território mito-poético cultural de ariano suassuna...

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Dissertação de Mestrado Sertãomundo Território mito-poético cultural de Ariano Suassuna Reginaldo Aparecido de Freitas Universidade Federal de Santa Catarina Programa de Pós-Graduação em Literatura

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Dissertação de Mestrado

Sertãomundo

Território mito-poético cultural de Ariano Suassuna

Reginaldo Aparecido de Freitas

Universidade Federal de Santa CatarinaPrograma de Pós-Graduação em

Literatura

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REGINALDO APARECIDO DE FREITAS

SERTÃOMUNDO

O território mito-poético e retórico de Ariano Suassuna

Dissertação de mestrado apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Literatura, área de concentração em Teoria Literária, linha de pesquisa Teoria da Modernidade, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Literatura.

Orientadora: Profª Drª Ana Luiza Andrade

Florianópolis

2010

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Catalogação na fonte pela Biblioteca Universitária

da

Universidade Federal de Santa Catarina

.

F866s Freitas, Reginaldo Aparecido de

Sertãomundo [dissertação] : território mito-poético

cultural de Ariano Suassuna / Reginaldo Aparecido de Freitas ;

orientadora, Ana Luiza Andrade. - Florianópolis, SC, 2010.

206 p.: il.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Santa

Catarina, Centro de Comunicação e Expressão. Programa de Pós-

Graduação em Literatura.

Inclui referências

1. Suassuna, Ariano, 1927. 2. Literatura. 3. Cultura

popular. 4. Sertão. I. Andrade, Ana Luiza. II. Universidade

Federal de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em

Literatura. III. Título.

CDU 82

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Território mito-poético eulturalde Ariano Suassuna

Reginaldo Aparecido de Freitas

Esta dissertação foijulgada adequada para a obtenção do título

MESTRE EM LITERATURA

Area de concentração em Teoria Literaria e aprovada na sua forma Íinalpelo Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade Federalde

Profa. Dra. AnaORIENTADORA

Profa. Dra. AnaPRESIDENTE

Y*^p \--"4-. V"*= \>-r3\

Prof. Dr. Stélio FurlanCOORDENADOR DO CURSO

. Dra.Taiza Mara Raven Morais (UNIVILLE)

Scramim (UFSC)

Capela (UFSC)

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Ao meu pai, Euclides de Freitas, in memorian.

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AGRADECIMENTOS

Chama-se de alegria quando o encontro de um corpo se compõe com nossa alma, quando uma ideia se encontra com nossa alma e com ela se compõe, aumentando assim nossa potência de agir. Assim, as afecções positivas geram alegria, as negativas redundam em tristeza, contudo, “somente a alegria é válida, só a alegria permanece e nos aproxima da ação e da beatitude da ação”.

Nunca estive sozinho ao longo dessa caminhada. Muitos foram os que me afetaram ao longo dessa jornada. Se nem todos geraram alegria, eu soube de alguma forma deslizar por entre a tristeza transformado esses eventos em alguma forma de aprendizagem.

Foram tantos os que contribuíram para a realização desse trabalho, seja com indicações teóricas ou, o mais importante, com a demonstração de carinho e amizade. Então, desejo agradecer:

Aos meus pais, Euclides (in memorian) e Elza, por me terem possibilitado o acesso ao mundo das letras, e mais do que tudo, pelo exemplo de seres humanos que sempre foram.

À minha amiga-irmã, Juliana de Jesus Baumhardt, por sempre acreditar, mesmo quando às vezes eu duvidava; pelo companheirismo e companhia ao longo dessa estrada que me trouxe até aqui.

Àqueles que contribuíram de alguma forma para a concretização desta dissertação: Rita Pabst Martins, Maria Eleuda de Carvalho, Elenita Rodrigues

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Penz, Eliza Manarin Cardoso, Helaine Kasemodel Ennulat, Fabene Kassiá da Cruz e Cristiano de Souza.

Um agradecimento especial à equipe de funcionários que tão atenciosamente me atendeu na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

À Elba Maria Ribeiro, pela atenção, compreensão e paciência com que sempre me atendeu.

Aos professores Carlos Eduardo Capela e Suzana Scramim, que participaram da banca de qualificação e trouxeram novos olhares sobre esse texto.

E fundamentalmente, à Profª Ana Luiza Andrade, pelos diálogos e pela forma sempre prestimosa com que me atendeu e me ouvi durante esses mais de dois anos de convivência. Todo meu respeito e carinho.

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Figura 1 – Xilogravura “Ariano no Sertão”, de J. Borges.

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Vivo extraviado em meu tempo por acreditar em valores que a maioria julga ultrapassados.

ARIANO SUASSUNA

Nada surge do nada, e sobretudo na arte. Na realidade, está presente sempre o homem

e o homem carrega em si a forma humana da inteira condição.

FRANCISCO BRENNAND

Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo “como ele de fato o foi”. Significa

apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo.

WALTER BENJAMIN

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RESUMO A arte de Ariano Suassuna está em estreita ligação com a sua vida pessoal, tal a indissociabilidade característica das duas. Pensar a sua produção escrita, poética, teatral, teórica, estética e política é pensar o Sertão nordestino, pois assim como o homem Ariano Suassuna, sua obra foi forjada ao sol abrasador do Sertão. Contudo, o Sertão suassuniano é um espaço idealizado, um universo mítico-poético de resistência a supostas influências descaracterizantes externas. Assim, o pensamento suassuniano dialoga com o passado e com as tradições estabelecidas no Sertão nordestino, primordialmente aquelas ligadas às raízes ibero-mouras, indígenas e negras da nossa formação. O presente estudo buscará localizar, num primeiro momento, a postura cultural suassuniana como resquício de um discurso mistificador próprio do período romântico, principalmente através da idealização de um espaço intocado, que preservaria uma suposta “essência de uma brasilidade incontaminada”. Nesse sentido, a postura cultural de Ariano Suassuna ao falar de uma “nação” e um “povo” como sujeitos imanentes, que teriam na cultura popular seu estrato mais “autêntico”, nega qualquer forma de negociação e diálogo com a diversidade cultural que existe dentro do próprio país. Hoje é inviável continuar a afirmar as culturas populares como imunes ao processo histórico e ao intrincado mapa das trocas culturais. Dessa forma, Ariano Suassuna caminha na contramão dos vários discursos da modernidade, que tentam apontar a impossibilidade, hoje, desse tipo de manifestação que visa à restauração nostálgica e utópica de uma tradição, de uma nação e de um povo. A obra de Suassuna ainda procura erigir um sentido de nação baseada em símbolos que constituem uma suposta identidade partilhada de povo e cultura, símbolos que povoam e animam a geografia imaginária suassuniana, e que dão sentido ao seu trabalho. Então, imerso no fabulário regional, Ariano Suassuna estabelece no Sertão nordestino o centro de gravidade de sua obra, desenvolvendo assim um mundo mítico único onde dominarão as imagens do Sertão. É a partir desse posicionamento dialético que de um olhar do massapê sonha o sertão, em que a presença simultânea de dois elementos, o popular e o erudito, erige-se o local consagrado pelo autor à defesa e à proteção de uma arte que se diz

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autenticamente brasileira. Aí os elementos simbólicos que constituem a paisagem da geografia imaginária de Ariano estão presentes em todo o conjunto de sua obra. Contudo, será nos trabalhos denominados pelo autor de iluminogravuras – uma forma de arte muito pessoal e ainda pouco conhecida do público – em que nos debruçaremos. Estas iluminogravuras são um tipo de poesia visual na qual o autor une o texto literário a imagens que exploram motivos da cultura brasileira, recolhidos da arte popular nordestina. Resgataremos, então, nas iluminogravuras, aqueles elementos que caracterizariam a visão suassuniana de mundo, expressa através de um universo regido pela recriação, reinvenção e pelo reencantamento dos mitos do reino do sertão. Palavras-chave: Ariano Suassuna; sertão; cultura popular; iluminogravuras.

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ABSTRACT Ariano Suassuna’s art is deeply related with his life, so that both can not be dissossiated. Think about his writing, his poetry, his plays, his theorical, stetical and politics productions is to think about the northweastern midland in Brazil, called Sertão Nordestino, because as the man Ariano Suassuna, his opus was shaped under de hot sun of this Midland. Although Suassuna’s Midland is not the real one, but an idealized place, a poetic and mythical universe of staying power against abroad influences. So, the Suassuna’s ideas are related with the past and the traditions stabished in northweastern midland, specially with those connected to the iberian-moors, indigene and black source of our building up. So, this essay intend to determinate firstly Suassuna’s cultural posture as a remaining of the mythical discurse of the romantic period, specially throughout the idealization of an untouched space, that would preserve a suposed “essence of an untouched essential nature or character of Brazil”. This way, the cultural posture of Ariano Suassuna while speaking about a “nation” or “people” as intrinsic actors, that would have in popular culture their most authentic layer, rejects any kind of negociation and diolog with cultural diversity lasting in his own country. Nowadays it is impossible to afirm popular cultures untouched by the historical course of the tangled map of cultural exchanging. In this way, Ariano Suassuna is pointing toward the opposite direction of the modernity discourses, that try to show the impossibility, for now, of that kind of manifestation that wants the nostalgic and visionary restauration of a tradition, of a nation and the people. Suassuna’s opus still tries to build up a meaning for a nation based on simbols the make part of a suposed identity shared by people and culture, simbols that compose and encourage the fictional Suassuna’s geography, and that give reason to his work. Than, imersed in the regional fables, Ariano Suassuna stablishes in northwestern midland the center of gravity of his writing, developing therefore a single mythical world where the overcoming images are the midland ones. It is from this dialetical positioning on of a view of a townsman that he dreams the midland , simultaneous presence of two elements, the popular and the erudite one, place consecrated by the author in the advocacy and protection of one art

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that is called authentically brazilian. There the simbolic elements that make part of the landscape in the fictional geography of Ariano are present in all his opus, nevertheless there are going to be just the works called by the author as iluminogravuras – a kind of very personal art and still unknown by the common people – that we are going to write about. These iluminogravuras are a kind of visual poetry in wich the author links the literary text and the pictures that look into the elements of brazilian culture, collected from the northwestern popular art. We are going to rescue, than, in this iluminogravuras, those ingredients that distinguish Suassuna’s view of the world, expressed through an universe determined by the recriation, the reinventation and again the enchant by the myhs of the kingdom of northwestern. Keywords: Ariano Suassuna; midland; popular culture; iluminogravuras.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 - Xilogravura “Ariano no Sertão, de J. Borges .......... 9

Figura 2 - Bandeira da Onça .............................................................. 103

Figura 3 - Alfabeto Sertanejo ou Alfabeto Armorial ............... 107

Figura 4 - Ferro de marcar da família Suassuna ...................... 107

Figura 5 - Logotipo de grifes famosas ........................................... 108

Figura 6 - Fac-símile do Emblema 38, de Herman Hugo ...... 119

Figura 7 - Ilustração da capa do livro As sentenças do

tempo (Maximiliano Campos), criada por Ariano

Suassuna ............................................................................... 128

Figura 8 - Ilustração do conto “O grande pássaro”, do livro

As sentenças do tempo ..................................................... 128

Figura 9 - Reprodução de uma das pranchas da

estilogravura inédita de Ariano Suassuna,

publicada pelo Cadernos de Literatura Brasileira

(n.10, 2000) ......................................................................... 133

Figura 10 - Imagem reproduzindo as iluminogravuras,

possivelmente do álbum Sonetos com mote

alheio (1980) ...................................................................... 151

Figura 11 - Iluminogravura “O Campo” .......................................... 158

Figura 12 - Iluminogravura “A Acahuan – A malhada da

Onça” ...................................................................................... 159

Figura 13 - Conjunto de insculturas modeladas da Pedra do

Ingá (PB) ............................................................................... 165

Figura 14 - Iluminogravura “A Morte – A Moça Caetana” ....... 169

Figura 15 - A figura representa um escudo ou brasão, e

uma das suas possíveis divisões ou partições

internas ................................................................................. 174

Figura 16 - Iluminogravura “Lápide” ............................................... 180

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SUMÁRIO AGRADECIMENTOS .......................................................................................... 7

RESUMO ................................................................................................................ 13

ABSTRACT ........................................................................................................... 15

LISTA DE ILUSTRAÇÕES ................................................................................ 17

Entrando no território .................................................................................... 21

PARTE UM – TERRITÓRIO DISCURSIVO ................................................. 31

Percorrendo territórios arcaicos ................................................................ 33

A dureza do cactus versus a doçura da cana .......................................... 48

Contra o marasmo oficial ............................................................................... 65

PARTE DOIS – TERRITÓRIO MÍTICO-POÉTICO ................................... 85

Cosmovisão sertaneja...................................................................................... 87

Uma heráldica sertaneja ................................................................................ 98

O espírito mágico dos folhetos .................................................................... 110

Imagem da palavra ........................................................................................... 126

O universo em uma folha de papel ............................................................ 143

Saindo do território .......................................................................................... 185

REFERÊNCIAS ..................................................................................................... 191

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Entrando no território...

Nosso conhecimento do mundo

acompanhou a exploração que nossa sensibilidade fazia do universo com o qual

ela tentava identificar-se.

LUC BENOIS

Conheci o trabalho de Ariano Suassuna, como acho que a

maioria das pessoas nesse país conheceu, quando da adaptação da

peça Auto da Compadecida, realizada por Guel Arraes, para a Rede

Globo de Televisão, em janeiro de 19991. Antes disso, pouco ou

quase nada havia ouvido falar sobre o autor.

Embora outras peças de Ariano já tivessem ganhado a

visibilidade por meio da televisão, foi provavelmente o Auto que

acabou chamando mais a atenção sobre o autor, por causa das suas

qualidades técnicas e artísticas, sendo aclamado na época tanto pela

crítica como pelo grande público. Na época eu estava fazendo a

faculdade de Letras, e não me lembro de em nenhum instante os

1 Quando a minissérie O auto da Compadecida foi ao ar em janeiro de 1999 pouca gente fora dos meios acadêmico e artístico conhecia o nome de Ariano Suassuna. Novidade então para o grande público, a primeira encenação da peça teatral que deu origem à minissérie ocorreu em 11 de setembro de 1956, no Teatro Santa Isabel, no Recife, sob a direção de Clênio Wanderley.

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meus professores falarem sobre aquele autor, Ariano Suassuna. Isso

talvez se devesse ao fato de, na época, o foco maior estar sobre um

autor de língua portuguesa, o primeiro autor dessa língua, que

acabara de ganhar o Nobel de Literatura – José Saramago.

Terminado o curso universitário (2003), através de um colega

que havia se formado comigo, vim fazer uma disciplina de mestrado

aqui na UFSC. Na época até gostaria de entrar efetivamente no

curso, mas ainda não tinha ideia alguma para um possível projeto.

Em 2005 fui fazer uma especialização aqui mesmo na minha

cidade, Joinville. Quando da época de conclusão do curso, vi-me

diante da escolha de um tema para desenvolver a monografia final

do curso. Sempre tive um interesse muito grande no cinema e na

sua forma de narrativa, e nessa época eu já vinha lendo muita coisa

sobre adaptações literárias para o cinema e para a televisão, o que

acabou por me despertar o interesse em fazer algum trabalho nesse

sentido. Então, revendo o filme O auto da Compadecida2 me veio a

ideia de trabalhar justamente essa obra. Escolha motivada por dois

gostos pessoais: a literatura e o cinema.

Decidida a escolha do tema, apresentei à professora que seria

minha orientadora da especialização a ideia, e ela a achou muito

interessante. Na época, uma colega de curso também havia

manifestado interesse semelhante em trabalhar com adaptações

literárias para o audiovisual; trocamos ideias e resolvemos

trabalhar juntos. Acabamos por fazer um trabalho a quatro mãos –

2 A minissérie O auto da Compadecida, exibida pela Rede Globo, com uma duração de 157 minutos, divididos em quatro capítulos, teve posteriormente seu texto condensado e tempo reduzido para aproximadamente 104 minutos, para ganhar as telas dos cinemas. Vale ressaltar também que a minissérie em questão, que tinha o roteiro assinado por Guel Arraes, bem como pela dupla Adriana e João Falcão, foi baseado na obra homônima de Ariano Suassuna, contudo, com elementos de O santo e a porca e Torturas de um Coração, também de Suassuna. Um filme já havia sido realizado sobre essa peça de Suassuna, pelo então grupo Os Trapalhões, encabeçado por Renato Aragão; sob a direção de Roberto Farias, o filme se chamou Os Trapalhões no auto da Compadecida (1987). Contudo, data dos anos 60 a primeira adaptação do Auto para o cinema. Realizado sob a direção de George Jonas, com o título de A Compadecida, contava no elenco com os jovens Antônio Fagundes e Regina Duarte.

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[23]

Do texto/teatro de Suassuna à minissérie de Arraes: as personagens

do “Auto da Compadecida” na literatura a na televisão (2006).

Como eu tinha interesse em prosseguir meus estudos e

ingressar no curso de mestrado, resolvi aproveitar algumas das

leituras e referências teóricas do meu trabalho anterior para a

elaboração de um projeto. O tema ainda seria sobre a adaptação de

obras literárias para o audiovisual, e na época eu me propusera a

trabalhar com o filme Lavoura Arcaica, adaptado por Luiz Fernando

Carvalho. Esse filme me chamara muito a atenção um tempo antes.

Gostei tanto do filme que fui atrás do livro, pois de Raduan Nassar

eu apenas tinha lido Um copo de cólera, ainda na faculdade. Fiquei

deslumbrado com o livro e com o filme, e escrevi uma proposta de

projeto que inscrevi no processo de seleção naquele mesmo ano de

2006.

O projeto não foi aprovado, contudo, na época da entrevista

de seleção, conversando com a Profª Ana Luiza Andrade, mencionei

que tinha realizado um trabalho sobre Ariano Suassuna para a

minha especialização. Ela me questionou por que eu não tinha dado

prosseguimento à essa ideia, e aprofundado mais o tema da minha

monografia, pois a obra de Suassuna constituía um rico material

para ser trabalhado, e ela inclusive teria o interesse em orientar um

trabalho sobre esse autor.

Fui para a casa com essa ideia. Coincidentemente naquele ano

outra adaptação da obra desse autor ganhava as telas da Rede

Globo, a microssérie A Pedra do Reino. E, o que me chamou mais a

atenção: sob a direção do mesmo realizador do filme Lavoura

Arcaica (Luiz Fernando Carvalho), o qual eu me propusera trabalhar

anteriormente.

Bem, acabei ingressando no Curso de Pós-Graduação da UFSC

em 2007, como aluno especial, na disciplina “Os gestos como meios:

o romance-crônica, o romance-cinema, autobiografia, auto-retrato”,

ministrado pela Prof.ª Ana Luiza. Elaborei um projeto, que na época

se chamou: Entre a página e a tela – “O auto da Compadecida” e “A

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[24]

pedra do reino”: textos ficcionais televisivos, e o submeti ao processo

de seleção em 2007. Acabei ingressando como aluno regular no ano

seguinte.

As disciplinas cursadas durante esse período me abriram

novos horizontes, que me fizeram repensar muitos pontos do

trabalho. Aos poucos ele foi se modificando, através do contato com

outros professores nas disciplinas cursadas, bem como com as

conversas com os colegas de curso, e principalmente, com os

diálogos mantidos com a Profª Ana Luiza.

Na banca de qualificação, onde estiveram presentes os

professores Carlos Eduardo Capela e Suzana Scramim, várias

questões me foram colocadas, principalmente vários

questionamentos sobre as leituras que eu havia realizado até ali.

Acho que uma das questões fundamentais levantadas foi a de

que eu havia realizado muitas leituras de autores muito próximos,

ou de alguma forma ligados a Ariano Suassuna, e que, por isso

mesmo, não viam a obra do autor paraibano com o distanciamento

crítico que ela merecia. De certa forma, eu me deixara envolver pelo

discurso desses comentadores, bem como havia sido seduzido pela

retórica suassuniana, e, em nenhum momento no meu texto, eu me

colocava criticamente em relação aos argumentos levantados por

esses autores.

Outra questão levantada pela banca de qualificação era a de

que eu não devia me focar tanto na pessoa de Ariano Suassuna,

como havia feito, dedicando-me mais em contrapor as posturas

ideológicas do autor com os discursos mais recentes sobre as

questões levantadas pelo próprio Suassuna sobre temas como

nacionalismos e cultura popular, por exemplo. E também que eu

deveria me focar em um trabalho específico do autor, pois até

aquele momento não estava claro exatamente o que eu me

propunha fazer, nem que obra específica do autor eu trabalharia.

Surgiu, então, a questão das iluminogravuras como uma forma

muito interessante de estudar o universo mítico-poético do autor.

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[25]

Ouvidas essas considerações parti para novas leituras, que

me fizesse aprofundar mais essas questões e buscar novas formas

de abordagem.

Contudo, falar de Ariano Suassuna acaba certamente caindo

sempre em algum tipo de polêmica. Polêmicas inclusive que o autor

faz questão de alimentar, pois o mantém na mídia até hoje. Sua

figura radical é presença constante na telinha da televisão nos

últimos anos. Televisão – aparelho de massa por excelência,

presente em quase todos os lares do país. Contraditoriamente o

maior ícone da indústria cultural e de uma cultura de massa que

Suassuna diz combater com unhas e dentes. Contudo, o mesmo

Suassuna permite a adaptação de suas obras para esse veículo, bem

como para o cinema. Como mencionei, diversas obras do autor já

foram adaptadas para a televisão, entretanto, conforme gosta de

deixar claro esse autor, essas adaptações devem sempre seguir os

parâmetros estabelecidos por ele.

Assim, são poucos os profissionais aos quais Ariano entrega

um texto seu para adaptação, sendo que na maioria das vezes ele

participa também do processo de produção desses trabalhos. Ele

quer ter a certeza de que essas pessoas não vão acabar

desvirtuando sua obra de alguma forma. Os poucos contemplados

foram Guel Arraes (filho do seu amigo pessoal Miguel Arraes,

governador e prefeito em algumas ocasiões do Estado de

Pernambuco e da cidade do Recife, mandatos sob os quais Ariano já

ocupou as pastas de Secretário de Educação e de Cultura), que

adaptou o sucesso Auto da Compadecida; e Luiz Fernando Carvalho,

que além da microssérie A Pedra do Reino (2007), já tinha realizado

Especiais para a mesma Rede Globo, com as adaptações de Uma

mulher vestida de sol (1994) e A farsa da boa preguiça (1995).

Como vinha mencionando, falar em Suassuna acaba por

resvalar sempre em temas polêmicos, entre eles a visão nacionalista

radical desse autor. Mas como falar em Ariano sem, contudo, sequer

mencionar esse assunto? Em minha opinião não dá para falar da

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[26]

obra de Ariano Suassuna sem tocar na questão do nacional, pois

todo o trabalho desse autor é sobre a busca de afirmação do

nacional (através da defesa da cultura popular, como uma pretensa

representação da essência de uma brasilidade) frente às influências

externas.

Essa, inclusive, foi uma das principais críticas ao meu

trabalho. Assim, se num primeiro momento acabei dando uma

dimensão maior do que o tema requeria, foi talvez por pura

teimosia. (Teimosia eventualmente advinda por influência das

diversas leituras da obra suassuniana).

A intenção, entretanto, sempre foi colocar que esse tipo de

pensamento e posicionamento do autor paraibano não tem mais

lugar nos dias de hoje, representando muitas vezes um perigo no

mundo em que vivemos. Os discursos identitários extremados têm

originado diversas formas de fundamentalismos nesse início de

milênio, seja dentro de países europeus, considerados até há bem

pouco tempo como nações plenamente consolidadas, seja através do

diversos tipos de populismo que ressurgem atualmente em alguns

países latino-americanos. Como nos alerta Alessandro Bracht, o

“nacionalismo já serviu e continua servindo a muitos patrões. É fato

que esse arlequim ideológico e usualmente ruidoso se prestou a

tantas causas, que o passar do tempo tornou incapaz sua teorização

unívoca [...]”3.

Entretanto não se pode fechar os olhos para os discursos

nacionalitários, como se eles tivessem deixado de ter importância

ou que saíram de pauta na atualidade. Assim, tanto como um objeto

estético, a obra de Suassuna deve ser encarada como o

prosseguimento de um discurso sócio-histórico-ideológico que

segue a mesma linha de pensamento dos intelectuais e pensadores

sociais brasileiros como Gilberto Freyre (apesar de este último ter

sido reavaliado recentemente como pós-moderno), Prado Júnior,

3 BRACHT, Alessandro. O nacionalismo dos “skinheads” brasileiros. Saeculum – Revista de História, João Pessoa (PB), n.12, jan/fev.2005, p.95.

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[27]

Sérgio Buarque de Holanda, Araripe Júnior, Sílvio Romero entre

tantos outros nomes. Um discurso que nasce num período

determinado da formação da história do Brasil, mas que ainda vige

em muitas obras da produção literária contemporânea4 – e não

apenas na produção brasileira.

Dessa forma, ouvindo essas críticas, procurei abordar no

início desse ensaio a questão essencialmente dentro do que julgo

necessário para adentrar na obra suassuniana. Isso se faz necessário

para entender a importância que esse espaço geográfico

denominado Sertão exerce dentro da obra de Ariano Suassuna. Ele

não somente é o lugar sagrado e consagrado onde a vida de seus

personagens se desenrolam – uma existência marcada pelas

simbologias que constituem o universo mítico-poético e telúrico

suassuniano –, simboliza também esse território o escudo de

resistência às supostas influências vindas de uma civilização de

empréstimo, descaracterizantes de uma pretensa essência cultural

brasileira.

Igualmente, como será visto, embora Suassuna privilegie o

Sertão em seu discurso, o nordeste não é só o Sertão. É também a

Zona da Mata – Zona do Açúcar –, de Gilberto Freyre, universo

antípoda ao mundo suassuniano. Nesse ponto surge uma nova

contradição no homem Ariano Suassuna. Ele fala do Sertão, sim, em

sua obra, ela é onipresente em todo o seu trabalho. Entretanto, seu

discurso parte da zona da mata, do mesmo litoral que o autor

considera aberto às influências desagregadoras que vêm de fora.

Litoral que acaba gerando no húmus social recifense um movimento

como o Manguebeat, de jovens que buscam voz e vez contra o

marasmo vigente dentro de uma política cultural (da qual Ariano faz

parte), que beneficia apenas as produções culturais conservadores e

tradicionais dos artistas armoriais.

4 OLIVEIRA, Wilton Fred Cardoso de. Imaginário de nação no romance brasileiro contemporâneo: “Os rios inumeráveis” e “A república dos Bugres”. Tese (Doutorado em Teoria Literária) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2005. p.20.

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[28]

Não obstante, como já frisei, o Sertão acaba se constituindo o

personagem principal dentro da produção artística de Ariano

Suassuna. É esse mundo, ao mesmo tempo real e mítico que

predominará na estética armorial do autor paraibano. Uma

paisagem nordestina e sertaneja marcada pela dureza e aridez da

terra. É o Sertão o arcabouço que sustenta a obra suassuniana, e

sem o qual ela não existiria. Logo, o intelectual Ariano Suassuna vai

em busca do Sertão, e torna-se o porta-voz “de uma terra agreste,

árida, de sol abrasador, de vegetação pobre e ‘pedras selvagens’”5,

pois “é necessário que o homem decifre o sertão, e que lhe imponha

um sentido”6. Para Suassuna, o sertão “é a esfinge a resolver, a Onça

a domar, mesmo sabendo que essa fera, bela como seja, é hostil e

feroz e terminará por nos despedaçar com suas garras”7.

No entanto, o Sertão suassuniano não é o sertão real, mas um

espaço mitificado onde a realidade sertaneja, em sua “matéria

vivida”, é transfigurada em “matéria imaginada”8. Dessa forma,

Suassuna erige um Reino onde “o real é transfigurado em um

mundo menos cruel”9, institui um espaço idílico e pastoral de uma

infância remota, recomposição da presença/ausência paterna. Esse

espaço nasce na cabeça do homem Ariano e nas suas narrativas.

Utopia? Certamente um devaneio, que “idealiza ao mesmo tempo o

seu objeto e o sonhador”10, transformando-o numa figura

quixotesca nessa modernidade líquida11.

5 NOGUEIRA, Maria Aparecida Lopes. O cabreiro tresmalhado: Ariano Suassuna e a Universidade da Cultura. São Paulo: Palas Athena, 2002. p.41. 6 NOGUEIRA, Maria Aparecida Lopes. O cabreiro tresmalhado. p.41. 7 SUASSUNA, Ariano apud NOGUERIA, Maria Aparecida Lopes. O cabreiro tresmalhado. p.41. 8 FARIAS, Sônia Lúcia Ramalho de. O sertão de José Lins do Rego e Ariano Suassuna: espaço regional, messianismo e cangaço. Recife: Ed. Universitária da UPFE, 2006. p.75. 9 NOGUEIRA, Maria Aparecida Lopes. O cabreiro tresmalhado. p.201. 10 BACHELARD, Gaston. Poética do devaneio. Trad. Antonio de Padua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1988. p.54. 11 Termo cunhado pelo sociólogo Zygmunt Bauman para definir o tempo presente, “em vez do já batido termo ‘pós-modernidade’, que, segundo ele, virou um qualificativo ideológico”. In: OLIVEIRA, Dennis de. A utopia possível na sociedade líquida. Revista Cult, ano 12, n.138, p.14-18, ago. 2009. p.14.

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[29]

E é nos trabalhos denominados iluminogravuras, uma arte

muito pessoal criada pelo próprio Suassuna, e inspiradas nas

iluminuras medievais e nas gravuras xilográficas (estas encontradas

nas capas dos folhetos do Romanceiro popular do nordeste), que

encontraremos aqueles elementos simbólicos que constituem seu

castelo sertanejo, seu território afetivo-existencial e mítico-poético.

É no trabalho com as iluminogravuras que vamos perceber,

igualmente, a influência que a arte heráldica exerce na obra

suassuniana, que vê esse tipo de arte aqui no Brasil com uma

característica inteiramente popular ao invés de burguesa. Heráldica

expressa desde os distintivos dos times de futebol, até os emblemas

e estandartes desses mesmos times e das escolas de samba, bem

como dos estandartes e bandeiras das cavalhadas, que evocam os

antigos torneios medievais e as batalhas entre mouros e cristãos.

O objetivo ao analisar duas dessas iluminogravuras será

apontar nessas obras os elementos que permeiam toda a produção

artística desse autor. Contudo, aqui ela se realiza de forma mais

plena na fusão de imagens e texto, unido os dotes de poeta,

gravurista e pintor de Ariano Suassuna, numa complementaridade

das disciplinas artísticas, um dos fundamentos que já vinham sendo

buscadas pelo Armorial desde a sua criação.

Finalmente, acredito que todas as escolhas que fazemos ao

longo da vida são absolutamente pessoais, subjetivas. No final, o que

resta é nosso livre-arbítrio, para o bem ou para o mal. As escolhas

que empreendi nesse trabalho não foram diferentes, e se há falhas,

elas se devem inteiramente a mim e as minhas escolhas.

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PARTE UM

TTEERRRRIITTÓÓRRIIOO DDIISSCCUURRSSIIVVOO

No encontro das culturas do mundo, precisamos ter a força imaginária de conceber todas as culturas como agentes de

unidade e diversidade libertadoras, ao mesmo tempo. É por isso que reclamo para todos o direito à opacidade. Não

necessito mais “compreender” o outro, ou seja, reduzi-lo ao modelo de minha própria transparência, para viver com esse

outro ou construir com ele. Nos dias de hoje, o direito à opacidade seria o indício mais evidente da não-barbárie.

ÉDOUARD GLISSANT

in: Introdução a uma poética da diversidade

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Percorrendo territórios arcaicos

O território é assombrado por uma voz

solitária, que a voz da terra ecoa e percute, mais do que lhe responde.

GILLES DELEUZE

Ariano Suassuna erige ao mesmo tempo um território mítico-

poético, existencial-afetivo e de resistência representado pelo

fechamento estético de um espaço geográfico – o Sertão nordestino.

Espaço de fechamento que nos remete ao ritornelo de Deleuze &

Guattari, quando o Armorial de Suassuna representa (ao menos

para o autor e para os artistas que seguem professando essa ideia)

uma instância consagrada à defesa e proteção de uma arte que se

diz essencialmente representativa da nossa brasilidade. Nesse

sentido, “[e]is que as forças do caos são mantidas no exterior tanto

quanto possível, e o espaço interior protege as forças germinativas

de uma tarefa a ser cumprida, de uma obra a ser feita”12.

Assim, Ariano é a “criança no escuro” de Deleuze & Guattari:

12 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol. 4. Trad. Suely Rolnik. São Paulo: Editora 54, 1997. p.116.

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Uma criança no escuro, tomada de medo, tranqüiliza-se cantarolando. Ela anda, ela pára, ao sabor de sua canção. Perdida, ela se abriga como pode, ou se orienta bem ou mal com sua cançãozinha. Esta é como o esboço de um centro estável e calmo, estabilizador e calmante, no seio do caos13.

Ariano compõe sua canção armorial, lugar de fuga e de

proteção de tudo o que ele julga sagrado e pelo qual vale a pena

lutar, em nome dos valores da terra e da tradição14.

Conforme destacam Deleuze & Guattari, o ritornelo é um

agenciamento territorial. “O ritornelo pode ganhar outras funções,

amorosa, profissional ou social, litúrgica ou cósmica: ele sempre

leva terra consigo, ele tem como concomitante uma terra, mesmo

que espiritual, ele está em relação essencial com um Natal, um

Nativo”15. Assim, Armorial é o canto de pássaro de Ariano, que dessa

forma (de)marca seu meio de (re)ação contra as influências

descaracterizantes externas.

Quando falo aqui em território, falo a partir de uma

interpretação “para quem os seres existentes se organizam segundo

territórios que os delimitam e os articulam aos outros seres

existentes e aos fluxos cósmicos”16. Dessa forma, o “território pode

ser relativo tanto a um espaço vivido, quanto a um sistema

percebido no seio do qual um sujeito se sente ‘em casa’”17.

Igualmente, o “território é sinônimo de apropriação, de subjetivação

13 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol. 4. p.116. 14 FALCÃO, Lúcia; DIDIER, Maria Thereza. Do amor e da esperança em Ariano Suassuna. In: NOGUEIRA, Maria Aparecida Lopes. Ode a Ariano Suassuna: celebração dos 80 anos do autor na Universidade Federal de Pernambuco. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2007. p.33. 15 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: vol. 4. p.118. [grifo meu] 16 MOELLWALD, Branca Cabeda Egger. A “poiesis” da nação em Mia Couto: fragmentos de um olhar. Tese (Doutorado em Teoria Literária) – Universidade Federal de Santa Catarina, 2008. p.21 [nota de rodapé] 17 MOELLWALD, Branca Cabeda Egger. A “poiesis” da nação em Mia Couto. p.21 [nota de rodapé]

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fechada sobre si mesma”18. Dessa forma, para Suassuna o Sertão

nordestino será sempre visto como o espaço privilegiado dentro da

sua estratégia discursiva de compor imagens, cenários, paisagens de

uma experiência compartilhada. “A terra seria, então, o palco

mesmo dos conflitos do homem; por isso, essa intensa e íntima

correlação e/ou identificação entre Ariano e sua terra-sertão, um

estranho emaranhado que os transforma num mesmo e único ser

[...]”19.

Entretanto, esse território também pode ser concebido como

o palco da resistência de Ariano Suassuna. Assim, para Deleuze &

Guattari:

O território é primeiramente a distância crítica entre dois seres de mesma espécie: marcar suas distâncias. O que é meu é primeiramente minha distância, não possuo senão distâncias. Não quero que me toquem, vou grunhir se entrarem em meu território, coloco placas20.

Será esse gesto de resistência de Ariano que marcará

indelevelmente sua vida e sua obra, e que não raras vezes o

estigmatizará como o arcaísmo ambulante que alguns setores

insistirão em rotulá-lo. Ariano Suassuna empunha a sua concepção

fechada e essencialista de cultura e identidade brasileiras como

arma e símbolo de resistência a tudo que é relacionado à uma

“civilização de empréstimo, delineando o moderno como sendo seu

oposto”21, isto é, o “sertão armorial exerce, portanto, um poder de

resistência aos cosmopolitismos da sociedade industrial”22. Para

18 MOELLWALD, Branca Cabeda Egger. A “poiesis” da nação em Mia Couto. p.21 [nota de rodapé] 19 NOGUEIRA, Maria Aparecida Lopes. O cabreiro tresmalhado. p.44. 20 DELEUZE, Gilles; Félix Guattari. Mil platôs: vol. 4. p.127. 21 DIDIER, Maria Thereza. Emblemas da sagração armorial: Ariano Suassuna e o Movimento Armorial (1970/6). Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2000. p.158. 22 DIDIER, Maria Thereza. Emblemas da sagração armorial. p.158.

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Suassuna, “[t]rata-se de manter à distância as forças do caos que

batem à porta”23.

Contudo, um meio nunca é isolado em relação aos outros

meios – “todas as espécies de meios deslizavam umas em relação às

outras, umas sobre as outras”24. Desse modo estaria Suassuna

inserido em uma batalha quimérica por algo que foge

exclusivamente do seu poder? Basta afirmar que, não importa até

que ponto vá o agenciamento de formas e forças de resistência

empreendidos pelo Armorial, os meios sempre estarão abertos ao

caos, e sendo ameaçados de esgotamento ou de intrusão25. Assim, se

para o teatrólogo paraibano é preciso preservar a autenticidade e

originalidade de nossa cultura contras as influências deletérias da

sociedade de consumo, para Stuart Hall, a “política identitária

essencialista aponta para algo que vale lutar, mas não resulta

simplesmente em libertação da dominação”26.

Claro que também levo em consideração que a ideia de

identidade está referenciada a diversos outros fatores. Segundo

Milton Santos: “Sabemos que toda identidade é uma construção

simbólica que se faz em relação a um referente, e há certamente

uma multiplicidade deles: étnicos, nacionais, de gênero etc.”27.

Contudo, quando falo aqui, principalmente no que concerne à obra

de um intelectual como Ariano Suassuna, falo irremediavelmente

em relação a um lugar – uma identidade territorial. Pois quando nos

debruçamos sobre a obra desse autor, como me propus a fazer neste

trabalho, é fácil perceber a convergência do pensamento

suassuniano para um dispositivo espacial que está, explícita e

implicitamente, presente ao longo de toda a sua produção

intelectual – o Sertão nordestino. Entretanto, como veremos

23 DELEUZE, Gilles; Félix Guattari. Mil platôs: vol. 4. p.128. 24 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: vol. 4. p.118. 25 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: vol. 4. p.119. 26 HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Ed. UFMG; Brasília: UNESCO, 2003. p.12. 27 ORTIZ, Renato. Anotações sobre o universal e a diversidade. Revista Brasileira de Educação, v.12, n.34, p.7-16, jan./abr. 2007. p.13.

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[37]

adiante, esse Sertão que Suassuna privilegia em seu discurso, em

detrimento de todos os demais territórios, constitui-se apenas uma

das partes de dispositivos maiores chamados Nordeste e Brasil.

Dessa forma, a obra suassuniana estabelece e institui o sertão

nordestino como o local onde residiria a nossa pretensa

“originalidade” como povo, a “essência” do Brasil e de um “ser

brasileiro”. Logo, não se pode pretender entender o trabalho do

autor paraibano sem fazer referência à esse dispositivo espacial e

territorial denominado Sertão, pois em Ariano podemos confirmar

como é mais do que evidente o que nos atesta Marc Augé: “[n]ascer

é nascer num lugar, ser designado à residência. Nesse sentido, o

lugar de nascimento é constitutivo da identidade individual [...]”28.

Ainda segundo o etnólogo francês:

[...] o dispositivo espacial é, ao mesmo tempo, o que exprime a identidade do grupo (as origens do grupo são, muitas vezes, diversas, mas é a identidade do lugar que o funda, congrega e une) e o que o grupo deve defender contra as ameaças externas e internas para que a linguagem da identidade conserve um sentido29.

