terra e cultura, ano xix, nº 37 -...

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TERRA E CULTURA, ANO XIX, Nº 37 iii

CENTRO UNIVERSITÁRIO FILADÉLFIA

ENTIDADE MANTENEDORA:INSTITUTO FILADÉLFIA DE LONDRINA

Diretoria:

Agnello Correa de Castilho ................................... Presidente

Job Rodrigues de Moraes (in memorian) ............. Diretor Vice-Presidente

Wellington Werner ................................................. Diretor Secretário

Lélia Monteiro de Melo Bronzeti ............................ Diretora Vice-Secretária

Alberto Luiz Cândido Wust ................................... Diretor Tesoureiro

José Severino ........................................................ Diretor Vice-Tesoureiro

Eleazar Ferreira .................................................... Reitor

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TERRA E CULTURA, ANO XIX, Nº 37 v

TERRA E CULTURA

Ano XIX - nº 37 - julho a dezembro de 2003

CONSELHO EDITORIAL

PRESIDENTETadeu Elisbão

CONSELHEIROS

Ademir Morgenstern Padilha

Damares Tomasin Biazin

João Juliani

Joaquim Pacheco de Lima

José Martins Trigueiro Neto

Juliana Harumi Suzuki

Maria Eduvirges Marandola

Marisa Batista Brighenti

ISSN 0104-8112

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TERRA E CULTURA, ANO XIX, Nº 37 vii

CENTRO UNIVERSITÁRIO FILADÉLFIA

REITOR: Dr. Eleazar Ferreira

PRÓ-REITOR DE ENSINO DE GRADUAÇÃO: Profª. Vera Lúcia Lemos Basto Echenique

COORDENADORA DE CONTROLE ACADÊMICO: Profª. Isabel Barbim

COORDENADORA DE AÇÃO ACADÊMICA: Profª. Vera Aparecida de Oliveira Colaço

PRÓ-REITOR DE PESQUISA, PÓS-GRADUAÇÃO E EXTENSÃO: Prof. Nardir Antonio Sperandio

COORDENADOR DE PUBLICAÇÕES CIENTÍFICAS: Prof. Tadeu Elisbão

COORDENADORES DE CURSOS DE GRADUAÇÃO:

Administração Prof. Luís Marcelo MartinsArquitetura e Urbanismo Prof. Gílson Jacob BergocCiências Biológicas Profª.Célia Regina Góes GaravelloCiências Contábeis Prof. Eduardo Nascimento da CostaDireito Prof. Osmar Vieira da SilvaEnfermagem Profª. Damares Tomasin BiazinFarmácia Profª. Lenita Brunetto BrunieraFisioterapia Profª. Gladys Cely Faker LavadoNutrição Profª. Gersislei Antonia SaladoPedagogia Profª. Mariana Josefa Carvalho de AlmeidaPsicologia Prof. João JulianiSecretariado Executivo Profª. Izabel Fernandes Garcia de SouzaTecnologia em Proc. de Dados Prof. Adail Roberto NogueiraTeologia Prof. Rev. Silas Barbosa DiasTurismo Profª. Thaís Berbert

Rua Alagoas, nº 2.050 - CEP 86.020-430Fone: (0xx43) 3375-7400 - Londrina - Paraná

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SUMÁRIO

ENTIDADE MANTENEDORA: ........................................................ iiiTERRA E CULTURA ........................................................................... vCENTRO UNIVERSITÁRIO FILADÉLFIA ................................... viiSUMÁRIO ................................................................................... ix e xEDITORIAL .......................................................................................... 1MODERNIDADE E RAZÃO: CONTINUIDADE E RUPTURA ..... 3

Joaquim Pacheco de Lima

RUPTURAS E CONCILIAÇÕES NA HISTÓRIA DO BRASIL: UMAPEQUENA REFLEXÃO SOBRE O PAPEL DO HISTORIADOR.....16Agnaldo Kupper

REFLEXÕES E POSSIBILIDADES PARA A PRÁTICA DE HISTÓ-RIA NO ENSINO FUNDAMENTAL ........................................... 28Leandro Henrique Magalhães

CONSIDERAÇÕES SOBRE DUAS DIFERENTES FORMAS DE SEFAZER ETNOLOGIA.................................................................... 39Marcelo Caetano de Cernev Rosa

LEITURA E COMUNICAÇÃO ........................................................ 56Lealis Conceição Guimarães

