território e política na pólis - corina moreira

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1 Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais/Puc Minas Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais: Doutorado Disciplina: Espaço e Sociedade Módulo “Política” – 1º semestre/2015 Prof. Carlos Aurélio Pimenta de Faria Aluna: Corina Maria Rodrigues Moreira Território e política na polis: crer, participar, celebrar Pensando em como espaço e território condicionam o e são condicionados pelo exercício da política, um dos locus de análise que pode nos proporcionar interessantes reflexões a esse respeito refere-se ao “mundo da polis, pensado aqui como o universo da prática democrática do período clássico grego. Levando em consideração o quão amplo esse universo se apresenta para nós, ocidentais que nos afirmamos herdeiros da tradição que se constrói a partir dessa experiência histórica herdeiros que, inclusive, produzimos essa própria tradição (TIERNO, 2012) , propomos pensar sobre “o peso da variável espaço/território no exercício da política na polis do período clássico” tomando por referência, como uma bússola a orientar essa breve reflexão, os eixos do território, do sagrado e da participação. Como se conforma o sentido de pertencimento e de identidade territorial e como ele se articula ao exercício da participação política na polis? Em que medida o sentimento do sagrado informa a prática cotidiana da participação na vida em comum da cidade? É possível dizer que a dinâmica pertencer/celebrar/participar indica as condições de possibilidade da experiência democrática grega? É certo que essas questões são por demais complexas para o espaço exíguo deste ensaio, mas tentaremos, aqui, ao menos tangenciá-las e identificar algumas de suas linhas de força, no sentido de pensar em que medida as relações entre território e prática política entre os gregos em especial entre os atenienses nos possibilitam refletir sobre um modo de fazer político chamado democracia, por eles inventado e que hoje, quase 2.500 anos depois, continua alimentando pensamento e ação política, como prática, como problema e como desejo. Um primeiro indício do lugar que o território ocupa na prática política na polis diz respeito à questão do seu tamanho, e nos é dado por Finley (1988) quando destaca “o quão diminuta era a escala” que a caracterizava em termos espaciais e também populacionais e como esta marca coloca-se como fundamental para a consecução do princípio do autogoverno, segundo ele um dos eixos estruturantes da polis um estado que se governava a si mesmo”. A polis, no entanto, não é vista apenas como um local,

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Trabalho apresentado na disciplina Espaço e Sociedade

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Page 1: Território e Política Na Pólis - Corina Moreira

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Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais/Puc Minas

Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais: Doutorado

Disciplina: Espaço e Sociedade – Módulo “Política” – 1º semestre/2015 Prof. Carlos Aurélio Pimenta de Faria

Aluna: Corina Maria Rodrigues Moreira

Território e política na polis: crer, participar, celebrar

Pensando em como espaço e território condicionam o e são condicionados pelo

exercício da política, um dos locus de análise que pode nos proporcionar interessantes

reflexões a esse respeito refere-se ao “mundo da polis”, pensado aqui como o universo da

prática democrática do período clássico grego. Levando em consideração o quão amplo

esse universo se apresenta para nós, ocidentais que nos afirmamos herdeiros da tradição

que se constrói a partir dessa experiência histórica – herdeiros que, inclusive, produzimos

essa própria tradição (TIERNO, 2012) –, propomos pensar sobre “o peso da variável

espaço/território no exercício da política na polis do período clássico” tomando por

referência, como uma bússola a orientar essa breve reflexão, os eixos do território, do

sagrado e da participação.

Como se conforma o sentido de pertencimento e de identidade territorial e como

ele se articula ao exercício da participação política na polis? Em que medida o sentimento

do sagrado informa a prática cotidiana da participação na vida em comum da cidade? É

possível dizer que a dinâmica pertencer/celebrar/participar indica as condições de

possibilidade da experiência democrática grega? É certo que essas questões são por

demais complexas para o espaço exíguo deste ensaio, mas tentaremos, aqui, ao menos

tangenciá-las e identificar algumas de suas linhas de força, no sentido de pensar em que

medida as relações entre território e prática política entre os gregos – em especial entre

os atenienses – nos possibilitam refletir sobre um modo de fazer político chamado

democracia, por eles inventado e que hoje, quase 2.500 anos depois, continua alimentando

pensamento e ação política, como prática, como problema e como desejo.

