento. As tensões entre os diversos agentes que
configuram o panorama insular seriam de facto uma análise para desenvolver num
outro estudo (cf. Smith & Maryann 2001) Mas se atendermos aos sentimentos locais
perante o turismo (mas não ainda perante o turista), é de salientar um crescente
sentimento de cepticismo. Após as primeiras promessas governamentais, que
anunciavam a chegada do turismo como actividade que iria relançar São Miguel e os
micaelenses, criando enormes expectativas, os locais começam a mostrar os primeiros
signos de desilusão. Passados 10 anos, os habitantes, atentos as melhorias
desenvolvidas para receber os turistas, começam a criticar a falta de serviços e
melhorias dirigidas à comunidade, como creches e lares para idosos, condições nas
escolas, ausência de apoios sociais aos grupos mais vulneráveis, esgotos e
saneamento: aos seus olhos o turista recebe melhor tratamento. Do outro lado, o
local não se está a sentir directamente beneficiado: os postos do trabalho criados pelo
turismo ainda são poucos, e o que o turista gasta na ilha, nomeadamente nas pequenas
aldeias, ainda não é significativo. Embora muitos locais continuem a defender o
turismo como “salvação” da economia local, outros parecem haver desistido desse
“sonho”, mostrando agora indiferença, e ainda há quem se mostre publicamente
contra, pois não concordam com as alterações que se estão a introduzir na ilha32.
1.4 A convivência das práticas turísticas e as práticas haliêuticas em São Miguel
O mar tem sido exaltado até a exaustão no discurso romântico e nostálgico de
Portugal: pátria dos cavaleiros de mar, das epopeias atlânticas, das épicas oceânicas,
Portugal mede-se perante a imensidade da água que o rodeia, atirando-se a ela e dela
fugindo. Portugal país- limite : confim do mundo conhecido, na antiguidade, agora é-
o da nova Europa. Hoje, sob o lema “The West Coast of Europe”33, Portugal vende-se
ao mundo, à procura de novos clientes que apreciem a vertigem que resulta de olhar
para o horizonte infinito do Atlântico.
31 No sentido que Appadurai (2004) dá ao conceito de etno-paisagens.. 32 Sobre as percepções locais perante o turismo, ver próximos capítulos da tese. 33 Slogan da campanha de turismo lançada em dezembro de 2007, coincidindo com a assinatura do Tratado de Lisboa.
31
Já o disse o poeta Afonso Duarte34, e o cantou o músico Luís Cília : há só mar
no meu país. São 848 km de litoral, divididos por duas frentes expostas a ocidente e a
sul. O papel do mar no marco identitário de Portugal tem sido muito discutido35:
embora queiramos fugir do discurso naturalista que associa, sem mais, uma linha de
costa prolongada com uma grande nação marítima (Amorim, 2008:28), é inevitável
assumir que o mar define, quanto menos, uma boa parte do ser do país. Segundo
dados do Instituto da Água (INAG, 2009), cerca de 75% da população portuguesa
concentra-se na zona costeira, sendo responsável pela produção do 85% do PIB. É de
todos sabido que o litoral sempre exerceu uma forte atracção sobre grande parte da
população. Constituindo-se como um polo de dinamização, ali se conjugam tradição e
modernidade e se misturam expressões conservadoras e progressistas.
O litoral36 constitui em si próprio um espaço liminar, uma zona de contacto
entre dois meios físicos diferentes: a terra e o mar. A intensidade deste contraste
ganha ainda mais força tendo em conta a natureza imensa e infinita e o valor
simbólico e mítico deste último: o mar é símbolo de vida mas também de morte, é
beleza e destruição, é próximo e desconhecido. É do encontro da liquidez do mar e da
firmeza da terra que surge o sistema complexo e original que caracteriza as
comunidades à beira-mar, “marcando profundamente a vida social dos grupos que o
habitam, e muito em especial, a das comunidades piscatórias” (Nunes, 2001:34).
Mas não são só estas comunidades que ocupam estas zonas liminares. Da
existência de formas diferentes de utilização das praias decorre a multiplicidade de
olhares sobre o mar. Neste sentido importa pois compreender que
A ocupação humana das frentes marítimas do litoral –central- resulta de um processo de conjugação de interesses afectos a grupos sociais e ocupacionais distintos, nomeadamente: pescadores, lavradores, comerciantes, representantes da administração central e banhistas. (Nunes, 2003:132)
Este conjunto abrangente de agentes, conformam a categoria que Moreira
designa por “populações litorâneas” (1987:14). É claro que a relação de cada um
destes grupos com o mar é completamente diferente, pois se para uns é vital para a
sua subsistência, para outros é complementar, e ainda para outros apenas lúdico. Nos 34 Verso do poema “Epigrama” incluído em “Ossadas” 35 Sobre as questões identitárias do mar na construção de Portugal, ver “O mar como património: considerações acerca da identidade nacional portuguesa (Peralta, 2008) 36 Sobre as questões linguísticas e definições dos termos “litoral” e “zona Costeira” ver “Homens da Terra ou Homens do Mar- um percurso historiográfico” (Amorim, 2008:29-30)
32
últimos 50 anos, tem-se assistido a uma evolução do papel de cada um destes agentes
no desenho das zonas costeiras, em consonância com as dinâmicas globais que têm
vindo a transformar o mundo a um ritmo cada vez mais acelerado. Se o antigo modelo
da cultura marítima tinha como peça central a figura do pescador, a tendência actual é
a de uma predominância do sector turístico como motor de mudança ao redor do qual
a paisagem do litoral se reconfigura. Na costa, esta transferência da pesca para o
turismo enquanto motor económico tem consequências facilmente visíveis.
Tradicionalmente, os pescadores estabeleciam-se em terras que não serviam para
cultivar, ao pé das falésias e junto do mar. Com o turismo, estas terras ganham um
novo valor, e o mercado imobiliário faz o seu papel, retirando os pescadores e
construindo chalés, apartamentos, hotéis. Para Liberato Fernandes, “os pescadores
acabam por ser ensanduichados de duas maneiras: em mar, pela escassez de
recursos, e em terra, pela pressão do turismo”. Em Portugal, este fenómeno é
característico de zonas como a costa sul Algarvia, onde as praias passaram de ser
locais de trabalho a serem locais de lazer37. Em São Miguel, embora em menor
medida, existem cada vez mais exemplos deste fenómeno de enobrecimento (ou
gentrificação) de zonas piscatórias, sobre tudo na costa sul, como São Roque, Caloura
e Vila Franca do Campo.
A prioridade económica e política que é dada ao turismo tem, além desta
pressão imobiliária, outras consequências sobre a pesca. É claro o desequilíbrio de
investimentos quando comparamos estas duas actividades: enquanto no turismo há um
sobreinvestimento, com numerosos projectos a decorrer em simultâneo, na pesca
profissional há um claro subinvestimento, ficando sempre aquém das necessidades
dos pescadores. Além disto, a Porto de Abrigo denuncia casos de uso de dinheiro do
orçamento de pescas para fins que em pouco ou nada ajudam a pesca. “Nós – diz
Liberato Fernandes- temos conhecimento de portos que foram construídos com
dinheiro do orçamento das pescas e cuja valência para a pesca é nenhuma ou
reduzida. Em Santa Maria, por exemplo, foram construídos portos em tempo recorde,
cuja única valia era a náutica de recreio. E isso acontece em todas as ilhas”. Nos
últimos anos os investimentos dedicados à construção de marinas em São Miguel são
no mínimo dezenas de vezes superiores ao que se dedica à pesca profissional. Estas
37 Para mais informação sobre estes processos no Algarve, ver “Agenda Regional do Mar Algarve, Contributos para o Plano de Acção para o Cluster Mar Algarve” (Pires, 2008)
33
marinas, entende diz Liberato, “não passam de garagens para uma classe média alta
que em si não proporcionam o desenvolvimento de actividades económicas nem
gerem receitas” constituindo assim exemplos de investimentos dificilmente
justificáveis.
Mas mesmo nesta nova hierarquia de agentes, o pescador continua a ter
importância para o turismo, pois neste contraste de classes, de trabalho e férias, de
operário e proprietário, o banhista “ complementa o usufruto lúdico e terapêutico da
praia com a fruição de uma mais-valia escópica” (Nunes, 2003:145) , isto é, a
possibilidade de se deliciar, entre banhos, com a paisagem colorida dos barcos, o
murmúrio dos pescadores, o reflexo prateado do peixe. Perante esta visão exótica o
veraneante fica deslumbrado, hipnotizado pelo influxo, para ele nostálgico (pois
pertence ao “passado”), deste postal. Em palavras de Alain Corbin (1989:234) “o
viajante sonha em penetrar no quotidiano dos pequenos pescadores; ele tenta -ou
contenta-se em imaginar- escutá-los na estalagem, em suas cabanas, na praia”.
Associado a outros aspectos desse imaginário, continua Corbin, o pescador converte-
se num discurso de recusa da modernidade , numa espécie de preservação da natureza.
Sob o signo da nostalgia, “o trabalho da pesca faz-se espectáculo” (Nunes, 2003:145)
que o turista adora contemplar, fotografar e gravar. A pesca, ofício de história
ancestral e palco de confronto “primitivo” entre a natureza e o homem, constitui-se
como parte de um passado “autêntico” (Peralta 2003:89) que o turista, em
consonância com o “florescimento de um sentimento de nostalgia” no mercado
turístico, valoriza cada vez mais. Por isso,
Mesmo após a implantação da indústria turística moderna, depois do enorme desenvolvimento dos espaços de lazer e da sua diversificação, a pesca e os pescadores– tornando-se parte integrante da paisagem – continuarão ainda a constituir atracão, satisfazendo as necessidades escópicas de quem vem de férias à praia, servindo de motivo para bilhetes-postais, fotografias, quadros e azulejos exibidos por toda a parte, em estações de caminhos-de-ferro, em cafés e restaurantes, etc. (Nunes, 2003:137)
O governo regional, ciente das tendências do mercado turístico e sabedor do
valor da pesca, tem vindo a criar um marco legal para as actividades da pesca
relacionadas com o turismo. No Decreto Legislativo 23/2007/A, sobre o regulamento
da actividade marítimo-Turística dos Açores, pode-se ler:
O desenvolvimento de actividades de turismo náutico pelos inscritos marítimos, com utilização de embarcações de pesca, pode e deve assumir um importante
34
papel social e económico, complementando os rendimentos deste sector e proporcionando aos turistas vivências culturais genuínas, em condições que assegurem simultaneamente a sua segurança e conforto.
Porém, até agora as actividades marítimas dirigidas ao turista limitam-se
principalmente à observação de cetáceos, sendo poucos (ou nenhuns) os programas
turísticos que incluam o embarque do turista num barco de pesca. Quando isto
acontece, costuma ser clandestinamente, isto é, quando algum pescador combina
uma saída a título pessoal com alguns turistas em troca de um valor –não
declarado- acordado por ambas as partes. Das conversas com diversas
comunidades piscatórias parece que a causa é outra vez a burocracia imposta para
esta actividade: o pescador, normalmente alheio a formulários, candidaturas e
requisitos legais complexos, não consegue reunir as condições para exercer esta
actividade. Por outro lado, existem outros perigos na turistificação da pesca e dos
pescadores. Como adverte ainda Liberato Fernandes, “A actividade turística nos
Açores tem de usar muito o mar, e utilizá-lo com aquilo que existe: a pesca
turismo não pode ser transformar o pescador numa espécie de figura do folclore,
não: o turismo deve envolver os pescadores como eles são. Também porque o
turista que vem, vem para conhecer uma realidade que é a que existe cá, e que
seguramente é diferente daquela da parte continental, como uma pesca muito mais
industrializada e intensiva”
O turismo é uma experiência quotidiana de alteridade (Meneses e Mendes,
1996:62): através da prática turística o homem tenta experimentar ser o outro, nem
que seja por um instante, mas nesta tentativa o outro transforma-se, tornando-se
naquilo que o primeiro imagina. Os processos de turistificação estão sem dúvida a
modificar o mundo e as pessoas, mas nem sempre com o mesmo grau de intensidade:
parece cada vez mais claro que “ estes processos afectam em maior medida as
comunidades menores que se estruturaram em função das actividades económicas
predominantemente primárias” (Guimarães, 2006:63) e, nesse sentido, locais como
Porto Formoso ganham relevância como objectos de investigação.
O turismo é a ponta mais visível de processos socioeconómicos globais bem
mais amplos, por se manifestar na interacção de modos de vida diferenciados que
resulta deles (Crick, 1989). Para este autor, (e de acordo com o resumido em Silva,
2007) o turismo não pode ser visto como um bode expiatório por parte dos cientistas
35
sociais, e isso implica: a) abandonar as visões românticas de preservação cultural
como valor absoluto e imperialista de emocionalismo rousseauniano; b) entender a
mudança provocada pelo turismo no quadro das mudanças sociais, culturais e
económicas mais vastas; c) entender as mudanças e impactos em termos locais e
contextualizados, fazendo interferir outros factores de dependência para além do
turismo; d) atentar na focagem de outras relações potenciais de conflito e dependência
internas, atomizando a dicotomia ocidente / terceiro mundo; e) reconhecer as
participações locais nos processos turísticos; f) atentar as mudanças culturais
decorrentes dos processos turísticos nos dois sentidos; g) inserir as análises relativas
ao turismo internacional no quadro global do turismo (local e regional); h) comparar
diferentes formas de turismo ao longo do tempo e em diferentes contextos; i)
relativizar as críticas à autenticidade encenada porque, em última análise toda a
cultura pode ser encenada; j) relativizar, também as críticas ao carácter predatório e
destruidor do turismo de forma a não negligenciar o seu potencial concomitante na
preservação natural e cultural, nem a sua viabilidade económica nem como motor de
activação social.
Os pressupostos de Crick são muitos e variados e estruturam uma abordagem
antropológica objectiva e multifacetada, mas mesmo sendo extremamente complexo
aprofundar todos eles, considera-se relevante tê-los em mente na elaboração da
análise que se propõe para esta dissertação.
36
CAPÍTULO II
PORTO FORMOSO
Passado, presente e futuro
“Porto Formoso, cantinho lindo à beira mar és colocado,
do mar à serra beleza encerra,
de belas flores és perfumado
Porto Formoso, és maravilha nesta ilha sem igual
Tu louvarás Nossa Senhora de Graça,
sempre serás a mais bela de Portugal.
(Canção popular)
37
A freguesia de Porto Formoso situa-se na costa norte da ilha de São Miguel, a
10 km de Ribeira Grande, a segunda cidade da ilha e a cujo concelho pertence. A
freguesia, com uma área de 11,46 Km2, conta com 1265 habitantes –367 famílias-
(censo de 2011), o que significa que a sua densidade populacional é de 109,5 hab/
km2.
Fig. 2-1. Mapa actual da ilha de São Miguel e situação de
Porto Formoso
2.1 Porto Formoso em retrospectiva
Na época do povoamento, a ilha de São Miguel era coberta de denso arvoredo,
sendo por isso difíceis as deslocações pelo seu interior. O porto de abrigo e a ribeira,
com caudal de água permanente, foram certamente determinantes para o povoamento
do “lugar” de Porto Formoso. Como diz o historiador Daniel de Sá, “o Porto Formoso
é um caso típico da escolha dos povoadores para se assentarem, pois cumpre as três
condições básicas: terrenos bons para a agricultura, água em abundancia (para
beber e para os moinhos) e um porto de pescas”. Curiosamente num mapa datado em
1507, o Porto Formoso aparece como uma das únicas referencias da costa norte da
ilha (Campos:1983).
Fig. 2-2. Mapa da ilha de São Miguel datado em 1507.
38
A fundação desta freguesia terá acontecido nos finais do século XV, uma vez
que, afirma o historiador Daniel de Sá, “em 1508 o escudeiro Pedro Vaz Pacheco doa
o altar lateral para a igreja de Porto Formoso, o que faz supor que esta igreja já existia
bastante tempo antes”. Desde o seu início, as gentes de Porto Formoso eram
multifacetadas, pois tanto lavravam as terras como se aventuravam no mar. A terra e
o mar eram também complementares: o mar, para além da pesca, foi para Porto
Formoso essencial para escoar os produtos agrícolas, que eram transportados por
barco até ao início do século XX, uma vez que os caminhos eram praticamente
intransitáveis, além de perigosos.
Quanto ao trabalho na terra, o Porto Formoso foi desde cedo uma freguesia de
múltiplas produções, onde sempre houve um certo avanço experimentalista e um certo
espírito de iniciativa, em parte pela acção e influencia da Sociedade Promotora
Agrícola Micaelense38, na vizinha freguesia de Maia. Além de cultivos comuns a
outras zonas da ilha, como o trigo e o milho, e depois a laranja, em Porto Formoso
houve plantações de ervilhas e favas, e em 1878 foi introduzida a cultura do chá. Ao
redor deste cultivo, desenvolveu-se toda uma estrutura operacional e social, cujo
centro era a fábrica de chá de Porto Formoso, que foi um dos polos dinamizadores
mais importantes não só da aldeia, como da ilha. Esta fábrica foi, juntamente com a
fábrica de chá Gorreana (situada na vizinha freguesia de Maia), o único exemplo de
plantação de chá para fins industriais da Europa e nela trabalhavam muitas das
mulheres de Porto Formoso. A fábrica, que é actualmente um dos ex-libris turísticos
da aldeia, esteve em funcionamento entre a década de 1920 e a década de 198039.
Quando fechou, muitas das mulheres que ali trabalhavam voltaram para as tarefas do
lar ou passaram a ajudar os maridos na terra ou com os aparelhos da pesca. Foi por
volta desta altura que, em consonância com os processos económicos da ilha de São
Miguel 40 , as plantações e cultivos agrícolas em Porto Formoso começaram a
desaparecer para dar lugar aos pastos necessários para a lavoura, deixando apenas
pequenas terras para o consumo familiar. O Bruno Raposo (conhecido como “o
Regedor” no blog “A Casa da Mosca”41) publicou a seguinte fotografia num dois
38 Ver Nota 21 39 Em 1998 os atuais proprietários iniciaram as obras de recuperação da fábrica de interesse no património industrial da região. 40 Ver Capítulo 1.1 41 Ver Introdução. A partir de agora referenciado como o Regedor.
39
primeiros posts do blog (05/07/2005), fazendo-a acompanhar da seguinte legenda:
“Foto antiga de Porto Formoso, os campos eram cultivados, vacas, nem vê-las”.
Fig. 2-3. Fotografia panorâmica de Porto Formoso, sem
data.
Quanto ao mar, em Porto Formoso sempre houve pescadores. O seu porto de
pescas foi, até há bem pouco tempo42 uma encosta natural, utilizando a areia para
varar os barcos. Não parece arriscado afirmar que esta baía natural, foi emblemática
não só para a aldeia, mas para toda a ilha, dando o seu nome à aldeia. Gaspar
Frutuoso, escritor da obra “Saudades da Terra” (séc. XVI), referia-se-lhe deste modo:
“adiante faz uma ponta, chamada de Auradis da Gama, que ali morava e tinha a sua família da qual ponta até outra adiante, de António Brum, se faz uma formosa enseada de praia de areia, e ao meio dela está o lugar de Porto Formoso, pelo que nele tem, que era limpo e o melhor que havia na banda norte, onde se fizera já vararam alguns barcos e carregaram muito trigo (...)”.
Fig 2-4. Baía de Porto Formoso, antes das obras. (cedida pelo Regedor)
Na mesma obra, o autor refere ainda a abundância de peixe nos mares desta
aldeia, o que prova que a pesca se desenvolveu em Porto Formoso desde os inícios do
povoamento. A pesca nesta aldeia foi sempre de carácter artesanal, usando pequenos
42 Como se verá neste e nos próximos capítulos, foram feitas obras de requalificação no porto, que incluem duas docas em cimento e modificam a configuração natural da baía.
40
barcos de madeira e aparelhos fabricados manualmente. As famílias juntavam-se em
pequenos grupos e os conhecimentos empíricos eram passados de geração em geração.
Até ao século XX, a pesca teve como objectivo principal assegurar a subsistência das
famílias, comercializando apenas os excedentes entre os vizinhos e as aldeias mais
próximas. Factores como a chegada dos barcos a motor (em 1957) e a criação da lota
(e a estrutura de transporte de peixe correspondente), são essenciais para fazer da
comercialização do peixe uma alternativa real, pois passa a ser uma actividade
económica mais eficaz e abrangente. A meados do século XX havia mais de meia
centena de pessoas que viviam directa ou indirectamente da pesca. Nesta altura era
habitual que os pescadores trabalhassem também na terra ( como proprietários de
pequenos lotes ou como assalariados), complementando assim os seus ordenados.
Para o fazer, aproveitavam as temporadas de mau tempo no mar ou as paragens
obrigatórias para manutenção dos barcos. Este fenómeno é ainda hoje perceptível,
embora com menor frequência, em parte devido à profissionalização da pesca e o
desaparecimento quase total da agricultura, tendo ficado apenas pequenos lotes
destinados ao consumo próprio e ao trabalho da lavoura, que pelas suas características
é de difícil compaginação com a pesca. A partir dos anos 60 fenómenos como a
emigração, o crescimento doutros sectores (como a construção) e o decréscimo dos
recursos naturais no mar marcam uma tendência de abandono desta profissão, sendo
que o número de pessoas dedicadas à pesca nos anos 90 rondava os 25.
Fig. 2-5. Pescadores em Porto Formoso, tirada pelo
polícia Marítimo em 1947 (cedida pelo Regedor) .
Relativamente à pesca, é de salientar ainda uma curta mas marcante
experiência na pesca à baleia. Na década de 1880, constituíram-se armações no Grupo
Oriental, a partir da ilha de São Miguel. Nesta ilha existiram quatro companhias
baleeiras, sendo que uma delas, a "Companhia Baleeira Esperança", fundada por
alvará de 20 de Abril de 1886, estava sediada em Porto Formoso. Esta empresa fez
41
com que muitos cabo-verdianos ligados à caça à baleia se fixassem no Porto Formoso.
Apesar desta empresa ter uma existência mais ou menos efémera (foi abandonada nos
anos 30 do século passado), é ainda muito recordada pelos habitantes da aldeia.
Mas se o porto natural desta aldeia proporcionava uma fonte de alimentos e de
receitas inestimável, era também uma porta que urgia defender dos ataques externos.
Por isso, construiu-se em posição dominante sobre este trecho do litoral uma
fortificação destinada à defesa deste ancoradouro contra os ataques de piratas e
corsários portugueses, ingleses e otomanos, outrora frequentes nesta região do oceano
Atlântico. Esta construção, que faz parte de uma vasta rede de fortificações litorais
nos Açores, é um testemunho dos séculos de isolamento a que estas ilhas foram
sujeitas e das preocupações de defesa das suas populações. A primeira referência a
esta construção aparece no contexto da Guerra da Sucessão Espanhola (1702-1714)
"O Reduto do lugar do Porto Formoso" na relação "Fortificações nos Açores
existentes em 1710” (Arquivo dos Açores:179). Pelas sucessivas referências percebe-
se que ao longo do século XVII se foi deteriorando, sendo que em 1817 se encontrava
arruinado e desartilhado. Porém, foi reconstruído e novamente artilhado em 1820, a
tempo da Guerra Civil Portuguesa (1828-1834). Com o nome de Forte de Nossa
Senhora da Graça ou simplesmente Castelo, por ocasião do desembarque das tropas
liberais no Pesqueiro da Achadinha (1 de agosto de 1831), foi abandonado pela
guarnição miguelista, depois de lhe ter encravado a artilharia (Pereira, 1927:98).. Em
1909 encontrava-se uma vez mais em ruínas. Mais tarde, as suas dependências foram
aproveitadas pela "Companhia Baleeira Esperança", para instalação de um traiol43
para derreter a gordura das baleias. A partir daí a degradação foi consumindo as
ruinas do forte: parte das pedras das suas paredes foram utilizadas para construir um
muro de protecção para barcos e outras construções da aldeia. Muitos dos atuais
habitantes da aldeia apenas recordam o castelo como um curral de criação de porcos,
e hoje, não é mais do que um monte de ruínas desfigurado que sobrevive a duras
penas por entre a nova construção do porto.
43 Designação dada a estações de processamento de baleias rudimentares, que permitiam a extracção do óleo pelo meio de panelas de grande dimensão, assentes sobre fogo directo. Estas estações eram frequentemente desprovidas de rampas para varagem dos animais
42
Fig. 2-6.Detalhe actual do Forte ou “Castelo”
(Inventário do património imóvel dos Açores, 2003)
As terras férteis e a proximidade do mar foram com certeza factores essenciais
para perceber o Porto Formoso como destino de eleição para as novas famílias ricas
de São Miguel. Até aos anos sessenta do século passado os grandes terrenos à volta da
aldeia eram propriedade de quatro ou cinco senhorios. Estas famílias tinham feito
fortunas com o negócio da laranja e nestes terrenos construíram solares que habitavam
sazonalmente. Um facto curioso a este respeito é a existência em Porto Formoso de
uma equipa de cricket , modalidade que foi praticada entre os anos 30 e 50 do século
passado provavelmente por influência destas famílias, em contacto com os ingleses
através das actividades comerciais.
Fig. 2-7. Equipa de cricket de Porto Formoso retratada em
194? (cedida pelo Regedor )
Além do mar e a terra, o Porto Formoso tinha ainda uma outra atracção para
estas famílias: as termas da Ladeira Velha. Durante o século XIX e início do século
XX, estas termas foram alvo de vários estudos e artigos publicados devido à fama que
as suas águas tinham no tratamento de reumatismo, lepra, e doenças da pele. Devido
ao seu sucesso, foram construídas casas para albergar os utentes das águas medicinais,
estando em funcionamento até aos anos 40. Tendo em conta a existência, no século
XIX e primeira metade do século XX, destes dois fenómenos (a eleição de Porto
43
Formoso para “segunda residência” e a existência das termas que recebiam açorianos,
portugueses e estrangeiros por motivos de saúde) pode dizer-se que Porto Formoso foi
desde cedo um “destino turístico” (extrapolando um conceito que na altura não
existia), o que se revela importante tendo em conta as presentes pretensões turísticas
da freguesia44. Assim, o turismo em Porto Formoso não parece ter aparecido apenas
de repente, ao sabor dos movimentos de globalização, das modas e tendências, no
início do século XXI: existe por trás uma história de contacto com os forasteiros que
inscreve Porto Formoso nas “práticas incipientes de turismo de praia associadas a
práticas medicinais e higienistas do século XIX” (Silva, 2011). Nesta altura, a
revolução industrial estava a expandir-se pelo mundo, e em contraste com a mesma, o
lazer era percebido como uma necessidade “dentro de uma lógica quase higienista”
(id.). Mas estas práticas de lazer eram apenas acessíveis para quem tinha recursos
financeiros, desde cedo marcando socialmente esta actividade. .
Fig. 2-8. Artigo sobre as termas, datado em 1932 (cedido pelo
Regedor )
Umas décadas depois de fechar as termas, no ano de 1967, a família Faria e
Maria, antiga proprietária da fábrica de chá, resolveu transferir a sua família para a
44 Ver Capítulo 2.3.
44
Praia dos Moinhos. Ali compraram algumas casas e, acompanhando o boom do
turismo de lazer de massas45, publicitaram o local como zona balnear. A aquisição,
pelas massas, de direitos como as férias pagas e outros (cf. Corbin 1995), tiveram
como consequência um progressivo esbatimento social do turismo. Em Porto
Formoso a praia dos Moinhos passou de ser de uso quase exclusivo da classe alta para
um uso público abrangente, onde se misturam pessoas de todas as classes (os que
dormem no campismo e na praia, os que alugam as casas de férias, os funcionários e
os altos cargos ). Actualmente, aquela zona tornou-se um ex-libris do Porto Formoso,
paragem obrigatória para turistas por ser uma das poucas zonas balneares da costa
norte.
Fig. 2-9. Imagem da praia dos Moinhos em época balnear
(Cedida pelo Regedor)
É de salientar que em Porto Formoso a dicotomia entre locais e forasteiros
ganha no uso das praias uma importância especial. A praia dos Moinhos foi e é um
espaço frequentado principalmente pelas pessoas de fora da freguesia (estrangeiros ou
não), mas é raro encontrar nessa praia pessoas da freguesia. A praia dos Moinhos
corresponde aos estereótipos turísticos de “praia”: tem um bom areal e uma bonita
paisagem em volta, está limpa, tem um snack bar ao pé da areia e boas ondas para o
surf, e recentemente, infraestruturas de apoio como balneários e casas de banho46.
Estas e outras modificações projectadas prendem-se com o objectivo de conseguir a
bandeira azul, distinção de qualidade que se relaciona com uma maior procura externa,
e cuja adquisição é promovida pelos poderes regionais. Mas a distância que separa
esta praia da aldeia, bem como a força das ondas, faz com que os porto formosenses
prefiram ficar pela praia dos barcos (na baía natural) e a praia do meio (junto desta),
45 Ver Capítulo 1.3 46 Como ser verá no Capítulo 4 estas intervenções na Praia dos Moinhos não estiveram isentas de polémica.
45
pois apesar de estarem mais sujas, encontram-se no coração da aldeia. Além disso, o
mar aqui é calmo (devido à baía) o que permite aos miúdos brincar à vontade. A
familiaridade com os pescadores que ali trabalham, e a alegria dessa convivência, são
também factores essenciais que fazem com que os locais chamem a esta praia “a
nossa areia” em contraste com a praia dos Moinhos. Esta dicotomia expressa no fundo
uma diferenciação entre as práticas lúdicas “deles” -forasteiros- e as “nossas” -locais-:
se os turistas e visitantes consideram práticas lúdicas actividades como apanhar sol e
ondas, jogar raquetes e comer e beber no snack bar, os porto formosenses preferem
brincar na areia com os barcos e restos de madeira, passar a tarde em alegre conversa
com pescadores e vizinhos, saltar dos barcos ancorados, apanhar caranguejo e
camarão para isca, ou mergulhar à procura de cracas.
Fig. 2-10. Imagem de satélite da freguesia de Porto
Formoso (Google Earth, consultado em 18/04/2012) onde é visível a distância que separa a aldeia da Praia dos
Moinhos, bem como a situação da fábrica de chã e da vizinha freguesia de São Brás.
Mas o fenómeno mais estruturante do século XX prende-se com os fluxos de
emigração. Integrado num país e numa região de emigrantes, o Porto Formoso não
foge à regra47. Basta uma ligeira análise dos dados populacionais para perceber que a
emigração foi a partir dos anos sessenta a responsável por uma diminuição substancial
do numero de habitantes de Porto Formoso: se em 1960 se contavam 317048
residentes, no último censo de 2011 eram 1915 (1265 Porto Formoso e 650 São Brás),
o que significa um decréscimo de 40%. A procura de melhores condições de vida, a
guerra colonial e provavelmente o espírito de aventura, levaram muitos dos porto
47 Ver Capítulo 1.1. 48 Em 1960 a freguesia de São Brás estava anexada à de Porto Formoso. Para assegurar a consistência na comparação de dados, opta-se por mostrar o censo de 2011 com a soma da população de São Brás e Porto Formoso.
46
formosenses a rumar principalmente aos Estados Unidos e Canada49, deixando para
trás uma aldeia cada vez mais despovoada.
Fig. 2-11. Sr. Garupa e filhos em Toronto (197?).
