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1 Juciane Beatriz Sehn da Silva TERRITORIALIDADE KAINGANG: UM ESTUDO HISTÓRICO DA ALDEIA KAINGANG LINHA GLÓRIA, ESTRELA – RS Monografia apresentada na disciplina de Trabalho de Conclusão II, do Curso de História, como exigência parcial para obtenção do título de Licenciada em História. Orientador: Prof. Dr. Luís Fernando da Silva Laroque Lajeado, julho de 2011

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Juciane Beatriz Sehn da Silva

TERRITORIALIDADE KAINGANG: UM ESTUDO

HISTÓRICO DA ALDEIA KAINGANG LINHA GLÓRIA, ESTRELA – RS

Monografia apresentada na disciplina de

Trabalho de Conclusão II, do Curso de

História, como exigência parcial para

obtenção do título de Licenciada em

História.

Orientador: Prof. Dr. Luís Fernando da

Silva Laroque

Lajeado, julho de 2011

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Os indígenas brasileiros, no Rio Grande do Sul, como em todo o mundo, são iguais a todos os povos e ao mesmo tempo tem o direito, como todos os povos, a ser diferentes (Matte,2009).

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AGRADECIMENTOS

Ao final de nove anos dedicados ao Curso de História, são inúmeras as

pessoas a quem devo agradecer nesse momento. Seja pelo incentivo em continuar

nesse caminho ou pela compreensão e paciência nas horas ausentes.

Aos meus filhos, Jonas e Rafael, motivo pelo qual me orgulho muito e que

foram meus apoiadores incondicionais para continuar nesta caminhada, pelo carinho

e amor dispensados.

Ao meu companheiro Bruno, pelo amor, carinho, ajuda e compreensão em

todas as horas.

À minha família, por tudo e muito mais... Em especial, à minha mãe Ivone (in

memória) e a uma grande amiga, Márcia Dresch (in memória), pelo exemplo de vida,

força e dedicação e por acreditar que eu era capaz.

Ao meu orientador, Luís Fernando da Silva Laroque, que suscitou em mim o

desejo pela pesquisa sobre a temática indígena Kaingang durante o Curso de

História, pela leitura crítica dos capítulos desta monografia e pertinentes indicações

bibliográficas – sempre inspiradoras.

À Maria Ione Pilger pelo apoio incondicional dado a este trabalho, pelo

exemplo de humanidade, respeito e confiança.

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À professora, Dra. Neli Teresinha Galarce Machado, por ter aceito participar

como segunda avaliadora desta monografia.

Ao Projeto de Extensão “História e Cultura Kaingang em Lajeado e

Estrela/RS”, coordenado pelo professor Dr. Luís Fernando da Silva Laroque e pela

representante do COMIM, Maria Ione Pilger, por ter me possibilitado abertura junto à

Promotoria Pública de Lajeado, bem como à Aldeia Linha Glória onde obtive muitos

dados essenciais para desenvolver esta monografia.

Aos professores do curso de História que ajudaram na minha formação, a

todos eles: Luís Fernando da Silva Laroque, Maribel Girelli, Mateus Dalmaz, Silvana

Faleiro e Neli T. Galarce Machado, muito obrigada.

À comunidade indígena Kaingang da Aldeia Linha Glória e também às

lideranças das aldeias Morro do Osso, em Porto Alegre e Por Fi, em São Leopoldo,

pela disponibilidade de informações e riquíssima contribuição neste trabalho.

A direção da Escola Municipal D. Pedro I pela compreensão, apoio e ajustes

necessários no decorrer de minha formação acadêmica e em especial na realização

desta monografia.

Há também um número muito grande de amigos, amigas, colegas do Curso

de História aos quais não conseguiria agradecer nome por nome, mas sei que todos

irão reconhecer-se em minha gratidão.

A todos e a todas, um “muito obrigado” especial...

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RESUMO

Este estudo aborda a trajetória histórica do grupo que atualmente constitui a aldeia Kaingang Linha Glória, em Estrela, bem como a luta deste grupo para fazer valer seus direitos, sobretudo a questão do direito originário a terra. Como base teórica para a análise dos dados estudados, utilizamos autores cujas obras puderam contribuir para as questões por nós pesquisadas, tais como Barth ([1969] 2000), Seeger e Castro (1979), Brandão (1986) e Martins (1997). O estudo foi realizado baseando-se em fontes bibliográficas, material historiográfico (artigos, ensaios e dissertações de mestrado e doutorado) e em fontes documentais, tais como jornais e documentos do Ministério Público Federal. Além disso, nos utilizamos também da metodologia de História Oral durante a pesquisa de campo, tanto na aldeia de Estrela, como no contato com as autoridades ligadas à pesquisa. Desta forma, aspectos culturais, sociais e políticos como educação, saúde, legalização e ampliação da atual área de terras, e os impactos na aldeia decorrentes da duplicação da BR 386 serão objetos de investigação e análise. Todas estas questões estarão diretamente vinculadas à relação sócio-política-cosmológica do grupo com o território ocupado. Pretendemos, também, demonstrar os sentidos da territorialidade dos Kaingang da aldeia Linha Glória no atual espaço ocupado e como este grupo têm sido agente de sua própria historicidade, diante de realidades adversas como a duplicação da BR 386.

Palavras-chave: Kaingang. Direitos. Território. Aldeia Linha Glória.

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

AID: Área de Influência Direta

AISAN: Agente Indígena de Saneamento

CAPS: Centro de Apoio Psico-Social

CEPI: Conselho Estadual dos Povos Indígenas

COMIN: Conselho de Missão entre os Índios

DNIT: Departamento Nacional de Infra-estrutura e Transporte

FUNAI: Fundação Nacional do Índio

FUNASA: Fundação Nacional da Saúde

IBAMA: Instituto Brasileiro de Meio Ambiente

LDBEN: Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional

SPI: Serviço de Proteção aos Índios

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO........................................................................................................08

2 ASPECTOS HISTÓRICOS DO GRUPO KAINGANG NA ALDEIA LINHA GLÓRIA E OS SENTIDOS DE SUA (RE) TERRITORIALIDADE............................................27

2.1 Trajetória histórica do Grupo Kaingang da Aldeia Linha Glória....................34

2.2 Terras x Território: sentidos de sua territorialidade.......................................45

3 OS EFEITOS DA DUPLICAÇÃO DA BR 386 NA ALDEIA KAINGANG LINHA GLÓRIA......................................................................................................................51 3.1 Medidas “Compensatórias” x Direitos Indígenas...........................................53

3.2 O indígena Kaingang como agente de sua própria historicidade:compassos e descompassos frente à duplicação.....................................................................67

4 ESPAÇO E CULTURA: SAÚDE E EDUCAÇÃO NA PAUTA DAS LUTAS E CONQUISTAS DO GRUPO KAINGANG DA ALDEIA LINHA GLÓRIA...................73 4.1 Saúde indígena Kaingang num contexto ambiental e xamânico...................74

4.2 Escola Estadual Indígena de Ensino Fundamental Manoel Soares..............88

CONCLUSÃO..........................................................................................................104

REFERÊNCIAS........................................................................................................108

ANEXOS..................................................................................................................117

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1 INTRODUÇÃO

No decorrer da história, mais precisamente nos séculos XIX, XX e XXI, os

Kaingang tiveram seus territórios invadidos e confiscados pelos colonizadores.

Tentou-se confiná-los em reservas indígenas e passaram a viver em partes

reduzidas de seus imensos territórios, na condição de tutelados e administrados. À

medida que foram sendo expropriados de seus territórios, cidades e fazendas

invadiram suas terras e tomaram conta do ambiente e dos recursos florestais que

garantiam sua sobrevivência.

As condições concretas de vida nas reservas foram se deteriorando a medida

que não houve uma política de investimentos por parte do Estado voltada para a

auto-sustentabilidade das áreas indígenas. Além disso, tanto as administrações do

SPI quanto as da FUNAI, foram responsáveis pela degradação ambiental crescente

ocorrida em ambientes indígenas Kaingang.

Inúmeros fatores como o aumento das populações nas reservas, o

empobrecimento do solo, a quase inexistência de florestas, e em consequência o

desaparecimento da fauna e da flora, dentre outros, dificultaram a reprodução física

e sociocultural dos grupos indígenas. Estes fatores acabaram por impulsionar

inúmeras famílias Kaingang para os núcleos urbanos.

Sendo assim, uma das especificidades da questão indígena está diretamente

relacionada a terra, por ser esta uma questão crucial para a sua sobrevivência física

e cultural. Poderia apontar ainda o fenômeno da urbanização recente das

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populações indígenas, como sendo outro aspecto peculiar relacionado à realidade

atual, do qual fazem parte os indígenas Kaingang.

O tema proposto deste trabalho tem como recorte temporal a segunda

metade do século XX, e as duas primeiras décadas do século XXI, mais

precisamente o período compreendido entre os anos de 1960 e 2011. O recorte

temporal da segunda metade do século XX deve-se ao fato de ser este o período em

que o grupo teria se instalado no local ocupado atualmente. Quanto à delimitação

final, como as primeiras décadas do século XXI é em decorrência de uma das

problemáticas propostas neste estudo que envolve a duplicação da BR 386. A

delimitação espacial abrange territórios ocupados pela comunidade Kaingang Linha

Glória, município de Estrela, no estado do Rio Grande do Sul. De acordo com as

necessidades, poderemos fazer uma dilatação sobre outros espaços Kaingang no

Rio Grande do Sul para uma melhor compreensão do assunto.

Ressaltamos que, ao longo do trabalho, poderemos nos reportar a momentos

anteriores ou posteriores a esta delimitação, objetivando melhor compreensão do

tema em análise. Atentamos para essa nossa delimitação final, onde é proposto o

início das obras de duplicação da BR 386, o que traz a tona a problemática

relacionada a terra e à luta indígena pela garantia de seus direitos.

A proposta deste estudo parte das seguintes problematizações: Quais os

sentidos da territorialização do espaço ocupado e de que forma eles se relacionam

com a história do grupo? De que forma o grupo relaciona-se com o espaço urbano

ocupado (social, política e economicamente), quais as transformações e

permanências culturais e quais os efeitos na aldeia, decorrentes da duplicação da

BR 386, em termos territoriais, políticos e ambientais?

Inicialmente levantamos duas hipóteses para responder aos

questionamentos, sendo estas elucidadas no decorrer do trabalho. A primeira delas

é que a mobilidade sempre fez parte da lógica de sobrevivência Kaingang.

Ressaltamos ainda que a concepção indígena de território possui uma dimensão

sócio-político-cosmológica muito ampla. Sendo assim, a relação histórica do grupo

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com o espaço ocupado se deve pelo fato, de no passado, já terem habitado aquele

local e os antepassados terem ali enterrado os seus umbigos.

Em relação a uma segunda hipótese, acreditamos que diante da

impossibilidade crescente de viverem segundo seu modo de vida tradicional devido

à destruição dos ecossistemas variados que garantiam à sua sobrevivência,

atualmente os indígenas Kaingang, buscam fixar-se no meio urbano para vender seu

artesanato e acessar os órgãos públicos. Sobre as transformações e permanências

culturais, afirmamos que ao longo de sua história de contato com o branco, os

indígenas Kaingang mantiveram grande parte de seus costumes antigos, porém

como nenhuma cultura é estanque, também houve transformações e foram

englobando novos padrões de acordo com os princípios da lógica nativa. Sobre as

implicações para o grupo no que se refere à duplicação da BR 386, acreditamos que

reduzirá o território da aldeia e trará enormes danos ao meio ambiente que é de

fundamental importância para a sobrevivência do grupo.

O objetivo geral deste trabalho é estudar a história dos Kaingang

estabelecidos no território de Estrela, município do Vale do Taquari, no Rio Grande

do Sul, dando uma maior visibilidade ao grupo como sujeitos históricos e como tal

portadores de direitos.

Neste sentido, a partir do foco principal deste trabalho, propomos os

seguintes objetivos específicos:

a) Tecer uma reflexão crítica sobre a situação atual da comunidade Kaingang Linha

Glória, em Estrela;

b) Perceber as transformações e permanências do indígena Kaingang no meio

urbano atual;

c) Analisar qual a relação do grupo com o território ocupado e a luta pela garantia

do espaço conquistado;

d) Compreender em que medida a duplicação da BR 386 vai impactar no grupo

Kaingang de Linha Glória – Estrela;

O interesse pela pesquisa sobre a aldeia indígena Kaingang de Linha Glória -

Estrela se deve pela importância histórica, social e cultural deste grupo, que vem

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nos últimos anos “mostrando-se” de forma mais atuante na sociedade na qual está

inserida, despertando uma maior visibilidade. Diante desta questão, nasce o desejo

de desenvolver um trabalho que contribua para a revitalização histórica deste grupo

indígena, que até o presente momento, excetuando laudos antropológicos, não tem

um trabalho monográfico tratando de sua historicidade. Pretende-se, também,

realizar um aprofundamento dos estudos, sobre os quais poderá fazer-se uma

análise mais detalhada da realidade cultural e social dos Kaingang de Linha Glória,

Estrela.

Os Kaingang da Aldeia Linha Glória/Estrela vem despertando, já há bastante

tempo, reações diversas dos órgãos públicos e da sociedade em geral, que muitas

vezes pela falta de conhecimento, utiliza discursos impregnados de preconceitos e

olha o grupo como um “problema”. Realizar este trabalho de pesquisa é algo de

extrema importância, tendo em vista a existência de pouquíssimos estudos

específicos (ou a sua inexistência) sobre os Kaingang no Vale do Taquari e pelo

significado social do grupo, que merece ser reconhecido, e por tudo o que ainda é

possível conhecer e aprender sobre as populações indígenas.

Uma pesquisa não se esgota em si mesma, o que também acontece com os

Kaingang em questão devido ao patrimônio cultural que possuem. Neste sentido, ela

poderá servir como possibilidade de despertar inúmeras outras pesquisas,

ampliando assim o conhecimento sobre a população indígena Kaingang e de forma

mais pontual sobre a comunidade de Linha Glória, em Estrela.

Como base teórica para a análise dos dados relacionados ao tema que

estamos estudando, faremos uso de autores, cujas obras possam contribuir para

algumas das questões abordadas na pesquisa sobre os indígenas Kaingang e assim

permearem reflexões e decisões metodológicas durante a realização deste trabalho.

Fredrik Barth através do ensaio “Os grupos étnicos e suas fronteiras” ([1969],

2000) procura teorizar a ideia de “fronteiras étnicas” como sendo uma categoria que

define o grupo pelas diferenças numa situação de interação, de contato. A ênfase de

Barth (2000) para o caráter de fronteiras étnicas está em demonstrar que as

diferenças culturais podem persistir apesar do contato interétnico e da

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interdependência entre etnias. Desta forma, Barth afirma que a fronteira étnica

implica uma organização bastante complexa, do comportamento e das relações

sociais. A identificação de uma outra pessoa como membro de um mesmo grupo

étnico implica um compartilhamento de critérios de avaliação e de julgamento, e

também uma estruturação das interações que permitam a persistência das

diferenças culturais.

Ao versar sobre grupos étnicos, o antropólogo norueguês Fredrik Barth (2000)

aponta para a complexidade do termo e afirma que o reconhecimento de um grupo

no sentido organizacional acontece quando os atores, tendo como finalidade a

interação, usam identidades étnicas para categorizar-se e categorizar os outros.

Neste sentido, as características levadas em conta são aquelas que o grupo

considera como significativas. Completando sua ideia, Barth (2000) ressalta que

pertencer a uma categoria étnica implica ser um certo tipo de pessoa e ter

determinada identidade básica, isto também significa reivindicar, ser julgado e julgar-

se a si mesmo de acordo com padrões que são relevantes para tal identidade.

Antony Seeger e Eduardo B. Viveiros de Castro, ao abordarem a situação das

“Terras e Territórios Indígenas no Brasil” (1979), enfatizam que é preciso sublinhar a

diferença entre um conceito de terra como meio de produção e o conceito de

território tribal, sendo este, de dimensões sócio-político-cosmológicas mais amplas.

Neste sentido, o território possui significados diferentes para diferentes grupos

indígenas, e a construção de sua identidade está diretamente ligada a uma relação

mitológica com um território. Ao citar os grupos Jê, por exemplo, Castro e Seeger

(1979), destacam que por se apoiarem em adaptações mais móveis ao meio

ambiente não definem sua identidade a uma geografia determinada.

Carlos Rodrigues Brandão na obra “Identidade e Etnia: Construção da pessoa

e resistência cultural” (1986) trabalha conceitos fundamentais para a compreensão

do termo “identidade” e da concepção de etnia em se tratando de populações

indígenas. Em vista disto, propõe a compreensão de como as sociedades vão

construindo a ideia de pessoa e de como a identidade se constitui como uma

categoria de atribuição de significados em relações interétnicas. Desta forma, a

identidade tem a ver também com o “ser” no grupo, ou seja, é “uma identidade que é

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dele, como uma pessoa, mas que é também, fatalmente, a do grupo, através dele”

(Brandão, 1986, p.42, grifo do autor).

Sobre o conceito de “pessoa”, Brandão (1986) utiliza como exemplo, o grupo

indígena Zuniu da América do Norte, para mostrar que na concepção deste grupo,

há personagens, pelos quais passam sujeitos, cujas vidas os tornam vivos e assim

preservam as suas vidas simbólicas. Nesta lógica não há pessoas, mas papéis e

personagens definidos dentro de um grupo social. De uma forma geral, esclarece

ainda que pessoa é também uma “ideia”, uma “categoria ideológica”, uma

“representação social” articulada pelas diversas sociedades e suas culturas ao longo

da história.

A obra “A voz do passado – História Oral” ([1988] 2002), de Paul Thompson,

além de ser um clássico, respalda a escolha metodológica a ser aplicada neste

projeto de pesquisa, na medida em que aborda o método da “História Oral”

indicando os procedimentos a serem utilizados e cuidados a serem observados para

se obter êxito na atividade de bem entrevistar. Critérios estes que vão desde a

elaboração das perguntas, conhecimento prévio do tema e do entrevistado,

armazenamento e catalogação dos dados e por fim a interpretação, ou seja, a

construção da História, que deve ser precedida do cruzamento e análise de outras

fontes históricas.

Para Thompson (2002), enquanto os historiadores estudam os atores da

história a distância, a caracterização que fazem de suas vidas, opiniões e ações

sempre estará sujeita a ser descrições defeituosas, projeções da experiência e da

imaginação do próprio historiador. A evidência oral, transformando os “objetos” de

estudo em “sujeitos”, contribui para uma história que não só é mais rica, mais viva e

mais comovente, mas também mais verdadeira.

Através da obra “Cultura: um conceito antropológico” ([1988], 2004), Roque

de Barros Laraia procura demonstrar que não existe um consenso por parte dos

antropólogos na compreensão exata do conceito de cultura. Indica que o conceito de

cultura, como utilizado atualmente, foi definido pela primeira vez pelo antropólogo

Edward Tylor (1832) como sendo todas as possibilidades de realização humana.

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Neste sentido, Laraia procura caracterizar cultura como algo dinâmico e conclui em

seu estudo que “cada sistema cultural está sempre em mudança. Entender esta

dinâmica é importante para atenuar o choque entre as gerações e evitar

comportamentos preconceituosos” (LARAIA, 2004, p.101).

Paul E. Little ao exemplificar o caso dos índios Lakota (Sioux), dos Estados

Unidos, por meio do artigo intitulado “Espaço, memória e migração. Por uma teoria

de reterritorialização” (1994), teoriza a ideia de “reterritorialização”, pela qual grupos

indígenas vêm reivindicar antigos espaços ocupados por eles e que se justifica a

partir da ótica da memória coletiva do grupo. Cada grupo deslocado procura de uma

forma ou de outra, sua relocalização no espaço. A recuperação da terra originária

fixa-se na memória como uma necessidade existencial.

José de Souza Martins através de seus estudos sobre fronteira,

desenvolvidos na obra “Fronteira: A degradação do outro nos confins do humano”

(1997), expõe de forma singular a maneira como ele concebe fronteira. Para Martins

(1997), fronteira é essencialmente o lugar da alteridade, do encontro dos que por

diferentes razões são diferentes entre si. Em vista disto, enfatiza que a fronteira é a

situação de conflito social, e a um só tempo, um lugar de descoberta do outro e de

desencontros marcados pelas diferentes concepções de vida, visões de mundo e

temporalidades históricas.

Antônio Brand em seu artigo “História oral: Perspectivas, questionamentos e

sua aplicabilidade em culturas orais” (2000), faz uma importante análise dos critérios

a serem considerados no uso da técnica de História Oral como um recurso

metodológico, demonstrando que, no seu entendimento, história oral, seriam as

técnicas de registro e interpretação das evidências orais ou das memórias

individuais ou coletivas, transmitidas oralmente. Aborda questões relacionadas à

escolha dos informantes e ao encaminhamento das entrevistas e problemas

referentes à interpretação do material, bem como da viabilidade e cuidados

metodológicos no uso desta técnica na abordagem de culturas orais e de

historicidade própria, como é o caso das populações indígenas.

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Para Brand (2000), em se tratando de culturas orais, talvez seja mais correto

afirmar que lembrar é reviver, refazendo, reconstruindo, repensando a partir do

impacto da realidade. O ato de narrar já é também um ato de transformação. Porém

considera ainda como questão fundamental, a passagem da história oral para a

escrita sem alterar ou trair a historicidade específica de cada povo. Brand (2000) ao

citar Mazzoleni (1992), enfatiza a ideia de que a pesquisa histórica pode recuperar

uma dimensão diacrônica das culturas orais, ou as fontes orais podem servir para

reconstruir o “passado” dos povos não-letrados, por se tratar de povos que se

orientam a partir de outra lógica de tempo.

Através do artigo “História Oral: uma proposta metodológica em parceria com

os índios Terena em Campo Grande” (2000), Vanderléia Paes Leite Mussi apresenta

a história oral como suporte teórico metodológico para as investigações realizadas

na pesquisa junto aos indígenas Terena, sendo este método recriado e reelaborado,

resultando em uma proposta singular, construída a partir de um largo período de

contato prévio com o grupo. A novidade apresentada na utilização do método de

história oral é justamente o caráter de “parceria”, ou melhor, de interação do método

que é compartilhado com os indígenas Terena, que cumprem o papel de locutores e

interlocutores no processo de construção da sua própria história de vida.

Na execução do método, Vanderléia Paes Leite Mussi (2000) chama a

atenção para os passos que foram seguidos. Partindo inicialmente de um estudo

sobre os critérios e técnicas que melhor se encaixariam a cultura estudada, procurou

então explicar a proposta da pesquisa e, além disso, compartilhou a

responsabilidade do resultado com o grupo. Num terceiro momento houve a

elaboração de instrumentos de entrevista e num quarto momento a efetivação

destes, recorrendo às anotações e gravações. Feito isso, partiu para a transcrição

das fitas, tabulação dos dados e por final a análise. No processo de intermediação

do contato, bem como na transcrição das fitas, houve a parceria de alguns indígenas

Terena.

Neste processo de utilização do método de história oral, Mussi (2000) ressalta

que o discurso elaborado pelos indígenas, no caso em questão, os Terena, são

pensados a partir de uma ordem simbólica da cultura, cujos significados, muitas

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vezes, só podem ser entendidos dentro de um contexto. Ressalta que há uma lógica

de pensamento distinta, que deve ser respeitada como tal. Por isso, destaca a

importância da relação de confiança entre o pesquisador e o seu interlocutor para

que possa ser possível decodificar os significados existentes dentro da ordem

cultural do grupo.

A obra “Antropologia para quem não vai ser antropólogo” (2005), de Rafael

José dos Santos apresenta uma importante contribuição para o entendimento e

reflexão do significado de “cultura”, na medida em que procura demonstrar que a

Antropologia contemporânea é tida como um conjunto de métodos, técnicas de

pesquisa, análises, explicações e interpretações onde entra em jogo o encontro com

o “outro”, em um processo denominado de relações de alteridade. Podendo ser este

outro, uma “outra cultura”, o autor procura demonstrar que há uma imensa

diversidade cultural, que implica a existência de diferenças, mas não desigualdades,

no sentido de bem ou mal, melhor ou mais primitiva, e que as diferenças passam a

ser sinônimas de desigualdades quando inseridas em relações de dominação e

exploração (SANTOS, 2005).

Na execução desta pesquisa, procuramos inicialmente realizar uma revisão

bibliográfica de obras que tratam sobre os Kaingang desde o contato inicial com os

colonizadores, no decorrer dos séculos XVI, XVII, XVIII e XIX. Também nos

propomos a fazer o mesmo em material historiográfico relacionado à temática

(artigos, ensaios e dissertações de mestrado e doutorado) que aborde sobre os

indígenas Kaingang, ao menos tratando-se de Rio Grande do Sul. Pesquisamos

principalmente sobre os grupos Kaingang no final do século XX e início do século

XXI, localizados em áreas urbanas.

Realizou-se a pesquisa documental no jornal “O Informativo do Vale” junto ao

Arquivo Público de Lajeado, no jornal “Nova Geração”, de Estrela, junto à sede do

próprio jornal, no jornal “A Folha de Estrela”, disponível na Biblioteca Pública de

Estrela e na Procuradoria Regional da República da 4ª Região.

Dentre as fontes documentais pesquisadas nos referidos jornais, tivemos

acesso a um acervo composto por manchetes e artigos relacionados, por sua vez, à

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questão indígena, nos mais diversos aspectos, bem como de forma mais enfática,

uma publicação maior durante as negociações referentes à duplicação da BR 386.

Pudemos perceber, na maioria das reportagens, uma visão preconceituosa que

atende a uma elite capitalista e que acaba influenciando opiniões errôneas com

relação ao grupo indígena localizado em Estrela. Por fim, apontamos documentos da

Procuradoria Estadual da República de Lajeado, composto por análise pericial, Atas,

Certidão, Ofícios, Parecer e Procedimentos Administrativos referentes a

negociações, intervenções e reuniões feitas pela Procuradoria, junto à FUNAI,

FUNASA, Secretaria Estadual de Educação, Secretaria da Saúde e Assistência

Social de Estrela e sobre questões relacionadas à área de terra, moradia, saúde e

educação. Tivemos acesso ainda a dois Laudos Antropológicos elaborados em 2008

e 2010, objetivando realizar um estudo técnico da realidade e demandas da aldeia

Linha Glória como parte integrante do Estudo de Impacto Ambiental, decorrente da

duplicação da BR 386.

Através do relato “Comunidade Indígena Kaingang/Estrela/RS” (2002)

organizado por Loraci Birck, pretende-se, de forma objetiva descrever o que se

conseguiu registrar a respeito da história da Comunidade indígena Kaingang/Estrela,

bem como apresentar a realidade em que vivem as famílias, procurando destacar

ações realizadas na tentativa de contribuir para melhorar a qualidade de vida dos

indígenas Kaingang.

A análise antropológica realizada por Miriam Chagas denominada “Estudo

sobre os Kaingang de Estrela” (2005) tem por objetivo realizar uma diagnose da

situação em que vive a comunidade Kaingang em Estrela, para trazer subsídios à

atuação da Procuradoria da República em Lajeado. A análise procura responder

questões sobre a área que ocupam, quantas famílias são moradoras no local, qual

sua composição, suas atividades de subsistência, sua inserção em programas

sociais, problemas, conflitos e expectativas comunitárias. Este estudo é muito

importante na medida em que apresenta diversos dados atuais da aldeia Kaingang

Linha Glória, bem como apresenta uma retrospectiva histórica do grupo.

O relatório produzido por Jaci Rocha Gonçalves denominado “Antropologia na

área de duplicação da BR 386, Triunfo, Tabaí, Taquari, Fazenda Vila Nova, Bom

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Retiro do Sul e Estrela – RS Aldeia Kaingang TI Estrela” (2008), é um estudo de

caráter multidisciplinar sobre a comunidade indígena em questão, tratando-se de

uma pesquisa atual dos Kaingang com o objetivo de demonstrar a importância do

grupo e sobretudo da garantia do território para sua sobrevivência. Propõe a partir

do que foi levantado, alternativas para amenizar os impactos decorrentes da

duplicação. Está dividido em duas partes, sendo que a segunda parte foi elaborada

pelo antropólogo Alexandre Magno de Aquino (2008a), o qual apresenta um

contexto sócio-histórico da Aldeia Kaingang Linha Glória, em Estrela.

O documento “Programa de Apoio às Comunidades Kaingangs – Plano

Básico Ambiental das Obras de Duplicação da Rodovia BR-386, segmento 350,8 –

KM 386,0, com 35,2 KM de Extensão”, (2010) sob a responsabilidade de Alexandre

Nunes da Rosa e contando com a participação dos antropólogos Ledson Kurtz de

Almeida e Ricardo Cid Fernandes, refere-se ao Plano Básico Ambiental do

Componente Indígena que será impactado de forma indireta ou direta pela

duplicação da BR 386. Para isto, visa estabelecer procedimentos e instrumentos

técnico-gerenciais necessários para a implementação e a execução dos Programas

de compensação, bem como, dos programas de mitigação, referentes ao

componente indígena.

Além disso, nos utilizamos da metodologia da História Oral durante a

pesquisa de campo, tanto na aldeia de Estrela, como no contato com as autoridades

ligadas à pesquisa. Durante a etapa de campo todas as atividades foram

detalhadamente anotadas, bem como ocorreu a captação de imagens e falas em

máquina digital, sendo que estas foram transcritas, em diários de campo.

Posteriormente, em uma segunda etapa da pesquisa, as informações obtidas

foram analisadas e interpretadas, baseadas em referenciais teóricos, visando

responder aos problemas e hipóteses levantadas.

Nesta etapa buscamos a integração da história com outras áreas do

conhecimento tais como a Biologia, a Etnobiologia, a Sociologia, a Antropologia,

entre outras, no tratamento do objeto de estudo. Tal metodologia de caráter

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interdisciplinar teve o objetivo de realizar uma análise refinada sobre os problemas a

que se propõe este trabalho.

Dentre as fontes bibliográficas para esta pesquisa, apontamos a obra “O índio

Kaingáng no Rio Grande do Sul”, ([1976], 1995), Ítala Irene Basile Becker que

fornece dados importantes para a compreensão da forma de vida Kaingang. As

informações trazidas pela autora foram agrupadas em três períodos: séculos XVI à

XVII, quando eram chamados de Guaianá; o século XIX então conhecidos como

Coroados; e no século XX, quando passam a ser denominados de Kaingang. Neste

sentido procura explicar aspectos sociais, políticos, culturais, econômicos,

ambientais do grupo ao longo da história, com ênfase nos três períodos citados

anteriormente.