Assim, o autor paraibano construiu toda uma vida e um

movimento estético que tem o Sertão como símbolo maior. Poder-

se-ia aqui fazer a analogia de Suassuna com a de um pintor de uma

paisagem – uma paisagem nordestina e sertaneja, marcada pela

dureza e aridez da terra. Essa paisagem é onipresente em sua obra,

é o arcabouço que sustenta toda sua concepção estética e política. A

noção de Sertão30 acabou se tornando tão primordial na obra de

28 AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. 6.ed. Trad. Maria Lúcia Pereira. Campinas: Papirus, 2007. (Coleção Travessia do Século). p.52. 29 AUGÉ, Marc. Não-lugares. p.45. 30 Tal é a importância do Sertão sobre o espaço brasileiro, que se tornou uma “referência institucionalizada”. Segundo Janaina Amado: “o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), designa [sertão] oficialmente uma das subáreas nordestinas, árida e pobre, situada a oeste das duas outras, a saber: ‘agreste’ e ‘zona da mata’”. In: AMADO,

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Suassuna como o é para o povo nordestino. Para a estudiosa Janaina

Amado, a categoria Sertão “entre os nordestinos, é tão crucial, tão

prenhe de significados, que, sem ele, a própria noção de ‘Nordeste’

se esvazia, carente de um de seus referenciais essenciais”31, tal o

investimento nos atributos existenciais e afetivos que vem sendo

engendrados há um longo tempo sobre essa região32.

Como vimos, no caso específico de Suassuna há uma

identificação do autor com seu local de origem, sua terra natal.

Velho habitante de uma região, com uma visão nostálgica do lugar –

lugar este marcado por visões da infância –, Ariano se recusa a

aceitar o diálogo com a exterioridade e luta contra as mudanças

objetivadas pela modernidade. Assim, nasce a relação de Ariano

Suassuna com o Sertão, através de um sentimento ao mesmo tempo

de perda e de saudade, que ficará marcado como ferro em brasa ao

longo de toda a sua obra – “desejo de reconciliação entre passado e

presente, desejo de retorno a um espaço circunscrito, que protege e

é protegido”33.

Dessa forma o Nordeste, e o Sertão em particular, torna-se o

símbolo representativo do universo suassuniano, o suporte axial da

sua produção literária, estética e política. Uma paisagem imaginária,

Janaina. Região, sertão, nação. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v.8, n.15, 1995. Disponível em: <http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/169.pdf>. Acesso em: 2 ago. 2008. p.1. 31 AMADO, Janaina. Região, sertão, nação. p.1. 32 Foi “o discurso romântico” que engendrou uma imagem do sertão como paraíso terreal, seguindo o pensamento de Rousseau, onde o sertanejo passou a encarnar o estereótipo do bom selvagem. De acordo com Ricardo de Oliveira, “[...] a produção do sertão como símbolo de originalidade do Brasil está intimamente relacionado ao processo de construção do discurso nacional no país”. Nesse período, acontece a articulação, onde “[f]icção e história imaginaram o sertão tendo a priori a crença de que se trata de alguma coisa íntima, genuína, autêntica, de raiz, ou seja, algo realmente brasileiro”, sendo responsáveis (historiografia e ficção), pela “instituição desta mitologia no imaginário social”. In: OLIVEIRA, Ricardo. Ficção, ciência, história e a invenção da Brasilidade Sertaneja. Ipotesi – Revista de Estudos Literários, Juiz de Fora, MG, v.4, n.1, 2000. p.39. 33 VENTURA, Leonardo Carneiro. Música dos espaços: “paisagem sonora” do Nordeste no Movimento Armorial. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2007. p.51.

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“fruto de um discurso fundado ‘na saudade e na tradição’”34. É o

Sertão que Ariano Suassuna erige como símbolo de resistência:

[...] contra a invasão de seu território, a maculação de seu espaço, sendo esse imaginado e transformado futuramente num espelho daquele Nordeste idílico, pastoral, lar de sua infância remota, governada, em sua memória, por seu pai, grande aristocrata da região35.

O homem Suassuna não foge da sua biografia; cria uma

topografia e uma heterotopia36 próprias, cheias de referências a um

mundo ibérico que é transplantado para o sertão nordestino – sua

geografia imaginária – privilegiando, na sua criação, aspectos do

mundo medieval, renascentista e barroco. Para o autor, o sertão

nordestino se constitui no depositário do acervo cultural que nos

chegou da Europa, mantido “intocado” graças ao

isolamento prolongando em que a região permaneceu; pelo encontro e cruzamento contínuo de raças e culturas; pela estabilidade e longa duração de uma organização social semi-feudal de latifúndio e patriarcalismo, perpetuadora das tradições herdadas37.

Essa visão que autores como Ariano Suassuna e os artistas

armoriais defendem da relação de um lugar (Sertão) como “berço

34 VENTURA, Leonardo Carneiro. Música dos espaços. p.65. 35 VENTURA, Leonardo Carneiro. Música dos espaços. p.34. 36 Penso numa interpretação de heterotopia suassuniana no sentido atribuído a esse termo por Michel Foucault, ao refletir na postura de Ariano Suassuna de instituir um “lugar-outro” (sertão), que serve como espaço de contestação “simultaneamente mítica e real”. Para Ariano, essa heterotopia denominada Sertão seria o “lugar onde as coisas encontravam as suas bases e estabilidades naturais”. – FOUCAULT, Michel. De outros espaços. Tradução de Pedro Moura. Virose – Arte, teoria, prática. Disponível em: <http://www.virose.pt/vector/periferia/foucault_pt.html>. Acesso em: 5 abr. 2010. 37 VASSALO, Ligia apud SZESZ, Christiane. Uma história intelectual de Ariano Suassuna: leituras e apropriações. Tese (Doutorado em História) – Universidade de Brasília, Brasília, 2007. p.2.

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[40]

sagrado”, essa ideia de pertencimento a um grupo ainda não deixou

de ter forte ressonância em nossos dias. Isso ocorre porque o sujeito

sente necessidade de pensar em si como algo mais amplo, “como um

membro de uma sociedade, grupo, classe, estado ou nação, de algum

arranjo, ao qual ele pode até não dar um nome, mas que ele

reconhece instintivamente como seu lar”38. Segundo Stuart Hall,

No mundo moderno, as culturas nacionais em que nascemos se constituem em uma das principais fontes de identidade cultural. [...] Essas identidades não estão literalmente impressas em nossos genes. Entretanto, nós efetivamente pensamos nelas como se fossem parte de nossa natureza essencial39.

Esse tipo de posicionamento se deve, segundo José Luís

Pardo, porque ainda

Tendemos a pensar que no princípio eram os lugares, que os lugares são algo assim como coisas naturais, produtos espontâneos da natureza que proporcionam aos homens e às coisas uma significação própria e reta, uma origem, uma morada e um destino que não são frutos de eleições ou convenções, que não estão submetidos às arbitrariedades das conjunturas históricas, que são algo sagrado e, de certo modo, eterno.40

Igualmente Milton Santos nos atesta: “Vivemos com uma

noção de território herdada da Modernidade incompleta e do seu

38 SCRUTON, Roger apud HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. 8.ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. p.48. 39 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. p.47. 40 PARDO, José Luis. A qualquer coisa chamam Arte. Ensaio sobre a falta de lugares. In: LARROSA, Jorge; SKLIAR, Carlos. Habitantes de Babel: políticas e poéticas da diferença. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. p.215.

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[41]

legado de conceitos puros, tantas vezes atravessando os séculos

praticamente intocados”41.

Contundo, acredito que o “que faz um lugar é uma impureza

na origem”42. Por isso a impossibilidade de se pensar em uma

originalidade cultural brasileira, como o quer Ariano Suassuna e

outros pensadores do gênero. A própria noção de Brasil não deixa

de ser “meio falsa, meio convencional”43. Essa ficção chamada Brasil

faz parte de um contexto muito maior onde coexistem e se

compartilham “semi-falsidades” e ficções denominadas Argentina,

Uruguai, Paraguai, Venezuela, só para ficarmos pela vizinhança. As

fronteiras entre esses países ou nações são o resultado de um

complexo jogo político e econômico que assim as consolidou, ou

melhor, as convencionou, já que a palavra “consolidar” pode dar a

perceber uma falsa estabilidade que na realidade não existe. As

mesmas leis que convencionaram essas fronteiras, como as

conhecemos atualmente, podem ser revogadas e reescritas, visto

que

não é a tradição o que legitima essas fronteiras – não é o fato de “haver sido” ou de ser “coisa do passado” –, fronteiras que nada têm de natural ou genuíno, senão que os acordos internacionais exigem – enquanto exijam – a obrigação e o direito de respeitá-las. Ou seja, que de certo modo são ficções, porém ficções consolidadas pela convenção e pela submissão voluntária44.

Como vimos no começo desse ensaio, Ariano é descendente

de um pensamento recorrente na nossa história, de uma geração na

qual “[...] os sentimentos de pertencimento territorial vêm sendo

41 SANTOS, Milton. O retorno do território. In: SANTOS, Milton; Souza Maria Adélia A. de; SILVEIRA, Maria Laura (org.). Território: globalização e fragmentação. 4.ed. São Paulo: HUCITEC: ANPUR, 1998. (Geografia: Teoria e realidade, 30). p.15. 42 PARDO, José Luis. A qualquer coisa chamam Arte. Ensaio sobre a falta de lugares. p.224. 43 PARDO, José Luis. A qualquer coisa chamam Arte. Ensaio sobre a falta de lugares. p.222. 44 PARDO, José Luis. A qualquer coisa chamam Arte. Ensaio sobre a falta de lugares. p.222.

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‘pintados’ pelos sujeitos sociais em paisagens metonímicas

transformadas em ‘monumentos culturais’, com toda a ênfase

possível”45. Dessa forma, as identidades territoriais encontram nas

paisagens uma fonte de simbolismos e um meio de expressão

privilegiados. Logo, a compreensão do que representaria para

Ariano Suassuna essa paisagem sertaneja, constituir-se-ia um

instrumento de apreensão dos sentidos e tensões dos processos de

simbolização envolvidos na construção do sentimento de pertencer

à uma região.

Conforme Albuquerque Júnior atesta em A invenção do

Nordeste e outras artes, o Nordeste foi o espaço privilegiado para

onde os olhares de autores como Suassuna se voltaram quando se

passou a imaginar uma identidade para a nação. De acordo com esse

autor: “O Nordeste não é recortado só como unidade econômica,

política ou geográfica, mas, primordialmente, como um campo de

estudos e produção cultural, baseado numa pseudo-unidade

cultural, geográfica e étnica”46. E dentro desse dispositivo maior

denominado Nordeste, o Sertão acaba por tornar-se uma categoria

central na invenção do Brasil.

A instituição do espaço Nordeste carrega em si um

sentimento de perda. “O Nordeste nasce da construção de uma

totalidade político-cultural como reação à sensação de perda de

espaços econômicos e políticos por parte dos produtores

tradicionais de açúcar e algodão, dos comerciantes e intelectuais a

eles ligados”47. Em verdade a unidade imagético-discursiva

Nordeste tem sua origem na tentativa de se manter privilégios e

garantir espaços sociais ameaçados pela nova ordem. São os filhos

dessa elite em decadência, oriundos do patriarcalismo rural, e

educados principalmente no Recife, então o “centro comercial e 45 MACIEL, Caio Augusto Amorim. Qual é a do Cariri?: questões de identidade regional e caricatura. Tendências: Caderno de Ciências Sociais, edição suplementar (jun/2009), Universidade Regional do Cariri – URCA, Crato, 2009. p.11. 46 ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. Recife: FJN/Massangana; São Paulo: Cortez, 1999. (Estudo e pesquisas, 104). p.23. 47 ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. A invenção do nordeste e outras artes. p.67.

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exportador, centro médico, cultural e educacional”48 da região, que

darão voz a um discurso de resgate de uma tradição que estava se

perdendo, e com ela todo um referencial social e existencial. “A

perda é o processo pelo qual estes indivíduos tomam consciência da

necessidade de construir algo que está se acabando”49. Na saudade e

na tradição nasce uma unidade imagético-discursiva denominada

Nordeste, fruto da reação de uma elite que vinha perdendo força e

espaço. Entretanto, sabemos que a região não é algo dado, espaço

homogêneo, que sempre existiu, como muitos tentam propagar,

visando, lógico, os próprios interesses, sejam eles políticos ou

econômicos, ou mesmo sentimentais.

Logo, o Nordeste, como identidade espacial, nasce do

“entrecruzamento de práticas e discursos ‘regionalistas’”50. Nos seus

estudos, Caio Augusto Amorim Maciel já vem tratando há algum

tempo do “problema da identidade territorial e sua relação com

discursos regionalistas através da hermenêutica das paisagens,

tomando-as enquanto fontes de simbolismo e meios de expressão

do caráter de espaços culturalmente específicos”51. Dessa forma

segundo esse autor, “[p]ersonalidades como Ariano Suassuna, para

o sertão da Paraíba e Pernambuco, ilustram bem a habilidade desses

guardiões da memória socioterritorial de um povo, ainda que

representem o olhar de uma classe”52. E como já vimos, de uma

classe que vinha perdendo o espaço que tradicionalmente ocupava

dentro da realidade sócio-econômica do lugar. Logo, esse Nordeste

que conhecemos hoje se trata

da produção histórica de um espaço social e afetivo, ao longo de muitas décadas, a partir de diferentes discursos que lhe atribuíram determinadas características físicas e que o

48 ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. A invenção do nordeste e outras artes. p.71. 49 ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. A invenção do nordeste e outras artes. p.77. 50 ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. A invenção do nordeste e outras artes. p.22. 51 MACIEL, Caio Augusto Amorim. Qual é a do Cariri? p.9. 52 MACIEL, Caio Augusto Amorim. Qual é a do Cariri? p.14.

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investiram de inúmeros atributos morais, culturais, simbólicos, sexualizantes, às vezes, enervantes53.

De qualquer forma, o Nordeste acaba incorporado ao

imaginário popular como um lugar de subdesenvolvimento,

povoado de figuras míticas de cangaceiros (Lampião e Maria

Bonita), da religiosidade exacerbada (Padre Cícero), que muitas

vezes acaba gerando o surgimento de movimentos messiânicos

(Canudos), das figuras autoritárias dos coronéis, das secas

inclementes que afetam a região e seu povo. Mas também como uma

região rica através das manifestações culturais desse mesmo povo,

manifestações essas originárias de uma tradição que remonta,

segundo alguns insistem em alardear, à origem mesma do Brasil,

vindo daí sua importância. É essa vertente de pensamento, e sobre a

importância da temática popular, que vai originar, em diversos

momentos da nossa história, uma retomada dos valores

emblemáticos (e porque não, problemáticos) de uma verdadeira

cultura nacional, sendo o Nordeste e o Sertão núcleos privilegiados

desse discurso. Vertente essa que dará origem ao pensamento

arcaico ou arcaizante de um Ariano Suassuna.

Essa é sempre uma questão polêmica de se tocar, contudo,

como já esclareci no começo desse ensaio, não se pode querer

analisar a obra de Ariano Suassuna sem ao menos resvalar pelo

tema do que representaria o nacional dentro da obra do autor

paraibano. Como já afirmei, é em defesa dessa pretensa

nacionalidade, de uma suposta originalidade cultural brotada do

solo pedregoso e áspero do Sertão nordestino, que Ariano acaba

erigindo meu universo mítico-poético. Logo, essa idealização de seu

lugar de origem – fruto muito mais da emoção do que da razão – é

fundamental para a compreensão da estética armorial e de todo o

discurso retórico que ela acaba suscitando e alimentando. As

53 RAGO, Margareth. Prefácio: Sonhos de Brasil. In: ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz. A invenção do nordeste e outras artes. p.14.

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posições de Ariano Suassuna são radicais, mais imprescindíveis

para o entendimento da produção artística desse autor.

Nesse sentido, faço minhas as palavras de Leyla Perrone-

Moisés que afirma: “Ainda hoje, em várias partes do mundo, certos

intelectuais continuam defendendo, no campo da cultura, uma

‘identidade nacional’ que só existia, no passado, como imaginário

útil ao Estado-nação”54. Discurso este hoje insustentável, pois

segundo essa mesma autora: “[...] a busca de uma essência nacional,

visando a conquistar um lugar honroso no conjunto das nações,

esbarra sempre no paradoxo de reforçar o localismo e o

provincialismo, embora o objetivo maior seja provar o valor

universal dessa particularidade”55. E embora Suassuna e os

armoriais não gostem de ser tachados de “regionalistas estreitos”,

seu posicionamento apenas reforça esse tipo de “localismo”

mencionado por Perrone-Moisés. Nesse sentido, a posição

ideológica de Ariano ao adotar unicamente as manifestações de uma

denominada cultura popular, sendo essa cultura representada por

aqueles elementos que, segundo escolha do próprio autor,

simbolizariam uma pretensa originalidade, acaba deixando de fora

todo um mundo que não cabe nessa atitude museológica

suassuniana. A posição de Suassuna acaba reproduzindo uma visão

estagnada de cultura, nega-lhe o diálogo com a diversidade cultural

que constitui o país, diversidade essa que é a própria fonte de

criação, renovação e transformação de uma cultura. E como nos

atesta Marc Augé,

Uma cultura que se reproduz de maneira idêntica (uma cultura de reserva ou de gueto) é um câncer sociológico, uma condenação à morte, assim como uma língua que não se fala mais, que não inventa mais, que não se deixa contaminar por outras línguas, é uma língua

54 PERRONE-MOISÉS, Leyla. Vira e mexe, nacionalismo: paradoxos do nacionalismo literário. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p.15. 55 PERRONE-MOISÉS, Leyla. Vira e mexe, nacionalismo. p.36.

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morta. Portanto, há sempre um certo perigo em querer defender ou proteger as culturas e uma certa ilusão em querer buscar sua pureza perdida. Elas só vivem por serem capazes de se transformar56.

E é ainda em Perrone-Moisés que acabo encontrando:

“Opondo-se ao ‘mundo’, a cultura teimosamente nacional se

reconhece como menor, como aldeã”57. Devemos, então, seguir

rumo a “abertura para uma nova hermenêutica”, como sugere

Heloisa Toller Gomes, ao afirmar que

Setores progressistas da intelectualidade internacional têm buscado novas abordagens capazes de melhor dar conta da produção cultural do presente e do passado, sem as peias do “temor reverencial” que, tradicionalmente, cerceava a leitura dos fenômenos culturais em nossa cultura58.

Uma mudança de paradigma deve ser alcançada pois, se ao

longo dos séculos caminhamos em busca “da antiga comunhão

individual dos lugares com o Universo”, hodiernamente seguimos

rumo a uma maior comunhão global, uma maior interrelação

planetária, dessa forma “a interdependência universal dos lugares é

a nova realidade do território”59.

Finalmente se, nos dizeres de Wilton Fred Cardoso de

Oliveira, “[t]odo discurso é datado e sustentado por condições que o

tornam possível”60, essa postura ideológica de Suassuna e de outros

pensadores talvez fizesse sentido em um momento histórico de

56 AUGÉ, Marc. A guerra dos sonhos: exercícios de etnoficção. Trad. Maria Lúcia Pereira. Campinas: Papirus, 1998. p.24-25. 57 PERRONE-MOISÉS, Leyla. Vira e mexe, nacionalismo. p.36. 58 GOMES, Heloisa Toller. Quando os outros somos nós: o lugar da crítica Pós-Colonial na universidade brasileira. Acta, Ciências Humanas, Maringá, v.29, n.2, 2007. p.99 e 100. 59 SANTOS, Milton. O retorno do território. p.15. 60 OLIVEIRA, Wilton Fred Cardoso. Imaginários de nação no romance brasileiro contemporâneo. p.2.

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formação do povo brasileiro, no qual uma pretensa unidade e

estabilidade deveriam ser sustentadas. Ela possuía a força do mito, e

como Stuart Hall nos esclarece, são os mitos dominantes que tem o

potencial “de moldar nossos imaginários, influenciar nossas ações,

conferir significado às nossas vidas e dar sentido à nossa história”61.

Entretanto, a realidade atual é bem diversa, e exige novas posturas

políticas e ideológicas, novas formas de se pensar nossas

identificações em termos locais e globais. Félix Guattari já nos

alertava em As três ecologias, que essa mudança consiste em “[...]

desenvolver práticas específicas que tendam a modificar e a

reinventar maneiras de ser no seio do casal, da família, do contexto

urbano, do trabalho etc.”62. Igualmente, conforme esse autor

[...] seria inconcebível retornar a fórmulas anteriores, correspondentes a períodos nos quais, ao mesmo tempo, a densidade demográfica era mais fraca e a densidade das relações sociais mais fortes que hoje. A questão será literalmente reconstruir o conjunto das modalidades do ser-em-grupo63.

Dessa forma, Ariano Suassuna caminha na contramão dos

vários discursos da modernidade surgidos em diferentes direções

do globo, e que tentam apontar a impossibilidade, hoje, desse tipo

de manifestação que visa a restauração nostálgica e utópica de uma

tradição e da origem edênica de uma nação e de um povo, como se a

ideia de um lugar sagrado, que existiu desde sempre, desde o

começo dos tempos, devesse ser resgatada e preservada dos

influxos degenerativos da pós-modernidade.

61 HALL, Stuart. Da diáspora. p.29. 62 GUATTARI, Félix. As três ecologias. Trad. Maria Cristina F. Bittencourt; revisão da trad. Suely Rolnik. 11.ed. Campinas, SP: Papirus, 2001. p.15-16. 63 GUATTARI, Félix. As três ecologias. p.16.

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A dureza do cactus versus a doçura da cana

A doçura das terras de massapé contrasta com o

ranger da raiva terrível das areias secas dos sertões.

GILBERTO FREYRE

Como venho mencionado ao longo desse ensaio, meu objetivo

aqui é estudar a obra de Ariano Suassuna a partir do elemento que

considero essencial dentro do universo desse autor – a idealização

que ele faz do Sertão nordestino. Lugar ideal primeiro por

representar o espaço perdido de uma infância remota e das

lembranças por ela suscitadas. Ideal igualmente por se caracterizar

como o fechamento estético de um território que supostamente

preservaria uma cultura essencialmente brasileira. É no sertão que

brota o que existe, segundo Suassuna, de mais autêntico na nossa

cultura, resultado da fusão dos contrários que seria a característica

mais marcante do povo brasileiro. União que se completaria de

forma mais evidente nesse espaço sertanejo, resultado do amálgama

dos elementos ibero-mouros, negros e indígenas de nossa formação

cultural. É o Sertão igualmente o que Suassuna empunha como

defesa contra as influências de uma cultura de massa vinda com o

processo de globalização. Cultura essa vista como responsável

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muitas vezes pela deterioração e desconfiguração das raízes

nacionais.

Contudo o Nordeste não é só o Sertão como se poderia pensar

ao estudar a obra de Ariano Suassuna. O Nordeste é também o

agreste, essa terra de transição entre dois mundos – sertão e zona

da mata. E o Nordeste é também a Zona da Mata – Zona do Açúcar –,

de Gilberto Freyre, universo que poderíamos caracterizar como

antípoda ao mundo suassuniano.

Em seu livro Nordeste: aspectos da influencia da cana sobre a

vida e a paisagem do Nordeste do Brasil (1937), o sociólogo recifense

nos revela, em sua linguagem poético-intuitiva, a existência desses

dois mundos:

Os sertões de areia seca rangendo debaixo dos pés. Os sertões de paisagens duras doendo nos olhos. Os mandacarús. Os bois e os cavalos angulosos. As sombras leves como umas almas do outro mundo com medo do sol. Mas esse Nordeste de figuras de homens e de bichos se alongando quase em figuras de El Greco é apenas um lado do Nordeste.64

E continua a sua descrição:

O outro Nordeste. Mas velho que ele é o Nordeste de árvores gordas, de sombras profundas, de bois pachorrentos, de gente vagarosa e às vezes arredondada quase em sanchos-panças pelo mel de engenho, pelo peixe cozido com pirão, pelo trabalho parado e sempre o mesmo, opilação, pela aguardente, pela garapa de cana, pelo feijão de coco, pelos vermes, pela erisipela, pelo ocio, pelas doenças

64 FREYRE, Gilberto. Nordeste: aspectos da influencia da cana sobre a vida e a paisagem do Nordeste do Brasil. 2.ed. rev.aum. Rio de Janeiro: José Olympio, 1951. p.35.

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que fazem a pessoa inchar, pelo proprio mal de comer terra.65

Quanta diferença desse Nordeste de Gilberto Freyre para

aquele outro de Ariano Suassuna! O próprio Ariano reconhece que o

seu “Sertão é pobre, pardo, espinhento, pedregoso e empoeirado”66.

Já para Freyre o seu Nordeste é aquele onde “nunca deixa de haver

uma mancha dágua: um avanço de mar, um rio, um riacho, o

esverdeado de uma lagoa. Onde a água faz da terra mais mole o que

quer: inventa ilhas, desmancha istmos e cabos, altera a seu gosto a

geografia convencional dos compendios”67.

Já no prefácio de Nordeste, Gilberto Freyre adverte ao seu

leitor que tratará apenas de um dos Nordestes, o “Nordeste agrário”

– o seu Nordeste. O Nordeste agrário é o da “cana de açúcar, que se

alonga por terras de massapê e por varzeas, do Norte da Bahia ao

Maranhão, sem nunca se afastar muito da costa”68. Segundo o

sociólogo recifense, com esse livro ele tivera o objetivo de “esboçar

a fisionomia daquele Nordeste agrário, hoje decadente, que foi, por

algum tempo, o centro da civilização brasileira”69.

Para Freyre foi nesse Nordeste que nasceu a civilização

brasileira. Explica:

A verdade é que foi no extremo Nordeste – por extremo Nordeste deve entender-se o trecho da região agraria do Norte que vai de Sergipe ao Ceará – e ao Recôncavo baiano – nas suas melhores terras de barro e humus – que primeiro se fixaram e tomaram fisionomia brasileira, os traços, os valores, as tradições portuguesas que junto com as africanas e as

65 FREYRE, Gilberto. Nordeste. p.35. 66 SUASSUNA, Ariano apud NOGUEIRA, Maria Aparecida Lopes. O cabreiro tresmalhado, p.44. 67 FREYRE, Gilberto. Nordeste. p.35-36. 68 FREYRE, Gilberto. Nordeste. p.11. 69 FREYRE, Gilberto. Nordeste. p.11.

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indígenas constituiram aquele Brasil profundo, que hoje se sente ser o mais brasileiro70.

Para o autor, nada esclarece metaforicamente melhor a

facilidade de fixação do elemento português nessas terras do litoral

do que a presença, nessa região, do solo de Massapê. Pois,

[o] massapê é acomodaticio. É uma terra doce ainda hoje. Não tem aquele ranger da areia dos sertões que parece repelir a bota do europeu e o pé do africano, a pata do boi e o casco do cavalo, a raiz da mangueira da India e o broto da cana, com o mesmo enjoo de quem repelisse uma afronta ou uma intrusão. A doçura das terras de massapê contrasta com o ranger da raiva terrível das areias secas do sertão71.

E completa:

O massapê tem outra resistência e outra nobreza. Tem profundidade. É terra doce sem deixar de ser terra firme: o bastante para que nela se construa com solidez engenho, casa e capela. Nessas manchas de terra pegajenta foi possível fundar-se a civilização moderna mais cheia de qualidades, de permanencia e ao mesmo tempo de plasticidade que já se fundou nos trópicos72.

Escrito em 1937, o livro de Freyre também já demonstrava

um pensamento preocupado com as questões ambientais do seu

tempo, em aproximação ao discurso ecológico que hoje é tão

comum. Esse foi um dos pioneirismos de Gilberto Freyre – escrever

sobre essas questões “em uma época ainda despreocupada com

70 FREYRE, Gilberto. Nordeste. p.43. 71 FREYRE, Gilberto. Nordeste. p.37-38. 72 FREYRE, Gilberto. Nordeste. p.38.

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assuntos de ecologia”73. Posteriormente, em Homens, engenharias e

rumos sociais, o próprio Freyre reconhece esse pioneirismo ao

afirmar que foi em Nordeste que “pela primeira vez em língua

portuguesa, falou-se em ‘ecologia’, em ‘equilíbrio ecológico’, em

‘desequilíbrio ecológico’, em ‘poluição’ (de águas, de rios, de

ambientes)”74. Segundo Ana Luiza Andrade,

Nordeste retoma preocupações atuais, tocantes aos problemas da falta de água que ameaça o planeta e à violência urbana, cujas origens históricas de tensões sociais formam-se desde um processo de urbanização, em suas falhas oriundas da escravidão, causando o descompasso entre centros urbanos progressistas e desenvolvidos versus periferias atrasadas e pobres75.

Já em sua época o sociólogo recifense acreditava na

importância de um estudo de “critério ecológico” sobre a região

Nordeste. Estudo que tivesse como interesse o “homem colonizador

em suas relações com a terra, com o nativo, com as águas, com as

plantas, com os animais da região ou importados da Europa ou da

África”76. A principal preocupação de Freyre era com a degradação

imposta àquela região pelas grandes propriedades de monocultura

da cana, que, desde o período colonial, instalaram-se na Zona da

Mata. Traça, o autor, um perfil de como era essa região antes do

cultivo da cana: “um arvoredo ‘tanto e tamanho e tão basto e de

tantas prumagens que não podia homem dar conta’”77. Depois da

instalação da cultura da cana, a paisagem passou a ser outra:

73 ANDRADE, Ana Luiza. Outros perfis de Gilberto Freyre: voltas duras/dóceis ao cotidiano dos brasileiros. São Paulo: Nankin, 2007. p.71. 74 FREYRE, Gilberto. Homens, engenharias e rumos sociais. Rio de Janeiro: Record, 1987. p.21-22. 75 ANDRADE, Ana Luiza. Outros perfis de Gilberto Freyre. p.45-46. 76 FREYRE, Gilberto. Nordeste. p.11. 77 FREYRE, Gilberto. Nordeste. p.95.

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O canavial hoje tão nosso, tão da paisagem desta sub-região do Nordeste que um tanto ironicamente se chama “a zona da mata”, entrou aqui como um conquistador em terra inimiga: matando as árvores, secando o mato, afugentando e destruindo os animais e até os índios, querendo para si toda a força da terra. Só a cana devia rebentar gorda e triunfante do meio de toda essa ruína de vegetação virgem e de vida nativa esmagada pelo monocultor78.

De acordo ainda com a interpretação de Ana Luiza Andrade,

Nordeste constitui-se um

[...] livro ensaístico de Gilberto Freyre sobre a catastrófica devastação ecológica exercida pela imposição da monocultura da cana, quanto ao seu poder de estender-se na paisagem, faz dela e do processo do engenho de extração de açúcar, em todo o seu conjunto, os grandes culpados pela extinção, dentre outros, mas, principalmente, dos rios e dos peixes, das madeiras, acirrando desigualdades sociais entre o senhor e o escravo e mesmo limitando os animais praticamente ao cavalo e ao boi79.

Igualmente, a monocultura da cana que se implantara nas

terras do Nordeste logo no início da colonização já trazia em seu

processo produtivo características de um empreendimento

industrial, “não obedecendo à etapa técnica dos meios de produção

que passa da manufatura à indústria”80. Desde o período colonial o

processamento da cana passava por uma série de casas de máquina

– “a casa da moenda, a casa da fornalha, a casa da caldeira, a casa de

purgar [...] [que] equivaliam ao modo seriado, ou seja, o que se

produz em séries, característico de uma produção industrial”81. Em

78 FREYRE, Gilberto. Nordeste. p.95. 79 ANDRADE, Ana Luiza. Outros perfis de Gilberto Freyre. p.68. 80 ANDRADE, Ana Luiza. Outros perfis de Gilberto Freyre. p.46. 81 ANDRADE, Ana Luiza. Outros perfis de Gilberto Freyre. p.46.

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Outros perfis de Gilberto Freyre, Ana Luiza Andrade assinala que a

produção açucareira “sempre objetivou o lucro, ou seja, maior

quantidade em menor tempo de produção, obedecendo à economia

de tempo de trabalho capitalista, mesmo que seu ciclo orgânico

natural de plantio e colheita fosse mais longo”82.

Também em Nordeste, se Freyre por um lado “afirma o poder

civilizatório do açúcar, em detrimento dos danos ecológicos,

causados pelas relações cana/mata, cana/água, cana/animais,

cana/homem”, no sentido inverso “denuncia os irreparáveis danos

acarretados pelo transplante da cana para o Brasil”83. Logo, o

sociólogo recifense já focava seu olhar para o desastre ambiental

que as atitudes puramente mercantilistas dos homens do tempo

produziam. O autor já prenunciava, em 1937, o que hoje pode nos

parecer mais do que evidente: “Cada vez mais, os equilíbrios

naturais dependerão das intervenções humanas”84.

É nesse Nordeste da cana que Freyre também situa a maior

contribuição que a terra deu para fundamentar a originalidade do

nosso “caráter nacional” – a mestiçagem. Segundo o sociólogo

recifense:

A história social do Nordeste da cana de açucar está ligada, como talvez a de nenhuma outra região do Brasil, ao esforço do mestiço, ou antes, do cabra. Um esforço que se tem exercido debaixo de condições duramente desfavoraveis. Mas mesmo assim, notavel pelo que tem construido e realizado.85

A ênfase que Freyre dá à mestiçagem – ao mesmo tempo

sanguínea e cultural – o autor retoma dos trabalhos de Sílvio

Romero. Contudo, se as teorias raciológicas do final do século XIX

82 ANDRADE, Ana Luiza. Outros perfis de Gilberto Freyre. p.48. 83 ANDRADE, Ana Luiza. Outros perfis de Gilberto Freyre. p.45. 84 GUATTARI, Félix. As três ecologias. p.52. 85 FREYRE, Gilberto. Nordeste. p.245-246.

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lançavam “dúvida e pessimismo quanto à formação da nação

brasileira”86 – devido a essa miscigenação –, para Freyre, “o

mestiço” transforma-se “num símbolo identitário do ser nacional”87.

Assim, segundo Maria Thereza Didier, o “resgate da tradição para

Gilberto Freyre tem um forte elo com as características étnicas da

região”88.

É nessa região da monocultura da cana que se forma, segundo

o autor, “pela especialização regional de condições de vida, de

trabalho e de alimentação [...] um tipo rural de homem do povo,

caracteristicamente brasileiro”89. E complementa mais adiante:

Para esse tipo concorreram diferentes figuras, hoje quase desconhecidas na sua pureza, do antigo sistema agrario e patriarcal: o cabra de engenho, o muleque da bagaceira, o capanga (de ordinario caboclo ou mulato), o mulato vadio caçador de passarinho, o malungo, o pajem, o branco pobre, o ‘amarelo’ livre, a mãe-preta, a mucama, o negro velho, o curandeiro, o caboclo conhecedor da mata e dos seus bichos, a ama de leite tapuia ou negra, a ‘cabra-mulher’.90

Nessas questões sobre miscigenação as ideias de Suassuna e

Freyre voltam a convergir. Suassuna também elabora, a partir da

característica da miscigenação, a designação de povo castanho

brasileiro, que, segundo ele, traduz o amálgama das influências

ibero-mouras, negras e índias que formaram o nosso povo. Ariano,

com a “idéia de ‘Castanho’ pretende expressar a síntese da cultura

brasileira”91. Mas diferente de Freyre, que localiza essa fusão na

zona da mata, para Suassuna é o Sertão o palco privilegiado onde

86 DIDIER, Maria Thereza. Emblemas da sagração armorial. p.144. 87 DIDIER, Maria Thereza. Emblemas da sagração armorial. p.144. 88 DIDIER, Maria Thereza. Emblemas da sagração armorial. p.143. 89 FREYRE, Gilberto. Nordeste. p.163. 90 FREYRE, Gilberto. Nordeste. p.163-164. 91 NOGUEIRA, Maria Aparecida. O cabreiro tresmalhado. p.105.

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essa utopia Castanha, que é o “sonho inconsciente perseguido por

todo o povo brasileiro”92, forja-se.

De maneira geral, apesar das profundas dissensões que os

separam, Freyre e Suassuna fazem parte de um grupo de

intelectuais que resolveu pensar a questão da identidade nacional a

partir da defesa de uma identidade regional, definindo a “região

Nordeste como a guardiã da verdadeira brasilidade”93. Ambos os

autores manifestaram a necessidade, e buscaram a união de vários

artistas, para empreender “o desenvolvimento cultural de sua

região, do seu país”94.

Contudo, mais do que Freyre, pode-se destacar que cabe a

Euclides da Cunha a influência decisiva no trabalho de Ariano

Suassuna. O próprio Suassuna o diz: “[...] nunca escondi, por

exemplo, que entre Euclides da Cunha e Gilberto Freyre prefiro o

autor de ‘Os Sertões’”95. Pois foi Euclides, segundo Suassuna, o

primeiro a enxergar no Sertão a possibilidade de interpretação do

Brasil profundo e real, distante dos centros cosmopolitas e

litorâneos da época, por isso mesmo livre das influências

estrangeiras que grassavam nesses centros. Também Freyre dá

testemunho da íntima ligação de o autor d’Os Sertões com essa

geografia sertaneja: “Impossível separar Euclides dessa paisagem-

mãe que se deixou interpretar por ele, e pelo seu amor e pelo seu

narcisismo, como por ninguém” 96. E acrescenta ainda:

Antes de Euclides a paisagem brasileira tivera entre os poetas e os romancistas os seus simpatizantes entusiastas: o maior deles José

92 NOGUEIRA, Maria Aparecida. O cabreiro tresmalhado. p.37. 93 DIDIER, Maria Thereza. Emblemas da sagração armorial. p.145. 94 SANTOS, Idelette Muzart Fonseca dos. O decifrador de brasilidades. Cadernos de Literatura Brasileira, Instituto Moreira Salles, São Paulo, n.10, nov.2000. p.102. 95 SUASSUNA, Ariano. Euclides da Cunha e o Brasil. Folha de S.Paulo, São Paulo, 7 ago. 2000. Ilustrada, Almanaque Armorial. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0708200021.htm>. Acesso em: 7 jul. 2008. 96 FREYRE, Gilberto. Perfil de Euclides e outros perfis. 2.ed.aum. Rio de Janeiro: Record, 1987. p.20

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de Alencar. O autor d’Os sertões foi o primeiro caso de verdadeira empatia. Simpatia só, não: empatia. Ele não só acrescentou-se aos sertões como acrescentou os sertões para sempre à sua personalidade e ao “caráter brasileiro”, de que ficou um dos exemplos mais altos e mais vivos. Uma espécie de mártir97.

Em Euclides, assim como posteriormente em Suassuna,

predomina o verticalismo das paisagens, as “figuras de homens e de

bichos se alongando quase em figuras de El Greco”98, da areia que

range sob os pés, da terra agreste e pobre, espinhenta e pedregosa,

do sol abrasador do qual se desprende um sopro ardente, dos

mandacarus, dos xique-xiques e das cabeças-de-frade, de

cangaceiros, beatos e profetas. Já em Freyre predominam a

horizontalidade de figuras gordas e arredondas “quase em sanchos-

panças”, a vegetação tropical, “o farto, o satisfeito, o mole das

formas; seus macios como que de carne; o pegajento da terra; a

doçura do massapê”99, a predominância na paisagem dos engenhos

de açúcar, da casa-grande e da senzala, da sedentária aristocracia

agrária, da Sinhá, do pajem, da mãe-preta e da mucama. Também

Ana Luiza Andrade já observara:

Com a plasticidade do pincel, Freyre observa, nas figuras, como nas paisagens de Euclides, uma tendência para o alongamento engrandecedor do monumento, descobrindo na ossatura do sertanejo vulgar e até na do caboclo desconhecido, “as linhas terrivelmente esculturais” em que “a resistência ao sol, à coragem, à dor, à doença ou simplesmente à fome os alongue em figuras de grandes da Espanha”100.

