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  • 1

    UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

    INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS E FILOSOFIA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA

    KALNA MARETO TEAO

    TERRITRIO E IDENTIDADE DOS GUARANI MBYA

    DO ESPRITO SANTO (1967-2006)

    Niteri, maro de 2015.

  • 2

    KALNA MARETO TEAO

    TERRITRIO E IDENTIDADE DOS GUARANI MBYA

    DO ESPRITO SANTO (1967-2006)

    Tese apresentada ao Programa de Ps-graduao

    em Histria da Universidade Federal Fluminense/ UFF,

    como requisito parcial para o ttulo de Doutor.

    rea de concentrao: Histria Social.

    Orientadora: Prof. Dr MARIA REGINA CELESTINO DE ALMEIDA

    Niteri, maro de 2015.

  • 3

    Ficha Catalogrfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoat

    T253 Teao, Kalna Mareto. Territrio e identidade dos Guarani Mbya do Esprito Santo(1967-

    2006) / Kalna Mareto Teao. 2015.

    234 f. ; il.

    Orientadora: Maria Regina Celestino de Almeida.

    Tese (Doutorado) Universidade Federal Fluminense, Instituto de

    Cincias Humanas e Filosofia. Departamento de Histria, 2015.

    Bibliografia: f. 205-226.

    1. ndio Guarani Mbya. 2. ndio Tupinikim. 3. Identidade tnica.

    4. Territrio. I. Almeida, Maria Regina Celestino de. II. Universidade

    Federal Fluminense. Instituto de Cincias Humanas e Filosofia. III. Ttulo.

    CDD 305.8983

  • 4

    KALNA MARETO TEAO

    TERRITRIO E IDENTIDADE DOS GUARANI MBYA

    DO ESPRITO SANTO (1967-2006)

    Tese apresentada ao Programa de Ps-graduao em

    Histria da Universidade Federal Fluminense/ UFF,

    como requisito parcial para o ttulo de Doutor.

    rea de concentrao: Histria Social.

    Aprovada em: / /

    BANCA EXAMINADORA

    ________________________________________________________________________

    Prof. Dr MARIA REGINA CELESTINO DE ALMEIDA-orientadora

    Universidade Federal Fluminense-UFF

    ________________________________________________________________________

    Prof. Dr ELISA FRUHAUF GARCIA

    Universidade Federal Fluminense-UFF

    ________________________________________________________________________

    Prof. Dr VNIA MARIA LOSADA MOREIRA

    Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro-UFFRJ

    ________________________________________________________________________

    Prof. Dr. JOO PACHECO DE OLIVEIRA

    Museu Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro-MN/UFRJ

    ________________________________________________________________________

    Prof. Dr. JOS RIBAMAR BESSA FREIRE

    Universidade Estadual do Rio de Janeiro-UERJ

  • 5

    AGRADECIMENTOS

    Agradeo aos Guarani Mbya pelo aprendizado e pela oportunidade em conhec-los.

    Agradeo minha famlia pelo apoio nessa jornada, ao meu pai, in memorian, pelo ensino

    do valor da educao.

    Agradeo professora Maria Regina Celestino de Almeida pela orientao e pela

    compreenso.

    Aos professores Bessa Freire, Joo Pacheco de Oliveira, Vnia Losada e Elisa Garcia pelas

    contribuies nas bancas de qualificao e defesa de doutorado.

    A professora Celeste Ciccarone por conceder boa parte da documentao deste trabalho.

    Agradeo a Leandro por acompanhar a trajetria de luta.

    Agradeo a Tnia Borsoi pelo apoio na BC-UFES.

    A Michel Caldeira pelo apoio no APEES.

    A FUNAI por ceder os relatrios para a pesquisa.

    Ao CIMI por conceder uma parte da documentao dos arquivos.

    Agradeo a PMV pela licena parcial para o curso do doutorado.

    Aos amigos conquistados no curso do doutorado e aos professores que contriburam para

    o meu aprendizado.

    A Kltia Loureiro pela amizade de sempre.

  • 6

    Resumo

    TEAO, Kalna Mareto. Territrio e identidade dos Guarani Mbya do Esprito Santo (1967-

    2006). Tese (Doutorado em Histria Social) Instituto de Cincias Humanas e Filosofia,

    Universidade Federal Fluminense. UFF.

    Palavras-chave: 1. Guarani Mbya. 2. Tupinikim. 3.Identidade tnica. 4.Territrio.

    Este trabalho tem por objetivo analisar a construo identitria dos povos Tupinikim e

    Guarani do Esprito Santo durante o processo de luta pela terra contra a empresa Aracruz

    Celulose (1967-2006). Esses ndios, ao reelaborarem suas identidades tnicas, constroem

    suas histrias em processos distintos, por meio da atualizao de seus mitos, ritos,

    narrativas, memrias, objetos, locais e pessoas. A construo do territrio guarani

    realizada por meio dos deslocamentos (oguata por), e tambm por meio desses

    deslocamentos que os Guarani Mbya constroem suas histrias e suas identidades sociais.

    O territrio guarani fsico, porque esses ndios buscam espaos possveis, com

    condies ambientais especficas, para a construo das aldeias. O territrio guarani

    imaginado, porque os Mbya, ao realizarem os deslocamentos, esto construindo um

    territrio para alm das fronteiras fsicas estabelecidas pelo Estado nacional, pois trata-se

    de um territrio construdo por meio desses deslocamentos e pelas relaes de

    casamentos, de parentesco, de busca de sementes, de rituais. Os Guarani Mbya buscam

    se apropriar de espaos como escolas, universidades, assembleias indgenas e museus

    para afirmarem sua identidade tnica, na qual os ndios compartilham o sentimento de

    pertencimento tnico diante de contextos histricos de transformao poltica. Este

    trabalho se ancora em fontes escritas documentais, informativas e tericas e em fontes

    orais, entre as quais se destacam os depoimentos indgenas.

  • 7

    Abstract

    TEAO, Kalna Mareto. Territory and identity of Guarani Mbya in Esprito Santo (1967-

    2006).Doctoral thesis in Social History, Human Science and Philosophy Institute of the

    Fluminense Federal University/UFF.

    Keywords: 1. Guarani mbya 2. Tupinikim 3. ethnic identity 4. Territory

    Abstract

    This thesis has the objective of analyzing the identity construction of the Tupinikim and

    Guarani of the Esprito Santo during the process of fight for the land against Aracruz

    Celulose (1967-2006). These Indians to transformed their ethnic identities, build their

    stories in different processes, through the update of its myths, rites, narratives, memories,

    objects, places and people. The construction of the Guarani territory is carried out through

    the displacements (oguata por) and is also through these displacements that the Guarani

    Mbya build their stories and their social identities. The territory Guarani is physical

    because these Indians seek possible areas with specific environmental conditions for the

    construction of villages. The territory Guarani is imagined because the Mbya in carrying

    out the displacements are building a territory beyond the physical boundaries set by the

    National State, because it is a territory built by the displacements and relations of

    marriage, parentage, searching for seed , rituals. The Guarani Mbya seek to appropriate

    spaces such as schools, universities, indigenous assemblies and museums to assert their

    ethnic identity and share the feeling of ethnic belonging before historical contexts of

    political transformation. The sources used for this work were oral sources, indigenous

    statements and written sources.

  • 8

    SUMRIO

    INTRODUO.............................................................................................................13

    Captulo 1.A PRESENA INDGENA NO ESPRITO SANTO.................................36

    1.1. Histria e deslocamentos guarani mbya...................................................................37

    1.2. Os deslocamentos do grupo guarani mbya de Tatati ao longo do sculo XX..........49

    1.3. A chegada dos Guarani Mbya ao Esprito Santo......................................................58

    1.4. A transferncia dos Guarani Mbya junto aos Krenak, em Minas Gerais..................63

    1.5. O retorno dos Guarani ao Esprito Santo e a formao das aldeias..........................69

    1.6. Histria dos Tupinikim......................................................................................... .....76

    1.7. Os Tupinikim no sculo XX e a etnognese..............................................................85

    Captulo 2. A LUTA PELA TERRA INDGENA NO ESPRITO

    SANTO............................................................................................................................99

    2.1. A primeira fase........................................................................................................102

    2.2. A segunda fase..................................................................................................... ...116

    2.3. A terceira fase..........................................................................................................121

    Captulo 3. AS LIDERANAS GUARANI E AS ORGANIZAES INDGENAS NO

    ESPRITO SANTO........................................................................................................136

    3.1.As lideranas guarani...............................................................................................140

    3.2. Organizaes indgenas no Brasil e no Esprito Santo............................................158

    Captulo 4. OS GUARANI MBYA E A CONSTRUO DE ESPAOS POLTICOS

    DE IDENTIDADE.........................................................................................................174

    4.1.Educao escolar guarani no Esprito Santo.............................................................183

    4.2.Centro cultural Tatati Ywa Ret...............................................................................197

    CONSIDERAES FINAIS......................................................................................201

    REFERNCIAS...........................................................................................................205

    ANEXOS.................................................................................................................... ...232

  • 9

    LISTA DE ILUSTRAES

    IMAGEM1. Liderana religiosa guarani Tup Kwaray................................................227

    IMAGEM 2. Liderana guarani Wer Djekup............................................................227

    IMAGEM 3. Liderana guarani Wer Kwaray.............................................................227

    IMAGEM 4. Aldeia guarani Boa Esperana.................................................................228

    IMAGEM 5. Aldeia tupinikim Caieiras Velhas............................................................228

    IMAGEM 6. Centro cultural Tatati Ywa Ret..............................................................228

    IMAGEM 7. Professores guarani no Curso de magistrio indgena em

    Florianpolis.2005.........................................................................................................229

    IMAGEM 8. Tatati Ywa Ret.......................................................................................229

    IMAGEM 9. Coral guarani de Boa Esperana..............................................................229

    IMAGEM 10. Artesanato guarani mbya.......................................................................230

    IMAGEM 11. Artess guarani.......................................................................................230