O antropólogo e biólogo americano Darrell A. Posey em seu estudo

denominado “Etnobiologia: Teoria e Prática” (1986), procura apresentar sob uma

perspectiva teórica as relações dos grupos indígenas com o “meio-ambiente”. Esta

pesquisa apresenta uma contribuição relevante por demonstrar que a Etnobiologia

possibilita prover dados importantes em prol da “salvaguarda” das populações

nativas, de suas terras, bem como do meio ambiente.

Rodrigo A. Venzon através do estudo de caso intitulado “Borboleta.

Sobrevivência indígena frente ao latifúndio” (1990) aborda a existência de uma

sesmaria indígena na região de Soledade/RS, unificada por populações indígenas

Guarani, grupos Kaingang, Xokleng, Charrua, bem como teria ainda absorvido seus

próprios invasores. A História da comunidade de Borboleta apresentada por Venzon,

é uma história de luta e resistência frente às tentativas de compulsão indígena de

sua identidade étnica. Este trabalho é importante no sentido de demonstrar que na

atualidade este grupo busca a recuperação de suas terras, das quais teriam sido

expropriados.

A obra “História e Cultura Kaingáng no Sul do Brasil” (1994), coordenada por

Telmo Marcon, constituída por diversos trabalhos dentre os quais o texto “As

transformações na agricultura e as terras indígenas”, elaborado por João Carlos

Tedesco e Telmo Marcon, procura analisar as implicações decorrentes de uma

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política desenvolvimentista agro-brasileira nas décadas de 1960 e 1970. Enfoca,

ainda, uma série de intervenções nas reservas indígenas por conta de um projeto de

“modernização”, que trouxe implicações diretas no espaço social das reservas

indígenas do sul do Brasil, gerando profundos conflitos, com destaque para o caso

de Nonoai.

Mozar Artur Dietrich em seu estudo denominado “Os povos indígenas e o

Estado Brasileiro: traços de um massacre físico, cultural e jurídico” (1995), procura

demonstrar a questão do “direito” indígena a partir de uma análise historiográfica.

Neste sentido faz uma abordagem bastante criteriosa de como o Estado brasileiro

vai lidando com as questões indígenas nos diferentes “períodos” da História,

chamando a atenção para concepções como o indigenato e o direito originário, que

foram gestados no período Colonial e que permanecem até hoje, sendo

fundamentais para a defesa dos direitos indígenas.

O texto “Território e territorialidade Kaingang: resistência cultural e

historicidade de um grupo Jê”, de Kimiye Tommasino, inserido na obra “Urí e Wãxí –

Estudos Interdisciplinares dos Kaingang” (2000), procura discutir como os Kaingang

concebem o território e quais as transformações histórias e culturais promovidas

pelo contato, submissão e expropriação territorial. Várias questões são

apresentadas pela autora para provocar uma reflexão sobre a situação atual dos

indígenas nas reservas e a nova realidade onde buscam mover-se no e sobre o

espaço geográfico.

Kimiye Tommasino no artigo “Os Sentidos da Territorialização dos Kaingang

nas Cidades” (2001), procura analisar, a partir de dois casos específicos, ou seja, o

dos Kaingang da região norte do Paraná e o dos Kaingang da bacia do Uruguai,

aspectos da territorialização destes indígenas nas cidades e seus sentidos. Para

isso a autora procura diferenciar os significados inerentes a busca por viver “na”

cidade ou “da” cidade.

A pesquisa realizada por Kimiye Tommasino, apresentada na forma de um

“breve ensaio” como ela mesma denomina, e intitulada “Considerações Etnológicas

a partir de dois conceitos Kaingang: Ga e Kri” (2005), demonstra a importância do

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significado destas categorias no pensamento e no processo de produção cultural

dos Kaingang. Para a pesquisadora as contribuições atuais vindas da etnologia são

fundamentais para a compreensão do pensamento Kaingang.

O artigo que constitui uma análise preliminar da pesquisa de dissertação de

Mestrado, de Maria Conceição de Oliveira, intitulado “Dinâmica do sistema cultural

de saúde Kaingang – aldeia Xapecó, Santa Catarina” (2000), publicado na obra “Uri

e Wãxi – Estudos interdisciplinares dos Kaingang”, organizada por Kimiye

Tommasino, Lúcio Tadeu Mota, Francisco Silva Noelli, pretende mostrar que, para

os Kaingang são expressas certas imagens de seu patrimônio cultural em ritos de

cura, tais como: da cosmologia, da relação com a natureza, dos mitos, do

xamanismo ainda vivo, da história mais recente e suas versões, do catolicismo

popular, de São João Maria como “referendum” ético e “soteriológico”, da inserção

de “operações espirituais” fazendo-se mister um tempo-espaço em que essas

imagens sejam ritualizadas em atos (práticas) e discursos, recebendo concretude e

atualidade. O trabalho evidencia que há um constante recriar de práticas de cura,

sendo que elementos fundamentais do passado se inscrevem, somando-se ao novo,

de forma contínua.

De Luís Fernando da Silva Laroque utilizamos os seguintes trabalhos:

“Guaíba no Contexto Histórico-Arqueológico do Rio Grande do Sul” (2002), trata-se

de um livro que apresenta informações histórias e antropológicas extremamente

relevantes sobre as populações nativas do Rio Grande do Sul. No capítulo II procura

caracterizar as culturas indígenas a partir da “tradição” cerâmica ou lítica utilizada e

no capítulo IV destaca de forma contextualizada a movimentação Kaingang pelo

território gaúcho, bem como faz uma abordagem social, política, cultural e

econômica do grupo.

No artigo “De coadjuvantes a protagonistas: seguindo o rastro de algumas

lideranças Kaingang no sul do Brasil” (2005), o referido estuda o papel

desempenhado por algumas lideranças Kaingang no sul do Brasil, atuando,

sobretudo, como protagonistas da historicidade índia. Para isso, faz um breve

retrospecto do contexto histórico, ao longo do século XX, para então discutir sobre a

atuação de quatro lideranças Kaingang no período contemporâneo, destacando

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entre elas, duas mulheres dentre as quais, uma das lideranças da Aldeia Linha

Glória/Estrela, evidenciando a participação política da mulher Kaingang também

como liderança atuante no mundo dos brancos.

Luís Fernando da Silva Laroque em sua tese de doutorado denominada

“Fronteiras geográficas, étnicas e cultural envolvendo os Kaingang e suas lideranças

no sul do Brasil – (1889-1930)”, (2007), procura mostrar o posicionamento dos

líderes indígenas Kaingang diante dos embates com as “Frentes de expansão”, bem

como apresenta informações importantes para o conhecimento da cultura e da

história Kaingang a partir de suas lideranças.

Por fim, em um texto mais recente “Os Kaingangues – Momentos de

Historicidades Indígenas” (2009), o autor em questão contribui para a compreensão

de como algumas lideranças Kaingang atuaram diante do contato com as “frentes de

expansão”, analisando possíveis significados deste contato para os indígenas. A

ênfase do autor ao longo do texto é mostrar que houve muito mais permanências

nos padrões culturais durante este contato, do que mudanças.

O artigo de Marlene de Oliveira “Alcoolismo entre os Kaingang: do sagrado e

lúdico à dependência” (2004) é uma importante contribuição para a compreensão do

fenômeno do alcoolismo entre os Kaingang, elegendo para isso fatores sociais,

culturais e históricos como aspectos importantes que determinam e marcam o modo

de beber desse grupo na atualidade, possibilitando com isso uma maior clareza para

o enfrentamento do problema no sentido de propor ações de intervenção. Oliveira

(2004) estuda especificamente os indígenas da bacia do rio Tibagi (Posto Indígena

de Apucaraninha), situados na região de Londrina, estado do Paraná, mas não

podemos deixar de ressaltar que o “grande território”, na visão Kaingang, extrapola

os limites dos estados brasileiros.

A tese de doutorado de Jairo Henrique Rogge intitulada “Fenômenos de

fronteira: um estudo das situações de contato entre os portadores das tradições

cerâmicas pré-históricas do Rio Grande do Sul” (2004) refere-se ao contato entre

diferentes populações humanas e os processos de interação que podem se

desenvolver entre elas. O objetivo de Rogge (2004) é compreender e explicar a

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natureza de tais interações, que fizeram com que populações portadoras das

tradições arqueológicas cerâmicas Tupiguarani, Taquara e Vieira, em diversos

pontos do território sul-rio-grandense, estabelecessem sistematicamente uma forte

articulação entre si, especialmente a partir do início do segundo milênio da Era

Cristã.

O artigo “O Território Xamânico Kaingang – Vinculado às Bacias Hidrográficas

e à Floresta de Araucária” (2005), elaborado por Rogério Réus Gonçalves da Rosa

procura analisar a partir do pensamento mitológico, o esquema cósmico estruturado

pelos xamãs Kaingang (Kujá). Este ambiente abrange o mundo visível e invisível

onde acontecem as relações dos Kaingang com os diversos elementos da natureza,

espíritos, almas, objetos celestes, sendo este o território xamânico Kaingang.

No trabalho recente de Rogério Réus Gonçalves da Rosa “Lenda e mito do

Cacique Nonohay – Guerra e vingança Kaingangue no fio do tempo” (2009), o

pesquisador faz um estudo bastante apurado e extremamente detalhista

apresentando aspectos gerais do grupo Kaingang, trabalhando conceitos diversos,

em torno da história do cacique Nonohay, baseada numa perspectiva mitológica. O

trabalho de Rosa brota de uma reivindicação dos Kaingang de Iraí, nos anos de

1980 e 1990, pela demarcação da aldeia “myg” justificada pela história de “Nonohay”

que teria habitado aquele espaço.

A obra “Aspectos fundamentais da cultura Kaingang” (2006) de Juracilda

Veiga reúne um interessante e riquíssimo estudo sobre à cultura, cosmologia, rituais

e o modo de pensar o mundo da sociedade indígena Kaingang. Este trabalho é

resultado da convivência com os indígenas de Chapecó, somados a investigação de

campo e pesquisas bibliográficas. O valor deste estudo está justamente em

demonstrar que apesar de os indígenas Kaingang terem sido vistos como grupo

“desaculturado” durante muito tempo, sua cultura está viva, operante e é rica em

particularidades, o que contribui para dar uma maior visibilidade aos Kaingang.

O trabalho de monografia de Jones Fiegenbaum intitulado “Os artesãos da

Pré-História do Vale do Taquari e sua cultura material” (2006) é uma importante

contribuição no sentido de demonstrar um panorama geral dos grupos pré-históricos

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que habitaram a região do Vale do Taquari. Também faz uma minuciosa análise da

cultura material obtida nos sítios arqueológicos identificados pelo Setor de

Arqueologia da Univates, a fim de reconhecer os grupos “pretéritos” que habitaram o

Vale e deixaram marcas no território.

Silvio Marcus de Souza Correa, Karin Elinor Sauer, Carine Grasiela Back e

Carlos Gabriel Costa, no artigo “Sobre o desenvolvimento local de territórios e

populações marginais: o caso de reservas indígenas e áreas remanescentes de

quilombo no vale do Taquari (RS)” (2007), consideram que as comunidades

indígenas e quilombolas no Vale do Taquari (RS) se encontram num hiato entre as

políticas de desenvolvimento local e os planos de desenvolvimento do governo

federal. Apesar da Constituição de 1988 reconhecer as diferenças e de uma série de

direitos das minorias étnicas, os poderes públicos não asseguram, na prática, a

validade de muitos direitos como, por exemplo, o acesso à educação bilíngue para

as crianças indígenas.

O estudo de Dulce Claudete Matte intitulado “Indígenas no RS: educação

formal e etnicidade” (2009), procura traçar a trajetória histórica da educação

indígena formal, desde sua criação com a chegada dos jesuítas até o momento

atual. Desta forma, recorre para a Legislação brasileira como forma de analisar os

avanços da educação escolar indígena bem como avaliar sua aplicação na prática.

Matte (2009) procura demonstrar que a escola tem um importante papel na

afirmação identitária e revitalização daqueles traços escolhidos para serem

marcadores da identidade étnica, bem como o de contribuir para que sujeitos e suas

comunidades situadas relacionalmente, tracem perspectivas de melhores condições

de vida e autonomia.

O texto “Kãki karan fã: reflexões acerca da educação escolar indígena” (2009)

de Maria Aparecida Bergamaschi e Fabiele Pacheco Dias contribui no sentido de

possibilitar uma importante reflexão sobre a história da educação indígena no Brasil.

Segundo Begamaschi e Dias, mesmo sendo a escola para os indígenas tão antiga

no Brasil quanto a colonização e, na maioria das vezes, imposta desde fora da

aldeia, observa-se nos últimos anos uma substancial modificação no que tange as

características dessa escola: de uma escola para os índios é evidente a

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transformação em uma escola dos povos indígenas, em que cada aldeia e, no

conjunto, cada povo, toma para si a responsabilidade de conduzir a educação

escolar. Afirmam também, que a escola indígena vem se constituindo em um canal

de diálogo com o mundo não indígena, ao sistematizar conhecimentos acerca das

sociedades ocidentais (BERGAMASCHI; DIAS, 2009).

O artigo de Soraia Sales Dornelles “A experiência vivida por imigrantes

italianos e índios Kaingang na Serra gaúcha (1875- 1925): pioneiros em terras

incultas e devolutas” (2009) objetiva esclarecer a experiência vivida por índios

Kaingang e imigrantes italianos no sul do Brasil, entre os anos 1875 e 1925, na

região da Serra gaúcha. Desta forma, busca destacar a presença e resistência

indígena em meio às suas relações com o elemento envolvente, “civilizador”,

marcadas pela diversidade de respostas por ambos os grupos. Seu estudo envolve

e busca esclarecer o mito do vazio demográfico defendido em obras de referência

que tratam da ocupação italiana na região tradicional Kaingang, bem como sua

efetividade histórica.

Marilda Dolores Oliveira na monografia “Essa Terra já era nossa: Um estudo

histórico sobre o grupo Kaingang na cidade de Lajeado – Rio Grande do Sul” (2010)

discorre sobre a historicidade indígena Kaingang e suas movimentações no Vale do

Taquari. Seu trabalho é de extrema relevância na medida em que aborda também,

através da problemática do território, a “luta” pela garantia e permanência dos

indígenas Kaingang da aldeia Fochá, na atual área ocupada e localizada no bairro

Jardim do Cedro. Diante de uma possível retirada do grupo em decorrência da

construção do presídio estadual próximo à área da aldeia, Oliveira (2010) procura

demonstrar que nesta questão, os indígenas foram agentes de sua própria

historicidade e fizeram valer junto ao Ministério Público Federal, seus direitos

constitucionais, conseguindo permanecer na área, pelo menos até o presente

momento da publicação deste trabalho, e acredita-se que efetivamente.

A monografia de Lylian Mares Cândido Gonçalves, com o título “Crianças

indígenas Kaingang em escola não indígena: um estudo de caso envolvendo a

Escola Estadual de Ensino Fundamental Manuel Bandeira, em Lajeado/RS” (2011),

aborda a trajetória da comunidade indígena Kaingang acampada por um longo

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período às margens da RS 130, em Lajeado/RS – que atualmente constitui a Aldeia

Fochá, localizada no bairro Jardim do Cedro – e o processo de condução das

crianças indígenas para receberem educação escolarizada em uma escola não

indígena - a Escola Estadual de Ensino Fundamental Manuel Bandeira.

Informamos, por fim, nestas considerações introdutórias que este trabalho

está composto de três capítulos. No primeiro capítulo, procuramos traçar a trajetória

do grupo no espaço geográfico Kaingang da aldeia Linha Glória, para na sequência

analisar o sentido pelos quais o Kaingang buscou fixar-se no território, em Estrela.

Para tanto, se fez necessário considerar a trajetória milenar de ocupação indígena

Kaingang em territórios do Brasil Meridional, bem como os impactos sofridos com a

expropriação de seus territórios motivados pela vinda dos imigrantes europeus no

Rio Grande do Sul, em meados de 1824. Diante desta nova realidade, os indígenas

precisaram migrar para outros locais em busca de novas formas de sobrevivência.

O segundo capítulo traz a tona a questão do direito originário a terra, que se

reacende com a duplicação da BR 386. Neste capítulo, buscamos compreender em

que medida a duplicação vai impactar na aldeia Linha Glória, em Estrela. Desta

forma, pretendemos também demonstrar a relação política de segmentos

envolvidos, buscando relacionar esta questão com os direitos constitucionais

indígenas.

No terceiro e último capítulo demonstramos de que forma direitos

fundamentais garantidos pela Constituição Federal de 1988, como educação e

saúde, vem sendo acessado pelos indígenas Kaingang da aldeia Linha Glória, em

Estrela. Desta forma, buscamos também entender como eles vivenciam e

relacionam culturalmente estes dois temas centrais no seu cotidiano e na questão da

luta pela terra.

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2 ASPECTOS HISTÓRICOS DO GRUPO KAINGANG NA ALDEIA LINHA GLÓRIA E OS SENTIDOS DE SUA (RE) TERRITORIALIDADE

O grupo Kaingang está ligado ao Tronco Linguístico Jê, e integra, junto com

os Xokleng, os povos Jê Meridionais, que ocupavam na direção sudeste/sul a

extensão territorial entre o rio Tietê, em São Paulo, e o rio Ijuí e Jacuí, no Rio

Grande do Sul, e para oeste, o território se expandia até Sãn Pedro, na província

argentina de Missiones. Conhecidos antigamente como Guayanás, Coroados,

Bugres, entre outros, os Kaingang1 ocupavam, no Rio Grande do Sul, as áreas altas

de cima da serra, cobertas de bosques e matas de araucárias e eram os prováveis

responsáveis pela Tradição Taquara, que habitavam as estruturas subterrâneas do

planalto (LAROQUE, 2002).

Estudos arqueológicos comprovam que o início da Tradição Taquara

acontece desde o século II da Era Cristã e se estende até o embate da conquista

européia no século XVI. Vestígios foram encontrados em abrigos e cavernas

localizadas em Caxias do Sul, Taquara e Vacaria e também nos vales dos rios Caí,

Antas, Pelotas e Sinos. Através de estudos realizados com estes vestígios,

encontrados, portanto, no planalto meridional e no litoral, foi possível caracterizar a

forma de ocupação territorial dos grupos responsáveis por esses sítios, o que tudo

indica que sejam os Kaingang (LAROQUE, 2002).

O surgimento das tradições cerâmicas regionais do Planalto Meridional (Taquara/Itararé) parece indicar um processo que poderia envolver tanto o movimento de populações como a difusão de um determinado estilo básico geral de cerâmica, talvez surgido no centro do Brasil e que teria se

1 A denominação Kaingang aparece na documentação bibliográfica apenas a partir de 1882 (VEIGA, 2006).

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expandido e sido, em parte, adotado por grupos pré-cerâmicos e modificado ao longo do tempo, podendo inclusive ter recebido algumas influências Tupiguarani, em períodos mais recentes (ROGGE, 2004, p.89).

Desta forma, Rogge (2004) procura demonstrar que os Kaingang poderiam ter

desenvolvido um tipo de cerâmica que sofreu influências, ao longo dos tempos, de

grupos de Tradição Tupiguarani. Porém, ao referir sobre a função dos materiais de

cerâmica produzidos, procura deixar claro que há uma diferença entre ambos os

grupos, e que não teria, de acordo com os formatos da cerâmica Kaingang, as

mesmas funções a que se destinava a cerâmica Tupiguarani, por exemplo, ou seja,

a de armazenar os alimentos.

As formas da cerâmica Taquara são, na maior parte, simples, sem maiores complexidades em sua estrutura, de pouca capacidade volumétrica, apresentando uma forma geral globular ou elíptica. São relativamente raras as formas que ultrapassam 30 cm de altura e 20 cm de abertura e/ou largura do bojo. Suas funções básicas como preparar e servir alimentos, podem ser inferidas a partir dessas formas, uma função característica de determinados tipos de vasilhame da tradição Tupiguarani não é aí encontrada, que é aquela requerida para armazenamento de alimentos sólidos e/ou líquidos (ROGGE, 2004, p.93).

Segundo Laroque (2002, p.55) “nos sítios escavados, aparecem aldeias de

casas subterrâneas e/ou estruturas compostas por pequenas choças de palha”. O

estilo de casas subterrâneas assemelha-se a forma de construção ocorridas nos

Estados de Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Minas Gerais e Missiones, na

Argentina, territórios igualmente ocupados pelos Kaingang. Essas populações

dependeriam fortemente de recursos naturalmente disponíveis, no planalto e talvez

também no litoral que as levariam a migrações anuais, com assentamentos

adaptados aos vários ambientes e adequados às atividades a serem desenvolvidas.

O contato entre os Kaingang e os colonizadores europeus teve início ainda no

século XVI. Neste período, os Kaingang do Rio Grande do Sul localizavam-se entre

o rio Piratini (afluente da margem esquerda do Uruguai) e as cabeceiras do rio

Pelotas (LAROQUE, 2002).

Há pouquíssimas informações sobre o século XVI, no que se refere ao

contato inicial entre europeus e os indígenas Kaingang. Porém, com base nos

estudos de Ítala Irene Basile Becker (1995), é possível verificar que com a chegada

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dos colonizadores, representantes da Coroa Lusa, estes realizaram, durante o

século XVI, incursões ao sul do Brasil, porém sem pretensão alguma de estabelecer-

se no território naquele momento.

Contudo, na medida em que a colonização avançou sobre os ambientes

indígenas, intensificaram-se as movimentações Kaingang em seus territórios no

Paraná, Santa Catarina e no Rio Grande do Sul. Informações sobre este evento se

dão pela afirmação de que “há mais de cem anos passaram os índios Kaingáng ou

Coroados, do Rio Uruguai para a Terra Sul-Riograndense” (JACQUES, apud

BECKER, 1995).

Desde o Tratado de Madrid, nos idos de 1750, e a expulsão dos jesuítas dos

territórios portugueses, as populações indígenas ficaram mais vulneráveis. As

expedições de conquista e ocupação do território Kaingang e Xokleng se

intensificaram. Foram onze expedições organizadas entre 1768 e 1774, pelo

Tenente-coronel Afonso Botelho sobre os territórios pertencentes aos vários grupos

indígenas — Kaingang, Guarani, Xokleng, Xetá —, provocando as primeiras

tentativas oficiais de ocupação não-indígena em territórios das províncias do Sul

(GONÇALVES, 2008).

A Estrada da Mata foi o eixo inicial da ocupação dos territórios indígenas do

Sul, intensificada com o comércio de rebanhos muares e bovinos trazidos do Rio

Grande do Sul para Sorocaba e passando pelos Campos Gerais no Paraná, Santa

Catarina e Rio Grande do Sul. O Caminho dos Tropeiros consolidou este processo

de ocupação e exploração nacional nas terras indígenas. Todas essas estradas e

caminhos atravessavam dezenas de territórios Kaingang. Os indígenas, como forma

de defesa do seu território, atacavam os tropeiros, trabalhadores e colonos que iam

se instalando nas paradas e locais de descanso que aos poucos se tornavam vilas

(GONÇALVES, 2008).

No século XIX, a questão indígena no Brasil esteve ligada à expropriação das

suas terras tradicionais. Nas fronteiras do império, ainda em ampliação, procurou-se

alargar os espaços transitáveis e aproveitáveis. Portanto, a partir de 1808, colocou-

se a questão indígena como um problema fundamentalmente de terras e com tal

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parâmetro estabeleceu-se um conjunto de políticas gerais a serem adotadas

(DORNELLES, 2009).

Neste sentido, a partir de 1824, o Governo Imperial propôs uma política de

incentivo à imigração alemã para o Brasil. O objetivo da vinda destes alemães era

de colonizar as ditas “terras devolutas” do império brasileiro. No Rio Grande do Sul

os alemães receberiam terras que vão desde o Rio dos Sinos até os ambientes

Kaingang na borda do planalto, havendo inclusive assentamentos e o surgimento de

colônias em terras tradicionais Kaingang, conforme ilustra Dornelles nos dizeres

seguintes:

A imigração alemã ocorreu no período entre 1824 e 1889, cujos assentamentos foram designados pelo governo em boa parte em terras tradicionais Kaingang. Sobre elas nasceram colônias como as de São Leopoldo, Feliz, Mundo Novo, Bom Princípio, São Pedro de Alcântara de Torres, Três Forquilhas, entre outras (DORNELLES, 2009, p.3).

A passagem pelos territórios indígenas para se chegar até as terras

destinadas pelo governo gerava duros conflitos entre indígenas Kaingang e

alemães, pois vendo seus territórios ameaçados, os Kaingang atacavam os

imigrantes estrangeiros. A vingança também era uma das motivações que fazia com

que os indígenas atacassem não só os estrangeiros, mas também outros grupos

indígenas. Este fato fez com que o Governo Imperial, a partir de 1845, recorresse à

ajuda dos missionários para intermediar a questão. Estes, por sua vez, não

conseguem aplicar aos Kaingang os moldes de redução feitos com os Guarani.

Diante desta questão, o Governo toma como medida “preventiva” ou de

“coação”, a instalação de três grandes aldeamentos, no período entre 1848 e 1850.

São eles: Guarita (localizava-se em áreas do atual município de Tenente Portela),

Nonoai (localizado no alto rio Uruguai) e Campo do Meio (localizado em área

limitada pelo rio Passo Fundo e a serra limítrofe com o litoral).

Mesmo com esta iniciativa do governo, um grande número de Kaingang

permaneceu fora dos aldeamentos, mantendo o seu modo de vida “selvagem” e

ocupando as bacias dos rios Taquari e Caí. Estes, por sua vez, irão realizar diversas

investidas contra as colônias alemãs em formação no período (LAROQUE, 2002).

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Outro destaque para o período será a adesão de alguns indígenas ao trabalho

assalariado nas “Companhias de Pedestres”, as quais com poder militar, atuavam

junto aos aldeamentos, com a finalidade de evitar conflitos entre os próprios

indígenas, os fazendeiros e os colonos. Há também as “Companhias de Bugreiros”,

então reativadas, o que provoca uma divisão e enfraquecimento dos grupos

Kaingang em decorrência de que algumas parcialidades nativas estabeleceram

alianças com estas, enquanto outras discordavam de tais atitudes.

Em meados dos anos de 1875, ocorre o incentivo à vinda de imigrantes

italianos para o Brasil e estes irão também ocupar áreas Kaingang no Rio Grande do

Sul, porém esta ocupação teria se dado de forma “pacífica”, já que os indígenas

Kaingang não se encontravam mais nestes, que são considerados seus tradicionais

territórios. Contrariando esta afirmação de que os indígenas Kaingang não teriam

contatado com os imigrantes italianos, devido ao fato de já, naquele período terem

sido removidos destas áreas, Soraia Sales Dornelles (2009) através de seu trabalho

“A experiência vivida por imigrantes italianos e índios Kaingang na serra gaúcha

(1875-1925): pioneiros em terras incultas e devolutas”, questiona esta ideia de vazio

demográfico e diz que esta negação é uma forma de justificar a imigração italiana,

pois é mais fácil negar as populações indígenas para não incluí-las na história

regional e local.

O contato dos Kaingang com os não-índios efetivou-se em meados do século

XIX, mais precisamente, em fins de 1840, quando algumas lideranças Kaingang

aceitaram negociar com os conquistadores brancos. Esta estratégia de fazer

alianças, no entanto, acarretou “dissidências no grupo”. Sobre isto Luís Fernando da

Silva Laroque destaca:

Alguns, negociando com os colonizadores, foram aldear-se em Guarita, enquanto outros, negando-se terminantemente a isso, atravessaram o rio Uruguai e migraram possivelmente para as proximidades do rio Peperi-Guaçu e juntaram-se aos grupos de Nhancuiá e Nonêcofé (LAROQUE, 2009, p.83).

No entanto esta decisão de estabelecer aliança ou de migrar para outras

regiões não era adotado por todas as parcialidades indígenas, havendo muita

resistência e embates, bem como recusa a estas práticas. Já no início do século XX,

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o Rio Grande do Sul conta com a presença capuchinha, a partir de 1903, que vem

com a missão de catequizar os Kaingang que continuavam a atacar as fazendas.

Instalada a República no Brasil, uma ordem governamental determina que no Rio

Grande do Sul fossem demarcadas as terras indígenas, no período de 1908 a 1913

(LAROQUE, 2005).

Conforme Laroque (2002), a situação dos Kaingang no século XX não foi

diferente dos séculos anteriores, pois a retirada dos indígenas de suas terras

continuou e estendeu-se para o século XXI, bem como as penetrações e

colonização em seus tradicionais territórios. Para amenizar o problema da retirada

dos indígenas de seus ambientes, o Governo Federal cria o Serviço de Proteção aos

Índios, em 20 de junho de 1910, o que em 1918 passa a chamar-se apenas Serviço

de Proteção aos Índios (SPI). Este órgão teria o objetivo de preservar e dar

assistência aos grupos indígenas, principalmente aos que se encontram em situação

de contato.

Uma das primeiras medidas tomadas pelo SPI foi a demarcação das terras

indígenas a nível brasileiro. Em 1911 as terras de Nonoai foram contempladas com

a demarcação. A partir de 1941 é que o SPI passou a atuar no Rio Grande do Sul e

a ampliar sua ação para reservas mais extensas no Estado. Neste sentido Elisabeth

Nunes Maciel e Telmo Marcon apontam para um grave problema provocado pelo

SPI.

Na medida em que o SPI passou a atuar diretamente dobre as maiores reservas do Estado, agravou-se a exploração da madeira e das próprias terras indígenas. Em relação à madeira, as reservas constituíram-se, na década de quarenta, em grandes potenciais. Face à pressão da colonização e dos interesses de inúmeras empresas madeireiras, instaladas na região, o potencial da madeira, particularmente do pinheiro araucária, foi sendo destruído (MACIEL; MARCON, 1994, p.154).

Na década de 1960, a Reforma Agrária de Brizola, reduz ainda mais o espaço

territorial Kaingang. Isto é, sem alternativa, eles migram em busca de outros locais

para estabelecer-se (GONÇALVES, 2008).

Após o Golpe Militar de 1964, os governos brasileiros elaboram uma série de

políticas agrícolas visando a incorporação das áreas indígenas ao processo de

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produção para o mercado externo. Neste contexto a expropriação das terras e das

riquezas nelas existentes se torna uma ameaça constante. Sobre isto Telmo Marcon

(1994, p.79) enfatiza que “as reservas indígenas passaram a desempenhar uma

dupla função: de um lado, absorver parte dos contingentes populacionais

expropriados de suas terras e de seus trabalhos e, de outro, voltar a produção

agrícola ao mercado externo”.