97 FREYRE, Gilberto. Perfil de Euclides e outros perfis. p.20 98 FREYRE, Gilberto. Nordeste. p.35. 99 FREYRE, Gilberto. Perfil de Euclides e outros perfis. p.24. 100 ANDRADE, Ana Luiza. Outros perfis de Gilberto Freyre. p.60.

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Nesse sentido, pode-se asseverar o que diz o estudioso Irley

Machado,

Sabe-se que a literatura inventa, cria mitos, ou ainda os reproduz como uma emanação do inconsciente coletivo do homem. Mas os mitos que vão alimentar os discursos imaginários têm acima de tudo uma ligação estreita com o mundo mítico, particular a cada autor101.

Assim, imerso no fabulário regional, Ariano Suassuna

estabeleceu no Sertão nordestino o centro de gravidade de sua obra.

“O escritor da Paraíba desenvolverá um mundo mítico único onde

dominarão as imagens do sertão”102. Já o mundo de Freyre foi outro,

a paisagem que inspirou e orientou sua produção é bem diversa de

Suassuna – o Nordeste “de terra gorda e ar oleoso”103, da cana, da

zona da mata.

Segundo Suassuna, as divergências de ideias entre ele e

Freyre podem ser localizadas temporalmente quando da escritura

da sua primeira peça teatral – Uma mulher vestida de sol. Como

relata Suassuna, essa peça ganhou um concurso no qual Gilberto

Freyre era julgador, sendo que Freyre votou em outra das peças

concorrentes. Esse acontecimento registrava, para Suassuna, dois

fatos que o separava irremediavelmente de Gilberto Freyre:

[...] em primeiro lugar, Gilberto Freyre é antes um romântico do que um clássico; êle próprio considera o movimento regional-tradicionalista como “neo-romântico, sem suas tendências gerais”; depois, êle é um homem da zona do açúcar, visceralmente ligado às formas,

101 MACHADO, Irley. As imagens da morte na epístola do adeus. Línguas & Letras, v.6, n.11, 2º sem. 2005. p.185-186. 102 MACHADO, Irley. As imagens da morte na epístola do adeus. p.186. 103 FREYRE, Gilberto. Nordeste. p.36.

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côres e coisas de sua região, enquanto eu sou um sertanejo da civilização do couro104.

Essas diferenças explicariam, para Ariano, a preferência de

Freyre por outra peça em vez da sua. Explica:

Ora, minha peça, sertaneja, com tendências antes clássicas do que românticas, concorria com outra da zona da mata, em que o sexualismo dos engenhos estava presente, através do amor incestuoso entre pai e filha. E, entre duas experiências falhadas, é natural que Gilberto Freyre tenha se inclinado por aquela que aflorava seu mundo, novamente impaciente de vê-lo vivificado e eternizado nas formas da arte105.

Desse modo, Ariano Suassuna e Gilberto Freyre são, embora

homens nordestinos e ligados indissociavelmente à essa terra,

representantes de mundos geograficamente diversos. Um,

“visceralmente ligado” à “zona do açúcar”. Outro, com suas raízes

profundamente entranhadas no solo agreste do sertão nordestino.

Assim como o homem Ariano Suassuna, sua obra foi forjada

essencialmente ao sol abrasador do Sertão. Já Gilberto Freyre é o

homem da Zona da Mata, do “Nordeste do massapê, da argila, do

humus gorduroso”, ou seja, de tudo o que “pode haver de mais

diferente do outro, de terra dura, de areia seca”106.

Entretanto, o projeto estético de Suassuna está inegavelmente

vinculado ao pensamento de intelectuais como Sílvio Romero,

Euclides da Cunha e Gilberto Freyre, mas nem por isso ele deixa de

seguir um caminho próprio. Não desconsidera a dívida do

Movimento Armorial com a Escola do Recife, de Tobias Barreto e

Silvio Romero, nem com os Modernistas de 22, tampouco com

104 SUASSUNA, Ariano. Teatro, região e tradição. In: ________. Almanaque armorial. Seleção, organização e prefácio Carlos Newton Júnior. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008. p.53-54. 105 SUASSUNA, Ariano. Teatro, região e tradição. p.54. 106 FREYRE, Gilberto. Nordeste. p.37.

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Gilberto Freyre e os Regionalistas de 26, mas não se coloca frente a

esses nomes na posição de quem não tem coragem de discordar

abertamente de suas posições107. Assim, a postura de Suassuna

coadunava-se com os Modernistas e Regionalistas em relação

principalmente com a preocupação com a cultura brasileira. No

entanto, “fazia ressalvas à abordagem de ambos os grupos”108. Em

relação ao movimento modernista o autor chega a afirmar:

[...] antipatizo terrivelmente com o movimento modernista. Minha simpatia, no âmbito dêste movimento, vai mais para aquêles que renegaram o fundamental das idéias de 22, como acontece, a meu ver, com Carlos Drummond de Andrade. Eu detesto aquilo que se chama “arte de vanguarda”. Não dá dois anos, a arte de vanguarda vira retaguarda. Esta aversão, levou-me a procurar a tradição, voltando-me para aquêles mestres que são “eternamente nossos contemporâneos”109.

Para Maria Thereza Didier, ao “revés dos modernistas, que

trilhavam sob imagens de rupturas, Suassuna enveredava-se por um

reencontro com o passado e a tradição, sem, no entanto, retomar o

aspecto naturalista da abordagem regionalista”110. Para Ariano, o

Regionalismo era uma espécie de Neo-Naturalismo e a sua obra,

com influências vindas de Gil Vicente, do Barroco e do Romanceiro

Popular possuía “um elemento mágico e poético”111, que o afastava

dos regionalistas.

107 SUASSUNA, Ariano. Gilberto Freyre e eu. Folha de S.Paulo, São Paulo, 28 ago. 2000. Ilustrada, Almanaque Armorial. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2808200025.htm>. Acesso em 7 jul. 2008. 108 DIDIER, Maria Thereza. Emblemas da sagração armorial. p.137. 109 SUASSUNA, Ariano. Teatro, região e tradição. p.483. 110 DIDIER, Maria Thereza. Emblemas da sagração armorial. p.137. 111 SUASSUNA, Ariano. O Movimento Regionalista e o Armorial. Folha de S.Paulo, São Paulo, 4 set. 2000. Ilustrada, Almanaque Armorial. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0409200022.htm>. Acesso em 7 jul. 2008.

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Divergências a parte, Suassuna sabe da dívida de sua geração

para com os Regionalistas, principalmente com Gilberto Freyre, um

dos seus mentores. Dívida expressa principalmente, segundo o

autor paraibano: na “magnífica lição de independência que Gilberto

Freyre deu a todos nós, numa época em que ela deve ter-lhe custado

muito mais do que nos custa hoje, quando os caminhos já estão

desbravados, quase todos por êle, neste campo da autonomia de

nossa cultura”112. Ressalta também a relação de proximidade entre

as ideias armoriais e a posição de Gilberto Freyre, quando este

“também faz questão de distinguir entre o artista que se serve da

arte popular como fonte, superando-a, e o que fica no que êle chama

de ‘folclorismo’ [...]”113.

Discorda, entretanto, Ariano, da maioria dos críticos quando

afirmam, sobre Freyre, que “sua sociologia não é científica”. Para

Suassuna, pelo contrário, esta se tornava mais simpática exatamente

por estar “caminhado num sentido cada vez mais aberto, mais

filosófico e, por isso mesmo, mais profundo e verdadeiro”114. E

completa: “Assim, discordando da maioria, acredito que os grandes

momentos de Gilberto Freyre são aquêles – quase todos – em que

êle deixa falar o intuitivo que há nêle”115.

No artigo “Teatro, região e tradição”, escrito por Suassuna em

1962, para o livro Gilberto Freyre: sua ciência, sua filosofia, sua arte,

o autor já deixa claro que não se “comportaria diante dele [Gilberto

Freyre] e de sua obra como os que não tinham coragem nem

disposição para qualquer discordância”116. Em artigo escrito para a

Folha de S.Paulo (28/8/2000), relembrando o texto citado

anteriormente, Suassuna diz o seguinte: “[...] nele eu afirmava que

iria evitar tanto a atitude dos que negavam a importância de

112 SUASSUNA, Ariano. Teatro, região e tradição. p.474. 113 SUASSUNA, Ariano. Teatro, região e tradição. p.478. 114 SUASSUNA, Ariano. Teatro, região e tradição. p.479. 115 SUASSUNA, Ariano. Teatro, região e tradição. p.479. 116 SUASSUNA, Ariano. Gilberto Freyre e eu.

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Gilberto Freyre quanto a dos que nunca discordavam dele”117. Dessa

forma, conforme Ariano, ele estaria prestando sua homenagem

“àquele que foi o primeiro a chamar, de modo sistemático e

constante, a nossa atenção para o fato de que significávamos algo,

dando dignidade a uma cultura, a uma maneira de vida e a uma Arte

até então desprezadas e colocadas de lado”118.

Suassuna igualmente atesta que a maior influência recebida

do Movimento Regionalista veio ainda na sua infância, do romance

nordestino – principalmente com os de José Lins do Rego –, cujo

surgimento o movimento deflagrou. Esses romances traziam um

significado especial para o menino Ariano, pois se referiam a lugares

(Itabaiana e Pilar) próximos de onde o autor morava – “eram nomes

familiares às conversas” que ele ouvia na infância. E explica o autor:

“um romance passado naquele lugar mergulhava de repente tudo

aquilo que eu conhecia no universo fascinante da arte, cujo papel de

‘solenizar a vida’ aqui se tornava efetivo, diante de meus olhos”119.

Todavia Ariano não se deixa classificar simplesmente como

regionalista, já que para ele a criação artística deve partir, sim, da

realidade circundante do artista, mas essa é somente uma posição

inicial. O artista Ariano Suassuna quer falar primeiramente da sua

Região – preferindo empregar esse termo em vez de Regionalismo,

sob o qual, segundo ele, “tem-se englobado tanta coisa de qualidade

diferente que é impossível tomar pé ante êle”120. Para Ariano, o

“regionalismo é uma posição inicial: a daquele que quer criar a

partir da realidade que o cerca. A partir daí, porém, cada um toma

seu caminho”. E completa o autor paraibano: “O que é ótimo, pois

afirma-se, de tal modo, que afinal de contas cada artista revela um

mundo que é sòmente seu”121.

117 SUASSUNA, Ariano. Gilberto Freyre e eu. 118 SUASSUNA, Ariano. Teatro, região e tradição. p.475. 119 SUASSUNA, Ariano. Teatro, região e tradição. p.482. 120 SUASSUNA, Ariano. Teatro, região e tradição. p.476. 121 SUASSUNA, Ariano. Teatro, região e tradição. p.476.

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Assim, uma atitude característica do intelectual Ariano

Suassuna sempre foi a de, sem receios, confessar abertamente as

suas influências122 – que muitas vezes foram usadas para criticar

suas posições. Tampouco ele deixa de expressar as discordâncias

que encontra no pensamento, mesmo daqueles que influenciaram

diretamente no seu trabalho. Em algumas ocasiões, ao expressar

suas discordâncias, em relação a Freyre, por exemplo, acaba

gerando mal-entendidos. E um desses momentos é quando Freyre

afirma “que a arte portuguesa é produto da cultura de uma raça

adiantada em relação aos negros e aos índios”123. Ariano discorda

dessa ideia, pois para ele, Gilberto Freyre não leva em conta a

distinção entre “civilização” e “cultura”. Conforme Suassuna:

“Evidentemente, os portugueses tinham o poderio militar e

tecnológico, mas do ponto de vista da cultura isso não significa

superioridade”124.

Dessa forma, esses dois intelectuais, com seus pensamentos

que se dobram em convergências e divergências, procuraram, cada

qual a seu modo e do seu local de origem, um entendimento do

Brasil, de nossa cultura e de nosso povo. Suassuna e Freyre

procuraram “criar, a partir de sua própria cultura e com os meios

disponíveis, mesmo que reduzidos, uma cultura original, peculiar,

com a qual a comunidade poderia identificar-se e participar

plenamente”125. Cada qual viu na sua terra, no seu entorno, as

qualificações necessárias para o engendramento de uma cultura que

se dizia autenticamente brasileira. Se Suassuna privilegia o Sertão, é

por uma questão que fala mais à emoção que à razão. Como

mencionei, é a tentativa de reconstrução de uma infância marcada

122 Segundo o próprio Suassuna: “[...] não temerei confessar influências recebidas, dele [Gilberto Freyre] como de outros: esta é uma atitude pouco generosa e tola. Aliás, se fosse me referir a todas elas, seria um nunca-acabar”. In: SUASSUNA, Ariano. Teatro, região e tradição. p.474. 123 INSTITUTO MOREIRA SALLES. Ao sol da prosa brasiliana [entrevista]. Cadernos de Literatura Brasileira, São Paulo, n.10, nov.2000. p.37. 124 INSTITUTO MOREIRA SALLES. Ao sol da prosa brasiliana [entrevista]. p.37. 125 FREYRE, Gilberto. Nordeste. p.102.

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pela perda. Perda primeira da própria terra de infância, quando o

autor já mais crescido vai estudar no Recife, e passa apenas as férias

na fazenda da família, no sertão da Paraíba. Perda da figura paterna

quase esquecida, e que inconscientemente Ariano liga ao passado

vivenciado e imaginado nessa terra sertaneja. Duas perdas que se

cristalizarão em sua visão trágica de um mundo que deve ser

protegido.

Assim, Ariano Suassuna é o homem do Sertão, mas nele reside

apenas virtualmente. É da zona da mata que ele lança seu discurso,

contraditório. Pois ao mesmo tempo em que lança severas críticas

ao mundo litorâneo e sua abertura para a assimilação de elementos

estrangeiros (como farão os mangue boys, como veremos a seguir),

nesse ambiente ganha o pão. É a fama vinda da sua popularidade no

mundo urbano moderno que permite ao autor clamar pela sua terra,

pela proteção de um sertão simbólico mais do que real.

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Contra o marasmo oficial

Um passo à frente... e você não está mais

no mesmo lugar!

CHICO SCIENCE

No documento denominado Projeto Cultural Pernambuco-

Brasil, de maio de 1995, norteador da sua gestão como secretário de

Estado da Cultura, Ariano Suassuna rebate as críticas que lhe são

feitas afirmando que “é também um mero preconceito considerar

estreita e arcaica toda obra de arte que se preocupe com a

identidade nacional”126. Neste mesmo documento ainda sustenta-se

que “de início toda obra de arte é ligada a um local determinado,

toda arte é nacional”127. A proposta de trabalho de Suassuna como

Secretário da Cultura afirma que “no Brasil como nos demais países

da América latina, a cultura ibérica romanizou o país, tornando-se

base da cultura chamada erudita. E ao ser reinterpretada por

negros, índios e mestiços, deu origem à cultura popular”128. Dessa

forma, esse documento evidencia que a ação daquela Secretaria

126 SUASSUNA, Ariano et al. Projeto Cultural Pernambuco-Brasil. Recife: Secretaria de Cultura, maio/1995. p.4. 127 SUASSUNA, Ariano et al. Projeto Cultural Pernambuco-Brasil. p.3-4. 128 SUASSUNA, Ariano et al. Projeto Cultural Pernambuco-Brasil. p.5.

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teria “como centro a arte popular brasileira, ou então aquela que,

não sendo popular de origem, é porém nacional por ser

visceralmente ligada ao popular”129.

Os autores do referido documento130, todos eles próximos,

pertencentes ou simpatizantes do Armorial e da ideologia que

produziu esse movimento, procuraram de alguma forma se eximir

de qualquer acusação de estarem privilegiando um nicho específico

de artistas em detrimento de todas as demais manifestações

artística da sociedade. Assim afirmam que o

[...] Projeto, não faz qualquer discriminação entre arte “arcaica” e arte “moderna”, entre arte “nacional” ou “universal’, entre arte “erudita” e arte “popular”. Todas elas são encaradas como pertencentes a uma imensa fraternidade, na linha da riqueza e variedade das diversas etnias que compõem nossa população. A única restrição dirige-se contra os servis e imitadores, isto é, aqueles que, confundindo inovação com renovação, se curvam ansiosos diante de qualquer “novidade” que nos vem de fora como se fosse verdadeiramente de vanguarda131.

O próprio Ariano já declarou diversas vezes que luta, sim,

pelos “seus” e que qualquer tipo de manifestação artística que não

se enquadre dentro do seu posicionamento estético não receberá

qualquer apoio da sua parte. Isso lhe vale muitas vezes severas

críticas, por muitos verem no fato de Ariano se aproveitar de cargos

e verbas públicas para financiar amigos e grupos de artistas que

tenham alguma ligação com o Movimento Armorial, uma forma de

129 SUASSUNA, Ariano et al. Projeto Cultural Pernambuco-Brasil. p.5. 130 Assinam também o documento Projeto Cultural Pernambuco-Brasil: Carlos Fontes, Raimundo Carrero, Brivaldo Campelo Filho. 131 SUASSUNA, Ariano et al. Projeto Cultural Pernambuco-Brasil. p.6.

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injusta de favorecimento em detrimento de todas as outras

manifestações artísticas132.

O autor sempre teve acesso a um púlpito privilegiado para

divulgar seu pensamento e ampliar o campo de atuação do

Armorial: primeiro com diretor do Departamento de Extensão

Cultural da UFPE (1969-1974) – que aliás coincide com o

surgimento do Movimento Armorial –; posteriormente ocupando

cargos públicos como secretário de Educação e Cultura do Recife

(1975-1978), secretário de Cultura do Estado de Pernambuco no

governo de Miguel Arraes (1995-1998), e atualmente como

secretário Especial da Cultura no governo de Eduardo Campos

(desde 2007). Assim, quando da sua posse como Secretário

Municipal da Educação e Cultura, em 1975, no seu discurso de posse

Ariano já afirmava:

Me preocupo muito com o Brasil e com a cultura brasileira. O cargo de secretário abre para mim um campo largo, onde posso, entre outras coisas, ajudar à criação de uma dança, de um teatro, de um romance ou de um cinema autenticamente brasileiro133.

Como podemos ver no relato de Maria Thereza Didier, em

Emblemas da sagração armorial:

O escritor mostrou-se empenhado em ampliar o campo de atuação armorial. No cargo de Secretário de Educação e Cultura, Suassuna pretendia realizar vários projetos no setor artístico, entre eles a formação de uma

132 Conforme Idelette Fonseca: “Com a chegada de Suassuna à direção do DEC da Universidade Federal de Pernambuco, em 1969, instaura-se uma época de compras, encomendas e bolsas de pesquisa que permitem a numerosos jovens artistas dedicar-se à própria arte durante alguns meses ou anos. Essa política de subvenção, sob formas diversas, permite a revelação de vários talentos e a confirmação de outros”. In: SANTOS, Idelette Muzart Fonseca dos. Em demanda da poética popular: Ariano Suassuna e o Movimento Armorial. Campinas (SP): Ed. Unicamp, 1999. p.55-56. 133 SUASSUNA, Ariano apud DIDIER, Maria Thereza. Emblemas da sagração armorial. p.41.

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Orquestra Armorial Brasileira e um grupo de dança armorial. Para a literatura de cordel – “o traço de ligação de todo o movimento armorial” – o escritor planejou restaurar o Mercado de São José (mercado municipal do Recife, que é o ponto de venda dos folhetinistas) e isentar de impostos os poetas populares134.

Percebe-se, pois, através do exposto por Didier, o objetivo de

Ariano, no cargo de secretário, em privilegiar artistas ou grupos que

estivessem de alguma forma ligados ao Movimento Armorial, sendo

essa posição muitas vezes criticada pelo meio artístico em geral, que

não encontrava junto à administração pública o mesmo tipo de

subvenção paternalística. Dessa forma, nesse mesmo Projeto

Cultural Pernambuco-Brasil (1995), anteriormente mencionado,

podemos conferir o favorecimento de artistas, atividades e grupos

que comungam de alguma forma com o projeto estético-ideológico

de Ariano Suassuna. Assim, estão contemplados no documento

nomes como Amaro Francisco (que faz gravuras em madeira);

Gilvan Samico (gravurista); Mestre Galdino, de Caruaru (ceramista);

Francisco Brennand (ceramista e artista plástico) – todos eles com

obras que possuem ligação com a cultura popular, como a concebe

Ariano e o Movimento Armorial135.

Menciona ainda esse documento: “Para iniciar as atividades

que, no Projeto, se ligam à Música e às Artes Cênicas, criou-se o

Grupo Romançal, onde se reúnem músicos, atores e dançarinos”136.

Idelette Muzart Fonseca dos Santos, no Em demanda da poética

popular, nos esclarece que o “Romançal”137 acabou se constituindo

134 DIDIER, Maria Thereza. Emblemas da sagração armorial. p.41-42. [grifos meus] 135 SUASSUNA, Ariano et al. Projeto Cultural Pernambuco-Brasil. p.5-6. 136 SUASSUNA, Ariano et al. Projeto Cultural Pernambuco-Brasil. p.7. 137 “A fase Romançal revelar-se-ia como uma das mais fecundas do Movimento. O trabalho da Orquestra Romançal, o lançamento do Balé Armorial (origem do atual Balé Popular do Recife) e a estréia de Antônio Carlos Nóbrega de Almeida como teatrólogo, com o espetáculo A Bandeira do Divino, podem ser caracterizados como alguns marcos desta fase”. – Disponível em:

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na terceira fase do Movimento Armorial, e teve início em “18 de

dezembro de 1975, quando a Orquestra Romançal Brasileira foi

apresentada pela primeira vez ao público pernambucano”138. Logo,

essa indicação só comprova a filiação do mencionado Grupo

Romançal, a ser criado pelo documento Projeto Cultural

Pernambuco-Brasil, ao Armorial de Suassuna. O documento ainda

prevê a criação de um Conjunto Romançal de Câmara, sob a direção

de Antônio Madureira, maestro ligado desde o início ao Movimento;

bem como a criação de uma Trupe Romançal de Teatro.

Dessa forma podemos perceber que as atividades ligadas ao

Movimento sempre tiveram apoio e subsídios de Ariano Suassuna

quando este esteve à frente de cargos públicos ao longo de sua

carreira. É também em uma edição do jornal O Estado de São Paulo

(14/3/1975), regatado por Maria Thereza Didier, que podemos

conferir a simpatia do então Ministro de Educação e Cultura, Ney

Braga, ao Movimento Armorial. Segundo aquela publicação:

“Suassuna foi convocado a Brasília pelo ministro da Educação, Ney

Braga, que pretende ajudar o movimento e patrocinar excursões do

Quinteto Armorial, que se apresentou ontem no auditório do

MEC”139. Para Maria Thereza Didier esse apoio do então ministro

deu-se porque “muitas das idéias estruturadas na Política Nacional

de Cultura implementada na gestão Ney Braga coadunavam-se com

os pressupostos armoriais”140. Segundo essa autora:

É oportuno lembrar que os programas

oficiais de cultura, no início dos anos 70, procuravam tematizar a questão da cultura brasileira pelo veio do registro e da preservação do caráter autêntico das tradições através da cultura popular, como meio de

<http://www.arianosuassuna.com.br/userfiles/file/HISTORICO_movimento_armorial2.pdf>. Acesso em: 18 jan. 2010. 138 SANTOS, Idelette Muzart Fonseca dos. Em demanda da poética popular. p.30. 139 Apud DIDIER, Maria Thereza. Emblemas da sagração armorial. p.42-43. 140 DIDIER, Maria Thereza. Emblemas da sagração armorial. p.43.

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garantir uma determinada memória nacional141.

Dessa forma, Suassuna vê sua luta refletida nos interesses

governamentais daquele período, através de objetivos que

comungavam ideologias similares, na busca de um presumível

“‘âmago do homem brasileiro’, a fim de verificar a ‘própria essência

da nossa cultura’”142. Ou seja, os interesses do governo casavam de

vez com a interpretação que Ariano Suassuna fazia da cultura e da

identidade nacional.

Críticas não faltaram e ainda não faltam às “atitudes

museológicas” do homem público Suassuna. Para o escritor

pernambucano Jomard Muniz de Brito, essa “atitude paternalista de

intelectuais (entre eles, o escritor Ariano Suassuna) com o

patrimônio folclórico”143, “não passa de uma desapropriação

cultural”144, fruto de um “discurso arcaizante e medievalista”145.

Segundo Maria Thereza Didier: “Jomard Muniz de Britto, em

contraposição à visão armorial, considera que o discurso de

valorização dos antepassados culturais se coloca contra tudo o que

vinha de novo, o que para ele empobrecia o entendimento da

cultura brasileira”146. Muniz de Britto representava, então, na cena

cultural pernambucana, o contraponto ao pensamento suassuniano.

Esse escritor e cineasta, ao contrário do autor do Auto da

Compadecida, faz uma defesa da cultura de massa como “uma

possibilidade de ‘embaralhar’ ou ‘misturar’ o que ele considerava

como dicotomia clássica, expressa no pensamento nordestino, entre

cultura popular e cultura erudita”147. Conforme Didier: “Muniz de

Britto argumentava que a ‘cultura de massa’ não é fatalmente

141 DIDIER, Maria Thereza. Emblemas da sagração armorial. p.75. 142 DIDIER, Maria Thereza. Emblemas da sagração armorial. p.81. 143 DIDIER, Maria Thereza. Emblemas da sagração armorial. p.47. 144 BRITTO, Jomard Muniz de apud DIDIER, Maria Thereza. Emblemas da sagração armorial. p.47. 145 DIDIER, Maria Thereza. Emblemas da sagração armorial. p.47. 146 DIDIER, Maria Thereza. Emblemas da sagração armorial. p.47. 147 DIDIER, Maria Thereza. Emblemas da sagração armorial. p.48.

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unificadora e propunha transformar as potencialidades técnico-

funcionais, desenvolvidas na cultura de massa, em técnico-

reflexivas, captando o real como processo evolutivo e criador”148.

Dessa forma, essas ideias o aproximam do pensamento de Walter

Benjamin.

Para Benjamin “o sentido da arte pode estar em todas as

manifestações (objetos) – tanto as denominadas artes pela tradição,

quanto as massificadas. Pois, o que define o sentido artístico é a

função política com que o objeto contradiz a lógica capitalista”149. A

preocupação de Benjamin com as relações entre arte e tecnologia

pode ser vista no conhecido ensaio “A obra de arte na era da sua

reprodutibilidade técnica”. Neste texto, Benjamin esclarece que, “em

sua essência, a obra de arte sempre foi reprodutível. O que os

homens faziam sempre podia ser imitado por outros homens”150. O

que agora se constituía novidade era a forma mecânica e industrial

como isso passou a acontecer, o que representava maior

“autonomia” do que a reprodução manual possibilitara até então.

Assim, se a obra de arte perdeu, a partir desses modernos processos

de reprodução, o que Benjamin chamou “aura”151 – que

representaria sua autenticidade152 e unicidade –, esses mesmos

processos promoveram uma maior aproximação entre a arte e o

indivíduo. Através, por exemplo, da fotografia, do disco, do cinema, a

“existência única da obra” seria substituída “por uma existência

148 DIDIER, Maria Thereza. Emblemas da sagração armorial. p.48. 149 JULIANO, Dilma Beatriz Rocha. Telenovelas brasileiras: narrativas alegóricas da indústria cultural. Tese (Doutorado em Teoria Literária) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2003. p.5. 150 BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. In: _______. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994. – (Obras escolhidas; v.1). p.166. 151 Contudo, é em outra obra – “Pequena história da fotografia” (1931) – que Benjamin mencionaria pela primeira vez a questão da “aura”. (cf. BENJAMIN, Walter. Pequena história da fotografia. In: _______. Magia e técnica, arte e política. p.101) 152 “A autenticidade de uma coisa é a quintessência de tudo o que foi transmitido da tradição, a partir de sua origem, desde sua duração material até o seu testemunho histórico”. In: BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. p.167.

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serial”153, o que satisfaria a cada vez maior tendência do homem de

querer fazer “as coisas se aproximarem”154 de si, alimentando o

sentimento de posse da mercadoria. Nas palavras de Benjamin,

“cada dia fica mais irresistível a necessidade de possuir o objeto de

tão perto quanto possível, na imagem, ou melhor, na sua

reprodução”155.

O que os avanços tecnológicos, que refletiam nas modernas

técnicas de reprodução, colocavam em jogo, segundo Benjamin,

eram mudanças profundas nas formas de concepção e percepção

das obras de arte. Contudo, conseguia ainda enxergar esse autor, na

perda da aura, uma compensação através das “capacidades

emancipatórias das novas tecnologias de reprodução”156. Segundo

Susan Buck-Morss, “Benjamin sugeria que a tendência objetiva (e

progressista) do industrialismo é a de fundir arte e tecnologia,

fantasia e função, símbolo significativo e instrumento útil, e que essa

fusão é, em realidade, a essência mesma de uma cultura

socialista”157. Já para Martha D’Angelo, em “A modernidade pelo

olhar de Walter Benjamin”:

A dessacralização da arte aurática tem um aspecto liberador, pois permitiu o rompimento com a postura reverente que a antiga aura impunha; mas tem também um aspecto opressor, pois submeteu a arte à economia de mercado158.

153 BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. p.167. 154 BENJAMIN, Walter. Pequena história da fotografia. p.102. 155 BENJAMIN, Walter. Pequena história da fotografia. p.102. 156 COETZEE, J.M. As maravilhas de Walter Benjamin. Trad. José Rubens Siqueira. Novos Estudos, n.70, nov.2004, p.104. 157 BUCK-MORSS, Susan. Dialética do olhar: Walter Benjamin e o Projeto das Passagens. Trad. Ana Luiza de Andrade. Belo Horizonte: Editora da UFMG; Chapecó: Argos, 2002. p.162. 158 D’ANGELO, Martha. A modernidade pelo olhar de Walter Benjamin. Estudos Avançados, 20 (56), 2006, p.249.

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Dessa forma é possível pensar que as novas tecnologias

vieram para mudar – e mudaram – radicalmente a vida do homem e

a forma como ele se (inter)relaciona nos diversos âmbitos da sua

existência – política, cultural, econômica, científica e socialmente.

Mas Ariano Suassuna continua a apegar-se a velhas noções, e

tem sérias restrições em aceitar o diálogo com o novo, com tudo

aquilo que não seja a reprodução da sua “representação

substancialista e imóvel de identidade e da cultura”159. Apega-se o

autor à uma realidade que efetivamente desapareceu (se é que ela

um dia existiu) ou transformou-se: velho habitante de uma região

com uma visão nostálgica do lugar, marcada por visões da infância, e

que se recusa a ver as mudanças objetivadas na paisagem que fazem

com que não seja mais o local no qual vivia. A visão suassuniana

ainda procura resgatar e cristalizar uma cultura popular que teria

sua força de resistência na tradição camponesa, como única fonte

autêntica de “brasilidade”, posição que vê o popular como “resíduo

elogiado: depósito da criatividade camponesa”160, como dito por

Canclini. Dessa forma, raras vezes Suassuna faz qualquer referência

a uma cultura popular urbana. Novamente é Nestor Garcia Canclini

que nos faz ver, nesse tipo de pensamento de Suassuna, aqueles

resquícios ainda do período romântico:

Ao decidir [os românticos] que a especificidade da cultura popular reside em sua fidelidade ao passado rural, torna-se cegos às mudanças que a redefiniam nas sociedades industriais e urbanas. Ao atribuir-lhe uma autonomia imaginada, suprimem a possibilidade de explicar o popular pelas interações que tem com a nova cultura hegemônica. O povo é ‘resgatado’, mas não conhecido161.

159 AUGÉ, Marc. A guerra dos sonhos. p.28. 160 CANCLINI, Néstor García. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. Trad. Heloísa Pezza Cintrão, Ana Regina Lessa. 4.ed.4.reimp. São Paulo: EDUSP, 2008. (Ensaios Latino-Americanos, 1). p.209. 161 CANCLINI, Néstor García. Culturas híbridas. p.210.

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Nesse sentido, “a visão positiva de Ariano Suassuna sobre

cultura popular não admite nessa noção a inclusão de quaisquer

manifestações oriundas da classe trabalhadora”162. Assim, o

posicionamento do autor paraibano, que o aproxima da visão dos

primeiros folcloristas163, mencionados por Renato Ortiz, faz

referência à apenas uma parcela de “povo”, ou seja, aquele que,

segundo Ariano, está imune às influências da modernidade,

identificando, assim, a cultura popular com o tradicional e o

primitivo, e excluindo todas as demais manifestações. Isso

pressupõe, então, a existência do que Renato Ortiz chama de “os

excluídos do organismo-nação”, pois “[n]ão é a cultura das classes

populares, enquanto modo de vida concreto, que suscita a atenção,

mas sua idealização através da noção de povo”164. E não é toda a

“cultura popular” que cabe nessa designação, como já vimos, mas

somente aquela que tem “relação com um passado imemorial”165.

Assim, para Renato Ortiz,

Os costumes, as baladas, as lendas, os folguedos, são contemplados, mas as atividades do presente são deixadas de lado. Movimento de imigração para a cidade, formas de produção, inserção do camponês na sociedade nacional, são esses os temas ausentes, tabus;

162 MARQUES, Roberta Ramos. Deslocamentos armoriais: da afirmação da épica do popular na “Nação Castanha” de Ariano Suassuna ao corpo-histórico do Grupo Grial. Tese (Doutorado em Teoria da Literatura) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2008. p.59. 163 Segundo Renato Ortiz: “Os românticos são os responsáveis pela fabricação de um popular ingênuo, anônimo, espelho da alma nacional; os folcloristas são seus continuadores, buscando no Positivismo emergente um modelo para interpretá-lo. Contrários às transformações impostas pela modernidade, eles se insurgem contra o presente industrialista das sociedades européias e ilusoriamente tentam preservar a veracidade de uma cultura ameaçada”. – ORTIZ, Renato apud MARQUES, Roberta Ramos. Deslocamentos armoriais. p.57. 164 ORTIZ, Renato; RIBEIRO, Jorge Claudio. Românticos e folcloristas: cultura popular. São Paulo: Olho d!Água, [1992]. p.26. 165 MARQUES, Roberta Ramos. Deslocamentos armoriais. p.53.

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eles escapam à própria definição do que seria o popular166.

Consonante com esse sentimento de exclusão, surge em

Pernambuco, na década de 1990, “uma efervescência cultural e

musical” que acabou se espalhando por todo o Brasil – o Movimento

Manguebeat167. Segundo Paula Tesser, “o Mangue Beat vai se

distinguir pelo fato de ter sido puxado por jovens nascidos nas

camadas populares dessa região”168, ao contrário do Regionalismo e

do Armorial que tem entre os seus idealizares elementos oriundos

da aristocracia e do patriarcado rural. Os “mangue-boys” liderados

por Francisco Assis de França (Chico Science) vão empreender um

diálogo mais radical entre a tradição e a modernidade, procurando

fugir da apatia cultural que segundo alguns reinou em Pernambuco

na década de 1980. O depoimento do cantor Alceu Valença,

publicado no Suplemento Literário do Diário Oficial de Pernambuco

(março/1992) é emblemático:

Pernambuco está velho. O novo é Jomard Muniz de Britto, Alceu Valença, Flaviola e Ave Sangria. Por que eu falo esses nomes? Eu estou louco que apareça o novo, mas não está aparecendo. O que acontece em Pernambuco é que nós somos extremamente conservadores. A gente quer que o forró seja exatamente do mesmo jeito. Nós amamos Luiz Gonzaga, e nós não temos uma noção de que Gonzaga morreu, que Alceu e Jomard vão morrer. O problema é que Pernambuco não quer a nova ordem, Pernambuco está morrendo de mofo. E nós, os grandes loucos, com tantos anos e cabelos

166 ORTIZ, Renato; RIBEIRO, Jorge Claudio. Românticos e folcloristas. p.26. 167 Foram encontradas várias formas de grafar o nome do movimento: Manguebeat, Mangue Beat e Manguebit. Neste trabalho preferi adotar a forma Manguebeat sempre que faço menção a esse Movimento. 168 TESSER, Paula. Mangue Beat: húmus cultural e social. Logos: comunicação e universidade, ano 14, n.26, 1º semestre de 2007. Disponível em: <http://www.logos.uerj.br/PDFS/26/05_PAULA_TESSER.pdf>. Acesso em: 15 abr. 2010. p.72.

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brancos, estamos atrasados. Pernambuco tem que abrir o olho169.

O Movimento Manguebeat aparece justamente nesse quadro

de apatia que se instalara no estado naquele período, e como já foi

mencionado, foi constituído por jovens que vinham das periferias

das cidades da região, originários de uma realidade de exclusão

social e cultural. Segundo Nara Aragão Fonseca, “o mangue era

apenas a tradução da inquietude de um grupo de jovens que

queriam ver a cidade sair do marasmo cultural em que se

encontrava”170. Dessa forma, a geração que estava por traz do

Movimento Mangue não se sentia representada na cena cultural

pernambucana “pois sua convivência com a cultura pop estava

sendo ignorada”171. As políticas oficiais do governo somente

incentivam a produção cultural que pregava a “conservação dos

valores tradicionais”172, sendo que o “discurso armorial, liderado

pelo discurso de Ariano Suassuna, reforçava a crença de que,

qualquer referência vinda de uma cultura de massa, tinha caráter

alienante”173. O movimento vinha, assim, para afrontar as

tendências culturais que reinavam por vários anos em Pernambuco

(Movimento Armorial e Regionalismo), reivindicando “que a cena

cultural saísse do marasmo em que se encontrava e abrisse os olhos

para o potencial que havia ali”174.

Já no manifesto de criação do movimento, chamado

Caranguejos com cérebro, Fred 04 (ou Fred Zero Quatro), apontava o

caminho:

169 VALENÇA, Alceu apud SILVEIRA, Roberto Azoubel da Mota. Mangue: uma ilustração da grande narrativa pós-moderna. Dissertação (Mestrado em Letras) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2002. p.54. 170 FONSECA, Nara Aragão. O “Manguebeat” como política de representação. Disponível em: <http://rodrigomedeiros.com.br/blog/wp-content/uploads/2010/02/artigo-nara.pdf>. Acesso em 12 maio 2010. p.1. 171 FONSECA, Nara Aragão. O “Manguebeat” como política de representação. p.5. 172 FONSECA, Nara Aragão. O “Manguebeat” como política de representação. p.4. 173 FONSECA, Nara Aragão. O “Manguebeat” como política de representação. p.5. 174 FONSECA, Nara Aragão. O “Manguebeat” como política de representação. p.6.

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Emergência! Um choque rápido ou o Recife morre de infarto! Não é preciso ser médico para saber que a maneira mais simples de parar o coração de um sujeito é obstruindo as suas veias. O modo mais rápido, também, de infartar e esvaziar a alma de uma cidade como o Recife é matar os seus rios e aterrar os seus estuários. O que fazer para não afundar na depressão crônica que paralisa os cidadãos? Como devolver o ânimo, deslobotomizar e recarregar as baterias da cidade? Simples! Basta injetar um pouco de energia na lama e estimular o que ainda resta de fertilidade nas veias do Recife175.

Ficou conhecido o debate que foi travado na época entre os

Armoriais, representados por Ariano Suassuna, e o Movimento

Mangue Beat, encabeçado na figura do cantor e compositor Chico

Science. Para os armoriais, “o Mangue estava carregado demais de

características culturais de influência americana (a começar pelo

próprio nome do seu fundador: “Science”) e por esse motivo não

podia representar, nem ser considerado como uma expressão

cultural tipicamente brasileira”176. Os tradicionalistas afirmavam

que, o “que encontramos nas músicas do Mangue Beat é o efeito da

tecnologia na arte popular”177, o que vem exatamente contra tudo o

que Suassuna e os armoriais vinham lutando. Representava assim, o

Movimento Mangue, o oposto do discurso armorial. Para Paula

Tesser:

O confronto entre Armorial vs Mangue pode ser entendido como uma representação da transição entre a modernidade e a pós-modernidade. O movimento Armorial com a

175 FRED ZERO QUATRO. Caranguejo com cérebro. Disponível em: <http://www.fafich.ufmg.br/manifestoa/pdf/caranguejos>. Acesso em: 7 mar. 2010. 176 TESSER, Paula. Mangue Beat: húmus cultural e social. p.78. 177 TESSER, Paula. Mangue Beat: húmus cultural e social. p.78.