(Fotografia cedida pela família)
No início, o contraste entre o emigrante que voltava a Porto Formoso em férias
e os que lá tinham ficado era muito expressivo, mas a progressiva melhoria de
condições de vida na ilha, e os processos de globalização e homogeneização de
hábitos têm vindo a atenuar as diferenças ao ponto de haver agora habitantes que
afirmam existir um contraste no sentido inverso. Vejam-se alguns testemunhos
deixados no blog “A casa da Mosca”50
Quando perguntamos aos emigrantes que nos visitam o que é que eles acham do Porto Formoso, normalmente as opiniões são unânimes: "Esta terra esta muito melhor", "Vocês já tem tudo ca", "Já estão como na América...", "Já não precisamos de mandar roupa e chinchelarias nas barricas" Cavalete51 | 8/3/06 16:06 Antigamente quando um "calafâo" vinha das Américas notávamos nele uma evolução que ainda faltara em nós cá. Hoje o caso inverte-se, somos nós que apresentamos uma nítida evolução quer na informação, no vestuário, no tipo de conversa etc. A internet e consequente globalização reflecte-se mais em nós de cá do que os de lá que um dia nasceram cá. gnussen52 | 9/3/06 06:54
49 Nas últimas duas décadas, e devido a questões sócio-económicas (como a entrada no euro ou o desenvolvimento de Portugal) e ao endurecimento das regras de imigração nestes países, têm aparecido novos destinos para os emigrantes na Europa e até dentro do próprio país. 50 Nalguns casos, foi possível aceder a informação sobre os usuários do blog, por estes usarem o seu nome como nickname, ou por assumirem publicamente a sua identidade por trás da alcunha. Em qualquer caso, e dado a natureza do blog, nestes casos opta-se por indicar apenas a informação básica e relevante para esta tese, omitindo a identidade. O mesmo não acontece nos testemunhos recolhidos e filmados directamente por mim, pois nestes casos as pessoas não tiveram nenhum problema em assumir a identidade no filme e no trabalho (sendo este um requisito indispensável para serem filmados). 51 Homem de 36 anos natural de Porto Formoso. Viveu lá até se casar, e actualmente reside em Ponta Delgada, onde trabalha como professor universitário. 52 Jovem de 31 anos, natural de Porto Formoso e amigo de infância do Bruno Raposo (Regedor), é aficionado à leitura e escreve poesia desde jovem.
47
Embora os fluxos migratórios tenham abrandado significativamente a partir
dos anos 90, ainda hoje existe uma emigração temporária para lugares como as
Bermudas ou a Califórnia, para onde alguns porto formosenses emigram por períodos
curtos para angariar alguns rendimentos extra em campanhas de trabalho na pesca ou
na construção, de forma a poder “endireitar” a vida, havendo sempre um regresso à
aldeia, onde vive a família. O enraizamento dos porto formosenses à sua terra é sem
dúvida característica desta comunidade. Numerosos testemunhos de emigrantes
expressam a forte afeição pela terra que abandonaram53, mas esta afeição não é só
expressa pelos que deixaram o Porto Formoso atrás. Os que ainda vivem nesta aldeia
expressam o mesmo sentimento. À pergunta de “se pudesse escolher outro sítio para
viver, sairia de Porto Formoso?” as respostas dadas pelos entrevistados foram todas
no mesmo sentido: “Não trocava o Porto Formoso por nada”, “Nem pensar”, “por
nada da vida” “nem que ganhasse o Euromilhões”, ou então “Se houver alguma
proposta para sair um ano para ganhar algum dinheiro eu saio, mas tirar a minha casa
daqui, isso nunca”.
Se uma característica desta comunidade é o apego à sua terra, a outra é a sua
abertura ao exterior e a sua movimentação. A história do Porto Formoso mostra que,
apesar do seu isolamento geográfico, foi (e é) uma aldeia em constante contacto com
o “estranho”: através do transporte de mercadorias do porto, do carácter experimental
da sua agricultura, da empresa baleeira, da sua posição estratégica no âmbito militar,
das termas, das casas senhoriais, do primeiro turismo (regional, nacional e
estrangeiro) e da emigração, Porto Formoso acostumou-se desde cedo, a lidar com
agentes externos, aprendendo a adaptar-se rapidamente às mudanças locais
provocadas pelo movimento do mundo. Parafraseando o escritor maiense Daniel de
Sá, “Em Porto Formoso as novidades não costumam causar estranheza”
2.2 Porto Formoso nos dias de hoje
Nos últimos dez anos (censo 2001-censo 2011) a população de Porto Formoso
tem-se mantido estável, tendo passado de 1267 para 1265 habitantes. Porém, tendo
em atenção as divisões por grupos etários, é perceptível uma tendência de
envelhecimento da população, como de resto tem vindo a acontecer a nível nacional:
53 Na Introdução, podem-se ler alguns dos depoimentos deixados pelos emigrantes no blog.
48
Se em 2001 os habitantes dos 0-24 anos de idade somavam 536, em 2011 passaram a
435. Quanto aos habitantes com mais de 24 anos, se em 2001 eram 696, em 2011
passaram a 830.
Em Porto Formoso nunca existiu uma forte cultura académica. Em muitos
casos, os jovens não continuam os estudos porque os pais não têm dinheiro e precisam
de fazer a colecta, no final do mês, do ordenado dos filhos que trabalham nas pescas,
na terra, na construção civil, etc. Em outros casos, os jovens ficam em casa porque os
pais, sem tradição de estudos, pensam que estudar não serve para nada. Há ainda os
casos, também numerosos, em que o abandono escolar deve-se à pura “malandrice” e
falta de ambição, em parte devido às escassas perspectivas com que alguns jovens
pensam na sua vida, que decorre entre a tasca, o porto e o jardim do miradouro, sem
sair praticamente da freguesia. Um dos factores que está a influenciar este tipo de
abandono prende-se com o consumo de drogas, uma realidade de São Miguel e em
particular de Porto Formoso. A movimentação de drogas leves na freguesia é visível,
e parece estar relacionada com a própria movimentação da aldeia, que recebe turistas
e pessoas de Ponta Delgada frequentemente. Mas também existe um consumo elevado
de drogas mais duras, como a heroína. Se não existe um consenso quanto ao nível de
influência do consumo de drogas leves no comportamento dos jovens, é um ponto
assente que o consumo de drogas pesadas, nomeadamente heroína, provoca mudanças
drásticas no carácter e comportamento da pessoa, que em muitos casos acaba por
abandonar a família, os estudos e/ou o trabalho para se centrar no seu consumo e em
angariar dinheiro para o garantir, dando lugar a um novo fenómeno de roubos e
assaltos em Porto Formoso.
Porém, nos últimos anos a freguesia tem sofrido importantes mudanças na
educação, nos transportes e nos sistemas de comunicação: há mais oferta educativa e é
mais acessível, tanto economicamente quanto em termos de infraestruturas. Agora é
sem dúvida mais fácil ir estudar: na vizinha aldeia da Maia, na cidade de Ribeira
Grande, na capital Ponta Delgada e até no Continente e/ou estrangeiro. As estatísticas
do censo 2011 mostram que, apesar de haver ainda um número elevado de habitantes
sem nenhum tipo de escolaridade (323), os habitantes com o ciclo básico completo
(148) aumentaram em comparação a 2001 (123). Também o número de habitantes
com estudos superiores (técnico-profissionais e universitário) aumentou, passando de
40 em 2001 para 45 em 2011. Porém, muito dos habitantes com cursos universitários
49
optam por não regressar ao Porto Formoso. Perante este cenário, alguns habitantes
expressam no blog “A casa da Mosca” a sua preocupação.
É necessário elevar ainda mais o nível cultural do Porto Formoso, de modo a cimentar a sua identidade e proteger a sua especificidade. Com um nível cultural alto, a n/ freguesia poderá evoluir ainda mais, aumentando progressivamente um conjunto de valores nucleares da sua cultura. Essa cultura tem que ser baseada em valores estáveis, menos materialistas, mas ligados à expressão individual. Fica, pois, lançado o um grande desafio aos jovens do Porto Formoso: ESTUDEM. Só uma sociedade culta é capaz de sobreviver, independentemente das condições socioeconómicas. JASRAPOSO | 1/12/05 14:2954
Em Porto Formoso continuam a existir nichos de trabalho, nomeadamente na
pesca profissional55, na lavoura, na cultura mais recente do inhame e em alguns
serviços (cafetarias, restaurantes, no museu da fábrica do chá, etc) mas não são
empregos suficientes para cobrir a população activa da aldeia. Além disso, a
tendência das ocupações em terra e no mar, historicamente ligadas ao Porto Formoso,
é de empregar cada vez menos pessoas. Apesar das modernizações realizadas na frota
pesqueira de Porto Formoso, estas continuam limitadas à pesca local. A escassez de
recursos marinhos e a crescente pressão fiscalizadora são também factores que
dificultam cada vez mais a profissão da pesca56: em 2005 havia apenas 6 barcos de
boca aberta dedicados e activos na pesca profissional, somando entre eles
aproximadamente 20 pescadores. Por outro lado, a ocupação na lavoura também
vindo a diminuir, tendo o Presidente da Junta inclusivamente ter declarado (em
Agosto de 2005) que esta actividade se encontra numa “fase terminal” pois “há aqui
muitos lavradores que têm poucas cabeças de gado e estão a ser exigidos a eles coisas
que eles não conseguem suportar e futuramente vai acabar por poucos ou nenhuns
lavradores”
Por estes motivos desde o início do século XXI o Porto Formoso tem vindo a
transformar-se no “dormitório” de uma população que maioritariamente trabalha na
Ribeira Grande e Ponta Delgada. Ao longo das sucessivas viagens que realizei a esta
aldeia entre 2005 e 2012, pude acompanhar esta transformação: de ruas vivas e
barulhentas de segunda a domingo, passou-se progressivamente a ruas cada vez mais 54 Nascido em 1956 em Porto Formoso, reside em Ponta Delgada onde trabalha como administrador de uma empresa açoriana. Mantém ainda moradia em Porto Formoso, onde passa fins-de-semana e tempos livres. É pai do Regedor, criador do blog A Casa da Mosca. 55 Porto Formoso é o terceiro porto de pescas mais importante da costa norte, depois de Rabo de Peixe e das Capelas (neste caso, devido à história da caça da baleia). 56 Ver Capítulo 1.2
50
silenciosas e desertas, sendo que o único movimento perceptível provem do porto de
pescas, que agora mais do que nunca, funciona como coração da aldeia, devido à sua
localização central (em contraste com as pastagens, afastadas e de difícil acesso) e ao
carácter alegre e barulhento desta comunidade piscatória, que conta ainda com
bastantes trabalhadores jovens, ao contrário da lavoura. A progressiva transformação
em cidade-dormitório foi especialmente sentida na minha última viagem à aldeia,
realizada em Fevereiro de 2012. É claro que o Porto Formoso, como aldeia costeira,
vive ao ritmo do mar, como em geral acontece nas povoações do litoral. O ritmo
destas comunidades é marcado pelo clima e o estado do mar: se o verão é sinónimo de
agitação, já o inverno é de hibernação. O carácter sazonal do turismo (de estrangeiros
e emigrantes) e da pesca marca um tempo particular. A testemunha do blogger o
Regedor é representativa das mudanças que se sentem na aldeia durante o ano:
A estação do calor traz-nos a praia, os cafés na esplanada da Praia dos Moinhos, os passeios a pé, os churrascos, os estrangeiros e emigrantes, as pescarias.....e as pessoas nas ruas. Do inverno gosto de ouvir o vento Norte com chuva amiúde, do cheiro a maresia que invade a freguesia, de tomar chá com frio, dos dias de sol de inverno..... faltam as pessoas. Uma freguesia sem pessoas não existe. O Porto Formoso parece um fantasma sem alma de Inverno. O Regedor | 17/12/08 16:57
Mas a mudança sentida em Fevereiro de 2012 prende-se essencialmente com a
construção da SCUT entre Ponta Delgada e Porto Formoso, finalizada em Agosto de
2011. Esta nova infraestrutura significou uma mudança qualitativa considerável nas
deslocações entre Porto Formoso e as cidades de Ribeira Grande e Ponta Delgada: se
antes os trajectos, sinuosos, demoravam por volta de 40 minutos entre a aldeia e a
capital, após as obras passaram a demorar 20. Graças a estes novos acessos a aldeia
passou a ter mais visitas não só dos turistas, mas também dos outros habitantes da
ilha. Mas é também devido a esta estrada que muitos porto formosenses optam, cada
vez mais, por trabalhar noutras localidades da ilha, pois agora podem fazê-lo
mantendo ao mesmo tempo a sua residência na aldeia, para onde voltam apenas para
dormir. Porém, esta é apenas uma opção para as pessoas que possuem um meio de
transporte próprio e/ou carta de condução, uma vez que não existe uma rede de
transportes suficientemente eficaz para suprir as necessidades das deslocações. Não
se pode esquecer, ainda, que o aumento gradual nos preços de combustíveis é uma
despesa que cada vez tem mais peso para as pessoas que todos os dias tem de
percorrer os 32 km que separam a aldeia da capital. Se é certo que a emigração é
51
actualmente muito pouco significativa, a verdade é que são muitos os que fazem
grande parte da sua vida fora da aldeia, sem sacrificar, mesmo assim, a sua residência
na aldeia. Este fenómeno aponta mais uma vez para o apego que os porto formosenses
sentem pela sua terra, pois sempre que possível, optam por manter a sua residência na
aldeia.
Por outro lado, acrescenta-se a progressiva incorporação das novas gerações de
mulheres no mundo laboral, nomeadamente em trabalhos relacionados com as tarefas
domésticas e com os serviços. Se não há mais mulheres a trabalhar, é sobretudo
devido à falta de infraestruturas, públicas ou privadas, que garantam o
acompanhamento das crianças enquanto as mães estão no trabalho. Não existe em
Porto Formoso nem nas aldeias vizinhas creches nem ATLs que permitam às mães
deixar os filhos, limitando a possibilidade de trabalhar àquelas mulheres que contam
com o apoio de familiares.
A não existência de outras infraestruturas básicas no Porto Formoso, cria
dependência, para muitas coisas, das povoações vizinhas: é o caso da deficiente
cobertura do serviço de telemóvel, o que faz com que, em muitos casos, seja
necessário deslocar-se a pontos mais altos ou mesmo sair da aldeia para poder fazer
uma chamada, e dificulta frequentemente a conexão à internet. Também não há na
aldeia um lar de idosos nem uma farmácia. Para encontrar a bomba de gasolina mais
próxima tem de se percorrer 15km até à Ribeira Grande, e a primeira caixa
multibanco foi instalada apenas em Julho de 2006. A este respeito, O Regedor
comenta:
Nesta sociedade actual que não consegue manter ou criar uma associação desportiva, uma casa do povo funcional, um centro multiusos, um pequeno posto de cuidados de saúde, um centro de dia para idosos, uma pequena cresce, uma associação cultural, que já nem consegue organizar um jogo de futebol de casados contra solteiros, a esperança de uma verdadeira vivência colectiva esfuma-se e ninguém parece importar-se com isso. O Regedor | 23/10/2007 23:07
Todos estes factores contribuem para haver, sobretudo durante a semana, cada
vez menos gente na rua, o que significa cada vez menos convivência e como diz o
regedor menos “vivências colectivas” através das quais se cimenta a identidade. Mas
o problema deve-se também aos próprios hábitos diários dos locais. Ao post intitulado
“O nosso problema”, o blogger Deus2 reage da seguinte maneira:
52
População do Porto Formoso: 50% só sai de casa ao Domingo para ir à missa fingir que ouvem o senhor padre. 30% nas lojas a beber cerveja e vinho 10% só saem de casa para casamentos batizados e enterros 9% só sabem fazer enredos e enganar o próximo 1% ajudam a freguesia Adeus deus2 | 17/5/06 21:35 (S/I)
Curiosamente, e apesar de cada vez haver menos gente na aldeia de Porto
Formoso, o número de cafés, tascas e restaurantes não para de aumentar. É verdade
que as “lojas” foram sempre os principais centros de convívio para os habitantes da
aldeia, embora limitado aos indivíduos do sexo masculino, uma vez que a entrada
nestes locais era, segundo regras tácitas, reservada apenas a homens57. A referência as
tascas é recorrente nas discussões do blog “A Casa da Mosca” como se pode apreciar
a seguir:
Fig. 2-12. Loja do “Sebastião” (1968?) (Cedida pela
família de Sebastião do Monte).
Mais uma foto tirada do baú das recordações colectivas das nossas gentes. A taberna ou loja fazia parte, para o bem e para o mal, do viver dos homens da terra. Local de encontro, troca de experiências, emoções ao rubro pelos jogos (dominó, damas, bisca dos 6, copas, sueca, truco), negócios, copos cheios e vazios, vitórias e derrotas da nossa equipa escutadas pela rádio e visualizadas pela imaginação…De tudo, o mais importante é, sem dúvida, o convívio que a loja proporcionava. A loja funcionava como um verdadeiro centro de convívio aberto a todos onde se ria, chorava, bebia, havia folia, pancadaria, enfim, vivia-se! O Regedor | 23/01/2007 16:19
O conceito de “loja” nessa altura era muito mais abrangente, pois
proporcionavam à população muitas outras coisas além do habitual numa tasca: nestas
“lojas” vendiam-se produtos de mercearia e drogaria e às vezes funcionavam
57 Durante o meu trabalho de campo, quase sempre era a única mulher que frequentava as tascas e “lojas” da aldeia. Excepto no Cantinho do Cais, conhecido pela sua gastronomia, era muito raro ver outras turistas ou mulheres locais a entrar nestes lugares se não fosse apenas para dar um recado, perguntar algo ou entregar alguma coisa.
53
simultaneamente como barbearias ou como esplanadas com cinema. Existem os casos
em que os proprietários das lojas eram também donos de equipas desportivas (de
vólei, de futebol de sala), funcionando como agentes dinamizadores da comunidade.
Fig 2-13. Café Beira-Mar, espaço de “moda” em meados
dos anos 80. (cedida pelo Regedor)
As tabernas ou lojas foram no Porto Formoso o local de maior convívio e era lá que a modernidade chegava mais depressa!! Foram as tabernas que tiveram rádio e TV primeiro e onde todos se juntavam! Essas lojas se se actualizarem mas sempre com o estilo tradicional açoriano serão sempre respeitadas e terão clientela para toda a vida. No futuro não vai haver tabernas dessas e as pessoas vão querer voltar lá.deus2 | 23/11/05 19:23 (S/I)
Pela importância destes espaços na vida da aldeia considera-se pertinente fazer
um análise actual dos mesmos. Hoje em dia, podem-se destacar três “tascas” pelo seu
carácter emblemático. Em primeiro lugar, destaca-se “O cantinho do Cais”, tasca
situada junto ao porto de pescas, gerida pelo Sr. Jorge, porto formosense muito
ambicioso que com trabalho árduo e boa cozinha conseguiu colocar o seu
estabelecimento no roteiro gastronómico da São Miguel como um dos mais
conceituados lugares para experimentar o peixe à maneira local. A configuração do
pequeno espaço original fazia com que turistas, doutores, advogados e professores
da ilha se misturassem com os pescadores da aldeia, animando o ambiente e fazendo
da experiência não apenas um momento gastronómico, mas também sociológico. O
restaurante transferiu-se para a vizinha aldeia de São Brás em 2010, devido à falta de
espaço em Porto Formoso que permitisse a ampliação que o seu sucesso requeria, o
que foi visto pela população como uma grande perda. O tema foi muito discutido no
blog “ A casa da Mosca”, onde alguns habitantes se lamentaram:
Consta que o Cantinho do Cais irá transferir o seu serviço de refeições para a freguesia de S. Brás, ficando no Porto Formoso apenas o bar. A ser verdade, é mais uma valia que o Porto Formoso perde, AGUIA | 20/2/06 10:16 (S/I)
54
E ainda,
Sou daqueles que acha que o Porto Formoso ficou a perder muito com a ida do Cantinho do Cais para São Brás. Quando ouço alguém falar no magnífico Caldo de Peixe do Jorge e logo a seguir alguém perguntar onde fica, ouço a resposta "São Brás" e não consigo ficar parado. Nunca São Brás foi tão conhecido como agora. Anteriormente, quase ninguém de "fora" ou mesmo turistas iam a São Brás e agora começam a ir. Porquê? Porque há dois restaurantes de qualidade lá. O Regedor | 17/4/11 22:03
Nesta mudança, a tasca, que passou à categoria de restaurante, perdeu parte do
seu público, em grande parte devido à falta de encanto da nova localização e espaço, e
sobretudo, à falta de contacto com os pescadores e outros habitantes de Porto
Formoso, mais abertos aos estranhos dos que os de São Brás. A tasca do “Amaral” é
outro local bem conhecido dentro e fora da aldeia pela sua qualidade gastronómica.
Aqui serve-se tanto peixe como carne e os clientes habituais são lavradores, podendo
quase dizer-se que a dicotomia Cantinho do Cais/Amaral é de cariz profissional. Por
último existem dois importantes locais junto à praia dos moinhos. O snack bar da
praia, bar virado essencialmente para o turista, é o típico bar de praia que serve
bebidas e comidas rápidas (hambúrgueres, sandes, etc). Este local esteve envolto em
muita polémica devido às obras de ampliação e influência do seu proprietário nas
mudanças dos acessos à praia, motivo pelo qual os habitantes da aldeia raramente o
frequentam e muito o criticam. Por outro lado existia, até há bem pouco tempo, uma
das poucas lojas de Porto Formoso que se mantinha fiel a sua história, uma
pequeníssima tasca, a do Sr. Viana, que recebia os habitantes desta parte da aldeia e
os pescadores que habitavam no lado do porto. Além de servir bebidas, esta loja
servia comidas no 1ºandar da casa, apenas a amigos e por encomenda.
Figs. 2-14/15. Loja do Viana, com o Sr. Laudalino, na Praia dos Moinhos (cedida pelo Regedor)
55
Com alvará de 1984, esta é a mais nova das últimas lojas antigas do Porto Formoso. Abriu portas por volta de 1982, tendo sido gerida pelo Sr. José Viana "velho", Sr. Eusébio Viana "novo" e, nos últimos anos, pelo Sr. Laudalino Viana. Foi durante muitos anos o ponto de referência dos habitantes da zona dos Moinhos, que, devido ao seu isolamento, encontravam ali um porto de abrigo. Servia de mercearia de bens essenciais, de taberna e foi durante longos anos o único estabelecimento comercial de porta aberta a servir a zona da Ribeira Seca, Vale Formoso e Moinhos. Se faltavam cargas para o rádio ou sal para temperar a comida, os habitantes destas zona ali se dirigiam em vez de subirem o arrebentão para ir à freguesia. É o único sítio onde se pode jogar um dominó ao balcão à moda antiga. De Inverno parece uma toca abrigada do frio, de Verão as escadas exteriores e a rua transformam-se em esplanada. Devido ao facto de estar perto da praia e do campo e, ao mesmo tempo, longe da freguesia, esta loja sempre teve características diferentes de todas as outras. Esta casa fecha as portas nos próximos tempos. Com esta loja a fechar e com o fecho anunciado da loja do Sr. José "Plora", acabam-se todas as lojas antigas do Porto Formoso. Infelizmente, dentro de pouco tempo, só restarão fotografias e memórias de outros tempos. A visitar... enquanto é tempo! O Regedor | 16/4/11 13:031
A loja acabou por ser vendida no verão de 2011 ao Sr. Carlos, jovem de Porto
Formoso que fez obras de recuperação e ampliação transformando o lugar num
imenso restaurante, onde embora a comida continue a ser muito apreciada, a
descaracterização do espaço é evidente, assemelhando-se agora a muitos outros
existentes na ilha. Muitos habitantes acreditam que este restaurante poderá vir a
suplantar o Cantinho do Cais como ponto de atracção para os visitantes doutras
aldeias e cidades da ilha e para os turistas.
Além destas tascas/lojas emblemáticas existem muitas outras, e desde 2005, o
número de tascas/cafés aumentou de 6 para 12, o que dá uma média de 1 tasca/café
por 100 habitantes, o que faz com que seja difícil a sobrevivência de todas elas. Estes
novos locais, dirigidos mais à população do que ao turista, são muito parecidos uns
com os outros, acrescentando pouca diversidade ao panorama de lazer da aldeia58. A
este respeito, veja-se o testemunho do blogger JASRAPOSO:
Enquanto na nossa freguesia há uma "vocação" para a abertura de lojas, em S. Braz59 abriu um ginásio. Uma questão de mentalidade ou uma visão economicista?? JASRAPOSO | 1/12/05 14:32 (perfil em pág.49- nota 54)60
58 Com exceção do bar “Silêncio das palavras”, que além de ter um nome diferente, disponibiliza noites de música ao vivo e de karaokê. 60 Nos casos em que o perfil de um determinado usuário do blog ou informante já tenha sido descrito com anterioridade, far-se-á uma referência indicando a página e a nota de pé onde se encontra a descrição: (v.pag.X-nX), sendo que neste caso seria (v. pág 49- n53)
56
É de salientar a constante comparação com São Brás que surge nas conversas
com os habitantes de Porto Formoso. Existe com esta povoação vizinha uma forte
rivalidade cuja base é histórica. A freguesia de São Brás foi criada a 18 de Setembro
de 1980 em território da freguesia de Porto Formoso. Há testemunhas que indicam a
existência de distúrbios, pois havia gente que não queria que São Brás fosse
independente. Ainda em Setembro de 2007 houve uma grande polemica devido a
instalação de uma placa que assinalava a chegada à freguesia de São Brás em
território de Porto Formoso, falando-se, inclusivamente de “invasão”; a contestação
popular deu lugar à sua retirada imediata. Apesar da sua proximidade, são
perceptíveis as diferenças entre ambas as comunidades: O Porto Formoso, aldeia de
mar, além de ser maior em número de habitantes e em extensão, é, se calhar pela sua
relação com o mar, uma comunidade mais aberta e ligada ao exterior, enquanto São
Braz, pequena freguesia de interior, caracteriza-se pelo caráter fechado e isolado dos
seus habitantes, que raramente conversam com os forasteiros.
Mas as rivalidades não são só contra a aldeia vizinha. No decorrer do trabalho
de campo, foram recorrentes as reclamações ouvidas sobre o caráter intriguista da
comunidade e é queixa comum o “falar pelas costas”61. Existem intrigas entre
instituições de poder, entre profissões, entre famílias, entre zonas da aldeia, entre
clubes de futebol: as orientações individuais nos diversos campos geram preconceitos
e delimitam a interação social num meio já por si pequeno, e alguns habitantes até
apontam o caráter intriguista dos porto formosenses como principal obstáculo ao
“progresso da aldeia”:
O pessoal da Maia e da Lomba da Maia é um povo unido, todos remam para a mesma maré. No Porto Formoso uns são do Coucinho, dos Calços, do Outeiro e os outros dos Moinhos62 ( uma única freguesia Porto Formoso) dividida nestas partes, agora digam-me lá como é que se pode evoluir? carruncho| 29/3/08 20:40 (S/I)
Há muita intriga no Porto Formoso. Não me venham dizer que é mentira, e a intriga prejudica o funcionamento de qualquer instituição. No Porto Formoso são poucas as organizações/entidades onde não há intrigas que chegam a por tudo em causa. O Regedor | 15/5/06 14:54
61 Como já foi referido na Introdução, estas práticas intriguistas são continuamente manifestas no blog “A Casa da Mosca”, onde através do uso de nicknames se lançam acusações anónimas ao ponto de muitas discussões ficarem, em diversos casos, verbalmente violentas. 62 Referências ao diferentes “bairros” da aldeia
57
Existe ainda um outro fenómeno no Porto Formoso, que é muito peculiar. É o facto de, durante anos e anos, serem sempre os mesmos nas mais diversas instituições da nossa terra. Ora eu conheço muita gente jovem com capacidade, com ideias que podiam fazer a diferença na nossa terra. O problema é que é-lhes vedada a participação. Evaristo_tens_cá_disto63 | 16/5/06 20:17
Quanto ás instituições com poder em Porto Formoso, o Regedor do blog
publica o seguinte diagrama, onde indica a orientação política (de laranja -direita- à
cor-de-rosa –esquerda) de cada instituição de acordo com o comportamento revelado
por essas entidades e pelos seus responsáveis.
Fig. 2-16. Diagrama publicado no blog em Março de 2009
(cedido pelo Regedor)
Entre as instituições incluídas cabe notar que, se por um lado a “Casa do Povo”
é na actualidade uma instituição praticamente inativa, o grupo de folclore e o grupo de
jovens são associações com actividade constante que dinamizam a comunidade
organizando diversos eventos. Perante este diagrama muitos bloguistas reclamam
ainda a ausência do próprio blog como entidade não incluída no espectro.
Acho que no mapa traçado pelo regedor está a fazer falta uma das maiores forças vivas do Porto Formoso: A CASA DA MOSCA. Se intervenção cívica significa, entre outras coisas, contribuir para a resolução dos problemas do Porto Formoso, elevar a memória colectiva, encurtar distâncias entre os nossos emigrantes e homenagear as grandes figuras do Porto Formoso, então a Casa da Mosca está, a par de outras entidades, na linha da frente. Aqui não existe um presidente, vice-presidente, secretário ou tesoureiro. Todos têm a sua opinião, todos contribuem, todos participam democraticamente. Este blog já foi conotado por ser, maioritariamente, de bloggers simpatizantes de políticas de esquerda. Acho que o blog, para além de ser representativo do espectro político do Porto Formoso (ideologicamente o Porto Formoso é maioritariamente PS), tem a vantagem de dar voz a opiniões que não teriam representactividade nos órgãos eleitos do Porto
63 Natural de Porto Formoso, onde reside, estudou em Lisboa e agora é professor de matemática ( ensino secundário) em São Miguel. Foi eleito para a Assembleia da Junta de Freguesia.
58
Formoso. Uma observação final. Embora as pessoas do Porto Formoso sejam, na sua maioria, ideologicamente do PS, estas já demonstraram que dão prioridade a pessoas que sejam capazes de resolver os seus problemas, em detrimento dos partidos. Cavalete | 1/4/07 12:07 (v.pág. 46-n51)
O Porto Formoso foi desde muito cedo uma freguesia associada à esquerda
política. Já em 1908, quando ainda vigorava o regime monárquico em Portugal, o
partido republicano elegeu em Porto Formoso a sua primeira Câmara Municipal
açoriana. Após os 25 de Abril, o Porto Formoso tem optado geralmente pelos
representantes da esquerda tanto nas eleições regionais como nas nacionais: de todas
as eleições para a Assembleia Legislativa Regional entre 1976 e 2008, o PSD ganhou
duas (1980 e 1992) e o PS ganhou as sete restantes. Mesmo nos tempos áureos do
Mota-amaralismo64 (1984-1988), altura em que o PSD obtinha maiorias absolutas nos
Açores, o PS conseguiu obter vitórias na freguesia de Porto Formoso. Nas eleições
presidências de 2006 e 2011, os candidatos do PS (Mário Soares/ Manuel Alegre)
ganharam sobre Cavaco Silva, e nas eleições legislativas de 2011 os eleitores de Porto
Formoso continuaram a dar a maioria (embora menor) ao PS, sendo todos estes
resultados contrários ao resultado nacional.
Fig. 2-17. Celebração, na noite de 16/02/1986, da
vitória de Mário Soares sobre Freitas do Amaral nas eleições presidências, simulando o funeral deste
ultimo (foto cedida pelo Regedor)
Independentemente disto, é um facto que a abstenção no Porto Formoso é alta
quando se elegem representantes regionais e nacionais, mas não quando se trata de
eleger os representantes locais, isto é da Junta e da Assembleia de Freguesia. Nestes
casos, os habitantes não só votam em massa como se envolvem nas campanhas, e se
64 Mota Amaral exerceu as funções de presidente do Governo Regional dos Açores entre 1976 e 1995 pelo PSD/PPD
59
personalizam as tensões partidárias: pessoas que se dão bem no dia a dia, rivalizam
intensamente em época de eleições pela defesa do seu partido.
A junta de freguesia de Porto Formoso é presidida em “part-time” pelo Sr.
Emanuel Janeiro Faria desde 1997, que acumula esta função com a de funcionário da
EDP, mas antes já tinha cumprido um mandato como Secretário da Assembleia da
freguesia (1993) e como Tesoureiro da Junta (1989), perfazendo no total 24 anos na
instituição. O Sr. Faria tem ganho sucessivas eleições com maioria absoluta
representando tanto o PSD (1997-2001) como o PS (2001-2013)65 reforçando assim a
tese expressa pelo blogger Cavalete, que defende que o que mais conta é a pessoa que
se candidata e não o partido que representa, como de resto costuma acontecer em
terras pequenas. Desde que representa o PS, coincide com a cor política da Câmara de
Ribeira Grande, da qual depende, pelo que se suponha uma colaboração maior,
embora até agora não ter, aparentemente, trazido vantagens. A Câmara da Ribeira
Grande cobre 14 freguesias, algumas delas, como Rabo de Peixe ou a Maia, de grande
valor económico e com maior peso eleitoral, o que tem feito com que o Porto
Formoso tenha vindo a ser sucessivamente excluída dos alvos prioritários de
intervenção, isto apesar de reconhecer o seu potencial turístico: O Plano Director
Municipal (PDM) da Ribeira Grande, que entrou em vigor em Abril de 2006,
contempla para Porto Formoso “uma nova zona destinada a investimentos turísticos”
(indicando as condições para ter uma marina de recreio, um resort, um campo de golfe,
etc) embora até à data pouco ou nada tenha sido feito neste sentido.