Em 1967 o Serviço de Proteção aos Índios (SPI) é extinto e cria-se, por meio

do projeto de Lei nº. 5.371, de 05 de dezembro de 1967, a Fundação Nacional do

Índio (FUNAI). Esta passaria a intermediar as questões indígenas, bem como

exercer o cuidado sobre os ambientes indígenas, os quais passam a ser chamados

de postos.

Na década de 1970 os ambientes indígenas, designados como reservas

indígenas, foram transformados em “empresas rurais”, as quais sofreram um forte

impacto ecológico com a degradação da flora e da fauna e, consequentemente, da

fertilidade do solo (MARCON, 1994). O governo, por meio da FUNAI, contribui para a

degradação das reservas indígenas, sem se preocupar em recuperá-las, e isto

acaba gerando um grave problema de fome para os Kaingang que se encontram nas

reservas.

Nesta lógica de “empresas rurais” na década de setenta, os indígenas

deveriam ser transformados em “empresários”, ou ainda em “agricultores

capitalistas”. Segundo João Carlos Tedesco e Telmo Marcon (1994, p.183) “para

tanto era necessário modernizar as forças produtivas e racionalizar a produção

direcionando para o mercado externo”. Nesta perspectiva, produz-se soja e trigo a

partir da incorporação de tecnologias modernas.

A crescente entrada dos colonos nas reservas fez surgir novas relações de

produção entre os indígenas e entre estes e os colonos. Estas relações foram, em

parte, “harmoniosas”, mas também conflitivas. Sobre isto, Telmo Marcon informa:

A progressiva penetração de colonos nas reservas foi transformando o modo de ser e de produzir dos índios e, também, as reservas. Diante desta situação, houve casos em que os índios trabalhavam para os colonos em

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troca de remuneração em forma de dinheiro, em espécies, ou mesmo por cachaça. Dessa forma, os índios trabalhavam como assalariados dos arrendatários de suas terras (MARCON, 1994, p.80-81).

As décadas de 1970 e 1980 são marcadas por intensos conflitos em várias

reservas no Rio Grande do Sul, em Santa Catarina e no Paraná. Em virtude das

tentativas dos indígenas em expulsar os colonos do seu ambiente, porém sem

resultados satisfatórios, começam então a apreender produtos e animais dos

colonos e a fazer ameaças. É importante destacar que nem todos os indígenas

apoiavam a retirada dos colonos. Havia aqueles que trabalhavam na condição de

assalariados dos seus arrendatários, sendo, portanto favoráveis à permanência dos

colonos explorando suas terras (TEDESCO; MARCON,1994).

2.1 Trajetória histórica do Grupo Kaingang da Aldeia Linha Glória

No contexto das décadas de 1950 e 1960 é que a história do grupo Kaingang,

que atualmente constitui a aldeia Linha Glória, terá seu início. Seu Manoel Soares,

juntamente com seus pais, permanecerá fora dos aldeamentos, onde se

encontravam seus parentes (GONÇALVES, 2008). A origem dos Kaingang de Linha

Glória é demonstrada por Alexandre Magno de Aquino no trabalho de Gonçalves

(2008a), através de relatos de Laroque que informa o seguinte:

[...] pelas minhas pesquisas, documentos manuseados e visitas feitas à referida área, em 2003 e 2004, tenho uma forte desconfiança que os Kaingang da Linha Glória/Estrela sejam remanescentes das parcialidades lideradas por Doble e/ou Nicué e, como sabemos, não aceitaram estabelecer-se nos aldeamentos durante a segunda metade do século XIX (LAROQUE apud GONÇALVES, 2008a, p. 66).

De acordo com Gonçalves (2008a) se essa última hipótese for confirmada,

poderia se atribuir o nome Coito ao nome indígena Kaingang e, não,

necessariamente, a uma relação genealógica com os índios de Nonoai.

Neste período das décadas de 1950 e 1960 em que estava estabelecido na

cidade de Santa Cruz do Sul, seu Manoel veio a se “casar” com Dona Lídia, que era

natural de Erneiras (Sinimbu) e depois com Dona Eva. Sobre o local onde moravam

em Santa Cruz, uma das matriarcas informa, que era conhecido por eles como “Vila

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Macaco”, hoje sabem que é chamada de “Vila Santo Antônio” (EC, 17/03/2011, p.1).

O fato de o grupo permanecer fora dos aldeamentos se deve a política repressiva de

Leonel Brizola, entre 1959 e 1962, que na época conduzia os indígenas a força

através das chamadas “caçambas do Brizola”, para os aldeamentos e para trabalhar

aos fazendeiros.

Portanto, a origem do grupo, conforme já referido anteriormente, é

proveniente do município de Santa Cruz do Sul, onde se encontra o atual Parque da

Gruta (antiga Gruta dos índios). Justamente pela criação do parque é que teriam

sido expulsos da região, onde trabalhavam na venda de artesanato e prestavam

serviços aos fumicultores. Diante deste fato, tiveram que ir em busca de trabalho na

cidade de Montenegro e em outros locais. Trabalharam no corte de mato nos

municípios de São Sebastião do Caí e Montenegro (BIRCK, 2002, p.2). Também

moraram debaixo de pontes na cidade de Venâncio Aires.

Quando ainda moravam em Santa Cruz do Sul, o pai de Manoel veio a

falecer. Apenas a mãe ainda permanecia no grupo. Ao saírem de Santa Cruz, seu

Manoel, Dona Lídia e Dona Eva, com seus respectivos filhos, foram em busca de

sustento e talvez “procurando o lugar onde o umbigo [de Manoel] foi enterrado”, que

é reconhecido por seus descendentes como a região onde vivem atualmente

(GONÇALVES, 2008, p. 64). Na década de 1960, teriam chegado ao município de

Bom Retiro do Sul, ocupando o trevo de acesso a este município, um pouco abaixo

do local onde vivem atualmente na cidade de Estrela. Passado algum tempo,

acabaram fixando-se no atual local, por indicação da Polícia Federal (BIRCK, 2002,

p.2).

Com base na análise pericial realizada pela antropóloga Miriam Chagas

(2005), o grupo Kaingang da aldeia de Estrela se constitui a partir de um único grupo

familiar que teve origem na descendência de Manoel Soares com duas mulheres:

Lídia Soares e Eva Rosalina de Mello. Ambas são referidas como sendo

aparentadas por parte do avô de Lídia, chamado Antônio Ramão Soares.

Atualmente Eva é companheira do filho mais velho de Manoel com Lídia, isto é, José

Alvício Soares, conhecido como Xicão. Sobre os filhos de Manoel com as referidas

esposas, Chagas informa o seguinte:

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Entre as pessoas que hoje estão na área, oito são filhos de Manoel com Eva e onze são filhos de Manoel com Lídia. Também há um ramo familiar de um irmão de Manoel que se chama Bento. Atualmente um filho de Bento, de nome Paulo, é morador do local. Consta que também Bento chegou a morar ali. As outras moradias são compostas pelos filhos de Manoel com essas duas mulheres citadas. Foi informado também que outra mulher de Manoel chegou a morar na área. Ela foi referida como dona Sirce e que atualmente moraria em Venâncio Aires. Ela também teria tido filhos com Manoel e saído da área um pouco antes de Manoel morrer atropelado, a cerca de 15 anos atrás (1990) (CHAGAS, 2005, p.10).

Seguindo a análise das relações de parentesco, Chagas (2005, p.11) observa

ainda que basicamente nesta aldeia são três gerações de descendentes de um

mesmo tronco velho2 Manoel Soares, com suas duas primeiras mulheres, mantendo

uma descendência entre pessoas do próprio grupo. Dona Lídia, que se diz parente

de Dona Eva, refere que seu avô Antônio Ramão tinha o sobrenome Soares,

podendo ser de algum modo, parente de Manoel.

Da descendência de Manoel com Lídia nasceram os indígenas de nomes

Maria Antônia Soares (51 anos), José Alvício Soares (50 anos), Altair Soares (44

anos), Pedro Antônio Soares (41 anos), Jair Soares (38 anos), Clarice Soares (37

anos), Carlos Soares (36 anos), Márcia Soares (34 anos), Maria Sandra Soares (31

anos), Andréia Soares (30 anos), Maria Conceição Soares (24 anos) e Adelar

Soares, sendo que para este último, não obtivemos informação de idade. O grupo

familiar formado pela ligação de Manoel com Eva, por sua vez, é constituído por 9

filhos, conforme informa a depoente E, sendo eles: Janete Soares (36 anos), Marcos

de Mello (35 anos), Márcio de Mello (34 anos), Carlos André de Mello (30 anos),

Paulo Alexandre de Mello (27 anos), Vanderlei de Mello (25 anos), Leandro de Mello

(22 anos), Claudete e André de Mello (EE, 22/03/2011, p.1). Para estes dois últimos

filhos de Dona Eva, não obtivemos informações de idade.

Conforme indica Chagas (2005), Manoel Soares teria tido ainda uma terceira

esposa de nome Sirce (natural de Venâncio Aires), com quem também teve filhos,

porém devido ao fato de ela ter saído da aldeia um pouco antes de Manoel falecer

em 1990 e retornado para Venâncio Aires, não temos conhecimento de ligação

2 Denominação usada pelos Kaingang (CHAGAS, 2005).

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destes com o grupo atualmente. O que se sabe é que Sirce seria uma mulher “de

fora3” do grupo.

Esta realidade vivenciada pelos indígenas da aldeia Linha Glória, que por

diferentes razões acabam relacionando-se com não-indígenas, vindo a se casar com

eles, é um processo que já vem de muitos anos fazendo parte da realidade não só

deste grupo, mas também de outros grupos indígenas. Segundo a análise de Miriam

Chagas (2005), o grupo que basicamente contava com uma reprodução nos termos

de uma mesma parentela familiar, também encontrou no casamento com os “de

fora” uma forma de continuar se mantendo. Assim, os “de fora” são integrados ao

grupo de parentesco e passam a ser considerados como de “dentro”. Para

compreendermos melhor esta questão cultural, buscamos nos respaldar nos estudos

de Barth (2000) que retrata com grande clareza como se dá a definição de

identidade dentro de um grupo. Na visão deste autor, a identidade de outra pessoa

como membro de um mesmo grupo étnico, implica um compartilhamento de critérios

de avaliação e de julgamento. Ou seja, é imprescindível que ambos estejam

“jogando o mesmo jogo” para que façam parte do mesmo grupo, e isto implica na

existência de critérios e sinais de identificação, que não necessariamente devem ser

de caráter fenótipo, mas sim culturais.

Ao se estabelecer na região onde vivem atualmente, Manoel Soares e seu

grupo, tiveram como fonte de subsistência a venda de artesanato e a feitura de

pequenas roças. Segundo relatos de uma das matriarcas da aldeia, seu Manoel

tinha a preocupação de ensinar aos seus filhos a prática do artesanato, pois era uma

forma de manter viva a cultura e também era uma fonte de subsistência do grupo

(EC, 17/03/2011, p.5). Neste sentido, percebemos também, durante a fala da

depoente C, a forte atuação de Manoel Soares para manutenção do grupo, o que

pode ser verificado como uma característica determinante apontada por Laroque

(2005) para a atuação das lideranças do século XX.

3 Denominação utilizada por Miriam Chagas (2005, p.15). De acordo com esta antropóloga, ser de

fora do grupo não implica estar impedido de participar das relações de parentesco, ou seja, uma pessoa que se casa dentro da aldeia será em alguma medida “englobada” no grupo, passando a compor o círculo de parentesco (CHAGAS, 2005, p.16).

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Pelo que se percebe, as lideranças Kaingang atuaram como agentes de sua

própria historicidade ao longo do período de contato com a sociedade não-índia.

Sobre isto, Luís Fernando da Silva Laroque (2009) destaca para o período do século

XIX, o poder de atuação em tradicionais territórios Kaingang no Rio Grande do Sul,

de lideranças como Nonohay, Votouro, Braga, Doble, Fongue e Nicafim. É

importante destacar que no período anterior ao século XIX, ou seja, nos séculos XVII

e XVIII, documentos deixados pelos padres jesuítas, já registravam a presença das

lideranças Kaingang nas situações de contato, porém seus nomes não eram

registrados (LAROQUE, 2007).

De acordo com Laroque (2005), os critérios para a escolha das lideranças

Kaingang ao longo de sua história nunca foram, necessariamente, pautados pela

hereditariedade, mas sim pela valentia, generosidade, redistribuição dos bens

conseguidos, diplomacia para resolver os problemas junto ao grupo e,

principalmente, da segunda metade do século XX em diante, cada vez mais pela

habilidade política, dom da oratória, escolaridade e pelo domínio dos códigos dos

brancos. Sendo assim, a liderança além de ser atuante fora da aldeia, também

precisa atuar dentro da comunidade, a fim de continuar sendo reconhecida pelo

grupo.

A participação política de mulheres é algo bastante singular na história

Kaingang, na medida em que a maior parte dos documentos e material

historiográfico produzidos refere-se quase que exclusivamente a aspectos da

organização política como sendo do universo masculino. No entanto, Luís Fernando

da Silva Laroque (2005) apoiado em fontes documentais, procura demonstrar que,

em relação à atuação da mulher dentro do mundo Kaingang, bem como nas

relações com as sociedades não-índias, o gênero feminino Kaingang sempre esteve

presente.

Nesta lógica, há referência a duas lideranças Kaingang, ou seja, Azelene Krin

Kaingang, nascida na área indígena de Carreteiro, Rio Grande do Sul e Maria

Antônia Soares, da área Kaingang Linha Glória, Estrela/Rio Grande do Sul (foco

desta pesquisa) as quais podem ser apontadas como exemplo, na atualidade, da

presença da mulher indígena de forma ativa nas questões políticas. Laroque (2005),

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afirma que isto é perfeitamente possível dentro das pautas culturais nativas, até

porque ambas são filhas de prestigiados caciques e, quem sabe, até representantes

de Casas Kaingang, associando o conceito de comunidade como vinculado à mulher

(Mulher: Casa::Casa: Comunidade).

Maria Antônia Soares assumiu a liderança da aldeia após a morte do pai, em

1990, e permaneceu até 2009, quando então assumiu o seu lugar a sua irmã Maria

Sandra Soares, que permaneceu até meados de 2011, quando Maria Antônia

retorna novamente como liderança, e outra mulher, Márcia Soares se torna a vice-

liderança. Isto nos mostra que de fato, na Aldeia Linha Glória, a liderança gira em

torno da figura feminina. São as mulheres que estão à frente dos encaminhamentos,

demandas e reuniões do grupo. Sobre esta questão, o depoente H informa:

[...] conhecendo um pouco da história dessas famílias que ali estão, que o fortalecimento de algumas lideranças e assim, a escolha destas para cargos de liderança dentro e fora da aldeia, veio junto com a história da territorialidade do povo Kaingang no Rio Grande do Sul. A Maria Antônia Soares é uma liderança de destaque entre os Kaingang. Ela, assim como a Maria Sandra, vivenciou e aprendeu com a liderança do pai, Manoel Soares. Elas contam que várias vezes foram expulsas de espaços, como a Gruta do Índio, em Santa Cruz do Sul, espaços no município de Mariante [Venâncio Aires], sempre ao lado do pai. Foi seguindo ele, que retornaram para o Vale do Taquari, espaço onde o pai e seus antepassados tinham vivido. No momento em que ele faltou, repentinamente, pois morreu atropelado na estrada, essas filhas, com apoio e a partir da organização interna, assumiram seu papel. E desde então, elas vêm assumindo e você percebe que assumem, assim, com muita garra. [...] Maria Antônia, por exemplo, por um tempo, foi a única mulher no Conselho Estadual dos Povos Indígenas (CEPI). Participava, representando a sua aldeia. Maria Sandra, Maria Conceição fizeram parte do Conselho também. Elas eram as únicas mulheres. Hoje as lideranças Kaingang, que vivem nas aldeias em Porto Alegre (Morro do Osso, Lomba do Pinheiro), na aldeia Por Fi em São Leopoldo, na aldeia em Farroupilha, Fochá, em Lajeado e, na própria aldeia, Linha Glória, em Estrela, tem um respeito muito grande e uma consideração muito grande por essas lideranças femininas (EH, 06/05/2011, p.4).

Com base na citação anterior, percebe-se que há um respeito por estas

lideranças femininas, especialmente porque demonstram uma compreensão

especial nas questões do grupo. Isto é possível verificar na continuidade da fala do

depoente H:

Estas lideranças foram as primeiras a incluir e a chamar o seu povo para as reuniões referentes à duplicação da BR 386. Ouço, seguidamente, na aldeia e nas reuniões com agências oficiais, a cacique Maria Antônia dizendo: nós somos um povo. Somos parentes. Vivemos num grande território. O que

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prejudica um, prejudica todos nós. Temos que saber comer juntos e receber um parente que quer morar na aldeia, até mesmo dentro da nossa casa. Temos que seguir unidos. Fortalecendo nossas alianças e nossa cultura (EH, 06/05/2011, p.4).

Com o passar do tempo, o grupo localizado junto à BR 386, no KM 360 da

rodovia, passou a ser alvo de olhares preconceituosos da sociedade em geral e

principalmente de alguns órgãos públicos que se referiam aos indígenas como

“intrusos” ou “sem-terra”. Esta questão pode ser verificada em documento oficial do

Poder Legislativo de Estrela:

O vereador Paulo Scheeren disse ter sido informado que os sem-terra que estão à margem da BR 386, próximo a Bom Retiro do Sul, teriam sido levados para um encontro em Porto Alegre, no final da semana, e que vai descobrir se o Poder Público Municipal foi que os transportou, pois se isso aconteceu, é ilegal (ATA nº 27/2001 – SESSÃO ORDINÁRIA da CÂMARA MUNICIPAL de ESTRELA, grifo nosso).

Em 2001, com o objetivo de chamar a atenção da sociedade estrelense e das

autoridades em geral para a situação em que viviam os indígenas da aldeia Linha

Glória e, sobretudo, pensando na questão da exclusão e da discriminação a que

este grupo vinha sendo submetido, é que a esposa do vice-prefeito de Estrela, a

senhora Loraci Birck, teve a ideia de organizar uma caminhada no dia 07/09/2001

intitulada “O 1º Grito dos Excluídos de Estrela”, organizada por ela e pelos próprios

indígenas. O movimento não teve a repercussão desejada junto aos órgãos públicos

de Estrela, que repudiaram o ato, reafirmando assim uma visão preconceituosa para

com esta população indígena.

Renato Horn (PPB) disse que todos têm direito de se pronunciar, buscar seu espaço, mas a esposa do vice-prefeito Inácio Birck, chutou uma bola e fez gol contra. Trouxe uns bugres da BR 386, fizeram um bafafão [...]. Acentuou que a maioria destes índios foi expulso de Santa Cruz do Sul, e agora querem terra em Estrela. Gilberto Fensterseifer (PL) [...] disse “o que queremos com estes bugres aqui? Daqui a pouco alguns deles serão atropelados na beira da BR, pois deitam lá no chão, e daí como fica?” Larri Schwingel (PMDB) disse “os bugres, em hora cívica não precisavam ter feito aquilo, não ficou bem para nós, estrelenses” (FOLHA DE ESTRELA, 13/09/2001, p. 5).

Percebe-se que há, dentro de um mesmo espaço geográfico, ou seja, do

território de Estrela, ou ainda, numa visão mais global, do Vale do Taquari, o que

José de Souza Martins (1997) define como “fronteira étnica”. Na concepção deste

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autor, fronteira não é algo determinado geograficamente, mas, essencialmente o

lugar da alteridade. É o lugar do encontro dos que por diferentes razões são

diferentes entre si, como os indígenas de um lado e a sociedade estrelense, ou

nacional, dita “civilizada”, de outro. Assim, Martins (1997) enfatiza que o que há de

mais relevante para caracterizar e definir fronteira é, justamente, a situação de

conflito social. Mas o conflito faz com que a fronteira seja essencialmente, a um só

tempo, um lugar de descoberta do outro e de desencontro. Em outras palavras, o

desencontro das fronteiras é o desencontro das temporalidades históricas daqueles

que por diferentes razões vivem diversamente no tempo da História, e ao mesmo

tempo, são contemporâneos.

Neste sentido, a fronteira só deixa de existir quando o conflito desaparece,

quando os tempos se tornam um só tempo, quando a alteridade original, que difere

culturas étnicas tão distintas, dá lugar a uma alteridade política e o outro se torna a

parte antagônica do nós (MARTINS, 1997). Logo, o “conflito” que há entre as duas

sociedades – nacional e indígena, é marcado por uma visão do outro, que é

diferente de nós, portanto considerado “inferior ou incapaz”, e é justamente esta a

justificativa que os brancos utilizaram para exterminar milhares de indígenas durante

largo período de tempo na História brasileira. Segundo Martins (1997, p.163) “o que

poderia ter sido um momento fascinante de descoberta do homem, foi um momento

trágico de destruição e morte”. Vivemos numa sociedade que utiliza um discurso de

respeito a diversidade étnica e cultural, mas, que na prática super valoriza apenas

alguns grupos étnicos e culturais.

O reconhecimento deste grupo pelo Conselho Estadual dos Povos Indígenas

(CEPI), como sendo da etnia Kaingang, ocorreu no ano de 2002, o que possibilitou

que a aldeia pudesse ser incluída em programas especiais para comunidades

indígenas (BIRCK, 2002). Esta é uma questão de extrema relevância, uma vez que,

possui um significado que só pode ser entendido a partir do conceito de identidade

étnica. Sobre isto, Carlos Rodrigues Brandão (1986) destaca que a identidade é,

sobretudo, o reconhecimento social da diferença. Ela se constrói baseada em uma

dimensão social e simbólica. É uma mistura de consciência, trocas afetivas e

reconhecimento, que perpassa pelo pertencimento a um determinado grupo.

Portanto, a própria condição engendra a necessidade de lutar pela sua

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sobrevivência e nesta luta é necessário estabelecer uma identidade própria, de cada

pessoa, mas que é também uma identidade grupal.

Conforme documentação do Ministério Público Federal, a área de terras da

aldeia, em 2004, era de aproximadamente oito hectares. Haviam dezenove casas

construídas próximas ao trevo de acesso a Bom Retiro do Sul, ou seja, no local,

onde a escola se encontra na atualidade. Muitas destas casas estavam em

condições precárias, eram feitas de madeira e cobertas de lonas (CERTIDÃO -

Ministério Público Federal, 25/05/2004). Diante desta situação, a liderança da aldeia,

Maria Antônia Soares, passou a reivindicar junto aos órgãos públicos competentes a

construção de novas casas. Em 2005, o CEPI (Conselho Estadual dos Povos

Indígenas) informou que a área de terras seria ampliada para catorze hectares, e

com isso, seriam construídas vinte e uma novas casas, dois galpões e um quiosque

para a venda do artesanato. Para tanto, o CEPI ficaria responsável pela elaboração

de um relatório para identificação de toda área, sendo que o senhor Erivelto

Villanova (proprietário da área) iria auxiliar na identificação dos limites da área

(RELATÓRIO DE REUNIÃO EXTERNA – Procuradoria da República da 4ª região,

08/03/2005).

A ampliação da área de terras da aldeia se efetivou, conforme previsto pelo

CEPI, em 2005. A construção das casas teve início em março de 2006, após longo

período de espera, e foi uma parceria entre o Programa RS Rural Especial (com um

investimento de R$ 21 mil reais para compra de telhas e pregos), categoria que

contempla os povos indígenas e parte pelo Programa Estadual de Programa

Indígena (investimento de R$ 27 mil reais para o custeio da mão de obra), da

Secretaria Estadual de Habitação e a CEE (Companhia Estadual de Energia

Elétrica), que cedeu a madeira (NOVA GERAÇÃO, 17/03/2006). As obras foram

finalizadas em julho de 2006, beneficiando cerca de cento e trinta pessoas que

viviam na aldeia.

Atualmente a aldeia apresenta um número de aproximadamente trinta famílias

que sobrevivem da venda de artesanato, das doações que recebem do poder

público, de pequenas roças cultivadas por algumas famílias e da prestação de

serviços para produtores rurais. Há dois pontos de venda de artesanato situados nas

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margens da BR 386, bem como uma separação por famílias na utilização destes

postos de venda (GONÇALVES, 2008). É importante salientar que este número de

famílias é variável devido à tradicional mobilidade que estes grupos mantêm de se

deslocarem pelo grande território, indo e vindo de outros aldeamentos indígenas

como o de Nonoai, por exemplo, de onde provém um grande número de famílias

residentes neste local.

No Rio Grande do Sul vivem cerca de dezoito mil indígenas Kaingang,

distribuídos em acampamentos, principalmente no norte do estado (Tenente Portela,

Nonoai, Erechim, Iraí, Planalto, Salto do Jacuí, Farroupilha, Lajeado, Estrela, São

Leopoldo, Gravataí e Porto Alegre). Outros pequenos grupos são itinerantes e ficam

em acampamentos temporários (wãre) em rodovias com a finalidade de vender seu

artesanato.

Além de Nonoai, algumas famílias que atualmente residem na aldeia Linha

Glória também são provenientes da Terra Indígena de Iraí. Os indígenas deslocam-

se de um lugar a outro por diversos motivos: visitar seus parentes, buscar materiais

para feitura do artesanato, buscar alimentos em aldeamentos próximos, participar de

reuniões, por desentendimentos entre eles, vender seus artesanatos, dentre outros.

A mobilidade sempre fez parte da lógica Kaingang ao longo dos tempos.

O Território Kaingang comporta, assim, vários grupos locais onde se distribuem parentes afins. Nesse espaço físico, grupos familiares (extensos ou não) e pessoas se movem constantemente, formando uma ampla rede de sociabilidade cujos indivíduos compartilham uma experiência histórica e se consideram partícipes da mesma cultura. Unifica-os, portanto, uma consciência mítica, histórica e étnica. Essa rede configura a espacialidade de todo o social que expressa uma unidade sócio-política mais ampla, a sociedade Kaingang (TOMMASINO, 2000, p.208).

Movimentar-se pelo espaço era algo crucial para a sobrevivência das

parcialidades Kaingang, e em virtude deste fato construíam aldeias fixas,

denominadas emã e acampamentos provisórios, os chamados wãre, nas florestas e

margens dos rios. Sobre isto, Kimye Tommasino ilustra o seguinte:

Os dados históricos e geográficos indicam que um território Kaingang tinha, necessariamente, de apresentar um ecossistema variado que lhes permitisse sua reprodução social e cultural. Nas regiões de campo faziam suas aldeias fixas (emã). Faziam também acampamentos ou abrigos

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provisórios (wãre) nas florestas e margens dos rios, onde permaneciam nas semanas ou meses em que praticavam a caça ou a pesca. Os deslocamentos eram feitos por grupos de parentesco, de modo que sempre havia pessoas no emã e outras no wãre (TOMMASINO, 2000, p.203-204, grifos do autor).

Desta forma, assim como no passado, os indígenas da aldeia Linha Glória

ainda preservam esta tradição. Os emã de hoje frequentados por eles são os

diferentes aldeamentos existentes na atualidade, criados pelo SPI e posteriormente

pela FUNAI, e reconhecidos como TIs (Terras Indígenas) ou Reservas Indígenas.

Por sua vez, os wãre seriam aqueles acampamentos provisórios ou ainda lugares

como, por exemplo, as cidades por onde permanecem às vezes, por semanas, para

venderem seus artesanatos como forma de sobrevivência. A mobilidade que ainda

continuam a fazer é uma forma também de manter vivas práticas culturais pretéritas,

e de acordo com Tommasino (2000, p.224) “mover-se no espaço significa, assim,

mover-se no tempo”.

Atualmente os Kaingang ocupam cerca de trinta reduzidas áreas distribuídas

sobre seu antigo território, nos Estados de São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio

Grande do Sul. Segundo Rogério Rosa (2009), são cerca de trinta mil indivíduos,

concentrados na sua grande maioria, em terras indígenas situadas entre as bacias

dos rios Tietê (norte), Paranapanema, Iguaçu, Uruguai, Jacuí e tributários do

sistema Guaíba-Patos (sul), Paraná (oeste) e Oceano Atlântico (leste).

No Rio Grande do Sul existem atualmente nove reservas, sendo que em cinco

delas, residem somente indígenas Kaingang e, nas outras quatro há indígenas

Guarani e Kaingang. São elas: Cacique Doble (localizada na cidade com o mesmo

nome), Carreteiro (localizada em Água Santa), Ligeiro (localizada na cidade de

Charrua), Votouro (em São Valentin), Nonoai (situada em Nonoai, Rodeio Bonito e

Planalto), Guarita (em Redentora, Tenente Portela e Miraguai), Inhacorá (em Santo

Augusto), Rio da Várzea (nos municípios de Liberato Salzano e Nonoai), Irai (em

Irai) (MARCON, 1994a). Além dessas reservas, reconhecidas como tal, existem

outros agrupamentos indígenas, ocupando diferentes espaços no estado. No Vale

do Taquari podemos citar além da aldeia Linha Glória, Estrela, a aldeia Fochá,

localizada na cidade de Lajeado, ambas formadas por indígenas da etnia Kaingang.

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A comunidade indígena de Linha Glória, foco deste trabalho, faz parte de um

fenômeno recente de urbanização, decorrente de uma série de questões, que fazem

com que ocorram as migrações para as áreas urbanas. As cidades foram se

tornando ao longo dos tempos, na visão de Tommasino (2001, p.8), “espaços de

territorialização”, com significados amplos que perpassam por questões sociais,

políticas e cosmológicas, tornando-se, portanto, um espaço de extensão do seu

território de sobrevivência física e cultural.

2.2 Terras x Território: sentidos de sua territorialidade

A região do Vale do Taquari como um todo foi território de ocupação indígena

no passado. Estudos arqueológicos no Vale do Taquari, iniciados em 2000, com a

criação do Setor de Arqueologia da Univates, sob a coordenação da professora

arqueóloga Neli Teresinha Galarce Machado, comprovam esta afirmação. A partir do

trabalho, então pioneiro no Vale, vários artefatos de cultura material foram

encontrados e muitos sítios arqueológicos identificados, indicam a ocupação de

grupos pré-coloniais ou pré-históricos4 nesta região (FIEGENBAUN, 2006). Diversos

estudos5 de caráter arqueológico já avançaram, no sentido de demonstrar a

ocupação indígena, com base na cultura material encontrados nestes sítios

arqueológicos.