Um primeiro indício do lugar que o território ocupa na prática política na polis diz

respeito à questão do seu tamanho, e nos é dado por Finley (1988) quando destaca “o

quão diminuta era a escala” que a caracterizava em termos espaciais – e também

populacionais – e como esta marca coloca-se como fundamental para a consecução do

princípio do autogoverno, segundo ele um dos eixos estruturantes da polis – “um estado

que se governava a si mesmo”. A polis, no entanto, não é vista apenas como um local,

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um território definido, ainda que ocupe um: “eram as pessoas atuando concertadamente”

para “tratar de problemas face a face”; “era uma comunidade exclusiva” na qual “o debate

decorria no interior de um pequeno círculo restrito dentro da população total” (FINLEY,

1988, p. 1-2)1 – mais uma vez o tema do tamanho surgindo, agora não vinculado

unicamente ao aspecto territorial e demográfico, mas em suas dinâmicas sociais,

destacando-se que esse “pequeno círculo restrito dentro da população total” se refere aos

homens adultos nascidos em Atenas, os únicos considerados cidadãos. Ao que parece a

“escala diminuta” da polis diz respeito, portanto, a uma intrincada trama em que território,

interação e pertencimento social dialogam na conformação de práticas políticas próprias

que, num determinado tempo e espaço – a Grécia dos séculos IV e V a.C. – configuram

a chamada democracia clássica, da qual Atenas se coloca como exemplar referencial.

Um aspecto que pode nos ajudar a desenredar parte dessa trama diz respeito à

indistinção entre Estado e sociedade civil no mundo da polis – aliás, seria até anacrônico

falar em indistinção, uma vez que não podem ser indistintas duas coisas que não existem:

como nos informa Tierno, “as póleis, as cidades gregas da antiguidade, não contavam

com os dois traços definidores da política moderna: o duplo caráter estatal e societal do

agrupamento humano” (TIERNO, 2012, p. 25), mantendo-se os estreitos laços entre vida

política e vida doméstica, o que implicava também íntima relação com o universo

religioso. A esse respeito, vale recorrer a um clássico:

A palavra pátria entre os antigos significa a terra dos pais, terra patria. A pátria

de cada homem era a porção do solo que sua religião doméstica ou nacional

havia santificado; a terra onde estavam depositados os ossos dos antepassados,

a terra ocupada por suas almas. A pequena pátria era o círculo da família, com seu túmulo e seu lar. A grande pátria era a cidade, com seu pritaneu e seus

heróis, com seu recinto sagrado e seu território marcado pela religião. “Terra

sagrada da pátria” – diziam os gregos. Não era essa uma expressão vazia.

Aquela terra era verdadeiramente sagrada para o homem, porque era habitada

por seus deuses. Estado, cidade, pátria, essas palavras não eram uma abstração,

como entre os modernos; elas representavam realmente todo um conjunto de

divindades locais, com um culto cotidiano, e crenças que tinham grande poder

sobre as almas.

Desse modo é que se explica o patriotismo dos antigos, sentimento enérgico

que era para eles a virtude suprema, e para a qual tendiam todas as demais.

Tudo o que o homem podia ter de mais caro confundia-se com a pátria. Nela

encontrava seu bem, sua segurança, seu direito, sua fé, seu deus. Perdendo-a, perdia tudo. Era quase impossível que o interesse privado estivesse em

desacordo com o interesse público. (COULANGES, 2006, p. 107-108).2

1 O texto de Finley foi capturado na Rede Mundial de Computadores, a paginação não correspondendo, portanto, ao original publicado em livro pela Edições 70, mas sim ao arquivo em Word. 2 A mesma situação do texto de Finley se repete para o texto de Coulanges, também a paginação correspondendo ao arquivo em Word.

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Ainda que um pouco longa, esta citação nos possibilita ter a dimensão de como,

no mundo antigo, o sentido de pertencimento ao território, à terra patria, se encontrava

imbuído da dimensão do sagrado, o que pode ser tomado como um aspecto significativo

para compreendermos, junto às dinâmicas sociais e econômicas que caracterizam aquele

dado momento histórico (HELD, 1987; FINLEY, 1988), a conformação de uma prática

política própria, na qual a participação está imersa nesse sentido de pertencimento e em

um complexo vínculo entre o público e o privado, o político e o doméstico, o cívico e o

sagrado. Como afirma Tierno:

[...] Tratava-se, então, de um espaço de penetração mútua entre as esferas

política e não política (doméstica), que possibilitava o entrelaçamento das

normas consuetudinárias e divinas, dos costumes herdados e os cultos

ancestrais, aos que se lhes impunham as práticas políticas reguladas pelas

convenções legais; em suma, um espaço no qual, no transcurso da história, os

grupos pugnaram pelo acesso identitário à cidadania, ainda perpassados por

aquelas relações primárias de intimidade, vizinhança e amizade arraigadas em um modo de convivência inédito, em escala pequena, concentrada e, por que

não, civilizada. Tal a vida em comum da cidade política. (TIERNO, 2012, p.