2.3 Potencialidades de Porto Formoso: qual a visão de futuro?
“Tem aqui potenciais, quando as pessoas descobrirem os potenciais que estão aqui nesta água, quando eles descobrirem, o Porto Formoso leva um boom muito grande, muita grande.” Sr. Adolfo66
Numa freguesia onde as profissões históricas (a pesca, a agricultura e a
lavoura) estão em claro declínio e que parece caminhar para o mesmo destino que
muitas outras freguesias similares, isto é, a sua limitação a aldeia-dormitório, as suas
65 Nas próximas eleições, em Outubro de 2013, O Sr. Emanuel Faria não se poderá recandidatar, por ter cumprido já os três mandados permitidos por lei, sem que até à data haja nenhum possível candidato conhecido. 66 Pescador com 65 anos natural de Porto Formoso que está emigrado na Califórnia, onde tem os filhos e netos. Ali comprou um pequeno barco e dedica-se à pesca do “bodião” espécie que se exporta ao Japão e que se pesca entre Maio e Setembro. Nos meses em que não trabalha volta para o Porto Formoso, sendo comum encontrá-lo no porto em conversa com os pescadores.
60
possibilidades turísticas são encaradas com enorme expectativa pela generalidade da
população. Para estes, o turismo dará um novo fôlego à freguesia, não só criando
postos de trabalho directos e possibilidades de empreender empresas viradas para o
turismo, como revitalizando profissões que doutra maneira parecem estar condenadas
à extinção, como a pesca: enquanto há 25 ou 30 anos atrás as actividades que
pudessem gerar rendimentos do mar estavam circunscritas à pesca ou a actividade
extractiva (retirar areia ou algas) hoje existe a vertente marítimo-turística, prática
considerada de valor essencial nos planos e estratégias de desenvolvimento turístico
regional67. Na actualidade, com a escassez de recursos e os custos de exploração das
embarcações a aumentar, muitos são os que acreditam que a rentabilidade da pesca
artesanal passa por desenvolver actividades económicas que complementem a pesca
profissional, como levar turistas nos barcos para ver a costa ou a forma de pescar.
As expectativas colocadas no turismo não são infundadas, pois a
potencialidade turística da freguesia de Porto Formoso é inegável: as verdes paisagens,
os miradouros e falésias, o mar, com a sua vertente lúdica (praia) e cultural (pesca
artesanal), os trilhos, o exotismo da sua fábrica de chá, a boa disposição e abertura dos
seus habitantes fazem desta aldeia um lugar único na costa norte de São Miguel para
desenvolver práticas turísticas. As condições naturais e humanas do Porto Formoso
fazem deste lugar um óptimo candidato para se alinhar na política de desenvolvimento
turístico desenhado pelo poder central, que tem como pedra basilar o turismo da
natureza e o turismo náutico68. Quando se trata de fazer publicidade turística de São
Miguel, é recorrente aparecerem imagens da Fábrica de chá, da praia dos Moinhos e
da baía natural69, os três pontos de maior interesse turístico e que representam três
categorias de turismo diferente: o turismo industrial, o turismo natural/artesanal e o
turismo de praia e sol. Das fotos que aparecem nos outdoors electrónicos de Ribeira
Grande, a maioria pertencem a Porto Formoso: além das imagens acima referidas,
aparecem outras, como a igreja da Nossa senhora da Graça (sobre a baía) ou a vista do
Miradouro de Santa Iria. Aparecem também iniciativas privadas, algumas delas
grande envergadura, mas de momento só no papel. Veja-se como exemplo o projecto
67 Ver capítulo 1.4 68 Idem 69 Por exemplo, nos stands montados para a Feria Internacional de Turismo de Lisboa -BTL- aparecem desde 2004 as imagens destes lugares em lugar destacado.
61
apresentado para um campo de golfe e aldeamento turístico em Porto Formoso, cuja
memória descritiva começa da seguinte maneira:
Este projecto ambiciona construir no Porto Formoso um complexo turístico centrado no golfe. O Porto Formoso, destino de Verão para muitos residentes na ilha de São Miguel, oferece excelentes condições para o desenvolvimento de um projecto de alta qualidade, cujo conceito básico está, desde já, salvaguardado pelo PDM (Plano Director Municipal) para esta zona. O conceito é centrado na transformação da Ponta Formosa e de algumas zonas do lado esquerdo da estrada que conduz ao centro da freguesia num campo de golfe de alta qualidade70.
Fig. 2-18. Detalhe do projecto turístico (cedida pelo Regedor)
Mas apesar desta especulação, deste “uso” da imagem da freguesia, e da
inclusão das potencialidades turísticas de Porto Formoso no PDM da Câmara de
Ribeira Grande, o processo de turistificação71 é ainda, mais do que nada, um projecto
em discussão que ainda não passou à acção: como se verá mais a frente, questões
identitárias, ambientais, ideológicas, políticas, sociais e económicas têm feito desta
discussão um quebra-cabeças. Longe do consenso que autores como Peralta e Prats
(2006) atribuem aos processos de activação patrimonial, na aldeia de Porto Formoso
verifica-se um confronto de forças e de agentes, que se traduz na oposição entre
apoio/contestação a qualquer intervenção, sem que estas avancem, ou o façam muito
lentamente e sempre criando polémica. Como assinala Illich (apud Bordonaro,
2007:234) “development, long before being a set of economic and social indicators, is
a system of values, and as such, it is true only as far as it is shared, believed and
embodied”. E assim o Porto Formoso encontra-se num impasse, mais complicado
ainda pela situação de crise regional, nacional e internacional que se verifica desde
70 Traduzido do texto original em inglês pelo Regedor, para a sua publicação no blog. 71 Entendido aqui como o processo de implantação, implementação e/ou suplementação da actividade turística em espaços turísticos ou com potencialidade para o turismo.
62
2008, no desenho do seu futuro e na definição das apostas a fazer. É elucidativo este
hipotético roteiro turístico que um blogger publica na “Casa da Mosca”:
Um dia de verão. Encontro-me na R.Grande, e ando á procura do posto de turismo. Eis que encontro, e pergunte a uma das meninas do OTL, os possíveis locais a visitar na costa norte da lha. Muito gentilmente a menina explica, de entre os muitos locais, poderei ver as únicas plantações de chá na Europa, Gorreana e Porto Formoso. Ao sair do posto de turismo, deparo-me com um placar electrónico, junto ao jardim. Explica-me um senhor de certa idade, que a maioria das imagens, do placar são da freguesia do Porto Formoso. Aquilo é a praia dos moinhos, o porto de pescas, a igreja de Nossa Senhora da Graça, o chá, o miradouro de Santa Iria. Todo entusiasmado com a beleza das imagens parto á procura do local. Encontro um dos miradouros mais bonitos da ilha, onde é possível observar a costa norte da ilha. São doze horas. Em direcção à praia encontro um marco (pedra pontiaguda). Curioso, pergunte ao taxista, a que se refere. Diz-me, que foi para assinalar uma batalha, que ficou celebrizada como a batalha da Ladeira da Velha. Lastimável. Está ao abandono! Estou na praia dos moinhos. Após o banho nas águas refrescantes da praia decido tomar duche. Onde? Nos duches improvisados? Satisfeito com a beleza da praia, insatisfeito com as infra-estruturas existentes, parto em direcção à igreja. Decido entrar, porta fechada! Dizem-me que é por causa dos roubos. Desço até ao jardim para tirar uma foto ao porto de pescas. Fico com a impressão de ser um porto”primitivo”. Castelo em ruínas! São catorze horas e a fome aperta. Pergunte a um senhor a onde comer. No Amaral ou no Jorge. Após o almoço (garoupa grelhada com batatas escoadas), parto á procura do chá. Diz o guia que é diurético, ajuda na digestão. Vem mesmo a “calhar”. Encontro um produto típico do local onde me encontro! Como gosto de andar a pé, pergunte ao guia, se tem conhecimento de algum percurso pedestre federado existente. Diz-me que já ouviu falar, mas que por enquanto não existe nenhum. Regresso à R. Grande com a certeza de estar num dos locais mais bonitos do concelho, mas onde falta investimento, que catapulte o Porto Formoso como destino obrigatório. sono1 | 2/2/07 13:0172
Os elementos com valor turístico desta freguesia existem per se, isto é, não
foram criados, pensados ou activados para o turista, existem apenas porque a natureza
ou a história os criou. Não existe em Porto Formoso nenhum local onde pernoitar,
além de umas poucas casas privadas junto à praia dos Moinhos que se alugam durante
o verão. Os locais de interesse estão mal sinalizados, e alguns até pouco visíveis. Não
há promoção dos produtos locais, e à excepção da fábrica de chá, transformada em
património industrial em 1998, locais com potencial para ser patrimonializados,
como o “castelo” ou a própria baía natural não foram ainda activados, isto é,
“seleccionados, expostos, difundidos, interpretados, e, fundamentalmente
consensualizados” (Peralta, 2008:75), embora estejam a ser constantemente
72 Natural de Porto Formoso, onde reside, estou até ao 12º ano e actualmente é Tea-maker da fábrica de chá de Porto Formoso.
63
discutidos no seio da comunidade, nomeadamente desde 200573 . Na entrevista
realizada ao Presidente da Junta nesse ano, dizia:
O Porto Formoso tem tudo e mais alguma coisa para ter todas as condições para receber o turismo derivado as belezas naturais que temos, temos uma antiga estância termal que está desactivada neste momento, temos vários nascentes de água mineral, temos não só a Praia dos Moinhos , mas outras pequenas praias que podem ser exploradas, temos uma fábrica de chá, temos tanta coisa, temos um castelo, mas é preciso informação para que o turismo quando chegue cá encima, tenha onde visitar alguma coisa porque neste momento existe mas não há nada que os informe neste sentido
O presidente da Junta é consciente de que “ to compete for tourists, a location
must become a destination, and heritage is one of the ways locations do this”
(Kirshenblatt-Gimblett, 1995:373). Ele está empenhado em que tal aconteça, pois é
esta a forma que aponta para lutar contra a desertificação da freguesia.
As politicas de desenvolvimento local assumem e promovem a multifuncionalidade dos campos e encaram o turismo como uma instância capaz de dinamizar a economia, gerar emprego e contribuir decisivamente para a fixação das populações rurais. L. Silva (2007a: 853)
Esta aspiração é comum a muitas outras freguesias em similar situação, sendo
que umas, como o Porto Formoso, têm mais possibilidades reais e objectivas para que
isto aconteça do que outras, pelo seu enquadramento e coerência com a política
desenhada regionalmente, pelo valor objectivo das suas potencialidades turísticas,
pela multiplicidade e diversidade das mesmas e pela abertura da população. Mas a
actuação da Junta de Freguesia é limitada pela falta de orçamento próprio, pelo que a
sua margem de acção fica restringida a apresentar as questões à Câmara da Ribeira
Grande e pressionar para que estas sejam ouvidas, sem que, como aponta o
Presidente da Junta, tenham sido obtidos resultados:
(O Porto Formoso) É das freguesias, estou a falar da costa norte, é ainda vou apertar mais o cerco, digamos do Concelho de Ribeira Grande, que é o que nos interessa, que tem mais condições turísticas, e que todas elas estão subaproveitadas. Temos montes de coisas, só que as entidades até este momento, nomeadamente a nível Regional e Câmara Municipal , nunca se interessaram em investir no Porto Formoso. o Concelho de Ribeira Grande acaba na Ribeirinha, todas as freguesias para lá do nascente são esquecidas por todas as entidades, quer a nível Regional quer a Câmara Municipal, portanto a Ribeira Grande acaba na Ribeirinha. Tem-se feito coisas noutras freguesias , no Concelho de Ribeira Grande, para o lado de poente, e tem-se esquecido muito o lado nascente.
73 O Capítulo 4 debruçar-se-á sobre estes processos de valorização.
64
Esta crítica não é apenas da Junta de Freguesia: a voz dos habitantes é cada
vez mais crítica com o ostracismo dos poderes públicos. Os discursos do poder
(globais, nacionais, regionais e locais) alimentam a ideia de que tornar-se um destino
turístico é sinónimo de crescimento, progresso, enriquecimento e emprego, e os
habitantes depositam cada vez mais expectativas neste sector, pois como foi notado
no trabalho de campo, a maioria vislumbra um futuro promissor com estradas
circulares, aldeamentos turísticos, auditórios culturais, etc. Não pôr em prática estes
discursos causa frustração entre a maioria dos habitantes, que reclamam a atenção
que “merecem” como destino de natureza.
Mas apesar da falta de investimentos turísticos em Porto Formoso, o turismo
está a desenvolver-se informalmente, e valores como a hospitalidade e a dádiva são
constantemente observados. Tendo em conta o modelo de desenvolvimento dos
lugares turísticos desenhado por Butler em 1980, e salvaguardando a rigidez da
divisão das fases que apresenta, podemos situar a freguesia de Porto Formoso nesta
primeira década do século XXI na transição entre dois estádios: o estádio de
exploração e o estádio de envolvimento. Segundo Sharpley,
“o estádio de exploração é aquele em que um número reduzido de turistas descobre um lugar fora dos circuitos turísticos, desenvolvendo uma relação estreita, mais de hospedagem do que comercial, com os residentes. O estádio de envolvimento acontece quando os residentes descobrem as potencialidades para o desenvolvimento do turismo, começam a promovê-lo para aumentar a procura e a providenciar acomodação e outros serviços a um crescente número de turistas, com os quais mantêm uma relação um pouco mais comercial, mas ainda harmoniosa” (1999, apud L. Silva, 2007a: 868)
Este primeiro turismo está a contribuir para uma “nova consciência de si
mesmo que se consubstancia numa nova valorização da paisagem e do ambiente
partilhado” (Mendes 2008: 205). O amor dos porto formosenses pela sua terra,
anteriormente apontado como uma das características desta comunidade, tem vindo a
crescer tanto com os comentários que muitos turistas deixam à sua passagem pela
aldeia como pela atenção recebida por parte dos poderes regionais, criando um
sentimento colectivo de orgulho que estimula os seus habitantes a adoptar um papel
mais activo no processo de turistificação.
A nossa freguesia é dotada de um potencial enorme, bastando para tal olharmos o PDM da Câmara da Ribeira Grande e outros relatórios feitos sobre a nossa localidade:
65
- Condições para ter uma marina de recreio; - Um resort; - Um campo de golfe; - Um polidesportivo etc. etc. Este facto é um um pronúncio de que o Porto Formoso, num futuro muito próximo, será a "JÓIA DA COROA" do concelho da Ribeira Grande. Nada se faz sem as pessoas e o Porto Formoso já tem muita gente capaz a residir na freguesia. JASRAPOSO | 11/5/06 21:39 (pág. 49-n54)
A promessa do turismo que está por vir faz crescer entre as gentes de Porto
Formoso o orgulho pelo seu património cultural, gerando à sua volta um sentimento
de coesão e integridade entre os locais e fomentando o potencial social. Neste
contexto, o povo de Porto Formoso começa a perceber a importância do seu papel
nesta “performance turística” como agente representativo da sua terra: ele é o
intermediário entre o turista e a freguesia. Os porto formosenses são historicamente
um povo aberto ao exterior, e esta característica transparece já nos contactos
informais com os turistas, bem-vindos nos serões ao pé das lojas, nas tardes passadas
no jardim do miradouro ou nos afazeres do porto de pescas, o que é muito apreciado
por estes. Mas para alguns esta predisposição não é suficiente: além de conviverem
com os turistas e criarem empatias, devem pôr-se à altura da situação, e comportar-se
“de forma exemplar”, como de resto se costuma pedir aos trabalhadores na relação
com a empresa onde trabalha e com os seus clientes:
Para se desenvolver o turismo é preciso limpeza e boa educação, o que infelizmente não abunda no Porto Formoso. Quem desce pelo caminho da Ladeira da Velha vê um grande depositário de lixo perto da entrada do caminho que dá para os banhos e o porto dos barcos é o depósito do lixo dos pescadores. Quanto à falta de educação é difícil de enumerar por serem tantos os casos e saltarem à vista desarmada principalmente junto do pessoal que frequente o ensino básico. AGUIA | 13/11/06 21:33 (S/I)
Convém ainda referir que o desenvolvimento do turismo é uma responsabilidade de todos e não só da autarquia. Há ainda que mudar muitos comportamentos o mais depressa possível de modo a reduzir a incerteza na aposta que o Governo Regional fez nesta área. JASRAPOSO | 2/2/07 00:50 (pág.49-n54)
O turismo é um comboio que não se pode perder, porque o turismo não é só
dinheiro, trabalho, e reconhecimento. O turismo é a porta simbólica do mundo: é
através dele que o Porto Formoso tem a oportunidade de integrar o mapa do mundo, e
para os seus habitantes constitui a base da sua estratégia de globalização, isto é, “the
66
local aspirations to the ‘global’, how people crave for and dream of it, however they
might locally configure it. In other terms, I am talking about the efforts to be
‘connected’, to become ‘modern’ and ‘cosmopolitan’ “(Bordonaro, 2007:232).
Mas, tornar-se moderno tem o mesmo significado para todos os porto
formosenses? Será que todos aspiram ao global? E aspiram eles da mesma forma? Os
exemplos práticos e a literatura científica mostram tanto os impactos negativos do
turismo (ambientais e sociais) como os positivos: recuperação de identidade,
revitalização do património cultural e da natureza, melhoria da economia, integração
nos fluxos da globalização. Durante o trabalho de campo identificaram-se múltiplas e
diferentes posturas na discussão do fenómeno de turistificação. Dos habitantes
entrevistados, observa-se uma tendência entre as pessoas mais velhas e com menos
contacto com o exterior a defender a aposta no desenvolvimento e melhorias das
condições das ocupações tradicionais da freguesia (a pesca e a lavoura): pensa-se que
esta tendência se deva ao facto destas pessoas mais idosas e isoladas não terem tido
contacto com o fenómeno, suficientemente recente na ilha, do “turismo”. Estando
afastadas dos poderes regionais e das suas estratégias, e dos exemplos que vão
aparecendo na ilha, não percebem o turismo com uma actividade económica capaz de
revitalizar e modernizar a freguesia. Para eles o “turista” é um indivíduo alheio que
pouco ou nada tem a ver com a sua comunidade: passam de vez em quando e gostam
mais ou menos, mas partem logo a seguir, enquanto eles ficam. Esta tendência
também se verifica entre os indivíduos directamente empregados na pesca e na
lavoura. Os lavradores, por se encontrarem a maior parte do tempo isolados nos
campos, centram as discussão nas suas próprias preocupações. Os pescadores têm
mais contacto com o turista pela situação central do porto onde trabalham e pela
atracção visual que a sua actividade causa sobre estes 74, mas embora reconheçam que
não se importavam de levar um turista no barco de vez em quando, não dão ao
turismo mais importância . Entre o resto da população da freguesia, isto é, as pessoas
mais novas, pessoas com contactos com o exterior, e pessoas ligadas aos serviços,
parece haver um consenso quanto ao facto de que o futuro da freguesia passa pelo
“Turismo amigo do ambiente”. O facto de existir este consenso não significa, porem,
que este futuro seja percebido por todos como um facto positivo. Para alguns, apesar
de reconhecerem que é inevitável a transformação de Porto Formoso num destino
74 Ver capítulo 1.4
67
turístico, esta “evolução” trará mais coisas negativas do que positivas. No decorrer do
trabalho de campo, ouviram-se vozes a alertarem para um outro futuro que pode
chegar com o turismo: além de algumas preocupações ambientais75, alguns residentes
questionam “os poucos que irão beneficiar do turismo”, outros apontam para o perigo
do Porto Formoso se tornar “um local de luxo apenas para os ricos”, uns advertem da
tentação de projectar infraestruturas dispendiosas “que vão funcionar apenas um mês
por ano” e outros ainda alertam para o perigo de se desviar a atenção dos assuntos
“verdadeiramente importantes” como o saneamento básico ou a falta de uma creche e
outros serviços sociais.
Apesar destas vozes serem uma minoria, a verdade é que a planificação do
futuro em Porto Formoso está a dar lugar a uma discussão acesa sobre o conceito de
“ambiente” que se torna conflituoso quando posto em discussão pública. De uma
forma mais abrangente, as noções de “modernidade”, “progresso” e “desenvolvimento”
são continuamente postas em causa. O acompanhamento destas discussões no seio da
comunidade permite estabelecer as diferenças na forma de perceber estas noções entre
os agentes envolvidos (pescadores, lavradores, jovens, velhos, emigrantes, poderes
locais e regionais). A percepção deste conceitos exibe os diferentes sistemas de
valores, pois ‘development is much more than just a socioeconomic endeavor; it is a
perception which models reality, a myth which comforts societies, and a fantasy
which unleashes passions […] it is a cast of mind’ (Sachs apud Bordonaro 2007:234).
Porto Formoso é uma comunidade que se está a pensar a si própria, reflectindo-se no
mundo e projectando as suas imagens próprias. Veja-se, como exemplo, a reacção do
blogger Tiago Melo76 à discussão levantado no blog após a publicação do projecto de
um campo de golfe e aldeamentos turísticos para o Porto Formoso (Fig.3-18)
Desenvolvimento/retrocesso, tradição/modernidade, grandes dilemas se vivem neste blogue. Ainda bem! É claro que ninguém pode proibir a marcha do progresso, remetendo as nossas terras ao ostracismo de má memória. É claro que o turismo é uma aposta certa para promover o desenvolvimento dos Açores. Pois a dificuldade está, caros amigos, em conciliar o local com o global, a tradição com a modernidade, sem criar espaços de novo riquismo elitista e pedante. Se a globalização cultural é um facto inegável, então que se promova, com igual entusiasmo, as identidades e singularidades locais (culturais, paisagisticas) em
75 Como se verá mais à frente, estas preocupações surgem mais de movimentos externos do que internos e conceitos como “ambiente” e “natureza” geram um alto nível de ambiguidade entre os diversos sujeitos envolvidos. 76 Chefe da equipa da Segurança Social para a qual trabalha o Bruno Raposo, Regedor do blog. Não tendo relação direta com a freguesia de Porto Formoso, participa no blog apenas pelo seu interesse em fenômenos sociológicos, área em que é licenciado.
68
que o Porto Formoso é rico. Não há incompatibilidades nestas coisas, mas tem que haver bom senso e colocar a democracia a funcionar: projectos destes só referendados e com muita ponderação, pois cautelas e caldos de galinha nunca fizeram mal a ninguém. Viva a democracia, no Porto Formoso ou em qualquer recanto do mundo. Tiago Melo | 16/11/07 22:10
Como apontam Gupta & Ferguson (1987:15), o antropólogo “ can use a local
site to study a nonlocal phenomenon”. As discussões que se vivem no Porto Formoso
reflectem uma discussão que se propaga pelo mundo, e num momento em que as
estruturas tradicionais e os sistemas de valores estabelecidos se cambaleiam, a
ausência de referências firmes característica da “modernidade líquida (cf. Bauman,
2000) faz com que os conceitos de futuro, em relação ao presente e ao passado
nadem na ambiguidade e na incerteza. Neste sentido, este trabalho pretende reflectir
sobre os valores que se põem em causa e quais são os que prevalecem aquando desta
discussão. Tendo em conta que o trabalho de campo privilegiou o contacto com a
comunidade piscatória desta aldeia, a base do meu trabalho será o debate surgido em
torno das intervenções propostas, efectuadas ou não, na baía natural que se encontra
no centro da aldeia, emblemática pelo valor simbólico como coração da freguesia, à
qual dá o nome, e por constituir o espaço de uma profissão igualmente emblemática, a
pesca.
69
CAPÍTULO III
CADA UM POR SI E TODOS POR TODOS Mestres e Pescadores de Porto Formoso
Não desistia da pesca por que eu gosto disto, agora o que é que
eu vou fazer, imaginemos agora , vai-me sair a sorte grande e
eu ponho-me assim à espera de quê, à espera da morte, a morte
sei que estou a espera dela. O importante é passar a vida à nossa
maneira, eu gosto da vida do mar, e daquilo nunca vou desistir .
O dinheiro não é tudo na vida. Pelo menos fazer a coisa que a
gente gosta , e o que eu gosto é disso. Mestre Eugénio
70
3.1 Noções Gerais sobre as comunidades piscatórias
“Há três espécies de homens: os vivos, os mortos, e os que andam no mar”
(Platão)
Como já referi no primeiro capítulo desta dissertação, a minha convivência
com a comunidade de Porto Formoso teve início no verão de 2003, através do meu
bom amigo, o “mestre” Dídiu. Ele tinha um pequeno barco de pesca desportiva no
porto da aldeia, e conhecia bem os pescadores de Porto Formoso. Por isso, desde o
início a minha vivência na aldeia deu-se principalmente com a sua comunidade
piscatória, e o meu trabalho desenvolveu-se ao redor da baía natural onde os
pescadores exercem o seu trabalho, constituindo assim a base do meu objecto de
estudo.
Seguindo a definição de Digo Moreira, uma comunidade piscatória é “aquela
cujo modo essencial de vida assenta na exploração dos recursos pesqueiros do mar,
através do exercício duma actividade extractiva, aleatória, de natureza marcadamente
predatória e que possuem formas específicas de relação e organização ambiental e
social” (1987:13). As condições específicas em que se desenvolve o trabalho da pesca
estabelece não só o marco ocupacional, mas também o marco social e cultural das
comunidades piscatórias, podendo falar aqui de “identidade ocupacional”,
terminologia cara à sociologia do trabalho e à psicologia. Embora se reconheça a
heterogeneidade destas comunidades, existe uma especificidade comum a todas elas, e
que vem dada pela natureza do seu trabalho. Trata-se do universo de incerteza em
que se configuram (Oliveira et. al. 1975/1990, Moreira 1987, Nunes 2008, Amorim
2008). Em primeiro lugar porque trabalham sobre um bem comum, o mar, que é ao
mesmo tempo propriedade de todos e propriedade de ninguém. Em segundo lugar,
porque o controlo que o pescador pode exercer sobre os resultados do seu trabalho é
deveras limitado : sendo o peixe um recurso natural, móvel e oscilante, a única
certeza do pescador e o seu saber e o seu equipamento, sem que isto possibilite
garantir, por si só, uma boa captura, e portanto o seu rendimento. Neste sentido, o
padrão sociocultural que surge desta imprevisibilidade é muito diferente dos que se
desenvolvem ao redor de actividades que possam ser controladas, como a agricultura,
a criação de gado ou a industria. Veja-se neste sentido as declarações do velho
pescador Adolfo (pág. 59-n66).:
71
Os vaqueiros se levantam de manhã, e vão apanhar o leite das vacas, eles já sabem o preço do leite. O pescador não é assim. Foi toda a vida assim. O pescador vai para o mar, se apanham muito podem baixar o preço, se apanham pouco ganham o mínimo para sobreviver, nem felizes, nem sossegados, crises terríveis que os pescadores passam.
Em terceiro lugar, o bom e mau tempo, e a sazonalidade das espécies ao longo
do ano, requerem uma contínua adaptação dos pescadores às oscilações da natureza.
Mas resta ainda a pior de todas as incertezas: a da vida e a morte. Embora a melhoria
nas condições dos barcos e a evolução dos aparelhos tecnológicos tenham contribuído
para a diminuição de acidentes, o carácter imprevisível do mar faz de cada viagem
uma jornada da qual pode não haver retorno.
Existe toda uma mitologia associada à pesca, inerente ao perigo da profissão e
à bravura do mar que faz com que as comunidades piscatórias possuam, sem dúvida, o
lugar mais expressivo e característico das povoações litorâneas77. Embora a pesca não
seja a actividade mais rentável nem a única actividade importante da freguesia (a
lavoura é ainda uma fonte de rendimento importante), é a actividade viva mais
reconhecível e simbólica, e a própria Junta de Freguesia promove-a como elemento
representativo da zona, pois é não só um elemento diferenciador, mas também uma
actividade mais vendível e exportável do que a lavoura, devido ao risco comportado e
ao dramatismo das actividades associadas ao mar (cf. Peralta, 2006). A investigadora
Inês Fonseca apresenta um caso similar, no seu estudo sobre as identidades laborais
em Aljustrel (2007), onde apesar de coexistirem actividades rurais e mineiras, estas
últimas são destacadas e tidas como símbolo da região, devido ao seu valor de
diferenciação frente a outras regiões que concorrem pela atracão e valorização da sua
terra no palco regional, nacional e global.
Mas isto não significa que o papel das comunidades piscatórias no âmbito das
sociedades mais abrangentes onde se inserem seja dominante: pelo contrário, os
pescadores costumam constituir pequenas colónias subordinadas à vida social e
económica da colectividade maior a que pertencem. Estas “colónias” mantém uma
forte coesão social e cultural que vem dada não só pela partilha durante o trabalho,
mas também “fora de horas”. O ritmo diferenciado deste grupo ocupacional vem
pautado por um tempo particular: as solicitações ocupacionais de horário dos 77 A este respeito ver Capítulo 1.4
72
pescadores fazem com que a inclusão dos mesmos no calendário social marcado pelo
ritmo de outros modos de vida seja sempre complicado, limitando assim a sua
participação na comunidade mais abrangente à que pertencem e prolongando a
convivência do espaço do barco para a terra. Em Porto Formoso, quando o mar o
permite, os pescadores saem de madrugada, enquanto a aldeia dorme, e voltam um ou
dois dias depois. Chegam quase sempre muito cansados, pois os barcos não têm
condições para pernoitar, e seguem directamente para casa. Mas se ainda houver
forças passam a tarde em tranquilo convívio com os companheiros de faina, no cais
ou no café. No dia seguinte, dedicam-se à preparação de utensílios e equipamento e às
actividades de manutenção e reparação, organizados em companhas, de forma a ter
tudo pronto para mais um dia de pesca. Quando o tempo está bom não há fim de
semana; quando está mau, o dia passa-se no miradouro do porto, na tasca, a apanhar
isco nas pedras ou a arranjar o barco no porto. São também frequentes os casos em
que a actividade profissional dos pescadores se multiplica em ocupações em terra
(construção, agricultura, etc.). O pluriemprego dos pescadores é correlativo a
incerteza do ofício da pesca (cf. Meneses&Mendes,1996): é cada vez mais habitual a
dedicação da pesca não ser exclusiva, procurando fontes de receitas que possam
completar os rendimentos instáveis obtidos no mar. Como assinala Moreira,
(1987:266) bem raras têm sido, de facto, as aglomerações exclusivamente marítimas e
o número daqueles que apenas vivem do mar. Em Porto Formoso, muitos dos
pescadores trabalham na terra quando não saem ao mar, se não de uma maneira
profissional, fazem-no para juntar comida à mesa. Outros ainda trabalham nas obras
quando os barcos se encontram parados à espera de licenciamentos e quando a
temporada não corre bem, há ainda quem emigre temporariamente para endireitar a
vida.
Os trabalhos domésticos, a educação dos filhos e a administração do dinheiro
familiar compete às mulheres, que foram sempre afastadas do trabalho de mar. A
pesca é uma das ocupações mais sexualmente marcadas: factores como o perigo que
o trabalho comporta e a falta de intimidade no interior dos pequenos barcos podem ser
significativos para explicar esta realidade. Esta divisão do trabalho responde à
dicotomia clássica de géneros, segundo a qual os homens tratam dos trabalhos mais
esforçados e mais afastados de “casa”, enquanto a mulher (e filhos) fica protegida no
seio do lar. Em Porto Formoso existe apenas uma mulher pescadora, casada com um
73
mestre de Ribeira Grande com barco na freguesia. De resto, as mulheres destes
pescadores ficam em casa com as crianças e mães, ou juntam-se nos centros de
convívio associados à igreja, ao grupo de folclore ou ao coro, embora existam já
algum casos de mulheres empregadas em serviços fora da freguesia. No contexto
marítimo, porém, é de salientar a importância das mulheres como geradoras de
estabilidade e continuidade, de forma a compensar a incerteza que os pescadores
vivem no seu ofício. Neste sentido, o homem depende da mulher, pois sem ela não
teria o suporte necessário para a realização do seu trabalho, daí que o casamento seja
eixo estruturante nestas comunidades e a família a “célula social por excelência”
(Moreira, 1987:290). É habitual os pescadores casarem cedo, e o casamento parece
ser condição prévia para dar o passo de pescador a dono de barco: o “Mau tempo”, o
pescador mais novo desta comunidade e a quem acompanhei desde os 16 anos, casou
este ano, com 21 anos de idade, e adquiriu um barco logo a seguir, criando assim
esperanças no relevo geracional do porto, que não parece assegurado. A mulher
cumpre assim um papel essencial, embora seja principalmente sentido nos círculos
privados: na vida pública da comunidade, os homens são o motor social. É ao redor
deles que a comunidade se estrutura, organizando as actividades e respondendo às
necessidades deste grupo.