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sua concepção de tradição, que procura afirmar sua identidade puramente nordestina e brasileira, com certa nostalgia, se caracterizaria como um movimento de base moderna. Enquanto o Mangue vai num sentido oposto, nele o regional surge como uma ponte, uma ferramenta que permite se abrir para o mundo. Não existem nele pressupostos estéticos e/ou territoriais. Heterogeneidade das expressões e absorção antropofágica dos conteúdos culturais impulsionados por uma necessidade gulosa, este é o princípio178.

Enquanto os Armoriais se fecham numa concepção

preservada e estagnada de cultura, negando seu diálogo com as

influências que vêm de fora e combatendo o que chamavam de

“colonização cultural”, os mangue boys utilizam-se das mesmas

referências culturais que os Armoriais sentiam necessidade de

“preservar”, como o maracatu, a ciranda, o côco, o repente e a

embolada, para mostrar como se faz a inserção do velho no novo.

Dessa forma, com “a imagem da antena parabólica fincada na lama

os mangue boys querem, com esse símbolo, estimular os artistas e a

comunidade para que se mantenham em sintonia com o mundo

exterior, sem, no entanto perder suas raízes”179. Para o jornalista

Renato Lins, um dos colaboradores do movimento, “o impulso

primordial” que levará o mangue a descobrir “o côco, o maracatu e

outros ritmos locais” não seria “uma suposta necessidade de se

preservar a cultura popular”, nisso residindo a diferença

instransponível entre o Movimento Mangue e o Movimento

Armorial180. Para o jornalista,

A tentação de colocar numa espécie de solução em formol as manifestações populares nunca

178 TESSER, Paula. Mangue Beat: húmus cultural e social. p.78. 179 TESSER, Paula. Mangue Beat: húmus cultural e social. p.78. 180 LINS, Renato apud FONSECA, Nara Aragão. O “Manguebeat” como política de representação. p.7

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fez parte de nossos planos. Muito pelo contrário, a idéia era dar condições para que elas pudessem dialogar com o mundo contemporâneo, fertilizando-se no processo e assim voltando à vida181.

Mesmo com a morte do seu principal colaborador, Chico

Science, em um acidente de carro na rodovia que liga as cidades de

Recife e Olinda, em 1997, o movimento continua, talvez não com a

repercussão que teve então. A banda original de Science, Nação

Zumbi, continua em atividade na cena musical. Outros grupos

relacionados ao movimento e que também continuam produzindo

são Mundo Livre S/A e Bonsucesso Samba Clube. Mais recentemente

o Cordel do Fogo Encantado e o cantor, compositor e percursionista

Otto (que participou inicialmente do grupo Nação Zumbi), também

guardam influências do Movimento Mangue.

Não obstante, Ariano Suassuna diz que ao longo dos anos

passou por um processo crítico de revisão de muitas das posições

que anteriormente defendia. Assim o autor chega aos anos 1980

revendo alguns de seus antigos conceitos, principalmente a visão

dicotômica que tinha entre o mundo rural, representado pelo sertão

(bem) e a cidade (mal). Para Ariano muito dessa ideia foi fruto de

uma interpretação equivocada que ele acabou fazendo sobre um

episódio da sua infância, e que envolvia seu pai, João Suassuna.

Segundo Ariano revelou em uma entrevista:

Na Paraíba de 1930, houve a cisão entre as forças rurais e as urbanas. Meu pai liderava as forças rurais e o presidente João Pessoa, na época o governador se chamava presidente, as forças urbanas. Então, um município do sertão da Paraíba, chamado Princesa, declarou independência e o líder da insurreição era um dos liderados de meu pai. Quando isso

181 LINS, Renato apud FONSECA, Nara Aragão. O “Manguebeat” como política de representação. p.7

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aconteceu, a luta se tornou armada. Eu, menino, leio todo Os Sertões e vejo as forças urbanas e capitalistas cercando Canudos e metralhando todo o povo do Brasil. No meu juízo de garoto, comecei a identificar Princesa com Canudos. Eu não percebia que havia uma diferença fundamental entre Canudos e Princesa, porque em Canudos eram forças do Brasil privilegiado atirando no povo. E, em Princesa, eram privilegiados do campo lutando contra privilegiados da cidade182.

Segundo o autor, essa constatação o fez cair numa crise muito

grande, ao perceber que tinha se deixado levar por uma paixão mais

do que pela razão dos fatos. Esse erro de interpretação o fizera, por

muitos anos, posicionar-se de forma equivocada, como havia feito

seu pai, em idealizar que “o bem era o sertão, e a cidade era o

mal”183. Conforme o próprio autor faz menção: “Com essa reflexão

comecei a descobrir que o povo do Brasil real eram os despossuídos,

na cidade ou no campo”184.

No entanto, Suassuna continua a ver o país através de uma

lógica binária185, ao dividir o panorama social e cultural nacional em

“dois Brasis”186. No seu discurso de posse na Academia Brasileira de

182 CARTA CAPITAL. Ontem era Canudos, hoje é a favela [entrevista]. Carta na Escola, fev. 2008, Ed. 23. p.7. 183 CARTA CAPITAL. Ontem era Canudos, hoje é a favela. p.7. 184 CARTA CAPITAL. Ontem era Canudos, hoje é a favela. p.7. 185 A postura ideológica de Ariano Suassuna se enquadraria na “lógica binária” comentada por Deleuze & Guattari, lógica essa que se constitui como “a realidade espiritual da árvore-raiz”. É característico desse modelo de pensamento a relação de um “dentro” e um “fora”, assim ele é “constituído pela interioridade de uma substância ou de um sujeito”. Trata-se, então, do modelo de concepção essencialista de Ariano Suassuna e demais autores que ainda seguem por essa via. Para Deleuze & Guattari: “Isto quer dizer que este pensamento nunca compreendeu a multiplicidade: ele necessita de uma forte unidade principal, unidade que é suposta para chegar a duas, segundo um método espiritual”. In: DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia: vol. 1. Trad. Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. Rio de janeiro : Ed. 34, 1995. 186 Essa divisão do país em dois Brasis já não é de agora. Também Marilene Chauí chama a atenção para essa “divisão natural do Brasil em litoral e sertão” como “uma tese de longa persistência” por aqui. Segundo a autora, essa tese foi “reafirmada com intensidade pelos integralistas dos anos 20 e 30, quando opõem o Brasil litorâneo, formal, caricatura letrada e burguesa da Europa liberal, e o Brasil sertanejo, real, pobre, analfabeto e

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Letras, em 1990, o autor adverte para a existência de um “Brasil

real” e um “Brasil oficial”, em alusão às palavras de Machado de

Assis – “O país real, esse é bom, revela os melhores instintos. Mas o

país oficial, esse é caricato e burlesco”187. Dessa forma, para Ariano,

o “Brasil real teria, na verdade, não um, mas dois emblemas, pois o

Arraial do Sertão tinha seu equivalente urbano na Favela da

cidade”188. Assim, Suassuna passa a contrapor o que aconteceu no

arraial de Canudos à realidade do que acontece hoje nas grandes

cidades brasileiras – o choque do Brasil real com o Brasil oficial.

Contudo, o autor não deixa de esclarecer que ele mesmo é

fruto da formação do Brasil oficial. Assim, “[e]gresso do Patriarcado

rural derrotado pela Burguesia urbana em 1889, 1930 e 1964,

ingressei no Patriarcado das cidades com o escritor e professor que

sempre fui”189. E o autor declara em determinado momento: “Não

me coloco hipocritamente fora do Brasil oficial, nem se trata de nos

opormos à verdadeira modernidade”190. Para Suassuna, no entanto,

essa modernidade consiste em “recriar as instituições do Brasil

oficial de acordo com a verdade do Brasil real”191, e não essa

modernidade falsa que muitos setores estão tentando impor, como

assegura Ariano. Assim, para o autor paraibano, “a falsa

modernização, no campo ou na cidade, descaracteriza, assola,

inculto”. De acordo com Plínio Salgado, fundador da Ação Integralista Brasileira (AIB), o sertão “é uma mentalidade, um estado de espírito, a brasilidade propriamente dita como sentimento da terra”. Porém, trata-se da inversão da visão que o colonizador tinha da terra quando aqui chegou. Para este, segundo Marilene Chauí, a natureza do Mundo Novo estava dilacerada entre o litoral e o sertão. Assim, “[o]s poemas e autos de Anchieta são os primeiros a construir a fratura da Natureza entre a costa litorânea, lugar do bem onde a palavra de Deus começa a frutificar, e a mata bravia, lugar do mal onde o demônio espreita, sempre pronto a atacar”. In: CHAUI, Marilena de Souza. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000. p.67, 68 e 66, respectivamente. 187 MACHADO DE ASSIS apud SUASSUNA, Ariano. Discurso de posse na Academia Brasileira de Letras. p.230 188 SUASSUNA, Ariano. Discurso de posse na Academia Brasileira de Letras. p.244-245. 189 SUASSUNA, Ariano. Discurso de posse na Academia Brasileira de Letras. p.231. 190 SUASSUNA, Ariano. Discurso de posse na Academia Brasileira de Letras. p.247. 191 SUASSUNA, Ariano. Discurso de posse na Academia Brasileira de Letras. p.247.

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destrói e avilta o povo do Brasil real”192, sendo que, conforme

Ariano, “[a]tualmente, o que estamos conseguindo é um pacto

demoníaco, através do qual vendemos a alma sem nada conseguir

para o corpo”193.

Mesmo reconhecendo seus erros, o autor não deixa de fazer

alusão à um pensamento que continua a privilegiar a cultura

campesina em detrimento de uma cultura urbana, sendo que esta

última estaria por demais aberta as “inovações” e “contaminações”

da cultura de massa, principalmente na incorporação de elementos

como o rock’n roll, o rap e o hip hop, como o fizeram mangue boys do

Movimento Manguebeat. Suassuna não aceita que o popular esteja

em diálogo com o massivo194, mas continua a ver naquele os

vestígios de uma pureza que deve ser preservada, sendo dessa

forma mantido à margem do processo histórico, que no entanto, já

não sustenta mais visões essencialistas desse tipo.

Atualmente, conforme Teixeira Coelho, trata-se de pensar o

relacionamento da cultura popular com a cultura de massa não em

termos de subordinação e exclusão, mas sim de complementação.

Em relação a isso, expõe:

[...] muitos não conseguem entender que a cultura popular é uma das fontes de uma cultura nacional, mas não a fonte, não havendo razão para usá-la como escudo num combate

192 SUASSUNA, Ariano. Discurso de posse na Academia Brasileira de Letras. p.247. 193 SUASSUNA, Ariano. Discurso de posse na Academia Brasileira de Letras. p.247. 194 Para Jesús Martín-Barbero, não podemos mais pensar a cultura popular como uma forma autônoma e distante, que se desenvolve “na ausência de contaminação e de comércio com a cultura oficial, hegemônica”, pois o popular não é algo externo ao massivo, mas sobrevive dentro dele. Ainda segundo Martín-Barbero: “Continuar a pensar o massivo como algo puramente exterior ao popular – como algo que só faz parasitar, fagocitar, vampirizar – só é possível, hoje, a partir de duas posições. Ou a partir da posição dos folcloristas, cuja missão é preservar o autêntico, cujo paradigma continua a ser rural e para os quais toda mudança é desagregação, isto é, deformação de uma forma voltada para sua pureza original. Ou a partir de uma concepção da dominação social que não pode pensar o que produzem as classes populares senão em termos de reação às induções da classe dominante. In: MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios as mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Trad. Ronald Polito e Sérgio Alcides. Prefácio Nestor García Canclini. 4.ed. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2006. p.40 e 310, respectivamente.

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contra a cultura de massa, dita também cultura pop (denominação que se pretende pejorativa). Para esses, a cultura popular (soma dos valores tradicionais de um povo, expressos em forma artística, como danças e objetos, ou nas crendices e costumes gerais) abrange todas as verdades e valores positivos, particularmente porque produzida por aqueles mesmos que a consomem, ao contrário do que ocorre com a cultura pop195.

195 COELHO, Teixeira. O que é indústria cultural. São Paulo: Brasiliense, 2003. p.20.

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PARTE DOIS

TTEERRRRIITTÓÓRRIIOO MMÍÍTTIICCOO--PPOOÉÉTTIICCOO

Por que não poderíamos começar postulando um sonho, um poema, uma sinfonia como instâncias paradigmáticas da

plenitude do Ser, e considerar o mundo físico como um modo deficiente do Ser – em vez de ver as coisas de maneira

inversa, em vez de ver, no modo imaginário (isto é, humano) de existência, um modo de ser deficiente ou secundário?

CORNELIUS CASTORIADIS

Há lugares que, por razões especiais, distinguem-se do grande espaço contínuo ordinário. A distinção entre esses

dois espaços é de origem mítica.

LÉVI-STRAUSS In: Mito e significado

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Cosmovisão sertaneja

Sabe o senhor: sertão é onde o pensamento da gente se

forma mais forte do que o poder do lugar.

GUIMARÃES ROSA

Como venho salientando até aqui, a produção artística,

estética e política de Suassuna tem como eixo principal um

dispositivo espacial denominado Sertão. Contudo, como já vimos

também, o Nordeste não é somente esse Sertão suassuniano, mas

também o agreste e a Zona da Mata de Gilberto Freyre, universos

que se atraem e distanciam contraditoriamente nas dobras do

discurso territorial suassuniano. Pertencente ao mundo urbano-

litorâneo da Zona da Mata, Suassuna permanece virtual e

sentimentalmente ligado ao território sertanejo erigido como forma

de um ritornelo existencial, supostamente ao abrigo das forças

caóticas da modernidade.

Contudo, esse espaço denominado Nordeste, como o

concebemos hoje, é uma construção recente na nossa história, fruto

do discurso patriarcal saudosista de uma geração que perdia espaço,

tanto social como econômico, como nos mostra Albuquerque Júnior

em A invenção do Nordeste e outras artes. E um dos principais

representantes desse discurso é o escritor, dramaturgo e poeta

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Ariano Suassuna. Discurso que não obstante exclui a zona da mata

freyriana, privilegiando o sertão com paisagem discursiva da

formação brasileira196. É o autor paraibano talvez o último dos

grandes nordestinos, a figura mais representativa ainda viva

daquele grupo que criou e faz mover essa máquina chamada

Nordeste. Um grupo e uma geração que instituiu um imaginário de

Nordeste e Sertão, e que, por conseguinte, o acaba difundido para o

restante do país. Logo: Nordeste/Sertão – dispositivo espacial,

afetivo e existencial, “onde a terra dura e seca recusa o pé do

homem e o ferro da enxada, um Nordeste sem água nem vegetação...

um Nordeste definido em termos de carência e de necessidade, um

Nordeste chamado sertão”197. Para esse grupo o “sertão não encolhe

frente ao avanço da civilização ‘modernizadora’, como se supunha,

mas cresce e se expande no imaginário: ‘O sertão é o mundo’, dizia

Guimarães Rosa”198.

Dessa forma, o Nordeste e o Sertão tornam-se visíveis no

conjunto da obra de um Ariano Suassuna, bem como nas obras de

toda uma geração de artistas armoriais que Suassuna inspirou.

Como nos confirma uma das maiores estudiosas sobre o autor,

Idelette Muzart Fonseca dos Santos:

O Nordeste e o sertão estão presentes nas obras armoriais: inventário da terra, dos rios, da fauna e da flora, das casas e dos homens, em Marcus Acioly; paixão das paisagens, das cores, dos cheiros e dos ruídos, tanto do sertão quando da zona da Mata, em Maximiliano Campos; enfim, sertão cotidiano e eterno, histórico e mítico, vivo e resistindo às modas, em Ariano Suassuna199.

196 ANDRADE, Ana Luiza. Outros perfis de Gilberto Freyre. p.66. 197 SANTOS, Idelette Muzart Fonseca dos. Em demanda da poética popular. p.65-66. 198 SANTOS, Idelette Muzart Fonseca dos. Em demanda da poética popular. p.66. 199 SANTOS, Idelette Muzart Fonseca dos. Em demanda da poética popular. p.66.

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Assim, imerso no fabulário regional, Ariano Suassuna

estabeleceu no Sertão nordestino o centro de gravidade de sua obra.

Nesse sentido o “escritor da Paraíba desenvolverá um mundo mítico

único onde dominarão as imagens do sertão”200. Os símbolos e

imagens com os quais Ariano construirá o seu castelo sertanejo têm

origem na “cosmologia medieval”, pois, para o autor d’A Pedra do

Reino, são esses “elementos da imagética armorial que a relacionam

com um passado de tradições autênticas brasileiras”201. Dessa

forma, na sua “busca de imagens míticas milenarmente repousadas

no coração de nossa própria terra”202, Suassuna realiza um trabalho

de reelaboração simbólica desse Sertão. Perseguirá, o autor, os

elementos míticos que constituiriam uma pretensa cultura

brasileira, uma suposta singularidade que caracteriza nossa gente e

nossa gênese cultural. Não foi o único, como vimos, outros já haviam

se empenhado numa tentativa de “resgatar a cultura nacional,

construindo universos simbólicos habitados por elementos ditos

imanentes ao povo brasileiro: cordialidade, mestiçagem, tristeza e

tantas outras características”203. Para Maria Aparecida Lopes

Nogueira: “Com base no seu lugar real e mítico, a Taperoá de sua

infância, esse profeta alucinado inventa um mundo cujo núcleo

central é a presença simultânea de dois elementos, o popular e o

erudito [...]”204. É essa paisagem sertaneja que Suassuna privilegia

no seu discurso territorial, sendo o local consagrado pelo autor à

defesa e proteção de uma arte que se diz autenticamente brasileira.

Como vimos anteriormente, representa essa paisagem o

fechamento estético de um espaço geográfico, que remete ao

ritornelo de Deleuze & Guattari, enquanto agenciamento territorial.

É agenciamento territorial visto tratar-se de “um conjunto de

200 MACHADO, Irley. As imagens da morte na epístola do adeus. p.186. 201 DIDIER, Maria Thereza. Emblemas da sagração armorial. p.180. 202 BRENNAND, Francisco. Cultura brasileira: historicidade e mito. In: _______. Diálogos do paraíso perdido. Recife: Prefeitura da Cidade do Recife, 1990. p.92. 203 DIDIER, Maria Thereza. Emblemas da sagração armorial. p.18. 204 NOGUEIRA, Maria Aparecida Lopes. O cabreiro tresmalhado. p.105.

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relações materiais e de um regime de signos”205 que tenta instituir

um espaço de resistências às supostas influências deletérias de uma

cultura de exportação, representada pela cultura de massa.

Como também já foi dito aqui, esse espaço geográfico Sertão,

essa unidade territorial idealizada pelo armorial (ritornelo

existencial), pode “ser relativo tanto a um espaço vivido, quanto a

um sistema percebido no seio do qual um sujeito se sente ‘em

casa’”206. Dessa forma, o “território é sinônimo de apropriação, de

subjetivação fechada sobre si mesma”207. E como já havia afirmado

Bachelard: “[...] a casa é nosso canto do mundo. Ela é, como se diz

amiúde, o nosso primeiro universo. É um verdadeiro cosmos”208,

logo, a “casa é um corpo de imagens que dão ao homem razões ou

ilusões de estabilidade”209.

Volto a insistir que representaria, esse fechamento estético de

uma região geográfica, na concepção de autores como Suassuna,

uma forma de proteção ao processo histórico moderno de

desagregação cultural, que segundo alguns, estaria impingindo às

culturas periféricas uma forma de desconfiguração de suas raízes.

Outrossim, reforço aqui a ideia de que o Sertão seria uma

espécie de heterotopia suassuniana, um “lugar-outro”, ao mesmo

tempo real e mítico que, segundo Ariano, deve ser salvaguardado

em nome de sua suposta “pureza cultural”, ainda não corrompida

pelas forças externas. Segundo Foucault:

[...] a ideia de conseguir acumular tudo, de criar uma espécie de arquivo geral, o fechar num só lugar todos os tempos, épocas, formas e gostos,

205 ZOURABICHVILI, François. O vocabulário de Deleuze. Trad. André Telles. Rio de Janeiro, 2004. p.9 [versão eletrônica]. Disponível em: <http://www.ufrgs.br/corpoarteclinica/obra/voca.prn.pdf>. Acesso em: 23 jan 2010. 206 MOELLWALD, Branca Cabeda Egger. A “poiesis” da nação em Mia Couto. p.21 [nota de rodapé] 207 MOELLWALD, Branca Cabeda Egger. A “poiesis” da nação em Mia Couto. p.21 [nota de rodapé] 208 BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Trad. Antonio de Padua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1989. p.24. 209 BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. p.36.

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a ideia de construir um lugar de todos os tempos fora do tempo e inacessível ao desgaste que acarreta, o projecto de organizar dessa forma uma espécie de acumulação perpétua e indefinida de tempo num lugar imóvel, enfim, todo esse conceito pertence à modernidade210.

Modernidade esta que nos legou o conceito, para alguns

ultrapassado, de Nação e dos sentimentos nacionalistas que esta

ficção chamada Estado-nação suscitaria ao incutir um sentimento de

pertencimento a um local, a um povo e a uma cultura. São essas

mesmas ideias que vemos refletidas na atitude “museológica” de

Ariano e dos folcloristas do século XIX, que buscavam fundamentar

os discursos nacionalitários no estabelecimento de um vínculo

indissociável que uniria povo e nação, vínculo que deveria

preservar: um passado imemorial; um espaço sagrado, local de

origem, morada e destino; a fonte de uma cultura que representaria

toda “atividade criadora que não se aliena, que não perde a sua cor,

e seu caráter local”211.

Entretanto, volto a frisar, um meio nunca é totalmente isolado

em relação aos outros meios, como querem supor alguns pensadores

essencialistas, sempre há um deslizamento de um meio em relação

aos outros. Dessa forma, os meios sempre estarão abertos ao caos, e

sendo ameaçados de esgotamento ou de intrusão212. Ao contrário do

que insiste o pensamento suassuniano, esse lar “originário”, essa

“casa” – estrutura que abrigaria supostas essências e purezas

culturais – não é algo pré-dado, como se ali estivesse desde o

começo dos tempos. Assim, o “estar em-casa não preexiste: foi

preciso traçar um círculo em torno do centro frágil e incerto,

organizar um espaço limitado”213.

210 FOUCAULT, Michel. De outros espaços. Tradução de Pedro Moura. Virose – Arte, teoria, prática. Disponível em: <http://www.virose.pt/vector/periferia/foucault_pt.html>. Acesso em: 5 abr. 2010. 211 BRENNAND, Francisco. Cultura brasileira: historicidade e mito. p.82. 212 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: vol. 4. p.119. 213 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: vol. 4. p.116.

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Assim, esse espaço limitado e frágil seria ocupado pelo Sertão

na obra de Ariano Suassuna. Então, o Sertão se constituirá o

“símbolo primário”214 de construção de toda a sua estética armorial,

e o referente de uma fictícia gênese cultural, que brotaria deste solo

rústico, pedregoso e árido, mas nem por isso infértil, pois, como

atesta Suassuna, o sertão é “ao mesmo tempo desértico, grandioso e

épico na Seca, belo, gracioso e fértil quando fecundado pelas chuvas

de inverno”215. É essa terra – “lugar privilegiado de reunião de

contrários e por isso o mais representativo da cultura brasileira” –

que fornece ao autor paraibano o “universo simbólico de pesquisa e

criação”, onde ele vislumbra uma possível “fusão de todos os mitos

que habitaram e deram força de expressão à cultura brasileira”216. É

Francisco Brennand que vem corroborar essa ideia:

É no aproveitamento de nossas raízes próprias, no ambiente e no clima tropical em que vivemos, na força rejuvenescedora, na originalidade, na sabedoria com que saibamos explorar a nossa própria tradição, é nessas forças, todas conjugadas, que podemos criar uma arte verdadeiramente brasileira, rica em símbolos, alegorias, emblemas e mitos217.

Assim, nas imagens organizadoras do pensamento

suassuniano há a presença de elementos paradoxais, que

dialeticamente interagem – o sertão e o massapê, o bem e o mal, o

sagrado e o profano, o espiritual e o corporal, o cômico e o trágico, o

sublime e o grotesco –, num jogo de contrastes que podemos

encontrar também na arte barroca, uma das principais influências

214 Segundo Bezzera Coutinho: “Toda a cultura que nasce, se manifesta pela escolha de um ‘símbolo primário’, imagem extraída da natureza envolvente, da paisagem circundante e que é utilizada como motivo primeiro de toda a cultura artística”. In: COUTINHO, Bezzera apud BRENNAND, Francisco. Cultura brasileira: historicidade e mito. p.122-123. 215 SUASSUNA, Ariano apud DIDIER, Maria Thereza. Emblemas da sagração armorial. p.158. 216 DIDIER, Maria Thereza. Emblemas da sagração armorial. p.158 217 BRENNAND, Francisco. Cultura brasileira: historicidade e mito. p.120.

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do autor. Então, essas “imagens alimentam um simbolismo mítico

onde se conjugam o tempo, o espaço e a religião”218. E se a

“interpretação dos símbolos é significativa da maneira pessoal de

ver o mundo”219, vamos encontrar na simbologia empregada por

Suassuna os elementos formadores da sua cosmovisão sertaneja.

Outrossim, para Brennand, a dimensão simbólica expressa

pela arte é de fundamental importância na constituição de um povo.

Diz ele: “Acredito que as forças espirituais de uma nação devem

orientar as ações criadoras, a elaboração de mitos, de lendas, de

utopias, de formas alegóricas e sobretudo simbólicas, que é

igualmente uma tarefa da arte”220. E complementa:

Para que um povo possa vir a ser efetivamente grande é essencial que não lhe falte uma vigorosa capacidade para a criação de símbolos e mitos. A função simbólica e a função mítica do espírito são forças que funcionam à semelhança de mapas, guiando a ação humana através da história, criando tudo aquilo que vai sendo antecipado pela linguagem, sempre renovada pela ação fabuladora dos artistas: pintores, compositores e poetas221.

Joseph Campbell já havia alertado para a importância do mito

na elaboração artística ou de qualquer empreendimento do gênio

humano. Segundo ele:

Em todo o mundo habitado, em todas as épocas e sob todas as circunstâncias, os mitos humanos têm florescido; da mesma forma, esses mitos têm sido a viva inspiração de todos

218 MACHADO, Irley. As imagens da morte na epístola do adeus. p.186. 219 MACHADO, Irley. As imagens da morte na epístola do adeus. p.186. 220 BRENNAND, Francisco. Cultura brasileira: historicidade e mito. p.120. 221 BRENNAND, Francisco. Cultura brasileira: historicidade e mito. p.112.

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os demais produtos possíveis das atividades do corpo e da mente humanos222.

Dessa forma, ao artista caberia a criação de um mundo além

da realidade imediata. No ato criador há uma apropriação do mundo

por parte do artista, um mundo que ele passa a interpretar e

representar a partir de sua capacidade metal de simbolizar. Assim,

Mais do que homo sapiens, o homem é um animal simbólico, como definiu o filósofo alemão Ernst Cassirer (1874-1945). Somos seres simbólicos, e isso faz com que sejamos capazes de inventar e criar símbolos, ordenando e interpretando o mundo por meio de um sistema de representação223.

Segundo Cornelius Castoriadis: “Tudo o que se nos apresenta,

no mundo social-histórico, está indissociavelmente entrelaçado com

o simbólico”224. Entretanto, ainda segundo esse autor, existe um

componente essencial no símbolo que deve ser observado: “é o

componente imaginário de todo símbolo e de todo simbolismo, em

qualquer nível que se situem”225. Dessa forma, para Castoriadis, “o

imaginário deve utilizar o simbólico, não somente para ‘exprimir-

se’, o que é óbvio, mas para ‘existir’, para passar do virtual a

qualquer coisa a mais”226. Essa afirmação é confirmada por Michel

Maffesoli: “Não é a imagem que produz o imaginário, mas o

contrário. A existência de um imaginário determina a existência de

conjuntos de imagens”227. Um conjunto de imagens que, na

222 CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. Trad. Adail Ubirajara Sobral. São Paulo: Cultrix/Pensamento, 2000. p.15. 223 MARTINS, Mirian et.al. Didática do ensino da arte: a língua do mundo: poetizar, fruir e conhecer arte. São Paulo: FTD, 1998. p.36. 224 CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. 3.ed. Trad. Guy Reynaud. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. p.142. 225 CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. p.154. 226 CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. p.154. 227 MAFFESOLI, Michel. O imaginário é uma realidade. Revista Famecos, Porto Alegre, n.15, ago. 2001. p.76.

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cosmovisão sertaneja de Ariano Suassuna, irá se refletir na

configuração de um sertão telúrico e mítico. Ainda podemos

encontrar em Michel Maffesoli que, o “imaginário é algo que

ultrapassa o indivíduo, que impregna o coletivo ou, ao menos, parte

do coletivo”228. Dessa forma: “O imaginário é o estado de espírito de

um grupo, de um país, de um Estado-nação, de uma comunidade,

etc. O imaginário estabelece vínculo. É cimento social. Logo, se o

imaginário liga, une numa mesma atmosfera, não pode ser

individual”229. Refletindo essas palavras pode-se situar todo aquele

grupo de pensadores e intelectuais que tomaram para si a tarefa de

instituir um imaginário de nação brasileira, grupo do qual Ariano

Suassuna herda sua forma de narrar a Nação. Ideal que ele leva

adiante ao lançar sua proposta de interpretação da cultura

brasileira, através do Movimento Armorial.

Os armoriais, capitaneados por Ariano Suassuna, ainda

procuram recriar os símbolos de uma suposta consciência nacional

no Sertão e na cultura popular nordestina, especificamente naqueles

elementos que, segundo eles, seriam os mais representativos dessa

cultura, pois, ainda de acordo com Brennand:

há em cada sociedade humana um padrão próprio de atividade criadora que não se aliena, que não perde a sua cor, e seu caráter local. Pertence ao espírito de seu povo e é, muitas vezes, o único elemento capaz de configurar a consciência coletiva da Nação230.

Assim, a citação acima espelha o mesmo tipo de ideia que já

discuti na primeira parte desse trabalho – os armoriais ainda

acreditam em uma cultura popular que seria o resíduo autêntico de

um povo e de uma nação, como “atividade criadora que não se

aliena” por se manter, esse tipo de manifestação, às margens do

228 MAFFESOLI, Michel. O imaginário é uma realidade. p.76. 229 MAFFESOLI, Michel. O imaginário é uma realidade. p.76. 230 BRENNAND, Francisco. Cultura brasileira: historicidade e mito. p.82.

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processo histórico. Mas como já foi salientado, esse tipo de

pensamento, que fecha a cultura em um compartimento estanque,

com a justificativa de preservá-la, só produziria uma cultura

condenada à morte pois, ao tentar preservar sua suposta pureza,

estaria lhe sendo negado o diálogo com a diversidade cultural, que

possibilitaria a sua renovação e transformação, e como já nos

atestou Marc Augé, as culturas “só vivem por serem capazes de se

transformar”231.

Entretanto, é em busca desse Sertão, berço e casa do que

representaria para ele nossa suposta essência como povo, que

Ariano Suassuna empreende sua tarefa de dizer a nação. É no Sertão

nordestino, mesmo como um resultado de um pensamento dialético

em relação ao massapê, que ele buscará os elementos que

constituiriam nossa originalidade cultural. Então, ele se atribui a

tarefa de decifrar esse solo sagrado, de lhe impor um sentido232.

Para Suassuna, o sertão se constituirá “a esfinge a resolver, a Onça a

domar, mesmo sabendo que essa fera, bela como seja, é hostil e

feroz e terminará por nos despedaçar com suas garras”233.

Conforme já foi mencionado aqui, “os discursos imaginários

tem acima de tudo uma ligação estreita com o mundo mítico,

particular a cada autor”234. E o mundo de Suassuna é o mundo

nordestino-sertanejo, este é o centro de gravidade de sua obra. É a

partir desse mundo e das imagens que ele evoca, que o escritor

paraibano vai desenvolver todo o seu trabalho como artista, como

teórico, como pensador da cultura brasileira. Para Maria Aparecida

Lopes Nogueira, “o universo suassuniano, em todas as suas

dimensões, [é] um universo fenomenal regido pela recriação e

reinvenção, pelo reencantamento dos mitos do reino do sertão”235.

231 AUGÉ, Marc. A guerra dos sonhos. p.25. 232 NOGUEIRA, Maria Aparecida Lopes. O cabreiro tresmalhado. p.41. 233 SUASSUNA, Ariano apud NOGUERIA, Maria Aparecida Lopes. O cabreiro tresmalhado. p.41. 234 MACHADO, Irley. As imagens da morte na epístola do adeus. p.185-186. 235 NOGUEIRA, Maria Aparecida Lopes. O cabreiro tresmalhado. p.77.

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Entretanto, o Sertão suassuniano não é o sertão real, mas um

espaço mitificado onde a realidade sertaneja, em sua “matéria

vivida”, é transfigurada em “matéria imaginada”236. Dessa forma,

Suassuna erige um Reino onde “o real é transfigurado em um

mundo menos cruel”237, institui um espaço idílico e pastoral de uma

infância remota, recomposição da presença/ausência paterna. Esse

espaço nasce na cabeça do homem Ariano e nas suas narrativas.

Utopia? Certamente um devaneio, que “idealiza ao mesmo tempo o

seu objeto e o sonhador”238, transformando-o numa figura

quixotesca nessa modernidade líquida.

Deleuze já afirmara que, “[...] o mundo inteiro é apenas uma

virtualidade que só existe atualmente nas dobras da alma que o

expressa, alma que opera desdobras interiores pelas quais ela dá a

si própria uma representação do mundo incluída”239. O mundo

suassuniano é a representação dessa geografia imaginária urdida

pelo autor na dor, na saudade e na tradição, e “os mitos que

emergem de suas narrativas se imbricam e nos enredam nesse

sertão sonhoso”240.

Virtualidade e devaneio, paisagem sentimental e existencial

de uma “criança no escuro”, seja lá o que ela for, é “[n]a aspereza do

sertão pedregoso, [que] irrompe o encanto, o mistério, o divino, a

sagração e a transcendência dos homens e das coisas”241. É sobre

essa mitologia e simbologia suassuniana e sertaneja que me

debruçarei nas linhas que se seguem.

236 FARIAS, Sônia Lúcia Ramalho de. O sertão de José Lins do Rego e Ariano Suassuna. p.75. 237 NOGUEIRA, Maria Aparecida Lopes. O cabreiro tresmalhado. p.201. 238 BACHELARD, Gaston. Poética do devaneio. p.54. 239 DELEUZE, Gilles. A dobra: Leibniz e o barroco. 4.ed. Trad. Luiz B.L. Orlandi. Campinas, SP: Papirus, 1991. p.45. 240 NOGUEIRA, Maria Aparecida Lopes. O cabreiro tresmalhado. p.41. 241 NOGUEIRA, Maria Aparecida Lopes. O cabreiro tresmalhado. p.147.

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Uma heráldica sertaneja

Cavalo de noite, tecido de escuro,

Sem sela, sem peia, sem cilha, sem medo, Cavalo de treva, forjado em segredo,

Marcado nas ancas do fogo mais puro [...]

SILVIO ROBERTO DE OLIVEIRA

Suassuna criou, ao longo de sua carreira, uma obra rica e

altamente simbólica. De fato, a inclinação de Suassuna para o

simbólico já pode ser vista, de início, na escolha do nome que

atribuiu ao Movimento242 do qual foi um dos mentores. Segundo o

autor:

Em nosso idioma, “armorial” é somente substantivo. Passei a empregá-lo também com adjetivo. Primeiro, porque é um belo nome. Depois, porque é ligado aos esmaltes da Heráldica, limpos, nítidos, pintados sobre metal ou, por outro lado, esculpidos em pedra, com animais fabulosos, cercados por folhagens, sóis, luas e estrelas. Foi aí que, meio sério, meio

242 Segundo Idelette Muzart Fonseca dos Santos: “Armorial... palavra sonora, que evoca brasões e emblemas, palavra um pouco misteriosa que provoca estranhamento e chama a atenção”. In: SANTOS, Idelette Muzart Fonseca dos. Em demanda da poética popular. p.13.

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brincando, comecei a dizer que tal poema ou tal estandarte da Cavalhada era “armorial”, isto é, brilhava em esmaltes puros, festivos, nítidos, metálicos, coloridos, como uma bandeira, um brasão ou um toque de clarim. Lembrei-me, aí, também, das pedras armoriais dos portões e frontadas do Barroco brasileiro, e passei a estender o nome à Escultura com a qual sonhava para o Nordeste. Descobri que o nome “armorial” servia, ainda, para qualificar os “cantares” do Romanceiro, os toques de viola e rabeca dos Cantadores – toques ásperos, arcaicos, acerados como gumes de faca-de-ponta, lembrando o clavicórdio e a viola-de-arco da nossa Música barroca do século XVIII243.

Assim, Suassuna cria um neologismo para identificar a arte

que defendia e defende, uma arte erudita que vai buscar na cultura

popular a fonte de sua elaboração. Segundo o próprio Ariano

justifica, a escolha de tal nome partiu primeiramente por um motivo

estético, pela própria beleza e sonoridade que a palavra inspirava. O

segundo motivo seria ligado à sua visão heráldica244, pois essa arte,

para o autor, no Brasil seria uma arte essencialmente popular e não

burguesa.

Segundo nos atesta Newton Júnior, futuramente, quando o

Movimento começa a ganhar mais visibilidade e conquistar mais

243 SUASSUNA, Ariano. O Movimento Armorial. Separata da Revista Pernambucana de Desenvolvimento, Recife, v.4, n.1, p.39-64, jan./jun. 1977. Movimento Armorial: regional e universal. Recife: Maga Multimídia, 2008. 1 CD-ROM. 244 Segundo Luiz Marque Poliano: “A palavra heráldica vem de arauto, e este do latim heraldus, que por sua vez é originário de um primitivo germânico, herold, que significava anunciador ou pregoeiro, e, mais modernamente, Arauto ou Rei de Armas”. A ciência ou arte Heráldica é o conjunto de regras ou preceitos a que se subordinam os escudos de armas em todos os seus aspectos. “Por armas se entende a apresentação, em escudo, de peças, figuras e ornamentos constitutivos dos emblemas privativos de um Estado, de uma corporação, de uma família ou de uma autoridade civil ou eclesiástica. Tais elementos – e seu sentido especial e simbólico – se subordinam a uma codificação de uso universal, assim entendida e aplicada em todos os países, com pequena diferença entre eles”. In: POLIANO, Luiz Marques. Heráldica: escritos heráldicos-genealógicos: monografia de concurso. São Paulo: GRD; Rio de Janeiro: Instituto Municipal de Arte e Cultura, 1986. p.5.

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espaço, em diversas entrevistas, ao ser questionado sobre o nome

Armorial, Suassuna, em tom de brincadeira, acrescentava um

terceiro motivo pela escolha do nome – “a curiosidade que este

desperta devido ao desconhecimento do seu significado”245. Assim,

em uma entrevista concedida a um jornal do Rio Grande do Sul,

quando questionado sobre a escolha do nome Armorial, o autor

afirma:

Primeiro, porque é bonito. Segundo, porque sendo um nome estranho, o pessoal pergunta como você: “o que é?” – e ouvida a explicação, não esquece mais. Terceiro, porque significa esta palavra a coleção de brasões, emblemas e bandeiras de um povo246.

Conforme salientei anteriormente, Suassuna enxerga na arte

heráldica brasileira uma manifestação de arte essencialmente

popular e não burguesa. Assim,

Ariano Suassuna chamava a atenção para a existência, no Brasil, de uma rica heráldica, presente desde os ferros de marcar bois do Sertão nordestino aos emblemas dos clubes do futebol das nossas cidades grandes, passando pelas bandeiras das Cavalhadas, pelos estandartes dos Maracatus, dos Caboclinhos ou das Escolas de Samba247.