Embora grande parte do material cerâmico encontrado, esteja identificado

como sendo de grupos horticultores Guarani, sabe-se também que o espaço

geográfico compreendido entre os rios Jacuí e Taquari (ou rio das Antas), ou Serra

do Botucaraí, é reconhecido como território do grupo Kaingang, fazendo parte do

4 O período pré-histórico se refere tradicionalmente ao tempo que no qual a história não era registrada por meio da escrita. Na ausência de documentos escritos, as informações de como as populações viviam na época são encontradas na cultura material que produziam e nas transformações empreendidas na paisagem que ocupavam. Os restos materiais dos artefatos produzidos por essas pessoas e as paisagens que elas construíam são as fontes principais da ciência conhecida como Arqueologia (RELLY, MACHADO, SCHNEIDER, 2008). 5 Destacamos o estudo “O contexto ambiental e as primeiras ocupações humanas no Vale do

Taquari-RS” (2008), que constitui a dissertação de mestrado de Marcos Rogério Kreutz, na qual o referido autor procura compreender a relação pretérita homem e ambiente por meio da análise e caracterização do contexto ambiental em sítios arqueológicos do Vale do Taquari. Também contribui neste sentido, o estudo de Jones Fiegenbaum intitulado “Um Assentamento Tuppiguarani no Vale do Taquari/RS” (2009).

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processo de ocupação indígena, não só Guarani, mas também Kaingang (CHAGAS,

2005).

Neste sentido, há uma relação de pertencimento deste grupo Kaingang com o

atual território ocupado em Linha Glória, Estrela, ou seja, eles estariam retornando

ao seu antigo território. Uma forma de marcar o território de origem, segundo a

tradição Kaingang, se dá através do enterramento do umbigo do recém nascido,

prática, que de acordo com relatos de Maria Antônia Soares, filha de Manoel Soares,

patriarca da aldeia Linha Glória, marca o retorno do grupo no atual território, ou seja,

é “onde o umbigo de Manoel estava enterrado” (GONÇALVES, 2008, p.65).

A partir do que foi exposto, é importante destacar ainda que os sentidos pelos

quais os indígenas da aldeia Linha Glória, retornam ao seu local de origem, tem a

ver com o que Tommasino (2001, p.13) conceitua como “re territorializar-se”, ou

seja, “os indígenas estão (re) ocupando espaços que foram áreas de caça e coleta e

agora, mesmo transformados pelo branco, voltam a ser locais de atividades de

subsistência física e cultural”. Neste sentido, contatamos que ao se instalarem neste

local, os indígenas de Linha Glória estão se reapropriando deste espaço físico e

recriando nele um novo território de acordo com seus próprios códigos culturais.

Ao longo dos tempos, os grupos indígenas foram sistematicamente sendo

expropriados de suas condições de subsistência, e entre estas encontra-se a terra.

No contato dos indígenas Kaingang com a sociedade nacional, em meados do

século XIX, tentou-se produzir uma definição de território (e de terra) única para

todos os grupos indígenas, definição esta que se inscreve nas concepções

econômico-jurídicas ocidentais de terra e território e que nada tem a ver com as

concepções que os indígenas têm sobre terra e território.

Os Kaingang denominam Ga o território tribal. Ga também é terra, solo. Ga

refere-se, portanto, a coisas bem concretas, fundamentais para a existência de

qualquer sociedade. Assim, Ga é o lugar onde os Kaingang se realizam como

sociedade específica fundada num espaço físico, social e simbolicamente

transformado. Território é onde os Kaingang vivem de acordo com suas metades e

seções, segundo regras de reciprocidade e aliança. É a base material sobre a qual

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imprimem seus padrões identitários, de consangüinidade e afinidade, de residência

uxorilocal6 e descendência patrilinear (TOMMASINO, 2005).

No decorrer do século XX e do atual, os processos expropriatórios reduziram

consideravelmente os territórios indígenas e mesmo as terras indígenas

anteriormente delimitadas e/ou demarcadas. Segundo Lígia Simonian (2009) o

estado, por meio de seus gestores, é que tem sido o responsável pela expropriação

desses espaços enquanto posse indígena.

No Rio Grande do Sul os toldos indígenas demarcados no decorrer do século

XX, foram expropriados parcialmente, sendo alguns extintos, quer diretamente pelo

governo estadual, quer por fazendeiros, empresários rurais e agricultores sem-terra.

De acordo com Simonian:

Todo este processo teve início com invasões diretas, o que inclui outras violências diversas praticadas contra os indígenas, inclusive assassinato de lideranças. Por sua vez, a maioria destes invasores buscou a intervenção das autoridades, incluindo as jurídicas, para se respaldar. E em muitos casos tais invasões lograram êxito em suas demandas (SIMONIAN, 2009, p.495).

As políticas e ações anti-indígenas nos estados do sul do Brasil reduziram

drasticamente áreas delimitadas e/ou demarcadas no período anterior ao século XX

e no atual. Como exemplo deste processo expropriatório Lígia Simonian (2009)

aborda o caso do aldeamento de Nonoai, criado em 1848, e que tão logo passa a

ser alvo dos exploradores de erva-mate e criadores de gado que invadem suas

terras. Inclusive o mapa do aldeamento, produzido no século XIX, com uma vista

ampla do território fora roubado por não-índios interessados nas terras e na madeira

da floresta imensa de araucária. Outra estratégia usada pelos não-índios

interessados nas terras e demais recursos naturais dos Kaingang do Rio Grande do

Sul foi o assassinato por emboscadas.

6 A uxorilocalidade é o padrão de residência adotado pelos indígenas Kaingang após o casamento. No passado, os Kaingang possuíam grandes casas comunais habitadas por homens, sua mulher, seus filhos não casados, suas filhas casadas e seus genros com os respectivos filhos e filhas. Atualmente os Kaingang não possuem mais grandes casas comunais, mas é comum que as filhas, ao se casarem, tragam os maridos para a casa dos pais. Quando o casal novo passa a uma casa própria, em geral fica localizada ao lado da casa dos pais (VEIGA, 2006).

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No Rio Grande do Sul a redução das áreas indígenas se deu em 1962 no

governo de Leonel Brizola, período em que os indígenas perderam extensões

significativas de terras e sofreram violências, inclusive a fome e a tortura. Nos

decretos e leis o argumento legitimador da expropriação foi o de que os indígenas

tinham muita terra para pouco resultado produtivo e o Estado necessitava de terras

para os agricultores sem-terras a fim de fazer uma reforma agrária. O cálculo para a

redução das terras indígenas no sul foi baseado no módulo mínimo utilizado pelo

Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), sem considerar que a

população indígena como qualquer outra, é suscetível de crescimento vegetativo

(TOMMASINO, 2001). Neste sentido, a população de diversas áreas indígenas

aumentou significativamente o que resultou em problemas como a falta de terras,

que somado a deteriorização da qualidade do solo pelo desgaste e degradação do

meio, impedem que os indígenas tenham plenas condições de sobrevivência.

Uma vez que as reservas não lhes dão garantias de viverem segundo seus

códigos culturais, os indígenas acabam saindo de terras oriundas do Planalto Rio-

grandense, dando continuidade às tradicionais formas de encaminhar os seus ciclos

sócio-econômicos. Há aproximadamente quatro décadas existe uma intensificação

da saída destes grupos das terras do Planalto. É comum que essas famílias

procurem se organizar novamente nas proximidades de cidades de médio e grande

porte, como no caso de Porto Alegre, bem como em alguns municípios da serra

gaúcha e do Vale do Taquari, para que nesses espaços ocupados possam dar

continuidade à sua cultura (OLIVEIRA, 2010).

Neste caso, o fato de retornarem para antigos territórios ocupados pelos seus

antepassados nada difere de outros aldeamentos localizados em território Kaingang,

podendo ser exemplificado o caso da aldeia Fochá, localizada na cidade de Lajeado,

e que recentemente foi objeto de estudos de Marilda Oliveira (2010). Segundo ela, a

migração do grupo Kaingang em questão para o Vale do Taquari, há

aproximadamente dez anos, foi apenas o retorno para um território que já lhes

pertencia.

Os indígenas sempre resistiram à expropriação de suas terras, porém diante

do uso da força, não puderam fazer muito por anos e mesmo décadas. Em fins da

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década de 1970, as lutas indígenas pela retomada de suas terras expropriadas

passaram a ser mais intensas. Com a Constituição de 1988 os indígenas se

fortaleceram, tendo respaldo da lei, persistiram com as suas demandas e lutas,

tendo sido vitoriosos em muitas delas (SIMONIAN, 2009). Atualmente os indígenas

têm se fundamentado no texto constitucional vigente e lutado pelo respeito a seus

direitos territoriais.

Desta forma, se insere a trajetória histórica do patriarca da aldeia Linha

Glória, Estrela. A família de seu Manoel Soares e de suas duas esposas com alguns

parentes, permaneceram fora dos aldeamentos criados pelo governo, vindo a

estabelecer-se na cidade de Santa Cruz do Sul, durante as décadas de 1950 e

1960. Nesta época, os indígenas Kaingang viviam sob a repressão do então

governador Leonel Brizola, conhecida como a “caçamba do Brizola” que carregava

os indígenas para os aldeamentos a força. Além disso, na década de 1960 as TIs

Kaingang viviam sob o regime do “Panelão7”, instituído pelo SPI. Foi durante esse

período (que perdurou na década de 50 e 60) que surgiram os primeiros

acampamentos indígenas nas cidades e beiras de rodovias. Eles se configuravam

praticamente como único espaço fora desse sistema.

Fora do aldeamento e não tendo um território garantido para ocupar, o grupo

liderado por Manoel Soares precisou migrar de Santa Cruz, de onde teriam sido

expulsos. Em vista disto, passaram a ocupar o trevo de acesso à Bom Retiro do Sul

e posteriormente, estabeleceram-se, por orientação do DAER, no local onde estão

atualmente, isto é, no Km 360 da rodovia BR 386, em Estrela.

Há toda uma relação cosmológica do grupo com o atual território, porém este

espaço, apesar de já estar ocupado há cerca de quarenta anos pelo grupo, não é

reconhecido como Terra Indígena. Segundo já nos referimos, parte das terras

compreendidas pela aldeia, as margens da BR 386, é de domínio do DAER e outra 7 Sistema introduzido nas áreas do Sul do Brasil pelo SPI, a partir da década de 1940, que consistia no serviço obrigatório em “roças coletivas” (as roças do Posto). No regime de trabalho então implantado, os índios deixavam de ter direito de trabalhar em suas roças, sendo obrigados a trabalhar nas roças do posto em troca de comida: os homens para um lado e as mulheres para o outro. A comida era feita em uma cantina, em grandes panelas o que levou esse sistema a ficar conhecido como “panelão”. Isto aconteceu no pós Segunda Guerra, quando a Europa, pressionando por produtos agrícolas e por madeiras, levou a uma pressão sobre as terras e sobre as riquezas das terras indígenas, com reflexos também sobre o trabalho indígena (VEIGA, 2006a, p.5).

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parte é propriedade do senhor Erivelto Villlanova. Em 2006, o então governador

Germano Rigotto, com respaldo da legislação, autorizou a construção de casas para

os indígenas na propriedade de Villanova (A HORA, 26/01/2011). De lá para cá a

questão da terra se acentuou para este grupo Kaingang, que luta para ter seu

espaço ampliado e reconhecido como Terra Indígena junto a FUNAI.

No desenvolvimento deste capítulo, procuramos demonstrar que

historicamente os Kaingang foram sendo expropriados de seus tradicionais

territórios por conta de políticas que visavam à ocupação das terras ditas

“devolutas”, incentivadas pelo governo por meio da colonização e da imigração.

Diante de toda esta questão, os indígenas Kaingang que atualmente constituem a

aldeia Linha Glória, foram movendo-se no espaço, e resistindo as pressões da

sociedade nacional, sobretudo, a estratégia política dos aldeamentos então criados

pelo governo no século XIX. Desta forma, vieram a ocupar o município de Santa

Cruz do Sul e na década de 1960, deslocaram-se para o Vale do Taquari.

Constatamos a partir da análise dos dados coletados, que a vinda para esta região

foi motivada por sua tradição cosmológica, ou seja, retornaram para espaços

ocupados em tempos pretéritos por seus antepassados. Neste sentido, o fato de

estarem se (re) territorializando se deve, sobretudo, por uma relação de

pertencimento com o atual território, ou seja, estão retornando a espaços que já

eram seus no passado. Vimos também que os indígenas da Aldeia Kaingang Linha

Glória vêm sendo agentes de sua própria história, empenhando conquistas e

“lutando” contra pré-conceitos da sociedade não-indígena, firmando-se enquanto

etnia indígena diante de mobilização étnica.

A duplicação da BR 386 no trecho Estrela/Tabaí, aprovada em 2009 pelo

DNIT, reacende a discussão que há anos vem sendo litigiada pelas autoridades

competentes e pela FUNAI, ou seja, o direito do grupo de ter o território ocupado

ampliado e reconhecido como Terra Indígena, de maneira que garanta melhores

condições para sua reprodução física e cultural. Diante da grandeza deste tema,

ligado à duplicação da BR 386, e a garantia e o direito a terra, dedicaremos o

capítulo seguinte para o desenvolvimento deste assunto.

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3 OS EFEITOS DA DUPLICAÇÃO DA BR 386 NA ALDEIA KAINGANG LINHA GLÓRIA

A duplicação da BR 386 na altura do trecho Estrela/Tabaí, aprovada no ano

de 2009, e com início das obras no final do ano de 2010 é uma questão bastante

latente para a comunidade Kaingang da Linha Glória, no período atual. Esta obra irá

afetar diretamente o território da referida aldeia Kaingang e consequentemente, trará

prejuízos de ordem ambiental, econômica e social. Neste contexto, também

reacende a discussão sobre a legalização das terras da aldeia em Estrela como

Terra Indígena, já que a área onde a comunidade está instalada encontra-se em

situação irregular. Ou seja, depende de regularização fundiária, pois parte das terras

seria de domínio Federal e outra de propriedade particular do senhor Erivelto

Villanova.

Houve toda uma campanha no Vale do Taquari para que a duplicação da BR

386 fosse concretizada, havendo para isso, inúmeras justificativas que

respaldassem a importância da obra, sendo estas de ordem econômica (“Estrada da

Produção” atendendo a interesses econômicos e de capital) e social (devido às

mortes e acidentes freqüentes na rodovia). Desta forma, em 05 de maio de 2004 foi

criada a “Comissão Pró-Duplicação da BR 386”, tendo a frente, representantes de

diversas entidades, das áreas política e empresarial do Vale do Taquari, com o

objetivo de lutar pela efetivação da obra. Em 26 de agosto de 2008 foi lançada a

campanha “Duplique esta idéia”, que ganhou forças no Vale, e foi levada a votação

como um projeto a ser investido pelo PAC (Programa de Aceleração do

Crescimento) do Governo Federal, tendo sido eleito como um dos três projetos mais

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votados no Vale. Em 6 de agosto de 2008, técnicos do Governo Federal retomaram

os trabalhos para a duplicação (A HORA, 19/01/2011, p.6).

Desde 2009, a FUNAI e o Ministério Público passaram a intermediar a

questão junto ao DNIT (Departamento Nacional de Infra-estrutura e Transporte),

órgão responsável pelas obras. Em 06 de dezembro de 2009, o IBAMA (Instituto

Brasileiro de Meio Ambiente) concedeu a licença ambiental de instalação da obra (A

HORA, 19/01/2011, p.6). Para que este documento fosse liberado houve a

necessidade de estudos de impacto socioambiental no trecho a ser duplicado, o que

inclui por direito constitucional, a aldeia Kaingang Linha Glória. Dentre os impactos

gerados pela duplicação, no que se refere à questão ambiental, temos:

Os principais impactos gerados pela implantação da obra são: interferência no tráfego; aumento na emissão de ruídos e poeira; pressão sobre as áreas de Preservação permanente (APP); corte da vegetação; atropelamento de animais; desapropriação de terras – considerado pequeno no caso da aldeia; intervenções na aldeia caingangue; destruição de patrimônio arqueológico histórico [...] (O INFORMATIVO DO VALE, 18/10/2010, p.3)

Percebe-se, com base nesta fonte jornalística, que aparece a questão da

desapropriação de terras, que por ordem afeta de forma direta o território da aldeia e

faz surgir ainda outro problema que é o impacto ambiental gerado pela obra. É

preciso entender que os indígenas Kaingang, mantém uma relação direta com a

natureza. Na cultura deste grupo, a natureza é uma extensão da própria vida, então

se não há natureza, consequentemente a vida acaba sendo comprometida. Isto fica

evidente na fala de uma das lideranças da aldeia Kaingang Linha Glória:

A terra é o que nóis sobrevivemo e a natureza porque tem os bichinho, os passarinho. Isso que também a natureza assim e a terra são o convívio da água, e a terra é o que nóis precisemo sobrevivê. A natureza assim é da água que vem, e tem os passarinho que tem e aí a gente fica escutando os que vêm. Que nem tem uns tucano que vem de outras áreas e vem aqui pra cá. Eles vem nessas árvore aqui. A gente só fica olhando e escutando. A natureza pra nóis é assim é mais difícil de dize: “Ah, vamo mata a natureza deles”. Pra nóis não tem como! Nem nóis não somo capaz de derrubá uma árvore. A gente já sabe que o convívio da natureza, da sombra que tem, até no caso se um dia nóis ganha aquelas terra [aponta para o lado oeste da aldeia], nóis vamo planta árvore ali [área com plantação de milho] (EF, 21/04/2011, p.3).

É possível afirmar ainda, que a terra ocupa um lugar primordial na vida

Kaingang. Além de necessitarem dela para a manutenção material e simbólica da

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vida, o grupo também, segundo sua cosmologia e seu mito de origem, nasceu da

terra e a entende enquanto mãe. Assim sendo, sua cosmologia dual, relacionada ao

mito dos gêmeos fundadores da sociedade Kaingang (Kamé e Kainru), nascidos da

terra, perpassa as diversas esferas da vida, marcando sua organização social e a

classificação dos seres do mundo (MORAES, 2009).

Dentre os benefícios exigidos pela FUNAI para o grupo, está a construção de

um túnel para travessia na rodovia e um quiosque para a venda de artesanato. Após

tratativas, em reuniões realizadas com a FEPAN, IBAMA e antropólogos, ficaram

combinadas diversas adaptações na obra como, por exemplo, o canteiro central que

no perímetro duplicado terá 6 metros de largura, no trecho da área indígena a

rodovia será estreitada, e o canteiro será apenas uma mureta (A HORA, 30/07/2010,

p.5).

3.1 Medidas “Compensatórias” x Direitos Indígenas

Entre as medidas “compensatórias” prometidas pelo DNIT em junho de 2010,

estão à construção de um galpão, de uma escola e de dezesseis novas casas para

os indígenas de Estrela, o fornecimento de sementes artesanais variadas e a

aquisição de cento e vinte hectares de mata nativa, que deverá ser repartida entre

sete aldeias localizadas nos municípios de Estrela (Aldeia Linha Glória), Lajeado

(Aldeia Fochá), Farroupilha (Aldeia Farroupilha), São Leopoldo (Aldeia Por Fi) e

Porto Alegre (Aldeia Morro do Osso, Aldeia Lomba do Pinheiro e Aldeia Morro

Santana). A comunidade Kaingang de Linha Glória deverá ficar com a maior fatia, ou

seja, cerca de trinta e três hectares de terra, já que é a maior impactada com a

duplicação. O DNIT também terá que comprometer-se com o repasse de cestas

básicas por famílias, mensalmente, desde o início até o término das obras. Neste

sentido, as obras só poderiam iniciar no trecho da aldeia quando as medidas de

compensação fossem atendidas pelo DNIT (A HORA, 26/01/2011, p.7).

O Laudo Antropológico elaborado em 2008, pelos antropólogos Jaci

Gonçalves e Alexandre Magno de Aquino, aponta para as seguintes medidas de

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mitigação como forma de amenizar os impactos produzidos pela duplicação da BR

386:

1. Investir em projetos que contribuam para a revitalização cultural tanto em instituições de ensino particulares estaduais e federais como os projetos de identificação e demarcação de nova terra de acordo com recursos naturais e simbólicos aportados pelo grupo.

2. Necessidade de criar um GT 3 (TIs Morro do Osso, Lajeado, Estrela, São Leopoldo, Lomba do Pinheiro, Farroupilha Morro Santana conforme compromisso da FUNAI, sede Passo Fundo e Brasília) para indicar novos espaços com potenciais de ocupação e garantir os espaços atualmente ocupados.

3. Necessidade de criar GT´s para cuidar da ocupação até à autonomia e revitalização da cultura.

4. Regularização da TI em andamento pelo CEPI de acordo com a legislação.

5. Diagnóstico etnoambiental das terras indígenas ocupadas a partir de indicações dos índios, em conjugação com a política de identificação e demarcação de TI.

6. Implementar programas de apoio para autosustentabilidade e autonomia da comunidade.

7. Regularização, construção de moradia, banheiro, água e saneamento. 8. Reforma e construção da escola, posto de saúde e centro cultural de

acordo com projeto etno-cultural. 9. Construção de aviário coletivo calculado sete (7) galinhas por família,

apiário, curral com a compra de 1 vaca a cada 4 famílias. 10. Material para apicultura 10 caixas, fumigador, centrifugador e roupas de

proteção bem como aporte teórico de criação de abelhas nativas. 11. Jogo de 1 enxada, 1 facão, 1 martelo, um alicate, um machado e uma

foice por família nucleada. 12. Implementação de pomar (bergamota, limão, jabuticaba, banana,

laranja). Implementação de telefone público, construção de um açude. 13. Implementação de um horto medicinal com necessidade de se fazer um

levantamento etnobotânico com o próprio grupo e identificar as mudas desejadas além de outras exóticas à cultura.

14. Implementação de mudas nativas principalmente aquelas que comungam da cosmovisão desse povo, também aquelas que servem de matéria prima ou alguma outra função específica dentro da ecologia do grupo (GONÇALVES, 2008a, p.83-84).

No item relativo aos impactos, que a obra de duplicação da BR 386 pode

gerar a fauna e à flora, o relatório sugere que se realize “a compra de Terra

Indígena”, ampliando o espaço atual com o recurso para indenização dos povos

originários constante da cláusula dos financiadores internacionais do projeto de

duplicação; respeitando a escolha Kaingang em seu contexto cultural

(GONÇALVES, 2008a, p.85).

O Programa de Apoio às Comunidades Kaingang responsável por elaborar o

Plano Básico Ambiental das Obras de Duplicação da rodovia BR 386 (Km 350,8-

386,0) entregue em junho de 2010, sob a responsabilidade de Alexandre Nunes da

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Rosa, aborda de forma bastante peculiar a questão das influências, o que torna claro

a reivindicação de terras para as sete aldeias impactadas. Sobre esta questão

temos:

O Relatório Complementar do Componente Indígena classificou e justificou a ocorrência de duas áreas de influência caracterizadas de acordo com a relação entre a organização indígena na região e as formas de ocorrência do empreendimento. Ou seja, a intensificação de uma unidade política territorial pan aldeã causada pela organização do empreendimento. Neste sentido, estabeleceu-se uma área de influência direta (AID) composta pelas aldeias de Estrela e Lajeado; e uma área de influência indireta (AII) composta pelos aldeamentos de: Farroupilha, São Leopoldo, Morro do Osso, Lomba do Pinheiro e Morro Santana. [...] Embora haja uma unidade coletiva marcada pelas aldeias da grande Porto Alegre e do Vale do Taquari, cada uma delas possui sua autonomia em termos de chefia e de demandas específicas (ROSA, 2010, p.3, grifos do autor).

Surge a partir daí uma questão, muito maior, que vem de largo período de

tempo, acompanhando não só este grupo da aldeia Linha Glória, como também

muitos outros grupos indígenas que lutam para ter seu território legitimado e

reconhecido, qual seja, a legalização de suas áreas de terras como Terra Indígena.

Esta questão vem, desde o princípio, gerando muitas discussões e impasses entre

o grupo Kaingang, a FUNAI e o DNIT, visto que, com a duplicação da BR 386, surge

a necessidade de desapropriação de parte da aldeia Kaingang, que embora seja

anunciada como sendo “pequena”, é importante refletirmos que o espaço atual já é

bastante limitado para este grupo, formado por mais de cento e cinquenta indígenas,

que historicamente possuem a tradição de um amplo território, sendo este

imprescindível para sua sobrevivência física e cultural.

Para entendermos melhor os sentidos desta territorialidade Kaingang, nos

respaldamos nos estudos de Paul E. Little (1994) que desenvolve suas ideias a

partir da premissa de que a memória coletiva é uma das maneiras mais importantes

pelas quais os povos se localizam num espaço geográfico. Desta forma, o território é

muito mais cultural do que propriamente um espaço físico ou geográfico. Mesmo

migrando de um território para outro, questões relacionadas com a memória, migram

junto. Paul E. Little (1994, p.9) define esta prática como “(re) territorialização”, ou

seja, o espaço ocupado é portador de memórias coletivas que fundam a existência

de determinados grupos em determinados espaços geográficos. Podemos

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exemplificar na atualidade, as reivindicações tanto da aldeia do Morro do Osso, de

Porto Alegre, quanto a aldeia Linha Glória, de Estrela.

Diante dos acordos estabelecidos entre a FUNAI e o DNIT, com relação à

área de terras, em janeiro de 2011 a possibilidade de remanejo dos indígenas da

aldeia Linha Glória gerou manifestações do grupo, devido ao fato de não terem sido

consultados sobre esta possibilidade de desocupação da área, uma vez que os

acordos iniciais não eram estes. Segundo a ex-cacique Maria Antônia Soares da

Silva, em documento entregue pelo DNIT em junho de 2010, não estava previsto o

remanejo dos indígenas do local (A HORA, 26/01/2011, p.7).

A questão é que há um impasse entre o que é acordado e efetivamente

realizado. Embora muitas autoridades e até mesmo alguns meios de comunicação

tentem minimizar os indígenas, não são eles que impedem a duplicação da BR 386,

conforme fora noticiado amplamente pela imprensa no início deste ano de 2011:

“Índios ameaçam trancar a duplicação”, “Remoção de índios pode paralisar a

duplicação”, “Duplicação pode trancar em maio” ou ainda “[...] índios são o maior

empecilho para a duplicação” (A HORA, 2011), mas o não cumprimento dos seus

direitos pelos órgãos competentes. A verdade é que os indígenas são sujeitos de

direitos, e como tal devem ser respeitados. Neste sentido, a Procuradoria da

República enfatiza que “[...] dos próprios indígenas nunca houve uma resistência

contra a duplicação da BR. O que eles sempre quiseram tanto os de Lajeado quanto

os de Estrela, é que fossem assegurados os direitos mínimos deles” (EB,

15/03/2011, p.1).

O que houve de fato é que antes do início das obras as medidas de mitigação

e compensação – diminuição de impacto, acordadas com a aldeia indígena de

Estrela deveriam ter sido efetivadas, o que não ocorre. Esta situação faz com que a

FUNAI, que é o órgão responsável pela tutela dos indígenas, pressione o DNIT para

cumprir o que foi negociado com o grupo. Entre as promessas estava a

compensação do território que deveria ser de trinta e três hectares de terras

adquiridas. A coordenadora de acompanhamento de licenciamento ambiental da

FUNAI, Júlia Paiva, afirmou que o DNIT liberou, em julho as obras, porém, o trecho

entre os Km 353 e 360 foi excluído da documentação. Segundo ela, a Constituição

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Federal proíbe a desapropriação de áreas indígenas sem indenização e que para

receber a liberação, o DNIT precisa resolver o impasse da área de terras (A HORA,

19/01/2011, p.6).

O fato é que em nossa sociedade, o direito das minorias étnicas, muitas

vezes é negligenciado pelos órgãos competentes por conta de jogadas políticas

visando ao favorecimento do capital. Vivemos em um país que se define, segundo

sua própria Constituição, como multicultural e pluriétnico. No entanto desconsidera

essas riquezas, por conta de “grandes projetos” que visam o “desenvolvimento

nacional”. Carlos Eduardo de Moraes através de seu texto “Territorialidades

indígenas e hidrelétricas” (2009) analisa com propriedade os efeitos das construções

de hidrelétricas nos territórios indígenas do Rio Grande do Sul. Retomando as

reflexões feitas por Moraes, podemos relacioná-las a este “empreendimento” que é a

duplicação da BR 386, que por consequência afeta e fere a especificidade indígena

e o direito a terra.

Em jogo em toda essa problemática está o desrespeito à diferença. A alteridade não é compreendida enquanto diversidade cultural, uma das maiores riquezas do Brasil, mas é tratada enquanto desigualdade, em que os indígenas são considerados “incapazes” e “não-dignos” de seus direitos, principalmente sobre a terra. A ideologia dominante não mais é a de integrar o índio à sociedade, mas desconsiderá-lo enquanto sujeito de direito e representante de coletividade diversa culturalmente (MORAES, 2009, p.499).

A Procuradoria da República, por sua vez, é o órgão Federal que tem o

compromisso de assegurar os direitos constitucionais indígenas. É, sobretudo, uma

política institucional de proteção às comunidades indígenas que deve zelar pelo

cumprimento da lei. E a Constituição de 1988, em seu Capítulo VIII, que trata

especificamente “Dos Índios”, explicita o seguinte sobre o direito indígena a terra:

Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. § 1º - São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários ao seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições (PINTO; WINDT; CÉSPEDES, 2007, p.162).

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É necessário compreender, porém, que o direito originário a terra se justifica

pela ótica pretérita de ocupação indígena, ocupação esta que se deu antes mesmo

da formação do estado nacional brasileiro. O mito de que o Brasil fora “descoberto”

pelos portugueses se desconstrói na medida em que o território já era amplamente

ocupado por uma diversidade de povos indígenas, cada qual com seu sistema

jurídico próprio e sua organicidade e concepção de território (DIETRICH, 1995). O

reconhecimento feito pela Constituição de 1988 é no sentido de afirmar que

presentes os elementos necessários para definir uma determinada área de terras

como indígena, o direito a ela por parte da comunidade indígena que a ocupa, existe

e se legitima independente de qualquer ato constitutivo. Quando questionamos

algumas lideranças sobre a comprovação da ocupação pretérita deste território, e

por que teriam retornado a estes espaços, fundando aldeias em áreas urbanas, o

depoente G faz referência às marcas deixadas no passado. Vejamos o que informa:

Isso aí a gente já tinha a história dos nossos velhos. Que no passado quando eles saíram de Nonoai pra vir conversar com o governo, eles na época não tinham carro, vinham a pé pra fala com o governo de Porto Alegre e daí por causa disso tem esses territórios. Que por exemplo, começa lá em Carazinho. Ali tem um território onde eles vinham e descansavam por ali, onde é que faziam o fogo deles, onde é que eles ficavam ali, descansando. Daí depois eles iam de novo até chega em Porto Alegre. Por isso que tem esses território. Que nem tem em Carazinho, tem aqui em Lajeado, tem em Estrela, São Leopoldo! São Leopoldo no século XIX tinha índios pelado por ali ainda, tinha ali! Então ali não tem nem como dizê que ali não tem território indígena! Tem, a gente sabe disso, que os nossos avós, nossos pais falavam! E vieram vindo! Daí quando chegavam faziam um barraco em Porto Alegre onde é que eles iam pará nesse Morro do Osso! Aí eles ficavam por ali e até que eles iam conversando com o governo. E depois eles retornavam de novo pras aldeia. Então ali... essas trajetória dessas aldeia. E a nossa vinda foi por causa de que quando a gente era pequeno, os pais diziam “Olha, lá em tal lugá tem uma aldeia assim, assim, e ali a gente passou, ali tem a nossa cinza, a onde a gente fez o fogo né!” Por isso que cada lugar desses aí, hoje tem índio acampado! É onde que os pai diziam pra eles que era um lugar pra eles ficarem (EG, 05/05/2011, p.2).