PAIS DE FAMÍLIAS ORIGINAIS E DE FAMÍLIAS SEPARADAS:UM ESTUDO COMPARATIVO DAS PRÁTICAS EDUCATIVAS EDO RELACIONAMENTO COM OS FILHOS. ......................... 65Carmen Garcia de AlmeidaSílvia Cristiane Murari

GLOBALIZAÇÃO, ASSÉDIO MORAL E PERVERSIDADE NOCOTIDIANO .................................................................................. 74Ana Paula Bigheti dos SantosJuliana de Rezende PenhakiLydia Akemy Onesti

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TERRA E CULTURA, ANO XIX, Nº 37 x

RECORTES DO TRABALHO DOMÉSTICO DE COSTUREIRAS ESUAS INTERFACES COM A ESFERA FAMILIAR, SOCIAL EPOLÍTICA ...................................................................................... 82Analuisa Bernardi de AlmeidaSemíramis Fabíola HirataLydia Akemy Onesti

PERFIL NUTRICIONAL E CONSUMO ALIMENTAR DE CRIAN-ÇAS ATENDIDAS EM CRECHE FILANTRÓPICA DA CIDADEDE LONDRINA – PR .................................................................... 94Gersislei Antonia SaladoMarisa Batista BrighentiFlávia Hernandez Fernandez

ESTRESSE DE PROFISSIONAIS DE SAÚDE DAS UNIDADESBÁSICAS DO MUNICÍPIO DE LONDRINA .......................... 103Edvilson Cristiano LentineTereza Kiomi SonodaDamares Tomasin Biazin

O PLANEJAMENTO E A PRÁTICA DO ENSINO COMO UM ATOPOLÍTICO.................................................................................... 124Alda Ap. Mastelaro HayashiAndréia Bendine Gastaldi

ARQUITETURA E SUSTENTABILIDADE NA SOCIEDADE DERISCO ........................................................................................... 131 Antonio Manuel N. Castelnou

ESTRUTURA DE CAPITAL E O PROCESSO DE ALAVANCAGEMFINANCEIRA: UMA DISCUSSÃO SOBRE A RELAÇÃO ENTRENÍVEIS DE ENDIVIDAMENTO E LUCRATIVIDADE .......... 147Juliano Di LucaMarcos Jerônimo Goroski Rambalducci

UMA PROJEÇÃO DAS FINANÇAS NA PRIMEIRA DÉCADA DOSÉCULO XXI ............................................................................... 157Adalberto Brandalize

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TERRA E CULTURA, ANO XIX, Nº 37 1

EDITORIAL

TERRA E CULTURA nesta ocasião dá a público este seu Nº 37 comple-tando a sua programação editorial para o ano de 2003, o 19º da sua existênciaprofícua, sempre semeando idéias e fazendo pensar.

Neste período em que o Centro Universitário Filadélfia (UniFil) expan-diu-se sobremaneira e consolidou ainda mais a sua posição no cenário educaci-onal do país, a Revista também viu-se robustecida.

Cresceu a relação de instituições de ensino superior (IES) e de pesquisaque passaram a figurar na mala-direta para recebimento de exemplares a cadaedição. O ingresso desses novos destinatários deu-se por iniciativa das própriasInstituições, que formalizaram o seu interesse através das respectivas bibliote-cas.

Neste contexto TERRA E CULTURA vê ampliar a sua área deabrangência a cada ano, fato que consubstancia um dos seus objetivos, clara-mente estabelecido pelo Conselho Editorial. Paralelamente têm sido firmadoscontratos de permuta com Instituições que também publicam periódicos de di-vulgação científico-cultural, o que é muito salutar para a UniFil e também paraos novos parceiros.

O Nº 37 está rico e atraente através dos 14 artigos que foram selecionadospara integrá-lo. Mesmo assim a Revista encontra-se permanentemente recepti-va a críticas e sugestões, bem como a contribuições na forma de novos artigospara compor os Nº 38, 39, 40........

O Conselho Editorial

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MODERNIDADE E RAZÃO:CONTINUIDADE ERUPTURA

Joaquim Pacheco de Lima1

RESUMO

A modernidade não chegou ao fim; meramente passa por uma crise inter-na. Oriunda de seu desenvolvimento e por adotar um modelo de racionalidadeinstrumental, que se tornou dominante, acabou obstruindo outros modelos deracionalidade possível. Na busca da gênese da idéia de modernidade filosóficafundamentada na razão, o Iluminismo é uma das fontes. A compreensão dosfenômenos e vivências na busca de significados, o itinerário de surgimento econsolidação da modernidade, e os correspondentes modelos de racionalidade,têm como interlocutores Hume, Kant, Hegel. Embora divergentes e comple-mentares, contrapõem a tradição metafísica de conhecimento.