Note-se , ainda quanto à família, que nas comunidades de pescadores esta
limita-se, geralmente, aos seus membros nucleares, enquanto que os parentes mais
afastados perdem rapidamente o seu significado, em parte devido à própria natureza
do trabalho, que obriga a uma mobilidade e adaptação contínua às situações. Como
refere Moreira (1987:288) as visitas mútuas escasseiam e mesmo as grandes festas
não são por regra ocasião de reunião familiar, mas mais propriamente momentos de
convívio comunitário profissional, nos quais é natural criarem-se laços em função da
faixa etária. Assim, os laços familiares diluem-se, priorizando a maior parte das vezes
as amizades e as relações de trabalho. Mas é frequente o ofício de pescador passar de
pais para filhos, ou existir casamentos entre pescadores e filhas ou irmãs de
companheiros de faina, e quando isto acontece membros da mesma família coincidem
no mesmo porto e muitas vezes no mesmo barco. Muitos dos pescadores de Porto
Formoso partilham laços de sangue, nomeadamente como “irmãos” ou “primos”, mas
esta relação é frequentemente omitida, pois parece sobrepor-se o facto de pertencerem
à mesma comunidade profissional. Em muito casos eu só soube destas relações depois
74
de vários anos de trabalho, e muitas vezes por acaso.
Entre as comunidades piscatórias, o tipo de pesca que se realiza define uma
série de subgrupos que importa diferenciar. A primeira subcategorização deve ser
feita entre pescas distantes e pescas litorais. É a esta última subcategoria que
pertencem a maioria dos pescadores registados em Portugal (Moreira, 1987:15).
Ainda neste subgrupo, podem-se diferenciar dois tipos de pesca, e assim dois tipos de
organização: a pescaria costeira e a pescaria local. A primeira caracteriza-se pelo uso
de técnicas mais evoluídas, embarcações maiores, áreas de pesca mais abrangentes.
Em contraste, a segunda representa aqueles pescadores que trabalham com barcos
mais pequenos, técnicas mais tradicionais, menos meios e recursos e zonas de ação
mais próximas à costa. Uma e outra circunscrevem organizações sociais e
profissionais diferentes. A comunidade de Porto Formoso enquadra-se na categoria
de “pesca local”. A sua frota está constituída por 678 embarcações de “boca aberta”79,
construídos em madeira, de pequena dimensão e tonelagem e, com um motor de fora-
de-borda de fraca potência: três proprietários são naturais de Porto Formoso e três são
oriundos de outras freguesias. Com estas características, estes são barcos que atuam
muito próximos da costa e que aplicam artes de pesca variadas, de forma a adaptar-se
à heterogeneidade do litoral. Como acontece frequentemente nas comunidades de
pesca local, (Moreira,1987:20) o porto de pescas é pequeno e sem condições
actualizadas de atracagem, desembarque e protecção.
Na pesca local a organização do trabalho assenta no binómio pescadores -
mestres80. A aquisição do estatuto de mestre produz-se mais do que por transmissão,
por mérito. É o caso dos mestres Américo (73), Eugénio (42), e Eiró (36)81 : os três
são mestres não por transmissão familiar mas sim devido ao seu sucesso na pesca, ao
seu conhecimento da arte da pesca e das costas, e ao seu profissionalismo. O único
caso de transmissão verifica-se entre o Américo o seu filho, o Paulo Jorge (36), que
agora ficou como mestre em lugar do pai, que apesar de reformado continua a pescar
com ele. A relação entre pais e filhos responde aos padrões culturais próprios desta
comunidade: para os segundos vingarem no mar, os primeiros tem de deixar lugar. 78 Este número tem oscilado entre 4 a 6 embarcações ao longo do período 2005-2012. 79 Os barcos de boca aberta, pela sua ausência de cabine, ficam condicionados ao estado do tempo e do mar. 80 Na pesca costeira, porém, a hierarquia é mais marcada e conta com mais estratos, uma vez que o trabalho a realizar é também mais complexo. 81 Mestres de Porto Formoso, dos quais se falará no próximo ponto.
75
Desta necessidade surgem as correspondentes tensões intergeracionais, que ganham a
sua maior expressão quando o filho deixa de o ser para passar a ser companheiro, e
por isso, “rivais em pé de igualdade” (Moreira, 1987: 286). Como pude observar ao
longo do meu trabalho de campo, entre o Américo e o seu filho estes confrontos
ocorrem quase sempre no barco, e têm como motivo a própria forma de realizar o
trabalho. Porém, perante a comunidade mostram apenas distanciamento e em casa,
onde a mãe é intermediária, sente-se um esbatimento das tensões. Sobre a relação
com o seu pai o Paulo Jorge afirma:
A gente vai-se dando, mas temos as nossas discussões, faz parte. Eu agora para ir ao mar em certos sítios eu não preciso dele, mas em muitos sítios eu preciso dele ainda, porque a gente não tem sonda e ele é que faz as marcações de terra. Eu no início quis fazer troll82, mas ele não conhecia essa arte e tudo o trabalho que dava era para mim. Por isso é que eu desisti e fui para a pesca dele.
Estes três mestres figuram como proprietários dos barcos, que adquiriram
através de poupanças angariadas aquando de campanhas frutíferas. Nas pescas
costeiras e locais, onde se utilizam embarcações e técnicas relativamente baratas, este
é um fenómeno comum. O mestre/proprietário detém, pois, o domínio do
recrutamento e da organização do trabalho, gozando assim de um poder “não apenas
económico, más também social, nos aglomerados a que pertence” (Moreira, 1987:
306). Além disso, é dos seus conhecimentos e capacidades que depende o bom
sucesso da pescaria e assim, o rendimento dos pescadores. Por isso, o seu poder será
socialmente tornado em prestígio se se traduzir em pescarias abundantes. Se um
mestre obtiver regularmente boas capturas, a sua tripulação quererá manter-se na
companha, e uma boa tripulação é fundamental para o sucesso de qualquer mestre.
Entre os pescadores o prestígio vem tanto pela sua qualificação técnica, quanto pela
sua popularidade e pela estima que o mestre e o resto da sociedade lhe têm. É de
salientar que, apesar desta diferenciação, os mestres partilham com os pescadores a
dureza do trabalho, o frio, a falta de sono, as euforias e as desilusões da pesca, e “tudo
isto esbate os distanciamentos” (Moreira, 1987:239). A companha no mar constitui
portanto um conjunto uniforme com um objectivo comum, uma unidade
socioeconómica que, junto à família ( e às vezes sobrepondo-se), estrutura estas
82 Palavra inglesa que os pescadores de Porto Formoso usam para se referir à arte de pesca conhecida em Portugal como “palangre de fundo”. Esta arte é de grande extensão: utiliza quilómetros de cordame e de monofilamentos e milhares de anzóis. É considerada uma arte “de mão de obra intensiva”.
76
comunidades. Além disso, os hábitos culturais e de consumo são similares: apesar de
terem um maior rendimento, os mestres não costumam ostentar a riqueza, não
costumam ir a restaurantes, não passam férias fora da comunidade nem fazem turismo,
e ocupam o seu tempo livre de formas similares aos pescadores. A relação Mestres-
pescadores assenta numa base muito pessoal: por regra, convivem nas suas
comunidades, e formam um grupo socialmente coeso dentro da comunidade mais
abrangente à que pertencem. Aliás, os pescadores identificam-se em geral em termos
de arte de pesca que exercem, independentemente do status profissional ou da classe
económica a que pertencem (Moreira, 1987:318). Um mestre juntar-se-á com os
pescadores que trabalhem na mesma arte, antes do que com um mestre duma outra
arte.
A principal remuneração dos pescadores é a receita do barco, não existindo um
vencimento fixo. Isto significa que se o barco não sai, o que acontece frequentemente,
ninguém ganha. Quando entrevistei ao mestre Eugénio, em agosto de 2005, referia a
dificuldade de viver do mar da seguinte maneira: “agora já vão quinze dias sem
ganhar nada, e para mais azar hoje finalmente saímos mas foi muito fraquinho. Isso é
muito chato”. Para calcular o valor a pagar, utiliza-se o “sistema por partes”: após
deduzir da receita bruta do barco despesas com combustível, lota, iscos etc, divide-se
a diário os lucros obtidos pelos pescadores em parte iguais, sem valorar factores como
antiguidade, afinco, experiência e assiduidade (Moreira, 1987:241). Esta distribuição
reforça o carácter de igualdade dentro da companha, sendo que mesmo o mestre
recebe uma parte igual ao resto (recebendo uma parte extra apenas em qualidade de
proprietário). O carácter instantâneo e quotidiano do sistema de remuneração utilizado
exige uma cooperação intensa entre os membros da companha: todos estão
interessados em voltar com uma boa pescaria.
As comunidades piscatórias definem-se em função de uma complexa estrutura
que mistura cooperação e oposição entre os seus indivíduos e grupos e que se
transforma ao sabor destas duas relações antagónicas.
Com recursos limitados e incertos e territórios ambíguos, as populações marítimas têm necessariamente de cooperar. Mas se tais factores aumentam a cooperação, aumentam em especial a competição, a qual garante o sucesso individual. (Moreira, 1987: 35).
77
Observou-se entre os pescadores de Porto Formoso uma sobreposição dos
valores de cooperação aos da competição. Embora no decorrer do trabalho de campo
se tenham observado e presenciado pequenos atritos individuais entre pescadores,
estes foram resolvidos rápida e discretamente ou então esbatidos pela convivência
diária. Em palavras do mestre Paulo Jorge:
O haver boas relações há, a gente sabe que na vida de mar às vezes há pequenas discussões com o peixe. Há certas discussões que começam por causa das condições do porto: chegamos ao barco todos molhados e esgotados e como ficamos mal dispostos, já começam as discussões83. Também a gente se apanhar um dia ali, noutro dia eles vão todos para ali, mas pronto, tudo se fala aqui em baixo, praticamente, nem vês ninguém que não se fale um com o outro.
Por outro lado foram apreciados muitos outros comportamentos solidários e de
compadrio entre os membros desta classe ocupacional. Pensa-se que isto se deva ao
facto de se tratar de uma comunidade pequena, frequentemente ligada por laços de
sangue, cujas embarcações estão especializadas em diferentes tipos de pesca. Mas
ainda mais importante é o facto de todas as companhas partilharem as dificuldades
que resultam de varar os barcos na areia. Nestas condições a entreajuda é essencial.
Como diz o mestre Eugénio “Se aqui não nos ajudássemos uns aos outros, não se
desenrascava nada aqui”. Os pescadores juntam-se por isso sob a mesma
reivindicação: a melhoria do porto de pescas em prol da comunidade. A sua luta é
comum, embora seja travada individualmente84. O mestre Ricardo resume a relação
entre pescadores da seguinte maneira: “Isto aqui é cada um por si e todos por todos”.
Por último, é importante assinalar que o facto de se tratar de uma comunidade
social e culturalmente coesa não significa que seja uma comunidade fechada em si
própria. Se por um lado têm sido capaz de manter a sua identidade perante a ação da
sociedade englobante, por outro observa-se uma grande capacidade em envolver-se
nos movimentos globais. Esta comunidade piscatória é uma comunidade aberta, como
de facto o é toda a comunidade de Porto Formoso85. Através dos movimentos
migratórios e do convívio com os diversos agentes a operar nas zonas costeiras
(turistas, comerciais, lavradores, camponeses) os pescadores recebem e trocam ideias
83 A falta de condições do porto natural de Porto Formoso será, como se verá mais à frente, uma das causas da polêmica que surgirá em torno às obras na baía. 84 Como se verá mais à frente, o associativismo não funciona entre os pescadores de Porto Formoso. 85 Ver Capítulo 2 (pág. 47)
78
no seu dia-a-dia. Como indica Moreira, a tolerância é um valor generalizado nas
comunidades piscatórias (1987: 289), que se expressa não só nas relações que se
criam entre este e outros grupos, como na atracção dos pescadores pelas novidades
técnicas, sociais e culturais. Cruz (1966:128 apud Moreira 1987:289) vai ainda mais
longe ao afirmar que “ o que precisamente encontramos de característico, na pequena
povoação de pescadores, é esse desprezo pelo folclore e pelo típico, essa facilidade de
assimilação do que é estranho e vantajoso”.
Dado o universo de incerteza em que se desenvolvem as comunidades
piscatórias, estas adoptam intrincados mecanismos de contínua adaptabilidade ao
meio. Daí que estas colectividades, nomeadamente as que se dedicam à pesca local,
se definam, pois, pela sua fluidez e pela sua flexibilidade (Nunes, 2008:10), sendo que
estes traços não só afectam o seu trabalho, mas se estendem pela realidade do seu
quotidiano. Como nota este autor, se por um lado a ausência de nexo entre força de
trabalho, produtividade e lucro, dificultou ao longo dos anos a conciliabilidade desta
actividade com o capitalismo clássico, o risco, a instabilidade, e a incerteza são afinal
características que definem o novo capitalismo, que se caracteriza pela ausência de
instituições sólidas: na “modernidade líquida” de Bauman (2000) o indivíduo, na
ausência de referências firmes, deve ser capaz de ser flexível e adaptar-se
continuamente à realidade mutável que o rodeia. A complexidade das comunidades
piscatórias prende-se com o carácter instável do mar, que requer das sociedades que
dele vivem uma capacidade de adaptação, flexibilidade e fluidez fora do habitual.
Neste sentido, o estudo das comunidades piscatórias e das reacções das mesmas
perante processos de “modernização” e “globalização”, podem lançar luz sobre os
processos através dos quais o homem lida com este novo fenómeno de incerteza.
3.2 A comunidade piscatória de Porto Formoso
Apesar de ser uma comunidade piscatória relativamente pequena, Porto
Formoso conta com um porto com história e suficiente continuidade para ser
considerado parte essencial do tecido social da freguesia. A comunidade piscatória de
Porto Formoso contava em 2005 com 6 mestres86, 3 da Ribeira Grande e 3 de Porto
Formoso: o Américo (66), o Eugénio (36) e o Ricardo (29), sendo que o primeiro 86 Este subcapítulo centrar-se-á apenas nos mestres naturais de Porto Formoso, uma vez que estes mantêm uma relação especial com o porto de Porto Formoso, pois além de ser o seu lugar de trabalho é também o lugar onde nasceram e onde vivem.
79
destes três, já reformado, pescava apenas num pequeno barco, sozinho ou com mais
uma pessoa. O número de pescadores, a trabalhar nas diferentes embarcações, ronda
a vintena. Destes pescadores ao redor de 5 alternam o trabalho na pesca com o
trabalho no cultivo das terras, e muitos outros trabalham nas obras quando o mar não
está a dar. Além das embarcações e pescadores de pesca profissional, existe também
um número variável mas significativo de barcos e pescadores de pesca desportiva.
O primeiro mestre com quem tive contacto foi com o mestre Américo. O
Américo, casado e pai de 4 filhas e 1 filho é, hoje com 73 anos, o pescador mais
velho de Porto Formoso. O seu pai, também pescador, teve 9 filhos, dos quais 3,
contando com ele foram pescadores, mas ele é o único que continua nesta vida. O
mestre Américo é um exemplo do carácter multifacetado das gentes desta freguesia.
Até aos 20 anos, o mestre Américo trabalhou na terra, iniciando-se nesta altura na
pesca, mas nunca deixou o trabalho na terra, aproveitando os dias em que não ia ao
mar. Na altura, a pesca era abundante, e o Américo chegou a ter dois barcos ao
mesmo tempo, liderando assim duas companhas. Ele, que vive mesmo acima do porto,
personifica o pescador dos velhos tempos: nunca frequentou a escola, mas com a
prática chegou a conhecer o mar como ninguém. Para se orientar usa as “marcas” da
terra, e não o GPS, e a sua arte de preferência é a linha de mão, e não as gaiolas
(armadilhas) nem a pesca de corrico (palangre)87. Quando estamos com ele, é
inevitável lembrarmo-nos naquele personagem icónico do “O Velho e o Mar” de
Hemingway. Segundo se foi fazendo velho, o Américo foi reduzindo a sua actividade
da pesca, mas nunca deixou de ir ao mar: o seu último barco foi o Carmélia88 , de 8
metros e meio. Mesmo agora, depois de reformado e já sem barco próprio, só não sai
ao mar quando o tempo não permite. O mestre Américo é sem dúvida uma
personagem com aura no Porto Formoso, e há quem proponha o levantamento de uma
estátua na sua homenagem. A sua idade, a sua relação com o mar, a sua calma,
simpatia e abertura fazem deste homem uma pessoa ingenuamente carismática. Foi
também ele que ensinou muitos dos pescadores mais importantes da actualidade de
Porto Formoso.
87 Sobre as diversas artes de pesca nos Açores, ver “Artes de pesca dos Açores: tecnologia de pesca e marinharia” (Rodrigues e Roque 2008). 88 Nos casos em que o barco é comprado em segunda mão, como o caso do Carmélia, os barcos costumam herdar os nomes para evitar assim os custos e burocracias associadas a um novo registo do barco. Mas quando são barcos novos, é costume pôr os nomes de familiares: dos filhos, mulher, mãe ou pai.
80
O mestre Eugénio (43 anos) casado e com 2 filhas, é actualmente o mestre com
mais sucesso da freguesia, e foi um dos que começou a sua vida no mar no barco do
mestre Américo aos 12 anos. Trabalhou com ele 3 anos e os 16 anos tomou conta do
primeiro barco, um barco de 5 metros que o seu pai, que trabalhava na terra e no mar,
lhe comprara com o dinheiro poupado durante o período de emigração em Canadá.
Depois de sair da tropa comprou o seu primeiro barco, de 7 metros, e desde lá não
parou de crescer, passando rapidamente de pescador a mestre e evoluindo com os
anos para barcos cada vez maiores. Ele aprendeu a pescar ainda sem ajuda de sondas
nem GPS, mas aventurou-se desde cedo a utilizar estas novas tecnologias. A este
respeito, o mestre Eugénio afirma: “Eu aprendi com os velhinhos, e quando tive a
primeira sonda já conhecia todos os sítios, mas hoje em dia com o GPS qualquer
pessoa é pescador”. Também foi experimentando novas técnicas, como as armadilhas
de gaiola89, uma arte do continente que aprendeu com um mestre de Lisboa que
praticava esta arte na costa sul da ilha, sendo ele o primeiro mestre que levou esta arte
à costa norte. O mestre Eugénio é o único que vive exclusivamente da pesca, ele
próprio afirmando que “nunca ninguém fez vida do mar como eu fiz aqui no Porto”.
Enquanto a sua família emigrava para o Canadá ou para as Bermudas, ele nunca quis
sair. O Eugénio é um mestre activo na comunidade: costuma representar Porto
Formoso junto dos sindicatos dos pescadores, e é ele que eleva as reivindicações dos
pescadores às instituições políticas, embora se queixe da falta de apoio dos colegas:
“há muita gente aqui no Porto que só fala no café, quando há um café com duas cervejinhas, falam muito com as cervejinhas, de resto quando chega a hora da verdade metem-se todos em casa e eu fico sozinho, portanto não vale a pena chatear muito” .
A companha do Eugénio está formada por 10 pescadores com idades entre os
16 e os 60 anos, e caracteriza-se por ser uma companha muito estável e coesa: um dos
pescadores, o Sr. João Manuel, já trabalha com ele há 28 anos e muitos outros estão
com ele há mais de 10. O seu irmão também faz parte da companha. O
profissionalismo do mestre Eugénio e as suas boas pescarias faz com que o seu barco
89 Por pesca por armadilha de gaiola entende-se aquela em que se recorre a dispositivo de dimensões e forma muito diversas, constituído por estrutura rígida tal que, por si só ou servindo de suporte a pano de rede, delimitam um compartimento cujo acesso é feito através de uma ou mais aberturas fáceis, mas cuja utilização, em sentido contrário, é dificultada às presas. (Portaria n.º 1102-D/2000 de 22 de Novembro, IPIMAR, INRB)
81
seja o mais atractivo para trabalhar: em média, cada pescador ganha no barco do
Eugénio por volta de 200-250 euros semanais de forma estável. Se antigamente era o
mestre Américo quem iniciava os homens na pesca, agora é o mestre Eugénio quem o
faz: os quatro últimos pescadores que se estabeleceram pela sua conta saíram da sua
companha. São eles o mestre Miguel (de Ribeira Grande) o mestre Ricardo, o Paulo
Jorge e, em 2012, o jovem “Mau tempo”.
O mestre Ricardo, actualmente com 35 anos, começou a trabalhar na terra do
seu pai. A este respeito, o mestre Ricardo afirma: “A gente trabalhava de camponês, e
depois do trabalho aproveitava as marés, comia, e depois ia para as algas. Com um
saco as costas pelas rochas fora”. Foi assim que ganhou a vontade de ir para o mar, e
foi por primeira vez com 15 anos. Na sua família, o seu bisavô tinha sido pescador e o
seu irmão também o foi, antes de passar a ser o guarda fiscal do porto de Porto
Formoso. O mestre Ricardo casou com 18 anos, e é agora pai de dois rapazes e uma
rapariga, e a sua mulher, doméstica, desde cedo ajuda o marido a fazer aparelhos em
casa. O primeiro trabalho na pesca foi no barco do seu primo, o mestre Eugénio, com
quem esteve durante 10 anos, e com quem aprendeu muito do que hoje sabe,
nomeadamente sobre a técnica de palangre e armadilhas, que é a que praticou nos
seus barcos. Aos 26 comprou o primeiro, o Ave Maria, e desde então tirou vários
cursos técnicos de uso de sondas e GPS, tornando-se assim um dos pescadores de
Porto Formoso com mais conhecimentos nesta área. No Ave Maria, tinha uma
companha de 5-6 homens, todos eles jovens. Em 2006, o mestre Ricardo afirmava:
“Já não há malta velha. Tem que ser a malta nova. E os rapazes gostam desta vida,
também a vida de terra está-se a acabar, mas quando virem que estão a ganhar
pouco e a ter muito trabalho, vão-se embora, para ganharem o rendimento mínimo”.
Ao longo da sua vida no mar, o mestre Ricardo tem alternado o trabalho de pesca com
outros trabalhos, como o cultivo da terra e a construção, de forma a equilibrar as suas
contas em períodos em que a pesca não dava suficientes rendimentos ou enquanto
ficava à espera de licenças.
Como já foi referido, o agora “mestre” Paulo Jorge, que partilha idade e
amizade com o mestre Ricardo, é filho do mestre Américo. A mulher do Jorge, agora
ex-mulher, é irmã da mulher do mestre Ricardo, mas à diferença desta, ela sempre
trabalhou no sector dos serviços na Ribeira Grande, deixando a filha ao cuidado dos
pais. Desde criança, o mestre Paulo Jorge ia à pesca com o seu pai durante as férias, e
82
a partir dos 14 anos fez da pesca a sua ocupação principal, embora não a única, pois,
alternou, ainda mais que o seu pai, o trabalho na pesca com o trabalho na terra, no
cultivo do inhame, que tem lugar no inverno, ou noutros cultivos quando está mal
tempo. Em Março de 2006, o Paulo Jorge dizia: “Agora tive estes dias parado, por
causa das licenças, mas em certo sentido caiu bem porque eu tinha o inhame para
tirar, para plantar, ia ter de estar a perder dias para ir para ali. Assim deu para
desenrascar lá acima.” O mestre Paulo Jorge trabalhou 8 anos com o mestre Eugénio,
com quem aprendeu as artes do ofício, e onde coincidiu com outro futuro mestre, o
Ricardo.
3.3 O Carnaval de 2005: um ponto de inflexão.
Na madrugada da terça-feira de Carnaval do ano 2005, o mar revoltou-se no
Porto Formoso enquanto a aldeia dormia. Ninguém sabe ao certo o que é que
aconteceu, mas quando o mestre Eugénio chegou ao porto, por volta das três da
manhã, para sair com o seu barco, o panorama que encontrou era constrangedor: o
barco do mestre Ricardo, o “Ave Maria”, e o barco do mestre Américo, o “Carmélia” ,
apareceram destruídos, a alguns metros de distância de onde foram varados no dia
anterior. O barco do mestre Eugénio, o “São Gabriel” também tinha alguns danos,
mas menos avultados. A notícia espalhou-se rapidamente pela aldeia, e as conjecturas
sobre o sucedido multiplicaram-se. Com o recente e mortífero caso do Tsunami no
Oceano Índico90 ainda na memória, falava-se de uma onda gigante que tinha destruído
os barcos. Outros, mais moderados, falavam de uma vaga de ondas e de uma rajada de
vento. O acontecimento foi tão marcante para toda a aldeia que nesse verão, quando
eu retomei o trabalho de campo, ainda se falava no assunto.
Nessa altura, já os novos barcos estavam a ser construídos na oficina do
mestre João, em Rabo de Peixe. No caso do mestre Américo, a indeminização do
seguro não era suficiente para investir num novo barco. Estando ele reformado
também não podia candidatar-se aos apoios da União Europeia, pelo que pediu ao seu
filho Paulo Jorge, que aquando do incidente trabalhava no “São Gabriel”, para
formalizar o pedido em seu nome. Foi por esta razão que pai e filho se associaram
neste novo projecto e investiram num barco um bocado mais pequeno do que o 90 Tsunami com epicentro na costa oeste de Sumatra (Indonésia) que teve lugar no 26 de Dezembro de 2004 (2 meses antes do incidente de Porto Formoso) e que resultou em mais de 230.000 vítimas em 14 países diferentes.
83
anterior (de 8,50 metros para 7 metros) mas mais alto. O novo barco teria o nome da
filha do Paulo Jorge, “Mariana”. A ideia era fazer uma pesca de palangre ou de linha
de mão, para a qual são suficientes 2 ou 3 pescadores. Para a construção do barco o
filho e herdeiro do dono da Fábrica de Chá, o Sr. Galiano, deu toda a madeira
necessária.
Pelo seu lado, o mestre Ricardo tinha recebido uma boa indemnização do
seguro. Querendo ele tornar o infortúnio em oportunidade, acho que era o momento
para apostar num barco de maior envergadura. Quando questionado sobre a decisão
de investir num barco maior, o mestre Ricardo foi claro: Porque tem mais espaço,
mais possibilidades de trabalho. Estás a ver? Este já está a ficar pequeno. O outro
levava quarenta, este leva sessenta e já quero mais. Isto vai tudo evoluindo. O mestre
Ricardo, cuja arte principal era a de palangre, queria um barco com maior capacidade
de carga e maior autonomia. Por isso, pediu também uma ajuda financeira da União
Europeia, que lhe foi concedida. O seu barco, com um comprimento de 9,50 metros,
teria o nome de “Praia de Porto Formoso”91, aludindo assim ao característico porto de
areia da aldeia.
Ambos os barcos demoraram 8 meses a serem construídos. Chegaram juntos,
pelo mar, desde Rabo de Peixe, no dia 1 de Outubro de 2005. Mas ainda precisaram
de mais três meses para passar as vistorias e arranjar as licenças correspondentes, e
durante este tempo permaneceram varados na areia da baía de Porto Formoso, saindo
apenas pontualmente e arriscando uma multa. Foram um total de 11 meses sem
trabalhar. O Ricardo optou por acompanhar de perto e ajudar na construção do barco,
“para ter a embarcação quanto mais cedo melhor, para um gajo poder trabalhar. E
também para mim ver a qualidade do trabalho”. Durante estes meses foi vivendo de
algumas saídas que fazia no barco do seu primo Eugénio, de algum dinheiro do
subsídio e do apoio de amigos e familiares, pois “primos e irmãos, sempre dão
qualquer coisa, ou batata, ou ervilha, legumes, coisas de comer”. Pelo seu lado, o
Américo foi-se entretendo aqui e acolá com um barquinho de pesca desportiva que lhe
emprestavam para ir apanhando um peixinho, mas ia bastante menos vezes ao mar.
91 A primeira intenção do mestre Ricardo era pôr o nome de Maurício (filho), mas por já existir um barco registado com esse nome e outro com o nome da mulher optou por um nome que se referisse ao lugar.
84
Para o seu filho Paulo Jorge, que tinha deixado de trabalhar no “São Gabriel”, foi
mais complicado: (O trabalho no São Gabriel) Acabou de um momento para o outro e eu estava acostumado a receber aquele ordenado. Quando houve o problema eu tive de ir trabalhar de pedreiro, estive três meses, e de pintor, seis meses a trabalhar de pintor. Tive que ir. Não tinha barco, o meu pai não tinha, não tinha dinheiro, eu precisava de dinheiro todos os meses para pagar a prestação da casa . A mulher trabalha, eu também trabalho. Teve de ser assim. Mas todos os dias sonhava, todos os dias passava aí, vinha todos os dias aqui ao jardim , a olhar para o mar, pelo menos.
2005 foi um ano difícil para este homens. Sentiram a falta de dinheiro e a falta
do mar, mas ao mesmo tempo, sentia-se no ar uma qualquer ebulição, um entusiasmo
pelo futuro. As deslocações entre Rabo de Peixe e Porto Formoso eram frequentes, e
nos entretantos, no miradouro ou no jardim sobre o porto os homens da aldeia iam
comentando as novidades sobre os barcos. O mestre Eugénio, que continuava a pescar
no “São Gabriel” decidiu aproveitar este impulso para se lançar, também ele, na
construção de um barco maior, mais do que por necessidade, por evolução. Como ele
reconheceu anos mais tarde, “ O governo estava cheio de dinheiro nessa altura e a
gente aproveitou”. O “Bom barqueiro”, com 10,50 metro, chegou ao Porto Formoso
três meses depois dos outros barcos, em Janeiro de 2006. Para ultrapassar a cada vez
mais alarmante falta de peixe os mestres de Porto Formoso precisavam de ir cada vez
mais longe: um barco maior proporcionava-lhes maior capacidade de armazenamento
e maior autonomia. Também lhes permitia levar mais quantidade de aparelhos, de
forma a ter mais possibilidades de apanhar peixe num mar que de ano para ano fica
mais desgastado. Não há um pescador em Porto Formoso, velho ou jovem, que não
fale dum passado rico em peixe e lamente a falta dele no presente. Isto é uma diferença do dia para noite , é muita diferença, há 20 anos atrás, quando eu comecei a fazer vida disto a gente levava 20 ou 30 gamelas e apanhava 300 ou 400 quilos de peixe e agora hoje em dia levo 100 gamelas e apanho 100 quilos. Mestre Eugénio
(Agora) há muito menos quantidade de peixe. Eu quando era miúdo, quando ia com o meu pai ao Sábado, chegava a apanhar às vezes duas garoupas grandes, um bodião, tudo com um aparelho só, mas é peixe grande. Agora a gente apanha peixe grande, garupa e tudo, mas já não é como antigamente. Antigamente chegava o meu pai, eu vi, entre dois ou três apanhavam 60 -70 quilos de garupa. Tudo garupa grande, de um quilo e mais. E não levava muito para apanhar aquilo, era só de manhã. Até a uma hora ou duas, 60, 70 quilos. Agora já não se vê isso, a gente apanha 30 ou 40 quilos mas a gente tem de ter muita experiência e
85
tem que ter muita paciência para apanhar mais de 30 quilos. Tem de trabalhar 100 % para apanhar isso. Paulo Jorge
(Agora) Há sondas, GPS, há uns anos atrás não havia sondas, não tinha hidráulico92, não tinha alador93, isso é que rebentou connosco, rebentou com o peixe. A gente levantava todo o peixe à mão. Havia muita mais quantidade de peixe. Era menos pescado também . E eram menos embarcações, agora eu penso que tem mais embarcações. Há muita mais quantidade de aparelhos, um leva 50, o outro leva 60, o outro leva 80. Eu vou pescar aí, amanhã vai outro a pescar ao mesmo sítio, está a compreender?. No futuro não vai haver peixe. Embora é verdade que se houver pouco peixe, sempre vai subir o valor. É arranjar a melhor maneira de um gajo se desenrascar. Mestre Ricardo.