Dessa forma, podemos notar a importância da arte heráldica

na produção do autor paraibano, principalmente na sua

manifestação, conforme entrevê Suassuna, através de uma heráldica

popular brasileira, atestado pela citação anterior. Para o professor

Newton Júnior, a “ligação com essa heráldica seria um dos pontos de

245 NEWTON JÚNIOR, Carlos. O pai, o exílio e o reino: a poesia armorial de Ariano Suassuna. Recife: Editora Universitária da UFPE, 1999. p.88. 246 SUASSUNA, Ariano apud NEWTON JÚNIOR, Carlos. O pai, o exílio e o reino. p.88. 247 NEWTON JÚNIOR, Carlos. Uma heráldica de rudes brasões. In: MAIA, Virgilio. Rudes brasões: ferro e fogo das marcas avoengas. 2.ed. Cotia (SP): Ateliê Editorial, 2004. p.xi.

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partida para a realização de uma arte nova, erudita e de caráter

brasileiro – a arte armorial”248.

É principalmente uma dessas manifestações em específico de

uma heráldica popular que vai chamar a atenção de Ariano

Suassuna – a que se refere aos ferros de marcar bois do Sertão

nordestino. Segundo Newton Júnior, foi a partir de uma ideia

anterior, do escritor cearense Gustavo Barroso, que Suassuna

começa a notar a existência de uma heráldica sertaneja nesses

ferros. Conforme Newton Júnior nos informa,

[Gustavo Barroso] já havia constatado, na tradição sertaneja de criar ferros novos a partir de diferenças que os filhos acrescentavam aos ferros dos pais, do apego a uma mesa249 familiar, a existência de uma verdadeira heráldica. Uma heráldica adquirida não por mercês dos poderosos, mas forjada na luta diária do sertanejo com a Fera-sangradora que é o mundo250.

Esse tema acaba se revestindo de grande importância na

fundamentação e elaboração da arte armorial – sendo, inclusive,

uma das origens do nome do movimento, como vimos. O tema

chama tanto a atenção de Ariano, que a ele o autor dedica um livro

inteiro – Ferros do Cariri: uma heráldica sertaneja (1974).

Para Ariano, “[n]a [sua] condição de sertanejo, os ferros o

fascinavam desde menino. Primeiro, como elemento de fidelidade

familiar. Depois, na fase adulta, como assunto artístico [...]”251. É

Virgílio Maia quem também atesta essa fascinação que a arte de

ferrar bois acaba exercendo nos meninos sertanejos. Segundo Maia:

248 NEWTON JÚNIOR, Carlos. Uma heráldica de rudes brasões. p.xi. 249 Conforme Virgílio Maia, “[...] as marcas dos membros de uma mesma família, pegando às vezes da de um trisavô, guardam, sempre, uma certa semelhança, algo em comum e que não se modifica, por mais que sejam as diferenças adotadas. A esta base se chama, no sertão, de caixão ou mesa da marca”. In: MAIA, Virgílio. Rudes brasões. p.37. 250 NEWTON JÚNIOR, Carlos. Uma heráldica de rudes brasões. p.xi. 251 NEWTON JÚNIOR, Carlos. Uma heráldica de rudes brasões. p.xii.

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O gesto de ferrar um boi, aquele movimento

todo, o corre-corre, os desenhos das marcas, o

cheiro do pêlo, de couro e de carne queimados,

parecem ficar indelevelmente guardados na

lembrança de quem em menino, decerto

encarapitado no gato da porteira do curral,

presenciou aquilo tudo. E aqui acolá essa

recordação aflora252.

E é o mesmo Virgílio Maia quem nos informa que essa atração

de Ariano pelos ferros de marcar bois do sertão nordestino já estava

presente antes mesmo da escritura desse Ferros do Cariri. Conforme

Maia, Suassuna já “havia deixado entrever, naquele continente do

universo cultural brasileiro que é A Pedra do Reino, sua atávica

lembrança das marcas de gado”253. Isso se deu no romance em duas

passagens. Primeiro quando o seu narrador, Dom Pedro Diniz

Ferreira-Quaderna, o Decifrador, vai comparecer diante do juiz-

inquisidor para realizar o seu depoimento, justamente na descrição

do traje com o qual o narrador comparece na dita sessão: “[...] minha

calça parda, minha camisa gandola de cor caqui e bordada nas

mangas com os ferros dos Quadernas [...]”254. Depois, no desenho

da bandeira da onça, que aparece no “Folheto LI – O crime

indecifrável”. No centro dessa bandeira está a figura emblemática da

onça, cercada nos quatros cantos do retângulo que a constitui, pelos

ferros dos Garcia-Barreto e dos Ferreira-Quadernas (Figura 2).

252 MAIA, Virgilio. Rudes brasões. p.19. 253 MAIA, Virgilio. Rudes brasões. p.20. 254 SUASSUNA, Ariano apud MAIA, Virgilio. Rudes brasões. p.21. [grifo meu]

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Figura 2 – Bandeira da Onça. Em cada canto da bandeira, os ferros formados a partir das iniciais do nome das duas famílias Garcia-Barreto e Ferreira-Quaderna.

Ainda em relação ao livro escrito por Ariano Suassuna a partir

das marcas de ferrar bois, Newton Júnior comenta a excelência

dessa publicação:

O livro de Suassuna, escrito a primor, revelando a mestria de quem já criara obras como Auto da Compadecida e Romance d’A Pedra do Reino, além de introduzir o leitor no universo dos ferros (levantando considerações, ainda, sobre os sinais de corte nas orelhas do gado, usados atualmente apenas nas miunças – ovelhas, cabras e porcos), registra o quanto as marcas de ferros podem servir de Fonte-do-

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Cavalo255 para diversos trabalhos no campo das Artes Plásticas256.

Podemos concluir dessas palavras de Newton Júnior, que

Suassuna via nesses ferros e suas formas enigmáticas, uma das

fontes de inspiração para a elaboração das artes armoriais, pois:

Do mesmo modo que ferros novos surgem a partir das diferenças apostas a um ferro anterior, os artistas poderiam basear-se no rico acervo de desenhos e sinais enigmáticos dos ferros para criar novas formas, no campo da Gravura, da Pintura e das Artes Gráficas, de uma maneira geral257.

Vislumbrava também Suassuna, no desenho desses ferros um

legado dos antepassados dos homens que habitavam aquela região

sertaneja, constituindo-se, desse modo, o vestígio de uma

ancestralidade que se perderia na noite dos tempos. Logo,

Estariam assim provavelmente, vinculando-se a uma herança anterior à chegada dos europeus, já que as origens de alguns desses sinais podem muito bem estar associadas às insígnias que os nossos mais remotos antepassados pintaram e insculpiram, nas itaquatiaras258 que os sertanejos vão encontrar tempos depois, Sertão adentro259.

255 Referência à fonte de Hipocrene, ou Fonte de Cavalo. Na mitologia grega essa fonte jorrava do monte Hélicón, e era consagrada às musas. É consagrada pelos poetas como símbolo de inspiração. 256 NEWTON JÚNIOR, Carlos. Uma heráldica de rudes brasões. p.xii. 257 NEWTON JÚNIOR, Carlos. Uma heráldica de rudes brasões. p.xii. 258 De acordo com o Dicionário Eletrônicos Houaiss, itaquatiara é uma “pedra pintada ou em que foram talhadas inscrições, desenhos rupestres (incisos, esculpidos ou simplesmente pintados), us. no passado pelos indígenas como sinais de orientação, registros indicativos de migrações ou de recursos encontráveis no lugar, e que revelam a existência de uma pictografia autóctone americana”. 259 NEWTON JÚNIOR, Carlos. Uma heráldica de rudes brasões. p.xii.

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Isto posto, essa visão só vem reforçar ainda mais o caráter, ao

mesmo tempo histórico e mítico, que Suassuna tenta conferir ao

Sertão nordestino, atribuindo-lhe uma origem quase edênica.

A importância que Suassuna atribuiu ao tema dos ferros de

marcar, ao escrever o livro Ferros do Cariri, também pode ser visto

no esmero da sua concepção enquanto um “objeto ligado às Artes

Gráficas”260. Segundo nos atesta Newton Júnior: “Não se trata de um

livro convencional, e sim de um álbum, veiculado numa caixa

forrada com tecido, um verdadeiro livro-de-arte [...]”261. Igualmente,

os ferros de marcar ocupam uma visibilidade e um espaço

privilegiados dentro da obra, encontrando-se “presentes do início

ao fim, da capa ao miolo, das bordas das folhas à subdivisão do

texto”262. Na ocasião do lançamento desse livro, Olívio Tavares de

Araújo, escrevendo para a revista Veja (4/9/1974), confirma que a

publicação do referido livro, realizado pela editora Guariba (uma

editora de arte recém-criada, na época, em Pernambuco) resultou

em “uma cuidada, quase luxuosa edição”. Araújo descreve assim a

publicação: “O texto vem impresso em papel importado, em duas

cores, com várias ilustrações paralelas, desenhadas pelo autor. E há,

no fim, pranchas avulsas, que reproduzem, em prensa manual, com

originais xilográficos, algumas das marcas mais sugestivas”.

Entretanto, conforme a opinião desse comentarista, embora a

pesquisa realizada por Suassuna tenha sido válida, o preço com que

foi comercializado esse álbum acabou se constituindo “num

requinte não muito acessível”263.

Virgílio Maia também vê nos desenhos dos ferros de marcar

uma forma de arte. Segundo esse estudioso:

260 NEWTON JÚNIOR, Carlos. Uma heráldica de rudes brasões. p.xii. 261 NEWTON JÚNIOR, Carlos. Uma heráldica de rudes brasões. p.xii. 262 NEWTON JÚNIOR, Carlos. Uma heráldica de rudes brasões. p.xii. 263 A revista Veja assim descrevia a publicação na época: “FERROS DE CARARIRI: UMA HERÁLDICA SERTANEJA, de Ariano Suassuna; Guariba; álbum com 16 páginas de texto e 10 pranchas com reproduções; 600 cruzeiros”. In: ARAÚJO, Olívio Tavares de. Design primitivo. Veja, n.313, 4 set. 1974. p.98.

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O desenho da marca pode ser qualquer coisa, as letras iniciais do nome da pessoa, um número, um desenho sem maior sentido, um hieróglifo, um caju com castanha e tudo ou uma runa, um símbolo astrológico, até. Mas sua plasticidade chega, com não pouca freqüência, ao artístico264.

Também é nessa obra Ferros do Cariri que Ariano faz uso do

que ele chama alfabeto sertanejo, que seria utilizado posteriormente

pelo autor em muitos outros trabalhos, entre eles as

iluminogravuras e estilogravuras, conforme veremos adiante.

Segundo Newton Júnior, Suassuna criou esse alfabeto “a partir dos

ferros pesquisados no livro-diário de um seu parente do século XIX,

que tinha o costume de desenhar os ferros de cada boi que

comprava”265. Outro item que chama a atenção, segundo Newton

Júnior, refere-se a própria capa do álbum. Esta também é

diferenciada, sendo “marcada com o ferro dos Suassunas, ferro do

bisavô paterno de Ariano, usado depois por seu avô e eu pai, sem

nenhuma diferenciação”266. Ariano também utilizará esse

expediente muitas vezes nas suas obras subsequentes – em vez de

assiná-las com a tradicional caligrafia, marcará seus trabalhos

(tapetes, pinturas e gravuras), com o ferro dos seus antepassados.

Esse gesto também será imitado futuramente por muitos dos

artistas ligados ao Movimento Armorial267.

264 MAIA, Virgilio. Rudes brasões. p.29. 265 NEWTON JÚNIOR, Carlos. Uma heráldica de rudes brasões. p.xii. 266 NEWTON JÚNIOR, Carlos. Uma heráldica de rudes brasões. p.xii. 267 NEWTON JÚNIOR, Carlos. Uma heráldica de rudes brasões. p.xiv.

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Figuras 3 e 4 – As figuras acima mostram: (D) o alfabeto sertanejo ou alfabeto armorial, criado por Ariano Suassuna a partir dos ferros de marcar do sertão nordestino; (E) o ferro de marcar dos Suassunas, usado em muitas obras do autor como substituto da assinatura de autoria.

Assim, as marcas não são usadas apenas para ferrar os

animais. Acabam por se constituir uma forma de assinatura entre os

sertanejos, torna-se a “marca um sinal de propriedade”268. E

segundo nos atesta Virgílio Maia, ferram-se de tudo no sertão:

Mas não se ferra tão-somente o gado. O sopesar do ferro candente na mão dá uma vontade danada de experimentá-lo em outras coisas, num pedaço de tábua, por exemplo. Ou numa de sola. E assim se fazia e se faz, “pois o ferro do cidadão tanto tinha valia em papel como em couro de bicho, móveis, queijos de manteiga, fôrmas de rapadura, arreios, panos, chocalhos...” Não se imprime o ferro quente apenas sobre o couro dos bichos, ferram-se muitas outras coisas, ferra-se de um tudo269.

Isto posto, essa visão de uma forma heráldica popular, como a

vislumbrada por Suassuna nos ferros de marcar, ou nos distintivos

268 MAIA, Virgilio. Rudes brasões. p.25. 269 MAIA, Virgilio. Rudes brasões. p.28.

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dos clubes de futebol e nos estandartes das escolas de samba e de

cavalhada revestir-se-á em uma dimensão de grande importância

dentro da obra do autor paraibano. Também no livro dos Ferros do

Cariri já se pode entrever a preocupação de Suassuna em realizar a

fusão de diversos gêneros artísticos num só, o que será uma das

marcas principais do Armorial, conforme veremos a seguir.

Ainda poderíamos relacionar os desenhos emblemáticos dos

ferros de marcar bois, que funcionam como meio arcaico de indicar

a propriedade, a posse de determinando animal ou objeto, como

possuidores de uma ur-forma de algumas das moderníssimas

marcas das mercadorias industriais. Encontramos essas marcas

estampadas nos logotipos das grifes de alta costura, de roupas e de

sapatos, bem como de automóveis e materiais esportivos (Figura 5).

Também Olívio Tavares de Araújo já observara, em relação aos

Ferros do Cariri: “Mais curioso, entretanto, é que o trabalho de

Suassuna demonstra o quanto parece haver de uma espécie de

design primitivo nessa arte nordestina e cruel”270.

Figura 5 – Logotipos de grifes famosas. As montadoras de automóveis: Honda, Volkswagen e Rolls-Royce, na parte superior; logo abaixo, as empresa de vestuário e acessórios: Louis Vuitton, Giorgio Armani e Chanel S.A.

270 ARAÚJO, Olívio Tavares de. Design primitivo. Veja, n.313, 4 set. 1974. p.98. [grifo meu]

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[109]

Igualmente, essa aproximação entre os “extremos do arcaico e

do moderno”271, já havia sido apontado por Ana Luiza Andrade em

relação ao uso do ferro, em Outros perfis de Gilberto Freyre. Segundo

Ana Luiza, quando esse material é “superado por outros tipos de

materiais, descontinua-se em seu uso, para ser recuperado mais

tarde em outras variedades estéticas”272. A ironia, no entanto, está

no fato de que, as novas tecnologias, ao fazerem o resgate do uso

desse material, acabarão por “imitarem as velhas formas que

estavam destinadas a suplantar [...]”273. Assim, segundo nos relata a

autora: “o ferro recém-processado pela forja, usado para ornamento

e não para apoio estrutural, tinha a forma orgânica e arredondada

das folhas naturais, como exemplifica o seu uso doméstico

decorativo e funcional, em maçanetas, cinzeiros, corrimões de

escadas [...]”274.

Também Susan Buck-Morss, lendo Walter Benjamin, já havia

apontado essa analogia das formas naturais que retornam nos

produtos industrializados da cultura de massa. Segundo Buck-

Morss, “a natureza, antecipando as formas da tecnologia humana,

tem sido nossa aliada durante todo o tempo!”275. Conforme cita essa

autora: “Ur-formas de arte – sim, com certeza. Mas o que mais estas

podem ser senão ur-formas da natureza? – Formas, quer dizer, que

nunca foram só um modelo para a arte, mas desde o começo, ur-

formas ativas em tudo o que é criativo”276.

271 BUCK-MORSS, Susan. Dialética do olhar. p.186. 272 ANDRADE, Ana Luiza. Outros perfis de Gilberto Freyre. p.137 273 ANDRADE, Ana Luiza. Outros perfis de Gilberto Freyre. p.137 274 ANDRADE, Ana Luiza. Outros perfis de Gilberto Freyre. p.137 275 BUCK-MORSS, Susan. Dialética do olhar. p.195. 276 Apud BUCK-MORSS, Susan. Dialética do olhar. p.199.

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O espírito mágico dos folhetos

A expressão popular,

Riqueza da humanidade, Mantida através dos tempos,

N’áurea da simplicidade, Contudo os grandes sábios Vêem nela grandiosidade.

Um dos grandes defensores

Deste saber popular, Ariano Suassuna,

Vate, nobre, salutar, Hoje aqui neste cordel,

Quero homenagear.

FRANCISCO DINIZ277

O simbolismo na obra de Ariano Suassuna pode ser

encontrado tanto nas peças teatrais, como em sua poesia (ainda

pouco conhecida), bem como, mais recentemente, nas

iluminogravuras e nas estilogravuras, sendo que sobre estas tratarei

mais adiante. O que interessa ressaltar no momento é que, nesses

trabalhos, revela-se toda a faceta do Ariano Suassuna artista

277 Parte do texto Suassuna em Cordel, de autoria de Francisco Diniz. Disponível em: <http://www.tonomundo.org.br/upload/opara/docs/Suassuna%20em%20Cordel.doc>. Acesso em: 10 mar. 2009.

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plástico. É nessas obras que Ariano alia seus dotes de escritor e

poeta ao de gravador e pintor, ao criar um trabalho único e original

no qual o autor cria “textos verbo-visuais que unem poema e

imagem”278. Também se constitui essa uma das marcas recorrentes

do Armorial, em todas as suas vertentes artísticas – “o pensar por

imagens”279.

Essa ligação entre texto e imagem pode ser encontrada nos

folhetos de cordel, sendo que estes se constituem, de acordo com

Ligia Vassallo a “bandeira armorial” por excelência. Como nos faz

ver essa autora, a escolha do folheto de cordel como ponto de

convergência para a arte armorial se deu pelo fato do folheto reunir,

em sua concepção, “três setores normalmente separados: o literário,

teatral e poético dos versos e narrativas; o das artes plásticas em

associação com as xilogravuras da capa do folheto; o musical dos

cantos e músicas que acompanham a leitura ou a recitação do

texto”280. Assim, já na conceituação do movimento, Ariano

salientava a importância do folheto de cordel dentro Movimento

Armorial. Dessa forma, para o autor paraibano,

A Arte Armorial Brasileira é aquela que tem como traço comum principal a ligação com o espírito mágico dos “folhetos” do Romanceiro Popular do Nordeste (Literatura de Cordel), com a Música de viola, rabeca ou pífano que acompanha seus “cantares”, e com a Xilogravura que ilustra suas capas, assim como o espírito e a forma das Artes e espetáculos

278 CAMPOS, Maria Inês Batista. Iluminogravuras de Suassuna: cartografia com letra e pincel. In: MICHELETTI, Guaraciaba (org.). Discurso e memória em Ariano Suassuna. São Paulo: Paulistana, 2007. p.123. 279 BRITO, Sônia Maria Prieto Romolo. A reconfiguração do mito sebastianista no “Romance d’A Pedra do Reino”. Tese (Doutorado em Teoria Literária) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2004. p.166. 280 VASSALLO, Ligia. O grande teatro do mundo. Cadernos de Literatura, Instituto Moreira Salles, São Paulo, n.10, nov.2000. p.148.

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populares com esse mesmo Romanceiro relacionados281.

Outrossim, quanto à sua denominação, ao invés de Literatura

de cordel282, Suassuna prefere a forma Romanceiro Popular do

Nordeste, por ser esse nome mais representativo da herança do

romanceiro medieval ibérico que lhe deu origem, e que foi

absorvido por nossa cultura. Esse termo também abrangeria “a

oralidade, aspecto típico dos cantadores brasileiros (cujas histórias,

ou romances, muitas vezes são impressos no formato de

folhetos)”283.

Para o estudioso Jesús Martín-Barbero, foi a literatura de

cordel que marcou a passagem do oral para o escrito. Segundo o

autor, foi essa literatura que, “ausente por inteiro das bibliotecas e

livrarias de seu tempo, foi contudo a que tornou possível para as

classes populares o trânsito do oral ao escrito, e na qual se produz a

transformação do folclórico em popular”284. Martín-Barbero

esclarece que, essas literaturas, “chamada na Espanha de cordel e na

França de colportage”, foram as mesmas que

inauguraram uma outra função para a linguagem: a daqueles que, sem saber escrever, sabem contudo ler. Escritura portanto

281 SUASSUNA, Ariano apud SANTOS, Idelette Muzart Fonseca dos. Em demanda da poética popular. p.13. 282 Não existe, contudo, uma denominação única para o que os estudos acadêmicos brasileiros chamaram e difundiram com o nome de literatura de cordel. Segundo a estudiosa Ana Maria de Oliveira Galvão, embora a maior parte da população da região nordestina reconheça essa denominação, ela não é utilizada por eles. Segundo Galvão: “Folheto, para os mais finos, e romance, para aqueles que tinham um número maior de páginas, eram, efetivamente, as maneiras pelas quais os poemas impressos eram conhecidos”. Segundo a mesma autora: “A denominação ‘literatura de cordel’ foi atribuída aos folhetos brasileiros, pelos estudiosos, a partir de um tipo de literatura semelhante encontrada em Portugal. Câmara Cascudo (1988) situa na década de 60 a difusão dessa denominação no país para se referir aos ‘folhetos impressos’ no território brasileiro, até então somente utilizada no caso português”. In: GALVÃO, Ana Maria de Oliveira. Cordel: leitores e ouvintes. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. p.27. 283 SUASSUNA, Ariano apud SZESZ, Christiane Marques. Uma história intelectual de Ariano Suassuna. p.41. 284 MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios as mediações. p.148-149.

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paradoxal, escritura com estrutura oral. E isso não só por estar em boa parte escrita em verso, pois transcreve canções e romances, coplas e refrões, mas também porque está sociologicamente destinada a ser lida em voz alta, coletivamente285.

É o mesmo autor que descreve:

Ainda nas aldeias mais remotas há alguém que sabe ler, e ao anoitecer, quando retornam as pessoas dos trabalhos no campo, homens e mulheres, menores e adultos se reúnem junto ao fogo para escutar aquele que lê em voz alta, enquanto as mulheres remendam ou tecem e os homens limpam ferramentas de trabalho286.

Desse modo, a transmissão da literatura de cordel ainda é

eminentemente oral, pois ainda o público que dominava a língua

escrita era bem restrito no período, como foi apontado por Martín-

Barbero. Nesta época, muitos ainda procediam como faz saber o

sociólogo espanhol: “os rudes lavradores anarquistas da Andaluzia

[por exemplo] comprovam o jornal mesmo sem saberem ler, para

que alguém os lesse para sua família”287. Tratava-se, então, de uma

“leitura oral ou auditiva”, porém “muito distinta da leitura silenciosa

do letrado [...]”288.

Conteria em si, a literatura de cordel, o germe do que

representaria o romance no período moderno, através da morte de

uma forma de narrar? Segundo nos fez ver Walter Benjamin, no

ensaio “O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”,

a forma tradicional de narrativa estaria em vias de extinção. Para

Benjamin, as narrativas escritas seriam responsáveis pela perda de

uma das faculdades que parecia (para o pensador alemão) segura e

285 MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios as mediações. p.149. 286 MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios as mediações. p.153. 287 MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios as mediações. p.154. 288 MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios as mediações. p.154.

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inalienável – “a faculdade de intercambiar experiências”289. Segundo

esse pensador, o narrador tradicional tiraria da experiência o que

ele conta, já a “origem do romance é o indivíduo isolado, que não

pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais

importantes e que não recebe conselhos nem sabe dá-los”290.

Conforme esclarece Benjamin:

O que distingue o romance de todas as outras formas de prosa – contos de fada, lendas e mesmo novelas – é que ele nem procede da tradição oral nem a alimenta. Ele se distingue, especialmente, da narrativa. O narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência dos ouvintes. O romancista segrega-se291.

Assim, “os homens já não contam mais histórias que emergem

de suas entranhas”292. O saber transmitido pelos anciãos já não

constitui mais o modelo a ser seguido, já perdeu a sua importância.

O que importa hoje é a novidade fugaz e momentânea. Dessa forma,

“o saber que vem de longe encontra hoje menos ouvintes que a

informação sobre acontecimentos próximos”293. Para Benjamin: “O

saber, que vinha de longe – do longe espacial das terras estranhas,

ou do longe temporal contido na tradição –, dispunha de uma

autoridade que era válida mesmo que não fosse controlável pela

experiência. Mas a informação aspira a uma verificação imediata”294.

Hoje a “aventura está no cinema, na televisão, no vídeo, na

técnica”295, ela já nos chega mastigada, pronta para o consumo – “os

289 BENJAMIN, Walter. O narrador. p.198. 290 BENJAMIN, Walter. O narrador. p.201. 291 BENJAMIN, Walter. O narrador. p.201. 292 OLIVEIRA, Wilton Fred Cardoso. Imaginários de nação no romance brasileiro contemporâneo. p.12. 293 BENJAMIN, Walter. O narrador. p.202. 294 BENJAMIN, Walter. O narrador. p.202-203. 295 OLIVEIRA, Wilton Fred Cardoso. Imaginários de nação no romance brasileiro contemporâneo. p.13.

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fatos já nos chegam acompanhados de explicações”296. E para

Benjamin: “Metade da arte narrativa está em evitar explicações”297.

Logo, os aventureiros de outros tempos foram substituídos pelos

homens sedentários de nossa época:

Findaram os viajantes que vinham de longe e traziam em suas retinas o phaós de suas aventuras: daquilo que vislumbraram os seus sentidos e seu coração, contando as ouvintes suas façanhas ou “Odisséias”, atribuindo ao conto um ar fantástico, heroicizando-se diante de suas narrativas298.

Entretanto, como ressalta Walter Benjamin: “Quem escuta

uma história está em companhia do narrador; mesmo quem a lê

partilha dessa companhia. Mas o leitor de um romance é

solitário”299. Assim, a literatura de cordel pode ser vista como uma

fase de passagem entre um mundo no qual as narrativas

tradicionais ainda tinham espaço, através da leitura coletiva, como

nos fez ver Martín-Barbero (sendo que nesse tipo de leitura ainda

dá para ver a presença de um narrador que partilha a sua

companhia com os ouvintes), e o mundo da leitura silenciosa e

solitário, que viria com o surgimento do romance burguês (e sua

consequente perda de uma experiência compartilhada).

Ainda no que concerne à literatura de cordel, Márcia Abreu,

no livro Histórias de cordéis e folhetos, faz saber que a chamada

literatura de cordel, na sua forma de divulgação de textos dos mais

variados gêneros, está presente em várias e diferentes culturas,

podendo ser encontrada em “publicações similares em quase todos

os países europeus – basta que se pense nos chapbooks ingleses, na

littérature de colportage francesa, nos pliegos sueltos espanhóis

296 BENJAMIN, Walter. O narrador. p.203. 297 BENJAMIN, Walter. O narrador. p.203. 298 OLIVEIRA, Wilton Fred Cardoso. Imaginários de nação no romance brasileiro contemporâneo. p.12. 299 BENJAMIN, Walter. O narrador. p.213.

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etc.”300. Segundo a autora, a designação dessa literatura como sendo

de cordel “prende-se ao fato de os folhetos serem expostos ao

público pendurados em cordéis”301. Dessa forma, para Martín-

Barbero, o “cordel assinala[ria] o modo de difusão”302 desses textos

que eram comercializados nas praças e feiras públicas. Segundo

Martín-Barbero, diferentemente do livro, e de forma similar ao

periódico, temos um meio que vai buscar seus leitores diretamente

nas ruas303. Essas palavras subentendem que, incipientemente,

poderíamos enxergar nos meios de produção e divulgação do cordel

o germe de um empreendimento voltado ao mercado e ao consumo,

tão característico de nossa época. Dessa forma, a comercialização do

cordel já apresentava vários expedientes que objetivavam atrair a

atenção do público. Assim, essa literatura “apresenta uma feitura na

qual o título é reclame e motivação, publicidade; segue-se ao título

um resumo que proporciona ao leitor as chaves do argumento ou as

utilidades a que se presta, e uma gravura que explora já a ‘magia’

das imagens”304. Em relação a esse uso de imagens, Martín-Barbero

declara: as “imagens foram desde a Idade Média o ‘livro dos pobres’,

o texto em que as massas aprenderam uma história e uma visão do

mundo”305.

Por conseguinte, essa forma de incorporar imagens e texto,

como o faz a literatura de cordel, pode ser visível também, nos

chamados livros de emblemas. Esses eram “coletâneas de lemas e

provérbios acompanhados de imagens” sendo “difundidas entre o

público culto na Europa do século XVI e principalmente do século

XVII”306. Segundo Carlo Ginzburg, “os livros de emblemas, como se

300 ABREU, Márcia. Histórias de cordéis e folhetos. Campinas, SP: Mercado das Letras: Associação de Leitura do Brasil, 2006. (Coleção Histórias de Leitura). p.23. 301 ABREU, Márcia. Histórias de cordéis e folhetos. p.19. 302 MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios as mediações. p.151. 303 MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios as mediações. p.151. 304 MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios as mediações. p.151. [grifo meu] 305 MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios as mediações. p.158. 306 GINZBURG, Carlo. O alto e o baixo: o tema do conhecimento proibido nos séculos XVI e XVII. In: _______. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. Trad. Federico Carotti. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p.100.

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centravam em imagens, podiam transpor facilmente as fronteiras

lingüísticas, mesmo quando não eram escritos numa língua

internacional como o latim”307. Segundo nos mostra Alfredo Grieco,

o “livro de emblema trazia uma abundância de imagens. Cada página

tinha uma ilustração, e algumas vezes até mais, impressas por

pequenas xilogravuras de grande requinte formal e visual”308. Para

o estudioso, este foi o período na Europa em que

a arte da xilogravura atingia um ponto alto, e livros bem pequenos podiam conter ilustrações feitas por matrizes de apenas seis centímetros, como é o caso do livro Imagines Mortis (mais conhecido como A Dança da Morte), ilustrado por Hans Holbein, um dos melhores exemplos da técnica de trabalhar a madeira com imagens em miniatura309.

Ainda segundo Grieco, “os emblemas ainda jogam luz sobre a

história da produção gráfica e do livro, sobre a criação e utilização

das alegorias, e sobre a questão lingüística da relação entre palavra

e imagem”310. Conforme este autor, é nessa época e nessas

sociedades em que surgem os livros de emblemas, “que o visual,

significativamente, começa a participar do dia-a-dia do cidadão”, o

que poderia ser encarado “como uma espécie de antecipação da

expressão contemporânea audiovisual”311.

307 GINZBURG, Carlo. O alto e o baixo: o tema do conhecimento proibido nos séculos XVI e XVII. p.103. 308 GRIECO, Alfredo. Livros de emblemas: pequeno roteiro de Alciate à “Iconologia” de Cesare Ripa. Alceu, v.3, n.6, jan/jun. 2003, p.72-92. Disponível em: <http://publique.rdc.puc-rio.br/revistaalceu/media/alceu_n6_Grieco.pdf>. Acesso em: 26 out. 2007. p.81. 309 GRIECO, Alfredo. Livros de emblemas: pequeno roteiro de Alciate à “Iconologia” de Cesare Ripa. p.81. 310 GRIECO, Alfredo. Livros de emblemas: pequeno roteiro de Alciate à “Iconologia” de Cesare Ripa. p.81. 311 GRIECO, Alfredo. Livros de emblemas: pequeno roteiro de Alciate à “Iconologia” de Cesare Ripa. p.89 e 82, respectivamente.

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Em relação à xilogravura312, Franklin Maxado já localiza o seu

uso entre os monges medievais. Segundo o autor, esses monges

“imprimiam estampas de santos, utilizando a técnica da

xilogravura”313. Ainda segundo nos relata o autor: “Algumas dessas

estampas continham um pequeno texto. Na Alemanha, essas

reproduções eram chamadas de heiligen. Proliferaram bastante

entre as massas analfabetas da Europa, muito antes de 1423, data

da xilogravura mais antiga que se conhece”314. Igualmente, é

Maxado que nos mostra que é um erro identificar a invenção de

Gutenberg, a imprensa, com a invenção dos tipos móveis. Segundo o

autor: “Esses já existiam, feitos de madeira, para imprimir letras,

números e outros caracteres sobre diferentes materiais. Ou, para

estampar tecidos”315. Dessa forma: “Antes, havia livros impressos

por processo tabular ou xilográfico, como a “bíblia dos pobres”, que

eram impressas em pranchas de madeira, gravadas com letras,

números e figuras em alto-relevos”316.

Também Walter Benjamin já assinalava, no ensaio sobre “A

obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica”, a importância

da xilogravura como forma de reprodução do desenho. Segundo

Benjamin, com “a xilogravura, o desenho tornou-se pela primeira

vez tecnicamente reprodutível”317, antes mesmo que a imprensa

fizesse o mesmo em relação à escrita. Ainda de acordo com

Benjamin, “à xilogravura, na Idade Média, seguem-se a estampa na

chapa de cobre e a água-forte, assim como a litografia, no início do

século XIX”318. Martín-Barbero corrobora o enunciado por Benjamin

e acrescenta:

312 Segundo Franklin Maxado: “A denominação do processo veio do grego: xylon (madeira) e graphein (escrever)”. In: MAXADO, Franklin. Cordel, xilogravura e ilustrações. Rio de Janeiro: Codecri, 1982. p.19. 313 MAXADO, Franklin. Cordel, xilogravura e ilustrações. p.19. 314 MAXADO, Franklin. Cordel, xilogravura e ilustrações. p.19. 315 MAXADO, Franklin. Cordel, xilogravura e ilustrações. p.19. 316 MAXADO, Franklin. Cordel, xilogravura e ilustrações. p.19. 317 BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. p.166. 318 BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. p.166.

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Já no século XVI, porém mais claramente a partir do XVII, a reprodução de imagens sofre uma forte transformação. Da xilografia, que permitia a impressão de cerca de 400 folhas por matriz, passa-se à água-forte, que, ao usar soluções de ácido nítrico sobre pranchas de cobre, permite texturas não só mais nítidas como também variadas e um aumento considerável de folhas por pranchas. Ao mesmo tempo a produção, ainda artesanal, se aproxima já da indústria mediante uma especialização das funções: o desenhista, o iluminador, o gravador, o impressor319.

Figura 6 – Fac-símile do Emblema 38, de Hermann Hugo,onde se vê o corpo – a imagem –, o mote em latim - Infelix ego homo, quis me liberabit de corpore mortis huius (Infeliz de mim! Quem me libertará deste corpo de morte? (Romanos 7, 24) –, e a alma – o texto epigramático – que, neste emblema, estende-se por dez páginas.

319 MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios as mediações. p.159.

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Dessa forma, esse processo de “ilustrar a vida cotidiana” vai

desenvolver-se tecnicamente até chegar à fotografia, quando, “pela

primeira vez no processo de reprodução da imagem, a mão foi

liberada das responsabilidades artísticas mais importantes, que

agora cabiam unicamente ao olho”320.

Como já foi mencionado, o folheto de cordel ocupa uma

posição de destaque dentro da estética armorial. Assim, a

importância do cordel na obra do autor do Auto da Compadecida

pode ser notada principalmente a partir d’ Romance d’A Pedra do

Reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta (1971). É, pois, nesse

romance que Ariano une, pela primeira vez, seu talento literário ao

de gravurista, ao realizar todas as ilustrações do livro. Este era um

sonho antigo do autor, e uma das prerrogativas que já fazia parte da

proposta do Movimento Armorial. O movimento desde início buscou

essa fusão,

unir o texto literário e a imagem num só emblema, para que a Literatura, a Tapeçaria, a Gravura, a Cerâmica e a Escultura falem, todas, através de imagens concretas, firmes e brilhantes, verdadeiras insígnias das coisas. Insígnias de qualquer maneira desenhadas, gravadas e iluminadas – sobre superfícies de pedra, de barro-queimado, de tecido, de couro, de áspero papel, ou, então, modeladas pela forma e pela imagem da palavra321.

Essa “complementaridade entre as disciplinas artísticas”322

também pode ser encontrada num depoimento de Suassuna de

1973, quando a ele foi solicitado uma definição do que seria a

pintura armorial. Segundo Idelette Fonseca, Ariano definiu tal

pintura “a partir de três elementos essenciais da estética

320 BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. p.167. 321 NEWTON JÚNIOR, Carlos. Uma autobiografia poética. In: SUASSUNA, Ariano. Iluminogravuras. Recife: SESC, 2000. 322 SANTOS, Idelette Muzart Fonseca dos. Em demanda da poética popular. p.56.

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armorial”323, que também já constitui em si uma síntese de todos os

elementos que o autor procurará imprimir em sua obra:

a) o parentesco com o espírito mágico e poético do romanceiro, das xilogravuras e da música sertaneja; b) a semelhança com os brasões, bandeiras e estandartes dos espetáculos populares, ou seja, a dimensão emblemática e heráldica; c) a complementaridade das disciplinas artísticas, que – como a poesia, a música e a gravura se encontram e se interpenetram no folheto – devem manter estreitas e contínuas inter-relações: a pintura com a cerâmica e a tapeçaria, a arquitetura com a pintura e a cerâmica, a gravura com a pintura e a escultura etc.324

Assim, para Idelette Fonseca: “No folheto de cordel, como já

foi dito, imagem e palavra estão em estreita correlação e participam

de um mesmo conjunto, perfazendo uma mesma unidade poética”. E

a autora esclarece mais adiante que é “a partir desta relação que

podem ser compreendidos os intercâmbios entre escritura e

imagem na literatura armorial [...]”325. Também na visão de Idelette

Fonseca, é n’O Romance de Pedra do Reino, onde as “relações entre

texto literário e imagem” na obra suassuniana se configuram da

forma mais representativa. Assim, por influência direta do cordel, a

estruturação dessa obra não se faz em capítulos, mas em folhetos,

como naquela literatura, sendo também todo o livro entremeado de

gravuras inspiradas nas xilogravuras dos folhetos.

Em relação ao material iconográfico contido n’O Romance da

Pedra do Reino, vale colocar algumas considerações. Assim, segundo

Idelette Muzart, o que chama a atenção nesse trabalho é o número e

as dimensões das ilustrações – “26 gravuras, entre as quais 21

323 SANTOS, Idelette Muzart Fonseca dos. Em demanda da poética popular. p.56. 324 SANTOS, Idelette Muzart Fonseca dos. Em demanda da poética popular. p.56. 325 SANTOS, Idelette Muzart Fonseca dos. Em demanda da poética popular. p.213.

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ocupam uma página inteira, e sete vinhetas, reproduções reduzidas

das gravuras, apresentadas fora do texto”326. Importante também é

a simbologia presente nas ilustrações dessa obra, síntese de todos

os elementos que compõem o universo armorial de Ariano

Suassuna. Não é sem motivo que o próprio Suassuna considera essa

obra, sua maior realização no campo artístico. Assim, há a presença

do

[...] popular, em primeiro lugar, através das bandeiras das festas e procissões religiosas, com suas cores brilhantes, cuidadosamente descritas pelo narrador, e reproduzidas em preto-e-branco; através da própria xilografia, que é considerada aqui não como simples técnica ilustrativa ou modelo poético, mas como objeto em si. A dimensão heráldica, tradicional nas descrições em linguagem codificada dos escudos e bandeiras, aparece “nordestinada” no caso das marcas de animais. O elemento astrológico e, finalmente, o tarô unem a simbólica e até mesmo o hermetismo da heráldica e da astrologia à imagem popular e familiar dos naipes do baralho327.