PALAVRAS-CHAVE: Modernidade; Racionalidade; Conhecimento; Iluminismo.

ABSTRACT

Modernity did not come to an end; it is merely undergoing an internal crisis.Springing from its development and due to having adopted a model of instrumen-tal rationality, which became dominant, it ended up obstructing other models ofpossible rationality. In the search of the genesis of the idea of philosophicalmodernity based on reason, Illuminism is one of its sources. The understandingof the phenomena and experiences in search for meanings, the itinerary ofmodernity’s uprising and consolidation, and the corresponding models of rationalityhave Hume, Kant, Hegel as interlocutors. Although divergent and complementary,they oppose the metaphysical tradition of knowledge.

KEY-WORDS: Modernity; Rationality; Knowledge; Illuminism.

1 Docente da Unifil dos Cursos de Pedagogia e Turismo.Pós-graduado em Filosofia e Sociologia.E-mail: [email protected]

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INTRODUÇÃO

No caminhar da filosofia contemporânea não houve privilégio de um temacentral em sua práxis filosófica, mas a atividade racional e suas modalidades seimpuseram. As emergências histórico-sociais fizeram com que velhas tendênci-as filosóficas proporcionassem o surgimento de novas teorias, privilegiando pro-blemas emergentes no quadro atual. A idéia de modernidade filosófica pressu-põe captar a idéia de razão, uma razão alargada. Objetivamos indagar sobre asbases filosóficas que fundamentam a modernidade. Inicialmente, situamos amodernidade como inacabada, conforme afirma HABERMAS (2000). Esmsua obra clássica “O Discurso Filosófico da Modernidade”

Observamos que o intuicionismo, o neopositivismo e a fenomenologia ata-caram antigas verdades, como o culto à razão humana, como único critério deverdade, mostrando novos caminhos, tornando transparente a realidade. Noutrocampo, o pragmatismo, o marxismo, o existencialismo e o estruturalismo repre-sentaram novas formas de compreensão do real. Ao considerar o útil e o neces-sário como verdadeiro (pragmatismo), pondo fim ao modo de pensar metafísico;ao investigar a sociedade capitalista e suas relações (marxismo); ao verificar aautenticidade e inautenticidade dos sujeitos e sua existência (existencialismo); eao buscar conhecer a sociedade nas suas estruturas internas (estruturalismo), esão representadas novas formas de conhecer o mundo. Cada concepção reto-ma ou renova, inaugura forma nova de pensar. A modernidade é a entranhadesse processo. O Iluminismo2 é o movimento cultural portador de uma visãounitária do mundo e do Homem, que, apesar das diversidades de leituras, conser-vou a certeza quanto à racionalidade do mundo do Homem, a qual seria imanenteem sua essência. Daí, vale destacar a antropologia das “Luzes”3 , tendo comoprimado absoluto da razão e o caráter universal e eterno da natureza humana, naperspectiva da ciência do Homem.

As mudanças nas estruturas do pensamento se expressam no agir humanoquando alguns firmam a razão instrumental (Adorno, Horkheimer, Habermas eoutros), declinando a potencialidade, afirmando o dogmatismo; de outro lado,outros apontam a razão comunicativa como possibilidade. A razão perde o cará-ter abstrato em favor do dialogal (Jurgem Habermas). Nada pode ser definitivo,

2 Iluminismo – uma categoria com vários matizes. Buscando no Dicionário Aurélio, há umapolissemia que vai desde a palavra até os sentidos, cuja metáfora usada seja “do Período dasLuzes”.3 Ver GUSDORF, Georges. Introduction aux sciences humaines. Paris: Ophrys, 1988.

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tudo pode ser contestado e analisado, e isso se dá no movimento. Neste cami-nhar, no qual se enquadra modernidade na múltipla e ambígua compreensão,situa-se a ética, pois o agir humano, as deliberações e os comportamentos quepara alguns são anômicos, viciados ou antinaturais são parte do processo deevolução do pensamento, sendo, para outros, fruto da natureza nos seus limites eassentado em uma dada cultura.