Se tivermos em conta que, na actualidade os barcos dedicados à arte das
gaiolas levam em média 70-80 gamelas/barco, e cada gamela leva no máximo 120
anzóis, dá uns 9000 ou 10000 anzóis por barco. Nas costas de Porto Formoso
trabalham nesta arte dois barcos, fora os de Rabo de Peixe, que se concentram na
mesma área. Além disso, muitos desses anzóis ficam presos no fundo. A falta de
peixe leva ao excesso de aparelhos (e de anzóis), o que agudiza ainda mais a crise dos
recursos marinhos, que desta forma se tem acelerado nos últimos anos, criando-se
assim um círculo vicioso do qual ainda não se saiu. Diogo Moreira põe esta questão
da seguinte maneira:
Como já se observou, os pescadores estão cada vez mais dependentes das complexas variáveis da economia de mercado global. Assim, por exemplo, para conseguirem melhores capturas necessitam de melhores embarcações; para financiarem tais barcos necessitam de meios financeiros provenientes de poupança, ou, mais provavelmente, de empréstimos; para garantir um melhor aproveitamento económico do empréstimo, precisam de um equipamento mais sofisticado; e para pagar têm de obter mais capturas, o que é problemático, dada a natureza, o conhecimento e a situação dos recursos. (1987:35-36)
Não se pode esquecer que o decréscimo no peixe pescado fez aumentar
consideravelmente o seu valor. Como corresponde aos mecanismos capitalistas, o
desfasamento entre demanda e procura provocou uma subida extraordinária nos
preços. Ainda em Março de 2006, o mestre Eugénio afirmava o seguinte:
Mas vamos ver duas coisas, há pouco peixe mas o preço está compensando o haver menos peixe. A gente quer queira quer não, aqui há uns anos atrás
92 Sistema hidráulico para puxar as redes 93 Guincho incorporado na embarcação para puxar as redes.
86
apanhava-se 400 quilos de peixe de fundo e hoje apanha-se 200 mas a gente ganha muito mais dinheiro, a pesar de tudo do que há uns anos atrás.
Porém esta tendência quebrou-se a partir de 200794, ano a partir do qual o
decréscimo do peixe nas lotas deixou de ser acompanhado por uma subida nos preços
do mesmo, em grande parte devido a crise internacional e a consequente redução do
poder de compra dos consumidores.
Neste contexto de mercado, em Porto Formoso a frota modernizou-se, mas não
houve uma modernização do ponto de vista estrutural: os barcos continuam a ser de
boca aberta. A modernização deu-se através do aumento da potencia de motor e da
instalação de equipamentos electrónicos (GPS), mas não do ponto de vista da
estrutura da embarcação. Aumentou a dimensão dos barcos mas não deu melhores
condições de trabalho, nem de refrigeração do pescado a bordo. A frota continua a
não ter autonomia para passar da pesca local a pesca costeira, (tinha que ter
capacidade para pescar até às 100 milhas ou mais), mas devido as novas dimensões é
obrigada a aumentar a potência motora (barco mais pesado), fazendo com que os
custos de consumo sejam mais elevados. Porém, a sua actividade continua a incidir
sempre sobre a mesma área de pesca, até 6 milhas da costa. Como resultado desta
política apoiada pela União Europeia, pelo Ministério das pescas, e pela Secretaria
Regional, este tipo de modificações nos barcos de pesca local, contribui segundo
palavras do dirigente sindical Liberato Fernandes para “um aumento do esforço de
pesca numa reduzida cintura a volta das ilhas, com a consequente lapidação dos
recursos”. Mas apesar das condições desfavoráveis, os pescadores continuam a
apostar na sua evolução e a acreditar no seu futuro, tentando sempre procurar novas
estratégias para contornar os problemas que vão surgindo e mostrando assim a sua
capacidade de se adaptar às adversidades.
94 Ver figura 1-2 (pág. 29)
87
CAPÍTULO IV
DISCURSOS E PRÁTICAS DE FUTURO Uma etnografia polifónica
Cada vez que se passa algo dramático ou importante é essencial
instigá-lo no preciso momento em que ocorre, pois os nativos
não conseguem então deixar de falar do assunto e estão
demasiado excitados para se mostrarem reticentes e demasiado
interessados para se tornarem parcimoniosos nos detalhes
(Malinowski, 1997 [1922]: 23).
88
4.1 Barcos novos na costa! Verão de 2006
FIG. 4-1. Os novos barcos enfeitados para as festas de Nossa Senhora da Graça, em Setembro de 2006 (Cedida pelo
Regedor)
Poucos meses depois de os barcos chegarem, os mestres e pescadores de Porto
Formoso confirmaram o que já sabiam. As novas dimensões dos barcos não se
ajustavam as condições naturais do porto: se já antes era difícil arriar e varar os barcos
na areia, agora era uma tarefa quase titânica que ameaçava o futuro desta actividade.
Para pôr o barco na água eram precisas mais pessoas do que as que compunham as
companhas; os pescadores chegavam molhados ao barco, provocando frequentemente
gripes e outras doenças entre a tripulação, e o esgotamento físico era tal que antes
sequer de sair ao mar já se tinham gasto todas as forças disponíveis. No verão de
2006, os mestres expressavam já a sua aflição, ao ponto de pôr em causa o futuro da
actividade na baía:
E como é que eu vou trabalhar com duas pessoas , como é que eu vou trabalhar para pegar no barco. Eu quero sair às cinco não saio às cinco, saio às sete, e isso com a gente. Obriga-me a esperar que as pessoas tomem café, para eu ir para o mar. Não tenho condições. Mestre Paulo Jorge
Assim a gente não consegue ir muita vez para o mar, porque a gente vem super cansados, e a gente não consegue ir no dia seguinte. E a conclusão está a chegar a um certo ponto que, se isto continuar assim, eu desisto desta coisa. Não tenho onde cair morto. Que trabalhe é este, um gajo aqui morre com o trabalho. Eu já fui para o mar todo molhado por levar mais uma molhada até à cintura. Estão três na cama de baixa, todos com gripe. Mestre Ricardo
A semana passada tive duas horas. Saí às três da manha e às cinco da manha tive de pôr o barco de volta aqui porque não consegui pô-lo. E foi três vezes assim,
89
chegar ali, para acima, para lá para cá, para lá para cá, e não consegui. Duas ou três vezes, a companha já não podia mais. Mestre Eugénio
A nova situação ressuscitou uma antiga reivindicação da comunidade
piscatória de Porto Formoso: a construção de infraestruturas que facilitassem a
chegada e saída dos barcos na baía, que até ao momento se mantinha como um porto
natural. Esta questão foi levantada por primeira vez há 20 anos atrás, mas agora
cobrava uma importância diferente: as dificuldades dos pescadores eram muito
visíveis e comentadas, e o seu apelo ficava cada vez mais forte. A ameaça de um fim
da actividade começava a ser vista como uma possibilidade real. Para perceber esta
reivindicação temos de ter em conta “a crescente institucionalização, a nível formal e
burocrático, do lugar como povoação e porto de pescas, com uma maior intervenção
dos poderes local e central” (Meneses& Mendes 1996:62), com as correspondentes
consequências negativas (volume de impostos, burocracia) e positivas (sistema da lota
para escoamento do produto). Como afirmam os autores supra citados, “a existência
formal abre também caminho a que se reclame a necessidade de intervenção estatal ou
camarária em aspectos como o melhoramento do porto”.
Eu fui para a secretaria, para o secretário, para o adjunto, para o presidente da câmara , fui para todos e a resposta foi não. Vocês fizeram barcos maiores porque quiseram fazer, foi por que quiseram fazer, foi a resposta deles. Mestre Eugénio
Há quem diga, isso não é da minha autoria, mas há quem diga que eles –os pescadores - quando adquiriram as embarcações já sabiam que o porto de pescas era esse, pronto....a vida é assim...eu não posso...se tenho uma garagem para um automóvel, se vou comprar um camião, eu já sabia que eu não posso por lá o camião. Sr. Emanuel Faria, Presidente da Junta de Freguesia.
Porém, logo desde o início levantaram-se vozes que atribuíam a culpa aos
pescadores, antevendo-se a polémica que iria nascer na freguesia. Perante este tipo de
críticas, os pescadores relembram as promessas do jovem Emanuel Faria em 1997,
quando foi nomeado Presidente da Junta pela primeira vez. Nesse ano, ainda com os
barcos antigos (O Carmélia, o Ave Maria e o São Gabriel) o presidente prometeu o
porto de pesca, mas até 2006 essa promessa tinha-se traduzido apenas num pedido,
feito à Direcção Regional das Pescas, de um estudo ambiental a fim de se construir
uma rampa de varagem. Na verdade, os pescadores acreditavam que os barcos
maiores constituiriam um novo factor de pressão para acelerar o processo, mostrando
mais uma vez a sua capacidade em adoptar intrincados mecanismos de contínua
90
adaptabilidade ao meio. Assim o reconheceu, ainda no verão de 2006, o mestre
Eugénio:
Uma vez que o caso está em andamento, a gente agora faz os barcos maiores, para ver se se consegue um bocadinho mais rápido. Vamos lá ver. A minha ideia foi esta. Até disse ao Ricardo, faz um barco maior, como eu também fiz maior, para ver se as coisas seguem para frente.
Por outro lado, o facto de os barcos terem sido subsidiados por entidades
regionais constituía, para os pescadores, um sinal garantido de que as intervenções no
porto estariam já projectadas, pois doutra forma as políticas aplicadas não seriam
coerentes:
Como é que a Lotaçor ou a Secretária Regional das pescas, como é que dão os apoios para as embarcações maiores, e depois nega amanhar o porto. Se a gente acha-se com qualidade para trabalhar e para melhorar a vida de uma pessoa, como eu, por que é que não arranjam o porto. Se não tinham um porto em condições, então mal por mal eu não fazia o barco. Ia trabalhar de camponês. Mestre Ricardo.
Como assinala Nunes,
Nas últimas décadas, com períodos de escassez aparentemente cada vez mais extensos, com a concorrência do peixe espanhol e a readaptação do sector às condições de modernização impostos pelos modelos supranacionais de gestão dos recursos, os Pescadores continuam, como outrora, a queixar-se de serem esquecidos e desprezados pelos poderes públicos (2008:127)
Nem o aumento no tamanho dos barcos maiores nem os apoios regionais à
construção dos mesmos aceleraram o processo. A demora na definição de uma
estratégia para esta baía revela a falta de consenso dentro do poder regional, que opta
por não intervir num ou noutro sentido. Pelo seu lado, a Junta de Freguesia,
representada pelo seu presidente, Emanuel Janeiro Faria, tem perante este dilema uma
posição ambígua que manifesta a dificuldade em resolver a questão de forma a ganhar
o apoio eleitoral de todos. Se por um lado defende a importância em dotar os
pescadores de novas infraestruturas, por outro lamenta o facto de que nem o Governo
Regional nem os próprios pescadores tenham tido em conta o tamanho dos novos
barcos em relação ao porto existente, e o seu discurso movimenta-se entre ambas as
posições, como de resto acontece com muitos dos porto formosenses. Ao longo das
entrevistas realizadas, quando questionado sobre a sua posição perante a intervenção
91
na baía desviava, sempre que possível, o discurso, para publicitar os investimentos
que estavam a ser feitos na construção de um parque de campismo que poderia
albergar os turistas. Desta forma a Junta aplicava a estratégia da distracção, pondo em
causa igualmente o avanço numa ou noutra direcção da situação do porto e
justificando a não acção à limitação de competências do organismo , derivando assim
as culpas ao poder central. Vejam-se, a este respeito, os seguintes depoimentos:
O governo é que é um dos grandes culpados; cria as condições todas para os pescadores, dá todas as condições, todos os apoios que é necessário para os pescadores que quiserem ter outras ambições, e esquece-se depois , como é que ele vai varar o barco?. E isto não é a junta, eu falo assim porque a Junta de Freguesia é só uma mais valia para elevar o problema, porque não pertence à Junta de Freguesia. Sr. Emanuel Faria, Presidente da Junta de Freguesia
(O Presidente da Junta) Já teve interesse, como ele disse, ele fez sempre conta. Fez conta e nós conversámos que fazia um porto ali, num lado, no outro. Mas ele prefere o parque de campismo. Por causa de que o parque de campismo, dá-lhe mais lucro a ele, a ele e aos fifis, os senhores, que vem aqui para o norte, para a praia linda que a gente temos. E o nosso porto aqui fica sempre para trás. Mestre Ricardo
O sentimento dos pescadores, expresso pelo mestre Ricardo, e de muitos
outros habitantes da freguesia, é que se beneficia o turista em prejuízo dos interesses
dos porto formosenses95. Como reflecte o comentário acima referido do Mestre
Ricardo em Porto Formoso é ainda comum, sobre tudo entre pescadores e lavradores,
que a distinção entre “hosts” e “guests” seja reduzida a uma questão de classe,: os
turistas são percebidos ainda por muitos como “os fifis”, isto é, os senhores da classe
alta, em contraste com a classe média-baixa de muitos dos locais. Embora se assista
hoje cada vez mais ao esbatimento de diferenças sociais entre turista e local ( as
diferenças são de nacionalidade ou culturais, mas cada vez menos de status social) em
Porto Formoso parece ainda perdurar a diferenciação histórica baseada em questões
de classe. Mas, de facto, as diferenças nesse sentido ainda aqui são observadas : o
turista quase sempre parece pertencer a uma classe mais alta do que o local (embora
possa ser só em aparência). Tendo isto em conta, faz sentido inscrever a análise da
relação entre “hosts” e “guests” em Porto Formoso nas teorias que, como indica Silva
(2011:2), colocam o turismo no eixo de desenvolvimento imperialista ocidental e que
o vêem como resultado das relações coloniais entre as antigas metrópoles e as suas
95 Sobre as relações dos locais com o turismo em São Miguel, ver Capítulo 1.3
92
colónias (internas e externas), depois transformadas em <<pleasure peripheries>>
(Nash 1978; Turner and Ash 1976 apud Silva id.). O seguinte depoimento em
reacção às notícias das obras nos esgotos da Praia dos Moinhos é elucidativo, ao
ponto de usar o termo “preto” inscrito nos discursos coloniais:
Um Jornal diário desta semana anunciava que uma senhora que passa o verão na praia dos Moinhos tinha apresentado queixa sobre um esgoto de desagua naquele local. A Câmara da Ribeira Grande mandou imediatamente um técnico para resolver a situação. Os "pretos" que habitam todo o ano no Porto Formoso têm que se amanhar com os esgotos que vão para a Areia dos Barcos e Areia do Meio, além do mau cheiro junto à Ribeira do Lugar. É esta a Câmara que temos. AGUIA | 31/8/05 00:03 (S/I)
Em qualquer caso, porque é que o avanço das obras no porto se tornariam
numa questão tão complexa? A questão da construção de estruturas de apoio para a
prática da pesca no Porto Formoso resultou ser, no contexto do século XXI da
freguesia, um tema altamente sensível para a opinião pública e para os centros de
decisão. Se por um lado se reconhece a pesca como elemento identitário desta
freguesia e em termos mais amplos de toda a região, não se pode esquecer que Porto
Formoso aspira a um futuro de destaque baseado nas suas potencialidades turísticas, e
que a baía natural de Porto Formoso, pela sua beleza natural e pelo “castelo” que ali
se situa, é um dos pilares em que essa potencialidade se baseia. Como já foi referido
no capítulo 3, estas potencialidades levantam entre grande parte dos habitantes uma
forte expectativa, a esperança de que o turismo se torne no novo impulso necessário
para dar ao Porto Formoso o lugar de destaque que merece. Amorim (2008:37)
questiona no seu trabalho se é possível estar-se hoje “perante uma nova cultura
marítima por oposição a uma antiga, consagrado em torno dos “homens do mar”, de
pescadores e marinheiros”
A baía, qualquer turista que chega ali, fica assim parado frente aquilo e diz isso é lindo, qualquer um chega ali a baía e diz isso é lindo. Sérgio Vieira96
Como já foi referido, a passagem de turistas tem contribuído para relançar
positivamente a percepção do meio ambiente e da paisagem partilhada, mas como
adiante veremos esta percepção não deve ser identificada com a percepção dos
movimentos ambientalistas, uma vez que ambos assentam em pressupostos diferentes.
96 Jovem de 30 anos, natural de Porto Formoso, que trabalha em serviços na cidade de Ponta Delgada mas reside na freguesia.
93
Ao mesmo tempo, a paisagem natural do porto é claramente um elemento
diferenciador de qualquer outro porto da ilha, tornando-o exclusivo e único, e
portanto, mais valorizado em termos de visibilidade e potencial turístico. Como
afirma Mel Ziegler (1987 apud Kirshenblatt-Gimblett, 1995:372) “now that it is
easier to go anywhere, it´s harder to really get away”.
Um dos mais importantes recursos utilizados pela indústria turística para atrair
“visitantes” é o desenvolvimento de “performances da memória” , isto é, de
activações de património. Como aponta Lowenthal (1998: 10-11), “millions now
hunt their roots, protect beloved scenes, cherish mementos, and generally dote on
time past”. A recorrência às actividades de patrimonialização têm-se estendido ao
ponto de se multiplicarem por todo o lado, na sequência dos processos
contemporâneos de alargamento da noção de património de que fala Lowenthal
(1998). Esta é, em palavras de Peralta (2006), uma das tendências que marcam a
actual relação com o passado: se no início dos processos de turistificação apenas as
cidades e os grandes cenários históricos activavam o seu património, na actualidade
todas as localidades, mais e menos importantes, procuram reafirmar a sua história
local, enaltecendo o seu património e colocando nele altas expectativas. Assim, o
turismo impõe-se como um elemento de máxima importância na atribuição de valor
ao património local. Ainda em palavras do jovem Sérgio:
Porque não é com qualquer coisa que a gente vai trazer turistas cá. A gente tem de apresentar coisas bonitas e tudo o que é o nosso património . Aquilo (o castelo) é uma das coisas do nosso património que está degradado. Sérgio Vieira
Neste contexto, qualquer intervenção nesta baía levanta ardentes discussões e o
que para os pescadores parecia óbvio e fácil, tem vindo a revelar-se um “bicho de sete
cabeças”. Desde o verão de 2006, e ao longo de todo o processo relativo à
requalificação do porto, as opiniões multiplicaram-se e as tensões cresceram. A
discussão em Porto Formoso desenvolve-se assim em torno a uma oposição de
valores: de um lado, o chamamento dramático dos pescadores de intervir na baía para
permitir a continuidade da sua actividade, que possui um valor identitário essencial
na freguesia; do outro lado, a defesa de projectar a baía em função dos valores
associados a actividade turística, revalorizando o património histórico e natural. A
questão é ainda mais complexa quando se percebe que, uma vez que ambas as
actividades coincidem no mesmo espaço, para a maioria uma opção invalida a outra:
94
construir em cimento as infraestruturas de varagem que os pescadores reclamam,
acaba com as pretensões de patrimonialização do porto como zona histórica e natural;
elevar o “castelo” a património histórico e a baía a património natural, anularia
qualquer hipótese de incorporar cimento na paisagem, o que, por sua vez, teria como
consequência o fim, a médio-longo prazo, da continuidade da pesca como actividade
viva, afectando assim a vida de um grupo significativo de pessoas e impossibilitando
a continuidade de práticas fundamentais no imaginário colectivo da localidade. A
impossibilidade de reconciliação que para muitos existe entre o cimento da rampa de
varagem e a reconstrução do castelo vem mostrar que em muitos casos prevalecem as
visões de ‘congelamento’ associadas aos processos de patrimonialização. Veja-se o
contraste entre a opinião do jovem Sérgio e o mestre Eugénio:
As obras no porto dos barcos é uma coisa que os pescadores precisam, tudo bem, mas se fizessem um arranjo sobre as coisas que estão a prometer, em termos de turismo, nunca mais se podia fazer ali nada com os pescadores , isso é garantido , por exemplo temos ali o antigo castelo, que se fosse remodelado nunca mais podia haver uma rampa de varagem ali perto do castelo. Ou vem uma coisa ou vem outra, se eles optarem pelo turismo, os pescadores vão ter de se apanhar com aquilo que está lá feito, se eles optarem por melhorar a vida aos pescadores é fazer a rampa de varagem e esquecer tudo. Em termos de turismo o cimento estava posto de parte. Acho que é impossível reconciliar as duas coisas ali. Chegavas ali e vias um castelo todo remodelado ao tempo antigo , tudo como deve ser e logo vias um bocado de cimento grande por ali abaixo que era para porem os barcos, achas que ficava bonito? Sérgio Vieira
É tão fácil como isto, a Vila Franca era uma coisa que tinha mais história do que isto aqui, e fizeram a marinha e tudo e mudaram o porto de vez , e é Vila Franca, a cidade mais velha dos Açores. A primeira capital dos Açores é Vila Franca. E porque nesta freguesia tanto problema por um castelo como aquele, aquilo tem jeito de castelo? Mestre Eugénio
FIG. 4-2. Morfologia do porto de pescas e situação do
“castelo” (fotograma retirado do documentário)
Estas duas posições traduzem a desorientação que se percebe na ilha de São
Miguel onde, como foi referido, as directivas sobre o turismo apontam estratégias
95
baseadas na promoção do arquipélago como destino do turismo da natureza, mas onde
se continuam a perpetrar projectos que contradizem este objectivo, como a
requalificação de Vila Franca, a construção em cimento de marginais, o casino, etc97.
Como foi observado até agora, poderá facilmente tirar-se a conclusão de que
em Porto Formoso não se verifica a força consensual que muitos associam aos
fenómenos de patrimonialização (Prats, 2006). A falta de consenso da comunidade
reflecte-se na falta de consenso dentro do poder regional, bloqueando assim qualquer
tomada de decisão. Tunbridge &Ashworth (1996) afirmam que “dissonance is
universal in that it is a condition, whether active or latent, of all heritage to some
degree” (id.:21). A patrimonialização de um produto, segundo os mesmos autores,
implica a escolha de um passado em detrimento de outro, pois existem muitos
passados disponíveis entre os que escolher. A este fenómeno, no qual só alguns
sujeitos poderão rever-se no “produto-passado” escolhido para patrimonialização,
Tunbridge & Ashworth (id.) chamam “disinheritance”. A “deserdação” causada por
processos de patrimonialização nem sempre provoca conflitos, mas:
However, at a simple level, if such identification inconveniences others by denying them free access to, or use of, structures and places which the identifying group regards as their property or space, the conflict may indeed arise. (1996:31)98
Parece este ser o caso da baía de Porto Formoso. Tanto a actividade da pesca
(praticada desde as origens) como a beleza da baía (que dá nome á aldeia) e o castelo
são símbolos identitários da freguesia. A discussão nasce assim em virtude de qual
deste símbolos é mais importante para os seus habitantes e para o seu futuro, isto é,
qual deles deve ser sacrificado para salvaguardar o outro. Tanto os poderes regionais e
locais envolvidos como os habitantes de Porto Formoso se movimentam assim entre
múltiplas opiniões e perspectivas, as vezes contraditórias, que evidenciam diferentes
formas de pensamento, de se perceber a modernidade e o progresso, de se sentir no
presente e de se projectar no futuro. Questões sociais, culturais, laborais e de
identidade complexificam os avanços num ou noutro sentido, e põem em relevo a
profundidade dos factores que intervêm na construção identitária de um local e na sua
mercadorização.
97 Ver capítulo 1..3 98 Este fenómeno é de facto similar à gentrificação, processo pelo qual os residentes mais pobres de zonas com interesse turístico são despossuídos dos seus bens.
96
Do ponto de vista de um pescador, que faz da pesca o seu dia-a-dia, quanto mais infraestruturas melhor. Eu compreendo o ponto de vista deles, mas aqui trata-se de definir o bem comum e não o bem de uma classe. O Regedor | 11/11/06 14:50
Para os pescadores, a reivindicação é a tal ponto fundamental que o futuro da
pesca em Porto Formoso depende da sua concretização. O universo de incerteza em
que as comunidades piscatórias se desenvolvem, devido à dependência de um meio
não controlado como o mar, está em Porto Formoso ainda mais condicionado pelas
próprias condições do porto. Como se não bastasse a cada vez maior falta de recursos
marinhos, a isto junta-se agora a falta de recursos terrestres, isto é, de infraestruturas
que permitam trabalhar em terra. Se para contornar o primeiro problema se podem pôr
em prática estratégias individuais, para resolver o segundo precisam do apoio e
compreensão da população e da intervenção dos poderes regionais. Neste sentido, a
resolução desta questão ultrapassa a sua classe, pelo que a sua actuação fica limitada a
acções de comunicação e argumentação, lançando apelos que insistem na
necessidade de intervenção na baía como condição para garantir o futuro da sua
actividade:
Se não derem mais condições eu acho que isto vai morrendo por ai além. No meu caso, eu tenho uma menina e não vai para o mar. O filho do Ricardo, o Maurício, não sei. Isto para um gajo viver, bem organizado sempre dá para safar, mas não está dando por que eles vão ao mar e as condições do porto não são muito boas, de repente vão um dia ou dois só, por semana, e depois aquilo é muita despesa, sabes como é, aquilo vai-se um dia ao mar e de repente se ganharem seis aquilo é para toda a semana. Isso é uma coisa que se tivesse mais condições tinha mais pessoal a trabalhar aqui em baixo. É muito trabalho para arriar, qualquer rapaz que viesse aqui e visse isto...já vocês viram...isso é uma razão por que vai morrendo isso. Também as pessoas, agora tudo estuda, tudo tem carro, tudo vai para Ponta Delgada, mas também há rapazes que gostam disto, mas estão a fugir por causa daquilo que eu te disse. Mestre Paulo Jorge
Porém, apesar de todos os pescadores sofrerem pela falta de condições, os
apelos desta classe profissional não são feitos de uma forma coordenada nem conjunta,
mas sim a título individual. Intrigada por este fenómeno, sobretudo tendo em conta a
já referida inexistência de atritos significativos dentro desta comunidade, questionei
os mestres sobre quais as causas de não existir qualquer tipo de associação que lhes
permitisse dar mais força as suas reivindicações. O mestre Eugénio, o mais
politicamente activo deles, refere a falta de disponibilidade dos seus colegas, que
97
preferem fazer as queixas na “tasca” do que nas instituições competentes99. Pelo seu
lado, o mestre Ricardo alega o facto de serem apenas 2 embarcações, a sua e a do
mestre Eugénio, as que mais sofrem as consequências, não constituindo uma base
suficientemente forte para criar uma associação. Por último, o mestre Paulo Jorge
menciona a sua falta de tempo, devido à sua dupla profissão, no mar na pesca e em
terra nos cultivos, como factor que o impede de se dedicar a esta causa. Além disso,
este mestre acredita que só o desenvolvimento da pesca desportiva, e não da
profissional é que poderá constituir um argumento de peso a favor do avanço da
obra100:
De ano para ano vai .....pronto , o do São Gabriel, quanto for vivo, vai ter sempre barco, o Ricardo quanto for vivo vai ter sempre barco101, eu também quanto estiver vivo vou ter sempre barco, mas quando acabar esses eu não sei se vai ter outros. Isso eu não sei. A maioria vão se dedicar a pesca desportiva, e aí é que vão fazer o porto, até uma marina para os barcos virem de Ponta Delgada, aí é capaz de começarem a fazer, mas é quando a gente começar a ficar ultrapassada. Mas fora isso , estes pescadorzitos que têm barcos, quando acabar eu acho que não vão ter mais.
Tanto a falta de uma estratégia comum por parte dos pescadores para defender
as obras reivindicadas como a ampla contestação gerada no seio da comunidade
contribuíram para prolongar a situação de impasse, com o consequente agravamento
da situação dos pescadores e do seu futuro. Mas até que ponto a continuidade da pesca
é importante para o resto da população? Sendo esta uma reivindicação ligada a um
grupo profissional, as opiniões dos que não são pescadores dividem-se e multiplicam-
se em numerosas variantes, em apoio ou oposição a eles.
Para os pescadores o que valia a pena fazer ali é a rampa de varagem e não se importam que as pessoas que vem de fora não vejam....não querem saber, eles querem saber da sua vida, e cada um trata da sua pela melhor maneira. Há pessoas que pouco se interessam que venha turismo ou que não venha , querem é viver a sua vida como deve de ser. Há outros que pensam, epá, se viesse turismo isso vai desenvolver mais. Sérgio Vieira
É o objectivo deste trabalho perceber quais são as motivações que se
encontram por trás destas posições, e doutras que surgiram a partir daqui. Em
primeiro lugar, é importante referir que no decorrer do trabalho observou-se que a
maioria dos pescadores não percebe qual o potencial turístico da baía, e portanto não 99 Sobre a importância das “tascas” ou “lojas” entre a comunidade de Porto Formoso, ver Capítulo 2.2 100 Sobre as tensões entre a pesca desportiva e a pesca profissional, ver Capítulo 1.2 101 Como se verá mais à frente, o mestre Ricardo acabou por vender o seu barco.
98
compreende qual a polémica levantada em torno as obras que pedem. Para eles, a baía
é apenas o seu local de trabalho, e não um local digno de se contemplar e capaz de
atrair turistas. Por estes motivos, a consensualização e solidarização com posturas
contrárias resulta extremamente difícil.
Aqui no porto temos pouco ou nada turismo, só temos a fábrica de chá, o chá do porto formoso é um sítio mais turístico que aqui no porto , de resto não temos muito mais do que isso. Mestre Eugénio
A costa norte tem muito para mostrar, e quem entra num barco e passeia ao longo da costa...a gente já esta acostumada a ver isso e a gente já não da valor porque vê isso todos os dias , para a gente é sempre igual, mas quem vá pela primeira vez fica abismado com aquilo. Sérgio Vieira
Neste sentido, é elucidativo a passagem literária incluída no trabalho de Nunes
(2003: 144) da obra Os Fidalgos da Casa Mourisca, de Júlio Diniz , quando um dos
personagens, contemplando a paisagem campestre e os trabalhadores rurais, comenta:
Faz pena ver que espécie de contempladores tem a natureza para estas maravilhas. A indiferença com que estes selvagens encaram tudo isto! Repara, vê aquele labrego passar lá em baixo na ponte; olha lá se ele desvia a cabeça para algum dos lados, ou se pára um momento para gozar do belo espectáculo que dali observa. Olha para aquilo! Selvagem! Pergunta ao Tomé ou a toda essa gente que lá anda em baixo a trabalhar quantas vezes admiraram as belezas de uma noite de luar, vista do alto do outeiro pequeno, ou se o pôr-do-sol lhes produz alguma sensação na alma, a não ser a lembrança de que vão sendo horas da ceia. (...) Esta pobre gente do campo é uma parte integrante dele; não o contemplam, completam-no (1992: 23-24).
Ou dito em palavras do pescador João Manuel (v. pág.80): “A gente vê isto
todos os dias, eu não sei se isto é bonito ou feio”. A beleza é sempre um conceito
subjectivo. Por outro lado, como já foi referido, os pescadores raramente saem da
comunidade, nem no dia-a-dia nem durante as férias. A sua vida desenvolve-se entre
o porto, o mar, e as lojas e tascas da aldeia. Além disso, os turistas que contemplam
a baía costumam fazê-lo desde o miradouro por cima, e é raro descerem até ao porto.
Por estes motivos, o contacto dos pescadores com este fenómeno é praticamente nulo.
Se juntarmos isto ao facto de não verem na baía mais do que o seu espaço de trabalho,
explica-se o cepticismo que esta classe ocupacional sente perante a potencialidade do
turismo.
Por outro lado, não se pode esquecer que a pesca em Porto Formoso, embora
activa, é praticada por um número reduzido de pessoas. Neste sentido muitos
99
habitantes consideram que, independentemente do valor identitário da pesca, não se
justificam investimentos num porto onde “apenas duas embarcações trabalham a
sério”. Além disso, o método tradicional de pesca praticado na zona não permite
maximizar os recursos, e como consequência, os rendimentos vindos desta actividade
não são, em termos globais, significativos para as contas da região. Segundo
Kirshenblatt-Gimblett,
“while persistence in old life ways may not be economically viable and may well be inconsistent with economic development and with national ideologies, the valorisation of those lifeways as heritage (and the integration of heritage into economies of cultural tourism) is economically viable, consistent with economic development theory, and can be brought into line with national ideologies of cultural uniqueness and modernity” (2004: 4).