  • 10

    Lista de siglas e abreviaturas

    ABA-Associao Brasileira de Antropologia

    AGU-Advocacia Geral da Unio

    AITG-Associao Indgena Tupinikim e Guarani

    ANAI- Associao Nacional Indgena

    BANDES- Banco de Desenvolvimento do Esprito Santo

    BANESTES-Banco do Estado do Esprito Santo

    BNDS-Banco Nacional de Desenvolvimento Econmico e Sustentvel

    CAPOIB-Conselho de Articulao dos Povos e Organizaes Indgenas do Brasil

    CODES-Companhia de Desenvolvimento Econmico do Esprito Santo

    CUT-Central nica dos Trabalhadores

    COFAVI- Companhia Ferro e Ao de Vitria

    CIMI-Conselho Missionrio Indigenista

    CPT-Comisso da Pastoral da Terra

    CST-Companhia Siderrgica Tubaro

    CVRD-Companhia Vale do Rio Doce

    CTI-Centro de Trabalho Indigenista

    ECOTEC-Economia e Engenharia Industrial

    EMATER- Empresa de Assistncia Tcnica e Extenso Rural

    ESCELSA-Esprito Santo Centrais Eltricas S/A

    FAFI- Escola Tcnica Municipal de Teatro, Dana e Msica FAFI

    FASE- Federao de rgos para Assistncia Social e Educacional

    FUNAI-Fundao Nacional do ndio

    FUNASA-Fundao Nacional de Sade

    FUNRURAL- Fundo de Assistncia ao Trabalhador Rural

    GPI-Grandes Projetos de Investimentos

    http://www.vitoria.es.gov.br/semc.php?pagina=ensinodeteatroedanca

  • 11

    GT-Grupo Tcnico

    IBAMA- Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renovveis

    IBDF-Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal

    IBGE-Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica

    IDEA- Instituto para o Desenvolvimento e Educao de Adultos

    IEF-Instituto Estadual de Floresta

    IEMA-Instituto Estadual de Meio Ambiente

    LBA-Legio Brasileira de Assistncia

    INAMPS- Instituto Nacional de Assistncia Mdica da Previdncia Social

    INCRA-Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria

    MOBRAL- Movimento Brasileiro de Alfabetizao

    MPA-Movimento dos Pequenos Agricultores

    MPES-Ministrio Pblico Estadual

    MPF-Ministrio Pblico Federal

    MST-Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra

    NISI- Ncleo Interinstitucional da Sade Indgena

    OAB-Ordem dos Advogados do Brasil

    OIT-Organizao Internacional do Trabalho

    ONG- Organizaes no Governamentais

    PETROBRAS-Petrleo Brasileiro S/A

    PI-Posto Indgena

    PF-Polcia Federal

    PMA-Prefeitura Municipal de Aracruz

    SAAE-Sistema de Abastecimento Autnomo de gua e de Esgoto

    SEDU-Secretaria Estadual e Educao do Esprito Santo

    SEJUC-Secretaria de Estado de Justia e da Cidadania

    SETRAPS-Secretaria do Trabalho e Promoo Social

  • 12

    SISPMC-Sindicato dos Servidores Pblicos Municipais de Colatina

    SPI-Servio de Proteo aos ndios

    SPU-Secretaria de Patrimnio da Unio

    SUDELPA-Superintendncia de Desenvolvimento do Litoral Paulista

    TI-Terra Indgena

    UFES-Universidade Federal do Esprito Santo

  • 13

    Introduo

    Segundo Censo do IBGE de 2010, a populao indgena no Brasil de 896,9 mil

    ndios (0,4% da populao total), 305 etnias e 274 idiomas indgenas. A Fundao

    Nacional do ndio (FUNAI) identificou 505 terras indgenas, terras essas que representam

    12.5% do territrio nacional ou seja, 106.7 milhes de hectares. Os ndios do pas ocupam

    um territrio equivalente a 36.2 % localizados em rea urbana e 63.8% localizados em

    rea rural.1

    Os Guarani so um povo que habita os pases da Amrica do Sul, como Bolvia,

    Brasil, Paraguai, Uruguai e Argentina. No Brasil, os Guarani vivem nos estados do

    Esprito Santo, Rio de Janeiro, So Paulo, Paran, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.

    Em 2005, a populao guarani no continente foi estimada em 94.657 habitantes. Segundo

    o Censo do IBGE (2010), no Brasil esse nmero de 67.523 ndios2.

    A populao guarani apresenta-se subdividida conforme os subgrupos: Mbya,

    Nhandeva ou Ava Xiripa e Kaiowa ou Pai Tavyter. Os subgrupos distinguem-se entre si

    devido s variaes lingusticas e culturais prprias. Os Guarani do Esprito Santo auto

    intitulam-se como Nhandeva, nosso povo, ns, nossa gente. Uma das principais

    caractersticas dos Mbya consiste na realizao do oguata por (caminhada) e eles

    possuem a crena religiosa da Yvy marey, Terra sem Mal. Essa classificao foi realizada

    por Schaden e at hoje reconhecida pelos antroplogos e tambm pelos ndios3.

    As aldeias kaiowa encontram-se na regio central do Paraguai e na regio sul do

    Mato Grosso do Sul. Os Nhandeva concentram-se tambm no Paraguai, nas reas

    compreendidas entre os rios Jejui Gazu, Corrientes e Acaray. No Brasil, vivem nas aldeias

    do Mato Grosso do Sul, no interior e no litoral dos estados de So Paulo, no interior dos

    estados do Paran, do Rio Grande do Sul e no litoral de Santa Catarina. Os Mbya esto

    1 IBGE. Censo 2010: populao indgena de 896,9 mil, tem 305 etnias e fala 274 idiomas. 10 ago. 2012.

    Disponvel em: < http://saladeimprensa.ibge.gov.br/noticias?view=noticia&id=1&idnoticia=2194>

    Capturado em 13 ago. 2013. Neste Censo do IBGE de 2010, possvel obter informaes e dados

    analisados, tabelas, mapas sobre a populao indgena brasileira habitante das reservas e das cidades, bem

    como informaes referentes s terras, s etnias, lngua, populao rural, urbana, educao, sade,

    ao trabalho, entre outros. Esses dados so relevantes na medida em que permitem mapear a realidade

    indgena do pas para traar futuras polticas pblicas que assegurem os direitos indgenas. 2 Os povos classificados segundo tronco lingustico, etnia ou povo so: 75.000 Guarani, 43.401 Kaiowa, 8.026 Mbya e 8.596 Nhandeva. Demais informaes sobre os povos indgenas esto presentes em IBGE.

    Censo demogrfico 2010. Caractersticas gerais dos indgenas: resultados do universo. Rio de Janeiro,

    2012. 3 LADEIRA, Maria Ins. Espao Geogrfico Guarani-Mbya: significado, constituio e uso. Maring/Paran: Eduem; So Paulo: EDUSP, 2008. p.61.

    http://saladeimprensa.ibge.gov.br/noticias?view=noticia&id=1&idnoticia=2194

  • 14

    presentes em vrias aldeias da regio oriental do Paraguai, no nordeste da Argentina

    (provncia de Missiones) e norte do Uruguai. No Brasil, localizam-se nas aldeias do

    interior e do litoral dos estados da Regio Sul e em So Paulo, Rio de Janeiro e Esprito

    Santo4.

    No Esprito Santo, a populao indgena habita o municpio de Aracruz, situada

    no litoral norte do estado, distante 83 km da capital Vitria, e compreende 2.630

    Tupinikim e 300 Guarani, segundo dados da Fundao Nacional de Sade (FUNASA,

    2010). Os Guarani Mbya habitam as aldeias de Boa Esperana, Trs Palmeiras e Piraqu-

    Au, todas localizadas ao sul da terra indgena tupinikim. Os Tupinikim so do tronco

    lingustico tupi cuja identidade foi rearticulada nos processos territoriais. Os Tupinikim

    vivem nas aldeias de Caieiras Velhas, Iraj, Comboios e Pau Brasil. (conforme o mapa

    em anexo). Os Tupinikim, historicamente localizavam-se no litoral norte do Esprito

    Santo. Seus principais aldeamentos coloniais eram as aldeias de Reis Magos (Nova

    Almeida), Reritiba (Anchieta), Aldeia Nova (Santa Cruz). Os Tupinikim ocupam

    imemorialmente o Esprito Santo e reelaboraram suas identidades sociais conforme os

    aldeamentos que ocupavam. Esses ndios constroem suas histrias evocando o fato dos

    antepassados terem vivido na regio de Nova Almeida como fato para comprovarem sua

    presena histrica na Regio Norte do Esprito Santo.

    Inmeros conflitos fundirios envolvendo ndios tm vindo tona na mdia, na

    internet e na imprensa internacional devido prpria situao histrica de subordinao

    a que esses povos so submetidos. Muitas dessas disputas envolvem longas batalhas

    judiciais em torno da homologao e demarcao das terras indgenas. Soma-se a esse

    fato tambm a prpria mobilizao indgena, que se utiliza de estratgias para visibilizar

    seus problemas, como a participao em diversos movimentos e organizaes pelo pas,

    a ampliao dos programas de educao e de formao de professores, a apropriao e o

    uso de novas tecnologias e mdias sociais, como a internet, e uma rede de apoio que

    envolve movimentos sociais, organizaes no governamentais (ONGs), entidades civis,

    intelectuais, ambientalistas, universitrios e sociedade civil. Essa rede se ampliou para a

    esfera governamental, com a participao do Ministrio Pblico Estadual (MPES) e do

    Ministrio Pblico Federal (MPF), da FUNAI e de alguns deputados estaduais e federais.

    Os Tupinikim e os Guarani reivindicam para si o acesso aos direitos coletivos

    sobre a terra, a sade, a educao e a cultura. Esses grupos tnicos percebem-se dentro da

    4 LADEIRA, 2008, p.61.

  • 15

    categoria poltica de ndios e, dessa forma, conseguem acessar os direitos coletivos e

    lutam ao mesmo tempo pelo cumprimento dos direitos indgenas e pelo respeito como

    povos tradicionais formadores da cultura e do povo brasileiro. Historicamente, os

    Tupinikim viveram aldeados no litoral do Esprito Santo, no municpio de Aracruz e

    rearticularam suas identidades indgenas nas aldeias missionrias, tendo permanecido at

    o sculo XIX, quando lutavam pelo direito sua cidadania, reivindicando aos

    administradores do Imprio o direito s terras, ao trabalho e justia, conforme podemos

    observar nos trabalhos de Moreira (2001, 2005, 2010). A busca por direitos indgenas dos

    dois povos foi acionada mediante o processo fundirio (1967-2006), envolvendo

    Tupinikim e Guarani contra a empresa Aracruz Celulose. Os ndios acionavam sua

    identidade diferenciada na medida em que necessitavam enfrentar situaes do tempo

    presente de discriminao, de subordinao e de espoliao dos seus antigos territrios

    tradicionais. Os dois povos indgenas buscavam a garantia dos seus direitos negociando

    com o Estado, por meio das vias legais e da apropriao de mecanismos burocrticos que

    lhes garantissem o direito terra, tais como o conhecimento de documentos, legislao,

    peties, cartas, comunicados, relatrios. Essa apropriao do conhecimento burocrtico

    foi acompanhada pela assessoria das entidades civis e pelo movimento indgena em nvel

    local e nacional. Nesse espao de busca por um territrio indgena que os Tupinikim e

    os Guarani formaram suas lideranas polticas tradicionais e novas lideranas como

    representantes nativos que representavam uma lgica prpria de organizao social e

    poltica diante do Estado.