Na realidade, os Kaingang nunca saíram de Lajeado, nem de Estrela, São

Leopoldo, Porto Alegre ou mesmo Farroupilha. Isto fica evidente a partir do

depoimento citado anteriormente. Essa história é a história dos antepassados

Kaingang que andaram e viveram também no Vale do Taquari. A evidência oral

apresentada através do depoente G contribui para uma história que não só é mais

rica, mais viva e mais comovente, mas segundo Thompson (2002, p.137) “também

mais verdadeira”. Os “objetos” de estudo se transformam em “sujeitos” de sua

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própria historicidade. Neste sentido, a história oral traz a história para dentro da

comunidade e extrai a história de dentro da comunidade, contribuindo para formar

seres humanos mais completos.

Com a Lei de Terras de 1850, os grandes proprietários do Rio Grande do Sul

tiveram que regularizar suas posses e definir os limites de seus latifúndios. Também

as posses mansas e pacíficas tiveram que ser legitimadas conforme as regras

previstas no artigo 5° da Lei de Terras. Apesar da ocupação primária prevista na lei,

os indígenas não se enquadravam na categoria de posseiros. Assim, a Lei de Terras

dificultou o acesso de uma população nativa à propriedade fundiária, especialmente

aquela de origem indígena. Segundo Sílvio Marcus de Souza Correa, Karin Elinor

Sauer, Carine Grasiela Back e Carlos Gabriel Costa (2007, p.5) “durante este

período, ocorreu a primeira desterritorialização dos indígenas da região dos Vales

(Taquari, Caí, Rio Pardo) no Rio Grande do Sul, pois o Governo Provincial procurou

aldear às diferentes tribos em um único território localizado na região norte do

estado”, para que as antigas áreas destes grupos autóctones fossem então

utilizadas na colonização e imigração de europeus que vinham para a então

Província de São Pedro. O Vale do Taquari já era habitado por indígenas antes da

chegada dos europeus. Na visão destes autores, a política de ocupação das “terras

devolutas” através da colonização e a política de aldeamentos dos indígenas,

concorreram para a marginalização de indígenas, mestiços e afrobrasileiros naquela

região. No século XIX, o deslocamento dessas populações por fatores externos foi

uma constante na história regional. (CORREA, et al, 2007).

Um dos argumentos mais usados na expropriação territorial dos indígenas era

de que o uso indígena da terra era improdutivo, ecologicamente destrutivo e

irracional. Mais tarde, passou-se a culpar a fragilidade do meio ambiente (solos

frágeis, rios com pouco peixe, animais escassos, etc.). Hoje em dia estes

argumentos não se sustentam mais. Com base em Seeger e Castro (1979)

constatamos que o uso indígena do solo era bem mais produtivo do que se

imaginava. Passou-se recentemente a levar em consideração que os recursos

naturais variam consideravelmente em termos regionais. A escassez de recursos

passa a ser um problema determinante para os grupos indígenas, na medida em

que a sociedade nacional invade seus territórios tradicionais.

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Atualmente são quatorze hectares de terras ocupadas pela comunidade

Kaingang de Linha Glória, Estrela (ANEXO A). O espaço atual foi uma conquista do

grupo, obtida em março de 2006 (RELATÓRIO Técnico de 19/04/2007 – Ministério

Público Federal, Lajeado). Anterior a este período, a área de terras era de apenas

oito hectares. Esta ampliação propiciou a construção de dezesseis novas casas para

os indígenas. Parte das terras é ocupada pelas habitações e benfeitorias, como

escola, horta e tendas para venda de artesanato. Outra parte, mais preservada, está

coberta por uma vegetação em estágio médio de regeneração, composta por

árvores nativas e algumas espécies exóticas (GONÇALVES, 2008).

Tradicionalmente o território Kaingang era concebido como um espaço sócio-

cosmológico de relações amplas onde a terra era compreendida como um mosaico

de recursos que poderia ser explorada de forma coletiva, com exceção do pinheiral,

que era dividido entre os subgrupos. Cada subgrupo tinha uma parcela do pinheiral

sobre a qual exercia o direito de coleta do pinhão (TOMMASINO, 2000). Da mesma

forma, as construções realizadas sobre o solo, como as roças, por exemplo,

pertenciam a quem as realizou. Assim, cada roça tinha o seu dono e essa

propriedade era reconhecida coletivamente. Como a agricultura Kaingang é rotativa,

depois de abandonada, a roça voltava ao meio ambiente e à condição de terra

coletiva, passando a ser utilizada com novas funções (TOMMASINO, 2000).

A natureza com todas as suas possibilidades era de extrema importância para

a vida do indígena Kaingang. Neste sentido, servia de base para a sua subsistência,

bem como era utilizada como fornecedora de remédios, água, madeira para o

fabrico das casas, materiais para produção de tintura para marcação de flechas,

dentre outras. Ítala Basile Becker (1995, p.175) informa que “tudo o que o habitat

põe ao seu alcance: terra, água, vegetais, minerais, etc. – é explorado intensiva e

extensivamente pelo Kaingang, desde que o produto oferecido venha ao encontro

das necessidades de sua cultura primária”.

Esta questão histórica serve para ilustrar que existe uma relação cultural do

Kaingang com a terra. A comunidade Kaingang de Linha Glória já não pode mais, no

período atual, vivenciar na totalidade a prática dos emã e dos wãre conforme sua

tradição cultural. Isto porque seu território foi tomado e transformado pelos não

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indígenas, e após 1850 passaram a ser reduzidos em pequeníssimas parcelas de

seus tradicionais territórios, por conta da política dos aldeamentos. Na atualidade é

imprescindível que estes grupos tenham um espaço, que ao menos lhes dê

condições de viverem o mais próximo possível de suas tradições culturais.

Para compreender a lógica que envolve a questão do uso da terra e a

necessidade que estas comunidades têm de ter um território amplo e legitimado. A

Procuradoria da República de Lajeado, ao fazer referência ao artesanato indígena,

relaciona esta prática cultural com a terra, enfatizando:

Isso [o artesanato] é muito importante para eles! Além de ser uma fonte de renda, de resgatar essa cultura, por isso que eles precisam! As pessoas questionam “Por que eles precisam de tanta terra?” Às vezes, um dos motivos é esse: pra colher material do mato. Eles precisam disso! Aí depois as pessoas reclamam: “Ah, eles querem tanta terra!” Talvez o maior problema que o indígena enfrente é esse - olha desde que eu entrei na Procuradoria em 2005, e, talvez eu esteja falando agora com maior certeza! - O indígena tem que ter uma fonte de renda porque a FUNAI, por exemplo, ela não tem mecanismos suficientes para dar tudo o que eles precisam. O indígena precisa do básico que é comer, mesmo! Independente de tu ser branco, negro ou amarelo, por exemplo, não tem..., tem que assegurar que estas comunidades tenham uma fonte que possa ser auto-sustentável. Pelo menos para o básico que é comer! Querem que os índios vivam da caça! Não se vive mais da caça!! Isso é utópico, ao menos aqui no Rio Grande do Sul! (EB, 15/03/2011, p.6).

O desejo de ter uma área de terras que lhes permita plantar para seu próprio

sustento pode ser percebido na fala de uma das lideranças da aldeia Linha Glória,

que ao ser questionada sobre a importância de ter uma área de terras maior diz:

“Aqui dentro da área o mais importante seria assim pra gente planta, fazê uma

lavoura de milho, batata-doce, feijão [...]” (EF, 21/04/2011, p.3). Algumas famílias já

cultivam atualmente pequenas hortas com mudas de verduras recebidas da

EMATER e do COMIN, porém devido ao espaço limitado, não é possível o cultivo de

roças por todas as famílias. Há também a criação de alguns animais, por algumas

famílias, como galinhas e porcos.

Essa relação com a terra, como fonte de subsistência é percebida também na

fala de outras lideranças, das aldeias de Porto Alegre e São Leopoldo. Ao serem

questionados sobre “Por que a terra é tão importante?”, um de nossos depoentes

destaca que “a terra pra nóis é a nossa mãe! [...] por que ela é que nos cria, ela que

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nos dá sustentabilidade sobre o fruto, aonde nasce o mato nativo que dá fruto, é

dela que nasce todo o nosso sustento!” (EG, 05/05/2011, p.2).

Para explicitar esta questão da terra como meio de produção e território

político, Anthony Seeger e Eduardo Viveiros B. de Castro (1979) contribuem no

sentido de sublinhar a diferença entre terra como meio de produção, lugar do

trabalho agrícola ou solo, onde se distribuem os recursos animais e de coleta, e o

conceito de território tribal, de dimensões sócio-político-cosmológicas mais amplas.

Na concepção destes autores, vários grupos indígenas, dependem, na construção

de sua identidade, de uma relação cosmológica com o território.

Essa relação da “Mãe terra” como fonte de subsistência e meio de produção,

pode ser verificada na fala de outra liderança das aldeias em Porto Alegre e São

Leopoldo, já citadas anteriormente. Segundo ele:

A terra ela é tudo! Ela é tudo pra nóis! Por que é na terra que a gente encontra os alimento! Alimento assim, também que era mais natural, que hoje! Se a gente quer plantá só um alimento mais natural, não misturado com tóxico assim... E hoje a terra nos trais também vida! [...] Hoje ela tá sendo massacrada também! Ela é mãe da gente e muitas veis ela ta sendo massacrado! Onde tem banhado muitas veis é plantado eucalipto e muitas vezes é sugado tudo, e aquele banhado vira uma terra que não trais mais nada pra gente. Eu vejo assim que a nossa mãe terra tá sendo assim muito massacrado e muita veis a gente ta pedindo socorro e por isso que hoje muitas veis a gente ta vendo que vai fazê falta pra nóis os rio que está secando[...] Então tudo isso! (EG, 05/05/2011, p.4).

Ainda com base em Seeger e Castro (1979) constatamos que as fronteiras

geográficas do território eram algo importante para alguns grupos indígenas, porém,

para outros, tais fronteiras eram “fluidas”, “móveis” como, por exemplo, os indígenas

Kaingang. A terra nunca era definida como propriedade e era sempre investida no

grupo local. Sobre isto, temos:

A propriedade – se esta noção faz algum sentido no caso – era investida no grupo local, e os direitos individuais ou familiares se exerciam sobre o trabalho na terra, sobre os frutos deste trabalho. Neste sentido, a terra não podia ser definida como espaço homogêneo e neutro, mas como mosaico de recursos desigualmente distribuídos por uma superfície sem existência conceitual nítida. O território, enquanto tal, podia ou não ser pensado como espaço fechado – isto dependia sobretudo das relações entre diferentes grupos tribais de uma mesma região, e também das formas econômicas prevalecentes (SEEGER; CASTRO, 1979, p.104-105).

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No período anterior e mesmo nos primeiros tempos de contato, cada grupo

local Kaingang possuía um subterritório próprio e este poderia explorá-lo segundo

regras determinadas culturalmente. Neste sentido temos a seguinte afirmação:

As visitas entre parentes dos diferentes grupos locais eram muito frequentes e a recepção (à margem dos rios, na soleira da casa) era feita ritualmente. Portanto, uma sociedade Kaingang se distribuía em vários grupos locais formando sub-territórios que eram socialmente interligados, e cada grupo possuía uma área de exploração, fato que remete para a existência de um código jurídico e para um conceito específico de propriedade territorial Kaingang, distinta do conceito capitalista de propriedade privada (TOMMASINO, 2000, p.195).

Nesta lógica, o território era concebido como um espaço sócio-cosmológico

de relações amplas onde a terra era compreendida como um mosaico de recursos

que poderia ser explorada de forma coletiva, com exceção do pinheiral, que era

dividido entre os subgrupos. Cada subgrupo tinha uma parcela do pinheiral sobre a

qual exercia o direito de coleta do pinhão (Tommasino, 2000, p.197). Da mesma

forma, as construções realizadas sobre o solo, como as roças, por exemplo,

pertenciam a quem as realizou. Assim, cada roça tinha o seu dono e essa

propriedade era reconhecida coletivamente. Como a agricultura Kaingang é rotativa,

depois de abandonada, a roça voltava ao meio ambiente e à condição de terra

coletiva, passando a ser utilizada com novas funções (Tommasino, 2000, p.199).

Os dados apresentados anteriormente por Tommasino (2000) demonstram a

existência de várias formas de propriedade Kaingang. Ou seja, de direito ao uso

comum do território para caça e para coleta (exceto pinheiral), propriedade

individual/familiar da roça e das armadilhas de pesca, propriedade coletiva de cada

grupo local pelas terras de campo onde estabeleciam seus alojamentos fixos (emã).

No período anterior e mesmo após o contato com a sociedade nacional, os

Kaingang foram se expandindo, no entanto, não abandonaram seus territórios

ocupados, com exceção daqueles que lhes foram expropriados pelos colonizadores

(Tommasino, 2000, p.200).

A base do sustento do grupo da aldeia Linha Glória, atualmente é proveniente

da feitura e da venda do artesanato, que depende da disponibilidade de materiais e

de um clima favorável. Para isso o grupo precisa caminhar dois, três, quatro

quilômetros, em condições muito perigosas, para buscar o material. Desta forma, a

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ampliação do território é fundamental também para que eles possam tirar do mato, a

matéria prima necessária e não precisem mais correr riscos, conforme confidencia

uma das lideranças em questão:

Permanecê aqui e se dé pra compra essa área de terra que a gente possa entra pra tira o cipó, o artesanato da gente, pelo menos a gente não fica com medo. A gente vai nos mato pra busca, a gente fica com medo, de não morre, de não leva corridão. Pelo menos se eles comprá essa área, daí fica melhor (EF, 21/04/2011, p.3).

Neste sentido, uma das matriarcas da aldeia também demonstra esta

dificuldade do grupo na busca de materiais para fazer o artesanato. Segundo ela

“Vai de manhã, fica pra lá e vem duas, três hora pra casa de lá. É longe, muito

longe! Daí a gente traís e faz, depois a gente vai buscá de novo. Mas eu já não

aguento mais buscá. Dói as perna! Eu já tô veia!” (EC, 17/03/2011, p.5). Além das

necessidades básicas de subsistência ligadas a terra, o grupo ainda se utiliza do

mato como fonte para a busca de plantas medicinais. Sobre isto temos:

Isso também faiz parte da natureza que é os chá que nóis sempre temo ali. Que nem assim aqui perto da aldeia nóis temo um monte de pé de chá que a gente sabe, nem nóis não somos capaz de derrubá. A gente já sabe: aquilo é bom pra tal coisa! Isso, os chá pra nóis também é importante! Não desmatá, não derrubá! (EF, 21/04/2011, p.4).

Assim como no passado, a natureza com todas as suas possibilidades

continua sendo imprescindível para a vida dos indígenas Kaingang. A mata oferece

os recursos necessários à subsistência do grupo e ao mesmo tempo está coberta de

significados. Com a duplicação, grande parte da vegetação existente atualmente

será suprimida (ANEXO B e C).

No entanto, no desenrolar dos acontecimentos relacionados à duplicação da

BR 386, percebe-se que as medidas compensatórias que deveriam ser atendidas

antes mesmo do início das obras não se efetivam. Após uma reunião realizada na

aldeia em março de 2011, envolvendo diversos segmentos ligados à obra como o

DNIT, a FUNAI e lideranças Kaingang da aldeia Linha Glória, apenas duas das

medidas compensatórias que são o repasse de cestas básicas por família,

mensalmente, e a disponibilidade de matéria prima para a feitura do artesanato

foram atendidas. A este respeito uma depoente da aldeia Linha Glória informa que

as cestas básicas “[...] já tão vindo! Isto pela parte deles já tá cumprido. As cestas

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básicas e os material pra gente fazê os artesanato também já tão cumprindo!” (EF,

21/04/2011, p.4).

Visto que todos os temas, que se relacionam a terra no Brasil são

conflituosos, especialmente quando se trata da questão indígena de direito a terra,

com o grupo indígena da aldeia Linha Glória não é diferente, e esta questão se

mostra de forma bastante fervorosa com a duplicação. Atualmente vivem no local

cerca de trinta famílias, que necessitam de um espaço físico legitimado e que lhes

dê condições de viverem de acordo com seus próprios códigos culturais e,

sobretudo de forma digna.

Há um impasse a ser resolvido que é a legalização e a ampliação daquela

área de terras como Terra Indígena. Não há por parte do grupo, o desejo de deixar o

local, como fora preconizado por algumas lideranças políticas municipais, pelo DNIT

e mesmo pela FUNAI. Há uma relação cosmológica com este território. Os indígenas

Kaingang têm plena consciência de que este território fora ocupado pelos seus

antepassados, e sabem que há comprovação arqueológica desta ocupação,

conforme podemos citar os estudos de Jairo Henrique Rogge intitulado “Fenômenos

de fronteira: um estudo das situações de contato entre os portadores das tradições

cerâmicas pré-históricas do Rio Grande do Sul” (2004) e Luís Fernando Laroque

“Guaíba no contexto histórico-arqueológico do Rio Grande do Sul (2002). Da mesma

forma já estão no local há mais de 40 anos. Muitos de seus filhos nasceram ali. Seus

umbigos estão enterrados nestas terras. Por tudo isso, há toda uma simbologia e

uma relação do grupo com o território. Isto fica evidente na fala de uma liderança.

[...] É que a gente não qué sai daqui! A gente tá acostumado também desde criança. Eles [DNIT] querem acha uma área pra nóis que tenha artesanato, açude, água. A nossa idéia é fica aqui! Nóis não queremo saí daqui! Nóis fizemo até uma proposta pra eles de pelo menos compra esse pedaço aqui, que bem dizê tantos ano que nois já tamo aqui é nosso já! Não tem como dizê que não é! [...] Eu não sei se eles vão compra aqui pra nóis ou se vão quere tira nóis. Não tem eles quere! Não vai te eles quere por conta deles! A resposta deles depende de nóis! Como nóis não que sai daqui de jeito nenhum, não tem como (EF, 21/04/2011, p.2).

Durante um encontro informal do grupo que integra o Projeto de Extensão da

Univates e que estuda a História e Cultura Kaingang em Lajeado e Estrela, sob a

coordenação do Professor Luís Fernando da Silva Laroque, realizado no dia doze de

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agosto de 2010, na aldeia Kaingang Linha Glória, a atual cacique Maria Sandra

mencionou que havia uma preocupação do grupo na garantia do espaço territorial

para seus filhos. E revelou ainda que sua irmã, que faleceu, vítima de acidente na

BR 386, foi enterrada no local escolhido por ela, em um ponto da aldeia, próximo de

uma árvore. Esta evidência de enterramento no local é também uma marca no

território, que perpassa por uma questão simbólica.

O que se observa é que mesmo com o avanço da legislação direcionada às

populações indígenas, após a promulgação da Constituição Federal de 1988, há um

distanciamento muito grande no trato desta questão de direito indígena a terra, no

que diz respeito à duplicação da BR 386, e conforme afirma Moraes (2009)

enquanto regimentação política, o texto Constitucional se faz valer apenas sob

pressão das comunidades mobilizadas. Embora algumas reuniões tivessem

acontecido com as comunidades indígenas impactadas, o que tem envolvido não só

as lideranças indígenas de Estrela, mas também lideranças das outras comunidades

atingidas como, por exemplo, o cacique Valdomiro Xe Vergueiro (Aldeia Morro do

Osso – POA), Cacique Alécio Garfêj de Oliveira (São Leopoldo – Aldeia Por Fi), o

cacique Dilôr Vaz Gaten (Aldeia Fochá – Lajeado), dentre outras, percebe-se que há

certa dificuldade no avanço das negociações, justamente por apresentarem uma

forma diferente de ocupação do espaço e de significação da natureza o que difere

enormemente do modelo capitalista da sociedade vigente. Devido a isto, as

comunidades indígenas são consideradas, muitas vezes, entraves ao

desenvolvimento.

Suas concepções acerca do ambiente não se pautam por uma lógica quantitativa de mercado, para a qual as áreas de mata são consideradas áreas improdutivas, desperdiçadas com populações que não são merecedoras de faixas tão extensas de terra. Os critérios de diagnósticos/impactos não dão conta da realidade indígena, pois conceitos como impacto direto, impacto indireto, estão longe de equacionar o real impacto sobre a cultura indígena, nos termos de uma razão simbólica, divergente do pragmatismo da sociedade ocidental (MORAES, 2009, p.520, grifos do autor).

Conforme procuramos demonstrar, os indígenas são sujeitos de direitos, e

dentre estes se coloca a questão da terra, como um direito originário. Diante da

problemática da duplicação da BR 386 é urgente que se cumpra com as medidas

compensatórias, para que de fato este grupo pelo menos, possa reaver algumas das

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enormes perdas sofridas com a implantação desta obra e com o processo de

expropriação e degradação ambiental que já vem de largo período histórico, e que

se agrava frente à realidade da duplicação.

3.2 O indígena Kaingang como agente de sua própria historicidade: compassos e descompassos frente à duplicação

Antes da autorização legal para o início das obras houve todo um processo de

reuniões e diálogos, de pelo menos dois a três anos, que aconteciam regularmente,

com a presença dos Kaingang, junto com o IBAMA, DNIT, FUNAI/núcleo Porto

Alegre e/ou Passo Fundo, FUNAI Brasília, Ministério Público Federal, especialmente

o Ministério Público Federal de Lajeado, objetivando que as obras fossem aprovadas

e pudessem iniciar. Nestas reuniões também havia a presença de técnicos e de

representantes do CEPI. Neste processo, foram realizados estudos e construídos

programas, que significam “medidas compensatórias”. Sobre isto, o depoente H nos

fala:

Tais medidas deveriam compensar danos que a duplicação da rodovia causa para os Kaingang - enquanto povo indígena Kaingang. Compensar! Percebo que não compensa, tenta amenizar. Dentro deste plano, desse projeto, há toda uma proposta construída junto com os Kaingang. As obras iniciariam e estão avançando rapidamente. Mas o ritmo e a metodologia, as reuniões, que acontecia antes, junto com os Kaingang, mudou. Para a próxima semana, os Kaingang estão se organizando para realizar reuniões e, assim, avançar neste processo, iniciado com interesses diferenciados (EH, 06/05/2011, p.5-6).

Percebe-se, porém que após a aprovação das obras de duplicação da BR

386, os interesses e envolvimento com os indígenas, mudaram radicalmente. As

reuniões, que antes eram freqüentes, agora acontecem somente com muita

reivindicação dos Kaingang junto aos órgãos responsáveis pelas obras. Vemos, a

partir deste exemplo, como a sociedade nacional, assim como no passado, trata os

indígenas, como se eles não fossem sujeitos de direito. “Enganar”, “trapacear”,

“comprar”, “tratar os indígenas com seres inferiores”, eram práticas do passado! Ou

será que ainda persistem no presente? O fato é que ainda há certo descompasso

entre o que diz a lei, o que é tratado enquanto direito indígena e o que de fato é

efetivado.

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Diante desta situação, percebemos que há uma forte articulação política entre

as aldeias impactadas, o que demonstra a união entre elas. Vemos os indígenas

atuando como agentes de sua própria historicidade, estando a frente das lutas pela

garantia do direito originário a terra. O depoimento de uma das lideranças

entrevistadas nos mostra esta questão de forma mais pontual, bem como trás a

tona, o que já foi discutido anteriormente, ou seja, o descaso dos órgãos públicos,

no caso, o DNIT com relação ao que foi acordado em reuniões e estudos, e que

deveria ser concretizado como forma de “compensar” os indígenas pelas perdas

obtidas. Diz ela:

A gente tem feito várias reuniões sobre essa duplicação aí. Começa pela BR, no caso! Porque a BR também ela já tá mexendo com as terra. Por ali é o trajetório dos indígena! Não é só um lugar que é atingido. Se é atingido um lugar, é atingido todos os indígenas. Então é aonde transita os indígena. Então a gente tem feito reunião, a gente tem feito pedido e até hoje tá indo muito devagar. E isso aí muitas veis, pra gente consegui um direito, tem sido muito sob pressão, tem que cobrá muito, e uma coisa que não precisava tá acontecendo isso! As máquina tão indo rápida, só que a legislação pra nóis tá muito.... parada! Tá parada praticamente! E a gente veio e pôde vê hoje aí, que tá muito adiantado né! Até inclusive a gente vai ter que pega e senta e conversa de novo. Uma coisa que não precisava fazê, e isso aí pra nóis é tempo que a gente se desgasta, e vamos ter que senta de novo com o DNIT pra conversa sobre isso aí né! Chama uma reunião, puxá o Ministério Público, a FUNAI, pra que eles comprem essas terra, esses 120 hectares logo, imediatamente! Eles tão com o acesso muito longe até, e até agora eles não resolveram um palmo de terra pra nóis! Então tá muito devagar isso aí! (EG, 05/05/2011, p. 5-6).

As aldeias que estão ligadas direta ou indiretamente à duplicação (Lajeado,

Estrela, Farroupilha, São Leopoldo, Morro do Osso, Lomba do Pinheiro e Morro

Santana), entendem que os Kaingang devem lutar pelos seus direitos. Esses grupos

sofreram com a divisão de seus territórios e com a imposição de limites e fronteiras

completamente diferentes da concepção que tinham no passado, entendendo o

espaço geográfico como um “grande território indígena”, onde circulavam livremente

para visitar seus parentes, buscar alimentos, caçar, pescar, dentre outros. Na

atualidade, esta mobilidade sobre o território ainda se faz presente, e acontece por

motivos muito parecidos com os que haviam no passado. Ou seja, circulam no

grande território para visitar seus parentes, por questões de desentendimentos nos

grupos, para buscar materiais para feitura do artesanato, buscar chás e trocar entre

as diferentes aldeias, vender seus artesanatos, participar de reuniões, enfim, o que

demonstra uma sintonia entre elas.

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Tanto a aldeia Fochá, localizada na cidade de Lajeado, quando a aldeia Linha

Glória, Estrela são consideradas, no “Programa de Apoio às Comunidades Kaingang

- Plano Básico Ambiental das obras de duplicação da BR 386” (2010), elaborado

pelos antropólogos Ledson Kurtz de Almeida e Ricardo Cid Fernandes como “áreas

de Influência direta” (AID). Neste sentido, o estudo de Marilda Oliveira (2010) sobre

a aldeia Fochá, é muito importante, pois demonstra a necessidade do grupo no

sentido de ter uma área de terra maior. Segundo ela, a área atual de 500m²,

localizada no bairro Jardim do Cedro, é uma grande conquista, porém é uma área

ainda muito restrita para os indígenas viverem segundo suas tradições culturais, pois

estavam acostumados a amplos territórios no passado. Oliveira (2010) aborda com

propriedade a luta dos indígenas Kaingang da aldeia Fochá, para não serem

removidos do atual local, em virtude da possível construção de um presídio Estadual

próximo a esta área indígena, havendo todo um respaldo cosmológico (era terra de

seus antepassados) e de direito fundamentado no Estatuto do Índio para a

permanência do grupo neste local.

As aldeias de Lajeado e Estrela, localizadas no Vale do Taquari (ANEXO D)

são muitas vezes, alvo de preconceitos, onde a sociedade nacional, por falta de

conhecimento, acreditou-se durante largo período de tempo, que a história destas

cidades, que hoje compõe a região dos Vales, teria iniciado com a vinda de

imigrantes alemães ou italianos para cá. Esta “verdade” se desconstrói a luz de

diversos trabalhos e estudos acadêmicos, dentre eles, o trabalho de Oliveira (2010),

que tem por objetivo mostrar que muito antes da chegada dos imigrantes alemães,

os indígenas já habitavam e continuaram habitando a região.

Luís Fernando da Silva Laroque, (2005), enfatiza que os Kaingang e suas

lideranças sempre foram protagonistas da historicidade indígena. A conclusão do

referido autor também podemos aplicar as sete aldeias impactadas, direta ou

indiretamente pelas obras de duplicação, pois os indígenas que vivem nestes

espaços, representados por suas lideranças, lutam pelos seus direitos territoriais,

sociais e econômicos.

As terras onde estão situadas essas sete aldeias, não são concebidas pelos

indígenas Kaingang como uma propriedade particular de determinado grupo. Elas

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são entendidas como algo coletivo, que é de todos. Por exemplo, na aldeia Linha

Glória, não há cercas ao redor das casas ou ao redor da própria área para delimitar

espaços. Essa questão pode ser compreendida a partir da fala do depoente G:

[...] essas aldeias... elas não são assim, um espaço que é marcado pra gente morá. Por exemplo, se o Alécio quisé ir morá no Morro do Osso, tem lugar pra ele! E se eu quiser mora na aldeia dele, tem lugar pra mim também! Então ali, todo é dono daquela aldeia, e por isso que já tem essa relação nossa com todas as aldeias, por causa disso. De repente, um filho meu casa lá no Morro do Osso e quise vir morá na aldeia dele [Alécio] tem lugar pra ele também. Não é um lugar marcado “Não aqui é meu e tu não pode morar”. Ali é aberto, é um lugar aberto pros indígenas morarem junto (EG, 05/05/2011, p.1-2).

Assim, podemos compreender com mais clareza, por que as sete aldeias

impactadas de forma direta ou indireta reivindicam a ampliação de seus territórios.