Desta perspectiva, as obras no porto iriam beneficiar apenas alguns, e por um
tempo limitado, pois a pesca tradicional está inevitavelmente destinada a desaparecer,
não pela falta de condições no porto, mas sim devido à conjuntura e à realidade
regional. Para uma parte dos habitantes, parece claro que a patrimonialização surge
como uma alternativa eficaz para a revitalização de um modelo de vida que
consideram “ultrapassado”. Veja-se neste sentido o comentário do blogger Cavalete e
a réplica do mestre Ricardo:
O FUTURO DO PORTO FORMOSO PASSA PELO TURISMO AMIGO DO AMBIENTE. Não passa pela pesca profissional, pela lavoura ou agro-pecuária. Daqui a 10/15 anos deixa de ser rentável ser profissional da pesca em embarcações de boca aberta devido à crescente concorrência de embarcações maiores, liberalização da pesca (as 100 milhas de protecção vão acabar) e escassez de recursos marinhos. Poderá mesmo haver regulamentação comunitária proibindo embarcações profissionais de boca aberta. Se actualmente existem 4 barcos profissionais, estimo que daqui a 10/15 anos haverá apenas 1 ou 2. Acham mesmo que os adolescentes de 10/12 anos do Porto Formoso querem ser pescadores no futuro? Claro que não. Portanto, vamos dar tempo ao tempo e manter a areia da nossa baia. Nada de rampas de varagem ou cais de acostagem. Além disso, o Porto de Rabo de Peixe fica apenas a 20 minutos de carro do Porto Formoso. Dependendo da dimensão do negócio, um pescador profissional pode sempre viver no Porto Formoso e ter a embarcação no porto de Rabo de Peixe. Cavalete | 8/11/06 22:16 (v. pág. 46-n 51)
Eles dizem o seguinte, vai para as docas102, mas eu gosto de dormir com a minha mulher na cama. Eu gosto de estar em casa com o meu puto, a minha esposa. Com um pequeno cais, facilitava a vida das pessoas. Já não tem de andar na areia. Como eu tenho esta embarcação assim deste tamanho, podia vir a ter uma pequena traineira, um barco cabinado. Eles querem acabar com estas embarcações, com esta raça de barcos, por causa de quererem aqueles barcos
102 Referência aos portos com braços em cimento, como o de Rabo de Peixe ou o de Ribeira Seca.
100
cabinados103. Como é que nós podemos ter um barco cabinado num porto destes, sem um cais, sem uma rampa de varagem. Ajudem o povo!. Não é por ser duas ou três embarcações aqui no porto...Também têm o mesmo direito! Nós temos o mesmo direito! Mestre Ricardo.
A pesca em Porto Formoso pode não ser economicamente viável, mas o seu
valor como símbolo identitário da aldeia é para a maioria incontornável e dificilmente
substituível. Os mestres do mar de Porto Formoso projectam um áurea de sabedoria e
de status que nenhuma outra classe detém, e são respeitados como homens de grande
importância no tecido social da aldeia. Além dos mestres, os pescadores que
trabalham com eles, muitos deles com idades inferiores aos 30 anos, formam um
grémio muito unido e reconhecido na aldeia. Entre os habitantes de Porto Formos
prevalece a ideia de que a aldeia de Porto Formoso sem a pesca não seria a mesma e é
nesse seu valor identitário que reside a sua força, e que mantém a actividade
piscatória como elemento fundamental da freguesia a pesar do seu escasso rendimento
económico em termos globais. Assim, os pescadores angariam apoios entre aqueles
que não concebem o Porto Formoso sem eles.
Assistimos a chegadas dramáticas destes aventureiros do mar ao nosso porto! Estes episódios enriquecem as memórias de um passado recente. O Porto Formoso ficará mais pobre se algum dia deixarmos de ouvir os motores das suas embarcações! A pesca ainda é das poucas actividades económicas do Porto Formoso. Querem acabar com o pouco que temos? Sabendo nós da localização geográfica do nosso porto, só por si vem justificar que se façam melhoramentos de apoio ao nosso porto de pescas. Com as criações de apoio criadas estou certo que em vez de seis embarcações de pesca profissional iríamos ter muitas mais, oriundas de outros portos. O Porto Formoso deve ser uma freguesia virada para o mar. sono1 | 15/1/07 13:19 (v, pág.62-n72)
A este respeito, Paulo Peixoto escreve: As práticas e os objectos quotidianos, por mais ou menos objectificados que estejam, dando expressão àquilo que nos habituámos a chamar de identidade, raramente adquirem um estatuto de protecção e de exibição (um estatuto patrimonial) enquanto preencherem uma função social utilitária. Nessa perspectiva, uma identidade vivida e partilhada é inimiga da formação de um património. A identidade mata o património. Neste caso, dir-se-ia que o momento de atribuição de um estatuto patrimonial corresponde ao reconhecimento da morte de uma identidade (2006:66)
103 Amorim (2008) refere as consequências da lei que obrigou à destruição das embarcações até 9 metros de comprimento, cujos proprietários optaram por receber os subsídios de cessação de actividade. Ao não ser avaliadas as consequências culturais da sua aplicação, pôs-se em perigo “a preservação da nossa identidade cultural, condição primeira para a possibilidade de um turismo de qualidade vingar entre nós” (id.ibid:41-42)
101
É de salientar os perfis dos bloggers que defendem uma e outra postura: O
blogger Cavalete, natural de Porto Formoso mas a residir em Ponta Delgada, onde dá
aulas na universidade, defende o abandono da pesca a favor de um futuro turismo,
enquanto o blogger Sono1, residente de Porto Formoso e tea-maker da Fábrica de Chá
com o 12º ano de escolaridade, defende a preservação da pesca por cima da aposta
no turismo, apelando ao seu valor identitário. Entre estas duas posturas e outras
derivadas destas o impasse estende-se no tempo, enquanto o debate ganha cada vez
mais intensidade entre os habitantes, que discutem no blog da freguesia e reunidos no
miradouro sobre o porto. Interessa para este trabalho analisar quem e porque defende
cada uma destas posições, tentando perceber as motivações que estão por trás de cada
argumento, pois como afirma Peralta:
O património não existe per se, fora de um discurso de valorização e de apreciação que recai sobre um conjunto de bens e referentes simbólicos que se constituem como património. (...) O que é considerado digno de valorização e de preservação altera-se conforme os contextos e conforme os momentos. Portanto o que muda não são os bens em apreço, mas antes a valorização social que sobre eles recai.(...) o que importa é o processo de valorização, não os bens de património em si. (2008: 75)
Assim, na esteira desta proposta, escolhe-se uma discussão presenciada no
miradouro sobre o porto, no verão de 2006, como metonímia do processo de
discussão sobre a construção do futuro da baía. Como se viu, existem em Porto
Formoso numerosas vozes que definem um conjunto de posições com suficiente
representação crítica. Destas posições, admite-se que a reacção dos pescadores e do
Presidente da Junta, cujas motivações e argumentos foram já analisados, foram
previsíveis tendo em conta os interesses económicos e políticos em jogo. Porém, na
referida discussão do miradouro surgiram reacções imprevisíveis e surpreendentes,
uma vez que foram contra aquilo que se esperava à priori. Esta discussão, que passo a
transcrever, teve lugar entre o João Ribeirinha, homem de 72 anos natural de Porto
Formoso e trabalhador da terra, e o jovem César, de 22 anos, também natural da
freguesia e que faz trabalhos temporários na pesca e na terra:
- César: Vão estragar o castelo é nunca mais tem história. Se eles não podem pôr barcos grandes aqui, vão pô-los para Rabo de Peixe ou para Ribeira Quente.
- João Ribeirinha: O que é que aquilo vale – o “castelo” -? Em tempos que criavam porcos em casa, era uma nojeira. É como aquilo ali, é uma nojeira, aquilo não vale nada. Aquilo é a lixeira de Porto Formoso.
102
- César: Isso aí – o “castelo” - tem muita história. Primeiro em tempos de guerra, depois servia para as baleias. Aquilo foi feito em tempo de guerra. Se fores para ali, também há subterrâneos. Eles arrumavam-se todos aí.
- João Ribeirinha: Aquilo -os subterrâneos - não é nada disso, aquilo são barracas de terra. Tu lembras-te do que era isso aí – o castelo -?. O teu pai lembra-se?
- César: E tu?
- João Ribeirinha: Aquilo foi feito para as baleias.
- César: Não foi. Aquilo serviu para as baleias depois disso.
- João Ribeirinha: Depois disso moraram lá dois casais. Criaram lá os seus filhos. Viviam na miséria, e é uma miséria o que está ali. Hoje já não, hoje está tudo bom, graças a deus. Antes não havia dinheiro para calças, e hoje?
- César: Este é o porto mais bonito dos Açores por ser tudo natural. Se eles põem cimento como querem fazer vão desmanchar tudo. Isso era melhor para os pescadores, mas estraga a beleza da baía. O porto já estava aqui antes dos barcos.
- João Ribeirinha: Eu tenho 4 filhos em casa, mas todos eles estão ganhando. Já está melhor , não está? Eu criei-me no campo e trabalhava a terra para ganhar uma migalha de nada. E hoje? não falta nada. As coisas vão evoluindo
- César: Se eles quisessem fazer alguma coisa já tinham feito. Eles não fazem nada, porquê? Eles não mexem em nada porque quem manda neste porto é o castelo, que é património da freguesia. O castelo está aqui há centenas de anos. O governo chega aqui e diz que isto é uma coisa bonita.
- João Ribeirinha: Quem tem a barriga cheia não se interessa com os outros.
- César: Se fizessem um quebra-mar como querem fazer, a vista ficava logo outra coisa, passava a ser uma coisa feita pelo homem. O homem não fazia esta baía, esta é a baía mais bonita dos Açores.
- João Ribeirinha: Mas tudo é feito pelo homem. O homem faz beleza. Tu és novo e estás falando mas não estás falando bem!.
- César: O único que deviam fazer neste porto era renovar o castelo e manter a baía. Mais nada.
- João Ribeirinha: Se fizessem uma rampa de cimento era uma riqueza para o porto.
- César: Uma riqueza? uma riqueza é renovar o castelo, que depois isso está cheio de pessoal aí. A riqueza é o que já está ali feito. Isso depois no verão fica todos os dias cheio de gente de todo o mundo.
- João Ribeirinha: Mas se tu vieres cá e não tens ninguém, nem os pescadores, o que é que vale isso?
- César: Mas se estiver o quebra-mar, que é que eu vejo?? O que foi feito pelo homem e não pela natureza. O que é que mais bonito? É aquilo feito pela natureza.
- João Ribeirinha: Mas tudo é natureza, a aldeia é natureza. Deus é que fez tudo.
Existe a crença e convenção de serem as pessoas mais velhas as mais ligadas à
memória colectiva de uma comunidade e as mais árduas defensoras da importância da
sua manutenção e valorização, seja através de activações patrimoniais ou de outras
103
actividades que ponham em relevo o passado como elemento chave da sua identidade
cultural e da sua continuidade no tempo. Da mesma maneira, é comum antecipar uma
atitude das camadas mais jovens de indiferença ou de desvalorização em relação à
mesma memória. No estudo de caso levado a cabo por Lima (2006), acerca das
Representações de “passado” e de “património” em Portugal, a investigadora conclui
que “enquanto os jovens outorgam um peso notório à importância do investimento no
futuro, os mais velhos defendem o investimento no passado a qualquer custo” (id: 62).
Esta ideia vai ao encontro dos resultados apresentados num trabalho anterior de
Merriman que constitui uma das primeiras tentativas de medir o uso público e as
atitudes perante o passado numa escala nacional em Inglaterra, analisando o valor do
“passado” em função da idade (1991:3): enquanto o grupo mais jovem e de
rendimentos mais elevados, desvaloriza o passado pela ausência de conforto e de
vantagens materiais, os mais idosos e de mais baixos rendimentos são aqueles que
evocam aspectos mais positivos referindo-se não aos aspectos materiais mas morais.
Não parece ser este o caso no Porto Formoso. Depois de se ter presenciado esta
discussão, recolheram-se mais opiniões entre a população idosa de Porto Formoso,
observando que, excepto aqueles cuja actividade estivesse ligada ao turismo ou
tivessem contacto frequente com o exterior da freguesia, estes habitantes estavam em
geral a favor da construção em cimento de infraestruturas que facilitassem o trabalho
dos pescadores, e não da protecção da baia ou da reconstrução do castelo. Quando
questionados com a possível interferência com a beleza natural da baía e a
revitalização da área do “castelo”, situado ao pé do porto, desvalorizavam o valor
desta ruína e insistiam no facto dos pescadores não terem condições para sair à pesca.
Por outro lado, a julgar pelas entrevistas que fiz, entre os mais novos a tendência era a
de defender a não intervenção na área do porto, de forma a manter os símbolos
históricos e naturais da freguesia. Porém, se analisarmos estes depoimentos sob a luz
da tese de Lima, pode manter-se que os jovens outorgam um peso notório à
importância do investimento no futuro, mas deve-se ter em conta que para eles o
futuro é agora o passado, isto é, os elementos históricos e naturais que “desde sempre”
fizeram parte da sua cultura. Como indica Sahlins (1993) a autoconsciência cultural é
um fenómeno característico do fim do século XX, pois agora “Culture - the word
itself, or some local equivalent- is on everyone´s lips (...): all now discover they have
a culture. For centuries the may have hardly noticed it” (id.:378) - e não o notaram
104
porque o conceito de cultura não existia como tal-. Para estes jovens o passado é o
que já foi futuro, isto é, o cimento, as máquinas, as obras, os barcos grandes, tudo
aquilo que antes era progresso, a novidade: não pedem um futuro de coisas novas,
mas antes um futuro em que as coisas antigas sejam preservadas como existiam no
passado. Esta postura pode encontrar-se, de uma forma mais abrangente, em todos
aqueles porto formosenses que de uma ou outra maneira têm tido um contacto mais
frequente com o exterior, quer fisicamente quer através da internet ou outros meios.
Mas além de defender a importância de patrimonializar o porto como símbolo
identitário da paisagem natural e histórica da aldeia, por não existirem em Porto
Formoso outros elementos de identificação colectiva desta natureza, o César parece
ainda perceber o potencial que esta patrimonialização pode ter em termos de atracão
turística e de reinserção estratégica e económica da aldeia a nível local, regional e
global, e é por isso que lhe dá o valor de futuro: o futuro é o passado pelo seu valor
identitário, mas também e sobretudo porque o passado traz turismo, isto é, riqueza,
evolução, modernidade e integração na globalidade. Na mesma linha, Kirshenblatt-
Gimblett (1995) assinala a inter-relação entre património e turismo: “heritage
converting locations into destinations and tourism making them economically viable
as exhibits of themselves” (id.: 371). Por último, o César e muitos outros jovens da
freguesia parecem ter também a consciência do valor do património como elemento
de status, pois como afirma Kirshenblatt-Gimblett (2004), a posse de património é
uma marca de modernidade, enquanto que a pesca não. Os jovens estão assim a
colocar-se numa certa modernidade e numa certa classe, mais aberta e “cosmopolita”.
Não faz sentido destruir, meter cimento ao lado de um castelo, quando aquilo remodelado como deve ser, a meu ver, chamava mesmo o turismo, e até podia ter um guia turístico lá , com histórias antigas. Sérgio Vieira (v. pág. 92-n96)
Tenhamos em conta que o Sérgio , como a maioria dos habitantes jovens de
Porto Formoso observados que partilham desta opinião, trabalha em Ponta Delgada
e/ou está em contacto directo com o modelo de desenvolvimento proposto pelos
centros de decisão, e que liga o turismo às noções de progresso e modernidade. O
Sérgio vê os aviões a aterrar, os autocarros de turistas a encher, as lojas de souvenirs
a vender. O turismo é percebido assim como uma actividade capaz de tornar os
antigos modos de vida novamente rentáveis economicamente. O património cultural,
como elemento mobilizador de turismo, é tido no mundo desenvolvido como uma
105
metáfora de “modernidade”: que uma determinada comunidade possua património e
que este seja activado é como obter uma espécie de carimbo de “progresso” posto
pelos poderes externos. Isto torna o património cultural especialmente frágil e
susceptível às pressões da globalização, prejudicando o equilibro necessário para
preservar este tipo de locais ou actividades de uma forma sustentável (cf. Robinson &
Picard, 2006).
Se o jovem César utiliza principalmente argumentos identitários na defesa da
baía e do castelo, com o jovem Sérgio é bem mais evidente que a valorização da
paisagem natural da baía e do castelo se baseia no que pode trazer em termos de
desenvolvimento económico e não no que representa como elemento identitário.
Pouco se sabe sobre a história da ruína e pouco importa se a ruína foi um forte militar,
uma vigia de baleias, ou uma simples casa. Importa é a sua antiguidade, e é isso que,
segundo muitos habitantes, lhe dá o estatuto suficiente para se impor na baía. Perante
este argumento, os pescadores reagem:
Certas pessoas do Porto Formoso que estão contra (a intervenção), porque julgam que isso é património. Pode ser património mas aquilo está tudo por amanhar, está tudo destruído. Aquilo vai acabar por si próprio. Mestre Ricardo
Pelo menos 50 ou 60 % vão naquela coisa de não fazer o porto, da freguesia. Por causa do tal património que eles dizem que é o castelo. Vá tirar beleza ao porto, estás a perceber. Aquilo está destruído porque foram deixando destruir. E falam naquilo, aquilo para mim não tem tarelo, está por ali. Está arrumando ratos e mais alguma coisa. Mestre Paulo Jorge
É de salientar que ao longo do trabalho de campo e das entrevistas realizadas
entretanto, sentiu-se um grande desconhecimento geral da origem e o uso real desta
construção, há muitos anos em ruínas, ao longo da história104.
Já tinha ouvido dizer que tinha servido, em tempos de vigia às Baleias? Há muitos anos atrás. No meu tempo só me lembro de ser um curral de criação de porcos supõe ser do Sr. José Miguel. Pois espero, já não existir peças de Artilharia. Se ouve-se uma planta do antigamente não tinha duvidas na sua recuperação. A ver vamos . Um abraço do Silva. Silva | 14/3/09 18:26 (S/I)
Lowenthal (1985) fala da impossibilidade de recuperar o passado tal e como era,
pois o passado chega ao presente através de livros, memórias, e objectos preservados
selectivamente desde o início e alterados ao longo do tempo. Além disso, deve-se ter
104 Para mais detalhes sobre a história da ruina, veja-se o Capitulo 2.1.
106
em conta que “o passado não é recordado como aquilo que realmente aconteceu, mas
antes como aquilo que, à luz dos quadros de significação do presente, imaginamos ter
acontecido” (Pereira, 2008:76). Os depoimentos contradizem-se e as versões
multiplicam-se, sem que haja nenhuma informação que seja tida por todos como
verdadeira, nem sequer quando é proferida pelos homens mais velhos da aldeia, e até
os pescadores, que trabalham junto da ruina, mostram o seu desconhecimento. No
entanto, e apesar da falta de consenso entre os habitantes da aldeia, o fantasma em
ruínas do “castelo” mantém o seu poder de encantamento sobre a aldeia. Como
afirma Torrico,
Estamos a assistir à invenção de novos significados, por vezes muito distantes da realidade que se pretende evocar ou recriar. Trata-se, com demasiada frequência, de uma excessiva mistificação neo-romântica do passado, em consonância com um crescente consumo da tradição, geralmente de âmbito urbano.(2006:31)
Mas os habitantes mais velhos ou isolados de Porto Formoso não percebem
estas novas correntes. Para eles, afastados dos centros urbanos e das últimas
tendências, o passado deve manter-se como passado, e o futuro deve continuar a ser
futuro, evitando assim as interferências entre ambas as categorias. O passado não
deve voltar a fazer parte da vida da aldeia, e o futuro deve ser aquilo que sempre foi:
evolução através de obras, de intervenções, de cimento, de infraestruturas, de
mudança e novidade. O João Ribeirinha, desvaloriza o “passado” como tempo
idealizado em comparação com o presente e não mostra nostalgia: em lugar de
idealizar o passado como um tempo melhor, assinala as penúrias a que eram sujeitos
no passado e alude a aspectos menos idílicos, como a criação de porcos em casa e a
subsequente falta de higiene. Ao mesmo tempo, e perante a fervente defesa que o
jovem César faz do “castelo”, o João Ribeirinha desdramatiza a sua história e banaliza
a sua origem, lembrando ao jovem a sua autoridade como pessoa mais velha, e
portanto mais conhecedora da verdade. Para ele a pesca é uma realidade, enquanto a
patrimonialização da ruina do castelo é “uma fraude”, uma invenção de um passado
que nunca existiu, um engano que está a prejudicar o futuro autêntico da freguesia e
que não faz sentido. E não faz sentido porque não só não percebe a dimensão turística
do fenómeno, como não percebe o fenómeno do turismo em si. Os elementos que
podem gerar riqueza e trazer modernidade são para ele os novos barcos, e não o
turistas. Como já foi referido, dado que o fenómeno do turismo é um fenómeno
suficientemente recente, esta diferença nas prioridades pode ter a ver com uma
107
questão geracional e/ou de contacto com o exterior: enquanto uns cresceram rodeados
do aparelho turístico, outros apenas tiveram contacto com ele de uma maneira tardia e
indirecta: O João Ribeirinha não vive na sociedade do espectáculo.
O facto de inventar um passado para o castelo não parece incomodar o Sérgio ,
o César e outros jovens observados, pois eles são conscientes de que o processo de
patrimonialização é um processo de ressignificação, e acreditam que “o património
que é inventado para satisfazer a procura turística não é menos autêntico do que
aquele que é resgatado de um corpus cultural” (Peralta, 2003:87). Não se trata de
questionar a sua autenticidade, pois a patrimonialização nem recupera nem salva,
antes dá uma nova oportunidade como um objecto diferente, como exibição de si
próprio (cf. Kirshenblatt-Gimblett, 1995). A recuperação do castelo é posta nestes
termos por alguns habitantes:
Porque não recuperar o Castelo e construir lá o nosso museu? Quem não gostaria de ver exposto o tear da sr. Elzira Branca, os apetrechos do mestre António sapateiro e do mestre Estevão, os #mechins# de cortar o cabelo e a barba do tio Leonel e do Manuel Vegas? Quando é que haverá uma descentralização da cultura no nosso Concelho? JASRAPOSO | 15/3/09 11:02 (v.pág.49-n54)
Eu comprei aqueles terrenos (junto ao castelo) e disse que reconstrui-a aquilo de borla, para fazer lá um bar à maneira. Mas eles não quiseram. Mestre Eugénio
Neste sentido, Tanto aqueles cujo trabalho consiste em tornar o passado da nação perceptível para o público, bem como aqueles que visitam estes sítios e que consideram que este passado é significativo, reconhecem frequentemente que o processo de reconstrução e reposição da nossa herança é, na melhor das hipóteses, uma verdade parcial (Karp e outros, 1991; Kurin, 1997, apud Gable, 2006: 111).
Desta reinvenção faz parte o uso, por parte dos habitantes, do termo “castelo”
para designar a ruína que nunca o foi. Neste sentido, todos parecem ser conscientes de
que “um património será tanto mais nobre e genuíno quando derivar de uma
identidade dramatizada ou sublimada” (Peixoto, 2006: 65). A escolha do termo
teatralizado “castelo” em vez dos termos “forte” ou “vigia”, mais próximos da história
documentada da ruína, tem uma finalidade concreta: enaltecer o seu passado. É ainda
de salientar que o jovem César, além de usar este recurso de enobrecimento do
património, parece perceber os mecanismos que estão por trás dos processos de
activação patrimonial. Num dos momentos da discussão, o jovem afirma:
108
Se eles quisessem fazer alguma coisa já tinham feito. Eles não fazem nada, porquê? Eles não mexem em nada porque quem manda neste porto é o castelo, que é património da freguesia. O castelo está aqui há centenas de anos. O governo chega aqui e diz que isto é uma coisa bonita.
Durante a discussão o jovem César refere-se continuamente a “eles” , aludindo
às instituições competentes. Como já se referiu, a Junta de Freguesia apenas tem
competências para elevar os problemas à Câmara Municipal de Ribeira Grande, e às
Direcções Regionais de Pesca e Turismo, uma vez que não dispõe de verbas próprias
para viabilizar projectos desta envergadura. Conhecedor desta limitação, o jovem
César fala de “eles” referindo-se aos elementos políticos externos à Freguesia, que
enviam engenheiros e técnicos à aldeia para avaliar a situação e analisar um eventual
investimento. Nas palavras do César, é o Governo quem decide se um objecto é
valioso o suficiente para merecer um investimento a nível patrimonial. Como diz
Barros:
No essencial, para além da utilização turística do património e dos objectos patrimoniais, são sobretudo as elites, detentoras do poder, que possuem o privilégio e capacidade de atribuir valor aos objectos (2006: 183).
O Governo beneficia com os processos de patrimonialização: o património não
serve só os propósitos de identificação colectiva e de rentabilização económica
através do turismo, é também um instrumento para reforçar o programa político, pois
“difunde versões simplistas e essencialistas do passado como um passado feliz, que
servem o projecto político” (Peralta, 2003:86).
Por último, é de assinalar que para o jovem, “quem manda na baía é o castelo”
e não a natureza. Tendo em conta que do castelo apenas restam umas ruinas
abandonadas, e que a natureza da baía é visualmente bem mais impressionante e
exuberante, porque é que o jovem insiste na construção?. As primeiras atracções
turísticas foram os monumentos históricos, que correspondiam à concepção clássica
de património, ligado ao passado, às origens e/ou à grandeza. De todos os
patrimónios (cultural, imaterial, cultural, etnológico, natural) o património histórico
fez sempre parte dos programas políticos e internacionais de desenvolvimento e
gozou sempre do mais alto status. Porém, como reacção aos processos de globalização,
começaram a aparecer movimentos culturais e sociais que visavam o reconhecimento
da diferença e da particularidade. Neste contexto começam a aparecer na década de 70,
109
movimentos académicos a favor da salvaguarda do património cultural, culminando
no enquadramento legal do Património Imaterial na Convenção da UNESCO de
Outubro de 2003 , artigo 2 (cf. Agudo Torrico e Brito, 2006 ). O reconhecimento
público do património imaterial, que pressupõe, em contraste com o conceito clássico
de património “concepções mais plásticas de cultura” (Silva, 2011:4), permite
repensar os processos de patrimonialização como um instrumento para dar voz a
minorias. No entanto, não se deve pensar que o património histórico perdera
importância. Apesar destas novas tendências os monumentos que vêm do passado,
quer estejam preservados quer em ruínas, continuam a assombrar: em detrimento da
actividade da pesca, o jovem defende o valor histórico do “castelo”, em consonância
com a tendência que sobrevaloriza o património histórico-artístico sobre o património
cultural ou etnológico Do seu depoimento, podemos concluir que quanto mais
“passado” tiver o “castelo” mais importante é a sua patrimonialização, pois como
indica Kirshenblatt-Gimblett, (1995:370) “the attribution of pastness creates distance
that can be travelled”. Neste sentido, Torrico afirma:
Nem em todos os lugares, nem num mesmo tempo cronológico, se consideram como património os mesmo referentes. Todavia, parece existir unanimidade na procura de justificações para a patrimonialização da variável tempo, no seu sentido histórico (passado): é quase impensável aplicar formalmente o conceito de bem cultural a uma obra de presente ou passado imediato (2006: 22).
Perante a insistência do jovem César no valor histórico do “castelo”, e como
polo de atracão turística e gerador de futuras receitas, o João Ribeirinha responde
cristalinamente: “Mas se tu vieres cá e não tens ninguém, nem os pescadores, o que é
que vale isso?”105.
A reflexão esclarecida dos “informantes” dispensa muita da que se tem feito
em literatura antropológica, e que muitas das vezes resulta redundante nestes temas.
Apesar do João Ribeirinha não estar muito familiarizado com o conceito de
património e de indústria turística, parece ter acertado em cheio numa das
controvérsias atuais em torno das questões de patrimonialização. Tem-se verificado
que as activações patrimoniais podem ter como consequência a conversão dos espaços
onde estas são levadas a cabo em “museus vivos”, isto é, em aldeias vazias (através de
105 A este respeito, Torrico refere a condição paradoxal do património etnológico, que é “categorizado com frequência como “património modesto” ou “património menor” face ao grande património histórico-artístico-monumental, quando boa parte dos referentes identificativos do colectivo são tomados precisamente desta categoria” (id. ibid.: 28).
110
processos de gentrificação106), ruas silenciosas, portos sem barcos, cidades sem
padarias, casas sem barulho. No caso de Porto Formoso, manter o património material
significaria retirar os barcos do porto, o que resultaria numa mudança importante da
paisagem histórica da aldeia, pondo em causa o património imaterial107 que este porto
alberga.
A discussão em torno deste tópico intensificou-se quando, devido ao
prolongado impasse em que mergulhava a baía, começaram a aparecer os primeiros
sinais claros de declínio da comunidade piscatória de Porto Formoso.
4.2 Revisitação do trabalho de campo. Verão de 2007
Como aponta Hutchinson (1996), as revisitações permitem-nos mostrar o que
mudou, tanto no observador e nas suas premissas como na comunidade. Por isso o
antropólogo deve voltar: estas revisitações no trabalho longitudinal historizam o
presente e o passado, pois ajudam a perceber o que era conjuntural no primeiro
trabalho.
Quando voltei no verão de 2007 a situação ainda se encontrava num impasse.
Nada tinha sido decidido nem feito no espaço da baía. Aquele ambiente de esperança
que senti entre os pescadores no verão anterior tinha-se dissipado, à força de golpes
de realidade. A falta de intervenção no porto tinha feito os seus estragos entre a
comunidade piscatória de Porto Formoso. O mestre Paulo Jorge estava emigrado nas
Bermudas: o custo das licenças, problemas de fiscalização, e dificuldades em sair ao
mar tinham causado uma situação económica insustentável, e a emigração para as
Bermudas aparecia como a única forma de recompor a balança, enquanto o seu barco
se mantinha varado na areia, O seu pai, o mestre Américo voltou a pescar em
pequenos barcos de pesca desportiva emprestados. Pelo seu lado, o mestre Ricardo, o
mais ambicioso de todos, acabava de vender o seu barco e tinha começado a trabalhar
na construção da SCUT que se inauguraria uns anos mais tarde. Quando o entrevistei,
falar do seu barco era quase um tabu, e o pouco que falou foi com lágrimas nos olhos.
Segundo ele, foi devido à falta de uma boa companha que ele teve de vender o barco:
os jovens não apareciam para varar os barcos. Um ano e meio depois, dos barcos
106 Sobre processos de gentrificação, ver , p.ex, o projecto “Castelos a Bombordo” de M. Cardeira Silva et al., disponível em http://castelos-a-bombordo.tiddlyspot.com 107 Como diz Kirshenblatt-Gimblett (2004: 3) “in contrast with the tangible heritage protected in the museum, intangible heritage consists of cultural manifestations (knowledge, skills, performance) that are inextricably linked to persons”
111
novos o único que se mantinha activo era o do mestre Eugénio. Além de contar com
uma companha estável e “fiel”, o Eugénio teve dinheiro para investir num trator com
o qual conseguia pôr o barco na água. Se para alguns habitantes esta nova situação era
mais um motivo para não investir no porto, para outros era um motivo ainda mais
forte para acelerar a melhoria das condições no porto.
O ovo ou a galinha!
1.Devido às más condições de trabalho alguns marítimos do Porto Formoso, estão a abandonar a sua actividade.
2 Porque alguns pescadores do Porto Formoso estão a abandonar a actividade, o Governo Regional, não deve melhorar as condições de operacionalidade do Porto.
O poder instalado e quem tem responsabilidades na matéria, prefere a segunda hipótese. O investimento é zero e não se mexe uma palha!