    A regularizao das terras ocupadas pelos Guarani no litoral do Brasil iniciou-

    se por meio de aes e projetos do Centro de Trabalho Indigenista (CTI), em 1979. Nos

    estados do Rio de Janeiro e So Paulo, as terras guarani eram ameaadas pela especulao

    turstica e imobiliria e pela construo da rodovia Rio-Santos. Na regio do Paran e

    Santa Catarina, as presses ambientais ocorriam devido aos projetos de especulao

    imobiliria e ao processo de duplicao da rodovia BR 101.5 No caso do Esprito Santo,

    a partir dos anos 1970, novos projetos de desenvolvimento econmico assolaram as terras

    indgenas e seus recursos, como empresas de abastecimento de gua, saneamento bsico,

    e gasoduto Bolvia- Brasil. 6

    5 LADEIRA, 2008, p.38. 6 LADEIRA, Maria Ins. O caminhar sob a luz: O territrio mbya beira do oceano. So Paulo: UNESP,

    2007, p..40.

  • 16

    A histria que pretendemos construir nesta tese no poderia ser diferente de

    outras regies do pas. Inmeras histrias regionais assemelham-se pela excluso

    histrica desses povos, pela falta de garantia mnima do respeito aos seus direitos

    indgenas assegurados pela Constituio de 1988 e pelos conflitos que envolvem suas

    terras. Nosso objetivo geral consiste em analisar a histria dos Guarani Mbya, conforme

    a trajetria de lutas e deslocamentos desse povo indgena, no perodo de 1967 a 2006. A

    construo identitria desse grupo tnico se constri por meio dos deslocamentos e nas

    suas interaes com outros povos indgenas, como os Tupinikim. Os Guarani Mbya so

    nosso objeto de anlise e consideramos os Tupinikim importantes agentes nos processos

    de luta conjunta da reconstruo identitria.

    A identidade tnica dos Mbya elaborada a partir dos deslocamentos e atravs

    do contato com os agentes, como os povos indgenas Tupinikim e Krenak, com a

    sociedade envolvente, o Estado, as entidades civis, as ONGs. A escolha dessa poca deve-

    se ao fato de que o momento em que os Guarani chegam ao Estado coincide justamente

    com a mesma poca do conflito fundirio que os envolve junto aos Tupinikim e a empresa

    Aracruz Celulose, atual FIBRIA.

    Existe um discurso construdo sobre os Guarani Mbya de que eles so nmades,

    paraguaios e estrangeiros. Em muitos casos, essa justificativa visa deslegitimar o

    protagonismo indgena em torno de suas lutas acerca de seus direitos, bem como um

    argumento fortemente usado pelos seus opositores em conflitos fundirios, pois, ao

    afirmar-se que o ndio no brasileiro, destitui-se o acesso s terras e aos demais direitos.

    Tais denominaes demonstravam que os Guarani no eram considerados brasileiros,

    portanto no teriam direito sobre as terras. O seu modo de vida por meio dos

    deslocamentos se contrape lgica de reservar um espao apropriado aos Mbya. O fato

    de os Guarani realizarem oguata por um aspecto constitutivo de sua vida cultural e

    tambm desperta a afirmao da sua identidade tnica ao buscarem terras adequadas ao

    seu modo de vida. Caminhar estar em movimento do corpo, do esprito e em busca de

    terras, pois oguata por age dimensionando novos territrios diante das presses

    intertnicas e dos conflitos fundirios.7

    7 GARLET, Ivori. Mobilidade Mbya: Histria e significao. Dissertao (Mestrado). Programa de Ps-Graduao em Histria. Porto Alegre: Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul,1997.

  • 17

    H muitos trabalhos acerca dos Tupinikim no que tange disputa territorial,

    porm muito poucos sobre os Guarani. Destacam-se os trabalhos de Loureiro8 e Silva9

    sobre o processo fundirio envolvendo os Tupinikim, os Guarani contra a Aracruz

    Celulose. Ambos os trabalhos se concentram no perodo inicial do conflito territorial

    (1967-1983). Loureiro considera que a luta pela terra indgena no Espirito Santo deve ser

    compreendida levando-se em conta a poltica fundiria exercida pelos governos da

    ditatura militar, os incentivos do reflorestamento, a chegada da Aracruz Celulose, a

    atuao do governo estadual, a usurpao das terras indgenas por parte da empresa, a

    atuao da FUNAI e a mobilizao dos povos indgenas10. Silva analisa a formao do

    territrio tupinikim diante da poltica indigenista oficial do estado do Esprito Santo e o

    processo de luta fundiria que envolveu a afirmao da identidade tnica dos tupinikim a

    partir da categoria poltica de ndios, pois, anteriormente, esses ndios se afirmavam como

    caboclos e assim eram conhecidos pelos membros da sociedade envolvente. A afirmao

    da identidade tupinikim foi resultante da busca pelos direitos coletivos terra. Silva situa

    os Tupinikim no mesmo processo de etnognese dos ndios emergentes do Nordeste do

    sculo XX, pois, segundo o autor, o contexto dos anos de 1970 permite ao poder federal

    e sociedade da poca descobrir o surgimento dos ndios no Esprito Santo.11

    Embora os Guarani mbya sejam amplamente estudados pela Antropologia e

    Educao, na Histria isso ocorre menos. Nos trabalhos acerca da Etnologia guarani,

    alguns antroplogos privilegiaram o enfoque de abordagem na crena mtico-religiosa da

    Terra sem Mal como condio essencial para que os Guarani realizassem os movimentos

    migratrios.12 Estudos antropolgicos e histricos recentes sugerem a necessidade de se

    abordar os Guarani de forma histrica, levando em considerao as diferentes pocas,

    regies, contextos e especificidades culturais13. Boa parte dos estudos acerca dos Guarani

    8 LOUREIRO, Kltia. O processo de modernizao autoritria da agricultura no Esprito Santo: os ndios Tupiniquim e Guarani Mbya e a empresa Aracruz Celulose. Dissertao. Programa de Ps-graduao em

    Histria Social das Relaes Polticas. Vitria: UFES, 2006. 9 SILVA, Sandro Jos da. Tempo e espao entre os Tupiniquim. Dissertao. Programa de Ps- Graduao

    em Antropologia Social. Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2000. 10 LOUREIRO, Kltia. 2006, p.16 11 SILVA, Sandro Jos da.2000. 12 CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o Estado. 5. ed. Francisco Alves,1990. MTRAUX, Alfred. A

    religio dos Tupinambs e suas relaes com a das demais tribos Tupi-Guaranis. 2 ed. So Paulo:

    Companhia editora nacional/EDUSP, 1979. NIMUENDAJU, Curt Unkel. As lendas da criao e destruio

    do mundo como fundamento da religio dos Apapocva Guarani. So Paulo: Hucitec, Edusp, 1987. 13 SILVA, Evaldo Mendes da. Folhas ao vento: a micro mobilidade de grupos mbya e nhandeva (guarani)

    na Trplice Fronteira. Tese (Doutorado). Programa de ps-graduao em Antropologia social. Museu

    Nacional. UFRJ. Rio de Janeiro, 2007. PISSOLATO, Elizabeth. A durao da pessoa: mobilidade,

    parentesco e xamanismo mbya (guarani). So Paulo: UNESP/ISA, Rio de Janeiro: NUTI, 2007. POMPA,

  • 18

    referem-se anlise de situaes que envolvem os deslocamentos do subgrupo Mbya, sob

    perspectiva do mito, do xamanismo, das lideranas, das relaes de parentesco, da

    religio e da relao ecolgico-ambiental.14

    Consideramos a trajetria dos Guarani Mbya ao Esprito Santo (1940-1967) a

    partir de uma perspectiva histrica, na qual os Guarani, ao realizarem o oguata por

    (caminhada) no tiveram somente a motivao religiosa como principal causa do

    deslocamento realizado por diversos estados. Preferimos optar pelo termo deslocamento

    e no migrao, em virtude da necessidade de dimensionar historicamente os Mbya e

    analisar os processos de luta por territrios e construes de identidades ocorridos em

    diversas pocas e por grupos especficos. Faz-se necessrio compreender os Guarani em

    sua dimenso particular, levando em conta as especificidades dos grupos tnicos e no

    tratando-os como um grupo macro com caractersticas genricas e universalizantes.

    Estudos sobre os Guarani tentam explicar as principais causas que os levaram a

    realizar grandes deslocamentos ao longo do pas. Schaden, mesmo que tenha retratado as

    migraes guarani e, inclusive, a presena Mbya no Esprito Santo em 1934, possui uma

    tica baseada no estudo antropolgico vigente na poca, fundamentado na ideia da

    aculturao, segundo a qual os ndios em contato com a sociedade envolvente perdiam

    sua cultura. O autor realizou pesquisas em diversas partes do Brasil com os Guarani de

    So Paulo, Santa Catarina e Mato Grosso do Sul.15

    Clastres (1979), em A sociedade contra o Estado, analisa os ndios Guarani

    Mbya na busca da Terra Sem Mal, Ywy maraey, por meio das migraes lideradas pelos

    xams. Para o autor, o mundo terrestre seria um espao de imperfeio, de dor, de falta

    de alimentos. O caminhar seria uma forma de manter o corpo em movimento para buscar

    locais mais apropriados a leste, prximo ao mar. A busca desse lugar sagrado promove o

    movimento do corpo guarani por meio da dana, da msica, dos cnticos e da orao.16

    Cristina. A religio como traduo: missionrios, Tupi e Tapuia no Brasil Colonial. Bauru, So Paulo:

    EDUSC, 2003. 14 CICCARONE, Celeste. Drama e sensibilidade: migrao, xamanismo e mulheres mbya guarani. Tese (Doutorado). Programa de Estudos de Ps-graduao em Cincias Sociais, Pontifcia Universidade Catlica

    de So Paulo. So Paulo, 2001.LADEIRA, Maria Ins. O caminhar sob a luz: o territrio mbya beira do

    oceano. So Paulo: UNESP, 2007. LADEIRA, Maria Ins. Espao Geogrfico Guarani-Mbya: significado,

    constituio e uso. Maring/Paran: Eduem; So Paulo: EDUSP, 2008.LADEIRA, Maria Ins; MATTA,

    Priscila. Terras guarani no litoral: as matas que foram reveladas aos nossos antigos avs. Kaa gy

    orerami kery ojou rive vaekue . So Paulo: CTI,2004. SILVA, 2007. 15 SCHADEN, Egon. Aspectos fundamentais da cultura guarani. So Paulo: Difuso Europia do livro, 1962, p.9. 16 CLASTRES, 1979.

  • 19

    Guimaraens argumenta que as migraes realizadas pelos Guarani durante as

    dcadas de 1950 e de 1960 remontam s trajetrias dos antepassados. Os Mbya, desde o

    perodo colonial, resistiram ao domnio dos encomenderos espanhis e das misses

    jesuticas, refugiando-se nas regies das matas do Guara. Guimaraens afirma que os

    Guarani, alm da aparente tolerncia e diplomacia, possuem um contato sistemtico com

    a sociedade envolvente e, mesmo assim, preservam suas tradies.17

    Conforme Guimaraens, para os Guarani, a terra o local da produo divina

    capaz de abrigar todos os seres, animais, plantas, guarani e no guarani. Desejam um

    espao que lhes seja prprio e diferenciado dos djuru (no ndios). O espao territorial

    deve conter recursos necessrios ao seu modo de ser. Os Mbya reconhecem o direito

    divino de uso e ocupao da terra por outros grupos.18 Tradicionalmente, esses povos

    dividem seu territrio com outros povos. Por exemplo, no sul do pas, os Guarani dividem

    suas terras com os Kaingang e os Xokleng.