26, grifo meu)

Essa prática política advinda do forte sentido de pertencimento ao território – à

cidade, enfim – funda-se em um também forte comprometimento com a participação na

vida em comum que constitui a polis, onde se exerce, “coletiva, mas diretamente, várias

partes da soberania inteira” (CONSTANT, 1985, p. 1).3 É assim que todo cidadão

participa dos trabalhos de governação da cidade, tanto com sua presença na Assembleia,

soberana – na qual pode intervir, propor e votar sobre os assuntos mais diversos como

impostos, guerra e paz, obras e contas públicas, dentre outros – quanto tomando parte do

Conselho (responsável pela preparação das reuniões da Assembleia) ou dos Tribunais,

compostos por sorteio e com rotatividade anual. A participação concretiza-se assim, na

polis, através de “um corpo de cidadãos ativos, envolvidos no processo de autogoverno;

os governadores deveriam ser os governados. Todos os cidadãos se reuniam para debater,

decidir e promulgar a lei” (HELD, 1987, p. 17), e “mesmo os pobres tinham

frequentemente tempo e oportunidade de participar na vida pública da comunidade, quer

na governação (largamente definida), quer na rica atividade festiva, associada aos cultos

do estado” (FINLEY, 1988, p. 8).

Havia, portanto, a festa: o vínculo com a cidade, o sentido de pertencimento se

expressava, também, pela celebração – cívica, religiosa, cívico-religiosa. O cidadão era

3 O texto de Constant também tem a numeração de páginas correspondente ao arquivo em Word.

Page 4: Território e Política Na Pólis - Corina Moreira

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aquele que tomava parte no culto à cidade, de onde advinham seus direitos políticos e

civis (COULANGES, 2006, p. 105), e o sentido de participação na vida em comum que

constituía a polis era dado não só pelo compartilhamento da vida cívica e política, mas

também da festa: banquetes, sacrifícios, procissões, oferendas, enfim, uma série de ritos

celebrativos que reafirmava continuamente o caráter sagrado da cidade – território

consagrado pelos e aos deuses – e conformava o cotidiano da polis, e que levou inclusive

Coulanges a afirmar que “O calendário não era outra coisa que a sucessão das festas

religiosas” (COULANGES, 2006, p. 86).

Participar era, então, tomar parte na governança da cidade, mas também na

celebração da cidade: participar do culto é participar da festa da cidade, é ser cidadão,

aquele que segue a religião e cultua os deuses da cidade (PEREZ, 2014, aula de 14/03).

Num mundo e cotidiano ritualizados, em que se afirma continuamente a dimensão solene

da vida, tomar parte na vida política, cívica e festiva da cidade não se relaciona à moderna

concepção de “exercício de direitos” ou a qualquer sentido mecânico de participação, mas

ao gozo diário do compartilhamento de uma vida em comum em que a política é prática

que se constitui na experiência do pertencimento a um determinado território que abriga

e religa os que nele convivem.

(Para finalizar com uma pequena digressão, não pude me furtar de lembrar da

associação entre festa e política na cidade, pensando em alguns movimentos de ocupação

dos espaços públicos que têm ocorrido em Belo Horizonte nos últimos anos, como o Praia

da Estação – seria uma reapropriação da dimensão festiva e lúdica, um religare entre os

que compartilham da vida em comum da cidade?)

Page 5: Território e Política Na Pólis - Corina Moreira

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REFERÊNCIAS

CONSTANT, Benjamin. Da liberdade dos antigos comparada à dos modernos. Porto

Alegre, Revista Filosofia Política, n. 2, p. 1-7, 1985. Disponível em:

http://caosmose.net/candido/unisinos/textos/benjamin.pdf. Acesso em: 13 maio 2015.

COULANGES, Numa-Denys Fustel de. A cidade antiga. EBooksBrasil, 2006.

Disponível em: http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/cidadeantiga.pdf. Acesso em:

20 fev. 2014.

FINLEY, Moses I. A cidade-estado clássica. Em: Os gregos antigos. Lisboa: Edições

70, 1988. Disponível em:

https://drive.google.com/file/d/0Bz4eW09BMQ9UZUFOYVNfWUJ4cDQ/edit. Acesso

em: 13 maio 2015.

HELD, David. A democracia clássica: Atenas. Em: Modelos de democracia. Belo

Horizonte: Paidéia, 1987. p. 13-33.

PEREZ, Léa Freitas. Festa, religião e cidade. Disciplina ministrada no Programa de

Pós-Graduação em Sociologia. Universidade Federal de Minas Gerais. 1º semestre/2014.

TIERNO, Patricio. Teoria política grega da democracia: demarcação e métodos de um

cânone histórico e intelectual. São Paulo, BIB – Revista Brasileira de Informação

Bibliográfica em Ciências Sociais, n. 73, p. 21-54, 2012. Disponível em:

http://www.anpocs.org/portal/index.php?option=com_docman&task=cat_view&gid=12

15&limit=20&limitstart=0&order=date&dir=DESC&Itemid=435. Acesso em: 13 maio

2015.