Mas o mais preocupante de facto é ser pouco aliciante para um jovem, iniciar-se no mundo do trabalho como pescador, porque não existem no Porto Formoso as condições mínimas, para se exercer a faina da pesca! JAGPacheco108 | 6/12/06 10:04
Mas perante esta nova realidade, entre aqueles que defendiam obstinadamente
a não intervenção e os que proclamam a sua necessidade urgente , surgem cada vez
com mais frequência aqueles que procuram uma solução intermédia que
consensualize ambas as actividades, permitindo a continuidade da pesca e integrando-
a na promoção de Porto Formoso como destino turístico diferenciado numa região
com cada vez mais diversidade de oferta. Neste sentido, Santana (2006) propõe
estratégias alternativas que permitam conciliar ambos os aspectos:
“o crescimento de uma oferta, teoricamente independente dos operadores turísticos, combinando uma ampla variedade de produtos culturais – pequenos e flexíveis - que possibilitam a sua adequação à procura e a sua compatibilização com tarefas produtivas nacionais” (2006:175).
Na sua obra mais conhecida, MacCannell (1976) analisou o turista partindo de
um ponto de vista estruturalista109, afirmando que este encontra a motivação para as
suas deslocações no desejo de recuperação mitológica das estruturas tradicionais que
conferiam à vida um sentido de totalidade. Se se tomar por válida a visão que propõe
108 Licenciado em Engenharia Agrónoma , e natural de Porto Formoso, onde reside, é o actual proprietário da Fábrica de Chá de Porto Formoso, e fundador da Confraria do Chá de Porto Formoso, da qual é Confrade-Feitor. 109 “A argumentação de MacCanell (1976) foi duramente criticada por Cohen (1988) e outros, que defendem que muitos turistas estão apenas interessados no mero divertimento, não pretendendo recriar estruturas através de mitos” (Peralta, 2003:89)
112
para os turistas, , a pesca, como prática ancestral e singular, faz parte destas estruturas
tradicionais que provêm de um tempo e um mundo pré-moderno e às que o turista
deseja aferrar-se na procura de referências simbólicas que lhe foram tiradas pela
modernidade. O turista, perdido na incerteza da actualidade, luta contra a “falsidade”
do presente em que está inserido em busca do “outro autêntico”, procurando encontrar
nesse processo o “eu autêntico” (Selwyn, apud Peralta 2003:89 ). A autenticidade,
como sublinha também Gable (2002), é uma obsessão da modernidade e os turistas,
como um dos exponentes dessa modernidade, privilegiam-na, procurando os lugares
desprovidos dos artefactos que os rodeiam no seu dia-a-dia: a pobreza, a cultura
“primitiva”, a ruralidade são características apreciadas pelo turista, pelo contraste
com a sua realidade que seria urbana, rica, sofisticada e moderna. Assim, perante a
visualização do fim da pesca na baía de Porto Formoso, são cada vez mais as vozes
que se levantam na defesa da pesca como elemento de autenticidade capaz de
outorgar ao local um espírito especial e mágico.
Porto Formoso, ano de 2030. O autocarro parou em frente ao Jardim, o grupo de turistas nórdicos ainda não arranjara ângulo para apanhar a baia numa única foto. E o guia já começara a lengalenga habitual: neste Porto que dá o nome à Freguesia, existiu caça à baleia até aos princípios do século XX. Enquanto que a pesca profissional se prologou até ao princípio deste século XXI. Actualmente a população dedica-se ao sector terciário e ao rendimento m …..Penso eu de que os turistas gostam de ouvir falar de História e Paisagem, mas gostam de conhecer as actividades económicas com destaque para as tradicionais, pesca e a lavoura inclusive. Gostam ainda mais de provar os produtos produzidos na Região. Estas actividades também podem ser amigas e compatíveis com o ambiente, a pesca artesanal mais do que a pesca industrial. JAGPacheco | 10/11/06 10:11 (v. pág. 111-n108)
Mas como compatibilizar estas duas actividades? É possível dar melhores
condições à pesca sem alterar a paisagem da baía?. Quem acredita que é possível,
propõe soluções de tão complexa aplicação que soam irrealistas. O jovem Sérgio
propõe pôr máquinas na baía a retirar areia uma vez por mês, de forma a facilitar a
varagem dos barcos. O presidente da Junta, pelo seu lado, fala da possibilidade de
haver uma marinha amovível que desse para pôr e tirar, segundo a época turística.
Outros como o blogger Cavalete ou o velho Adolfo propõem limitar a pesca à vertente
desportiva e adoptar os barcos de pesca profissional para receber turistas que possam
“serpentear entre pequenos ilhéus, visitar grutas, contornar cabos, descobrir pequenas
enseadas, observar aves marinhas” além, claro, de ter a possibilidade de observar os
peixes:
113
Eles (os peixes) são mais rentáveis vivos. Se os homens pensaram nisso. Além de conservarem, ainda põem a explorar isso. Eu conheço aí empresas que vendem o mesmo tubarão, a dois milhões de turistas por ano. Adolfo (v. pág.59-n66)
Como já se referiu no capítulo 2, a pesca turismo é uma das apostas claras na
estratégia de desenvolvimento turístico de São Miguel desenhada pelo poder regional.
A polémica aqui surge em torno da folclorização da pesca, isto é, a sua transformação
num espectáculo de si próprio, deixando assim de constituir um elemento de
autenticidade e de cumprir a sua função original. A este respeito, Paulo Peixoto
escreve:
As práticas e os objectos quotidianos, por mais ou menos objectificados que estejam, dando expressão àquilo que nos habituámos a chamar de identidade, raramente adquirem um estatuto de protecção e de exibição (um estatuto patrimonial) enquanto preencherem uma função social utilitária. Nessa perspectiva, uma identidade vivida e partilhada é inimiga da formação de um património. A identidade mata o património. Neste caso, dir-se-ia que o momento de atribuição de um estatuto patrimonial corresponde ao reconhecimento da morte de uma identidade (2006:66)
Existem numerosos casos deste fenómeno quando provocado pela chegada do
turismo aos portos. Veja-se o caso de Zambujeira do Mar, assinalado por Mendes
(2008: 193) , onde o porto passou a ser usado, quase exclusivamente “para fornecer os
restaurantes locais”. Sobre este fenómeno, encontra-se no blog o seguinte comentário:
Quem chega á cidade de Aveiro para além dos deliciosos ovos moles, poderá encontrar um excelente enquadramento paisagístico, são os “moliceiros” encostados na ria de Aveiro. Seria no meu ponto de vista mais interessante chegar á ria e ver os moliceiros em plena actividade, do que chegar e ver, encostados para o turista tirar umas fotos. sono1 | 7/12/06 11:38 (v, pág. 62-n72)
Apesar de serem numerosos os casos em que os processos de
patrimonialização transformaram o objecto/sujeito patrimonializado numa exibição
falseada de si próprio (e às vezes até numa sátira exagerada), acredita-se que é
possível harmonizar património e identidade “viva”. Para tal é determinante lembrar
que o património inclui agora também as pessoas (e/ou o que fazem) e por isso as
implicações dos processos de patrimonialização ganham uma outra dimensão. Como
refere Brito (2006), tendo em conta o capital humano que está em causa, as decisões
deverão ser tomadas tendo em conta todos os elementos sociais e económicos
implicados, pois o objecto do olhar é agora sujeito:
114
Com o património imaterial as escolhas deixarão de ser exclusivamente exógenas. Têm de ser conduzidas sob novas formas de colaboração, por aqueles e com aqueles que o produzem e o detêm. (2006:51)
Sobre este tema veja-se por exemplo o apelo lançado pelo presidente da
cooperativa de Pescadores “Porto de Abrigo” Liberato Fernandes:
A pesca turismo não pode ser transformar o pescador numa espécie de figura do folclore: o turismo deve envolver os pescadores como eles são. Também porque o turista que vem, vem para conhecer uma realidade que é a que existe cá, e que seguramente é diferente da parte continental, onde se pratica uma pesca muito mais industrializada e intensiva.
Os pescadores revêem-se nesta declaração, pois se para eles é positivo chamar
o turismo para as suas embarcações, como de resto já fazem pontualmente110, esta é
apenas vista como uma prática informal que visa complementar a sua actividade
principal, que continua a ser e assim querem que seja, a pesca profissional.
Mas em Porto Formoso consensualizar posições não é fácil. Dois anos e meio
depois do incidente que destruiu os barcos, continuava a não existir uma proposta para
a baía que consensualizasse todas as posições. Perante esta situação, o poder regional,
ele próprio com muitas dúvidas sobre o caminho a seguir enquanto ao futuro da ilha111,
decide não decidir: não querendo arriscar inimizades, mantém o silêncio e deixa o
tempo passar. Se os defensores da não intervenção se mantêm tranquilos, embora
atentos, os pescadores, frustrados, vêem-se cada vez mais prejudicados.
4.3 Nada será como dantes112. Reacções à primeira apresentação do projecto de
requalificação do porto. Dezembro de 2007.
Uma coisa é certa, a partir de agora nada será como dantes e esta fotografia nunca mais será igual. O Regedor | 06/12/07 01:14
Em Dezembro de 2007 começam a surgir nos meios de comunicação,
nomeadamente na RTP Açores e no jornal Açoriano Oriental, as primeiras notícias
acerca do projecto na requalificação da baía de Porto Formoso. Segundo as
informações da altura, o projecto envolveria a recuperação do castelo, novos acessos
ao porto, um pequeno porto para barcos de pesca e outro para embarcações de recreio. 110 Foram identificadas e reconhecidas práticas turísticas nos barcos, mas apenas de carácter informal, isto é, para amigos ou conhecidos e sem que sejam declaradas.. 111 Ver capítulo 1.3 112 Título do post colocado pelo Regedor no blog no dia 06/12/2007.
115
Um mês antes, tinha ainda sido publicada no blog A Casa da Mosca uma proposta
privada para a construção de um aldeamento turístico de golfe projectado para a
mesma aldeia (ver imagem 3-18, capítulo 3). Entretanto, outras obras começavam
também a ser feitas na praia dos Moinhos. Depois de um longo impasse, parecia que
as coisas começavam a mexer em Porto Formoso.
Estas novas informações, embora ainda muito vagas, provocaram uma
intensificação da discussão pública, tanto no blog da Casa da Mosca como nos
espaços de convívio da aldeia. Tendo em conta que o último investimento de carácter
público foi a construção da escola primária, na década de 50 do século passado, a
apresentação e/ou projecção de todas estas obras provocaram uma pequena revolução
na aldeia. É importante salientar que tanto o projecto de requalificação da baía como
o da praia dos moinhos foram divulgados através dos meios de comunicação regionais,
pelo que durante vários meses o Porto Formoso fez parte das manchetes jornalísticas e
televisivos dos Açores, ganhando assim uma posição de destaque que nunca tinha tido.
Esta nova atenção já era só por si suficientemente importante para gerar uma nova
vaga de optimismo entre grande parte dos habitantes da freguesia: perante o
imobilismo qualquer sinal de mudança é recebido com esperança e para muitos
habitantes “intervenção”, isto é, obras, é sinónimo de progresso e evolução, de
afastamento do passado e de integração nas redes do mundo global.
O cenário que se avizinha é de optimismo e também sinónimo de que o futuro vai finalmente chegar ao Porto Formoso. Há algo de positivo no ar. Já ninguém conseguirá travar a mudança e deixaremos de ser a freguesia menos privilegiada do nosso concelho. O PROGRESSO TAMBÉM VAI PASSAR NO PORTO FORMOSO. JÁ NÃO ERA SEM TEMPO! JASRAPOSO 7/12/07 21:02 (v, pág.49-n54)
Esta obra do governo é boa e tem a intenção de apoiar o Porto Formoso para o desenvolvimento que vai ser bom para todos. O Porto de Recreio vai ser o único da costa norte, o castelo vai ser o primeiro forte recuperado e os pescadores vão ter melhores condições de trabalho. deus2deus | 8/12/07 16:35 (S/I) Acrescentaria eu que este investimento poderá colocar o Porto Formoso na alta rota do iatismo e da náutica de recreio internacionais. aguia | 8/12/07 17:39 (S/I)
De alguma forma, este projecto significava que os interesses dos pescadores - e
de outros habitantes- tinham-se sobreposto aos interesses do turismo: o Governo
estava a dar um sinal. Mas não se pode esquecer que o Porto Formoso sai de uma
116
letargia de muitos anos de inactividade e falta de atenção. Por esta razão muitos
encaram com cepticismo estes anúncios: depois de tanto tempo, porque haveriam de
acreditar que agora era de verdade?. Além de não acreditar “até ver”, surge ainda um
outro problema. As primeiras notícias apontam para projectos que, como vimos, para
muitos não contemplam nem se adequam à realidade local nem regional. Se por um
lado questionam a viabilidade destes projectos a longo prazo, questionam acima de
tudo, o risco de não se respeitarem as características genuínas e diferenciadoras de
Porto Formoso, perdendo assim a possibilidade de sobressair num mundo cada vez
mais homogeneizado. Porém, não se deve confundir esta postura com uma postura
antiglobalizante: ao contrário do que é habitualmente interpretado, a progressiva
valorização da diferença através da exaltação do património local não é uma reacção
contra a globalização, mas antes faz parte dela e está integrada na própria dinâmica
global. Não se trata aqui de uma mera sobrevivência de resíduos culturais de
sociedades tradicionais no presente, mas sim de um processo de re-tradicionalização
através do qual o local se posiciona no mundo contemporâneo (Peralta, 2006),
fazendo finca-pé nas suas diferenças e esbatendo as suas coincidências. Esta
tendência é motivada pela valorização pública da localidade no palco global, e que
resulta da interpretação, cada vez mais comum, da exposição de património como
símbolo de modernidade e progresso.
CAROS AMIGOS DO PORTO FORMOSO… Sejam realistas… não caiam em ilusões! Vocês acham que alguém vai fazer alguma coisa de "grande" no Porto Formoso!!??? Depois de tantos anos, depois de tantas promessas, como podeis permanecer tão crentes!!! Um campo de golfe!!!!!! Para quê!? Para quem? Uma marina!!!!!! Para quem!? Será que os iatistas vão atracar no Porto Formoso? E depois de atracados vão fazer o quê!? Dormir aonde!? Comer aonde!? Será que o Porto formoso e arredores têm condições para satisfazer "Donos de iates"!? ??? E os iates??? Vão vir só de Verão!???? Ou será que o Vento Norte do nosso longo inverno vai facilitar a estes Senhores a escolha destas paragens!??? ACREDITAREMOS NESTAS OBRAS, SÓ DEPOIS DE ESTAREM FEITAS! JBSerra | 14/1/08 13:12 (S/I)
É a isso que chamam de desenvolvimento?! Eu chamo retrocesso. Um campo de golfe – sabem quantos campo de golfe existem em destinos muito mais baratos do que os Açores? Milhares. Uma marina no Porto Formoso e a freguesia, que tanto prezo teria que mudar de nome, deixaria de ser a baía mais bonita da ilha para ser apenas mais uma das milhares que estão no Atlântico. Aliás se isso acontecesse, espero muito bem que não, os Açores teriam que mudar de nome, tipo Madeira II ou mesmo Algarve III. Jordao Farias113 | 9/11/07 09:22
113 Natural da Ribeira Grande, onde reside, trabalha na indústria do Turismo.
117
Esta é no fundo a discussão que se trava a nível regional e que foi analisada no
capítulo 2 desta tese. A falta de coerência que se têm notado nas acções tomadas pelos
poderes regionais no que toca ao desenvolvimento turístico surge da dificuldade em
conciliar dois objectivos: por um lado, diferenciar os Açores do “mundo” como
destino para o turismo de natureza (com vulcões, falésias, baleias, etc) e mar (na sua
vertente “pesca” antes do que praia); por outro integrar-se nas correntes globais de
turismo, com os cruzeiros, casinos, marinas e marginais. O primeiro objectivo
restringe a capacidade de atracão a um tipo determinado de turistas, limitando o nicho
de mercado para quem está dirigido. Mas ao mesmo tempo mantém as outras
actividades económicas dos Açores em primeira linha de importância. O segundo
objectivo procura ampliar o nicho de mercado potencial, de forma a rentabilizar ainda
mais as capacidades de captação turística da ilha, mas assim os Açores põem-se em
concorrência directa com destinos próximos como a Madeira ou o Algarve, que além
de contar com uma longa tradição turística, são destinos mais baratos114 . O
desenvolvimento de infraestruturas turísticas mais abrangentes através de
investimentos públicos pode ainda delegar para segundo plano actividades
importantes no arquipélago como a lavoura e a pesca.
Em Porto Formoso ninguém parece duvidar de que o “progresso” não pode ser
travado, mas nem todos concordam sobre o modo como esse progresso deve ser
concretizado. Como já foi referido aquando da análise da discussão entre o jovem
César e o velho João, se para uns o futuro assenta no querer fazer apagar o passado
para outros o “verdadeiro” progresso deve ter um profundo respeito pelo passado. No
fundo o que se está a discutir aqui são dois modelos de desenvolvimento, dois
caminhos possíveis para integrar esta localidade nos circuitos globais através da sua
modernização. Mas é a “modernidade” a valorização do passado ou o afastamento do
mesmo? Museus ou cais? E ainda mais: qual é esse passado de que se fala em Porto
Formoso? Pesca ou história? O Homem ou a Natureza?
Tenho medo desta palavra "Progresso" pois ainda é muito utilizada para convencer o povo de que estamos atrasados e temos por isso de avançar e seguir os exemplos de outros povos, outras sociedades. Progresso ou retrocesso? Filipe Tavares 115| 30/11/09 14:52
114 Sobre tudo devido aos custos das viagens de avião, pois como já foi referido esta rota é apenas operada pela companhia SATA. 115 Natural de Ribeira Grande, mas frequentador do Porto Formoso, sobre tudo nas épocas estivais. Hoje com 31 anos, é técnico de som e vive em Lisboa, a partir de onde trabalha em diversos projectos
118
O que seriamos, nós hoje, se não tivesse havido progresso? Se reparamos bem olhando para o céu, o que víamos há dois séculos atrás!....Alguns passarinhos, moscas e outros parasitas!....Hoje vemos os mesmos e mais!... Aviões, foguetões a transportar sabe-se lá o quê?...Veja-se só até já foram a Lua!...Que mais quase a olhos visto se vê satélites e até "Ovnis."? Se olharmos para o mar há muitos séculos atrás o que víamos?... provavelmente o imenso do seu infinito Oceano!....Hoje vemos grandes transatlânticos, uma grande peripécia de submarinos, grandes frotas, vasos de Guerra, sei lá que mais?....Se olhamos à nossa volta, hoje e comparando com um século atrás o que temos?....Vejamos só o conforte, o automóvel, as boas estradas e as nossas bonitas casas e muito mais!....E há muitos muito séculos?.... A parra da figueira, para te cobrires, a barraca para te esconderes e defenderes dos grandes devoradores, que eram os animais!....Desde que o homem descobriu o fogo foi o progresso da humanidade. O progresso tem contribuído para tudo, de bom, e mau, do que temos hoje. Viva ao Progresso. Silva| 30/11/09 21:55 (S/I)
4.4 Eis o projecto!
As múltiplas reacções que estas questões suscitaram no decorrer do trabalho de
campo explicam o porquê da dificuldade em encontrar um projecto que consensualize
pescadores, outros habitantes, e poderes de decisão. Tendo em conta os interesses e as
ideologias envolvidas, a irreconciliabilidade de posturas perante o projecto
apresentado era inevitável. Mas mais do que o projecto em si, o que criou uma nova
onda de indignação foi a falta de consulta pública, que muitos aguardavam, antes da
apresentação em Setembro de 2008 do projecto definitivo e do lançamento da
primeira pedra.
Pior que tudo isso é que nem a população nem a Junta de Freguesia foram ouvidas sobre o projecto aprovado. É o que se chama QUERO, POSSO E MANDO próprio das civilizações não democratas aguia | 24/9/08 22:42 (S/I)
Dada a importância desta obra para o desenvolvimento estrutural da freguesia, dado o orgulho ou mesmo amor que os portoformosenses têm para com a sua baía, não está correcto que não tenha havido uma consulta pública antes da apresentação definitiva do projecto. A política precisa, urgentemente, aproximar-se das pessoas, porque ela existe para servir as pessoas.
Em todo o caso, neste momento importa é que as obras respeitem a beleza natural da baía, sirvam os pescadores e impulsionem o desenvolvimento do Porto Formoso, de uma vez por todas. O Regedor | 24/9/08 13:49
portugueses e internacionais. Como se verá mais a frente, é um dos dinamizadores do movimento ambientalista SOS Porto Formoso.
119
O projecto aprovado acabou por ser bastante simples: incluía dois braços de
cimento, um mais comprido à direita, com uma rampa de varagem (supostamente para
os pescadores profissionais) e outro mais curto, à esquerda (supostamente para a
pesca desportiva). Sobre as ruinas do castelo, o projecto simplesmente omitia
qualquer intervenção:
FIG. 4-3. Detalhe do projecto aprovado e apresentado em
Setembro de 2008 (cedida pelo Regedor)
Para os pescadores a falta de consulta pública não era um problema, pois
independentemente do que fizessem sempre seria melhor do que não fazer nada. O
mesmo aconteceu com aqueles que apoiavam incondicionalmente os pescadores,
reclamando uma melhoria nas condições do porto, e com aqueles para os quais as
obras no Porto Formoso era em qualquer caso sinónimo de progresso. A indignação
sentiu-se sobre tudo entre aqueles que defendiam a necessidade de intervir com a
máxima sensibilidade para com esta paisagem, tão susceptível para muitos dos
habitantes da aldeia. O que eles reclamavam era, no fundo, “a sua participação num
processo - o de alteração da sua paisagem- do qual se sentem afastadas e incapazes de
controlar” (Mendes, 2008: 204).
A apresentação do projecto final para a baía chamou também a atenção de
alguns movimentos ambientalistas, com destaque para o movimento SOS Porto
Formoso, que nesse mesmo verão tinha estado a contestar as obras projectadas para a
praia dos Moinhos. Mas é preciso salientar que os movimentos locais de defesa da
paisagem e aqueles outros de organizações ambientalistas não se fundamentam nem
em pressupostos nem em objectivos iguais. Como indica Prado (2003: 220) no fundo
estamos diante de dois códigos de relacionamento com a natureza: o tradicional/local
e o da ideologia ambientalista de protecção.
120
Vamos então por partes. Em relação à forma em que os locais se relacionam
com a natureza, nomeadamente na baía, Mendes afirma que
As populações locais reagem essencialmente à alteração da paisagem que entendem como sua e ao facto dos seus posicionamentos individuais e/ou colectivos não serem considerados pelos novos agentes e pelas políticas a partir do centro(i.e o governo nacional e o da União Europeia) (2008:204)
Para aqueles habitantes de Porto Formoso preocupados com as obras da baía,
o valor desta paisagem pouco ou nada tem a ver com os princípios ambientalistas.
Esta paisagem é sua, tanto mais quando é reconhecida por todos como símbolo da
freguesia, à qual dá nome. Casualmente esta paisagem é principalmente natural e daí
coincidirem com as reivindicações dos grupos ambientalistas. Mas poderia não sê-lo e
ainda assim ser defendido por parte da população: o valor dele recai no seu
simbolismo, que faz dele uma paisagem “sagrada” e daí a indignação perante a falta
de controlo sobre o seu futuro. Segundo as obras avançam e as máquinas entram em
acção ouvem-se cada vez mais entre os habitantes comentários do tipo “já não
reconheço o Porto Formoso”.
FIG. 4-4. Obras na baía: Máquinas a trabalhar com a ruína
do castelo ao fundo (cedida pelo Regedor)
As obras na baía são repudiadas não por ser um atentado contra a natureza,
mas por ser um atentado contra o seu símbolo, contra a paisagem que funcionou
sempre como um elemento de identidade, e nesse sentido
Quando a Natureza faz de uma paisagem natural uma imagem simbólica de uma freguesia, aonde o mar estende todo o seu espaço na nossa visão, onde as rochas bordam de uma forma tão simples a nossa concentração, digo eu, para quê essa OBRA!? Futuro!? Propaganda Política!? Com essa obra, o Porto Formoso ficará mais turístico, mais científico...mas muito menos contemplativo, pelo menos por
121
mim. Vai-se uma das minhas imagens inspiradoras, ficará para muitos uma paisagem incompleta. falange116 | 16/11/08 13:10
Como já foi referido as reacções externas mais significativas perante a situação
de Porto Formoso tem-se manifestado através do grupo crítico SOS Porto Formoso.
Este movimento faz parte de um movimento maior chamado SOS Costa Norte. O
movimento critica o que eles denominam “crimes ambientais”, isto é, as intervenções
em cimento levadas a cabo em diversos lugares da freguesia, a destruição da paisagem
natural 117 da localidade, a acumulação ilegal de lixo, a construção ilegal. É
significativo qual tem sido a sua maior luta: não são as obras na baia mas sim as obras
de requalificação na praia dos Moinhos, que também começaram a ser projectadas no
verão de 2008.
FIG. 4-5. Protesto organizado pelo SOS Porto Formoso
contra as obras na praia dos Moinhos. Julho de 2008 (cedida pelo Regedor)
Nessa luta o movimento tem sido amplamente mediatizado, através de
blogs118, redes sociais (Facebook), protestos no local, entrevistas em canais regionais
de televisão, debates na rádio e artigos de jornais, através dos quais reivindicaram a
reavaliação do projecto119. Veja-se o Jornal Correio dos Açores, com data de 28 de
Março de 2009:
O ‘SOS Porto Formoso’ aceita que se melhore as condições na praia dos Moinhos, criando infra-estruturas que “proporcionem as devidas condições aos banhistas”, mas considera que o projecto camarário “é um atentado à paisagem natural da praia, e um profundo desrespeito e má gestão de dinheiro público”.(...) “O projecto revela uma grande falta de sensibilidade. Não se enquadra no local, tem
116 Mesmo blogger que anteriormente usava a alcunha de “Gnussen” (Ver p. 46): Jovem de 31 anos, natural de Porto Formoso e amigo de infância do Bruno Raposo (Regedor), é aficionado à leitura e escreve poesia desde jovem. 117 A paisagem que é objecto de admiração por parte dos citadinos corresponde, não a uma paisagem selvagem, totalmente desprovida de marcas de acção humana, nem tão-pouco inteiramente humanizada (Silva 2007b: 147). Trata-se, então, de uma paisagem intermédia entre a cidade e a natureza. 118 Para mais informação consultar http://sosportoformoso.blogspot.com/ 119 O Movimento chegou, inclusivamente a submeter o projecto a discussão na Assembleia Regional.
122
um enorme impacto visual, e irá degradar a paisagem original da praia, dando assim continuidade ao massacre que aquela praia bem como toda nossa costa tem vindo a sofrer nos últimos anos”, afirma-se numa petição que o movimento tem online. Acrescenta que, se a tendência é construir desta forma nos litorais urbanos, por serem zonas mais habitadas, poderiam muito bem ter o cuidado de manter os belos recantos desta ilha intactos porque senão, fazer publicidade dos Açores com slogans do tipo ‘Açores, um paraíso intacto’ passa a ser publicidade enganosa”.
São raras as pessoas que integram ou participam no grupo que vivem ou são
naturais da freguesia, sendo a maioria residentes nas cidades de Ponta Delgada ou
Ribeira Grande com um nível cultural alto e em muitos casos naturais de Portugal
Continental: nenhuma das pessoas que aparece na imagem 4-3 é natural dos Açores,
exemplificando assim o fenómeno do “resgate salvacionista”, isto é, quando pessoas
de fora se autoproclamam defensores e salvadores duma comunidade que não a sua..
Um dos seus principais organizadores, Filipe Tavares, originário de Ribeira Grande,
vive entre São Miguel, Lisboa, Espanha e Inglaterra e trabalha como técnico de som,
praticando o ambientalismo apenas como uma actividade secundária. Como indica
Sahlins (1993:390) “the leaders of modern movements of cultural revival are often
the most acculturated people, and most successful in the commercial world whose
values they ostensibly repudiate”. Estas pessoas são assíduos frequentadores da praia
dos Moinhos, não o sendo da baía dos pescadores, daí o seu afinco na defesa daquele
espaço do qual mais usufruem.
Em relação ao porto, embora as acções tenham sido menores e a luta muito
menos significativa, expressam uma posição clara contra a construção de um
“monstro” em cimento. Se os habitantes da freguesia que defendem a não intervenção
na baía o fazem pelo seu valor identitário e/ou pelo seu valor potencial como destino
turístico, os argumentos do SOS Porto Formoso centram-se apenas na preservação da
natureza da baía.
Partindo do principio de que o ser humano não é perfeito e de que temos inúmeros casos que demonstram perfeitamente essa imperfeição deveríamos parar e pensar que em vez de andarmos por aí a vandalizar a Natureza, devíamos antes preserva-la. Na minha opinião, muita falta de visão tiveram os Governantes e os reivindicadores desta porcaria que fizeram nesta baia que outrora era uma das mais pitorescas dos Açores. Um recanto sem igual, que deveríamos puramente ter preservado, protegido e investido na sua preservação. Em bom português, os Portoformosenses, os Pescadores e os Políticos "CAGARAM" no outrora PORTO FORMOSO. Filipe Tavares | 30/11/09 14:52 (v. pág. 117-n115)
123
Segundo este comentário, deixado pelo Filipe Tavares, a culpa não é só dos
políticos mas também da população. Este “ambientalista” não parece ter interesse em
perceber os argumentos do outro lado, pois para ele é apenas um caso de desinteresse.
Como já se viu até agora, nada mais longe da realidade. Veja-se apenas como
exemplo ilustrativo o argumento de peso expresso pelo pescador João Manuel (v.
pág.80) “A gente não vai penar na vida para as pessoas verem uma coisa linda.
Lindo é não penar”. Mas como aponta Prado:
Como costuma acontecer naqueles casos, na percepção de boa parte dos ambientalistas, as visões nativas em geral são consideradas como uma “não ecologia”, isto é, como uma “ausência de”, ao invés d “a presença de uma ecologia nativa” (etnoecologia) ou de uma visão peculiar. (2003:220)
Mas existe uma ecologia nativa? Para responder a esta questão importa
analisar o conceito de “natureza” à luz das diversas reivindicações, pois cada um
constrói os seus argumentos com base neste conceito. Vejamos três percepções da
natureza que estabelecem três posições diferentes sobre a intervenção na baía.
Parece claro que o movimento ambientalista SOS Porto Formoso se refere à natureza
como tudo aquilo que o homem não modificou: neste caso, a natureza é a baía e o
porto de barcos natural, pois nada foi modificado para a realização desta actividade.
Quanto ao castelo, o movimento ambientalista não se pronuncia. Mas se voltarmos à
discussão presenciada no miradouro no verão de 2006 (ver págs. 101-102)
encontramos outras perspectivas. O jovem César designa como “natureza” não só a
paisagem natural do porto mas também o “castelo”, em contraposição ao que é feito
pelo homem. Para o jovem, parece que os elementos do passado, como o “castelo”,
fazem parte da ordem natural das coisas. Perde-se assim a consciência da ligação do
“castelo” ao homem, e inclui-se numa paisagem atemporal, naturalizando assim a
cultura e o passado: as ruínas estiveram sempre aí, “desde o início dos tempos”, tal e
como a natureza. Ao igualar ambos elementos, o César faz do “castelo” um elemento
intocável, merecedor do respeito dos homens. Por último, o João Ribeirinha, opondo-
se as percepções anteriores, considera natureza tudo o que “Deus fez”, incluindo
assim tudo o que conforma o mundo, isto é, casas, estradas, barcos, cimento,
paisagens. Para o João Ribeirinha e para muitos outros que partilham a sua visão, “o
credo e a aura ecológica , que é apresentada pelos agentes externos como uma pressão
inquestionável, pode ser considerada tão invasora na visão nativa como as espécies
exóticas o são na visão dos ecologistas” (Prado, 2003:222)
124
Deve-se defender o que é belo e a baia do Porto Formoso encerra muita beleza. Mas sem os barcos, teria certamente menos encanto e sem a actividade piscatória perderia toda a sua mística. Não vale a pena fomentar “fundamentalismos ecológicos” do género não se mexe em nada, nem fazer “análises economicistas” o que seria descabido. A natureza é para ser utilizada de uma forma sustentada CLARO! JAGPacheco | 25/9/08 10:56 (v. pág. 111-n108)
Para o dirigente sindical Liberato Fernandes, que tem representado os
pescadores de Porto Formoso ao longo do desenvolvimento do projecto na baía, as
críticas ambientalistas estão baseadas em opiniões subjectivas e acusam uma falta de
informação. Segundo ele as obras estavam mais do que justificadas, mesmo sem a
aparição dos novos barcos, pois Porto Formoso sempre foi um porto de pescas e a
reivindicação da sua melhora era já antiga. Além disso, as obras permitiriam, a longo
prazo, dar uma nova valência turística à pesca. Neste contexto Liberato defende que
as obras foram feitas para ter o mínimo impacto: de pequena dimensão e
relativamente equilibradas, não há um sobredimensionamento da parte betumada e
deixam em aberto a recuperação futura do castelo. Na sua opinião, os movimentos
ambientalistas dão toda a importância às medidas com impacto visual, esquecendo
todas aquelas cujo impacto sobre o meio ambiente não é visível. As suas críticas
incidem assim neste tipo de ecologismo contemplativo, romântico e subjectivo.