    Os Guarani Mbya da Regio Sudeste buscam um territrio com as seguintes

    condies ambientais: localizado em sentido leste, situado prximo ao mar e com

    presena de Mata Atlntica. Os Guarani Mbya buscam esses lugares prprios ao seu modo

    de vida e nomeiam as aldeias conforme os elementos mticos para identificar esses

    espaos. A religio um fator decisivo de diferenciao tnica que se dilui no cotidiano,

    nas diferenas de hbitos, na dieta alimentar.19 O territrio guarani formado pela

    relao entre os aspectos socioambientais, espaciais e de acordo com os princpios ticos

    que regem o modo de ser guarani. As regras de reciprocidade e de convivncia social

    mantm a dinmica de ocupao territorial guarani.20

    Litaiff afirma que as categorias tnicas apresentadas pelos Mbya so resultados

    da reorganizao de fatores culturais, no sentido de absorver novos smbolos e preservar

    importantes valores diante do contato com a sociedade envolvente. Nos conflitos

    intertnicos com os Xokleng, os Kaingang e a sociedade no ndia, os Guarani buscam

    afirmar sua identidade tnica por meio da oposio entre os grupos tnicos. A posse da

    terra fundamental para a existncia da cultura e da sociedade Guarani. Os Mbya afirmam

    sua identidade tnica na sua relao com a terra, isto , consideram-na como espao de

    17 GUIMARAENS, Dinah. Museu de Arte e origens: mapa das culturas vivas guaranis. Rio de Janeiro:

    Contra Capa, 2003, p.22-23. 18 GUIMARAENS. 2003.p.32. 19 LADEIRA, 1992. 20 LADEIRA, 2001.

  • 20

    que necessitam e preservam o meio natural, em contraste com os outros grupos, como os

    Xokleng, os Kaingang e os no ndios. 21

    Compartilhamos a viso de Garlet sobre a formao do territrio guarani a partir

    de uma perspectiva histrica e da elaborao dos espaos por meio dos processos de perda

    territorial (desterritorializao) e por meio da formao de novos territrios e ocupao

    do espao (reterritorializao).22 A mobilidade guarani atua como motivadora dessa

    ordenao dos espaos para os Mbya e caracteriza-se por um movimento de circularidade

    motivado por aspectos socioculturais (casamentos, visitas, disputas poltico-religiosas) ou

    econmicos (explorao sazonal do ambiente, mudanas de aldeia e locais de cultivo).

    Os principais fatores que motivariam os deslocamentos guarani so a cosmologia, a

    organizao social, a poltica de alianas entre os grupos, fatores econmico-ambientais

    e aspectos relacionados s representaes sobre morte e doena, as presses intertnicas

    e as polticas indigenistas.23

    Ciccarone procura analisar a importncia das lideranas femininas do Esprito

    Santo na reconstruo da trajetria e da narrao da histria dos Guarani Mbya no Esprito

    Santo. A autora compreende o drama como resultante dos mitos de criao dos Guarani

    e esse drama emerge das histrias de relaes do contato com a sociedade envolvente e

    da consequente reduo dos espaos adequados para a sobrevivncia e manuteno do

    modo de vida guarani. 24

    Evaldo Mendes da Silva acompanhou o deslocamento dos ndios entre onze

    aldeias situadas na regio da Trplice Fronteira do pas, isto , a rea de confluncia dos

    rios Paran e Iguau, entre o Brasil, o Paraguai e a Argentina. O autor realizou a

    caminhada ou oguata junto aos Guarani. Para Meli, a causa essencial dos deslocamentos

    consiste na procura de condies ambientais favorveis ao modo de ser guarani.25

    O deslocamento guarani reflete as questes da dimenso ecolgico-cultural

    (busca de terras apropriadas caa, pesca, ao cultivo) e da dimenso social (referente

    s relaes de reciprocidade). O princpio fundamental do modo de ser guarani seria a

    relao de reciprocidade entre os ndios que promovem uma conscincia identitria

    mesmo em espaos diversos e descontnuos. A aldeia seria esse espao onde se

    21 LITAIFF, Aldo. As divinas palavras: representaes tnicas dos Guarani Mbya. Dissertao (Mestrado). Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social. Universidade Federal de Santa Catarina.

    Florianpolis, 1991, p.34. 22 GARLET, 1997. 23 Ibid, p.141. 24 CICCARONE, 2001. 25 MELI apud SILVA, 2007, p.25.

  • 21

    exerceriam o modo de ser e as relaes de reciprocidade guarani. O deslocamento guarani

    seria gerado, na viso de Meli, pela ruptura das condies ecolgico-ambientais

    (ausncia de espaos de caa, de pesca e de cultivo) e das regras de reciprocidade

    (conflitos internos).26

    O estudo do parentesco permite compreender melhor as razes para a realizao

    do deslocamento guarani mbya em suas dimenses poltica, econmica e ecolgica. A

    mobilidade consiste no somente na movimentao dos grupos de parentes que se

    deslocam sucessivamente por lugares onde estabelecem residncia, mas tambm consiste

    na capacidade de conquistar e atualizar situaes coletivas em diversos espaos e

    tempos27.

    Nosso trabalho procurar percorrer a dimenso histrica, tomando o aspecto

    territorial como linha mestra do estudo e articulando a questo identitria, poltica e

    ambiental. Partimos do pressuposto de que a identidade dos Guarani Mbya do Esprito

    Santo reelaborada historicamente, mudando ao longo dos contextos histricos

    vivenciados por eles, e construda politicamente no processo de luta pela terra junto aos

    ndios Tupinikim do Esprito Santo durante os sculos XX e XXI. Nosso intuito principal

    consiste em afirmar que os Guarani Mbya, ao realizarem os seus deslocamentos, no so

    motivados apenas pela crena na Yvy marey, Terra sem Mal. Uma das principais causas

    dos deslocamentos consiste nos intensos conflitos fundirios desde a sada do grupo do

    Rio Grande do Sul, em 1940, at sua chegada ao estado, em 1967, conduzido pela lder

    xamnica Tatati Ywa Rete. Todos os caminhos percorridos pelos Mbya foram repletos de

    disputas territoriais, pelos intensos contatos com a sociedade envolvente, pelos conflitos

    entre culturas distintas, pelos processos de controle estatal durante o perodo do Servio

    de Proteo ao ndio (SPI) no incio do sculo XX e pela ao da FUNAI durante a

    ditadura militar.

    A histria da chegada dos Guarani Mbya ao Esprito Santo narrada pelos ndios

    principalmente por meio de depoimentos orais em que a figura central a lder religiosa

    Tatati Ywa Ret. Tatati era de origem guarani da regio do Paraguai. Seu nome era

    Candelria, naquela regio. Sua famlia havia realizado o deslocamento do Paraguai ao

    Brasil. J do lado brasileiro, Tatati tambm era conhecida como Maria e foi a responsvel

    por conduzir o grupo Mbya at o Esprito Santo. Alm de ser uma mulher que exercia

    claramente seu papel religioso, ela tambm sabia articular-se politicamente junto ao

    26 MELI apud SILVA, 2007. p. 26. 27 PISSOLATO, 2007, p. 107-123.

  • 22

    marido e sua filha, Aurora. O grupo Guarani Mbya, com o objetivo de conseguir ganhos

    e benefcios, agia negociando com os no ndios, com as igrejas protestantes, com os

    governos locais, durante o trajeto do Rio Grande do Sul ao Esprito Santo, numa trajetria

    de quase 30 anos pelo litoral sul e sudeste, que se iniciou em 1940.

    Comumente, tem-se uma viso de que os Guarani, devido ao seu modo de ser,

    nhandereko, so um povo pacfico, que no desejam guerra ou conflitos. Porm na anlise

    da trajetria dos Mbya ao Esprito Santo, podemos observar que os Guarani so um grupo

    que luta arduamente pela defesa de seus interesses, pela afirmao de sua identidade

    tnica e pela busca de um territrio adequado ao seu modo de ser.

    Geralmente, os Guarani trilham os caminhos j percorridos pelos antepassados,

    conforme veremos no captulo 1, em relao sua trajetria no Esprito Santo. Existem

    tambm smbolos que os fazem reconhecer que aquela terra encontrada possui condies

    ambientais favorveis sobrevivncia do grupo, como a tava, construes de pedra. No

    campo mtico-religioso, os sonhos e as revelaes so indcios da necessidade de

    mudana para se encontrar um novo local adequado convivncia do grupo

    (CICCARONE, 2001; PISSOLATO, 2007)

    Os Guarani Mbya procuram relacionar-se com os diversos agentes, com a

    sociedade envolvente, com as igrejas protestantes, com as ONGs, com outros povos

    indgenas, com os intelectuais, com os pesquisadores, com os artistas, com os polticos,

    com os ambientalistas, com as instituies do governo (FUNAI, MPF, AGU) de forma a

    conseguirem apoio para as suas necessidades, seus projetos e suas lutas polticas. Ao

    mesmo tempo em que negociam com os agentes de acordo com os seus interesses

    prprios, no momento necessrio, os Mbya adotam polticas de enfrentamento, de

    afirmao de sua identidade tnica diante da sociedade envolvente, por meio de

    estratgias, como a autodemarcao, as ocupaes, as manifestaes, as passeatas e as

    marchas. A construo da identidade guarani ocorre na inter-relao com os agentes, os

    outros povos indgenas, e sobretudo, por meio da luta poltica pela terra junto aos povos

    Tupinikim no Esprito Santo.

    A legislao brasileira, por intermdio do Estatuto do ndio (Lei n 6001/1973)

    e da Constituio Federal de 1988, considera que os ndios tm direito sobre as terras por

    direitos originrios. Com o art. 231 da Magna Carta, os ndios passam a ter direito sobre

    a terra, levando-se em conta o aspecto da ocupao tradicional. No caso do Esprito Santo,

    os Tupinikim so povos de ocupao imemorial; entretanto, os Guarani Mbya chegaram

    ao Estado em 1967. Como garantir a posse da terra para os Guarani Mbya se os critrios

  • 23

    adotados pelo Estado nacional excluem as concepes de territrio dos povos indgenas?

    Trata-se de uma questo na qual os ndios buscam garantir seus direitos sobre a terra,

    usando estratgias prprias, reelaborando suas identidades tnicas e buscando apoio

    poltico de diversos agentes.