Ainda como ressalta Idelette Muzart, na maioria das vezes

A ilustração de obras literárias é geralmente concebida como reforço, complemento ou suplemento do texto, ornamento do livro que uma nova edição, do tipo econômica ou de bolso, poderá suprimir sem contudo mutilar o texto, sem modificar a sua significação328.

Não é o que acontece na obra de Suassuna. Nela, a imagem

estabelece uma relação direta com o enunciado textual, pelo menos

no que se refere ao romance considerado. Dessa forma, a “ilustração

326 SANTOS, Idelette Muzart Fonseca dos. Em demanda da poética popular. p.217-218. 327 SANTOS, Idelette Muzart Fonseca dos. Em demanda da poética popular. p.218. 328 SANTOS, Idelette Muzart Fonseca dos. Em demanda da poética popular. p.217.

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suassuniana elabora-se a partir da gravura popular, num jogo em

que texto e imagem vão se construindo reciprocamente, numa troca

permanente de referências e reflexos”329. (Contudo, vale ressaltar

que, como veremos mais adiante, em relação ao segundo álbum de

iluminogravuras lançado por Suassuna, nem sempre as imagens

coincidem ou remetem ao texto do poema.)

Idelette Muzart ainda trata dessa correlação da imagem com o

texto na literatura de folheto. Segundo a autora, nessa literatura

muitas vezes a imagem também se constitui um mero acessório, não

tendo relação com a história narrada. Assim, segundo Idelette

Muzart: “[...] na literatura de folheto, a imagem não é sentida como

parte integrante do texto, como o comprovam numerosos folhetos

que, por motivos de economia, reutilizam xilogravuras antigas,

concebidas para outros textos [...]”330.

Para Franklin Maxado, a literatura de folheto passou a fazer

uso de imagens como uma forma de atrair o público. Na opinião do

autor, na exibição que era realizada em praça pública e em feiras

livres, os impressos chamavam atenção de forma “mais apelativa

com a ilustração xilográfica de partes, cenas, figuras ou lugares do

texto”331. Contudo, como já foi dito, por uma questão de economia

na hora da impressão, muitas dessas imagens passaram a ser

reaproveitadas, sendo deslocadas dos seus textos de origem para

ilustrar outros, que muitas vezes não tinham qualquer relação com a

temática do primeiro. Outrossim, como faz notar Idelette Muzart:

Lembramos que a xilogravura não é senão uma das possíveis ilustrações do folheto, e sua quase generalização é recente. Nos folhetos anteriores a 1940-1950, as capas eram geralmente ornamentadas, com desenhos, vinhetas, fotografias de atores famosos ou

329 SANTOS, Idelette Muzart Fonseca dos. Em demanda da poética popular. p.219. 330 SANTOS, Idelette Muzart Fonseca dos. Em demanda da poética popular. p.217. 331 MAXADO, Franklin. Cordel, xilogravura e ilustrações. p.20.

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[124]

reproduções de cartões postais com personagens332.

Em relação à ilustração dos folhetos brasileiros, algumas

hipóteses são levantadas. Assim, há “os que acham que foram

usadas xilogravuras na capa” dos primeiros folhetos impressos no

país. Contudo, “os mais velhos [folhetos] existentes, porém,

apresentam apenas arranjos com vinhetas, filetes e com letras ou

figuras ornamentais”333. Segundo Franklin Maxado, coube ao poeta

João Martins d’Athayde a criação da primeira tipografia destinada à

impressão de folhetos de cordel no Brasil, isso em Recife. “O seu

tempo de editor, de 1920 a 1950 foi o auge dessa literatura,

explorando temas como romances, ao lado do jornalismo sobre o

cangaço e o padre Cícero Romão”334. Entretanto, como faz saber

Maxado, João Martins preferiu imprimir as capas dos seus folhetos

“com reproduções de fotos de artistas de cinema, de cartões postais

e de desenhos”335. Também, João Martins d’Athayde “preferiu suas

publicações com clichês, procurando dar uma feição mais

sofisticada e personalística para seus folhetos. Diferenciou-os assim

das impressões mais pobres que usavam tipos gastos e xilogravuras,

sem muita nitidez”336.

Durante algum tempo a xilogravura passou por um processo

de esquecimento frente aos modernos processos de impressão que

foram surgindo, como a “gravura em metal e litografia (em

pedra)”337. Segundo Maxado, isso fez com que o gravador e

colecionador Jean Michel Papillon publicasse, em 1766, “um tratado

sobre gravura em madeira, tentando reabilitar essa arte”338.

Contudo, como relata Maxado: “Essa reabilitação só se deu no século

332 SANTOS, Idelette Muzart Fonseca dos. Em demanda da poética popular. p.233. [nota] 333 MAXADO, Franklin. Cordel, xilogravura e ilustrações. p.32. 334 MAXADO, Franklin. Cordel, xilogravura e ilustrações. p.36. 335 MAXADO, Franklin. Cordel, xilogravura e ilustrações. p.35. 336 MAXADO, Franklin. Cordel, xilogravura e ilustrações. p.40. 337 MAXADO, Franklin. Cordel, xilogravura e ilustrações. p.25. 338 MAXADO, Franklin. Cordel, xilogravura e ilustrações. p.25.

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[125]

XIX, com a descoberta da gravação sobre blocos de topo de madeira.

Isto é, madeira cortada transversalmente, possibilitando figuras

mais nítidas na impressão”339.

No entanto, nos fins do século passado [séc. XIX] a xilogravura atingiu seu mais alto esplendor, influenciada pela gravura japonesa. Nomes de artistas como Vallaton, Gauguin, Maurice Denis, Emile Bernard, Maillol, Edmund Munch, Matisse, André Derain e Picasso compuseram o seu primeiro time340.

Pode-se afirmar que foram os Armorial, no que concerne ao

Brasil, que acabaram por empreender, nos últimos anos, um resgate

e revalorização da xilogravura enquanto forma popular e artesanal

de impressão. Muitos artistas armoriais, incluindo Suassuna,

utilizam essa técnica na recriação de uma arte de inspiração

popular, dando-lhe, no entanto, uma roupagem erudita. O seu maior

realizador, dentro da estética armorial, está na pessoa de Gilvan

Samico. Idelette Muzart atribui a esse artista decisiva influência

sobre Ariano Suassuna quando da fundamentação teórica da pintura

no Movimento Armorial.

339 MAXADO, Franklin. Cordel, xilogravura e ilustrações. p.25. 340 MAXADO, Franklin. Cordel, xilogravura e ilustrações. p.25.

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Imagem da palavra

O cansaço de uma sociedade não implica

necessariamente a extinção das artes nem provoca o silêncio do poeta. O mais provável é que ocorra o

contrário: suscita o aparecimento de poetas e obras solitárias.

OCTÁVIO PAZ

Na juventude, Ariano Suassuna foi uma espécie de jovem

renascentista – tocava piano, pintava, escrevia... Contudo, foi sempre

a literatura o seu caminho predestinado, e, em determinada época

da sua vida, o autor paraibano fez sua escolha por ela. Segundo

Anna Paula Soares Lemos há duas formas de

catarse de expressão e revolução popular no Nordeste: ou pela revolução sanguinária há [sic] exemplo do cangaço, ou pelo messianismo religioso, como o sebastianismo. Mas Suassuna constrói uma terceira forma de grito de vida e impedimento de sofrimento por intermédio da poesia e da arte [...]341.

341 LEMOS, Anna Paula Soares. Ariano Suassuna, o palhaço-professor e sua Pedra do Reino. Dissertação (Mestrado em Literatura Comparada) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007. p.57.

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[127]

A literatura foi a forma com a qual Suassuna resolveu

enfrentar e encarar o trágico da vida, e essa entidade “bela, imortal e

eternamente jovem, dotada daquela beleza ao mesmo tempo cruel,

terrificante e fascinadora que é a própria hierarquia divina”342 – a

morte, ou Moça Caetana343, como a chama o autor paraibano.

Entretanto, mesmo tendo a produção literária como foco

principal, isso não impediu Ariano Suassuna de transitar por outros

gêneros artísticos. Como vem sendo citado, o autor já realizou

trabalhos em tapeçaria, pintura e gravura. Esse, inclusive, era um

dos pressupostos da arte armorial – a fusão de diversos gêneros

numa complementaridade entre as disciplinas artísticas. O

professor Carlos Newton Júnior situa que foi a partir da bem

sucedida realização das ilustrações n’O Romance da Pedra do Reino,

que Suassuna passou “a dividir seu tempo de criação literária com

trabalhos de desenho, pintura, programação visual e tapeçaria,

trabalhos que vem realizando até hoje”344. Ainda segundo nos faz

ver Newton Júnior, esse trânsito de Suassuna por diversas outras

artes, “demonstra, com bastante clareza, como um talento artístico

privilegiado consegue materializar a mesma intuição, a mesma visão

de mundo”345, em atividades artísticas tão diversas. Ou seja, assim

como a literatura do autor paraibano, sua “pintura, gravura e

tapeçaria encontram-se profundamente fincadas no seu universo

interior”346.

Tanto Idelette Muzart, como Newton Júnior fazem referência

à um mesmo trabalho de Suassuna na campo das gravuras. Segundo

esses autores, Ariano, atendendo a um pedido de um amigo seu,

Maximiliano Campos, realizou as ilustrações do livro de contos

342 LEMOS, Anna Paula Soares. Ariano Suassuna, o palhaço-professor e sua Pedra do Reino. p.57. 343 Na mitologia sertaneja a morte seria representada por uma mulher, e essa mulher tem nome: Caetana. Falarei sobre isso mais adiante. 344 NEWTON JÚNIOR. Carlos. O pai, o exílio e o reino. p.121. 345 NEWTON JÚNIOR. Carlos. O pai, o exílio e o reino. p.121. 346 NEWTON JÚNIOR. Carlos. O pai, o exílio e o reino. p.121.

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[128]

deste, As sentenças do tempo. Segundo Idelette Muzart, as imagens

criadas por Ariano para esse trabalho lembram as xilogravuras –

“grandes massas brancas e pretas, contrastes violentos,

achatamento do desenho, ausência de perspectiva”347 –, com as

mesmas características das ilustrações d’A Pedra do Reino. Ainda

conforme nos alerta a autora, Suassuna não fez a ilustração de todos

os contos do livro, somente daqueles de sua preferência temática

(cinco contos no total). Assim, Ariano faz sua escolhas pelos contos

que desenvolvem os seguintes temas: “a morte, o tempo destruindo

os vestígios da infância, a nostalgia do passado, a criação literária, o

sonho e o real, o circo”348. Já para Newton Júnior, em relação a esse

trabalho, “adentrando por um universo que não era o seu, parece

que Suassuna se viu em grandes dificuldades para trabalhar”, pois

segundo esclarece esse autor, “excetuando-se a gravura da capa

[Figura 5] e a que ilustra o conto O Grande Pássaro [Figura 6], as

demais não atingiram a qualidade das que foram feitas para os seus

próprios livros”349.

Figuras 7 e 8 – Reprodução de duas das ilustrações realizadas por Suassuna para o livro de Maximiliano Campos. A figura à esquerda, segundo Newton Júnior, pertence à capa do livro; já a figura à direta, ilustra o conto “O grande pássaro”.

347 SANTOS, Idelette Muzart Fonseca dos. Em demanda da poética popular. p.224. 348 SANTOS, Idelette Muzart Fonseca dos. Em demanda da poética popular. p.224. 349 NEWTON JÚNIOR. Carlos. O pai, o exílio e o reino. p.121.

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[129]

Como já venho mencionado, Suassuna criou duas formas

pessoais e características de arte, ainda pouco conhecidas do

público, que chamou de iluminogravuras e de estilogravuras,

respectivamente. Nestas obras o autor cria “textos verbo-visuais

que unem poema e imagem”350. No presente ensaio tratarei mais

especificamente da questão das iluminogravuras, entretanto, não

convém deixar de fora o que Suassuna chama de estilogravuras, até

porque, segundo o próprio autor declarou, estas acabam muitas

vezes por se constituir um primeiro momento na elaboração das

iluminogravuras. Segundo o autor do Auto da Compadecida

esclarece:

Criei um negócio que tem dois nomes, estilogravura e iluminogravura. Estilogravura é em preto-e-branco, mesma técnica de J. Borges, poeta e gravador, que fazia pobremente sua arte nobre, só com tábua e canivete. Aí eu pinto à mão e vira iluminogravura, partindo da idéia da iluminura medieval, onde os monges faziam o texto e ilustravam. Eu faço a mesma coisa351.

Logo, o que Suassuna denomina de estilogravura difere das

iluminogravuras propriamente ditas, pelo uso que Ariano faz da cor.

O Cadernos de Literatura Brasileira (2000), do Instituto Moreira

Salles, publicou a reprodução de uma estilogravura inédita de

Suassuna (Figura 9). Segundo essa publicação, a estilogravura em

questão é constituída por um poema na forma “martelo gabinete” –

“forma poética típica dos cantadores populares do Nordeste, com

350 CAMPOS, Maria Inês Batista. Iluminogravuras de Suassuna: cartografia com letra e pincel. p.123 351 O ESTADO DE S.PAULO. Suassuna ilumina o Brasil com suas cores. 18 dez. 2000. Caderno 2, Variedades. Disponível em: <http://www.estadao.com.br/arquivo/arteelazer/2000/not20001218p6440.htm>. Acesso em: 10 abr. 2010.

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estrofes de seis versos de dez sílabas” – sendo o “trabalho em preto

e branco, feito à mão com ponta de metal sobre papel”352.

Em relação às iluminogravuras, como o próprio Suassuna

deixa claro, elas têm inspiração nas iluminuras medievais. Esse tipo

de arte era comum nos manuscritos medievais, sendo que a sua

elaboração “aliava a ilustração e a ornamentação, por meio da

pintura a cores vivas, ocupando parte do espaço comumente

reservado ao texto, na folha do pergaminho”353. Era frequentemente

aplicada às letras capitulares no início dos capítulos dos códices de

pergaminho medievais. Segundo Franklin Maxado: “Além das letras

bem desenhadas e ornamentadas, as iluminuras eram inspiradas em

formas de animais, edifícios, retratos, móveis, brasões, ornamentos,

monstros mitológicos, flores, folhas, arabescos etc.”354. Esses

documentos eram produzidos principalmente nos conventos e

abadias medievais, sendo que sua elaboração era considerada um

ofício refinado e bastante importante no contexto da arte daquele

período. No século XIII, iluminura referia-se sobretudo ao uso de

douração e portanto, um manuscrito iluminado seria, no sentido

estrito, aquele decorado com ouro ou prata. Já Maxado esclarece que

as iluminuras eram “feitas com tinta vermelha, produzida pelo

mínio (óxido de chumbo). Daí, a sua denominação em miniatura ou

iluminura”355. As iluminuras chegaram ao seu apogeu na

Renascença, contudo, com o advento da imprensa seu uso foi sendo

reduzido. Mesmo assim, conforme Maxado, alguns dos primeiros

livros impressos “continham espaços em branco para que os

iluminadores exercitassem a sua arte, sob encomenda”356.

Vale lembrar que o neologismo iluminogravura criado por

Suassuna é composto por dois elementos. Um deles, como já foi

352 INSTITUTO MOREIRA SALLES. Inédito/Manuscrito/Iluminogravuras. Cadernos de Literatura Brasileira, n.10, nov.2000. p.73. 353 LEÃO, Ângela Vaz. “A Tigre Negra”: uma iluminogravura de Ariano Suassuna. Scripta, Belo Horizonte, v.7, n.13, p.13-24, 2º sem. 2003. p.14. 354 MAXADO, Franklin. Cordel, xilogravura e ilustrações. p.17. 355 MAXADO, Franklin. Cordel, xilogravura e ilustrações. p.17. 356 MAXADO, Franklin. Cordel, xilogravura e ilustrações. p.17.

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explicitado, refere-se a inspiração dessas obras nas iluminuras

medievais. Entretanto, conforme ressalta Ângela Vaz Leão:

O segundo elemento da composição é a própria palavra “gravura”, arte que, por incisões, entalhes, ou meios químicos, grava, em madeira, metal ou pedra, não só desenhos e letras, mas também ornamentos vários, que, por entintamento e estampagem, são reproduzidos e multiplicados sobre papel ou outro material357.

Conforme já foi visto, a elaboração de ilustrações por meio

das xilogravuras eram utilizadas na impressão das capas dos

folhetos de cordel, segundo alguns estudiosos. É essa arte que

Ariano Suassuna procura resgatar quando da produção das suas

iluminogravuras, sendo as ilustrações inspiradas nas gravuras

xilografadas dos folhetos de cordel. A elaboração das

iluminogravuras igualmente reafirma a posição estética do autor, ao

aliar uma arte erudita, com traços marcadamente medievais, a uma

forma eminentemente popular, presente no Sertão nordestino.

Outrossim, podemos encontrar nos Cadernos de Literatura

Brasileira (nº 10, 2000), do Instituto Moreira Salles, versão temática

sobre Ariano Suassuna, uma definição do que seriam as

iluminogravuras do autor paraibano. Segundo aquela publicação:

As iluminogravuras combinam iluminura medieval com modernos processos de gravação em papel. Primeiro, Ariano faz o desenho e escreve o texto, sempre à mão, em nanquim sobre papel branco. Depois, produz cópias dessa matriz off-set. Por fim, pinta à mão, com guache e/ou óleo, cada cópia (as tiragens, em geral, são de 50 exemplares)358.

357 LEÃO, Ângela Vaz. “A Tigre Negra”: uma iluminogravura de Ariano Suassuna. p.14. 358 INSTITUTO MOREIRA SALLES. Inédito/Manuscrito/Iluminogravuras. p.73.

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[132]

Conforme o exposto acima, a produção das iluminogravuras

por parte de Suassuna não constituem um processo puramente

artesanal, embora em sua maior parte isso ocorra. Suassuna acaba

se rendendo aos modernos processos de gravação e impressão?

Segundo Maxado, o processo off-set é derivado da litografia.

“Consiste ele numa chapa plana metálica, ou de papelão, na qual só

as partes salientes podem imprimir”359. De acordo com Maxado,

quando o processo passou a se utilizado na impressão dos folhetos

“viabilizou altas tiragens com mais velocidade e economia, tornando

o sistema tipográfico quase antieconômico e obsoleto”360.

Já vimos com Walter Benjamin que a xilogravura, antes

mesmo da invenção da imprensa, tornou o desenho reprodutível

tecnicamente pela primeira vez. Constituiu a xilogravura o primeiro

momento de um processo que foi se aperfeiçoando ao longo do

tempo, até chegar hoje em dia aos modernos sistemas de impressão.

359 MAXADO, Franklin. Cordel, xilogravura e ilustrações. p.22. 360 MAXADO, Franklin. Cordel, xilogravura e ilustrações. p.22.

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[133]

Figura 9 – Reprodução de uma das onze pranchas que compõe a estilogravura publicada no Cadernos de Literatura Brasileira (2000), do Instituto Moreira Salles.

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[134]

Pelo jeito, nem Suassuna é totalmente imune às facilidades

trazidas pela modernidade. Embora as pranchas de cada

iluminogravura, na fase de produção de sua matriz, passem por um

cuidadoso e detalhado processo manual de elaboração do desenho e

do texto, e posteriormente de pintura, o trabalho, como vimos, não

se constitui puramente artesanal, já que em determinado momento

Ariano se vale de um moderno processo de reprodução para fazer

as cópias de cada prancha que vão constituir o álbum propriamente

dito de iluminogravuras.

Isso posto, cabe abrir um parêntese. Essa relação do autor das

iluminogravuras com o processo de reprodução de sua arte, remete

à questão, já apontada aqui, da perda da aura da obra de arte

tecnicamente reproduzida. Como foi visto, para Walter Benjamin:

“Mesmo a reprodução mais perfeita, um elemento está ausente: o

aqui e agora da obra de arte, sua existência única, no lugar em que

ela se encontra”361. Ainda segundo Benjamin, essa aura constituiria

a autenticidade da obra, e para o pensador: “A autenticidade de uma

coisa é a quintessência de tudo o que foi transmitido pela tradição a

partir de sua origem, desde sua duração material até o seu

testemunho histórico”362.

No referido ensaio “A obra de arte na era da sua

reprodutibilidade técnica”, Walter Benjamin ainda esclarece que,

“em sua essência, a obra de arte sempre foi reprodutível. O que os

homens faziam sempre podia ser imitado por outros homens”363. O

que agora se constituía novidade era a forma mecânica e industrial

como isso passou a acontecer, o que representava maior

“autonomia” do que a reprodução manual possibilitara até então. Se

a obra de arte perdeu, a partir desses modernos processos de

reprodução o que Benjamin chamou “aura” – que representaria sua

autenticidade e unicidade –, esses mesmos processos promoveram

361 BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. p.167. 362 BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. p.168. 363 BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. p.166.

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[135]

uma maior aproximação entre a arte e o indivíduo, através, por

exemplo, da fotografia, do disco, do cinema, que possibilitaram que

a “existência única da obra” fosse substituída “por uma existência

serial”364. Dessa forma, é possível pensar que as novas tecnologias

vieram para mudar decisivamente a vida do homem e a forma como

ele se (inter)relaciona nos diversos âmbitos da sua existência –

política, cultural, econômica, científica e socialmente. E como vimos,

nem mesmo Ariano Suassuna, do alto da sua postura tradicionalista

de ver o mundo, não está imune a ela.

Fechando o parêntese, e voltando às iluminogravuras,

segundo Newton Júnior, “todo esse trabalho anterior, em desenho,

pintura e tapeçaria, dará subsídios para que Suassuna inicie, a partir

de 1980, os álbuns de iluminogravuras, nos quais aprofunda ainda

mais suas experiências em integrar texto e ilustração”365. Dessa

forma, as iluminogravuras de Suassuna estão reunidas em dois

álbuns – Sonetos com Mote Alheio (1980) e Sonetos de Albano

Cervonegro (1985). Cada um desses álbuns estão assim

configurados:

[...] cada livro artesanal é composto por dez sonetos escritos à mão e decorados com imagens coloridas. A maioria das pranchas de papel-cartão tem 44 x 66 cm e todas são acondicionadas em caixas de madeira, sem encadernação. Muitas são comercializadas isoladamente; somente Sonetos de Albano Cervonegro pode ser adquirido como álbum completo366.

São obras consideradas raras hoje em dia, pois, para cada um

dos álbuns, Ariano produziu uma tiragem de cinqüenta exemplares,

364 BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. p.167. 365 NEWTON JÚNIOR. Carlos. O pai, o exílio e o reino. p.123. 366 CAMPOS, Maria Inês Batista. Iluminogravuras de Suassuna: cartografia com letra e pincel. p.123.

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como já foi mencionado, sendo que, somente raras vezes, Suassuna,

a pedidos, fez reprodução de uma ou outra prancha367.

É também Newton Júnior que nos informa de uma

curiosidade em relação ao segundo álbum – Sonetos de Albano

Cervonegro. O tal Albano Cervonegro, de quem é atribuída a autoria

dos sonetos desse álbum de iluminogravuras, é um pseudônimo de

Ariano Suassuna368. Conforme Newton Júnior esclarece:

Notar que o nome Ariano não só rima com Albano como pode ser pronunciado dentro da mesma métrica, se falado em Portugal. Ariano já havia usado o pseudônimo Albano muito antes, em 1951, em carta-poema endereçada ao poeta popular Manuel de Lira Flores, presente em O Pasto Incendiado. A construção do nome Albano Cervonegro procura homenagear as três raças formadoras da cultura brasileira. Albano é uma variante de albino, e provém do latim albus (branco, alvo). Cervonegro, por sua vez, é a tradução portuguesa da palavra tupi suassuna, composta por suassu (su=bicho; assu=grande – ou seja, cervo ou veado) e una (negro) 369.

Não obstante a importância que o trabalho com as

iluminogravuras acabou ganhando dentro da obra de Suassuna, o

autor não deixa de ressaltar, em relação a esse trabalho que, “a obra

plástica vem da literatura. É das imagens da literatura que surgem

as ilustrações, e não o contrário”370. Assim, é “o signo verbal que

ativa a imagem”371.

Dessa forma, uma característica que deve ser ressaltada no

trabalho com as iluminogravuras é em relação à sua configuração 367 LEÃO, Ângela Vaz. “A Tigre Negra”: uma iluminogravura de Ariano Suassuna. p.14. 368 Conforme Newton Júnior, suassuna foi o “apelido familiar adotado como nome pelo bisavô de Ariano, é uma palavra tupi, que significa cervo negro”. In: NEWTON JÚNIOR, Carlos. O pai, o exílio e o reino. p.132. 369 NEWTON JÚNIOR, Carlos. O pai, o exílio e o reino. p.132. [nota de rodapé] 370 INSTITUTO MOREIRA SALLES. Ao sol da prosa brasiliana [entrevista]. p.37. 371 MACHADO, Irley. As imagens da morte na epístola do adeus. p.186.

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[137]

“textual”. A produção poética de Ariano Suassuna é pouco conhecida

do público, mesmo nos dias de hoje372. Embora seja mais conhecido

do público por suas peças em que o cômico prevalece, ou sua

produção como prosador, principalmente através d’O Romance da

Pedra do Reino, foi com um poema – “Noturno”, publicado no Jornal

do Commercio (Recife, 7/10/1945)373 – que Ariano começou sua

carreira literária, então com 18 anos de idade. Inclusive, Suassuna já

disse, “inúmeras vezes, em entrevistas e artigos, que sua poesia é a

fonte profunda de tudo o que ele escreve”374. Também na sua

produção poética, como em todos os seus demais trabalhos,

podemos observar referências ao universo mítico e simbólico

construído pelo autor, sempre tendo o Sertão nordestino como

tema375. A sua obra poética está impregnada dessa simbologia, ao

ponto de considerarem essa parte de sua produção como demasiada

hermética, requerendo “para ser melhor compreendida, alguma

familiaridade com o universo literário do autor”376.

372 Um dos poucos escritos sobre a poesia de Ariano Suassuna trata-se do livro O pai, o exílio e o reino: a poesia armorial de Ariano Suassuna, do professor Carlos Newton Júnior. Escrito originalmente sob a forma de dissertação de mestrado, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), o ensaio permanece como uma das poucas referências sobre a poesia de Suassuna. 373 NEWTON JÚNIOR, Carlos. O pasto iluminado ou A sagração do poeta brasileiro desconhecido. Cadernos de Literatura Brasileira, Instituto Moreira Salles, São Paulo, n.10, nov.2000. p.129. 374 NEWTON JÚNIOR, Carlos. O pasto iluminado ou A sagração do poeta brasileiro desconhecido. p.130. 375 Foi o geógrafo sino-americano Yi-Fu Tuan, que em seu livro, Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente, publicado em 1974, cunhou a expressão topofilia, que pode ser atribuída a essa relação que vemos estabelecida entre Ariano Suassuna e o Sertão nordestino. Um dos objetivos do geógrafo no referido livro, era estudar os sentimentos de apego das pessoas ao ambiente natural ou construído, pois “topus” é uma palavra grega que significa “lugar”, enquanto “filo” significa amor, amizade, afinidade. Segundo Yi-Fu Tuan: “A palavra topofilia é um neologismo, útil quando pode ser definida num sentido amplo, incluindo todos os laços afetivos dos seres humanos com o meio ambiente material. [...] A resposta ao meio ambiente pode ser basicamente estética [...]. A topofilia não é a emoção humana mais forte. Quando é irresistível, podemos estar certos de que o lugar ou o meio ambiente é percebido como um símbolo”. In: TUAN, Yi-Fu. Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente. Trad. Lívia de Oliveira. São Paulo/Rio de Janeiro: DIFEL, 1980. p.107. 376 NEWTON JÚNIOR, Carlos. O pasto iluminado ou A sagração do poeta brasileiro desconhecido. p.130.

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Também em relação ao gênero poético, vale ressaltar que

Suassuna nunca concordou com alguns pressupostos delineados

pelo Modernismo – o verso livre, por exemplo. Analisando a obra

poética de Suassuna, Carlos Newton Júnior declara: “considerando

sua produção poética como um todo, em poucas ocasiões o autor

fará uso do verso não metrificado ou escreverá poemas sem rima e

estrofação regulares”377. Além disso, já nos seus primeiros trabalhos

da juventude, “ouvem-se os ecos dos seus mestres de então”378 –

que seriam Camões e Dante, além dos poetas românticos ingleses,

Shelley e Keats.

Porém, a grande inspiração veio um tempo depois, quando

Ariano conhece a poesia de Federico García Lorca. Lorca era “um

grande escritor erudito cuja fonte de inspiração transbordava de

uma água cristalina e de veio popular, jorrada principalmente

através do Romanceiro ibérico”379. Segundo Newton Júnior:

A partir da poesia de Lorca, cujas paisagens eram povoadas de ciganos, bois e cavalos, Suassuna percebe que poderia fazer, em relação ao sertão do Nordeste brasileiro, o que Lorca fazia em relação ao mundo rural da Espanha – ou seja: falar com o sangue do que lhe era tão familiar para ser compreendido pela comunidade da raça humana380.

A partir do conhecimento da obra de Lorca, Suassuna se

aprofundará no estudo da poesia popular, partindo principalmente

do Romanceiro popular nordestino. São de 1946 a 1948 suas

primeiras tentativas poéticas baseadas nesse Romanceiro. Ainda

377 NEWTON JÚNIOR, Carlos. O pasto iluminado ou A sagração do poeta brasileiro desconhecido. p.131. 378 NEWTON JÚNIOR, Carlos. O pasto iluminado ou A sagração do poeta brasileiro desconhecido. p.131. 379 NEWTON JÚNIOR, Carlos. O pasto iluminado ou A sagração do poeta brasileiro desconhecido. p.131. 380 NEWTON JÚNIOR, Carlos. O pasto iluminado ou A sagração do poeta brasileiro desconhecido. p.132.

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segundo Newton Júnior, “em vez da quadra ibérica (quatro versos

de sete sílabas, rimadas de ABCB), Ariano dá preferência à sextilha,

ou repente, a estrofe mais usada pelos cantadores do sertão

nordestino, formada por seis versos de sete sílabas, rimadas em

ABCBDB”381. Como exemplo, vemos abaixo as duas primeiras

estrofes do poema “Os Guabirabas”, de autoria de Ariano Suassuna:

Lá vai na estrada, em seu cavalo Alazão. Cascos ferrados, nas pedras, chispando Fagulhas vão, na roseta das Esporas, na Laça de seu ferrão. Cirino, cuida da vida, cuida nas pedras da Estrada! Não foste há pouco avisado de que a vida é uma Emboscada? Não durmas tendo inimigo, Cirino da Guabiraba!382

Newton Júnior é quem igualmente ressalta, que a maioria dos

poemas de Ariano que tem ligação com a arte popular, possuem um

aspecto “emblemático”. Diz esse autor:

São poemas nos quais o espírito armorial se evidencia pelo caráter de insígnia do texto, nas alusões a bandeiras, estandartes e ornatos em relevo, nas imagens recriadas em tom épico, que brilham como os esmaltes da heráldica, com se cada poema fizesse às vezes de um escudo de armas, ou de uma xilogravura popular, com sua fantasia tosca, impolida, mas brilhante e forte383.

381 NEWTON JÚNIOR, Carlos. O pasto iluminado ou A sagração do poeta brasileiro desconhecido. p.132. 382 SUASSUNA, Ariano apud NEWTON JÚNIOR, Carlos. O pasto iluminado ou A sagração do poeta brasileiro desconhecido. p.132. 383 NEWTON JÚNIOR, Carlos. O pasto iluminado ou A sagração do poeta brasileiro desconhecido. p.135.

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Nessas palavras do professor Newton Júnior, podemos

confirmar a postura de Suassuna, quando este se refere aos

elementos que melhor caracterizariam ou deveriam caracterizar a

produção do Armorial384. Mais adiante esse autor cita um poema de

Suassuna, no qual, “o próprio mundo do sertão pode ser visto como

um grande brasão”385. Abaixo faz-se a transcrição desse poema:

Diante de mim, as malhas amarelas do mundo, Onça castanha e desmedida. No Campo rubro, a Asna azul da vida: à cruz de Azul, o Mal se desmantela. Mas a Prata sem sol destas moedas perturba a Cruz e as Rosas mal-partidas e a Marca negra, esquerda, inesquecida, corta a Prata das folhas e fivelas. E enquanto o fogo clama à Pedra rija, que até o fim serei desnorteado, que até no Pardo o Cego desespera, o Cavalo castanho, na cornija, tenta alçar-se, nas asas, ao Sagrado, ladrando entre as Esfinges e a Pantera.386

Dessa forma, conforme nos foi atestado anteriormente, quem

pretende empreender um trabalho de análise das iluminogravuras

384 É Idelette Muzart quem nos informa que muitos jovens artistas que começaram a produzir sob o signo do Armorial, influenciados pela figura de Ariano Suassuna, com o tempo buscaram novos caminhos, novas formas de expressar a sua arte, talvez como uma forma de “evolução ou fuga”. Cita, a estudiosa, o depoimento de Fernando Lopes da Paz, escultor que pertenceu ao Movimento: “Revolvi iniciar este trabalho de cerâmica por estar cansado de mestres, escolas e estilos, numa procura boba em que meu pensamento era sempre truncado na execução para atender programas absolutamente exteriores à minha vontade artística”. Mais adiante Idelette Muzart adverte: “Atraídos pela órbita armorial, alguns artistas podem ter sentido a impressão de se perderem”. In: SANTOS, Idelette Muzart Fonseca dos. Em demanda da poética popular. p.57 e 58. 385 NEWTON JÚNIOR, Carlos. O pasto iluminado ou A sagração do poeta brasileiro desconhecido. p.135. 386 SUASSUNA, Ariano apud NEWTON JÚNIOR, Carlos. O pasto iluminado ou A sagração do poeta brasileiro desconhecido. p.135.

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de Ariano Suassuna não deve preterir as “reflexões pertinentes aos

campos da gravura e da pintura, sem um confronto da literatura

com as artes plásticas”387. Pois, como bem afirmou Suassuna quando

do lançamento do Movimento, nessa arte armorial a “idéia de

integração das artes, contrariamente ao princípio da autonomia,

defendido pela estética que surgiu com o modernismo”388, deveria

prevalecer.

Como já me referi aqui, Gilvan Samico exerceu em Ariano

Suassuna uma influência decisiva quando da fundamentação teórica

da pintura no Armorial. Conforme Idelette Muzart, essa influência se

deu principalmente através do “achatamento dos traços, a figuração

estática, a utilização de cores puras e, evidentemente, com a

temática do romanceiro onipresente, nas xilogravuras, serigrafias e

pinturas”389. Suassuna assim se refere à obra de Samico:

Seu segredo consistiu apenas em o gravador voltar a certos processos que os novidadeiros julgavam esgotados; em voltar ao uso do material mais puro, nobre e primitivo da Gravura – a madeira; em regressar a suas raízes, recriando, com grande liberdade e imaginação, o espírito e as formas da Xilogravura do seu Povo; em contornar as figuras de um limpo traço negro, que se destaca nos puros espaços brancos, por entre massas negras e tramas delicadamente interpostas, e toques de vermelho, verde, azul ou amarelo, que a Gravura popular não usa mas que ele fez muito bem em introduzir para recriá-la. À primeira vista, parece fácil, mas quem fizesse essa apreciação superficial demonstraria apenas que é incapaz de invenção, que nunca experimentou, por dentro, o que é a áspera e complexa escalada em direção à beleza390.

387 NEWTON JÚNIOR, Carlos. O pai, o exílio e o reino. p.17. 388 NEWTON JÚNIOR, Carlos. O pai, o exílio e o reino. p.17. 389 SANTOS, Idelette Muzart Fonseca dos. Em demanda da poética popular. p.55. 390 SUASSUNA, Ariano apud SANTOS, Idelette Muzart Fonseca dos. Em demanda da poética popular. p.55.

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Segundo relata o próprio Samico, ele já era um artista

armorial, antes mesmo que esse movimento viesse a surgir, pois,

mesmo sem o saber, ele já produzia dentro de uma estética a qual

Ariano nomearia, posteriormente, como Armorial. Assim:

Sobre essa história de ser chamado de “gravador armorial”... Eu fazia uma gravura inspirada no popular, ainda que eu nunca tenha querido ser artista popular. Sou um artista erudito. Um dia, Ariano me apareceu e disse: “Eu acabei de criar um movimento e você está nele”. É claro que ele sabia que eu iria me engajar, era uma questão de coerência. Agora, Ariano nunca pegou na minha mão pra fazer um trabalho meu. Então, eu não aderi ao Movimento Armorial: eu já era armorial antes, sem saber!391

391 MUSEU OSCAR NIEMEYER. Samico: do desenho à gravura. Curitiba, 4 ago. a 6 nov. 2005. p.56.

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O universo numa folha de papel

Todo mundo objetivo funciona como

fetiche, quando percebido pelo homem. Todos nós, mesmo contra a nossa vontade,

praticamos magia.

FLÁVIO DE CARVALHO

Como já mencionei, é a partir da obra O Romance da Pedra do

Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta (1971), que Suassuna

une pela primeira vez seus talentos de escritor e artista plástico. Um

dos maiores conhecedores da obra suassuniana, Carlos Newton

Júnior, já afirmara que foi a partir d’A Pedra do Reino que Ariano

passou a se dedicar mais seriamente ao seu trabalho como gravador

e pintor, trabalho esse que iria culminar na elaboração das

estilogravuras e iluminogravuras.

Devo, esclarecer que o fato de estar constantemente me

reportando a essa obra específica de Ariano Suassuna, justifica-se

por ela conter em sua elaboração, aquela convergência de

disciplinas artísticas buscadas por Ariano e pelo Armorial desde o

início do Movimento, constituindo-se, então, ao meu ver, de

fundamental importância seu entendimento para pensarmos a

produção das iluminogravuras. O próprio Suassuna já afirmou que A

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Pedra do Reino se constitui seu trabalho mais completo, logo,

acredito que muitas das características que iremos encontrar nas

ditas iluminogravuras já estão presentes nessa obra. Logo, essa obra

é fundamental para se entender a reconfiguração que Ariano

empreende ao criar esse espaço idealizado que ele chama de Sertão.

Sertão mítico-poético e telúrico, que se constitui o centro de sua

vida e obra.

Conforme nos mostra Leonardo Carneiro Ventura: “Ariano

passou décadas na construção desse imaginário pedregoso do

Nordeste, construção sublimada com a conclusão de sua obra-mor o

Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta

[...]”. Ainda conforme nos esclarece esse autor:

Escrito durante os anos anteriores ao lançamento do Movimento Armorial, ou seja, em plena maturação do autor e de seu pensamento armorial, o Romance d’A Pedra do Reino representa a própria formação desse solo “granítico”, “rochoso” que é o imaginário suassuniano, repleto de lutas, de sangue, de miséria, mas também de beleza, de humor, de uma resistência tenaz, de “pedra” do homem sertanejo, que a tudo sobrevive, inclusive às investidas da sociedade moderna que seria inimiga dos ditos valores da terra, da tradição nordestina.392

Isto posto, cabe lembrar que O Romance da Pedra do Reino e o

Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, que tem sua primeira publicação

em 1971, pela editora José Olympio, e que estava sendo escrito pelo

autor desde 1958, constitui-se a primeira parte de uma trilogia

denominada A Maravilhosa Desventura de Quaderna, o Decifrador, e

a Demanda Novelosa do Reino do Sertão. A partir de 1975 Suassuna

“começa a publicar no Diário de Pernambuco folhetins semanais de

A história do rei degolado nas caatingas do sertão: ao sol da Onça

392 VENTURA, Leonardo Carneiro. Música dos espaços. p.60.

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Caetana, planejado para ser o primeiro livro da segunda parte da

trilogia”393. A publicação dessa história, sob a forma de folhetim, se

estenderia até o ano seguinte (1976). Somente em 1977 O rei

degolado ganha o formato de livro. A terceira parte dessa trilogia – O

Romance de Sinésio, o Alumioso, Príncipe da Bandeira do Divino do

Sertão – permanece inédito até hoje. Segundo Anna Paula Soares

Lemos, o trabalho está “em produção desde o fim da década de 1970

e [...], segundo Suassuna, terá mais de oitocentas páginas”394.