Sobre a área de terra que deverá ser destinada a cada uma das aldeias, O Plano

Básico Ambiental faz a seguinte referência:

[...] a área total definida como compensação relativa à área de supressão vegetal em decorrência da duplicação da rodovia, de cento e vinte hectares (120ha), será dividida equitativamente entre as sete aldeias relacionadas com os impactos (cf. ata de reunião 07/04, Aldeia Lomba do Pinheiro). A divisão equitativa partiu da iniciativa da comunidade de Estrela através de sua integração na unidade político-territorial dos Kaingang do Vale do Taquari e da Grande Porto Alegre. Para questões práticas de aquisição a parte territorial a ser compensada em decorrência da supressão vegetal ficou em 18 ha para Estrela e 17 ha para cada uma das outras seis aldeias. A Aldeia de Estrela, além dos 18 hectares da referida divisão deverá ser beneficiada com mais 15 hectares como complemento da área a ser suprimida, especificamente para realização de recomposição vegetal e manejo de material vegetal (artesanal, frutíferas e medicinais) de uso da comunidade, totalizando para esta localidade o montante de 33 hectares de terra (ROSA, 2010, p.40).

Para o indígena Kaingang, as terras, não servem para produzir

economicamente e com isso, gerar capital. Existe uma lógica diferente. Enquanto o

branco põe a ênfase de sua relação com a mercadoria no valor da troca, mesmo

quando a usa, o indígena põe a ênfase no valor de uso (MARTINS, 1997).

Kimiye Tommasino (2000) contribui para esta questão dizendo que o território

Kaingang comporta vários grupos locais onde se distribuem parentes e afins. Nesse

espaço físico, grupos familiares e pessoas se movem, formando uma ampla rede de

sociabilidade cujas pessoas compartilham uma experiência histórica e se

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consideram atuantes da mesma cultura. Essa rede de relações configura o que

Tommasino (2000, p.208) define como “espacialidade do todo social que expressa

uma unidade sócio-política mais ampla, a sociedade Kaingang. Constatamos esta

concepção de território apresentada por Tommasino (2000) quando questionamos

sobre a forma como as lideranças vêm se unindo para lutar pelo seu direito a terra.

Ouvimos de nossos depoentes a seguinte explicação:

É que a gente ali, nóis trabalhemos assim, é tudo parentagem é tudo parentesco! Já pra começa, pra não caí fora da nossa cultura, e tem as nossas marca que já é parentesco. Que é o Kairu e o Kamé. Daí tem o Yambré, é tudo isso aí, é trabalho como se diz, comunitário, porque ali tem o Yambré que é cunhado no caso, que daí já sai os casamento por ali. Então é dessa forma que nóis trabalhemo, que nóis se unimo pra nóis consegui esse recurso, essa duplicação, esse nosso direito. Muitas vezes a gente tem sentado, trocado idéias, de que forma nós vamos entra, mas juntamente todos, incluindo os parente, porque nóis indígena não queremos divisão de ninguém entre nóis, todos nóis semo parente. E aí tem as marca como se diz. Tem a marca comprida que é a relação de casamento no caso, por exemplo, tem a marca comprida com marca comprida não pode casa. Então tem que ser marca comprida com marca redonda pra dá o casamento né! Então por isso que se encontram os cunhado, os sogro e se encontram e trocam as ideia por ali! (EG, 05/05/2011, p.5).

O território Kaingang também é o espaço onde eles vivem de acordo com

suas metades (Kamé e Kairu) e seções, segundo regras de reciprocidade e aliança,

conforme pode ser observado na citação acima. É a base material sobre a qual

imprimem os padrões identitários, de parentesco e afinidade, de residência

uxorilocal e de descendência patrilinear (TOMMASINO, 2000).

A ampliação e legalização da área de terras das aldeias impactadas

reivindicadas pelos indígenas, não se pauta por uma lógica econômica, visando a

produção de “lavouras”, como eles mesmo justificam, mas sim para poderem

preservar o mato, a natureza e consequentemente sua cultura, expressada através

de seus rituais, sua língua, suas comidas típicas, sua forma peculiar de conceber a

educação. Há uma preocupação para que num futuro próximo as crianças possam,

a partir da garantia de um território que lhes condições de se reproduzirem enquanto

etnia indígena, dar continuidade à cultura Kaingang.

É urgente que se firme um diálogo de respeito à diferença indígena, para que

assim se possa de fato acessar as suas demandas culturais, e resolver o impasse

da duplicação da BR 386. O fato é que as obras já iniciaram e estão bastante

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avançadas até o trevo de acesso a Bom Retiro do Sul, próximo a área da aldeia. Isto

se deve justamente ao fato de que os indígenas são sujeitos de direitos e enquanto

o impasse com relação à compensação do território que estará sendo desapropriado

com as obras, não for resolvido, pelo menos naquele trecho, acredita-se, que a lei se

fará valer e a duplicação não avançará (ANEXO E).

Conforme tentou-se mostrar no desenvolvimento deste capítulo, os indígenas

estão buscando ser agentes de sua própria historicidade e como tal, lutam para ter

seus direitos garantidos e respeitados. Há, porém, um enorme distanciamento

quanto ao cumprimento dos preceitos constitucionais indígenas e a garantia destes

pelos órgãos políticos e federais competentes.

Na realidade, vimos que os extensos territórios ocupados no passado não

condizem com as mirradas porções de terras reconhecidas ao usufruto indígena no

presente, as quais não dão conta de suprir suas necessidades totalmente. Assim,

justifica-se a reivindicação das terras feitas pelas sete aldeias impactadas de forma

direta e indireta pela duplicação da BR 386, sendo elas: Linha Glória, em Estrela,

Fochá, em Lajeado, Farroupilha, em Farroupilha, Por Fi, em São Leopoldo, Morro do

Osso, Lomba do Pinheiro e Morro Santana, em Porto Alegre. Os impactos

decorrentes das obras de duplicação, certamente trarão prejuízos inestimáveis a

estes grupos indígenas, que continuam a sofrer ainda no século XXI com a

expropriação de seus territórios, por conta de políticas desenvolvimentistas. O fato é

que, não se percebe, no trato desta questão da duplicação, apesar de todo o avanço

da legislação, um diálogo tolerante da sociedade não-índia com os representantes

indígenas, muito menos, uma proposta de respeito à diversidade étnica. Nesses

termos, observamos também que muitas das medidas que deveriam “compensar” as

perdas geradas pela duplicação, ainda estão bastante distantes de sair do papel e

se tornarem realidade.

No próximo capítulo, vamos abordar outras questões referentes aos direitos

indígenas. Questões estas que estarão diretamente relacionadas à saúde e a

educação do grupo da aldeia Linha Glória, Estrela. Desta forma também estaremos

vinculando estes dois temas à duplicação e a territorialidade Kaingang.

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4 ESPAÇO E CULTURA: SAÚDE E EDUCAÇÃO NA PAUTA DAS LUTAS E CONQUISTAS DO GRUPO KAINGANG DA ALDEIA LINHA GLÓRIA

O espaço Kaingang é por ordem natural e cultural. Há uma amálgama entre

os mundos natural, simbólico e social, do qual a vida Kaingang não é dissociada de

nenhum destes elementos e sua reprodução física e social depende da inter-relação

e do equilíbrio que se estabelece entre eles. Com efeito, sua concepção de mundo

influencia, e é influenciada pela maneira como o ecossistema é percebido. A forma

como os indígenas interagem com seu ambiente, oferece informações riquíssimas

sobre as inter-relações ecológicas e culturais destes grupos. Neste sentido, Darrell

Posey (1986) enfatiza que é importantíssimo preservar as sociedades indígenas e

seus saberes, pois elas constituem um patrimônio humano inestimável da cultura

universal.

Os Kaingang produzem seus territórios de acordo com uma concepção

própria de tempo e espaço. O modo de vida Kaingang implica uma relação

específica com a natureza e entre si, de acordo com representações simbólicas

historicamente elaboradas que conferem sentido as suas práticas materiais e

sociais. Ser e tornar-se humano está relacionado com o viver de acordo com o

modelo prático e simbólico Kaingang.

Sobre o conceito de cultura, Rafael José dos Santos, apoiando-se em Roque

de Barros Laraia, utiliza uma definição antropológica para o termo, como sendo um

“conjunto de comportamentos, saberes e saber-fazer característico de um grupo

humano ou de uma sociedade dada, sendo essas atividades adquiridas através de

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um processo de aprendizagem, e transmitidas ao conjunto de seus membros”

(SANTOS, 2005, p.30). Rafael José dos Santos continua a apoiar-se nas

concepções do antropólogo Laraia para acrescentar que nenhuma cultura é estática,

existem mudanças culturais resultantes do contato entre as culturas e aquelas que

se dão internamente, ou seja, dentro do próprio “sistema cultural”.

Segundo Fredrik Barth (2000), a cultura é a linguagem da diferença. Nessa

perspectiva, a cultura mantém um caráter comunicativo e interpretativo, enquanto

linguagem que demarca a diferença. A cultura, para além de ser um conceito ainda

importante no campo antropológico, no diálogo intercultural que marca a disciplina,

tornou-se um termo nativo, apropriado pelos indígenas para referirem-se as suas

tradições e demarcarem sua diferença (MORAES, 2009).

4.1 Saúde indígena Kaingang num contexto ambiental e xamânico

Falar de saúde indígena é, sobretudo, falar do ambiente como um todo, onde

a terra é o elemento primordial, entendido pelos Kaingang como a mãe de todos os

elementos da natureza e de si mesmo enquanto ser que também é parte constitutiva

deste universo natural, e que está intimamente ligado a ele. Para o Kaingang, a terra

o fez nascer, isto porque conforme seu mito de origem os primeiros Kaingang saíram

da terra.

Apresentamos a seguir, parte do mito de origem Kaingang. Este mito foi

narrado, em 1908, ao sertanista Telemaco Borba pelo cacique Arakxô:

Em tempos idos, houve uma grande inundação que foi submergindo toda a terra habitada por nossos antepassados. Só o cume da serra Crinjijimbé emergia das agoas. Os Caingangues, Cayurucrés e Camés nadavam em direção a ella levando na boca achas de lenha incendiadas. Os Cayurucrés e Camés cançados, afogaram-se; suas almas foram morar no centro da serra. Os Caingangues e alguns poucos Curutons, alcançaram a custo o cume de Crinjijimbré, onde ficaram, uns no solo, e outros, por exigüidade de local, seguros aos galhos das árvores; e ali passaram muitos dias sem que as agoas baixassem e sem comer; já esperavam morrer, quando ouviram o canto das saracuras que vinham carregando terra em cestos, lançando-a a agoa que se retirava lentamente. Gritaram elles às saracuras que se apressassem, e estas assim o fizeram, amiudando também o canto e convidando os patos a auxilia-las: em pouco

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tempo chegaram com a terra ao cume, formando como que um açude, por onde sahiram os Caingangues que estavam em terra;[...] (BORBA, 1908, p.20-21, grifos do autor).

Na sequência, o mito procura demonstrar de que maneira os “Cayurucrés” e

os “Camés” irão se libertar da montanha e dela ressurgirem, para então viver e

depois casar-se com os “Caingangues”. Vejamos o que apresenta:

[...] Depois que as agoas seccaram, os Caingangues se estabeleceram nas immediações de Crinjijimbé. Os Cayurucrés e Camés, cujas almas tinham ido morar no centro da serra, principiaram a abrir caminho pelo interior della; depois de muito trabalho chegaram a sahir por duas veredas: pela aberta por Cayurucrés, brotou um lindo arroio, e era toda plana e sem pedras; dahi vem terem elles conservado os pés pequenos; outro tanto não aconteceo a Camé, que abrio sua vereda por terreno pedregoso, machucando elle, e aos seos, os pés que incharam na marcha, conservando por isso grandes pés até hoje. [...] Chegaram a um grande campo, reuniram-se aos Caingangues e deliberaram cazar, os moços e as moças. Cazaram primeiro os Cayurucrés com as filhas dos Camés, estes com as daquelles, e como ainda sobraram homens, cazaram-os com as filhas dos Caingangues. Dahi vem que, Cayurucrés, Camés e Caingangues são parentes e amigos (BORBA, 1908, p.21-22, grifos do autor).

Considerando o mito de origem é possível perceber que, na concepção dos

Kaingang, seus ancestrais saíram da terra. Esta é uma explicação mítico-

cosmológica que serve não só para compreender o surgimento deste grupo, mas de

outros elementos da natureza que são criados a partir deles. Os Kaingang acreditam

também que assim como saíram da terra, a ela retornarão depois de mortos. Desta

forma, não se colocam acima de outros seres do Universo, ou seja, estão

interligados num mesmo nível de relações. São dimensões que estão em contínua

comunicação. Esta é uma questão cultural riquíssima dos Kaingang. Nesta

perspectiva, o depoente H destaca:

Na questão da saúde, os Kaingang têm uma visão interligada entre os diversos seres e elementos do universo! Não é linear ou fracionada, separando, por exemplo, o ritmo ou tempo como a sociedade nacional; a pessoa, da árvore ou dos animais; ou ainda, localizando e tratando a doença somente, a partir de uma parte do corpo, num espaço físico ou numa secretaria. O bem-estar, a saúde e a alegria, estão presentes, quando os seres do universo estão bem. O bem-estar, a alegria e a saúde dos Kaingang está ligada, diretamente, com a saúde e a vida das abelhas, dos pássaros e da importante diversidade do capim. Estes seres estão todos interligados (EH, 06/05/2011, p.2).

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A ligação com a natureza perpassa e está presente na saúde dos indígenas

Kaingang. Há um ciclo natural, onde a existência de cada ser é imprescindível para

o equilíbrio da vida. O Kaingang informa que está doente devido à destruição de

suas florestas, pois não há como ter saúde sem que todos os elementos estejam em

harmonia. Segundo eles, as águas estão poluídas, as matas nativas foram em sua

grande maioria cortada, muitos animais vivem em áreas de proteção, pois, no

período atual, já não podem mais viverem livremente, e tantos outros exemplos de

alteração dos ecossistemas. O indígena Kaingang percebe estas questões porque

compreende que a natureza é primordial para sua própria existência e por isso a

valoriza tanto. Ou seja, os Kaingang têm uma visão global, do qual o ser humano

não é de forma alguma dissociado do ambiente.

Nesta lógica, a duplicação da BR 386 é para os indígenas Kaingang um

elemento de destruição do ambiente que consequentemente trará prejuízos,

sobretudo na sua saúde. Sabe-se que os motivos que levam a implantação desta

obra, são essencialmente capitalistas. Nem mesmo questões de ordem ambiental

prevalecem, quando o assunto da pauta é “desenvolvimento”. Há interesses muito

distintos e quando analisados pela ótica da sociedade nacional, vemos um discurso

que é completamente dissociado da natureza, o que não ocorre com a sociedade

indígena, conforme podemos verificar no relato de um depoente.

Ouvi, várias vezes, nos pronunciamentos das lideranças Kaingang, nas reuniões sobre a duplicação da rodovia BR 386, seja no CEPI [Conselho Estadual dos Povos Indígenas], na FUNAI [Fundação Nacional do Índio] ou no MPF/Lajeado [Ministério Público Federal], que a duplicação é um projeto da sociedade nacional. O projeto está alicerçado na economia. Ao buscar a duplicação, a sociedade quer mais espaço para o escoamento de produtos industrializados ou produtos para exportação. Dos Kaingang, ouvi: “estamos preocupados com as árvores, que serão derrubadas, com os poucos animais, que ainda vivem no Vale do Taquari. O que estes bichinhos vão comer?”. Veja, você percebe que esta visão, mostra para nós, que o alimento e a riqueza que a natureza oferece é para todos os seres e não somente para os humanos. Com a obra, estão ameaçados. [...] no diálogo com lideranças indígenas Kaingang da aldeia Morro do Osso/Porto Alegre e Por Fi em São Leopoldo. O que diziam eles? “Como ficam os pássaros que vivem aqui? Onde está o tatu que vivia aqui? Como ouvir e respeitar a linguagem e a vida da água? O capim que precisa crescer, por quê? Porque ele é alimento importante para as borboletas; é alimento e chá também para o Kaingang!” Para este povo, deixar o capim crescer não significa preguiça, como compreendem muitos na sociedade nacional, mas, significa, concretamente, respeito à vida de outros seres vivos e tão importantes no equilíbrio ecológico (EH, 06/05/2011, p.2).

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A conservação do mato virgem, por sua vez, também é fundamental na

cosmologia tradicional dessa sociedade. Por um lado, através dele, se perpetua o

sistema xamânico: é fonte de material vegetal necessário as atividades rituais e

curativas do kuiã8 e é o espaço para onde se remetem os espíritos dos mortos.

Portanto, a existência fundamental da complementaridade entre a casa, o limpo e o

mato virgem é à base da cosmologia Kaingang e a quebra dessa ordem pode gerar

desequilíbrios emocionais e sociais (ALMEIDA, WIIK, FERNADES, 2009). Assim, o

Kuiã atua em processos de cura com plantas do mato virgem e de orientação das

famílias com visitas nas residências.

Para os Kaingang, existem três categorias principais de praticantes indígenas

de cura9. Entre eles há uma certa hierarquia de força e poder, sendo que o Kuiã

potencialmente é o mais forte de todos. Para o Kaingang, de modo geral, ter saúde é

sinônimo de “força”, e a perda da mesma, traz como principal conseqüência a

vulnerabilidade às doenças (OLIVEIRA, 2000).

A pequena área de vegetação que existe atualmente no entorno da aldeia

Linha Glória tem muita importância para o grupo. É dela que retiram remédios,

matéria-prima para a confecção de artesanatos e usufruem das frutas, conforme

relato da liderança Maria Antonia Soares.

A gente tem conhecimento de bastante remédio também; pra índio, assim né? O que pra vocês, às vezes, sei lá, parece só mato, pra gente é tudo isso... É pequeno aquele mato, mas tem tudo, taquara, cipó, árvores, remédios. Ali tem muito remédio (GONÇALVES, 2008, p.31).

Essa vegetação apresenta espécies nativas e exóticas, imprescindíveis para

este grupo indígena. Ocorrem Myrtaceae, Myrsinaceae, Rosáceas, Palmácea,

8 Para se tornar um Kuiã, que pode ser homem ou mulher, a pessoa deve ser iniciada por um Kuiã mais velho, que vai mostrar para ela quais os remédios com os quais ela vai se lavar e tomar para receber seu iangre. Esse remédio deve ser usado durante nove dias. Cumprida essa prescrição o iangre vem ao encontro da pessoa [iangre pode ser qualquer bichinho do mato: tigre, coruja, gavião... O Kuiã fala com o iangre e juntos vão buscar as coisas: ervas, almas,...]. A pessoa que tem um iangre deve evitar matar animais daquela espécie (VEIGA, 2006, p.172, grifos do autor). 9 Curador – categoria em que se incluem aqueles que trabalham com fitoterápicos, benzedores e

parteiras; Kuiã – que tem guia espiritual animal [...]; Feiticeiro – que é um Kuiã e tem a capacidade de “enviar e tratar” feitiços ou doenças mandadas pelo vento – no nome da pessoa. Potencialmente, todo Kuiã, em algum momento, pode ser feiticeiro, uma vez que ele precisa mandar um “contra-feitiço” (OLIVEIRA, 2000, p.334).

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Anacardiaceae, Aracaceae, Leguminosa entre outras. Destacam-se ainda as

frutíferas, nativas e exóticas amoreira (Rubus brasiliensis), jerivá (Syagrus

romanzoffiana), butiá (Butia capitata), nespera (Eriobotrya japonica), limoeiro (Citrus

limonia), laranjeira (Citrus sinensis), bergamota (Citrus nobilis), banana (Musa

paradisíaca). Ervas medicinais como pata de vaca (Bauhinia variegata), cipó mil-

homem (Aristolochia galeata), unha de gato (Uncaria tomentosa), camomila

(Matricaria Chamomilla), avenca (Adiantum capillus ueneris L.) e ainda plantas

artesanais como cipó de São João (Pyrostegia Venusta) e taquara (Bambusa

taquara). No trecho dessa pequena mata há um arroio que cruza a porção sul do

acampamento separando-o da escola (GONÇALVES, 2008).

O grupo da aldeia Linha Glória possui cerca de cento e cinquenta indígenas,

que ocupam um espaço limitado de apenas quatorze hectares de terra. Por tradição,

as famílias possuem em média de quatro a cinco filhos. A tradição medicinal do uso

das plantas é amplamente utilizada pelo grupo, sendo que as indígenas mais velhas

têm a função primordial de ensinar as gerações mais novas o valor medicinal das

plantas.

Em entrevista com uma das indígenas anciãs do grupo, a depoente

demonstrou que tem pleno conhecimento das plantas que há na pequena área de

vegetação da aldeia Linha Glória, bem como as utiliza amplamente no seu cotidiano.

Quando questionada sobre o que fazem quando alguém está doente, ela responde:

Usa planta do mato! Tem muito chá do mato que é bãom! Tem a cancorosa, o chá de boldo também é bãom! Aquele outro, a quina, que também é bãom! O ipê roxo! O ipê roxo é bom pra toda coisa! A quina é bãom pro estômago. Se a senhora tá bem doente faz um chá de quina e toma, fica bãom, sarô! É que nem esses dia que eu tava ruim, tomei um chá de quina, foi pra já que eu sarei de novo! Eu sou assim, eu posso tá nas úrtimas, mas eu não gosto de médico! Eu não percuro médico! Primeiro o chá do mato! [...] A folha de laranja também é bãom! Capim cidreira também é bom! Esse poejo, como é que se diz, é bom pra criança. A florzinha do maracujá... Esse maracujá é bom pra bronquite! A flor é bom!! A casca da laranja também é remédio, também é bom! (ED, 22/03/2011, p.2).

Percebe-se esta continuidade na fala da depoente F, que representa a

geração mais nova e que vem mantendo os ensinamentos dados pelos mais velhos.

Neste sentido ela destaca:

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Que nem as vez a gente tem dor de cabeça ou dor de estômago, a gente já sabe que tem chá aqui por perto, a gente já conhece, qual chá que é. Vai no médico fazê alguma consulta daí é algum problema assim que tem nas costela, que a gente não sabe o que é bem direito, daí a gente vai só pra vê e também assim pra fazê o pré-câncer e mais pra dentista também. Pra arranca o dente! Pra botá algum remédio no dente, daí a gente também já sabe! Isso a gente sabe! Dor que a gente tem assim que é dor de cabeça, a gente já sabe o chá! (EF, 21/04/2011, p.6).

Além deste conhecimento das plantas medicinais, verifica-se também que

durante largo período de tempo, as mulheres indígenas tiveram seus filhos na

aldeia, realizando o parto muitas vezes sozinha, ou com ajuda de uma parteira, que

era sempre uma indígena mais velha. Durante o nascimento realizam a prática do

corte do umbigo e a partir daí segue-se todo um ritual repleto de significado

cosmológico que culmina com o enterramento deste umbigo na área da aldeia.

Vejamos o que nos diz uma depoente sobre a prática dos nascimentos:

Dois eu ganhei aqui embaixo do arvoredo. Eu cortei o umbigo! E um eu ganhei lá na colônia quando eu fui passear na casa da minha mãe né! Naquele tempo eu tinha a mãe, ela era viva, e daí eu fui passeá lá e daí eu não me esqueci muito bem aquele dia, daí eu saí pra vim embora pra casa e eu ganhei e no outro dia eu voltei pra casa (EE, 22/03/2011, p.2).

Há aspectos muito peculiares da cerimônia ritualística do corte do umbigo.

O pai dava banho nas crianças, né mãe? Quando nascia um nenenzinho, ele mandava dar banho na sanga e daí ele passava no fogo [utilizando ervas do mato]. Meu umbigo foi cortado com taquara, né mãe? [...] Eram os kujá quem faziam os partos da gente, os benzedor, que eles chamavam, os curandor [diz Lídia: parteiras]. Meu pai dizia: seu umbigo foi cortado com taquara. Peguei uma taquara lá no mato e daí teu avô e tua avó cortaram teu umbigo, a mãe velha, que eles diziam [...] a velha que cortou (GONÇALVES, 2008, p.74, grifos do autor).

Sobre essa prática do uso da taquara para cortar o cordão umbilical, e do uso

da água para o banho do recém-nascido, Ítala Basile Becker (1995) informa que já

eram utilizadas no passado. A taquara é uma planta de referência na vida do

Kaingang e está ligada, dentre tantas outras utilidades10, também à medicina,

“servindo uma tala de taquara para cortar o cordão umbelical ao recém-nascido,

10

Entre os muitos vegetais utilizáveis pelos Kaingang destacamos ainda a palmeira e a taquara.Sobre isto Ítala Basile Becker (1995, p.176) informa que a taquara “é uma planta de referência na vida dos Kaingang; dela se valem para a contagem do tempo, pois uma taquara ou período que vai de uma floração a outra da planta, corresponde a 30 anos”. Dentre as demais utilidades deste vegetal, a autora ressalta o uso “para cortar o cabelo, para suas flechas, bem como para o fabrico de cestos, chapéus e ventarolas que confeccionam com grande habilidade para fins domésticos, comerciais e também para instrumentos de música” (BECKER, 1995, p.176).

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operação que completam com uma atadura feita com cordel de embira ou tucum”

(BECKER, 1995, p.176). Segundo podemos constatar Manoel Soares, patriarca da

aldeia, manteve esta prática cultural dos seus antepassados com seus filhos. Neste

sentido, é interessante a constatação de Antônio Brand (2000) sobre as culturais

orais, na medida em que destaca que o ato de lembrar é reviver, refazendo,

reconstruindo, repensando a partir do impacto da realidade.

Atualmente as mulheres recebem acompanhamento de uma agente de saúde

indígena da própria comunidade da aldeia Linha Glória. O direito de ter um

profissional indígena mediando às questões de saúde foi uma grande conquista do

grupo. Esta evidência fica clara na fala do depoente B, ao ser questionado sobre de

que forma o Ministério Público Federal tem intermediado as questões de saúde junto

ao grupo da aldeia Linha Glória, é informado o seguinte:

Uma delas é a contratação da agente de saúde indígena. Isso foi muito negociado com o município de Estrela e se conseguiu. Isso já é diferente de Lajeado. O de Lajeado [refere-se à aldeia Fochá] se teve que entrar com uma ação, para aí se conseguir uma conciliação. Nós entendemos que é uma conquista ter um agente de saúde indígena, por mais que se questione, “Ah, tem um agente que serve aquele bairro?”, por exemplo, um agente de saúde indígena para os brancos, normal do SUS, então nós vemos que não é só uma questão de ter uma agente de saúde indígena para o bairro, a questão é a peculiaridade indígena (EB, 15/03/2011, p.3).

É através da agente de saúde indígena, que os Kaingang recebem

acompanhamento do Posto de Saúde do município de Estrela. Quando há a

necessidade de realizar algum tratamento que não possa ser resolvido com o uso de

sua medicina tradicional, utilizam o Posto de Saúde do bairro Imigrantes, em Estrela.

Conforme referido anteriormente por uma de nossas depoentes, apenas em casos

de extração de dentes, exames pré-câncer, dores na coluna, por exemplo, que

procuram auxílio médico. O acompanhamento das gestantes também é realizado

pela agente de saúde indígena. Sobre esta situação, o depoente B destaca:

Muitas vezes há questões que nem se imagina, porque a questão da gravidez das indígenas, isso tem toda uma peculiaridade própria que só... Eu imaginava assim essa questão: pra mulher branca já é difícil, ter um contato com um enfermeiro, com um agente de saúde branco, imagina para uma indígena, como é mais difícil ainda! Nós insistimos nisso e conseguimos [Refere-se à contratação do agente indígena] (EB, 15/03/2011, p.3).

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A participação do grupo no CEPI (Conselho Estadual dos Povos Indígenas)

iniciada em 2002, através da liderança de Maria Antônia Soares, foi muito

importante, pois a partir de então, o grupo passou a receber maior apoio da FUNAI

(Fundação Nacional do Índio) e da FUNASA (Fundação Nacional da Saúde). A

FUNASA até pouco tempo atrás era o órgão federal responsável pela gestão da

saúde pública no Brasil. No entanto as demandas junto a este órgão eram sempre

várias e as respostas muitas vezes levavam meses e até anos para serem

efetivadas ou simplesmente não aconteciam. O que se percebe é que muitas

questões acabavam sendo negligenciadas. Em 19 de outubro de 2010, o então

presidente da República criou a Secretaria Especial de Saúde Indígena. O novo

órgão passou a ser subordinado ao Ministério da Saúde, que passa a gerenciar

diretamente serviços relacionados à saúde indígena e projetos de saneamento

básico nas aldeias, áreas antes coordenadas pela Fundação Nacional de Saúde

(FUNASA). No período atual está ocorrendo uma reestruturação nesta questão da

saúde indígena. Os indígenas não têm participado de fato deste planejamento e

reconstrução das mudanças.

A aldeia Linha Glória apresenta um grave problema que acompanha o grupo

desde a sua efetiva instalação no local, que é a falta de saneamento básico. Diante

das reivindicações da comunidade junto à FUNASA, o órgão competente

argumentava que não podia realizar melhorias, pois a área não possui título de Terra

Indígena.

A FUNASA prioriza a execução de ações de saneamento para terras homologadas – terras demarcadas e com Decreto de Homologação do Presidente da República, registradas – terras inscritas nos Cartórios de Registros de Imóveis da Comarca e no Departamento de patrimônio da União (conforme Art. 6º do Decreto 1.775/96). Os investimentos permanentes, são realizados nestes termos ou em terras cujos processos de homologação, apresentem, pelo menos, Declaração – terra com Portaria Declaratória do Ministério da Justiça ou Interministerial, além das Portarias da FUNAI, quando for o caso (OFÍCIO nº 119 de 15/02/2007 – Procuradoria da República/ Lajeado, grifos do autor).

Esta questão é antiga e recorrente na pauta de reivindicações e problemas

urgentes da aldeia, ligados à saúde. Hoje a aldeia dispõe de apenas um único

sanitário, localizado na escola e duas patentes na área da aldeia em situação

precária. Sobre a questão sanitária, o depoente B enfatiza:

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[...] também o que nos preocupa há muito tempo é a questão sanitária. A questão dos banheiros. Nós tínhamos insistido desde 2007 com esta questão dos banheiros com a FUNASA, mas aí agora o que se desenha e o que nós vamos insistir muito junto ao DNIT e junto a FUNAI é que com a nova área que vão garantir que construir casas, vão transportar aquelas casas, vamos insistir para que eles não se oponham a construção de banheiros [...] (EB, 15/03/2011, p.2).