    Mesmo sendo os Guarani um dos povos mais numerosos do pas, em relao aos

    estados, so sempre minorias. No mbito da legislao e das polticas indigenistas oficiais

    da demarcao, os Guarani so excludos do direito posse da terra. Como ento os Mbya

    conseguem estabelecer-se em regies nas quais no possuem ocupao de forma

    permanente? Primeiramente, os Guarani Mbya aliam-se e associam-se junto a outros

    povos indgenas para conseguirem alcanar o territrio desejado. No caso do Esprito

    Santo, os Mbya ocuparam a Terra Indgena (TI) Tupinikim. Na regio sul do pas, os

    Guarani vivem em TI Kaingang e Xokleng. A aliana com os Tupinikim possibilitou que

    os Mbya conseguissem viver conforme seus prprios preceitos e costumes em rea

    indgena tupinikim, em condies ambientais prprias e em espao separado deste povo.

    Percebe-se uma mudana em relao aos relatrios da FUNAI, do MPF, da AGU em

    relao aos Guarani Mbya, dando mais visibilidade a esse grupo tnico e buscando

    elencar argumentos de ocupao tradicional das terras indgenas para garantir os direitos

    coletivos sobre as terras.

    Os deslocamentos dos Guarani Mbya possuem intrnseca relao com os

    processos de espoliao de suas terras ao longo da histria do contato desse povo com a

    sociedade envolvente. O territrio guarani foi constantemente reformulado em processos

    de desterritorializao, ocasionados pelos conflitos fundirios e as disputas com no

    ndios. Dessa forma, os Mbya agem refazendo seus territrios por meio dos

    deslocamentos, em processos de reterritorializao. As diversas causas que promovem o

    oguata por, deslocamento, so de ordem interna e de ordem externa. As causas de ordem

    interna consistem na busca de alianas para casamentos, na busca de parentes, de

    sementes, de rituais, em aspectos mtico-religiosos (sonhos, revelaes, tava), em vises

    sobre sade-morte e doena. As causas externas consistem nas disputas com no ndios

    em torno de terras (GARLET, 1997).

    Conforme Almeida e Moreira, durante o sculo XIX, com o processo de

    independncia e a formao do Estado nacional, as orientaes polticas do poder

    institudo se davam por meio das polticas liberais. Em relao questo indgena, a

    poltica governamental consistia em promover uma rpida assimilao dos ndios

    sociedade nacional. Com a poltica nacional e liberalista, o Estado agia de forma a tentar

  • 24

    homogeneizar as comunidades indgenas, em geral de forma violenta e algumas vezes de

    forma negociada. Tanto no Rio de Janeiro como no Esprito Santo, durante o sculo XIX,

    muitos ndios afirmavam suas identidades tnicas e lutavam politicamente na defesa dos

    seus direitos coletivos, com base na cultura poltica do Antigo Regime. Esses ndios

    negociavam e formavam alianas polticas com diferentes agentes, prestavam servios ao

    rei e reivindicavam direitos assegurados pela condio de sditos cristos.28

    O territrio brasileiro foi produto da conquista e da destruio do territrio

    indgena. O tempo e o espao das culturas indgenas foram moldados ao espao e tempo

    do capital. Os povos indgenas lutam pela manuteno de seus territrios em

    contraposio expanso, desenvolvimento e acumulao do capital. 29 A gesto e o

    ordenamento territorial definidos pelas polticas pblicas do Estado desconsidera as

    normas de ocupao, de organizao e de sociabilidade prprias dos grupos tnicos em

    contraposio aos padres polticos e econmicos dominantes.30

    Os territrios so fronteiras historicamente fixadas por meio de estratgias de

    poder e controle poltico pelo Estado, sendo que os ndios negociam espaos prprios

    sua dinmica cultural, ecolgica e social dentro dos mecanismos burocrticos do poder

    institudo. s vezes, a relao entre ndios e Estado pela garantia do territrio de

    dependncia, porque o governo detm e controla os mecanismos burocrticos e jurdicos

    para determinar a posse da terra indgena. Por outro lado, os ndios apropriam-se tambm

    desse conhecimento e ordenamento jurdico e burocrtico para exigir do Estado os seus

    direitos indgenas.

    Alm da luta poltica pelo territrio ser agente propulsor da afirmao da

    identidade tnica guarani, existem outros elementos que contribuem para a elaborao

    dessa identidade, tais como os deslocamentos, a concepo de territrio, a forma de

    contarem sua prpria histria por meio da elaborao de projetos culturais, histricos e

    educacionais. As velhas e novas lideranas guarani realizam palestras, seminrios,

    oficinas culturais, viagens ao exterior e elaboram produtos culturais como artesanatos,

    CDs, DVDs, filmes, msicas, teatro, cartilhas, dicionrios, livros bilngues e museu. Toda

    a produo artstica e educacional voltada para a afirmao da identidade cultural, para

    a divulgao das tradies, para a visibilidade da existncia do povo Guarani.

    28 ALMEIDA, Maria Regina C. de. MOREIRA, Vnia M. L. ndios, Moradores e Cmaras Municipais:

    etnicidade e conflitos agrrios no Rio de Janeiro e no Esprito Santo (sculos XVIII e XIX). In: Mundo Agrrio, vol. 13, n 25, 2. Sem. 2012, p.3. 29 OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. A geografia das lutas no campo. So Paulo: Contexto, 1999,p.11. 30 LADEIRA, 2008, p.48

  • 25

    Acreditamos que os Guarani Mbya constroem um territrio possvel com as

    condies ambientais e mticas por meio dos deslocamentos que realizaram ao longo do

    sculo XX. Esses deslocamentos permitem o encontro com os parentes de diversas

    regies do Brasil, as alianas polticas por meio de casamentos, de novas oportunidades

    de trabalho, de renovao das prticas ritualsticas como o nheemongara (batismo do

    milho), das trocas de sementes de awati etei (milho sagrado). Esse territrio guarani

    circular, localizado beira do oceano, e tem como centro o Yvy mbyte (centro do

    mundo=Paraguai) (LADEIRA, 2007, 2008).

    Os deslocamentos mbya so resultantes principalmente de um intenso contato

    com a sociedade envolvente ocasionado pelos conflitos fundirios. Esta busca por espaos

    prprios em que pudessem exercer seu modo de ser, possibilitou aos Mbya reconhecer-

    se e afirmar-se em oposio aos outros povos indgenas e aos no ndios. Em termos de

    organizaes indgenas, os Guarani Mbya articulam-se cada vez mais na busca e na troca

    de informaes a fim de debaterem e avaliarem melhores estratgias polticas para

    conseguirem assegurar os direitos humanos fundamentais por meio da Nhembo Aty

    Guasu Guarani, da Associao Indgena Guarani Mboapy Pindo (AIGMP) e demais

    organizaes indgenas, entidades civis e ONGs.

    Nessa dinmica, os Guarani Mbya contemporneos ainda realizam

    deslocamentos como em pocas remotas. Os deslocamentos, o censo, o mapa, o museu e

    a intelectualidade ndia so elementos que contribuem para a construo da identidade

    indgena guarani. Mesmo que o censo e o mapa sejam produtos do Estado para garantir

    um controle sobre a populao, ainda assim so indicadores de visibilizao de uma

    populao e norteadores de polticas pblicas de sade, educao, demarcao de terras,

    cultura e meio ambiente. As polticas pblicas de formao de professores indgenas

    revelam a formao de uma intelectualidade ansiosa por contar e escrever sua prpria

    histria. O museu ou casa de memria mostra a apropriao de um espao exgeno do

    universo indgena que pode ser apropriado para a defesa de sua cultura e para a construo

    de uma histria indgena diferenciada. Mas ainda h outros espaos de compartilhamento

    da identidade guarani, como a internet, as exposies artsticas, as reunies, os encontros,

    as associaes indgenas, os cursos de formao de professores e lideranas polticas, as

    manifestaes artsticas por meio de msicas, corais, livros, teatros, filmes e comerciais.

    Dessa forma, partimos de quatro pressupostos. O primeiro pressuposto consiste

    em afirmar que os Guarani Mbya elaboram sua identidade tnica ao construir sua histria

    por meio do oguata por (caminhada) e por meio do apelo memria da lder religiosa

  • 26

    Tatati Ywa Ret. Por sua vez, a histria dos Guarani Mbya foi construda na inter-relao

    da histria desse grupo tnico em conjunto com a histria dos povos indgenas Krenak e

    Tupinikim. Os Tupinikim, historicamente, possuem a posse imemorial da terra indgena,

    j os Guarani chegaram ao Estado em 1967 e possuem a posse tradicional do territrio

    tnico. Dessa forma, os ndios constroem suas identidades sociais por meio da

    reelaborao dos seus passados, utilizando diversas fontes histricas como mitos,

    narrativas, memrias, lugares, espaos, etc. Nesse processo de construo identitria, os

    ndios buscam ser atendidos em suas reivindicaes polticas do tempo presente,

    reatualizando suas histrias para melhorar as condies de vida da comunidade tnica e

    para possibilitar novas perspectivas para o futuro (HILL, 1994; RAPPAPORT, 2005). Os

    deslocamentos permitem aos Guarani Mbya afirmarem sua identidade tnica, e, por meio

    desses deslocamentos, esses ndios trocam experincias, sementes, praticam rituais,

    realizam casamentos e alianas polticas e participam de aprendizados polticos em

    assembleias indgenas.

    O segundo pressuposto consiste em afirmar que os ndios Tupinikim e Guarani

    Mbya constroem suas identidades tnicas por meio da luta poltica pelo territrio em

    oposio empresa Aracruz Celulose (1967-2006). No processo de construo das

    identidades tnicas os ndios objetivam obter ganhos polticos para a coletividade.

    O terceiro pressuposto analisa a construo do territrio guarani como fsico e

    imaginado. O territrio fsico, porque os Guarani Mbya buscam reas prprias para a

    sua sobrevivncia em aldeias localizadas nas regies com presena de Mata Atlntica e

    localizadas prximas ao mar. Essas aldeias so escolhidas por elementos mtico-

    religiosos expressos por meio de sonhos e revelaes interpretados pelas lideranas

    tradicionais indgenas guarani. O territrio guarani mbya imaginado, pois esse povo

    indgena compartilha o sentimento de comunho tnica com outros guarani do pas nos

    espaos possveis que so apropriados por eles, tais como as aldeias, os museus, as

    escolas, as universidades. Esses espaos so apropriados como pertencentes ao povo

    guarani e eles reelaboram suas identidades coletivas e suas histrias. Os deslocamentos

    entre as aldeias e esses espaos permite o intercmbio entre eles, por meio das visitas, dos

    rituais, das trocas de sementes, dos casamentos, das alianas polticas. Os deslocamentos

    agem como elementos que propiciam o compartilhamento do sentimento tnico, da

    reconfigurao do territrio guarani fsico e imaginado.