Entretanto, conforme informa Newton Júnior, há anos Ariano

vem anunciando um novo romance, iniciado em 1981. O livro daria continuidade à trilogia Quaderna, o Decifrador, cuja publicação foi interrompida no início d’O Rei Degolado. Em algumas entrevistas, Suassuna afirma que, nesse novo livro, em andamento, todo o seu trabalho de escritor vem sendo revisado – trata-se, portanto, de um livro-síntese de sua obra, que uma vez concluído incluirá teatro, poesia e prosa. “Síntese”, também, porque, a exemplo das iluminogravuras, a relação texto-ilustração será muito mais profunda, principalmente se comparada à relação já encontrada n’A Pedra do Reino395.

Como já venho afirmando, n’A Pedra do Reino encontraremos

muitos dos elementos imagéticos que caracterizarão a maior parte

do universo suassuniano. Assim, segundo confirma Maria Thereza

Didier, é nessa obra que encontraremos aqueles elementos

imagéticos que “assinalam o remetimento do universo castanho

armorial à cosmologia medieval”396. Nesse sentido, é seu próprio

narrador, d. Pedro Diniz Ferreira-Quaderna, autointitulado

393 INSTITUTO MOREIRA SALLES. As infâncias (e juventudes e maturidades) de Quaderna. Cadernos de Literatura Brasileira, n.10, nov.2000. p.12. 394 LEMOS, Anna Paula Soares. Ariano Suassuna, o palhaço-professor e sua Pedra do Reino. p.13. 395 NEWTON JÚNIOR, Carlos. O pai, o exílio e o reino. p.94. 396 DIDIER, Maria Thereza. Emblemas da sagração armorial. p.175.

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Cronista-Fidalgo, Rapsodo-Acadêmico e Poeta-Escrição, quem vê as

semelhanças entre os “fidalgos normandos” e os “cangaceiros”, as

“fazendas sertanejas” e os “Reinos”. Dessa forma, seriam os

fazendeiros, “Reis, Condes ou Barões”, sendo que “Princesas”

também não faltam nesse mundo mítico-sertanejo idealizado pelo

personagem-narrador397. Todavia, esses elementos foram somente

“reaproveitados” por Suassuna em sua obra, pois eles já apareciam

nos folhetos e na literatura popular:

Castelos, damas, cavaleiros e princesas povoam os folhetos populares do interior nordestino, contando-nos sobre batalhas e reis entre os quais se encontram Carlos Magno e seus vassalos, cristãos e mouros, reis e imperadores vislumbrando histórias de amores e fantasias. Símbolos e cores nos estandartes das cavalhadas fazem referência a um mundo religioso povoado de anjos e demônios, onças e cobras398.

São esses símbolos de uma Europa medieval que, vindos para

o Brasil sob “a vertente ibero-moura e misturando-se aqui com os

negros e índios”399 que constituirão, para os armoriais, nossa

suposta individualidade e originalidade enquanto povo. Assim

sendo, é “nesse cadinho cultural e étnico que Suassuna encontra a

singularidade da cultura brasileira e privilegia a sua análise”400,

elegendo o Sertão como o local onde a cultura nacional melhor se

conservou no seu estado “originário” das influências externas.

Dessa maneira, “o romance D’A Pedra do Reino se volta para o

subterrâneo, as visagens, lendas e fatos desse mundo [...] pedregoso,

áspero e ensolarado”401 que é o Sertão Nordestino. Pela

397 SUASSUNA, Ariano apud DIDIER, Maria Thereza. Emblemas da sagração armorial. p.179. 398 DIDIER, Maria Thereza. Emblemas da sagração armorial. p.178. 399 DIDIER, Maria Thereza. Emblemas da sagração armorial. p.180. 400 DIDIER, Maria Thereza. Emblemas da sagração armorial. p.153. 401 DIDIER, Maria Thereza. Emblemas da sagração armorial. p.180.

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manipulação da pena do seu narrador-protagonista, Suassuna pinta,

diante de nossos olhos, essa “terra sagrada”:

Daqui de cima, no pavimento superior, pela janela gradeada da Cadeia onde estou preso, vejo os arredores da nossa indomável Vila sertaneja. O Sol treme na vista, reluzindo nas pedras mais próximas. Da terra agreste, espinhenta e predregosa, batida pelo Sol esbraseado, parece desprender-se um sopro ardente, que tanto pode ser o arquejo de gerações de Cangaceiros, de rudes Beatos e Profetas, assassinados durante anos e anos entre essas pedras selvagens, como pode ser a respiração dessa Fera estranha, a Terra – esta Onça-Parda em cujo dorso habita a Raça piolhosa dos homens. Pode ser, também, a respiração fogosa dessa outra fera, a Divindade, Onça-Malhada que é dona da Parda, e que, há milênios, acicata a nossa Raça, puxando-a para o alto, para o Reino e para o Sol402.

Nesse pequeno trecho da obra podemos encontrar uma

infinidade de insígnias da mitologia sertaneja erigida por Suassuna.

Da janela da prisão onde se encontra, Quaderna delineia diante de

nossos olhos aqueles objetos simbólicos e emblemáticos do Sertão

nordestino: o Sol (sempre grafado com iniciais maiúsculas,

personificando a função capital que esse elemento tem na vida do

povo sertanejo, e, como veremos adiante, no próprio universo

suassuniano), as pedras, a terra agreste, espinhenta e pedregosa.

Também notamos a presença de Cangaceiros, Beatos e Profetas –

personagens arquetípicos da história sertaneja. Há a referência,

também nesse parágrafo, a um dos elementos de fundamental

importância na obra do autor paraibano – a do simbolismo

402 SUASSUNA, Ariano. O romance d’A Pedra do Reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta. 8.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006. p.31.

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representado pelas Onça-Parda e Onça-Malhada –, sobre a qual

tratarei detalhadamente mais adiante.

Contudo, conforme vem sendo reforçado, o Sertão

suassuniano não é o sertão real, mas um espaço mitificado onde a

realidade sertaneja, em sua “matéria vivida”, é transfigurada em

“matéria imaginada”403. Dessa forma, a “geografia suassuniana,

como a dos folhetos, desenha-se num espaço literário e constrói-se

com palavras”404. No Em demanda da poética popular, ao comentar

sobre a obra O Romance da Pedra do Reino, Idelette Muzart Fonseca

dos Santos afirma que:

[...] Suassuna e seu narrador, Quaderna, pouco se preocupam com realismo ou com realidade sociopolítica; compõem uma obra literária, vêem o sertão e representam-no com palavras, gravuras e poemas. Se devemos falar de um real observado, a posição do observador é fundamental: situa-se aqui do lado da poesia. Sua visão do sertão está, portanto, deformada, mas tanto quanto o seria uma visão exclusivamente sociológica ou geográfica. Suassuna deixa aos historiadores, sociólogos, jornalistas, a responsabilidade de informar, compreender, analisar o sertão. Ele quer tão-somente cantá-lo, na alegria e na pena405.

Também Silviano Santiago nos assevera:

[...] em Suassuna não existe a intenção de fazer um levantamento artístico-sociológico da região nordestina, dentro dos moldes da escola naturalista, mas antes busca ele uma recriação poética do Nordeste por meio dos textos do

403 FARIAS, Sônia Lúcia Ramalho de. O sertão de José Lins do Rego e Ariano Suassuna. p.75. 404 SANTOS, Idelette Muzart Fonseca dos. Em demanda da poética popular. p.76. 405 SANTOS, Idelette Muzart Fonseca dos. Em demanda da poética popular. p.72-73.

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romanceiro popular, graças aos folhetos da literatura de cordel406.

Isto posto, vamos observar, a partir de agora, como Ariano

Suassuna constrói seu universo mítico-poético, principalmente

através das obras que o autor denomina de iluminogravuras, uma

forma de arte muito pessoal criada pelo autor paraibano, e que se

constitui a síntese de seu universo e dos temas consagrados à sua

produção artística.

Não obstante, uma observação deve ser feita logo de início.

Para esse trabalho tomei como base principalmente as

iluminogravuras reproduzidas no Cadernos de Literatura Brasileira

(nº 10, 2000), do Instituto Moreira Salles. Como já mencionei, esse

trabalho de Suassuna teve uma tiragem muito reduzida (cinquenta

exemplares para cada prancha), tornando-se hoje em dia artigo raro

de ser encontrado ou adquirido. Segundo nos assegura Newton

Júnior:

Após o lançamento dos álbuns, muitas das iluminogravuras foram comercializadas isoladamente, e ainda hoje é possível encontrar, em algumas galerias do país, uma ou outra iluminogravura isolada e em moldura, como se tratasse de um trabalho independente. É possível, também, encontrar algumas pranchas cujas datas não correspondem àquelas dos lançamentos dos álbuns (1980 e 1985). É que, esgotada a edição inicial, outros exemplares foram produzidos, para atender a pedidos de amigos e familiares, exemplares datados à medida que foram concluídos407.

Dessa forma, como ponto de partida, tomo os trabalhos

reproduzidos no Cadernos de Literatura, até por julgar que, pela

406 SANTIAGO, Silviano. Situação de Ariano Suassuna. In: SUASSUNA, Ariano. Seleta e prosa e verso. 2.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2007. p.22. 407 NEWTON JÚNIOR, Carlos. O pai, o exílio e o reino. p.123-124.

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qualidade gráfica da publicação, pode-se ter uma ideia bem próxima

do que correspondem as iluminogravuras originais. Algumas dessas

obras até podem ser encontradas na internet, mas devido à

qualidade das imagens (baixa resolução) não é possível tomá-las

como base para a realização de um trabalho mais minucioso.

Ainda em relação aos dois álbuns de iluminogravuras

lançadas por Suassuna, Newton Júnior nos faz uma revelação: “Dos

vinte sonetos presentes nos dois álbuns de iluminogravuras,

dezesseis foram originalmente escritos para a Vida-Nova

Sertaneja, trabalho elaborado entre os anos de 1970 e 1974, e que

Suassuna não chegou a divulgar”408. Conforme esclarece o autor,

esse trabalho foi elaborado sob a influência da Vida Nova, de Dante.

Da mesma forma que Dante havia feito em sua obra, no seu Vida-

Nova Sertaneja Ariano intercala aos poemas pequenos textos em

prosa, nos quais “procura fornecer indicações sobre os poemas,

revelando fatos da biografia do autor e de que forma esses fatos

influenciaram a visão de mundo expressa nos sonetos”409.

Constituir-se-ia, assim, a obra, numa espécie da “autobiografia

poética”. Entretanto, diferente do texto de Dante, que segundo

Newton Júnior era um texto de juventude, a obra de Ariano seria

uma obra de maturidade, “escrito após suas maiores experiências

no teatro e no romance”410.

408 NEWTON JÚNIOR, Carlos. O pai, o exílio e o reino. p.126. 409 NEWTON JÚNIOR, Carlos. O pai, o exílio e o reino. p.126-127. 410 NEWTON JÚNIOR, Carlos. O pai, o exílio e o reino. p.126.

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Figura 10 – Imagem disponível na internet, reproduzindo as iluminogravuras que possivelmente comporiam o álbum Sonetos com mote alheio (1980).

Outro ponto que deve ser ressaltado é que deterei minha

análise, principalmente, em duas das seis iluminogravuras

reproduzidas no Cadernos – “O Campo” e “Lápide”. Isto, no entanto,

não impedirá de fazer ocasionalmente referência a outros trabalhos

que não constam dessa publicação, como forma de apontar nessas

obras elementos importantes dentro do universo mítico-poético

suassuniano.

Assim, para começar, um dos primeiros elementos que mais

chamam a atenção quando nos deparamos com as iluminogravuras

de Ariano Suassuna, é o uso que o autor faz da cor411. Pode-se notar

411 Para Olga Ostrower, “o valor exato de uma cor dependerá do conjunto em que é vista. Dependerá, portanto, sempre de um contexto colorístico”. Então, a função espacial que a cor determinará dentro da superfície da obra, dependerá das relações entre as diversas cores, relação que deverá ser tomada dentro do contexto específico da obra. “Quer dizer,

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que a predominância colorística nas iluminogravuras (e não

somente nas que foram escolhidas para análise) sempre remeterá a

uma coloração ocre, de terra, cores que transitam do marrom, a um

tom vermelho-amarronzado, formando uma espécie de cor

castanha. Na simbologia das cores o marrom representa a terra. Em

algumas culturas orientais acredita-se que o marrom incorpore toda

a força natural do elemento terra. Na Idade Média era a cor

designada aos camponeses, e portanto é associada à humildade. Nos

ambientes, dá a impressão de algo sólido, seguro e calmo. Também

pode ser associada a ideias de natureza, rusticidade, estabilidade,

estagnação, peso e aspereza. Logo, essa cor seria das mais

representativa do mundo mítico-telúrico suassuniano. O espaço

pictórico das iluminogravuras passa a ser, então, a representação da

terra agreste e pedregosa do Sertão, o reino sertanejo suassuniano,

onde os elementos desse universo ganham vida. Segundo Maria

Aparecida Nogueira afirma: “Como uma erupção vulcânica, num

arrebatamento lírico desmedido, brotam de sua obra as imagens da

terra, devaneio extremo de quem permanece fincado no sertão

[...]”412.

Igualmente, é o castanho ou a cor castanha elemento

emblemático, constituindo-se de fundamental importância dentro

do universo suassuniano. O elemento castanho também é um dos

símbolos principais que permeiam toda a obra literária, crítica e

teórica do autor paraibano. Suassuna, com a “idéia de ‘Castanho’

pretende expressar a síntese da cultura brasileira”413. Retomando e

reinventado “o simbolismo da miscigenação étnica abordado por

[Silvio] Romero e [Gilberto] Freyre”414, Ariano Suassuna criou a

de acordo com as relações colorísticas, a mesma cor pode definir o espaço de maneiras diferentes”. In: OSTROWER, Olga. Universos da arte. 13.ed. Rio de Janeiro: Campus, 1983. p.235. 412 NOGUEIRA, Maria Aparecida Lopes. O cabreiro tresmalhado. p.42. 413 NOGUEIRA, Maria Aparecida Lopes. O cabreiro tresmalhado. p.105. 414 DIDIER, Maria Thereza. Emblemas da sagração armorial. p.150.

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designação de “povo castanho brasileiro”415, que “se traduz através

do amálgama das influências ibero-mouras, negras e índias”416.

Segundo Ariano:

Assim, creio não exagerar quando afirmo que a Cultura brasileira tem que ser encarada dentro do campo mais geral da Cultura dos povos castanhos da Rainha do Meio-Dia, e que tal Cultura tem um modo próprio de expressar seu pensamento. Esse modo de pensar é mais estético e ético do que lógico e metafísico, e isso que pode parecer seu principal defeito nos olhos dos rotineiros acadêmicos, é, talvez, sua melhor qualidade, sua originalidade mais profunda417.

Dessa forma, a marca maior de nossa singularidade seria

sintetizada nessa “cosmovisão castanha” suassuniana. Cosmovisão

castanha que é expressão de “uma dinâmica barroca”, pois a

característica que se sobressai no barroco, sua peculiaridade mais

marcante, é a mestiçagem de signos, a mescla de contrários418,

características essas que vamos encontrar na produção artística de

Ariano Suassuna.

O barroco é uma das principais influências na obra de Ariano.

O autor vê nas obras desse período, e na sua representação da união

de contrários, a ideia síntese que caracterizaria de forma marcante a

415 Essa ideia foi desenvolvida por Suassuna na sua tese de docência – A Onça Castanha e a Ilha Brasil (1976) –, apresentada ao Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Pernambuco, para concurso à docência livre da disciplina “História da Cultura Brasileira”. Para Maria Thereza Didier, esse trabalho é uma “obra que elabora a construção de uma identidade brasileira, estabelecendo vínculo íntimo com o passado alegorizado como a face refletida da autenticidade cultural do Brasil”. In: DIDIER, Maria Thereza. Emblemas da sagração armorial. p.149. 416 DIDIER, Maria Thereza. Emblemas da sagração armorial. p.174. 417 SUASSUNA, Ariano. A Onça Castanha e a Ilha Brasil. Tese de docência livre em História da Cultura Brasileira, apresentada ao Centro de Ciências Humanas da Universidade Federal de Pernambuco. Recife, 1976. [versão fotocopiada do original datilografado]. p.11. 418 BRITO, Sônia Maria Prieto Romolo. A reconfiguração do mito sebastianista no “Romance d’A Pedra do Reino”, de Ariano Suassuna. p.164.

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cultura brasileira e o povo brasileiro. Segundo o autor: “trata-se, a

meu ver, da união de contrários, da tendência para assimilar e

fundir contrastes numa síntese nova e castanha que dá unidade a

uma complementaridade de opostos”419, que resumiria a

característica mais marcante do Povo brasileiro. Na tese de docência

A Onça Castanha e a Ilha Brasil, Suassuna assim se refere: “Não foi

por acaso que o Brasil começou a se formar, como o País que é hoje,

forjando-se no fogo do Barroco [...]”420. Ainda conforme esclarece o

autor:

O Barroco é um estilo de vida, uma visão do mundo e uma Cultura, que se caracteriza pela união dialética de contrários, de elementos clássicos e românticos. Mas precisamente, pode-se dizer que o Barroco destruiu e queimou no seu impulso o otimismo clássico e preparou o pessimismo romântico, embebido de amor pelo Caos e pelo satanismo do culto da melancolia e da Morte421.

Em seus depoimentos sobre a origem do nome do Movimento

Armorial, já reproduzidas aqui, o próprio Suassuna reforça essa

presença da arte barroca como inspiração para o Armorial, através,

segundo ele, “das pedras armoriais dos portões e frontadas do

barroco brasileiro”422. Influência que se deu também,

principalmente através do veio do barroco-ibérico medieval que

teria no nordeste brasileiro um espaço de recriação, e que pode ser

419 SUASSUNA, Ariano. A Onça Castanha e a Ilha Brasil. p.4. 420 SUASSUNA, Ariano. A Onça Castanha e a Ilha Brasil. p.6 421 Na tese de docência A Onça Castanha e a Ilha Brasil, Suassuna assim se refere: “Não foi por acaso que o Brasil começou a se formar, como o País que é hoje, forjando-se no fogo do Barroco [...]”. Ainda conforme esclarece o autor: “O Barroco é um estilo de vida, uma visão do mundo e uma Cultura, que se caracteriza pela união dialética de contrários, de elementos clássicos e românticos. Mas precisamente, pode-se dizer que o Barroco destruiu e queimou no seu impulso o otimismo clássico e preparou o pessimismo romântico, embebido de amor pelo Caos e pelo satanismo do culto da melancolia e da Morte”. In: SUASSUNA, Ariano. A Onça Castanha e a Ilha Brasil. p.6 422 SUASSUNA, Ariano. O Movimento Armorial. [CD-ROM].

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observado nas referências às novelas de cavalaria, aos autos

Vicentinos, ao Barroco espanhol.

Dessa forma, conforme nos atesta Maria Aparecida Nogueira:

“A intenção de Ariano é criar uma literatura que seja

simultaneamente tradicional e popular, clássica e barroca, uma

fusão entre o trágico e o cômico, marcas da alma do povo brasileiro,

dos povos da Rainha do Meio-Dia [...]”423. Essa união dos contrários,

característico da produção artística barroca acaba encontrando,

pois, eco na obra de Suassuna, em consonância com sua postura

ideológica e artística. Ainda segundo nos esclarece essa autora:

“Talvez Ariano queira nos pôr frente a frente com as culturas que

contribuíram para a formação brasileira, na tentativa de impedir o

esquecimento dessa ‘desordem organizadora’, dessa pulsação que

só os ‘Castanhos’ são capazes de disseminar”424.

Contudo, o próprio Suassuna é consciente de que esse ideal

castanho ainda é uma aspiração mais do que um fato. O ideal

castanho de Suassuna é mais uma questão estética do que um

pensamento sociológico ou científico sobre a cultura brasileira.

Conforme nos alerta Maria Thereza Didier, a “teoria étnica de

Suassuna, enfatizando os aspectos culturais, está muito mais

preocupada em elaborar uma criação estética original e identitária,

como o armorial [...]”425. Dessa forma: “Sob o olhar de Ariano, o

sertão tem o significado de fascinação, pela possibilidade de gestar a

beleza genuinamente nacional; no ser castanho, o escritor encontra

o subterrâneo que o armorial tenta revelar”426. Assim, para Ariano

Suassuna, o Sertão, passa a ser o palco privilegiado onde essa utopia

Castanha, que é o “sonho inconsciente perseguido por todo o povo

brasileiro”427, se forja de forma mais consistente. Nas palavras do

próprio Ariano: “Esse castanho que, no Brasil, vem se forjando no

423 NOGUEIRA, Maria Aparecida Lopes. O cabreiro tresmalhado. p.107. 424 NOGUEIRA, Maria Aparecida Lopes. O cabreiro tresmalhado. p.153. 425 DIDIER, Maria Thereza. Emblemas da sagração armorial. p.156. 426 DIDIER, Maria Thereza. Emblemas da sagração armorial. p.156. 427 NOGUEIRA, Maria Aparecida Lopes. O cabreiro tresmalhado. p.37.

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Sertão mais do que em qualquer outra parte, é a aspiração

inconsciente, mas verdadeira e profunda, irreprimível, do Povo

brasileiro [...]”.

Notamos aqui, a ascendência que Suassuna visualiza do

mundo sertanejo em relação, por exemplo, com a Zona da Mata, de

Gilberto Freyre, como visto na primeira parte deste estudo. O sertão

é o palco privilegiado do pensamento suassuniano, é a terra mítica

onde a fusão castanha ocorre efetivamente, onde reside nossa

suposta originalidade cultural, visto que no litoral, onde “os

contingentes estrangeiros dominaram mais”428, as influências

descaracterizantes são mais nítidas. Assim, para Suassuna:

Apesar do progresso e do desenvolvimento, o sertão continua ancorado em imagens que teimam em manter a sutura natureza-cultura, em que a natureza continua sendo o lugar de encontro com deuses ancestrais, fonte perpétua de representações da terra-mãe e das mitologizações do início e do fim do mundo. Esse conjunto expressa um modo de vida no qual real e imaginário, razão e desrazão, perene e oculto, científico e mágico tornam-se distinções irrelevantes.429

Volto à primeira das iluminogravuras consideradas – “O

campo” (Figura 11). Pode-se encontrar, aqui, os elementos que

representarão essa visão castanha de Ariano, de amálgama das

nossas influências “ibero-mouras, negras e índias”.

Como nas outras iluminogravuras, como já foi mencionado, há

a predominância do tom de terra na obra, sendo essa a cor

representativa do solo agreste, pedregoso e rústico do Sertão. E o

que é mais importante: sobressaindo-se, no centro da prancha, está

a figura de uma mulher negra, sendo que sua cabeça é encimada por

428 SUASSUNA, Ariano. A Onça Castanha e a Ilha Brasil. p.13. 429 NOGUEIRA, Maria Aparecida Lopes. O cabreiro tresmalhado. p.205.

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um cocar de penas indígena. A leitura parece óbvia: representaria

dois dos elementos que constituiriam a base do povo brasileiro – o

negro e o indígena. Note que a mulher está usando um brinco em

forma de lua crescente na qual está “fundida” uma seta apontando

para cima. A lua crescente seria a representação da influência ibero-

moura que Suassuna aponta como um dos povos que entrariam na

fusão que resultaria o seu ideal de povo castanho, juntamente com o

indígena e o negro, já mencionados. Em relação à seta, ela é um

símbolo relacionado ao raio solar, elemento fecundante da natureza,

podendo também simbolizar o fogo e o elemento masculino; a seta

também é o símbolo de Marte e da masculinidade. Igualmente, na

mitologia suassuniana, muitas vezes a figura do Pai430 será

representada como o Sol do Mundo, como nos atesta os versos

abaixo, os dois tercetos finais do soneto “Fazenda Acahuan”:

Mas mataram meu Pai. Desde esse dia, eu me vi, como um Cego, sem meu Guia, que se foi para o Sol, transfigurado. Sua efígie me queima. Eu sou a Presa, Ele, a Brasa que impele ao Fogo, acessa, Espada de ouro em Pasto ensangüentado.

Podemos ainda ver a representação do Pai transfigurado em

Sol numa das iluminogravuras de Suassuna chamada “A Acahuan –

A Malhada da Onça” (Figura 12). Esta iluminogravura não consta

das que foram publicadas pelo Cadernos. No entanto, abaixo acha-se

uma reprodução encontrada na internet, porém com uma qualidade

não muito boa da imagem.

430 Segundo nos afirmam Adriana Victor e Juliana Lins, no livro Ariano Suassuna: um perfil biográfico: “Por causa de tumultos e disputas que acabaram deflagrando, no Brasil, a Revolução de 1930, seu pai [João Suassuna] foi assassinado com um tiro pelas costas. O crime aconteceu no Rio de Janeiro, quando Ariano tinha três anos”. In: VICTOR, Adriana; LINS, Juliana. Ariano Suassuna: um perfil biográfico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. p.15.

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Figura 11 – Iluminogravura: “O Campo”.

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Figura 12 – Iluminogravura “A Acahuan – A Malhada da Onça”. Detalhe para o espaço superior, ocupado pela figura de um cavaleiro, representando João Suassuna, o pai de Ariano. O lado esquerdo do cavaleiro, a imagem do Sol, transfiguração da imagem do pai. Também notar os detalhes para a chuva de sangue, represando a morte violenta sofrida pelo então Presidente da Paraíba no Rio de Janeiro, em 1933.

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A imagem do pai também é uma referência simbólica

importante dentro do contexto geral da obra suassuniana. Para

Newton Júnior, é fundamental a compreensão do que representou

para o menino Suassuna a morte precoce do pai, estando esse

evento ligado aquilo que viria a constituir a visão trágica sobre a

vida que passou a nortear os primeiros trabalhos (principalmente

no campo da poesia) do autor paraibano. Segundo Carlos Newton

Júnior: “[...] para aqueles que, embora não conheçam o Suassuna

poeta, conhecem o teatrólogo ou mesmo o prosador, há de parecer

no mínimo estranho o fato de falarmos em trágico em relação a um

autor que se destacou na literatura brasileira com trabalhos

pertencentes ao campo cômico”431. Contudo, mais adiante o mesmo

autor esclarece: “[m]as é preciso lembrar que Uma Mulher Vestida

de Sol, a primeira peça de Suassuna, é uma tragédia, diríamos até

que clássica, herdeira de toda uma tradição que vem dos gregos,

passando pelo Século de Ouro espanhol e pelas tragédias de

Shakespeare [...]”432.

Perdendo o Pai433 muito cedo, Suassuna sente um profundo

desejo de recuperar sua imagem e memória, para que ela não se

perca no crepúsculo do tempo. A importância do símbolo do pai está

para Paul Ricoeur no seu potencial de transcendência434. Dessa

forma, o “pai figura na simbologia menos como genitor igual à mãe

do que como aquele que dá as leis. Ele é fonte de instituição; como o

senhor e o céu, ele é uma imagem da transcendência ordenada,

sábia e justa [...]”435. Para Lacan, “É no Nome-do-Pai que se deve

reconhecer o suporte da função simbólica que desde o limiar dos

431 NEWTON JÚNIOR, Carlos. O pai, o exílio e o reino. p.149. 432 NEWTON JÚNIOR, Carlos. O pai, o exílio e o reino. p.149-150. 433 “Palavras como ‘Pai’, ‘Sertão’, ‘Cultura’, ‘Povo’ passam a serem grifadas por Ariano Suassuna obrigatoriamente com a inicial maiúscula em qualquer posição ou período em que apareçam, como uma forma de perpetuar, em sua literatura, a condição superior hierárquica que para elas deseja seu autor”. In: VENTURA, Leonardo Carneiro. Música dos espaços. p.69. 434 CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. p.678. 435 CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. p.678.

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tempos históricos identifica a sua pessoa com a imagem da lei”436.

Assim, simbolicamente o “pai atinge uma grandeza cultural nos

mitos sobre as origens; sua simbologia se confunde com a do céu e

trai o sentimento de uma ausência, de uma falta, de uma perda, de

um vazio, que somente o autor dos dias poderia preencher”437.

Oriundo de uma sociedade ainda essencialmente patriarcal, a

ausência do pai representa também a falta de um referencial para o

resto da vida. A morte precoce do pai e a sua ausência acabam por

inculcar no menino Ariano a constituição de uma figura quase

mítica. Se em situações normais a figura paterna representa para

um menino “um ideal em que ele próprio gostaria de se

transformar”438, para o menino Ariano, a morte trágica, violenta e

injusta do pai acaba por transfigurá-lo na imagem do herói (Rei, Sol

ou Cavaleiro, na simbologia suassuniana, conforme podemos ver na

iluminogravura reproduzida na Figura 12). “O pai é não somente o

ser que alguém quer possuir ou ter, mas também que a pessoa quer

vir a ser, e de quem quer ter o mesmo valor”439. É do pai que Ariano

herda, entre outras coisas, os gostos e hábitos que levará pelo resto

da vida. Segundo Carlos Newton Júnior:

Sertanejo de nascimento e de coração, entusiasta das manifestações artísticas populares, notadamente aquelas ligadas ao Romanceiro Popular Nordestino, tocador de viola e contador de histórias, João Suassuna jamais se deixou fascinar pela cidade grande, morando na capital meio a contragosto. Afastado do Sertão, sentia-se dominado por uma nostalgia profunda e inconsolável. Para apaziguá-la, tinha costume de promover, no Palácio do Governo, encontros de violeiros, que

436 LACAN, Jacques apud MARTTA, Margareth Kuhn. Para além do indiferenciado: questões contemporâneas. In: _______. Violência e angústia. Caxias, RS: Educs, 2004. p.65. 437 CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. p.678. 438 NASIO, Juan-David. O prazer de ler Freud. Trad. Lucy Magalhães; revisão técnica Marco Antonio Coutinho Jorge. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. p.66. 439 CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. p.678.

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se estendiam noite a dentro, em desafios e pelejas. Esses encontros não deixaram de chocar uma porção de gente440.

A figura do Pai está presente na obra suassuniana na “marca

da [sua] ausência”441, deixa rastros (nem sempre explícitos, como já

disse anteriormente). Segundo Carlos Newton Júnior, é a morte

paterna “a origem mais remota da marca trágica que se fará

presente nos primeiros textos de Ariano Suassuna no campo da

Poesia, do Teatro e do Romance”442. Conforme esse autor, somente

após a elaboração do Romance d’A Pedra do Reino (1971) é que

Suassuna começa a tratar de forma mais aberta da morte do pai em

seus trabalhos. Os anos de escritura do romance (1958-1970)

serviram, pois, como um período de amadurecimento sobre o

assunto443. Por mais doloroso que fosse esse processo, Ariano não

se eximiu de “agir como um homem que escava” ao “se aproximar

do próprio passado soterrado”. Assim, não temeu “voltar sempre ao

mesmo fato, espalhá-lo como se espalha a terra, revolvê-lo como se

revolve o solo. Pois ‘fatos’ nada são além de camadas que apenas à

exploração mais cuidadosa entregam aquilo que recompensa como

escavação”444. Não obstante, a perda precoce do pai demorará para

ser suavizada. Anos depois declara Ariano no seu discurso de posse

na Academia Brasileira de Letras, em 1990:

Foi de meu Pai, João Suassuna, que

herdei, entre outras coisas, o amor pelo Sertão, principalmente o da Paraíba, e a admiração por Euclydes da Cunha. Posso dizer que, como escritor, eu sou, de certa forma, aquele mesmo

440 NEWTON JÚNIOR, Carlos. O circo da onça malhada: iniciação à obra de Ariano Suassuna. Recife: Artelivro, 2000. p.13. 441 NEWTON JÚNIOR, Carlos. O pai, o exílio e o reino. p.165. 442 NEWTON JÚNIOR, Carlos. O circo da onça malhada. p.17. 443 NEWTON JÚNIOR, Carlos. O pasto iluminado ou A sagração do poeta brasileiro desconhecido. p.139. 444 BENJAMIN, Walter. Rua de mão única. 5.ed. São Paulo: Brasiliense, 2000. (Obras escolhidas, v.2). p.239.

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menino que, perdendo o Pai assassinado em 9 de outubro de 1930, passou o resto da vida tentando protestar contra sua morte através do que faço e do que escrevo, oferecendo-lhe esta precária compensação e, ao mesmo tempo, buscando recuperar sua imagem, através da lembrança, dos depoimentos dos outros, das palavras que o Pai deixou445.

Outro item que deve ser ressaltado, e que pode ser

visualizado em todas as iluminogravuras presentes no Cadernos de

Literatura, é o uso que Suassuna faz do chamado alfabeto sertanejo

ou alfabeto armorial (Figura 3), criado por ele a partir dos desenhos

encontrados nos ferros sertanejos de marcar bois, como já foi aqui

mencionado. Relembrando, para o autor paraibano os desenhos

representados por esses ferros, comuns na realidade rural

sertaneja, caracterizariam a existência de uma heráldica popular

brasileira. Heráldica que também estaria presente nos emblemas

dos times de futebol e nas bandeiras e estandartes desses mesmos

times, bem como das escolas de samba. Nas iluminogravuras,

podemos notar o uso desse alfabeto na caligrafia elaborada dos

títulos dos trabalhos, sempre em destaque no espaço pictórico.

Dessa forma, podemos verificar nas iluminogravuras a importância

da arte heráldica na elaboração dos trabalhos de Suassuna.

Conforme Ariano atestou, o próprio movimento por ele idealizado –

Armorial – tem seu nome inspirado nessa arte. Logicamente que,

através de uma interpretação toda pessoal do autor, em

consonância com o seu posicionamento artístico e ideológico. Assim,

podemos notar que as pranchas encontram-se divididas em

partições internas, tal um escudo ou brasão, atestando a

importância e o conhecimento de Suassuna da arte heráldica, como

será visto mais adiante.

445 SUASSUNA, Ariano. Discurso de posse na Academia Brasileira de Letras. In: ________. Almanaque armorial. Seleção, organização e prefácio de Carlos Newton Júnior. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008. p.237.

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Ainda em relação à prancha “O Campo”, algumas questões

devem ser assinaladas. Vemos, por exemplo, no seu canto superior

uma faixa de cor terra, a mesma cor que predomina na maior parte

da iluminogravura. Nessa faixa acham-se as representações de seis

luas crescentes, o cocar que já havíamos visto encimando a cabeça

da mulher, e uma figura ao centro, e outra no canto direito.

O cocar, como já vimos, simbolizaria o elemento indígena da

nossa cultura. Quanto às luas crescentes, duas leituras podem ser

feitas. Primeiro, esse símbolo pode representar a influência ibero-

moura na formação do povo brasileiro, conforme a atribui Suassuna.

Igualmente, na simbologia, a lua crescente é uma representação do

sagrado feminino, da fertilidade, do crescimento abundante e dos

poderes secretos da natureza. Essa também seria uma leitura

possível, já que as duas fileiras de luas crescentes, uma à direita e

outra a esquerda, acabam por chamar a atenção para a figura

central – a representação estilizada do símbolo de Vênus,

universalmente convencionado como o símbolo do gênero feminino.

Algo que chama ainda a atenção em relação a essa figura

central é sua possível origem rupestre. Essa foi uma das imagens

encontradas na Pedra do Ingá, sítio arqueológico localizado no

município de Ingá, na Paraíba. Como veremos adiante, Suassuna fará

uso de motivos recolhidos a partir dessas itaquatiaras (inscrições

rupestres) da Pedra do Ingá, principalmente no segundo álbum de

iluminogravuras – Sonetos de Albano Cervonegro.

Podemos encontrar também em “O Campo”, o que talvez se

constitua o elemento simbólico de maior importância no universo

suassuniano – a Morte. No canto inferior da prancha ela ocupa o

lugar central, ladeada pelo cocar indígena e outra figura rupestre.

Está ela representada pelo animal de maior importância na

mitologia suassuniana – a Onça.

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[165]

Figura 13 – Conjunto de insculturas modeladas da Pedra do Ingá. No canto inferior, quase ao centro da imagem, podemos ver a representação da figura usada por Ariano Suassuna na prancha “O Campo”. Fonte: Imagem disponível em <http://www.viafanzine.jor.br/fonseca>.

A Onça, que também é Castanha, torna-se um dos símbolos

emblemáticos do universo mítico-poético do autor – a Onça

Castanha “representa a própria mediadora entre o mundos branco,

negro e amarelo”446. Segundo o próprio Suassuna:

Na minha poesia, escolhi como símbolo do Povo brasileiro a Onça Castanha ou Parda, também chamada no Sertão de Suçuarana. Sendo a Suçuarana de cor castanha, para mim é uma descendente mestiça e completa da Onça Vermelha – na qual simbolizei os índios, da Onça Tigre, de cor negra – na qual figurei a grande Raça Negra – e da Onça Malhada – que sendo fulva, com malhas pretas, bem pode

446 DIDIER, Maria Thereza. Emblemas da sagração armorial. p.37.

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simbolizar os Portugueses e Espanhóis, tocados pelo nobre sangue semita – Judeu ou Árabe447.

Nas iluminogravuras reproduzidas no Cadernos de Literatura

Brasileira, a onça é presença em três, dos seis trabalhos do autor

paraibano. Esse animal também é presença constante na produção

poética suassuniana, sendo sua menção igualmente constante n’O

Romance da Pedra do Reino, seja através das visagens de Quaderna,

seja nos emblemas e bandeiras que aparecem nas xilogravuras ao

longo dessa obra (Figura 2). Conforme afirma Anna Paula Soares

Lemos: “Idelette Muzart, em prefácio a O Rei Degolado, também

destaca a importância da onça no romance de Suassuna e em sua

interpretação tal simbologia está ligada à do Leopardo e da Pantera

na heráldica medieval européia”448. Ainda de acordo com Lemos:

Diz-se que estes dois animais – Pantera e Leopardo – são ligados e que a transformação da pantera em leopardo, em linguagem heráldica, é o resultado da influência da Igreja por meio da cristalização do Graal. A pantera era um animal heráldico tradicional e significava animal do todo (panthér) – ela evocava o panteísmo e, pelas manchas de sua pelagem, simbolizava todos os astros do cosmos449.

Mais adiante Anna Paula esclarece que, segundo Idelette

Muzart, “a substituição da pantera pelo leopardo correspondia ao

método experimentado pela Igreja medieval que consistia em

batizar os emblemas pagãos, modificando assim o seu sentido”450.

447 SUASSUNA, Ariano apud NOGUEIRA, Maria Aparecida Lopes. O cabreiro tresmalhado. p.105. 448 LEMOS, Anna Paula Soares. Ariano Suassuna, o palhaço-professor e sua Pedra do Reino. p.97. 449 LEMOS, Anna Paula Soares. Ariano Suassuna, o palhaço-professor e sua Pedra do Reino. p.97. 450 LEMOS, Anna Paula Soares. Ariano Suassuna, o palhaço-professor e sua Pedra do Reino. p.97.

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Na visão da igreja cristã o leopardo significaria um “quase-leão”,

“um animal mal diferenciado, em plena evolução, no caminho da

graça, o leão cristão”451.

Suassuna, com base nessa afirmação, reconfigurará na sua

mitologia o animal pantera na onça sertaneja, por ver nessa o

mesmo “peso místico e cósmico”452 daquela, e por ser um animal

típico da fauna da região. Assim, conforme nos alerta Idelette

Muzart, para Suassuna:

No “catolicismo sertanejo” a Onça é a encarnação da divindade múltipla, é a herdeira direta do “animal do todo”. A simbólica astrológica e a dimensão cósmica e heráldica da vida e da morte se reúnem para a explicação armorial da criação do mundo e da morte453.