O grupo da aldeia Linha Glória destaca, no período atual, a necessidade de

terem um Agente Indígena de Saneamento (AISAN). Isto fica evidente na fala de

uma das ex-lideranças da aldeia “Não temo só o AISAN ainda, por enquanto” (EF,

21/04/2011, p.5). Segundo documentos da Procuradoria da República, o grupo

chegou a ser contemplado com um Agente de Saneamento Indígena em 2007,

porém atualmente não dispõe deste serviço (OFÍCIO Circ. Nº 230/07 de 12/11/2001

– Procuradoria da República de Lajeado). O papel do AISAN é fundamental no

sentido de contribuir com as ações de saneamento em nível local, onde, com a

participação ativa e organizada, atua nas atividades de abastecimento de água,

coleta, tratamento e destino adequado do lixo ou resíduos sólidos. Quando atuou

junto à comunidade indígena de Estrela, O AISAN Gelson de Oliveira Lima tentou

parcerias junto à Prefeitura Municipal de Estrela para canalização de água nas

residências da aldeia e a construção de banheiros, porém não obteve respostas

(OFÍCIO nº 201/07 de 18/09/2007 – Ministério Público Federal/ Lajeado).

Sobre a relação com o órgão de saúde acessado por eles, ou seja, o Posto de

Saúde da Família, localizado no bairro Imigrantes, informam que no período atual,

há sempre a disponibilidade de atendimento quando necessitam. Vejamos o que diz

a depoente F:

Todas as segunda-feira já tem marcado pra nóis, aí já vem carro e já busca. Já vem, leva e trás. Ali no Posto de Saúde não tem nada que se queixa, que a gente não tá tendo médico. Eles atende qualquer dia assim, que nem no caso eles marcam 10 ou 11 pra i na Kombi. É só suficiente que cabe na Kombi, aí se tem mais eles faz duas viagem, daí mesmo assim eles atende (EF, 21/04/2011, p.5).

Porém, o que se observa é que essa relação nem sempre foi tão amistosa

assim, e que para terem seus direitos à saúde, respeitados, o grupo precisou “lutar”

no sentido de denunciar junto ao Ministério Público Federal, diversas situações de

descaso dos órgãos de saúde pública, do qual os indígenas têm total direito de

acessarem. Em diversos documentos disponíveis junto a este órgão, referente a

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reuniões para tratar de problemas enfrentados pela comunidade indígena,

verificamos que é recorrente na documentação, denúncias sobre o descaso com a

saúde indígena.

Agentes de saúde: comparecem na aldeia quando chamados; enfermeira apenas vai à aldeia para aplicar vacina nas crianças. Agentes comunitários de saúde: ainda não foi implementado projeto que capacitaria indígenas da aldeia para tal atividade. Remédios solicitados no posto demoram para chegar. Às vezes quando os remédios chegam as pessoas já estão curadas. Há pessoas na comunidade com problemas de diabetes, pressão alta, e uma criança necessita de tubo de oxigênio, pois tem problemas pulmonares. Auxílio-maternidade: mães não estão recebendo. Alcoolismo: problema grave na aldeia, eis que todos os homens bebem cachaça. Necessidade de tratamento (CERTIDÃO de 25/05/2004, Ministério Público Federal/ Lajeado).

Em outro documento da Procuradoria, referente a uma reunião externa

ocorrida na escola indígena Manoel Soares, no ano de 2005, para tratar, dentre

outros assuntos, sobre a saúde Indígena, constatamos o seguinte:

No que se refere à área da saúde, a cacique Maria Antônia destacou que, nos últimos tempos, a comunidade vem enfrentando dificuldades para marcar consultas médicas junto à Secretaria Municipal de Saúde de Estrela/RS, bem como em obter remédios. Solicitou que fossem marcados dias específicos para atendimento de indígenas, pois não dispõem de meios de locomoção para deslocamento até o Posto de Saúde (que deve ocorrer por volta de 5 horas da manhã) (RELATÓRIO de 08/03/2005, Ministério Público Federal-Lajeado).

A água disponível na aldeia é proveniente de um reservatório, e é bombeada

de um poço artesiano, construído no ano de 2002. Esta água está canalizada em um

único ponto da aldeia, sendo que para o uso diário, as famílias necessitam se

deslocarem para esta torneira central, visando suprir suas necessidades básicas. Na

escola, há também uma torneira ligada a este reservatório de água, que é utilizada

por algumas famílias que residem nas proximidades. Para o banho diário, o grupo

utiliza um córrego que tem próximo a área da aldeia, uma vez que não há um lugar

para o banho.

Outra questão relacionada à saúde e que aflige o grupo já há bastante tempo

é o problema do alcoolismo. Amplamente disseminado, especialmente entre os

homens, existe uma preocupação do grupo no sentido de buscar soluções junto aos

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órgãos de saúde competentes para reverter esta situação. Conforme já foi

demonstrado anteriormente, através de documento específico do Ministério Público

Federal que tratava dos problemas enfrentados pela aldeia, aparece o alcoolismo

como um problema grave, “eis que todos os homens bebem cachaça”, havendo a

necessidade de tratamento (CERTIDÃO de 25/05/2004, Ministério Público

Federal/Lajeado). Em 2004, a Fundação Nacional da Saúde (FUNASA) reconhece o

uso abusivo de bebidas alcoólicas como um grave problema entre a população

indígena (OFÍCIO nº 3135/ASSAI/FUNASA/CORE-RS de 16/09/2001 – Ministério

Público Federal/Lajeado).

É importante ressaltar que o consumo de bebidas entre os grupos indígenas

remonta a um passado histórico que vai desde o consumo de bebidas fermentadas

até a introdução de bebidas destiladas reforçado pela instalação de alambiques

dentro das áreas indígenas situadas na região Sul do Brasil na época das

“conquistas” (OLIVEIRA, 2004). O consumo de bebidas fermentadas entre os

Kaingang é bastante antigo. Acontecia em cerimônias ritualizadas, nas quais a eles,

era permitido nesses momentos, “beber até cair”. Eram experiências que aconteciam

no “âmbito sociocultural” e não denotava nenhum mal ao grupo, pois tinham

momento para começar e finalizar a bebedeira. Diferente do alcoolismo, que tem

efeito desagregador, a bebida nos rituais tinha funções de integração, reforçando os

laços de reciprocidade social entre os diferentes grupos locais da sociedade.

Neste sentido, é fundamental que se tenha conhecimento histórico do grupo

em questão para compreender quais são os aspectos importantes que determinam e

marcam o modo de beber desse grupo na atualidade, possibilitando assim, uma

maior clareza para o enfrentamento do problema, no sentido de propor ações de

intervenção. Desta forma, houve em 2005 uma resposta da FUNASA. O Estado do

Rio Grande do Sul havia sido contemplado, através da UNESCO, com um psicólogo

para auxiliar no problema do alcoolismo, e que, também seria negociada a

contratação (com o Estado) de um hospital para internação de indígenas com

problemas de alcoolismo (RELATÓRIO de 08/03/2005 – Ministério Público

Federal/Lajeado). Porém o que se percebe é que esta ação de fato não é levada a

diante.

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Em 2007 essa problemática vem à tona através da Secretaria Municipal da

Saúde e Assistência Social. O município de Estrela, através do Programa Saúde da

Família, Centro de Atendimento Psico-Social (CAPS) e Serviço Social da Secretaria

da Saúde, chegou a iniciar atividades de diagnóstico da situação na Comunidade

Indígena de Linha Glória, porém muito pouco se avançou em relação a este

problema. Faltou sobretudo, informações e compreensão quanto à cultura Kaingang

por parte dos profissionais envolvidos, para tentar auxiliar os indígenas nessa

questão (OFÍCIO nº 082/07 de 16/04/2007 – Ministério Público Federal/Lajeado).

Há situações em que os indígenas bebem e se deslocam pelas estradas

retornando para casa, estando sujeitos a atropelamentos, acidentes, como pode ser

exemplificado o caso do patriarca da aldeia Linha Glória, o indígena Manoel Soares,

que fora atropelado em 1990 quando voltava para casa. Segundo uma das

matriarcas, quando ele retornava de Porto Alegre, acabou sendo atropelado e morto

em decorrência da bebida. Há outros casos em que eles ingerem bebidas alcoólicas

na própria aldeia. Em virtude destas questões, uma das ex-lideranças da aldeia

Linha Glória, diz que devido ao fato de alguns “gostarem de beber uns goles a mais”,

acabava gerando certos conflitos no grupo. Houve a necessidade então de

estabelecerem “leis” para estes indígenas. Ou seja, a bebida passou a ser liberada

apenas nos finais de semana (ED, 21/04/2011, p.7).

No passado, várias foram às bebidas fermentadas fabricadas pelos Kaingang

e na sua maioria, a matéria-prima básica utilizada era o milho. Sobre isto, o

sertanista Telêmaco Borba informa:

Preparam duas qualidades de bebidas fermentadas, cujo fundo principal é o milho (nhára); a que é feita só de milho e agoa chamam- goifá – quando a esta adicionam mel de abelha chamam-na quiquy. Para preparar o goifá, soccam o milho, depozitam-o em grande quantidade de água morna, em grandes coches de madeira, collocados perto do fogo e todos os dias mechem-n’o; quando cessa a fermentação, está prompto e principiam a bebel-o cantando e dançando de noite e de dia, até caírem de bêbados e o goifá acabar-se (BORBA, 1908, p.14-15, grifos do autor).

Borba (1908) referia-se a esta bebida “goifá” como de gosto azedo, amargo e

desagradável ao paladar. Já o “quiquy” teria um gosto mais agradável, em virtude de

ser adoçado com o mel, porém de efeito muito mais embriagante. Essas bebedeiras

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aconteciam de forma coletiva, podendo perdurar de duas horas a semanas até

exaurir o estoque de bebida preparado. Eram rituais realizados em ocasiões

especiais de festas e cerimoniais relacionados à boa pesca, caça, colheita, à guerra,

aos ritos de nascimento, à atribuição de nomes, à iniciação, às cerimônias fúnebres

e às celebrações mágico religiosas (OLIVEIRA, 2004).

O “quiquy” mencionado por Borba (1908) aparece na historiografia em geral

com a grafia de “Kiki”, podendo ser citado como exemplo, na obra de Becker (1995),

Veiga (2006), entre outras. Era confeccionado durante a realização da festa do Kiki-

Koi, realizada nos meses de inverno, geralmente entre março e maio, quando o

milho estava verde e os pinhões maduros. Esta festa ritualística e sagrada,

altamente simbólica, marcada por grandes bebedeiras, era o espaço no qual vivos e

mortos podiam festejar. O Kiki proporcionava aos Kaingang um estado alterado de

consciência e despertava a consciência mítica, permitindo a ligação entre o mundo

real com o sobrenatural. Ainda hoje aldeias como, por exemplo, a aldeia do Morro do

Osso, em Porto Alegre, mantém viva esta prática da festa do Kiki Koi, em que

consequentemente o Kiki é ingerido.

No momento em que os indígenas entram em contato com a bebida destilada,

através dos não indígenas, e que se utilizam da cana-de-açúcar, o Kiki passa a ser

reatualizada pela aguardente (cachaça). Esta nova realidade transformou a relação

das bebidas, utilizada antigamente somente em momentos especiais, passando a

ser consumida individualmente, gerando o problema do alcoolismo e da

dependência. Inicialmente os indígenas Kaingang utilizavam a cana-de-açúcar como

um ingrediente a mais em suas bebidas fermentadas e, mais tarde, principalmente a

aguardente “tornou-se uma arma poderosa no processo de pacificação” (OLIVEIRA,

2004, p.329).

Compreender o passado dos Kaingang é importante na medida em que nos

leva a conhecer os múltiplos fatores que determinaram o modo e os sentidos de

beber deste grupo. Existe uma dinâmica cultural que impulsiona os indígenas a esta

prática. Laraia nos esclarece:

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[...] cada sistema cultural está sempre em mudança. Entender esta dinâmica é importante para atenuar o choque entre as gerações e evitar comportamentos preconceituosos. Da mesma forma que é fundamental para a humanidade a compreensão das diferenças entre povos de culturas diferentes, é necessário saber entender as diferenças que ocorrem dentro do mesmo sistema. Este é o único procedimento que prepara o homem para enfrentar serenamente este constante e admirável mundo novo porvir (LARAIA, 2004, p.101).

Relacionando a questão atual do problema do alcoolismo com a citação

anterior, é possível dizer que os Kaingang continuam a fazer o uso da bebida, agora

não mais fermentada, e sim destilada. Em vista disto, o alcoolismo tem de um lado

sua raiz na cultura tradicional e de outro lado na revitalização a partir da oferta que

foi feita pelos não indígenas a um novo modo de relação com esta bebida, e a

introdução da cachaça.

Para que haja o controle e a cura deste que é um problema de saúde pública,

Oliveira (2004) aponta para algumas ações de caráter “preventivo” como, por

exemplo, envolvimento de profissionais de diversas áreas, e principalmente a

educação das crianças e jovens, no sentido de evitar que se tornem alcoólatras.

Porém, ao discutir o problema com eles, ela sugere ainda que se tenha o cuidado de

não reforçar o estereótipo do pensamento já existente na sociedade. É necessário

conhecer aspectos culturais do modo de beber específico e da história de “como”,

“por que”, “quando”, “onde”, “o modo” e “quais as finalidades pelos quais se bebe”.

Os estudos de Almeida, Wiik e Fernandes sobre “O consumo de bebidas

alcoólicas entre os Kaingang do Rio Grande do Sul” (2009) é uma importante

contribuição no sentido de apontar uma interpretação possível para o problema e

encaminhar soluções. Destacam que há três pontos fundamentais a serem

considerados em termos de cosmologia Kaingang: a configuração residencial nas

aldeias marcada pela concentração das casas em espaços limitados; a devastação

ambiental, impedindo relações de complementaridade entre o espaço da casa, da

roça e do mato virgem; e o sistema xamânico marcado pela pouca valorização dos

kuiã. Neste sentido, seria fundamental que a aldeia Linha Glória, tivesse inicialmente

um espaço mais amplo que lhes garantisse viverem totalmente segundo seus

códigos culturais e cosmológicos. A forma de tratamento da questão é fundamental

para que de fato este grupo possa resolver o problema do alcoolismo, que deve ser

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tratado como uma questão coletiva, na qual os indivíduos e a coletividade são

afetados.

4.2 Escola Estadual Indígena de Ensino Fundamental Manoel Soares

Com a promulgação da Constituição de 1988, assegurou-se aos povos

indígenas o direito a uma educação escolar diferenciada, com processos próprios de

aprendizagem e utilização de suas línguas maternas. Desta forma, as escolas

indígenas deveriam transformar-se num espaço de preservação de suas

organizações sociais, dos costumes, das línguas e crenças e também do

aprendizado da cultura e dos valores comuns ao povo brasileiro.

Os Guarani permaneceram por quase dois séculos sem atenção escolar

nenhuma, após a decadência da experiência missioneira, enquanto que os Kaingang

nunca tiveram. Somente no início do século XX que foi instalada pelo Serviço de

Proteção ao Índio (SPI), no Posto Indígena Ligeiro, a primeira escola Kaingang. Nas

décadas de 1920 e 1930 foram instaladas escolas em outras comunidades, sendo

que no governo de Getúlio Vargas, de 1930-1945, foram construídas escolas em

geral nas reservas indígenas, ou estes passaram a ter acesso à educação escolar

em escolas públicas próximas das reservas. Em 1961 ocorreu a instalação de uma

escola na reserva indígena de Guarita, implantada pela comunidade da Igreja

Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) de Tenente Portela, que,

paralelamente, desenvolvia outras ações no local. Na seqüência das atividades

dessa Igreja, em parceria com a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e a Summer

Institute of Linguistics (SIL), passou a funcionar, em 1970, a primeira escola de

formação de Monitores Bilíngües, a “Escola Normal Indígena Clara Camarão”,

depois denominada Centro de Treinamento Profissional Clara Camarão, que formou

três turmas de monitores bilíngües e uma turma de monitores agrícolas (MATTE,

2009).

A educação escolar indígena regular, no Brasil, vem obtendo, desde a década

de 1970, avanços significativos no que diz respeito à legislação. Se na atualidade

existem leis bastante favoráveis quanto ao reconhecimento da necessidade de uma

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educação específica, diferenciada e de qualidade para as populações indígenas, na

prática, entretanto, há enormes conflitos e contradições a serem superados

(GONÇALVES, 2011).

O Decreto Federal número 26, de 04 de fevereiro de 1991, estabelece as

competências quanto à educação escolar indígena, ficando atribuída ao Ministério

da Educação a coordenação das ações referentes à Educação Indígena e às

Secretarias de Educação dos Estados e municípios o desenvolvimento de ações em

todos os níveis e modalidades de ensino (PARECER nº 383/2002, Procuradoria da

República/Lajeado). A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), Lei

9.394, de 1996, estabelece normas específicas para a educação indígena e

assevera legalmente o uso das línguas maternas nas escolas indígenas,

proporcionando a “recuperação de suas memórias históricas, a reafirmação de suas

Identidades étnicas, a valorização de suas línguas e ciência”. A Lei 10.172, de 2001,

estabelece o Plano Nacional de Educação, em que a educação indígena é

devidamente contemplada. O Decreto 5.051, de 2004, promulga a Convenção da

OIT, assegurando aos indígenas direitos específicos a educação. Outros

documentos oficiais decorrentes dessa legislação fundamental atribuem à educação

indígena o caráter de diferenciada, específica, intercultural e bilíngue (MATTE,

2009).

Com o reconhecimento da aldeia Kaingang Linha Glória pela FUNAI, em

2002, o Governo do Estado do Rio Grande do Sul, por meio da Secretaria de

Educação, foi responsável pela gestão da construção da escola indígena as

margens da BR 386 (um pouco abaixo da área atual da aldeia), e sua posterior

autorização de funcionamento. Através do decreto nº 41.700, de 03 de julho de

2002, o então governador cria e denomina o referido estabelecimento de ensino

como Escola Indígena Manoel Soares. Mesmo não tendo o credenciamento e

autorização de funcionamento e “centro de custos”, a escola iniciou suas atividades,

a partir de sua criação.

A Escola Indígena Manoel Soares foi construída com parcerias (ONGs e

entidades filantrópicas) e subsidiada pela 3ª Coordenadoria Regional de Educação,

que doou os materiais rústicos (restos de um galpão de madeira de uma escola de

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Estrela). Esta construção inicial possuía somente quatro paredes, duas janelas e

uma porta. Não tinha sanitários e nem cozinha. A merenda escolar era enviada pelo

Conselho Tutelar, que as conseguia através de ações judiciais de doação de cestas

básicas (RELATÓRIO de 26/08/2004 – Procuradoria da República/Lajeado).

A construção aconteceu em janeiro de 2002, devido à necessidade de

oferecer uma educação voltada à peculiaridade indígena, já que as crianças não

tinham acesso, na escola regular que frequentavam, a um aprendizado voltado à

sua cultura indígena e na sua língua materna. Fica evidente, na fala da depoente A,

à exclusão a que era submetida o grupo indígena da aldeia Linha Glória pelos não-

indígenas e a necessidade da implantação desta escola dentro da aldeia:

[...] Este trabalho era para que este grupo excluído tivesse pelo menos acesso a uma boa educação na cultura deles. Boa educação eles tinham lá na escola Pedro Braun. Nós queríamos que esse grupo tivesse uma boa educação na cultura deles, onde eles iam. Mas na cultura deles não se adaptava, era um choque de culturas que tinha. Os professores da escola Pedro Braun eram muito bons. Pra assumir e pra trabalhar toda esta questão eu achei que eles foram muito competentes. Então em janeiro nós chamamos a Juraci Padilha e nós fomos ver como construir a escola lá [...]!(EA, 23/02/2011, p.4)

Tal situação pode ser verificada também em documento oficial do Ministério

Público Federal que ao solicitar a autorização oficial da escola e “centro de custos”,

refere-se que “as crianças indígenas não querem estudar na escola estadual regular

mais próxima – pois já foram submetidas a situações de preconceito e

discriminação” (PA nº 1.29.014.000008/2003-02 de 19/05/2004).

Neste período inicial de implantação da escola, muitos desafios e dificuldades

surgiram. Inicialmente era preciso que fosse contratado um professor para trabalhar

na escola. Sobre os primeiros professores temos o seguinte:

[...] A primeira professora foi a indígena, a Juraci Padilha – teóloga - e ela não conseguiu ser admitida como professora porque ela tinha um contrato, aliás nomeação de merendeira. Ela é hoje merendeira lá na escola Vinte de Maio [Estrela]. Ela iniciou esta escola com muito sofrimento. A escola estava lá e se não iam na aula, ela ia buscar e fazer todo um trabalho para que eles começassem a vir para a escola. Depois dela, foi nomeado um professor, ele era Matte [Carlos Matte]. Depois dele, veio esse casal, o Magnus e a Tamar [...] (EA, 23/02/2011, p.6).

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A escola já estava em funcionamento desde seu ato de criação há cerca de

dois anos, quando então foi regularizada junto ao Conselho Estadual de Educação

do Rio Grande do Sul pelo Parecer 447/2004 em 7 de julho de 2004 como Escola

Estadual Indígena de Ensino Fundamental Manoel Soares – Escola de Ensino

Fundamental de 1º ao 5º Ano (Of. AJU/GAB/3ª CRE/Nº849 de 25/08/2004). Com as

reivindicações realizadas pelo professor Carlos Matte à 3ª CRE, em 2003, houve

mobilizações para realização de melhorias na escola, resultando na construção de

um sanitário feminino com vaso e uma pia, um sanitário masculino com um vaso,

uma pia e um box com chuveiro. A frente da área construída foi adaptada uma

pequena cozinha para ser utilizada no preparo da merenda escolar (ANEXO F).

O Parecer da Comissão Especial de Educação Indígena nº 383/2002

estabelece normas para o funcionamento de escolas indígenas no Sistema Estadual

de Ensino no Rio Grande do Sul. Sobre o prédio, instalações e demais

equipamentos das escolas indígenas, o Parecer 383/2002 determina o seguinte:

O prédio escolar deve ser suficiente para abrigar o alunado em condições satisfatórias quanto à habitabilidade e segurança e adequado ao uso no que se refere à higiene e ao conforto. Respeitada a legislação que trata da Educação Escolar Indígena, as normas estabelecidas para cada nível ou modalidade de ensino podem servir de referência para essa oferta, ficando estabelecido o que segue: [...] f) os recursos didáticos, o mobiliário e as instalações devem ser adequados e suficientes para o desenvolvimento da proposta pedagógica; g) o acervo bibliográfico deve atender às exigências do Plano de Estudos, às necessidades culturais da comunidade escolar e à faixa etária dos alunos (PARECER Nº 383/2002 – Procuradoria da República/ Lajeado).

Com base em documentação específica do Ministério Público Federal,

verifica-se que logo após a autorização de funcionamento da escola pelo Conselho

Estadual de Educação, em 2004, a Procuradoria da República, mobiliza uma ação

questionando sobre a situação da escola. No parecer, elaborado pelo Conselho,

como sendo “suficiente e adequada”, o que não condiz, segundo à Procuradoria,

com a realidade, estando, portanto longe de atender aos parâmetros de

funcionamento dispostos no parecer 383/2002 (PA nº 1.29.014.000060/2004-31 –

Procuradoria da República - Lajeado).

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O que se percebe, porém é que de 2004 até 2011, esta realidade

praticamente não mudou. Tendo em vista, que parte do local é de domínio do DAER

e a comunidade indígena não possuir ainda o título da Terra Indígena, a Secretaria

de Educação diz não poder investir verbas oficiais por força de lei onde a terra não

está legalizada.

Desta forma, a legalização da área de terras, que é uma reivindicação antiga

do grupo e que veio à tona novamente com a duplicação da BR 386, surge também

como uma possibilidade de melhoria da escola, já que uma das medidas

“compensatórias” acordadas com o DNIT para o grupo da aldeia Linha Glória, seria

a construção de uma nova escola, e, sobretudo dentro da área da aldeia. Com o

reconhecimento desta área de terras como Terra Indígena, os investimentos na

escola não seriam impedidos de serem realizados com a justificativa de que o grupo

não possui “título” sobre a terra.

Atualmente há também a dificuldade de acesso das crianças à escola, pois

precisam se deslocar pelo acostamento da rodovia BR 386 para chegar até ela, o

que tem sido extremamente perigoso devido à imprudência dos motoristas. Esta

problemática é destacada pela entrevistada F, quando questionada sobre aspectos

positivos ou negativos com relação à escola, ela então responde:

O problema é assim... é mais o perigo! A gente tem medo das criança ir sozinha aqui pela faixa. Se a gente tivesse como botá aquela escola aqui pra cima, já ia alivia, um pouco. Assim quando tem sol dá pra eles ir pela faixa, mas dia de chuva... Daí a gente não tem como deixa! Tem uns carro, uns caminhão que andam muito! Tem uns que andam mais que deve a 60 a 40 Km/h. Já vão embalado! Que nem não sei que dia foi, mas foi de manhazinha. As criança tavam a recém saindo, logo uns minuto atrás deu um acidente aqui assim. Daí um caminhão pego um carro, só que as criança já tavam descendo. Daí tem uns que voltaram no susto. Voltaram pra traís e vieram pra casa. Daí nóis fomo olha e dissemo: Não! Vão indo que só deu uma batidinha! Mas eles foram com medo, mas mesmo assim eles foram (EF, 21/04/2011, p.4-5).

Na continuidade de sua fala, a depoente enfatiza que a realização de uma

das medidas de diminuição do impacto da duplicação da BR 386, reivindicada pelo

grupo ao DNIT, está sendo aguardada para ser efetivada, havendo a promessa de

que ela aconteça “em breve”. Esta medida resolveria o problema do acesso à

escola. Segundo ela:

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[...] o DNIT prometeu que eles vão cumpri semana que vem [Final do mês de abril de 2011) que é uma abertura, eles vão fazê um caminho. Abri assim uma estrada assim, pra tirá os mato pra eles não se molha! Daí eles vão fazê uma ponte. Tem uma água assim que não tem como eles passa, eles vão vim semana que vem, eles vão vim arrumá, pra eles não i ali pela estrada mais. Isso vai se bom! Já vai se uma parte que eles vão cumpri também. Já vai melhorá. Daí eles não vão precisá i pela faxa, daí eles vão por aqui por dentro e já não corre tanto esse perigo que nem eles tavam correndo (EF, 21/04/2011, p.5).

Há muitos anseios do grupo com relação à escola, especialmente no que se

refere ao direito de ter professores indígenas trabalhando na educação das crianças

Kaingang e de ter um professor bilíngue, para o ensino da/na língua materna, o que

é fundamental para a revitalização, valorização e fortalecimento da cultura Kaingang.

Alguns indígenas da aldeia Linha Glória acabaram perdendo a língua materna, com

o passar dos anos. Isto se deve ao fato de que Manoel Soares, patriarca da aldeia,

num dado momento não pode mais praticá-la, pois os fazendeiros que ofereciam-lhe

trabalho na lavoura não permitiam esta prática, como eles dizem: “os brancos

achavam que os índios falavam mal deles” (GONÇALVES, 2008). Sabemos também

que em determinado período histórico (Década de 1960), assumir-se indígena fora

dos espaços delimitados pelo governo como “reservas indígenas” e manter a língua

materna era motivo de perseguição pelos órgãos do governo. O grupo da aldeia

Linha Glória manifesta o desejo de revitalizá-la e fazer com que os seus filhos

possam aprendê-la, conforme pode ser verificado na fala de uma das lideranças:

Só o que tá faltando é um professor bilíngue. Pra ensina eles, isso tá faltando. Falta um professor de bilíngue pra ensina os nosso filho, que eles não sabem bem direito [língua]. Sabem alguma coisa, eles aprendem porque eles vão assim nas casa dos parente que sabe fala, assim que não perderam, que vieram pra cá e tão nos ajudando também, e tem criança que tão brincando e eles vão lá pra brincá junto, daí eles já vê os grande falando.Eles aprende, tão aprendendo aos pouquinho (EF, 21/04/2011, p.5).

Neste sentido, um dos entrevistados que media questões da Aldeia Linha

Glória com órgãos oficiais, destaca o seguinte:

Ali deveria se estar trabalhando, e é isto que os Kaingang esperam: valores dessa cultura e aí vem a importância dos professores indígenas Kaingang bilíngüe, que esses professores, essas professoras passem por uma formação específica e possam atuar nessas escolas! E é a busca que a Linha Glória está tendo agora e aí provavelmente poderá vir professores que estarão sendo contratados provavelmente - a gente viu que isso não se efetivou ainda - mas a CRE está em busca desse professor bilíngüe da cultura, falando a língua, trabalhando valores, por exemplo, saindo pra mata

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com essas crianças e falando sobre os chás, mostrando, retomando, é claro na Linha Glória retomando muitas questões, reconstruindo! Mas isso não quer dizer que a Linha Glória não tenha traços culturais presentes. Tem muitos! A gente que tem ido seguidamente ali, a gente percebe muito presente a cultura. Quando ao redor muita gente diz “Olha não são mais indígenas”, eles dizem que são e a gente percebe que sim! (EH, 06/05/2011, p.3).

O Parecer 383/2002 que estabelece normas para o funcionamento de escolas

indígenas nos Sistema Estadual de Ensino do Rio Grande do Sul, já referido

anteriormente, dispõe no item “Profissionais da Escola Indígena” que o professor

deve, “preferencialmente, ser membro da comunidade” (Parecer 383/2002, p.4).

Segundo este parecer, o êxito das escolas indígenas seria muito maior se os

profissionais que nela atuassem na função de docentes e nas de apoio, fossem

membros da mesma comunidade indígena.

É importante refletirmos que a concepção de escola para o grupo indígena

Kaingang é diferente da concepção que nós, não-indígenas, temos. Sobre esta

questão, que é de fundamental importância para entendermos qual o papel que a

escola indígena exerce dentro desta comunidade e o que os indígenas esperam

efetivamente dela, pode ser analisado a partir da experiência do depoente H:

Então a escola hoje ela é importante no momento em que ela de fato cumprir o seu papel de ser uma escola bilíngüe, que ainda estamos longe, longe, longe disso. Mas ainda assim ela é importante no sentido da revitalização dessas culturas, de que as crianças percebam, é importante que nem no caso da Linha Glória de retomar a sua língua! Os valores dessa cultura podem ser aprofundados pela escola.[...] A escola pode ajudar na questão de compreender também a sociedade nacional, porque eles são muitas vezes, digamos assim invadidos por concepções, valores e obrigações que vêm da sociedade nacional e que não fazem parte dos valores deles e eles não sabem como lidar às vezes (EH, 06/05/2011, p.2-3).

Em resumo, o que os indígenas esperam da escola é que ela possa acima de

tudo, respeitar o jeito de ser indígena e também ajudar a compreender essa

sociedade nacional, visando fortalecer cada vez mais sua própria cultura. O

professor indígena Dorvalino, que atualmente trabalha na aldeia Kaingang de São

Leopoldo, refere-se à língua Kaingang como “língua sagrada”, pois a memória, a

lógica e toda a estrutura do pensamento é construída a partir desta língua. Então,

cada palavra Kaingang está repleta de significados, que muitas vezes, não são

compreendidos senão por aqueles que vivem nesta cultura. Daí a importância do

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professor bilíngüe e do ensino e revitalização da língua materna para a aldeia Linha

Glória.