    O quarto pressuposto compreende a identidade guarani elaborada por meio da

    ao poltica dos Mbya em busca de seu territrio e pelos seus direitos coletivos. Esses

  • 27

    ndios afirmam sua identidade social por meio dos deslocamentos realizados no oguata

    por e por meio do conflito territorial no Esprito Santo. A identidade guarani poltica

    porque esses ndios compartilham o sentimento de pertencimento tnico na construo

    dos espaos polticos de identidade como a casa de memria, a escola, as universidades,

    as construes de suas histrias e o espao das assembleias guarani pelo Brasil. As

    lideranas guarani tradicionais e as novas lideranas constroem o passado do grupo tnico

    em torno da lder Tatati Ywa Ret e da trajetria do oguata por. Os Mbya constroem a

    histria do grupo tnico inter-relacionado histria de outros grupos indgenas, como os

    Krenak e os Tupinikim. Os Guarani Mbya do Esprito Santo construram o Centro

    Cultural Tatati Ywa Ret com o objetivo de contarem sua prpria histria e colocam-se

    como protagonistas dessa construo histrico-mtica. Os Guarani apropriam-se dos

    diversos espaos como os museus, as escolas, as universidades e as assembleias indgenas

    para afirmar-se como ndios, para compartilharem o sentimento de pertencimento tnico.

    Nosso objetivo geral tentar responder como os Guarani constroem sua

    identidade tnica e conseguem estabelecer e formar um territrio seu a partir do conflito

    fundirio e por meio da relao com os povos indgenas, como os Tupinikim. Os demais

    objetivos consistem em analisar a histria dos Mbya no Esprito Santo, compreender o

    processo fundirio que envolve os povos indgenas e a Aracruz Celulose, analisar as

    histrias das lideranas polticas e sua formao poltica e educacional e verificar como

    os Guarani conseguem articular suas estratgias polticas na construo de sua prpria

    histria e identidade tnica.

    Para compreendermos melhor a histria dos Guarani Mbya do Esprito Santo,

    faz-se necessrio tambm conhecer a histria de outros povos indgenas com os quais

    mantiveram contato durante o sculo XX, tais como os Krenak e, principalmente, os

    Tupinikim. Os Guarani mantiveram contato prximo com os Krenak na poca da Fazenda

    Guarani, localizada no municpio de Carmsia, em Minas Gerais, quando foram levados

    durante os anos de 1970, conforme veremos no captulo 1.

    Em relao aos Tupinikim, os Mbya mantiveram e ainda mantm intensas

    relaes histricas de contato, de trocas, de casamentos, de alianas em torno das lutas

    polticas pela terra e demais direitos, no enfrentamento de problemas comuns e nas

    relaes de presses intertnicas com a sociedade envolvente. Os dois povos interagem

    mutuamente na construo de suas identidades e nos processos de luta pela terra e pelos

    seus direitos coletivos.

  • 28

    Ao longo do tempo, tanto os Tupinikim como os Guarani sofreram processos de

    colonizao, com os deslocamentos, os aldeamentos, a catequese dos jesutas, a

    espoliao de seus territrios e as intensas relaes com os no ndios. Poderemos

    verificar que os Tupinikim e os Guarani so povos que possuem semelhanas na histria

    do contato com os no ndios, e ao mesmo tempo, apresentam-se distintos culturalmente.

    Uma diferena histrica fundamental entre eles que os Tupinikim ocupam o Esprito

    Santo desde tempos imemoriais, fato esse que garante direitos coletivos reconhecidos

    pelo Estado nacional a esse grupo tnico. Os Guarani Mbya se estabeleceram em 1967 e

    no possuem um territrio definido e demarcado para esse povo indgena, o que faz com

    que os Mbya busquem estratgias para garantir terras junto aos Tupinikim. No Esprito

    Santo, os dois povos indgenas, mesmo com suas especificidades, lutaram juntos em torno

    da questo da terra e no acesso aos direitos indgenas, negados ao longo do sculo XX.

    Tupinikim e Guarani conseguiram afirmar-se como indgenas protagonistas de sua

    prpria histria ao obterem a homologao das terras. Por conseguinte, ambos os povos

    ao afirmarem-se como ndios garantiram tambm o acesso ao cumprimento dos direitos

    indgenas, com ganhos nas reas de sade, educao, agricultura, saneamento, etc. Ambos

    os povos unidos na luta poltica pelo territrio, afirmam, entretanto, suas diferenas

    tnicas, culturais, ambientais e seus distintos modos de concepo de vida e de territrio,

    conforme analisaremos no captulo 1.

    As fontes analisadas constituem-se de depoimentos orais das lideranas

    polticas, religiosas, dos mais velhos e dos professores indgenas, de fotografias de acervo

    prprio e do movimento Rede Alerta Contra o Deserto Verde, jornais locais impressos e

    digitais como A Gazeta, A Tribuna e o jornal eletrnico Sculo Dirio, relatrios

    ambientais da PETROBRAS e da Associao de Gegrafos do Brasil (AGB), relatrios

    tcnicos da FUNAI (referentes aos anos de 1979, 1980, 1983, 1994, 1997, 1998, 2005,

    2006) e documentos do Conselho Indigenista Missionrio (CIMI). Os depoimentos orais

    e as entrevistas foram obtidos ao longo da pesquisa, desde o ano de 2005 no curso de

    mestrado em educao. Boa parte dos relatrios fundirios foram obtidos na FUNAI de

    Braslia. Alguns documentos foram pesquisados no CIMI em Braslia. Os relatrios

    ambientais e os jornais foram cedidos pela professora Celeste Ciccarone.

    Nossa metodologia empregada consiste na realizao de entrevistas, anlise dos

    documentos escritos e orais e o uso da Etno-histria. A Etno-histria por ns

    compreendida como uma metodologia que busca articular de forma interdisciplinar a

  • 29

    Antropologia e a Histria, sem, no entanto, tratar-se de uma justaposio de ambas31.

    Trigger considera que a abordagem no se constitui uma justaposio de temas, em que

    Histria e Antropologia analisam elementos de maneira separada, em interpretaes que

    no se articulam. Criada nos anos 1920 do sculo passado, a Escola dos Annales buscou

    realizar dilogo interdisciplinar com outras cincias, como a Sociologia, a Economia, a

    Antropologia. A partir dessa nova vertente histrica, houve uma nova forma de pensar a

    histria sob a perspectiva social e cultural e no apenas sob o ponto de vista da histria

    poltica. Dessa forma, a possibilidade de se inclurem novos sujeitos coletivos

    anteriormente invisibilizados permitiu a incluso maior de ndios, negros, operrios,

    mulheres na histria. Tambm passou-se a valorizar as diversas fontes histricas para

    alm dos documentos escritos, como objetos, imagens, fotografias, artefatos, mitos, ritos,

    etc.

    A Etno-histria procura pensar a histria elaborada pelos prprios grupos tnicos

    de forma interdisciplinar. Permite revisitar criticamente e compreender a historicidade

    dos termos cultura, tradio e identidade tnica. Os conceitos de cultura e identidade so

    considerados produtos histricos construdos por meio das complexas relaes sociais

    entre indivduos e grupos em contextos diferenciados e permitem anlises mais amplas

    acerca das relaes intertnicas. 32

    A Etno-histria prope uma abordagem da temtica indgena para alm da

    descrio do modo de vida e da cultura, pois visa ao aprofundamento das relaes

    intertnicas, da historizao do contato, da abordagem em uma perspectiva do conflito de

    interesses e do protagonismo indgena. Pressupe a possibilidade de cruzamento de fontes

    orais e escritas. Permite ao historiador que, para alm da anlise das fontes escritas, ele

    recorra pesquisa de campo para observar e aprofundar as informaes do documento,

    permite vivenciar as situaes indgenas e verificar como se do as relaes intertnicas,

    muitas vezes no relatadas nos documentos escritos.

    Conforme Almeida, as novas perspectivas da Etno-histria permitem ultrapassar

    uma srie de vises estereotipadas, preconceituosas e simplistas ao revelarem realidades

    de sociedades indgenas complexas, nas quais grupos tnicos e sociais interagem,

    influenciam-se e transformam suas culturas, histrias e identidades. 33

    31 TRIGGER, Bruce G. apud ALMEIDA, Maria Regina C. de. Histria e Antropologia. In: CARDOSO, Ciro F. VAINFAS, Ronaldo. Novos domnios da Histria. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, p. 151-168. 32 THOMPSON, MINTZ E BARTH apud ALMEIDA, 2012, p.151. 33 ALMEIDA, 2012,p.151.

  • 30

    Boccara lembra que ocorre uma releitura sobre a histria do passado e do

    presente dos povos indgenas e uma nova perspectiva de abordagem, pois se tem em

    considerao o ponto de vista indgena na reconstruo dos processos histricos. Alm

    disso, os historiadores e antroplogos buscam analisar os processos de resistncia, de

    adaptao e de mudanas deixando a velha dicotomia de tradio imemorial e diluio da

    identidade indgena por meio da aculturao imposta pelo outro. Por ltimo, a emergncia

    de grupos tnicos e as novas identidades, atravs de processos mltiplos de mestiagem

    e etnognese, revelam uma nova forma de se construir a histria indgena. Em suma, h

    uma nova reescrita das realidades indgenas em seu contexto histrico devido ao interesse

    por estratgias e discursos elaborados pelos nativos e por outro lado, h o rompimento

    das dicotomias (mito/histria, natureza/cultura, sociedades frias/quentes, pureza

    cultural/aculturao).34 Boccara defende a cultura como um processo conflitivo e poltico

    de construo do direito diferena.35

    Procuraremos, dentro da perspectiva da Etno-histria, ultrapassar os

    preconceitos sobre a questo indgena. Conforme Bessa Freire, existem cinco equvocos

    ao se tratar da temtica indgena no Brasil. O primeiro consiste em tratar os ndios como

    culturas atrasadas. Na verdade, os ndios possuem uma cultura complexa e sofisticada

    representada nas artes, na msica, na dana, na lngua, na religio. O segundo seria

    analisar as culturas indgenas como culturas congeladas, ou seja, exige-se do ndio que

    ele seja como em 1500, que seja um ndio autntico. Ocorre a necessidade de a histria

    indgena mostrar a violncia que esses povos sofreram, os conflitos pela terra e a histria

    do contato. O terceiro equivoco seria compreender o ndio com uma cultura nica e

    genrica. A funo da Histria e da escola seria ultrapassar esse equvoco pois no Brasil

    temos 305 etnias e 274 idiomas indgenas, segundo o IBGE (2010). O quarto equvoco

    seria relegar os ndios ao passado, negando-lhes sua modernidade, sua historicidade e sua

    transformao cultural. Por fim, o quinto equvoco seria afirmar que o brasileiro no

    ndio, ressaltando apenas sua matriz europeia.36

    O movimento indgena tem trazido tona a importncia dos sujeitos coletivos

    em torno da questo tnica, identitria e multicultural. A maior parte das anlises sobre

    34 BOCCARA, Guillaume. Mundos nuevos em las fronteras del Nuevo mundo: relectura de los processos

    coloniales de etnogensis, etnificacin. Mundo nuevo, nuevos mundos revista eletrnica. Paris. Disponvel

    em: www. ehess.fr/cerma.revuedebates.htm.2001, p.3. 35 BOCCARA, 2001, p.18. 36 FREIRE, Jos Ribamar Bessa. A imagem do ndio e o mito da escola. In: MARFAN, Marilda Almeida.