Segundo Maria Aparecida Lopes Nogueira, a onça é “o animal

mitológico mais importante” no mundo do sertão nordestino, pois

ele é “identificado com a morte violenta, que, no sertão, é chamada

Caetana”454. Nas palavras de Suassuna: como “divindade tapuia-

sertaneja, Caetana era bela, imortal e eternamente jovem, dotada

daquela beleza ao mesmo tempo cruel, terrificante e fascinadora

que é própria de sua hierarquia divina”455. É novamente Quaderna

quem descreve essa divindade, n’A Pedra do Reino:

[...] entrava na sala da Biblioteca uma moça esquisita, vestida de vermelho. O vestido, porém, era aberto nas costas, num amplo decote que mostrava um dorso felino, de Onça,

451 FONSECA, Idelette Muzart dos Santos apud LEMOS, Anna Paula Soares. Ariano Suassuna, o palhaço-professor e sua Pedra do Reino. p.97. 452 LEMOS, Anna Paula Soares. Ariano Suassuna, o palhaço-professor e sua Pedra do Reino. p.97. 453 FONSECA, Idelette Muzart dos Santos apud LEMOS, Anna Paula Soares. Ariano Suassuna, o palhaço-professor e sua Pedra do Reino. p.98. 454 NOGUEIRA, Maria Aparecida Lopes. O cabreiro tresmalhado. p.36. 455 SUASSUNA, Ariano apud MACHADO, Irley. As imagens da morte na epístola do adeus. p.190.

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e descobria a falda exterior dos seios, por baixo dos braços. Os pêlos de seus maravilhosos sovacos não ficavam só neles: num tufo estreito e reto, subiam a doce e branca falda dos peitos, dando-lhes uma marca estranha e selvagem. Em cada um dos ombros, pousava um gavião, um negro, outro vermelho, e uma Cobra-coral servia-lhe de colar. Ela me olhava com uma expressão fascinadora e cruel. [...] Eu, aterrado, indagava de mim mesmo que era ela. Mas, no fundo, já sabia: era a terrível Moça Caetana, a cruel Morte Sertaneja, que costuma sangrar seus assinalados, com suas unhas, longas e afiadas como garras456.

Ainda sobre a importância da onça no universo de Ariano

Suassuna, pude constatar que o autor a ela dedicou, inclusive, uma

das iluminogravuras do primeiro álbum (Sonetos com mote alheio).

Não tive acesso a essa prancha, pois ela não constava das

reproduções escolhidas para publicação pelo Cadernos de

Literatura. Contudo, é possível vê-la, reproduzida abaixo. A imagem

faz parte da dissertação de mestrado de Anna Paula Soares Leme,

Ariano Suassuna, o palhaço-professor e sua Pedra do Reino (UFRJ,

2007). O texto do soneto que compõe a iluminogravura está

transcrito ao lado, e lembra em muito a descrição que fez dela o

narrador Quaderna:

456 SUASSUNA, Ariano. O romance da pedra do reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta. p.305.

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A morte – A Moça Caetana (com tema de Deborah Brennand) Eu vi a Morte, a Moça Caetana, com o Manto negro, rubro e Amarelo. Vi o inocente olhar, puro e perverso, e os dentes de Coral da Desumana. Eu vi o Estrago, o bote, o ardor cruel, os peitos fascinantes e esquisitos. Na mão direita, a Cobra cascavel e, na esquerda, a Coral, rubi maldito. Na fronte, uma coroa e o Gavião. Nas espáduas, as Asas ofegantes, que, ruflando nas pedras do Sertão, pairavam sobre Urtigas causticantes, caules de prata, Espinhos estrelados e os cachos do meu Sangue iluminado.

Figura 14 – Iluminogravura “A Morte – A Moça Caetana”.

Encontrei em Maria Inês Batista Campos a referência que

Ariano faz à Deborah Brennand, no soneto acima. Segundo Campos,

Deborah Brennand seria uma poetisa pernambucana, que também

faz parte do Movimento Armorial. Ainda segundo nos relata

Campos, essa poetisa também tratou da transitoriedade da vida.

Dessa forma, Deborah Brennand, autora “de O punhal tingido ou O

livro de horas de D. Rosa de Aragão (1965), [...] é convocada como

interlocutora do autor”457, nesse soneto que tem a morte por tema.

Conforme Irley Machado:

Na mitologia sertaneja de Suassuna as representações animais são freqüentes e o animal constitui o objeto de uma assimilação simbólica. Os mitos em Suassuna não

457 CAMPOS, Maria Inês Batista. Iluminogravuras de Ariano Suassuna: cartografia com letra e pincel. p.130.

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representam uma fantasia irreal e anestésica, eles vêm carregados de uma semântica moral e religiosa. Tornam-se símbolos, mas não pertencem simplesmente a natureza lingüística da construção poética, o símbolo está inserido numa dimensão arquetípica e é produto do meio no qual nasceu458.

Logo, podemos notar que esse procedimento, como o fez

Suassuna, de reconfigurar a representação do leopardo, fazendo a

sua assimilação dentro do universo sertanejo por meio da onça, será

um ato recorrente na mitologia suassuniana. A simbologia dentro da

obra do autor sempre deve remeter ao Sertão e a uma realidade

sertaneja. Nas palavras do narrador Quaderna, d’A Pedra do Reino,

podemos ouvir a voz de Ariano:

[...] no meu Catolicismo, os bichos que servem de insígnia ao Divino são todos rigorosamente brasileiros e sertanejos. Por exemplo: na minha linguagem nunca entram leões ou águias, bichos estrangeiros, mas sim Onças e Galviões. Ora, além dessa fidelidade brasileira e sertaneja, sempre achei essa história de representar o Espírito Santo por uma pombinha meio inapropriado. Fique logo claro que o Espírito Santo não tem nada com isso: a culpa é de quem inventou! Essa história de “pombinha” não tem nada de Profecia-sertaneja, é idiotice desses Profetas estrangeiros! É por isso que, no meu Catolicismo-sertanjo, o Espírito Santo é um Gavião, bicho macho e sangrador, e não essa pombinha que sempre me pareceu meio sem graça459.

Outro ponto que deve ser ressaltado em relação às

iluminogravuras diz respeito aos princípios da pintura e da gravura 458 MACHADO, Irley. As imagens da morte na epístola do adeus. p.186. 459 SUASSUNA, Ariano. O romance da pedra do reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta. p.562.

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armoriais que são seguidos na confecção desses trabalhos. Assim,

como já vem sendo mencionado, o trabalho com as gravuras segue

especialmente as características da xilogravura popular nordestina,

em procedimento semelhante ao utilizado por Suassuna na

elaboração de outros trabalhos na área das artes plásticas, entre

eles, nas ilustrações d’O Romance da Pedra do Reino. Caracteriza-se,

essa gravura, pela “ausência de perspectiva e de profundidade, ou

perspectiva e profundidade apenas indicadas; composição simétrica

e em ‘forma fechada’; desenho tosco e forte; uso predominante de

cores puras; semelhança com os brasões, as bandeiras e os

estandartes dos nossos espetáculos populares; e assim por

diante”460. Vale lembra também que foi em Gilvan Samico que

Suassuna foi buscar a fundamentação do que consistiria a pintura

armorial, através da sua inspiração no romanceiro popular

nordestino e nas imagens das xilogravuras que ilustram esse

romanceiro.

Mas as iluminogravuras não se constituem somente de

gravuras xilográficas, elas aliam essas imagens a um texto,

geralmente um soneto. Trata-se, pois, de um texto verbo-visual. E

algumas considerações devem ser feitas em relação ao soneto que

compõe a iluminogravura “O Campo”, que se encontra transcrito

logo abaixo:

O Campo Tema do Barroco Brasileiro Um Sol-negro, de escuras. Encrespados, refletido nas Águas que matiza. Alvas pedras. Amena e fresca Brisa. Um fino Capitel transfigurado. Pardos Montes, no chão encostados. A Fonte. A crespa Relva, na divina. Colunas do frontal que o musgo frisa.

460 NEWTON JÚNIOR, Carlos. Uma autobiografia poética. In: SUASSUNA, Ariano. Iluminogravuras.

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O Vale que se fende aveludado. E o Pomar: seu odor, sua aspereza. Essa Romã, fendida e sumarenta, com o Topázio castanho, mal exposto. Os frutos odorantes. E a Beleza - esta Onça amarela que apascenta a maciez da Morte e de seu gosto

Pode-se notar uma convergência entre os símbolos

representados pelas gravuras e as ideias expressas pelo poema.

Logo, a relação texto-ilustração estabelecida nesse trabalho em

específico (“O Campo”) é mais direita do que, por exemplo, na

iluminogravura chamada de “Lápide”, que veremos a seguir. Porém,

antes de prosseguir com a análise textual do poema, deve-se

procurar entender a temática expressa pela iluminogravura

denominada “O Campo”.

Pelo exposto até aqui, é clara a importância da mulher nessa

iluminogravura. Ela não só ocupa o “centro” da prancha, como há

elementos ao longo de todo o espaço pictórico que a ela remetem. A

posição central da gravura representando a mulher é importante

para a compreensão da obra como um todo, visto que o centro

simboliza a ordem e a lei organizadora. Segundo uma das definições

do Dicionário Houaiss Eletrônico, o centro, por analogia,

representaria: “função, instituição, pessoa que é essencial

relativamente a determinada atividade ou interesse”. Então, o

elemento “essencial” representado pela iluminogravura, aquele que

ocupa seu centro, não seria outro – a Mulher.

Assim, ao longo do poema encontram-se outras referências

que remetem igualmente ao universo feminino, o que confirma sua

importância dentro desse trabalho. Como já visto, o elemento

feminino predomina numa série de símbolos distribuídos ao longo

do espaço pictórico. No texto eles também se sobressaem. A escolha

do léxico se faz pelo seu caráter simbólico, e mais, essas palavras

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são grafadas com iniciais maiúsculas, logo, é clara a intenção de

revalorizar esses símbolos, dando-lhes ênfase dentro do poema. Ao

descrever a paisagem do campo, o poeta se vale se referências que,

implicitamente, rementem ao corpo da mulher. “Pardos Montes” e

“Pomar”, fazem alusão aos seios femininos, sendo “pardo” lido

também como mais uma menção à miscigenação que caracterizaria

a constituição do povo brasileiro, ou povo castanho, no universo

suassuniano – a mulher representada na prancha é negra, ou

constituinte, como gosta de chamar Ariano, da raça castanha dos

povos da Rainha do Meio-Dia. “A Fonte”, “A crespa Relva”, “O Vale

que se fende aveludado”, são claras referências à genitália da

mulher. Encontra-se essa confirmação nos versos finais do primeiro

terceto: “Essa Romã, fendida e sumarenta,/ com o Topázio castanho

mal exposto.” – pois, a romã é a designação simbólica da fertilidade

feminina, sendo que segundo o Dicionário de símbolos: “Na Ásia, a

imagem da romã aberta serve à expressão dos desejos – quando não

designa expressamente a vulva”461. Então, o “Topázio” que se

oferece ao poeta pode ser entendido metaforicamente como uma

forma de recompensa, a preciosidade que consistiria a sua posse, e a

do corpo dessa mulher idealizada. Também são referências ao

feminino, encontradas nos versos do segundo terceto: “Beleza”,

“Onça amarela” e “Morte”. Como já foi visto, a onça possui várias

significações dentro da mitologia suassuniana, sendo uma delas a

“Morte”, que na mitologia sertaneja é uma mulher com traços

felinos.

Finalmente, conforme nos esclarece a definição do Dicionário

de símbolos, de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, o “campo” ou

“campos”, representaria(m) a “antítese dos infernos, os campos são

o símbolo do Paraíso, ao qual os justos têm acesso após a morte”462.

461 CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. p.787. 462 CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. p.172.

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Assim, segundo o próprio Suassuna esclarece463, a mulher

representaria a fonte sagrada de apaziguamento e reconciliação

ante o terror do tempo e da morte, que lhe estremecia o sangue. O

corpo feminino passa a ser, então, pressentido e sonhado como um

“campo” encantado no qual o medo do poeta se dissiparia.

Igualmente, essa iluminogravura, especificamente, pode ser

usada para entender a importância da arte heráldica464 em Ariano

Suassuna, e o uso que ele faz desse conhecimento na elaboração do

seu trabalho, como nos atesta a figura seguinte.

Figura 15 – A figura representa um escudo ou brasão, e uma das suas possíveis divisões ou repartições.

463 São palavras do próprio Suassuna, como introdução à recitação do poema “O campo”. Esse poema, bem como os outros quinze, que constituiriam a obra Vida-Nova Sertaneja, foram achados por mim na internet. 464 Reitero o já mencionado: o próprio nome do Movimento Armorial Ariano foi buscar na arte heráldica e na simbologia por ela representada, sendo que para Suassuna, no Brasil, essa arte é essencialmente popular, e ele a vê tanto nos ferros de marcar bois do sertão nordestino, como nos emblemas dos times de futebol ou nos estandartes das escolas de samba.

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Essa figura foi extraída do livro Heráldica: escritos heráldico-

genealógicos, de Luiz Marques Poliano, e representa uma das

possíveis divisões ou repartições internas de um escudo ou brasão.

Na referida obra, Poliano faz um inventário de um grande número

de formas e modelos de escudos e brasões, bem como todos os

elementos constitutivos dessa arte e sua simbologia ao longo dos

séculos. A figura em questão será importante para entender o

conhecimento heráldico de Suassuna na elaboração da

iluminogravura “O campo”, especificamente na distribuição dos

elementos que compõem essa prancha.

Segundo Poliano esclarece, a Figura 15, está dividida em nove

partições ou repartições, assinaladas pelas letras de A a I, sendo que

cada uma dessas partições tem sua ordem de importância dentro da

figura. Assim segundo o autor:

A, coração ou abismo; B, ponta ou meio do chefe; C, ponta do escudo; D, cantão destro do chefe; F [sic], cantão sinestro do chefe; F, flanco destro; G, flanco sinestro; H, cantão dentro da ponta; I, cantão sinestro da ponta. Por meio dessa divisão metódica chegaremos a compreender melhor a posição e o valor das peças ou figuras que compõem o escudo, facilitando a sua leitura465.

Então, se tomarmos a iluminogravura de Ariano como um

objeto estético transformado em brasão brasileiro466, podemos

fazer as seguintes considerações, a partir do esquema traçado por

Poliano.

No centro do escudo, ou coração (representado pela letra A)

localiza-se o espaço mais importante do emblema. Na

465 POLIANO, Luiz Marques. Heráldica. p.17. 466 Segundo Maria Inês Batista Campos: “Transformado em objeto estético, a iluminogravura surge como um brasão brasileiro, capaz de superar esteticamente a morte. Na construção do mundo sertanejo, as cores, ilustrações, símbolos pré-históricos e simetrias de cavalos se misturam e inauguram uma tradição cultural”466. In: CAMPOS, Maria Inês Batista. Iluminogravuras de Suassuna: cartografia com letra e pincel. p.134.

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iluminogravura de Suassuna esse espaço é ocupado pela figura da

mulher, sendo que, como já foi visto, o elemento feminino tem sua

referência espalhada ao longo de todo o espaço pictórico da

prancha, bem como no próprio texto do poema.

No espaço correspondente a letra B do escudo (ponta ou meio

do chefe), temos na iluminogravura o Símbolo de Vênus, e no espaço

C (ponta do escudo), a figura da Onça. Logo, no espaço central da

iluminogravura (sequência BAC), que podemos qualificar de o mais

nobre ou importante, encontramos a representação dos três

principais símbolos representando o elemento feminino dentro

desse espaço pictórico. Logo, a leitura anteriormente feita sobre

essa obra se confirma: é a Mulher o tema principal dessa

iluminogravura, é ela a fonte da vida e de apaziguamento para o

poeta atormentado frente ao mundo, ao tempo e à morte.

Os espaços de canto são ocupados respectivamente pelas

seguintes figuras: cocar (D); a imagem estilizada, possivelmente

rupestre de um corpo feminino (E)467; o correspondente rupestre

do corpo masculino (H)468, e novamente o cocar (I). Os espaços F e G

são ocupados por figuras que poderiam representar vasos de argila,

que também seria uma referência ao feminino, já que na simbologia

do vaso podemos encontrar tanto a representação do útero ou do

seio materno, bem como, numa interpretação mais livre, o próprio

sexo da mulher. Segundo o Dicionário de símbolos: “O vaso encerra,

sob diversas formas, o elixir da vida: é um reservatório de vida”.

Dessa forma, mais uma vez, há a referência da mulher como fonte da

vida, contrapondo-se, assim, a outra grande força feminina presente

na obra, a Morte (ou Onça).

467 Ainda em relação ao campo superior da prancha, no seu lado direito vemos o que poderia ser mais uma representação de origem rupestre, do corpo de uma mulher. Lembra a imagem, os traços estilizados do corpo feminino, sendo as posições dos seios e o sexo ocupados pelo Selo de Salomão ou Estrela de Davi, o que mais uma vez remeteria à origem ibero-moura de nossa formação. 468 Esta figura, ocupando na prancha o espaço diagonalmente oposto ao que representaria o feminino, pode ser lido como uma estilização do elemento masculino, seu oposto. Mais uma vez nota-se a importância do feminino no espaço pictórico, pois sua figura ocupa o espaço superior, enquanto o masculino localiza-se no espaço inferior da iluminogravura.

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Dessa forma, conforme o exposto acima, Suassuna

possivelmente organizou as gravuras dessa obra ao longo do espaço

pictórico de acordo com seu grau de importância dentro da

representação, conhecimento buscado a partir da arte heráldica,

como nos vez ver Poliano e a representação das partições internas

de um escudo ou brasão.

Agora, antes de partir para a análise da segunda

iluminogravura – “Lápide” –, ouçamos o que diz Newton Júnior:

Comparados os conjuntos de iluminogravuras dos dois álbuns, podemos perceber três diferenças básicas entre eles. Em primeiro lugar, o uso da cor é muito mais intenso no segundo álbum. Os espaços em branco que ocupam boa parte das pranchas do primeiro álbum estão quase ausentes no segundo. Por outro lado, percebe-se ainda que os motivos pesquisados por Suassuna na pré-história brasileira encontram-se muito mais presentes no segundo do que no primeiro. Finalmente, a relação texto-ilustração é muito mais direta no primeiro álbum, enquanto que no segundo predominam motivos do universo armorial do autor, sem uma preocupação em retratar cenas ou elementos descritos nos poemas469.

É justamente no segundo álbum de iluminogravuras,

chamado de Sonetos de Albano Cervonegro, que Newton Júnior situa

a prancha “Lápide” (Figura 16). Encontraremos também nesse

trabalho muitas das características apontadas na primeira obra.

Assim, o uso das imagens correspondem ao processo de reprodução

das gravuras xilográficas das capas de folhetos de cordel. No título –

“Lápide” – Suassuna faz uso, igualmente, do alfabeto sertanejo

criado pelo poeta a partir dos ferros de marcar gado do Sertão

nordestino, bem como no texto que vem logo abaixo do título –

“Com tema de Virgílio, o Latino, e Lino Pedra-Azul, o Sertanejo”.

469 NEWTON JÚNIOR, Carlos. O pai, o exílio e o reino. p.129.

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Nessa espécie de subtítulo do poema, podemos notar as referências

de Suassuna ao mundo erudito, representado pelo poeta latino

Virgílio, autor da Eneida, e do mundo popular, através de Lino

Pedra-Azul, cantador e repentista paraibano, portanto, conterrâneo

do autor do Auto da Compadecida. Nos dizeres, que funcionam como

uma espécie de subtítulo, notamos, pois, a representação da fusão

do erudito e do popular, atitude essa que desde o seu início

caracterizou as obras dos artistas armoriais.

Segue abaixo o componente textual da iluminogravura em

questão:

Lápide Com tema de Virgílio, o Latino e de Lino Pedra-Azul, o Sertanejo Quando eu morrer, não soltem meu Cavalo nas pedras do meu Pasto-incendiado: fustiguem-lhe seu Dorso alanceado, com a Espora de ouro, até matá-lo. Um dos meus Filhos deve cavalgá-lo, numa Sela de couro esverdeado, que arraste, pelo Chão pedroso e pardo, chapas de Cobre, sinos e Badalos. Assim, com o Raio e o Cobre-percutido, tropel de Cascos, sangue do Castanho, talvez se finja o Som de ouro-fundido, que, em vão – Sangue insensato e vagabundo – tentei forjar, no meu Cantar-estranho, à tez da minha Fera e ao sol do Mundo.

Como o nome do poema que originou a iluminogravura

indica, o texto refere-se a uma espécie de epitáfio do autor. Segundo

o Dicionário Eletrônico Houaiss, literariamente considerado, o

epitáfio é um “tipo de poesia, nem sempre de inscrição lapidar, que

encerra um lamento pela morte de outrem”. Assim, esse poema do

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[179]

autor paraibano é uma espécie de exortação aos seus descendentes,

e de como eles devem proceder após a sua morte.

O poeta é representado por dois animais também

emblemáticos na mitologia suassuniana – o Cervo e o Cavalo (este

na imagem é dotado de asas). Essas duas figuras de animais, que em

suas feições seguem as convenções da xilogravura popular, e que

lembram igualmente uma representação rupestre, ocupam a maior

parte do espaço na prancha. Vale ressaltar também o uso que

Suassuna faz aqui do espaço, distribuindo os elementos tal qual um

escudo heráldico. Aqui, contudo, no centro da obra (coração)

predominam duas imagens ao invés de uma, como notamos na

iluminogravura “O Campo”.

O Cervo, como já foi visto, entraria na composição do

pseudônimo Albano Cervonegro, usado por Ariano no segundo

álbum das iluminogravuras. Como Newton Júnior nos fez saber, o

nome suassuna, adotada pelo avô de Ariano como sobrenome, tem

origem tupi, e significada exatamente cervo negro. Logo, o poema

em questão o cervo é a representação do próprio Ariano Suassuna, é

também uma alusão ao povo indígena, um dos elementos

constituinte da nossa formação, conforme a visão castanha

suassuniana. O Cervo também é um animal heráldico por

excelência. O Cervo no contexto do poema pode indicar igualmente

a ligação entre a vida e a morte, pois nas cosmologias dos indígenas

das Américas, esse animal é visto como um elo com a árvore da

vida470. Nesse sentido, o cervo é também “uma imagem arcaica da

renovação cíclica”471. Seus correspondentes podem ser também,

para as comunidades ameríndias, o alce e o gamo.

470 Segundo o Dicionário de Símbolos, “às vezes, na arte indiana, a árvore é representada a sair dos chifres bifurcados desse animal”. In: CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. p.223. 471 CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. p.223.

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[180]

Figura 16 – Iluminogravura: “Lápide”

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[181]

Simbolicamente o Cavalo tem duas leituras possíveis.

Segundo Nadia Julien: “Símbolo da vida (solar), o cavalo é também

uma figura ctoniana, imagem ou encarnação da morte em

numerosos mitos [...]”472. O Dicionário de símbolos de Chevalier &

Gheerbrant também confirma essa interpretação: “Filho da noite e

do mistério, esse cavalo arquetípico é um portador de morte e de

vida a um só tempo [...]”473. No poema em questão isso fica claro, já

que o poeta alude no texto à sua própria morte, ideia reforçada já no

título do poema. Porém, o Cavalo é, igualmente, um animal de

grande importância para o povo sertanejo. Simbolicamente ele “é

montaria, veículo, nave, e seu destino, portanto, é inseparável do

destino do homem”474. Muitos já interpretaram essa ligação

homem/animal na figura do centauro. Conforme Silviano Santiago,

“Suassuna justapõe seu corpo ao do cavalo, criando esta simbiose

mitológica entre homem e animal que se encontra bem expressa

pelos seus predecessores nordestinos através da imagem do

centauro, que tão bem serviu para fotografar a figura do senhor de

engenho (por exemplo, em José Lins do Rego)”475.

Podemos ver a importância do cavalo na vida do homem

sertanejo através do que nos relata Virgílio Maia, em Rudes brasões.

Segundo esse autor, o cavalo sempre é poupado quando da

marcação dos animais através do picotamento de suas orelhas –

sendo esta igualmente uma forma de marcação utilizada pelos

criadores de animais do sertão. Segundo Maia:

No Brasil, usa-se, hoje em dia, do Ceará ao Rio Grande do Sul, assinar tão-somente as chamadas miunças, ovelhas, cabras, e, em alguns casos, porcos. Aqui, mais para trás, o gado vacum era também marcado na orelha.

472 JULIEN, Nadia. Dicionário dos símbolos. p.91 473 CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. p.203. 474 CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. p.203. 475 SANTIAGO, Silviano. Comentário. In: SUASSUNA, Ariano. Seleta em prosa e verso. p.187-188 [nota].

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Ferrava-se a rês e, concomitantemente, picotava-se, com uma quicé bem amoladinha, os sinais dos donos nas orelhas. Assim, se uma vaca parida havia de ser solta e a cria, por motivos óbvios, ainda não agüentaria ser ferrada, era, no entanto, assinalada. E deste modo, ligava-se, pelos sinais, aquela cria àquela vaca, que por sua vez estava ferrada com a marca do dono476.

Contudo, o cavalo não compartilhava desse destino dos

outros animais, pois segundo assegura Maia:

O cavalo está, via de regra, livre de ter as orelhas picotadas, certamente por estar mais perto do homem, tendo, às vezes, até o direito de saborear um torrão de açúcar à mão do dono. Sua beleza de cavalo ou de égua, sua força, o trote macio, o galope veloz, são motivos de envaidecimento do proprietário, que não quer, pois, desenfeiar o seu perfil eqüino477.

Para Newton Júnior: “o cavalo alado é aquele cuja morte deve

acompanhar a morte do dono, lembrando a forte ligação entre o

sertanejo e seu cavalo”478. Os primeiros versos do poema já aludem

a essa questão:

Quando eu morrer, não soltem meu Cavalo nas pedras do meu Pasto-incendiado: fustiguem-lhe seu Dorso alanceado, com a Espora de ouro, até matá-lo.

Até aqui, podemos ver que a relação entre texto-imagem

ainda prevalece, sendo as gravuras dos animais a representação do

descrito no poema, senão explicitamente, pelo menos

simbolicamente, como o caso do cervo.

476 MAIA, Virgílio. Rudes brasões. p.48. 477 MAIA, Virgílio. Rudes brasões. p.48. 478 NEWTON JÚNIOR, Carlos. O pai, o exílio e o reino. p.138.

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[183]

Vale ressaltar ainda a existência, no interior das asas do

cavalo alado, de cinco flores-de-lis. A flor-de-lis é um dos elementos

mais populares das brasonarias. Aqui parecem meio deslocadas, já

que sua representação original geralmente é associada à monarquia

francesa. Poderia ser uma forma que Ariano encontrou de atribuir

um estatuto nobre ao cavalo, por ele os possuir gravados em suas

asas. Asas que também podem ter um remetimento teológico, pois o

“alçar vôo aplica-se universalmente à alma e sua aspiração ao

estado supra-individual”. Logo há o amálgama entre o cavaleiro e

seu cavalo, sendo que este deve acompanhá-lo até na morte. Poder-

se-ia estabelecer uma associação metafórica com esse movimento

para cima e a imagem da flor-de-lis, pois, como nos mostra a figura,

ela sempre aponta para cima.

Ao longo do poema encontram-se, igualmente, referências ao

cavalo através da escolha de um léxico que remete simbolicamente

a esse animal. Lembremos também que essas palavras são grafadas

com iniciais maiúsculas, o que valorizaria e daria ênfase a esses

símbolos verbais. São vocábulos que nos reportam ao universo

sertanejo de Ariano Suassuna. Assim: “Dorso”, “Espora”, “Sela”,

“tropel de Cascos” referem-se ao animal. O sertão é lembrado “pelo

Chão pedregoso e pardo”. O “sangue do Castanho”, referência ao

poeta/cavalo (centauro), sendo também o castanho a representação

do povo brasileiro, resultado da fusão das raças ibero-mouras,

negras e indígenas.

Outro dado importante a ressaltar, e que Newton Júnior já

tinha chamado à atenção, é o uso que Ariano faz, principalmente no

álbum Sonetos de Albano Cervonegro (do qual consta a prancha

“Lápide”) de motivos da pré-história brasileira. Essas imagens

encontram-se distribuídas em duas faixas, uma que encima a

iluminogravura, e outra situada em baixo, numa espécie de rodapé.

Também no centro da prancha podem-se ver outras duas imagens

rupestres, dividindo-a em dois campos simétricos, tendo o cavalo de

um lado e o cervo de outro. Muitas dessas imagens foram inspiradas

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por Suassuna a partir das incrustações e desenhos rupestres ou

itaquatiaras, estranhas mensagens petrogríficas, encontradas na

Pedra do Ingá, monumento arqueológico localizado na Paraíba.

Ainda segundo nos informa Newton Júnior, Suassuna “já

demonstrou possuir uma admiração especial pelo desenho da

esquerda, por lembrar a antiga forma do candelabro judaico”. E,

conforme fez com outros símbolos, Ariano acaba reconfiguando-o

para fazer parte do seu universo mítico-poético. Em outros

trabalhos como pintor e gravador, Ariano já reutilizou essa imagem,

contudo, agora batizada de candelabro sertanejo, sendo mais um dos

símbolos da influência ibero-moura em nossa cultura479.

Outro fato ressaltado por Newton Júnior que não devemos

esquecer: a forma como Suassuna tratou a questão da cor nesta

obra. Diferente da primeira iluminogravura analisada, nessa não há

o predomínio quase total de um tom terroso, vermelho-

amarronzado. Ele ainda está presente, contudo acaba dando espaço

para outras cores, como o azul, o amarelo e o verde.

Outrossim, segundo o próprio Suassuna esclarece, esse

soneto nasceu depois de uma leitura do poeta Virgílio e de versos do

cantador Lino Pedra-Azul. Conforme atesta Ariano: “Sempre que

leio um poeta que me toca, aparece um verso que se liga a minha

vida, ao Sertão, ao sangue de meu País, à pedra do meu destino na

terra”. O soneto então é fruto da influência desses dois mestres, “um

egresso da tradição mediterrânea, outro das Caatingas e carrascais

do Sertão onde morei”480. O popular e o erudito, como já

mencionado, que se fundem inegavelmente em toda a obra do autor

paraibano.

479 NEWTON JÚNIOR, Carlos. O pai, o exílio e o reino. p.138. 480 NEWTON JÚNIOR, Carlos. O pai, o exílio e o reino. p.137. [nota de rodapé]

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Saindo do território

O inconsciente permanece agarrado em fixações arcaicas apenas enquanto nenhum

engajamento o faz projetar-se para o futuro.

FÉLIX GUATTARI

É Newton Júnior que afirma que a obra suassuniana “é como

uma grande Catedral barroca, onde o menor detalhe integra-se de

tal forma ao conjunto que se torna fundamental para a existência do

todo”481. Por isso, a necessidade de se conhecer a obra de Suassuna

como um todo para tentar apreender todo o rico simbolismo que ela

comporta. Simbolismo expresso através da poesia, do teatro, do

romance, do ensaio, da pintura, da escultura, da tapeçaria, da

gravura, das iluminogravuras e estilogravuras... São tantas as facetas

desse artista múltiplo, como são múltiplas também as suas

contradições.

Mesmo contra todas as tendências e discursos em contrário,

Ariano Suassuna permanece firme em suas convicções de defensor

de uma cultura que ele diz autêntica, ameaçada cada vez mais pelas

influências descaracterizantes externas. Suassuna sempre produziu

481 NEWTON JÚNIOR, Carlos. O pai, o exílio e o reino. p.142.

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sob o signo da resistência. Na sua representação, a cultura popular

seria a expressão da tradição, sendo essa uma fonte de resistência à

desagregação capitalista/moderna. E embora seja considerado por

muitos como o maior autor brasileiro vivo, sua ideologia e seus

posicionamentos em relação à arte, cultura e política, não

encontram unanimidade, nem mesmo por parte dos seus

defensores. Para muitos, o autor paraibano seria o representante de

um passado já superado pela modernidade, mas que se mantém

aferrado à uma ilusão de nação que já não pode mais ser concebida.

Contudo, Suassuna não se permite qualificar como um

“regionalista estreito”. Aqueles que se posicionam a favor do autor

acreditam que, buscando seus temas na arte e na cultura popular,

Ariano procura transcender ao mero retratar do pitoresco e das

aparências superficiais de uma determinada região. É o armorial

Francisco Brennand quem nos diz:

Devemos desenvolver uma consciência de valores, para que saibamos distinguir e compreender a importância dos motivos nacionais, sem nos prendermos a elementos puramente folclóricos de nosso contexto geopolítico ou aos estilos e formas popularizados, porque um povo só impõe sua marca cultural a outros povos quando sabe dar aos seus núcleos culturais de origem popular uma dimensão intelectual universalizante482.

Já no ensaio “O decifrador de brasilidades”, Idelette Muzart

Fonseca dos Santos escreve: “A relação com a cultura oral e popular

nordestina, em vez de limitar a obra de Suassuna a um regionalismo

ou nacionalismo estreito, incentiva a uma viagem dentro das

culturas brasileiras e universais [...]”. Para essa autora, o

nacionalismo de Suassuna “apresenta-se então como uma busca da

diferença, da multiplicidade cultural, e jamais como exaltação

482 BRENNAND, Francisco. Cultura brasileira: historicidade e mito, p.86.

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[187]

unanimista e nostálgica”483. Neste ponto reside, para Maria

Aparecida Lopes Nogueira, a grande diferença de Ariano Suassuna

sobre seus antecessores, a

[...] dialógica vida e idéias revela um Suassuna universal, que se põe questões existenciais comuns a todos o homens de todos os tempos e lugares, e favorece a unidualidade que enfoca a diferença num primeiro instante, mas esforçando-se em ultrapassá-la, para amplificar o olhar na direção de territórios mais amplos484.

Dessa forma, Ariano Suassuna tornou-se o homem do Sertão

nordestino, aquele que tem suas raízes fincadas nessa terra, sendo o

Sertão o “símbolo primário” da sua estética armorial, em

contraposição ao massapê freyriano. É desse mundo que ele lança

seu discurso de resistência: “Minha visão é essa: uma obra terá

tanto mais interesse quanto mais ela revelar os problemas do

homem, através dos problemas locais”485, e complementa o autor,

“cada país tem que contribuir com sua nota particular, singular,

diferente”486.

Contudo, como já afirmei, o pensamento de Suassuna não

encontra unanimidade, nem mesmo em relação aos que lhe são mais

próximos. Alguns dos posicionamentos do autor paraibano geram

críticas por sua radicalidade, valendo-lhe os rótulos de arcaico e

conservador. Essas críticas afirmam que o escritor tenta, de alguma

maneira “esconder a ‘verdadeira’ realidade do povo brasileiro”487.

Segundo Carlos Alberto Dória,

483 SANTOS, Idelette Muzart Fonseca dos. O decifrador de brasilidades. p.97. 484 NOGUEIRA, Maria Aparecida Lopes. O cabreiro tresmalhado, p.17. 485 INSTITUTO MOREIRA SALLES. Ao sol da prosa brasiliana [entrevista]. p.37. 486 INSTITUTO MOREIRA SALLES. Ao sol da prosa brasiliana [entrevista]. p.36. 487 DIDIER, Maria Thereza. Emblemas da sagração armorial. p.58.

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[...] o armorial não passa de uma tentativa de, eruditamente, emprestar à cultura popular nordestina uma suposta dignidade e nobreza que seus mentores só conseguem identificar na Idade Média européia. As elites locais sabem muito bem que não possuem um passado tão glorioso e que jamais produziram um Carlos Magno. É preciso inventá-lo trabalhando sobre o imaginário popular de modo a frisar seus elos e ligações passadas com a cultura européia, isto é, o lado cultural da dominação colonial diluídos pelos séculos nesta coisa amorfa que é o folclore 488.

Dessa forma, como venho mencionado ao longo desse ensaio,

Ariano Suassuna erige ao mesmo tempo um território mítico-

poético, existencial-afetivo e de resistência representado pelo

fechamento estético de um espaço geográfico – o Sertão nordestino.

Acredita, assim, o poeta paraibano, que conseguirá manter as forças

do caos no exterior, protegendo sua interioridade germinativa,

cerne de sua paisagem discursiva da formação brasileira. Reitero,

entretanto, que os meios não são isolados, e não importa até que

ponto vá o agenciamento de formas e forças de resistência

empreendidos por Ariano Suassuna, seu território sempre estará

aberto ao caos e sendo ameaçado de esgotamento ou de intrusão489.

Podemos pensar, a partir de Deleuze, que um indivíduo (e

porque não, uma cultura), “é antes de mais nada uma essência

singular, isto é, um grau de potência. A essa essência corresponde

uma relação característica; a esse grau de potência corresponde

certo poder de ser afetado”490. Nesse sentido, deve-se propor uma

abertura para a diversidade na forma de se pensar a questão

identitária atualmente, levando em conta que a sociedade e as

488 DÓRIA, Carlos Alberto apud DIDIER, Maria Thereza. Emblemas da sagração armorial. p.58. 489 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: vol. 4. p.119. 490 DELEUZE, Gilles. Espinosa: filosofia prática. Trad. Daniel Lins e Fabien Pascal Lins. Revisão Técnica. Eduardo Diatahy Bezerra de Menezes. São Paulo: Escuta, 2002. p.33.

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culturas não funcionam na lógica binária (livro-raiz) que estamos

acostumados a ver, mas se constituem num palco de permanente

tensão entre as diferentes forças que as compõem. Assim,

diferentemente do que pensa Ariano Suassuna,

[a]s culturas vivas são receptivas às influências externas. Num certo sentido, todas as culturas foram culturas de contato; mas o que elas fazem dessas influências é que é interessante491.

A postura ideológica de Ariano Suassuna ao falar de uma

“nação” e um “povo” como sujeitos imanentes, que teriam na cultura

popular seu estrato “autêntico”, nega qualquer forma de negociação

e diálogo com a diversidade cultural que existe dentro do próprio

país, resultando na tentativa de “ofuscar os conflitos e a

heterogeneidade da população, que faz com que a nação esteja

dividida no interior dela mesma”492. Trata-se de uma posição

extremamente frágil nos tempos atuais a defesa desse tipo de

ideologia, pois é “inviável continuar a afirmar as culturas populares

como imunes ao processo histórico e ao intricado mapa das trocas

culturais”493.

Assim, do meio do discurso caótico da modernidade surge

essa figura quixotesca representada por Ariano Suassuna. Radical

em muitos pontos, sim. Contestado em sua posição saudosista em

relação ao passado e a tradição, com certeza. Contudo, não deixa, o

autor paraibano, de ser uma figura emblemática que empunha,

quase solitário, um escudo (armorial, com certeza) numa luta vã,

contra forças maiores que ele. Contudo, ideologias à parte, não se

pode deixar de reconhecer a extraordinária riqueza da produção

artística de Suassuna. Ele é, certamente, o maior autor vivo do nosso

país. É também o último grande representante dessa máquina

491 AUGÉ, Marc. A guerra dos sonhos. p.25. 492 MARQUES, Roberta Ramos. Deslocamentos armoriais. p.91. 493 MARQUES, Roberta Ramos. Deslocamentos armoriais. p.26.

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chamada Nordeste, que algumas gerações de pensadores,

intelectuais e artistas incutiram no imaginário do Brasil. Terra ao

mesmo tempo cheia de contrates naturais e sociais, que entretanto

nos legou nomes como Ariano Suassuna, Gilberto Freyre, Osman

Lins, Augusto dos Anjos e João Cabral de Melo Neto, só para citar

alguns.

O próprio Ariano já reconheceu que sua batalha é inglória.

Mas é a única forma que ele encontrou de resistir. Lembremos

Bauman, que escreve: a “identidade é uma luta simultânea contra a

dissolução e a fragmentação; uma intenção de devorar e ao mesmo

tempo uma recusa resoluta a ser devorado...”494. À sua maneira,

Ariano Suassuna encontrou uma forma de resistência à dissolução e

à fragmentação que o nosso tempo impõe, pois, ele é um sertanejo,

e, como já se afirmou, todo “sertanejo é, antes de tudo, um forte”495.

E o objetivo está na luta, não na vitória.

494 BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. p.84. 495 CUNHA, Euclides. Os Sertões: campanha de Canudos. Introdução de Nelson Werneck Sodré. 27.ed. Brasília: Editora da UnB, 1963. p.94.

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