Às vezes aparece uma reclamação sobre aquilo que se vê que é o impacto visual, que é subjectivo, quanto há outras que tem efeitos nocivos e não são visíveis como o efeito de estufa resultado da sobre queima de combustíveis devido a potências maiores nas embarcações, ou o sobre esforço de pesca não regulado, ou sobre um crescimento desmesurado do recreio náutico e as pessoas não comentam sobre isso. Sobre as questões do ambiente, não há falta de informação só da parte dos pescadores, também da parte dos ambientalistas é possível ver-se uma cruzada sobre uma coisa que é menor e passar ao lado outras que são atentados graves ao ambiente. É verdade que os pescadores tem um interesse e defendem o seu interesse, mas é um interesse mais ou menos visível. No caso dos movimentos ambientalistas, esses interesses não são tão claros. É impressionante ver que existem movimentos que criticam a pequena construção no Porto Formoso, e o silencio ensurdecedor que existe à volta do casino, que destruiu a única parte que existia há 20 anos atrás do povoamento primitivo de Ponta Delgada. Se pode ter uma visão ambiental que tenha em conta as pessoas, as características culturais das pessoas, a consciência de que é possível construir o futuro sem deitar abaixo o passado e que o passado até faz pate do futuro.
Poucos meses depois de começarem as obras, as críticas subiram de tom e pela
primeira os pescadores começaram a expressar o seu descontentamento com o que ia
aparecendo, ao ponto de em Novembro de 2008 aparecer no jornal Açoriano Oriental
o seguinte titular: “ Pescadores não estão satisfeitos com obras no porto de pescas”.
125
Os pescadores alegavam que, por a obra estar a ser feita tão perto da praia, a maré
baixa provocaria dificuldades de navegabilidade dentro do porto. Além disso, pela
pequena dimensão dos braços de cimento, o novo porto não poderia albergar mais do
que duas embarcações profissionais e duas de pesca desportiva. Mais uma vez, o
dirigente Liberato Fernandes explica o processo da seguinte maneira:
No Porto Formoso houve alguma contestação o que levou a que a gente requeresse uma segunda discussão e fomos lá com o governante e algum técnico. Depois de vários dias de mau tempo, nesse dia o tempo estava bom e só apareceram 2 ou 3 pescadores, pois o resto foi para o mar. A gente ainda andou atrás dos que tinham chegado à noite, e os pescadores eram do género; agora tanto me faz. O problema é que embora os pescadores conheçam bem o porto e os seus problemas, nem eles nem nós temos a competência técnica para discutir as obras, isso ultrapassa as nossas capacidades. Depois há a questão do dinheiro, a gente só tem esta verba para aqui, e a proposta que os pescadores faziam implicava o dobro. Em qualquer caso em Porto Formosos a contestação foi leve: não há nenhuma obra que se faça com a concordância de todos e isso não é nenhuma anormalidade.
Esta consulta “pública” não só não trouxe nenhuma alteração ao projecto
inicial, como ainda provocou novos atritos com os pescadores, uma vez que o resto
dos habitantes críticos com a obra se sentiram excluídos.
Em suma, um projecto que melhora as condições actuais do porto de pescas, mas que não é estruturante para a nossa freguesia, não projecta o Porto Formoso para o século XXI. Não podemos perder esta oportunidade única de desenvolvimento com a obra mais importante jamais realizada no Porto Formoso. Esta obra, devidamente executada, com um porto de boas dimensões e uma pequena marina com condições, mudaria o Porto Formoso para sempre. Seria uma aliança entre a pesca e o turismo, com empresas de whale-watching, de mergulho, de big-game fishing (pesca de corrico de grandes espécies) e todo o desenvolvimento económico e social que isso traria à freguesia. Seria a única marina virada a norte dos Açores! O Regedor | 15/11/08 16:04
4.5 Novo Postal120.
No fim de 2009 a obra estava terminada e o regedor colocava no blog o novo
postal. Como diz o mestre Eugénio: “A gente da terra não gostou. Para a gente do
mar foi melhor, mas eles preferiam que nós continuássemos a sofrer”121. O pescador
João Manuel, o mais velho da sua companha, acrescenta “há muitos habitantes que
não gostaram mas isso não interessa, porque eles não vêm para aqui trabalhar”. Para
120 Título do post colocado pelo Regedor no blog no dia 11/12/2009. 121 Como já se viu neste capítulo existem outros fatores que determinam as posturas a favor ou contra dos habitantes de Porto Formoso.
126
os “eles” citados pelo pescador (isto é, aqueles que não trabalham no porto), perdeu-
se a “beleza” da baía, e para muitos, “a sua identidade”. Perdera-se também o sonho
de o Porto Formoso se transformar na única marina da costa norte. Embora a obra
tivesse melhorado objectivamente as condições de trabalho para os pescadores, não
trazia nenhuma outra mais-valia, e mesmo para os pescadores tinha provocado novos
problemas: queixavam-se do esgoto directo da Ribeira Seca que agora poluía as águas
da baía, provocando alergias nas crianças que ainda tomavam banho lá, da escassa
navegabilidade dentro da baía nos períodos de maré baixa e do erro de cálculo na
inclinação da rampa de varagem que desviava os barcos contra o muro. Apesar de
tudo o pescador João Manuel afirma que “podia ser muito melhor, mas para aquilo
que já passei é muito bom”. Mas há muitos que não têm consolo:
Isto não é um porto de pesca, é uma "banheira" sem préstimo, uma destruição gratuita do meio ambiente e um desperdício de recursos financeiros do Estado. Nuno Barata122 | 12/12/09 11:13
Reacção: Isto é dinheiro da U.E portanto não prejudica em nada o nosso Governo. Mestre Eugénio
Amigo regedor devia ter tirado a fotografia com a maré vazia!! Viva os engenheiros das obras paradas porque com a maré vazia fica pouca água e parece um poço de rãs ou um lago de marrecos. Alguns pescadores merecem, mas destruíram a baía para isto! deus2deus | 12/12/09 02:06 (S/I)
A minha posição quanto a estas obras pode parecer ambígua, mas é clara: 1. Não se mexia em nada ou 2. Fazia-se uma coisa em condições, com os pontões mais fora (no inglês), cais de acostagem em espinha para permitir a vinda de empresas de whale-watching que trariam turistas à freguesia, etc. Assim como está parece uma coisa feita apena para calar a boca dos pescadores que ficam com um pouco mais de condições de trabalho. Esta obra não traz dinheiro à pobre economia da freguesia e não dinamiza o Porto Formoso. Não serve os interesses da freguesia O Regedor | 12/12/09 12:49
Agora não há nada nessa zona da freguesia que nos convença a voltar lá! É este o modelo de desenvolvimento que vocês gostam??? Vão fazer postais com o Porto de pescas depois das obras ou antes das obras??? Filipe Tavares | 1/12/09 11:51 (v. pág.117-n115)
122 Armador de pesca (de atum) de profissão, e também Ex-presidente do Conselho Regional e ex-vice-presidente da Comissão política do CDS-PP/Açores, cargos dos quais se demitiu em Fevereiro de 2008 por alegadas pressões do seu partido contra os comentários publicado no seu blog, “Fogotabrase”, considerado o decano dos blogs azoricos por ser o mais antigo e mais visitado da blogosfera açoriana.
127
Confesso que não sou adepto do betão, mas reconheço que sempre foram os pescadores que deram vida a esta baia. JAGPacheco | 11/12/09 12:13 (v pág.111-n108)
No fim das obras, o descontentamento entre os habitantes acabou por ser, em
maior ou menor medida, geral; até os pescadores faziam queixas, apesar de
reconhecerem a melhoria das condições do seu trabalho. Embora a pesca em Porto
Formoso continuasse a ser tradicional, a intervenção em cimento aproximou-a dos
paradigmas industrias, sem por isso garantir maior quantidade de peixe. Para muitos,
foi-se a mais valia escópica da baía, que funcionava como importante ponto de
atracção turística, mas mais importante ainda, como espelho simbólico onde a
população de Porto Formoso se revia.
Fig 4-6.Fotografia da baía de Porto Formoso, Fig 4-7. Fotografia depois das obras. Autor da
antes das obras (2005) (cedida pelo Regedor) foto - O regedor, 02/12/2009.
Quanto ao turismo, o pescador João Manuel acredita que apenas os habitantes
de Porto Formoso é que sentem a diferença, porque “quem viu antes e vê agora pode
sentir a diferença mas quem nunca viu acha bonita da mesma maneira”. O mestre
Eugénio ainda acrescenta que desde que as obras foram feitas, tem visto muitos mais
turistas a descer até ao porto, segundo ele, graças a facilidade do acesso actual,
refutando assim aqueles que defendem que a baía perderá assim turismo.
Quanto ao valor simbólico para a população da freguesia: Chega a ser sarcástico ter de aceitar que o Porto Formoso "deixou de existir"!. Quando digo que sou natural do Porto Formoso, lembro-me logo que, de natural o Porto Formoso nada tem. Pois bem! o que aconteceu no Porto só não mudou a paisagem, como também mudou a forma de eu pensar o nome da freguesia. Não consigo deixar de relacionar a antítese que existe entre o nome - Porto Formoso- com o actual Porto da "nossa" freguesia. Em poesia até daria um bom recurso estilístico, mas este Porto actual jamais dará um poema. Fica esta foto e outras tantas, a tornar intemporal um Porto genuinamente Formoso. Ps- É muito provável que a quantidade de fotografias tiradas, ao Porto da Freguesia, sofra um decréscimo. falange | 30/11/09 18:59 (v. pag. 119-n116)
128
Quanto ao nosso amigo falange, bem sabe que concordo com ele. O Porto "já não é" Formoso. Talvez se pudesse chamar: Porto quase Formoso ou Porto menos Formoso. Achei muito curioso o facto de referires o olhar para o fundo. É verdade. Na foto de abaixo olhamos para ela toda: vemos os barcos, a areia, queremos ver as pedras, o mar a aconchegar-se e também queremos ver o horizonte. Na foto de cima a tendência é olharmos para o horizonte e não olharmos para a parte inferior! Porque será?? O Regedor | 11/12/09 18:10
129
Conclusão Com o tempo, tudo se torna natureza... e para os
mais novos existirão fotografias de um Porto
genuinamente Formoso. falange | 25/9/08 11:34
130
Em Fevereiro de 2012 voltei, finalmente, a visitar o Porto Formoso: tinham
passado quatro anos e meio desde a última viagem à aldeia. Da última vez que estive
lá, no verão de 2007, ainda nem sequer tinha sido apresentado o projecto que depois
viria a ser construído, embora eu seguisse todo o processo através dos jornais, de
conversas telefónicas com os meus informadores e amigos, de emails com o
Presidente da Junta e mais tarde com o blog A Casa da Mosca. Por isso, apesar de
toda a análise que estava a fazer, esta seria a primeira vez que veria in situ o “novo
postal” da baía. Reconheço que senti uma certa apreensão a caminho do Porto
Formoso, já na estrada nova: tinha passado muitos bons momentos no cenário dessa
baía. Quando finalmente estacionámos, dirigi-me rapidamente para o jardim sobre o
porto. Fiquei parada por um longo momento, a olhar para a nova paisagem: a
primeira impressão foi desoladora. Eram duas da tarde e não havia nem pessoas no
miradouro nem barcos no porto: parecia uma aldeia fantasma. Para desviar o olhar,
decidi ir beber uma cerveja à loja do Mestre João, onde o Américo costumava passar
os tempos livres. Perguntei por ele, e como fui reconhecida quase de imediato,
mandaram o miúdo para o ir buscar a casa. Enquanto esperava, entrou o Sr. Emanuel
Faria, ainda Presidente da Junta de Freguesia. Quando me viu, fingiu não me ver, mas
mesmo assim fui falar com ele. Quando lhe perguntei sobre o processo das obras no
porto apenas respondeu: Nem quero ouvir falar disso, apanhei alergia a essas
obras!123 O Américo apareceu uns minutos depois (ainda bem!), tão bem disposto
como sempre: já tinha saudades deste homem!. Depois dos correspondentes abraços,
fui passear com ele e foi-me contando as novidades da aldeia e dos vizinhos. O velho
Adolfo acabava de voltar para Califórnia, o Manel Cabral estava muito doente, com
cancro, o “Beijinhos” estava agora a morar na Maia, na casa da filha.... Fomos
cumprimentar uns e outros, e todos eles me receberam, mais uma vez, calorosamente.
Entre conversas, a imagem da nova baía ia-se diluindo. Também a polémica se tinha
diluído: perguntei a opinião das pessoas sobre o novo porto. A resposta mais comum
foi um simples “Está bom”, outros pareciam apenas cansados dessa discussão. Parece
que a nova paisagem estava a ser assimilada pela população. Como nos lembra o 123 Nesse dia, combinei com ele uma entrevista a realizar uns dias depois, mas apesar das minhas tentativas nunca se chegou a realizar. A partir desse momento, o Sr. Emanuel Faria passou a evitar o nosso encontro.
131
blogger Silva, esta não foi a única modificação que a baía sofreu ao longo da sua
história, e como esta, todas as outras acabaram por fazer parte do imaginário da
comunidade, mesmo apesar da tristeza que provocaram na altura:
Falando com alguém mais antigo, que se lembra, de naquela muralha, só existia um pequeno muro de suporte, que quando de maré cheia, a malta mergulhava para o mar, não foi menos triste ver ali construir aquela muralha, que já não era possível, saltar de maré cheia. Hoje, que eu me lembre só de grande maresia é que ele bate naquela muralha. Quando da desistência da fábrica das Baleias, havia uma roda parecida com um carrossel que ficava ali entre o Castelo e o Porto, onde muitos dos rapazes passavam as tardes na brincadeira. Foi triste vê-la desaparecer. Meus caros amigos não deve ter sido menos triste, do que quando os nossos antepassados, se aperceberam de algo que tinha transformado este Porto, e que hoje, não podíamos ver destruído, porque nascemos e crescemos, habituados a vê-los, onde estão. Pois uma próxima geração, irá gostar daquelas transformações, que foram o Castelo, a Muralha, e aqueles "bonitos pontões", que já o denominam a "Lago dos Marrécos", apesar de não estarem, um pouco mais atrás, que era onde se devia ter feito, irão deliciar os seus olhos daquela baía formosa que é a do Porto Formoso. E como provavelmente já não irá existir a Casa da Mosca para verem quanto foi dito sobre aquelas transformações, que ião dar a sua graça a este porto, e que provavelmente outras virão e serão contestadas por eles!.... Meus amigos não há cura que com o tempo não se cura. Do Silva para a Casa da Mosca. Silva | 11/12/09 21:22 (S/I)
No mesmo sentido, o pescador João Manuel defende que as pessoas “Vão-se
acostumar com isto como se acostumaram com a outra. No fim vão acabar por achar
bonita, o costume é tudo”. Andava eu entretida nestas conversas quando chegou o
mestre Paulo Jorge, filho do Américo. Vinha de Ponta Delgada, onde tinha ido tratar
dalgumas licenças do barco. A vida estava a correr-lhe bem, o barco tinha dado boas
pescarias e com a nova doca, o trabalho tinha-se tornado muito menos pesado. Fui
com ele para o porto. Lá encontrei a companha do Barbosa (o mestre de Ribeira
Grande) a preparar os anzóis para as gamelas do palangre. O panorama tinha mudado
mas a alegria era a mesma: perante um fundo de cimento, no lugar da areia, os
pescadores, em animada conversa, faziam o seu trabalho enquanto se riam com as
anedotas e comentários que iam lançando. Já o dizia o blogger sono1 em Novembro
de 2008: A paisagem está humanizada mas não está descaracterizada!124 Eu pensava
para mim que os pescadores tinham feito do novo entorno a sua paisagem,
integrando-a nas suas rotinas como se tivesse sido sempre assim. Mais um sinal da
capacidade de adaptação das comunidades piscatórias. Falei com eles sobre o novo
porto: era melhor que nada, diziam, mas tinha muitas coisas que foram mal feitas.
124 Comentário do blogger sono1 publicado em 19/11/2008 às 13:22
132
Esta foi em geral a opinião que encontrei entre todos os mestres e pescadores de Porto
Formoso. Entretanto, apareceu o Mau Tempo, a quem conheci em 2005 como sendo o
pescador mais novo de Porto Formoso. Agora, com 21 anos, tinha acabado de casar e
de comprar um barco: seria o novo mestre de Porto Formoso, abrindo assim caminho
ao relevo geracional. Fiquei com eles à espera da chegada do “Bom Barqueiro”, o
barco do mestre Eugénio. Após ter presenciado inúmeras vezes o árduo trabalho de
deslizar um barco daquele tamanho pela areia até ao mar, queria presenciar a sua
chegada à doca seca. A pescaria tinha corrido bem e o barco vinha carregado.
Demoraram 15 minutos em descarregar o peixe directamente para a carrinha
refrigeradora, que tinha estacionado ao pé da doca. Depois de ter passado a noite no
mar, os pescadores vinham em alegre algazarra: já não lhes esperava o inferno que
significava varar o barco na areia. Fiquei surpreendida ao ver o mestre Ricardo no
barco. Mais tarde ele explicou-me que, após vender o seu barco, tinha voltado a
trabalhar na companha do seu primo Eugénio, complementando a pesca com os
biscates que iam saindo na construção ou na agricultura. Em 2007 o Ricardo tinha um
filho, o Maurício; agora tinha três. Convidou-me para ir à sua casa conhecê-los e
assim foi. Passei uma tarde bem divertida com toda a família, e mostrei algumas
imagens do documentário que estava a preparar. Os miúdos ficaram fascinados ao ver
ao seu pai no ecrã, mas o que mais lhes surpreendeu foi a imagem da baía como “era
antigamente”. Tinham passado apenas 3 anos desde que a obra mudara a paisagem
para sempre, mas eles, que tinham brincado anos e anos nesse lugar, já não se
lembravam de como tinha sido antes...
Com o tempo, tudo se torna natureza... e, para os mais novos existirão fotografias de um Porto genuinamente Formoso. Muitas vezes foi um Porto de inspiração para mim. Depois dessa "cirurgia plástica", todo o rosto de uma beleza ímpar irá continuar a fazer parte da minha vida. Na companhia da minha imaginação, com sentimento e raciocínio, vou olhar para uma diferente paisagem , mas vou receber a mesma inspiração. falange | 25/9/08 11:34 (v. pág. 121-n116)
Em todo o processo de intervenção na baía de Porto Formoso, desde as
primeiras reivindicações até à colocação da “última pedra”, manifestou-se a
complexidade do seu tecido social e da sua construção de identidade, levantando
questões problemáticas sobre a relação da contemporaneidade com o seu passado e
sobre os “complexos exibicionários” que caracterizam a modernidade. A este respeito,
Kaplan escreve:
133
Os sítios patrimoniais referem-se geralmente ao passado, mas o seu estudo revela lideranças contemporâneas, pertenças, redes, processos de decisão e estratégias adoptadas por grupos envolvidos na construção e/ou desconstrução de narrativas acerca do “nós”, do “outro”, do self e da identidade. (2006: 121)
Apesar da complexidade do processo e da rede de agentes envolvidos no
mesmo, a decisão final sobre a orientação que seria dada a baía coube aos poderes
regionais, que optaram por seguir as reivindicações dos pescadores, dando prioridade
à melhoria das condições de varagem dos barcos , mesmo quando se reconhece na
política a necessidade de desenvolver o turismo. Nunca iremos saber se a actividade
piscatória teria desaparecido, caso esta obra não se tivesse realizado: o mestre Ricardo
e o mestre Paulo Jorge afirmaram que sim (era apenas uma forma de pressão?), mas o
mestre Eugénio e o pescador Jeremias, da sua companha, disseram que nunca iriam
desistir, porque não sabiam fazer outra coisa. Independentemente disto, a verdade é
que os pescadores continuam, ainda hoje, ameaçados pela conjuntura externa, isto é, a
escassez dos recursos marinhos, o encarecimento dos combustíveis, a falta de relevo
geracional, e ainda a crise mundial. Como reconhece o Mestre Eugénio “o porto
melhorou mas o peixe está pior”. No fim a obra foi feita, mas ninguém ficou
plenamente contente, nem sequer os pescadores, que como já foi referido se queixam
do desconhecimento de quem a projectou. Embora seja de prever que uma obra não
seja do agrado de todos, perdeu-se uma oportunidade única de harmonizar
minimamente posturas, objectivos e sensibilidades, o que vem demonstrar, mais uma
vez, que em casos como este, as soluções não podem surgir apenas em função de
relatórios, políticas, visitas de engenheiros e estatísticas. Aplicar unicamente uma
perspectiva burocrática e económica a este processo foi um erro grave que teve como
resultado uma intervenção medíocre que parece manifestar a dificuldade dos poderes
regionais em apostar a sério nalguma coisa. Contra aquilo que geralmente acontece,
Kirshemblatt-Gimblett (1998) apela a que sejam os grupos e as comunidades quem
decida em cada momento aquilo que para eles é valioso, pois “ the tourism industry is
a business, and as far as industry is concerned, cultures is not” ( id..:142).
Na sua obra de 2006, Prats defendia ainda a intervenção do antropólogo como
gestor patrimonial e o trabalho de campo como metodologia capaz de analisar o
contexto e a memória local antes de levar a cabo qualquer acção patrimonial. Desta
maneira, prossegue Prats, a estratégia de desenvolvimento patrimonial assim
desenhada não dependeria apenas das esferas de poder nem estaria vocacionada
134
exclusivamente ao turismo nem a outra actividade económica. O trabalho do
antropólogo careceria de interesses ideológicos e aprofundaria o carácter identitário
do passado local. Como aponta Silva (2011) sobre os processos patrimoniais
Resta zelar para que os seus novos promotores se mantenham empenhados na exibição de expressões culturais e patrimoniais representativas da sua pluralidade sem, contudo, ceder à febre do património (Jeudy 1990) que o turismo pode inflamar: do ponto de vista meramente económico, e como nos ensinou a história, o princípio de exclusividade é um dos motores de arranque de muitos destinos turísticos, enquanto a banalização mata a atracção; do ponto de vista social e político é importante evitar que a mercadorização da cultura a congele e dissipe o seu valor identitário e potencialmente reivindicativo. É nestes equilíbrios instáveis que assenta o binómio turismo/desenvolvimento, tão propalado, mas tão difícil de conseguir. (id.:5)
Durante o meu trabalho de campo, não era a minha intenção interferir no
processo, mas antes perceber as motivações por trás das ideias que a polémica em
torno à intervenção na baía fez surgir entre os habitantes e interessados em Porto
Formoso, para tentar deduzir daí algumas das controvérsias atuais que nascem de
conceitos como “modernidade”, “progresso”, “natureza” , “património”, “turismo” e
“pesca”. Por isso é difícil saber se uma análise antropológica como a que se apresenta
aqui poderia ter tido alguma influência nas decisões finais adoptadas pelos poderes
regionais. Porém, quer-se acreditar que este trabalho possa ter algum interesse público
para o futuro desta aldeia, pela qual, depois de um trabalho efectuado ao longo de 9
anos, sinto uma forte afeição tanto pessoal como profissional. Tendo em conta que as
obras já estão feitas e sobre isso nada se pode fazer, acredita-se que esta comunidade,
pelo seu tamanho, pela sua localização, pelas suas condições naturais e infraestruturas,
mas sobretudo pelo carácter da sua gente, possa ser um lugar com potencial para
albergar um projecto piloto de pesca-turismo, pois esta é uma das prioridades do
Governo Regional em termos de desenvolvimento turístico. Neste sentido, a minha
esperança viu-se reforçada depois do recente encontro mantido em Bruxelas com o
director do Observatório de Turismo dos Açores, professor Carlos Santos, por motivo
da conferência “New Trends of Tourism in the European Islands”125. Nas conversas
informais do encontro tive a oportunidade de lhe explicar, sumariamente, o trabalho
que estava a desenvolver em Porto Formoso e a possibilidade de criar o projecto
piloto já referido, ao que ele respondeu com um enorme interesse, uma vez que, ele
125 Como já foi referido, a conferência teve lugar em Bruxelas nos dias 22 e 23 de Março de 2012, e foi organizada pelo “Observatory on Tourism in the European Islands” (OTIE).
135
próprio levou a cabo várias tentativas de reunião com os pescadores doutras
freguesias para implementar projectos similares sem sucesso. O conhecimento pessoal
e profissional desta comunidade, mas sobretudo, a observação e a análise das suas
motivações, permitem perceber melhor como é que os seus habitantes entendem a
freguesia e como é que a projectam no mundo. Estes dados, são sem dúvida uma
mais-valia no desenho de projectos de desenvolvimento que possam, se não criar um
consenso total, harmonizar as várias posturas, integrar as diversas sugestões e
perceber as diferentes argumentações, respeitando, até onde for possível, o carácter
poliédrico que caracteriza toda comunidade.
136
Epílogo
Poucas semanas depois de eu ter voltado a Porto Formoso, no dia 20 de Março
de 2012, apareceu na página do PSD Açores (partido da oposição) um comentário
cujo título era “Obras no Porto Formoso criaram atentado ambiental”. Na minha
última visita voltei a levantar a questão das obras no porto e falei com os pescadores,
a população em geral e com outros agentes envolvidos, como o dirigente sindical
Liberato Fernandes ou o historiador maiense Daniel de Sá. Tendo em conta que as
obras no porto tinham deixado de fazer notícia algum tempo atrás, questiona-se a
relação da minha visita com a publicação deste comunicado partidário, e pergunto-me
se foi apenas coincidência ou se a política, em ano de eleições, instrumentalizou esta
luta fazendo-a sua. A intenção deste comunicado não parece ser servir os cidadãos e
defender os seus direitos, mas antes levar o outro partido a reconhecer os seus erros:
basta o Governo e a oposição escolherem um lado para aumentarem a sua influência
sobre a população. Esta apropriação do conflito pela política interfere no processo de
assimilação da nova paisagem que, a bem ou mal, está a decorrer entre os habitantes
da aldeia: a publicação destes comunicados políticos levantaram de novo velhas
questões e as vozes dos habitantes começaram a ouvir-se outra vez, voltando aos
mesmos tópicos. É tendência da política discutir sobre o que já está feito, alimentar
conflitos passados e lançar recriminações: quando o conflito começa a dar sinais de
estar a ser digerido (ou pelo menos esquecido) pela comunidade, e quando, pela
impossibilidade de refazer ou destruir a obra feita, faz sentido trazer novas questões à
discussão do futuro de Porto Formoso, os poderes políticos irrompem outra vez no
processo, olhando para trás e adoptando apenas um lado, pondo assim novamente em
causa o frágil equilíbrio da comunidade.
Obras no porto de Porto Formoso “criaram atentado ambiental”126
Data: 2012-03-20
O PSD/Açores questionou hoje o governo regional sobre “o atentado ambiental ocorrido no porto de pescas do Porto Formoso”, onde foram feitas “obras orçadas em cerca de um milhão de euros, numa iniciativa que era muito aguardada pelos pescadores que, no entanto, estão
126 Acesso à notícia no link: http://www.psdacores.pt/noticias.php?id=1716
137
insatisfeitos com o resultado da mesma”, refere o deputado António Pedro Costa, num requerimento enviado à Assembleia Legislativa.
“Os pescadores estão insatisfeitos por não terem sido consultados na fase de elaboração do projecto, e por não ter havido uma fase prévia de discussão pública, isto numa obra que tem em vista proporcionar melhores condições para a prática da actividade piscatória”, lembra o deputado, que questiona a tutela “sobre a actual situação de atrofiamento, provocada pelo assoreamento do interior da baía, que resulta em pouca navegabilidade dentro do molhe, devido à reduzida profundidade quando a maré está vazia”, explicou.
“De acordo com os pescadores”, adianta o social-democrata, “o molhe devia ter ficado mais por fora, protegendo o molhe de pesca desportiva, que ficaria por dentro e do lado esquerdo. Ou seja, perdeu-se uma oportunidade de uma junção positiva entre a pesca e o turismo, na que seria a única marina virada a norte da ilha de São Miguel”, frisou.
O deputado quer saber se o governo regional “reconhece o erro técnico na solução encontrada para as águas residuais, que constitui um verdadeiro atentado ambiental, com impactos muito negativos na qualidade de vida, não apenas dos pescadores, mas da população do Porto Formoso”, refere.
Com efeito, “foi encontrada uma solução para a descarga dos efluentes do saneamento básico das moradias que utilizam a ribeira que desagua na enseada, e isto mesmo no centro do novo porto, visando as descargas domésticas. Isso constitui um verdadeiro atentado público, que urge ultrapassar. O governo regional tem de corrigir esse erro, que está já a prejudicar visivelmente a população daquela localidade”, concluiu António Pedro Costa.
Obras no Porto Formoso melhoram a segurança dos pescadores e a qualidade ambiental127
Ponta Delgada , 19 de Março de 2012
Face a alguns comentários surgidos sobre o porto de Porto Formoso, reafirma-se que a obra de requalificação do porto de pescas do Porto Formoso foi objecto de discussão prévia com a comunidade piscatória local e a sua forma final resultou da avaliação dos seus custos e benefícios, sendo que o preço da obra mais do que duplicariam com qualquer solução que avançasse para águas mais profundas, a que acresce a necessidade de resguardo da obra portuária numa zona da costa norte da ilha muito batida pelo mar.
Quanto ao assoreamento do porto, ele resultou do carreamento de materiais pela Ribeira do Lugar, em particular durante a obra de requalificação do leito e margens que está a terminar. Tratando-se de materiais finos, na sua maioria terras, espera-se que os mesmos sejam arrastados pelo mar no decurso dos próximos meses. Se tal não ocorrer será executada uma dragagem da bacia portuária. Para além disso, a obra de requalificação da Ribeira do Lugar incluiu a construção de uma bacia de retenção que produzirá uma redução do transporte de caudal sólido (terras e pedras) para valores residuais, tornando insignificante o assoreamento induzido pela ribeira.
A obra de requalificação da Ribeira do Lugar inclui a eliminação de todas as descargas de esgoto doméstico, ilegais à luz da legislação regional recentemente aprovada. Terminada a
127 Acesso ao comunicado no sítio do Governo http://www.azores.gov.pt/Portal/pt/novidades/Obras+no+Porto+Formoso+melhoram+a+seguran%C3%A7a+dos+pescadores+e+a+qualidade+ambiental.htm?lang=pt&area=ct.Por este link estar indisponível na actualidade, pode ser consultado em http://www.radioatlantida.net/noticias/2012/03/19/obras-porto-formoso-melhoram-a-seguranca-dos-pescadores-e-a-qualidade-ambiental-defende-governo-regional.php
138
obra a ribeira ficará totalmente livre de esgotos, não constituindo as suas águas qualquer problema para os utentes do porto.
São assim totalmente infundados os pressupostos em que assentam as críticas feitas, pois nem o porto poderia, sem custos proibitivos, ter outra configuração, nem a ribeira, com a conclusão da bacia de retenção de caudal sólido e a eliminação das descargas clandestinas que recebia, constitui qualquer ameaça para os utentes do porto ou será fonte de novo assoreamento.
No caso vertente está-se perante uma tentativa de desvalorizar as importantes melhorias que a consolidação do porto e a requalificação da Ribeira do Lugar trouxeram à população do Porto Formoso, criando condições de segurança contra cheias e eliminando um importante foco de poluição das águas, ao mesmo tempo que se criam melhores condições para os pescadores e outros utilizadores daquele porto. GaCS/SRAM
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