    Congresso Brasileiro de qualidade na educao: formao de professores. Educao escolar indgena.

    Braslia, 2002, v.4. p.93-99

  • 31

    os movimentos sociais no centram suas discusses na questo tnica. Com o avano dos

    movimentos sociais durante as dcadas de 1970 e 1980, os movimentos tnicos e

    identitrios ganharam relevncia e espao poltico, visto que esse reconhecimento acerca

    da diversidade representou um avano para a consolidao da democracia. Conforme

    Roberto Cardoso de Oliveira, nem etnia, nem classe, so fatos em si, seno que existem

    respectivamente em relao a etnias e classes, portanto, como entidades sociais

    pluralizadas37. Dessa forma, compreende-se que classe e etnia no apresentam

    delimitaes objetivas e independentes entre si em uma dada realidade social. Para

    Weber, grupos tnicos se constroem nas lutas polticas e criam costumes e culturas. A

    comunidade tnica possui um sentimento de identidade compartilhado que se constri por

    meio da ao poltica.38 Para Gellner, a nao engloba a ideia na qual um grupo quer

    persistir como comunidade, devendo incluir todas as espcies de comunidades que tem

    pouco a ver com as naes. (GELLNER, 1989). Para Connor (1978, 1993), a existncia

    das naes justamente a tomada de conscincia de si do grupo, que o distingue dos

    demais, mas ele liga essa afirmao nao como grupo mais amplo no qual os indivduos

    esto ligados por uma filiao ancestral.

    A cultura dinmica, mutvel e construda historicamente ao longo do tempo.

    A cultura no significa estar relacionada a uma sociedade esttica, simtrica e coerente

    em si mesma. Os atores atuam conforme seus interesses, suas experincias, seus passados

    e objetivos prprios. Os atores de um sistema social podem empregar uma variante

    cultural em vez de outra, sendo necessrio salientar que as relaes entre inteno, ato e

    consequncia so variveis. Pessoas em posies sociais distintas podem realizar as

    mesmas aes, ter intenes e consequncias distintas. As pessoas realizam suas aes

    baseadas principalmente em experincias e aprendizados passados que podem ser

    compartilhados de maneira uniforme ou no. 39

    Barth compreende cultura como algo que compartilhado por meio da

    experincia que por sua vez ocasiona aprendizados. A cultura no se localiza em algum

    lugar definido, mas deve-se identificar como ela est sendo produzida e reproduzida. A

    cultura, para Barth, apresenta uma enorme variao e ocorre de maneira contnua. Alm

    disso, existem descontinuidades mais ou menos abruptas e algumas ideias compartilhadas

    37 OLIVEIRA, Roberto Cardoso. Etnia e estrutura de classe: a propsito da identidade e etnicidade no Mxico. Anurio Antropolgico/79. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1979, p. 58. 38 WEBER, 1994, p.270. 39 MINTZ, Sidney W. Cultura: uma viso antropolgica. Tempo. Revista do Departamento de Histria da

    UFF, v.14, n.28, Niteri: EDUFF, 2010.

  • 32

    ou em contraste com outras. Ainda se deve pensar a cultura em um estado de fluxo

    constante porque est permanentemente sendo compartilhada pelas experincias das

    pessoas. 40 E. Thompson, ao estudar sobre a formao da classe operria inglesa,

    valorizou o cultural, associando-o ao conceito de classe e conscincia de classe, pois

    ambos se formam em conjunto, no processo histrico e fazem-se continuamente;

    combinam-se os condicionamentos e a ao humana. Para o autor, a cultura um produto

    dinmico que deve ser compreendido no processo histrico, no qual tanto mulheres

    quanto homens vivem suas experincias. 41

    O grupo tnico consiste em grupos humanos, que, em virtude de semelhanas

    nos costumes ou no habitus externo, ou em ambos os casos, ou em razo de lembranas

    de histrias de migrao e de colonizao, alimentam uma crena subjetiva na

    procedncia comum. Para Weber, os grupos tnicos se constroem nas lutas polticas e

    criam costumes e culturas. A comunidade tnica possui um sentimento de identidade

    compartilhado que se constri por meio da ao poltica.42

    Compartilhamos a ideia de Barth sobre o grupo tnico, pois o autor considera

    que este consiste em uma forma de organizao social, em que predomina a caracterstica

    da autoatribuio dos indivduos por meio da identificao e da atribuio por outros.

    Tanto Weber quanto Barth consideram que a ao poltica, o sentimento subjetivo de

    pertena e o carter organizacional so fatores fundamentais para a formao do grupo

    tnico. 43 Nesse sentido, Cunha converge com Barth ao compreender o grupo tnico como

    forma de organizao social em populaes cujos membros se identificam e so

    identificados como tais pelos outros. Os grupos tnicos diferem-se de outros por

    entenderem a si mesmos e serem percebidos ao longo da histria como contnuos, por

    possurem a mesma ascendncia independente da separao geogrfica. Para Cunha, a

    identidade tnica de um grupo indgena exclusivamente funo da autoidentificao e

    da identificao pela sociedade envolvente. Os grupos tnicos possuem mecanismos de

    adoo ou excluso dos indivduos, que depende da aceitao do grupo e supe disposio

    em seguir seus valores e traos culturais.44

    40 BARTH, Frederik. Etnicidade e o conceito de cultura. In: Antropoltica. Niteri, n. 19.2005, p.16-17. 41 THOMPSON, E.P. Misria da Teoria. Rio de Janeiro: Zahar, 1981. 42 WEBER, Op.cit.1994, p.270. 43 ALMEIDA, 2003, p.163. 44 CUNHA, Manuela C. da. Parecer sobre os critrios de identidade tnica. In: ______Antropologia do

    Brasil: mito, histria e etnicidade. 2. ed. So Paulo: Brasiliense, 1987, p.113-119.

  • 33

    Os Guarani Mbya do Esprito Santo formam-se enquanto grupo tnico por meio

    da luta poltica em busca do territrio indgena junto aos Tupinikim. Os Mbya afirmaram

    sua identidade tnica e ao mesmo tempo reconstruram um passado em comum, com base

    nas situaes e necessidades do presente. As lideranas polticas e religiosas privilegiam

    as narrativas do oguata por e atribuem um papel essencial xam Tatati Ywa Rete,

    como fundadora do aldeamento mbya no estado e tambm no estado do Rio de Janeiro e

    no estado de So Paulo. O passado comum da trajetria ao Esprito Santo foi escolhido

    para ser representativo e compartilhado para justificar a prpria existncia do grupo, para

    afirmar a importncia das lideranas polticas existentes e para valorizar sua histria e sua

    identidade tnica. Por outro lado, o grupo tnico apresenta-se unido e consciente de que

    sua identidade guarani diferenciada da de outros povos e agentes devido luta poltica

    pela terra junto aos Tupinikim contra a empresa Aracruz Celulose.

    Tomamos emprestado o conceito de territorializao de Oliveira que a define

    como um processo de reorganizao social que implica a criao de uma nova unidade

    sociocultural a partir do estabelecimento de uma identidade tnica diferenciadora, da

    constituio de mecanismos polticos especializados, da redefinio dos mecanismos

    polticos especializados, da redefinio do controle social sobre os recursos ambientais,

    da reelaborao da cultura e da relao com o passado.45

    Historicamente, os Tupinikim viveram nas aldeias do Esprito Santo e

    principalmente em Aracruz, onde se mantm h um longo tempo e acionavam sua

    identidade tnica indgena em momentos de luta pela terra e para reivindicar e garantia

    seus direitos indgenas. No perodo de 1967, com a instalao da empresa Aracruz

    Celulose e com a ao de vrios posseiros em seu territrio, os Tupinikim acionaram

    novamente sua identidade poltica de ndios para garantir a posse da terra. A histria do

    desenvolvimento e do processo de ocupao do campo no Brasil marcada por conflitos

    sociais desde sua origem. O territrio brasileiro foi produto da conquista e da destruio

    do territrio indgena.

    Os Guarani Mbya preservam seus espaos de Mata Atlntica e seus recursos

    naturais. A todo instante, os Mbya esto refletindo sobre sua prpria histria ao

    incorporarem elementos da histria local e nacional, inserindo-se como protagonistas e

    no meramente como expectadores. Some-se a esse fato a construo de sua prpria

    histria por meio da participao no campo das artes, em projetos culturais como filmes,

    45 OLIVEIRA, Joo Pacheco de. (org.). A viagem da volta: Etnicidade, poltica e reelaborao cultural no Nordeste indgena. 2. ed. Rio de Janeiro: Contra Capa/LACED, 2004, p.22.

  • 34

    peas de teatro e na elaborao de sua prpria histria por meio da produo de materiais

    didticos, livros, filmes e da construo da casa de memria onde h o resgate de sua

    chegada ao Esprito Santo.

    O processo de territorializao no se configura como mo nica, sendo externo

    e homogeneizador, pois a atuao dos ndios revela a afirmao da identidade tnica

    diferenciada sobretudo com matiz poltica46. Os Guarani Mbya diferenciam-se dos

    Tupinikim em muitos aspectos referentes religiosidade, cultura, lngua, s relaes

    ecolgicas com os recursos naturais.

    Este estudo ser dividido em quatro captulos. O primeiro captulo versar sobre

    a histria dos Guarani Mbya desde sua sada do Rio Grande do Sul, em 1940, at seu

    contato com os Tupinikim, ocorrido a partir de 1967. A histria dos Guarani Mbya do

    Esprito Santo encontra-se entrelaada histria dos povos indgenas Tupinikim e

    Krenak. A aliana dos Guarani Mbya junto aos Tupinikim possibilitou-lhes obter ganhos

    como os direitos sobre a terra e demais direitos indgenas. Em relao aos Krenak, os

    Guarani conviveram com esse povo durante o perodo militar na Fazenda Carmsia, em

    Minas Gerais e ambos os povos resistiram aos rgidos castigos e imposies do perodo.

    O contato com os Krenak ocorre ainda nos dias atuais por meio de visitas e alianas

    polticas contra a ao de empresas na rea indgena Krenak, em Minas Gerais.

    Analisamos neste captulo as questes da identidade tnica dos Guarani e dos Tupinikim,

    a formao do territrio guarani atravs dos deslocamentos, bem como discutimos os

    conceitos de migrao e mobilidade. Tentamos compreender como os deslocamentos so

    elementos formadores da identidade tnica dos Guarani Mbya. As fontes analisadas foram

    os relatrios da FUNAI e da PETROBRAS, jornais locais e depoimentos orais.