Além deste aspecto, o professor Dorvalino apontou para a importância do

educador e da educadora incluírem e valorizarem as diversas linguagens da

natureza no processo de construção da leitura e da escrita. Disse ele “A natureza

fala. Os diversos elementos da natureza falam o tempo todo. Fazem isto através de

diferentes linguagens e diferentes mensagens (PILGER, 2010, p.1).

A realidade de Linha Glória está bastante distante do que seria o ideal em se

tratando de educação indígena. O que se percebe, em entrevista com o depoente D,

é que não houve uma preparação dos profissionais que lá estão atualmente para

trabalhar com a educação indígena, sendo que estes são todos não-indígenas. Na

realidade está muito longe do que de fato deveria ser garantido como direito para

este grupo, na medida em que o ensino aplicado nesta escola se respalda apenas

na “inserção do alfabeto, saber ler e escrever e também no contexto da Matemática.

Saber contar e a partir disso introduzi-los na realidade de mundo em que vivem”

(ED, 22/03/2011, p.2).

A escola indígena deveria constituir-se em um canal de diálogo com o mundo

não indígena, possibilitando o acesso a conhecimentos que tornam a sociedade não

indígena mais compreensível, como a escrita, a leitura, o sistema monetário e a

língua portuguesa. Também é uma “ferramenta de luta” sem abrir mão dos saberes

tradicionais que são à base da educação das aldeias, garantindo assim um

relacionamento mais equilibrado entre as diferentes culturas indígenas e não-

indígena (BERGAMASCHI; DIAS, 2009).

Lilian Gonçalves (2011) faz uma importante análise a cerca da realidade das

escolas indígenas, que por lei, teriam o direito a uma Proposta Político Pedagógica

com características próprias. A partir de depoimentos coletados por Lilian

Gonçalves, foi possível verificar que lideranças indígenas têm, reiteradas vezes,

reclamado acerca da dificuldade em instituir nas aldeias, a escola com

características próprias e propostas didático-pedagógicas diferenciadas. Segundo

ela, isso ocorre, por conta de uma instituição que tem como premissa a

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homogeneização, bem como de gestores das políticas de educação escolar ainda

não preparados para atuar com as diferenças, acentuado pela incompreensão que

predomina na relação entre os mundos indígena e não indígena (GONÇALVES,

2011).

O professor Dorvalino Cardoso, que hoje trabalha na aldeia Por Fi em São

Leopoldo, chegou também a atuar na escola da aldeia Linha Glória nos anos de

2005 e 2006. Na época, ele veio com sua família da aldeia Votouro, que se localiza

em Benjamin Constant, e permaneceu como professor da língua Kaingang até maio

de 2006, quando então foi para São Leopoldo. Antes dele, a escola teve outro

professor que veio da aldeia de Iraí, referido como Sandro Tope da Silva. Ele atuou

de agosto de 2004 até fevereiro de 2005, quando retornou para Iraí. Somente em

2008 é que a escola teve novamente um professor para trabalhar a língua Kaingang,

foi o indígena João Maria Fortes, da aldeia de Planalto, município de Pinhalzinho

(Santa Catarina) que ficou na escola por apenas dois meses, no período de maio a

junho de 2008. Como ele não se adaptou, decidiu voltar para a sua aldeia de origem.

Desde então, a escola não teve outro professor bilíngüe (ED, 22/03/2001, p.1).

As aldeias Morro do Osso (Porto Alegre) e Por Fi (São Leopoldo) são

exemplos de educação indígena bem sucedida na atualidade. Nestas aldeias, as

escolas são administradas por professores indígenas especializados. As crianças

aprendem a ler e escrever em Kaingang e Português simultaneamente. O ensino do

idioma Kaingang, associado ao estudo de aspectos da cultura indígena, faz da

escola um forte instrumento de afirmação da identidade étnica. Para essa

comunidade, ter uma escola que pratica diariamente o seu idioma é importante, pois

o contato muito intenso com a cidade faz com que algumas famílias falem também o

português no seu dia a dia. Na escola as crianças têm a oportunidade de usar o

idioma com intensidade, respeito e valorização (BERGAMASCHI; DIAS, 2009).

Outra questão interessante sobre estas escolas indígenas de Porto Alegre e

São Leopoldo é que o regime de classe também é multisseriada, onde todos

estudam juntos, semelhante à escola da aldeia Linha Glória. Porém, não é um

ensino fragmentado em séries/anos do conhecimento, pois o entendimento que se

tem da organização escolar é diferente do entendimento das escolas ocidentais que

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dividem por séries/anos e idades escolares. Nestas escolas ocorre a convivência de

crianças de diferentes idades e níveis de aprendizagem. Todos aprendem juntos e

os que “sabem mais”, ajudam os que ainda não sabem. Há uma adaptação das

aulas ao calendário de festas e rituais e ausência de um controle rígido de

freqüência. Há um modo próprio de fazer escola nestas aldeias onde a escola

tradicional é a natureza, e os livros são as pessoas velhas.

Na legislação escolar indígena não há obrigatoriedade de freqüência escolar.

A decisão das famílias em colocar seus filhos na escola depende muito do

funcionamento dessa escola, da qualidade que oferece. Isso faz com que o

professor se esforce para atender as demandas da comunidade e realize um

trabalho que evidencie as aprendizagens e mantenha as crianças interessadas nas

atividades escolares. Porém é comum os alunos se ausentarem das aulas para

acompanharem suas famílias na venda de artesanato (BERGAMASCHI; DIAS,

2009).

A singular e surpreendente história da indígena Kaingang Andila Nivygsanh

narrada por ela através do texto” A Trilha da minha formação” (2009), é uma

riquíssima contribuição no sentido de conseguirmos perceber a partir de situações

vivenciadas por ela, o quanto se faz importante a compreensão da cultura indígena

no processo educativo e sobretudo que ele aconteça a partir de professores

indígenas especializados na língua. Em seu relato sobre sua caminhada,

inicialmente “forçada”, para se tornar uma professora bilíngue, aparecem questões

muito fortes como “não podíamos fazer fogo para nos aquecer porque diziam que a

fumaça “fedia” nas nossas roupas e cabelos” ou “não tínhamos o costume de comer

verduras e legumes, como repolho, tomate, alface etc., então a diretora sentava-se a

mesa e servia uma pratada de verdura para eu comer primeiro, depois, então,

ganhava arroz, feijão e carne” (NIVYGSANNH, 2009, p.117). Se não comesse a

verdura acabava ficando sem nada. São questões como estas, impregnadas de

preconceitos da sociedade não indígena que impedem, sobretudo, que eles possam

ser indígenas sem medo de assumir-se, como Andila mesmo revela, que em

determinado momento quis negar a sua língua materna, devido a tantos sofrimentos

e barreiras impostas pelos não-índios. Segundo ela, a língua é a expressão maior da

cultura e por isso deve ser preservada e valorizada.

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A ideia de pessoa associada à construção da identidade étnica é uma

construção cultural. A história de Nivygsanh (2009) se configura com a história de

tantas outras crianças indígenas, que são impedidas, muitas vezes, a continuarem

construindo-se enquanto pessoas de um grupo cultural. Sobre esta questão,

Brandão (1986) destaca que o sujeito transformado em pessoa é ele mesmo, uma

expressão individualizada da estrutura de símbolos do mundo social onde ele vive.

Portanto, não é possível querer mudar hábitos que são próprios de cada ser, porque

a pessoa de cada um de nós é uma construção que se dá através de um processo

de ensino-aprendizagem de formas, de sentimentos, pensamento e ação. Nesta

perspectiva, Fredrik Barth (2000), discorre com propriedade sobre a idéia de

fronteiras sociais. Segundo ele, se um grupo mantém sua identidade quando seus

membros interagem com outros, disso decorre a existência de critérios para a

determinação do pertencimento. Afinal, o fato de “ter o cheiro da fumaça”, por

exemplo, é um modo de expressão da cultura do grupo Kaingang.

Atualmente frequentam a escola indígena Manoel Soares vinte e sete

crianças indígenas, que estão matriculadas de acordo com seus respectivos anos de

ensino, o que abrange de 1º ao 5º ano do Ensino Fundamental. As turmas estão

assim constituídas: 1º ano – 04 alunos; 2º ano – 06 alunos; 3º ano – 08 alunos; 4º

ano – 04 alunos; 5º ano – 05 alunos (RELAÇÃO DE ALUNOS 2011). As crianças

estudam todas juntas em uma única sala em regime de classe multisseriada, e são

atendidas por uma única professora alfabetizadora (ANEXO G). Além da professora

alfabetizadora, a escola possui ainda o/a diretor(a) e uma funcionária, responsável

pela limpeza e pela elaboração da merenda.

A fase que corresponde à primeira infância11 é marcada pelo aprendizado

social. As crianças crescem e se tornam adultas, brincando, imitando os pais,

ouvindo histórias que os mais velhos contam, participando das atividades cotidianas

e rituais do grupo. Brincam nas árvores, penduram-se em cipós, andam de bicicleta

e jogam futebol, totalmente integradas ao meio ambiente que lhes é familiar (ANEXO 11 Para o século XIX há toda uma relação de direitos e deveres para a primeira infância (período que vai do nascimento até os 11 ou 12 anos para os meninos, e até os 14 ou 15 anos para as meninas), a adolescência (para os rapazes vai dos 12 até por volta dos 20 e 24 anos), passado isto é a fase adulta. As meninas após a primeira menstruação vão diretamente para a fase adulta. Atingida a idade de 14 ou 15 anos e já tendo menstruado, devem atender às necessidades que lhes der a liderança Kaingang. Através do casamento entram ambos os sexos para a idade adulta (BECKER, 1995).

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H). A atitude dos pais e dos mais velhos é sempre de grande tolerância, paciência,

atenção e respeito às suas peculiaridades. Desde cedo, as crianças aprendem as

regras do jogo social, mesmo os pais sendo os responsáveis mais diretos pela

criação dos filhos. As crianças são integradas na vida comunitária, aprendendo, o

que pode e o que não pode ser feito (GONÇALVES, 2011).

As crianças ingressam na escola aos seis anos de idade e lá permanecem até

completarem o 5º ano do Ensino Fundamental. Concluído os estudos na escola

indígena, os alunos são então encaminhados para a escola Estadual de Ensino

Fundamental Pedro Braun, que se localiza na Vila Glória, em Estrela. Verifica-se que

na atualidade, freqüentam à escola Pedro Braun, quinze crianças. Após

completarem o 9º ano, vão para uma escola de Ensino Médio também em Estrela.

Porém, o que constatamos é que são poucos os indígenas que na atualidade dão

continuidade aos estudos após completarem o Ensino Fundamental, devido a muitas

questões que perpassam essencialmente pelo respeito à diversidade cultural. Muitas

vezes os indígenas são desestimulados a continuarem seus estudos pela falta de

apoio dos órgãos públicos competentes e mesmo dos educandários, que na prática,

dizem não estarem preparados para acolher alunos indígenas, bem como não

contemplam em suas Propostas Político Pedagógicas, a questão indígena. Há um

longo caminho a percorrer no sentido de acolhida das populações indígenas pela

sociedade não-índia nos espaços destinados a educação, vinculada a uma

instituição tradicional.

Cabe ressaltar que as comunidades indígenas têm, em geral, uma tradição

oral e uma memória coletiva que dispensou por muito tempo a cultura escrita. Neste

sentido, é importante pontuarmos que em se tratando de educação indígena a

escola é apenas um complemento dessa educação, porém não é a central e nem o

principal. A essência da educação indígena Kaingang da aldeia Linha Glória está no

grupo, na família, na tradição oral, na vivência do dia a dia. É através de seu

cotidiano, na convivência com os mais velhos e com os adultos, que a criança

aprende por meio da tradição oral, interage e constrói significados do seu mundo

cultural. Da mesma forma, há um cuidar coletivo, ou seja, todos cuidam e são

responsáveis por todos. Sobre isto, o depoente H nos fala:

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Esse cuidado se delega ao grupo, que vive nesta comunidade e muitas vezes, também as lideranças de outras aldeias, que vem para dar conselhos, quando necessário. Presenciei, muitas vezes, a cacique Maria Sandra saindo para uma reunião e deixando seu filho na aldeia. Falava para mim que ia tranqüila, porque suas irmãs e sua mãe cuidavam dele. E aí, às vezes, as pessoas olham e tem alguns preconceitos... assim... muito fortes..., no sentido de dizer que “eles são preguiçosos”. Não! Eles estão lutando para manter valores, por exemplo, estes da educação das crianças (EH, 06/05/2011, p.4).

Com base nos estudos de Vanderléia Mussi (2000), podemos dizer que

diversas populações indígenas têm salientando o propósito de que se reconheçam o

uso de suas tradições orais como verdadeiras histórias de vidas, uma vez que essas

sociedades são tidas como ágrafas. Neste “processo”, a informação é transmitida de

uma geração à outra através do “ouvir contar”. Vanderléia Mussi, apoiando-se em

Julie Cruikshank, destaca que “em termos mais gerais, a tradição oral também pode

ser usada como um sistema coerente e aberto para transmitir conhecimentos”

(CRUIKSHANK apud MUSSI, 2000, p.4).

Um dos aspectos primordiais deste grupo que perpassa pela educação

indígena é a aprendizagem da sobrevivência no ambiente em que vivem. No

passado, a criança indígena Kaingang aprendia, desde pequena, diferentes

atividades de sobrevivência nas florestas e matas em que vivia. Eram coletores,

caçadores e pescadores junto de seus pais, além de vivenciarem a prática da

agricultura. Deslocavam-se sobre o território para desenvolverem suas atividades de

subsistência material e reprodução social. Sobre aspectos de sua educação, Ítala

Becker (1995, p.143) destaca que aos meninos era dada uma “educação prática”

desde muito pequenos, sobre o uso de armas e a maneira de fabricá-las. Também

enfatiza que independente da faixa etária e diferenciação de sexo, existia uma

“educação prática para a vida”.

Destas atividades, tanto antes como coletores, como agora, fazendo e

vendendo o balaio, as crianças sempre participaram. Na atualidade eles continuam

com essa prática. A criança está perto da sua mãe na hora de fazer o cesto de cipó

ou de taquara e na hora de vendê-lo. Andam pelas cidades de Estrela, Lajeado,

Bom Retiro do Sul, Teutônia, Montenegro. Caminham pelas ruas das cidades e

também pelas estradas do interior dos municípios. Sentam no chão, por exemplo,

próximo a porta do supermercado Languirú, em Teutônia. Vemos as crianças

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sempre junto de seus pais. Assim, aprendem o jeito de ser Kaingang. Nesta linha, o

depoente H destaca:

Na compreensão de muitos antropólogos, ela continua aprendendo a coletar como seus antepassados faziam. A organização de uma sociedade onde a mãe precisa deixar o filho na escola ou na creche e trabalhar numa fábrica o dia todo, certamente, tem necessidades, valores bastante diferentes. Estas crianças indígenas que estão na rua, estão aprendendo com seus pais, com sua vó, com a sua tia ou alguém da comunidade Kaingang. O trabalho, a vida, a aprendizagem, a busca do alimento, o respeito à natureza estão interligados. Quando leis, como a Constituição Federal vigente no Brasil ou a Convenção 169 da OIT, já consideraram e incluíram o direito de viver e ser Kaingang, cabe a todos e todas nós, respeitar as diferenças culturais e ajudar no processo de reconstrução e valorização desta sociedade brasileira plural (EH, 06/05/2011, p.3).

Nos tempos atuais, sua economia modificou-se e necessitam aprender a

coletar nos espaços invadidos pelas cidades. É uma lógica completamente diferente

daquela vivida no passado, porém mantém a sua maneira a especificidade da

coleta. A cidade se tornou para eles uma extensão de seu território de “caça” e

“coleta” de alimentos, remédios, documentos e outros produtos de que necessitam

(TOMMASINO, 2001).

Observa-se nas aldeias, principalmente entre as pessoas mais velhas, uma

ética do cuidado, no sentido de preservar o modo de vida indígena diante das

possíveis mudanças, pois mesmo considerando a dinâmica cultural, própria dos

grupos humanos que se recriam diante das vicissitudes, os povos indígenas sabem

o potencial destruidor do contato com as sociedades não indígenas

(BERGAMASCHI; DIAS, 2009).

Na relação com o outro é que os grupos indígenas justamente estabelecem o

que Fredrik Barth (2000, p.26) denomina de “fronteiras étnicas”. Segundo este autor

“as distinções étnicas não dependem da ausência de interação e aceitação sociais,

mas, ao contrário, são frequentemente a própria base sobre a qual os sistemas

sociais abrangentes são construídos”. Desta forma a interação não descaracteriza

esses grupos sociais: “as diferenças culturais podem persistir apesar do contato

interétnico e da interdependência entre as etnias” (BARTH, 2000, p.26). Neste

sentido, o que percebemos é que há todo um cuidado por parte dos indígenas

Kaingang da Aldeia Linha Glória com suas “fronteiras étnicas”, pois o contato com as

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sociedades não-indígenas impulsiona para a necessidade de se afirmarem nas suas

diferenças.

No campo da Educação a temática indígena, como resultado de reflexões

sobre identidades, diferenças e diversidade cultural, tem sido ampliada. Porém, essa

é uma especificidade que não interessa à maioria da população, ainda sendo

considerada uma questão menor. Quando se trata de propor alterações curriculares

para contemplar a temática indígena, quando se busca assegurar continuidade

escolar em nível básico e universitário, e também quando se propõem uma maneira

de olhar e falar do outro, o assunto se torna polêmico e resistente (GONÇALVES,

2011).

A educação centrada em uma instituição chamada escola é um apoio

fundamental para garantia e manutenção desta cultura, mas sobretudo, deve

acontecer no moldes do que prevê a lei, que garante uma educação que respeite o

jeito de ser Kaingang e que seja preferencialmente trabalhada por pessoas da

própria comunidade. Percebe-se um movimento na aldeia Linha Glória para que

num futuro próximo os próprios indígenas possam estar atuando dentro de sua

escola. Segundo Lilian Gonçalves (2011, p.39) “respeitar a cultura e o tempo das

comunidades indígenas é fundamental para que se crie uma escola

verdadeiramente específica e diferenciada dentro das aldeias”.

Neste sentido, a escola é tida por este grupo como uma de suas conquistas,

por isso é de fundamental importância que eles possam geri-la a sua maneira. A

resolução 03/99 do Conselho Nacional de Educação garante e requer a participação

indígena na gestão escolar. A relação dos Kaingang de Estrela com a sua escola é o

exemplo de que a educação escolar indígena pode, na atualidade, assumir um lugar

de destaque para fazer valer sua luta em ver seus direitos constitucionais garantidos

que respeite, sobretudo, o direito a diferença.

Por fim, salientamos que o grupo indígena Kaingang da aldeia Linha Glória

evidenciou, ao longo deste capítulo, que há um constante recriar de práticas

culturais diante de questões ligadas a saúde, porém elementos fundamentais do

passado se inscrevem, somando-se ao novo, de forma contínua. Os indígenas da

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aldeia Linha Glória ainda mantêm particularidades de seu sistema cultural de saúde

e educação, entendo esta última como de dimensões amplas, que perpassam

primeiramente pelo grupo, e que posteriormente se ampliam na escola sob um

caráter de fortalecimento da cultura e melhor entendimento da sociedade nacional.

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CONCLUSÃO

Este trabalho procurou estudar a trajetória histórica da comunidade indígena

Kaingang da Aldeia Linha Glória, atualmente estabelecida em Estrela, as margens

da BR 386, para dar uma maior visibilidade ao grupo como sujeito histórico e como

tal, portadores de direitos.

Esse processo compreende a saída de Santa Cruz do Sul em meados da

década de 1960, o estabelecimento em uma nova área próxima ao trevo de acesso

à Bom Retiro do Sul, e posteriormente a ocupação do atual território, então

reconquistado pelo grupo, em 2005, onde foram construídas suas casas no ano

seguinte e lá vieram a estabelecer-se. Desta forma, procuramos saber quais os

sentidos da territorialização do espaço ocupado e de que forma eles se relacionam

com a história do grupo.

Nesse questionamento inicial, partindo da hipótese de que a concepção

indígena de território possui uma dimensão sócio-política-cosmológica muito ampla e

a relação histórica do grupo com o espaço ocupado se deve ao fato de no passado

já terem habitado aquele local, e os antepassados terem ali enterrado os seus

umbigos, confirmou-se ao longo deste estudo, como pudemos observar durante a

fala de nossos depoentes e pesquisas documentais realizadas. Da mesma forma, a

mobilidade hoje, se faz presente pela mesma lógica que era realizada no passado,

ou seja, ainda se movem para suprir suas necessidades de reprodução física e

cultural. Como suas matas foram em sua grande maioria, retiradas, precisaram

adaptar-se a esta nova realidade. O fato de estarem (re) territorializando-se, ou seja,

(re) ocupando espaços próximos a áreas urbanas, justamente ocorre porque as

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cidades que invadiram seus territórios, hoje se mostram como uma nova

possibilidade de coleta, porém, conforme afirma Laraia (2004) como nenhuma

cultura é estanque, precisaram adaptar-se a esta nova realidade. Hoje, as coletas se

dão das mais variadas formas, e a venda do artesanato é uma forma de manter viva

a cultura Kaingang.

A pesquisa pretendia saber também quais as transformações e permanências

culturais do grupo. Porém, necessitamos delimitar quais os aspectos da cultura

deste grupo que iríamos investigar. Diante da amplitude da cultura, em seu sentido

conceitual, optamos em abordar aspectos relacionados à saúde e educação. Para

tanto, acreditamos que ao longo de sua história de contato com a sociedade

nacional, os indígenas Kaingang mantiveram grande parte de seus costumes

antigos, porém, também houve transformações, e foram (re) inventando novos

padrões de acordo com os princípios da lógica nativa.

Em relação às transformações e permanências culturais, ligadas à saúde,

vimos que o grupo mantém viva muitas de suas tradições xamânicas e práticas de

sua medicina tradicional, utilizando-se amplamente dos chás disponíveis no

ambiente. Também recorrem, quando necessário, aos médicos não indígenas em

questões específicas ligadas a realização de vacinas, exames pré-câncer,

tratamentos dentários e problemas na coluna. Constatamos o problema do acesso à

água, uma vez que as residências não dispõem de encanamentos próprios, havendo

apenas uma torneira central para as cerca de trinta famílias residentes na aldeia.

Não há um lugar próprio para o banho, bem como, não há sanitários adequados na

aldeia. Como vivem em um reduzido espaço de terra, e já não podem mais ter

acesso, aos rios como no passado, onde banhavam-se frequentamente nas águas

límpidas dos rios, hoje o fazem em um pequeno córrego próximo à área da aldeia, o

que é extremamente precário e limitado para um grupo de praticamente cento e

cinquenta pessoas. Constatamos durante a realização deste trabalho que é urgente

a atenção com as questões de saneamento e a disponibilidade de água para todas

as famílias.

Quanto à educação, verificamos que ela é compreendida pelos indígenas

Kaingang da Aldeia Linha Glória, como essencial à manutenção da cultura. Porém,

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vimos que eles entendem a educação como algo muito maior, que é dada

inicialmente pelo grupo, e é permeada pela tradição oral e vivências do dia a dia

onde as crianças aprendem junto de seus pais o jeito de ser Kaingang. Durante

nossas pesquisas de campo, ouvimos de nossos depoentes que eles desejam que

sua língua materna seja revitalizada no grupo. Atualmente, não são todos que falam

a língua, porém aqueles que ainda a mantém viva, empenham-se em ensinar as

crianças para que elas possam aprendê-la e assim, dar continuidade a esta prática

cultural. A Escola Indígena Manoel Soares, tem um importante papel neste sentido,

uma vez que deveria ser um espaço de educação indígena específica, diferenciada

e bilíngue, conforme estabelecem seus direitos constitucionais garantidos pela

legislação educacional brasileira, mas que na prática, até o momento da coleta de

dados e entrevistas com os gestores da escola, não possuía este caráter proposto

na lei. A Escola Indígena Manoel Soares que deveria ser uma referência neste

sentido, não conseguiu, devido a questões adversas, manter um professor bilíngue.

Constatamos que nos moldes em que esta escola foi gerida até o presente momento

da pesquisa, muito pouco contribuiu para a revitalização da cultura e da história

Kaingang.

Os indígenas Kaingang da Aldeia Linha Glória, nesses quarenta anos de

ocupação deste território, que é reconhecido por eles como sendo, território dos

seus antepassados, empreenderam muitas “lutas” no sentido de serem respeitados

como etnia indígena e de reivindicarem seus direitos, sendo sujeitos de sua própria

historicidade. Muitas foram as conquistas deste grupo, como por exemplo, o

reconhecimento de pertencimento a etnia Kaingang em 2002, pelo CEPI, e a

participação efetiva no referido conselho a partir de então; a concessão de uma área

de terras um pouco maior e posterior construção de casas novas neste local; a

construção de uma escola indígena para as crianças frequentarem até o 5º ano; o

direito de ter um Agente de Saúde Indígena e um Agente de Saneamento Indígena.

Vivemos um tempo em que a diversidade etno-cultural e os direitos dos povos

indígenas são amplamente reconhecidos, ancorados em preceitos e acordos

internacionais e amparados na legislação brasileira. No entanto, verificamos que na

realidade, direitos fundamentais garantidos pela Constituição Federal muitas vezes

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são negligenciados pelos órgãos competentes, e só são efetivamente respeitados

frente a muitas “lutas” e reivindicações dos grupos indígenas.

Em torno da problemática da terra, ou seja, do direito em ter o espaço atual

reconhecido como Terra Indígena, sabemos que a área ocupada encontra-se em

situação irregular, ou seja, depende de regularização fundiária, sendo esta questão

reascendida com a duplicação da BR 386, e que trás a tona a luta deste grupo pela

garantia do espaço ocupado. Vimos que durante as negociações dos tramites legais

para que a obra de duplicação acontecesse, ocorreu dentro do que era previsto,

porém o “acordo” estabelecido com as aldeias impactadas, e que deveria ter sido

contemplado antes mesmo do início das obras, na sua grande maioria sequer saiu

do papel. Estudos de Impacto Ambiental foram realizados, assim como reuniões e

diálogos, porém quando efetivamente deveriam ter sido colocados em prática, houve

certo descaso. Referente aos impactos gerados pela duplicação, além das perdas

territoriais, há uma perda muito maior que é a supressão da área vegetal, que é de

fundamental importância devido a necessidades que estas populações indígenas

têm do contato com a natureza, pois tudo de que dependem para sobreviver, de

acordo com seus próprios códigos culturais, é extraído dela. Portanto, a garantia de

uma área de terras maior é fundamental para este grupo continuar reproduzindo-se

enquanto etnia indígena, sendo respeitada sua especificidade indígena. Vimos

durante as entrevistas, que os indígenas, sabem dos seus direitos e por isso, vêm

lutando no sentido de fazer valer na prática estes direitos. O que eles reivindicam

como seu e do que necessitam para viver nos parece ser tão simples, porém, a

sociedade não-indígena, sobretudo os gestores políticos, não conseguem

compreender isto, pois vivem num tempo e numa lógica diferente, na qual os “bens”,

não são tidos como propriedades coletivas, diferente da sociedade indígena

Kaingang.

Por fim, constatamos que os indígenas estão se mostrando agentes de sua

própria historicidade, estando a frente de diversas lutas e reivindicações de

melhorias para sua vida e pelo direito de terem seu território reconhecido como

Terra Indígena, sendo portanto, sujeitos da própria história.

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OFÍCIO Circ. nº 230/07 de 12/011/2007. Resposta da Secretaria Municipal de Saúde e Assistência Social, Estrela ao OF/PRDC/PRM-LJ nº 656/2007. Sobre empregos públicos de AIS (Agente Indígena de Saúde) e AISAN (Agente Indígena de Saneamento). Procuradoria da República - Lajeado.

OF. AJU/GAB/3ºª CRE/nº 849 de 25/08/2004 – Ofício da 3ª Coordenadoria Regional da Educação, Estrela – RS. Sobre Autorização de funcionamento da Escola Estadual Indígena de Ensino Fundamental Manoel Soares. Procuradoria da República – Lajeado.

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ANEXOS

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LISTA DE ANEXOS

ANEXO A – Área atual da aldeia Kaingang de Linha Glória, em Estrela.................118

ANEXO B – Imagem da vasta área de vegetação no período anterior à

duplicação................................................................................................................119

ANEXO C – Imagem da vasta área de vegetação no período anterior à

duplicação................................................................................................................119

ANEXO D – Localização das cidades de Lajeado e Estrela....................................120

ANEXO E – Obras da duplicação próximo ao trevo de acesso à Bom Retiro do

Sul............................................................................................................................121

ANEXO F – Imagem da Escola Estadual Indígena de Ensino Fundamental Manoel

Soares......................................................................................................................122

ANEXO G – Imagem de crianças indígenas Kaingang na sala de aula..................123

ANEXO H – Imagem de crianças indígenas da aldeia Linha Glória brincando.......124

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ANEXO A: Área atual da aldeia Kaingang de Linha Glória, em Estrela

Fonte: (GONÇALVES, 2008). Legenda:

Casa de habitação Escola BR 386 Direção Porto Alegre

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ANEXO B: Imagem da vasta área de vegetação no período anterior à duplicação

Fonte: (SILVA, 2010).

ANEXO C: Imagem da vasta área de vegetação no período anterior à duplicação

Fonte: (SILVA, 2010).

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ANEXO D: Localização de Aldeias Kaingang nas cidades de Lajeado e Estrela

Fonte: Adaptado de Correa; et al ( 2007, p.3).

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ANEXO E: Obras da duplicação próximo ao trevo de acesso à Bom Retiro do Sul

Fonte: (SILVA, 2011).

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ANEXO F: Imagem da Escola Estadual Indígena de Ensino Fundamental Manoel

Soares

Fonte: (GONÇALVES, 2008).

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ANEXO G: Imagem de crianças indígenas Kaingang na sala de aula

Fonte: UNIVATES, Arquivo do Projeto de Extensão que estuda a História e Cultura Kaingang em Lajeado e Estrela- Univates, 10/10/2010.

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ANEXO H: Imagem de crianças indígenas da Aldeia Linha Glória brincando

Fonte: UNIVATES, Arquivo do Projeto de Extensão que estuda a História e Cultura Kaingang em Lajeado e Estrela- Univates, 10/10/2010.