    O segundo captulo trata da histria do conflito fundirio no Esprito Santo,

    envolvendo os povos Tupinikim e Guarani Mbya e a empresa Aracruz Celulose.

    Verificamos como a disputa territorial indgena com a empresa possibilitou aos ndios seu

    protagonismo poltico na retomada do territrio por meio de diversas estratgias e por

    meio de alianas com agentes diferenciados, como polticos, rgos do governo, ONGS,

    entidades civis, igrejas, movimentos sociais, ambientalistas, etc. Analisamos a relao

    entre os povos Tupinikim e Guarani diante da conquista da terra e dos direitos sociais.

    Para tanto, as fontes analisadas foram os relatrios da FUNAI e da PETROBRAS, os

    jornais locais e as entrevistas orais.

    46 OLIVEIRA, 2004, p.28.

  • 35

    O terceiro captulo trata do panorama das organizaes indgenas no Brasil e no

    Esprito Santo, bem como as diferenas entre as lideranas tradicionais e as novas

    lideranas polticas. Discutimos os desafios para as organizaes indgenas do Esprito

    Santo. Dentre as fontes utilizadas, destacaram-se os relatrios do Ncleo

    Interinstitucional de Sade Indgena (NISI), do CIMI, relatrios da PETROBRAS,

    depoimentos orais, vdeos, CDs e DVDs de autoria mbya.

    O quarto captulo versa sobre a construo dos espaos polticos da identidade

    guarani, como a luta pela terra, as assembleias indgenas, a construo da histria e do

    Centro Cultural Tatati Ywa Ret. Podemos observar que os Guarani Mbya constroem sua

    histria e se apropriam dos espaos formando o territrio imaginado e afirmando sua

    identidade tnica. Vamos enfatizar a importncia da reelaborao das histrias e das

    memrias para a construo das identidades e da luta poltica. Destacam-se as fontes

    analisadas: depoimentos orais, produtos culturais, dissertaes e teses.

    Quanto grafia dos nomes indgenas, optamos por utilizar a normatizao da

    Associao Brasileira de Antropologia (ABA) da dcada de 1950 e em relao lngua

    guarani, baseamo-nos no Vocabulrio do Guarani, do Summer Institute of Linguistics

    (Dooley, 1982). O sistema fontico guarani formado pelas vogais A, O, E, I, U, Y que

    podem ser orais e nasais e pelas consoantes P, T, K (substituindo ca, co, cu, que, qui), J

    (som j, dj), R, X (som x, tch, ch, ts), V (som v ou u), G, G; MB, M, ND, D, NG, NH.

    Por vezes, utiliza-se o ou SS. As palavras guarani so apresentadas em itlico. Quando

    o termo guarani se referir ao povo utilizaremos letra inicial maiscula e, caso se refira

    lngua ou a outros elementos utilizaremos inicial minscula. 47

    47 A sistematizao da escrita do guarani foi adotada seguindo o modelo de Ladeira (2007)

  • 36

    1. A presena indgena no Esprito Santo

    Neste captulo, vamos abordar a histria dos povos Tupinikim e Guarani do

    Esprito Santo. Para se compreender a histria de um desses dois grupos tnicos faz-se

    necessrio tambm conhecer a histria do outro, pois ambos esto interligados e inter-

    relacionados. Os Guarani e os Tupinikim possuem histrias semelhantes em relao aos

    processos de colonizao, como a espoliao de seus territrios, a cristianizao, os

    deslocamentos, os trabalhos forados, os aldeamentos e as relaes e com os povos

    indgenas e os no ndios.

    Os dois povos so distintos culturalmente, possuem diferentes modos de vida e

    concepes de territrio. Entretanto, mesmo afirmando-se diferentes entre si, com suas

    especificidades culturais prprias, os dois grupos tnicos uniram-se na luta contra o

    inimigo comum em defesa de sua terra, a empresa Aracruz Celulose.

    Ao aliarem-se, os Tupinikim e os Guarani Mbya obtiveram ganhos histricos

    como a homologao de suas terras em uma luta que durou quase quarenta anos. Essa

    luta pelo territrio indgena tambm ocasionou o reconhecimento oficial dos Tupinikim

    enquanto ndios no Estado. A luta poltica dos dois povos em torno da terra garantiu-lhes

    tambm o acesso aos demais direitos como sade, educao, saneamento, trabalho, etc.

    Ao assumirem suas identidades como ndios, eles asseguraram por meio da luta poltica,

    os seus direitos outrora negligenciados. Primeiramente, trataremos dos Guarani Mbya,

    por serem nosso objeto de estudo, e, em seguida, recuaremos no tempo e analisaremos a

    histria dos Tupinikim.

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    1.1.Histria e deslocamentos guarani mbya

    Todos os que vieram para essas terras no vo esquecer

    to fcil. Vou guardar para o resto da minha vida, onde

    nossos avs pisaram, plantaram e procuraram passar

    para Nhanderu ret (o lugar de Nhanderu). Ns

    acreditamos em Nhanderu para que ele ilumine mais nossos pensamentos, para que sigamos o mesmo

    caminho de nossos avs antigos. 48

    Analisaremos nesta parte do captulo 1, a histria dos Guarani Mbya

    considerando a sua trajetria at a chegada ao Esprito Santo. Faz-se importante

    compreender que a histria dos Mbya entrelaada histria do contato com outros

    povos indgenas, como os Tupinikim, os Krenak e com a sociedade envolvente. Os novos

    caminhos percorridos pelos Guarani j tinham sido trilhados anteriormente pelos seus

    antepassados. No caso, a vinda dos Mbya ao Esprito Santo j fora relatada por

    Nimuendaju e consta dos relatrios do Servio de Proteo ao ndio (SPI). Essa trajetria

    guarani foi realizada por lderes xamnicas, o que imprime peculiaridade a esse

    deslocamento indgena. O deslocamento guarani teve diversas causas, porm

    principalmente, queremos relatar que o motor propulsor dessa caminhada a busca pela

    terra, so os conflitos fundirios e os conflitos intertnicos. E por fim, a construo da

    identidade guarani d-se tambm com a busca pelo territrio adequado, que inclui

    condies socioambientais apropriadas ao seu modus vivendi, sobretudo, vincula-se

    busca e luta pela terra.

    Queremos comprovar que a identidade guarani se elabora por meio da realizao

    dos seus deslocamentos ou caminhadas, oguata por, pois de acordo com Benedict

    Anderson, no seu livro Comunidades imaginadas, os criollos realizavam viagens

    constantes ao longo do Atlntico, fato esse que lhes possibilitava perceberem-se

    diferentes dos espanhis e desejarem uma comunidade distinta da metrpole

    colonizadora.49 Tomamos a ideia das viagens de Anderson aplicada ao caso dos Guarani

    Mbya em relao aos deslocamentos. Assim so tambm os Guarani Mbya, tomando-se

    48 Depoimento de um jovem do litoral do Brasil em visita s aldeias do Paraguai e Argentina, 1997, apud

    Ladeira, 2001, p. 72. 49 ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexes sobre a origem e a difuso do nacionalismo. So Paulo: Companhia das Letras, 2008.

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    em conta os distintos contextos, pois so o nico subgrupo a realizar oguata por ainda

    nos tempos atuais. Os deslocamentos desses ndios proporcionam o compartilhamento de

    um sentimento de pertencimento ao povo Guarani Mbya, por meio de visitas a parentes,

    de casamentos, de trocas de sementes, de alianas polticas, de conflitos internos e de

    contatos com a sociedade envolvente em razo das presses intertnicas e dos conflitos

    fundirios.

    Durante muito tempo, estes deslocamentos foram considerados pelos

    antroplogos como motivados unicamente pela crena mtico-religiosa na Terra sem Mal,

    Yvy marey (CLASTRES, 1990; NIMUENDAJU,1987). Embora esses trabalhos tenham

    tido suma importncia na abordagem dos mitos e da religio guarani, discordamos do fato

    de que a crena na Terra sem Mal seja o fator motivador exclusivo dos deslocamentos.

    Tambm refutamos o termo migrao, pois est imbudo desse aspecto mtico-religioso

    como motivador dos deslocamentos (LADEIRA, 2007,2008; CICCARONE, 2001).

    Essa caracterstica dos Guarani Mbya de sempre se deslocarem e buscarem um

    territrio prprio multiplica os debates no campo da Etnologia guarani. O que queremos

    aqui considerar esses deslocamentos numa perspectiva histrica, conflitiva e identitria

    no mbito das interaes sociais com diversos agentes, como os outros povos indgenas,

    a sociedade envolvente e o Estado. Nesse sentido, o deslocamento inserido no conceito

    de mobilidade engloba tanto os movimentos de origem religiosa quanto os que

    apresentam motivaes diversas. A mobilidade apresenta-se como uma possibilidade de

    estratgia de negao diante das tentativas integracionistas e assimilacionistas da

    sociedade nacional.50 A mobilidade caracteriza-se em um movimento de circularidade,

    motivado por aspectos socioculturais (casamentos, visitas, disputas poltico-religiosas) ou

    econmicos (mudanas de locais de cultivo). A circularidade do movimento constitui um

    espao conhecido e delimitado conhecido como territrio51.

    Oguata por age promovendo movimentos de desterritorializao que consistem

    na perda do territrio original, ao menos de um territrio contnuo e os Guarani Mbya

    utilizam como soluo para a ampliao possvel dos seus espaos o movimento de

    reterritorializao, isto , um processo de relocalizao do espao.52 No caso dos Mbya

    devido aos conflitos fundirios e s presses intertnicas, os ndios reelaboram seu

    50 GARLET,1997, p. 16. 51 Ibid, p.17. 52 Ibid., p.18.

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    territrio por meio dos deslocamentos e formam novos aldeamentos, incorporando

    ambientes ecologicamente desejados para o seu modo de vida.

    Partilhamos com Garlet, a ideia de que a mobilidade guarani apresenta uma

    combinao de traos culturais com o impacto intertnico, isto , um resultado de uma

    cultura historicamente construda, que possui elementos que se combinam e se rearranjam

    conforme o momento histrico.53

    Deslocar-se faz parte da lgica constitutiva do ser guarani; mover-se

    movimentar o corpo e o esprito. Entretanto, veremos que o deslocamento do povo

    Guarani Mbya do Rio Grande do Sul ao Esprito Santo, realizado durante quase 30 anos,

    teve causas histricas. E eis que a principal questo motivadora desses deslocamentos

    a terra e os conflitos fundirios com a sociedade envolvente.

    Nas vises da sociedade envolvente e do Estado, a caracterstica de mobilidade

    dos Guarani Mbya vista de forma negativa e preconceituosa, por meio de classificaes,

    como nmades, errantes, aculturados e oriundos do Paraguai.54 Tais denominaes

    representam concepes de mundo, identidade e territrio distintos dos Mbya,

    promovendo dificuldades para que esses povos consigam ter o acesso legal sobre as terras

    porque se realiza uma manipulao da identidade indgena. Entret