Percorreremos as bases que fundamentam a modernidade, tendo comodestaque os aportes teóricos do Iluminismo (antropologia, filosofia da naturezahumana, humanitas, civilização e progresso). No segundo momento, almejamoscaracterizar a modernidade enquanto projeto inacabado no contraponto com após-modernidade, expondo o pensamento de David Hume e Imanuel Kant. Nocontexto de crise dos valores morais, hoje, a filosofia contemporânea expressaa “crise ética”, conforme a reflexão de CHAUÍ (1996), algumas linhas de pen-samento sobre ética e sua relação com a modernidade e pós-modernidade.

Não é nosso projeto tratar a modernidade em sua dimensão axiológica epolítica, pois seria necessário apontar alguns pensadores pós-modernos (Lyotard,Jamenson, Rawls, Wittgenstein, Harvey, entre outros). Por outro lado, não dese-jamos indagar, na filosofia contemporânea, sobre a relação entre razão e socie-dade, conforme os filósofos da Teoria Crítica4 nas duas modalidades de razão:razão instrumental e razão crítica. Não esquecemos da importância salutar domodelo de racionalidade fenomenológico, cujo expoente é o filósofo EdmundoHusserl, que entendia que o mundo e a realidade são um conjunto de significadosou de sentidos que são produzidos pela consciência ou razão. A razão é razãosubjetiva, que cria o mundo como racionalidade objetiva; o mundo tem sentidoporque a razão lhe dá sentido.

A razão, eixo da modernidade, posta em crise ou em desencantamento nocaminhar do pensamento, dobra-se em dois caminhos no campo da ética: o reinoda utilidade (necessidade) e o reino da liberdade. A crise da modernidade deveser encarada, não como o fim de espaço da razão na existência humana, mascomo momento salutar para a revisão e a crítica à própria razão no sentido derevigorá-la. A modernidade é um projeto inacabado.

1. As bases do pensamento iluminista e a modernidade

O movimento intelectual, Iluminismo, que se desenvolveu (tempo-espaço)nos anos setecentos europeu, expressando as idéias de uma “burguesia em ascen-são”, e a crise do Antigo Regime, portador de uma visão unitária do mundo e do

4 Os filósofos dessa escola são Theodor Adorno, Herbert Marcuse, Max Horkheimer e outros.

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Homem, nas suas diversidades, tem como ponto central a racionalidade. Segun-do FALCON (1991:56), as grandes linhas do Iluminismo foram: o pensamentocrítico, o primado da razão, a antropologia e a pedagogia. Vale destacar Adorno(1903-69), filósofo da Escola de Frankfurt5 , que afirmou o Iluminismo como o

pensar que faz progresso, perseguiu o objetivo de livrar oshomens do medo e de fazer deles senhores. Sua pretensão,a de dissolver os mitos e anular a imaginação, por meio dosaber (ADORNO, 1999:17).

A modernidade foi levada, desde os fins do século XVIII, a tema filosófico.Cruza-se freqüentemente com o estético6. Se são significativas as respostasdadas à pergunta: “Was ist Aufklãrung? ( Que é o Iluminismo?) – Kant definecomo “o pensar por si mesmo e a ousadia de fazê-lo”. No artigo Resposta àpergunta: que é o Esclarecimento?, Kant afirma:

A saída do Homem da sua menoridade, pela qual ele é res-ponsável. Menoridade, isto é, incapacidade de servir-se dopróprio entendimento sem a orientação de outrem, menori-dade pela qual ele é o responsável porque a causa dessaincapacidade não está numa deficiência do seu entendi-mento, e sim na falta de decisão e de coragem para deleservir-se sem a direção de outrem. Sapere Aude! Tem cora-gem de servir-te do teu próprio entendimento! Eis a divisadas “Luzes”.

As noções sobre as idéias das “Luzes”, para os iluministas, apesar dasmúltiplas significações e ambigüidades, não tratavam apenas de um movimentointelectual, modista, mas de um processo de esclarecimento do Homem. Haviaum continuum, traduzido pela idéia de progresso – como capacidade cada vezmaior dos homens pensarem por si mesmos.

5 A afirmação é de Bárbara Freitag, em A Teoria crítica ontem e hoje (1990), “...com o termo´Escola de Frankfurt` procura-se designar a institucionalização dos trabalhos de um grupo deintelectuais marxistas, não-ortodoxos, que na década dos anos 20 permaneceram à margem da ummarxismo-leninismo ́ clássico`, seja em sua versão teórico-ideológica, seja em sua linha militante epartidária.”6 Habermas, J. op.cit. (2000) prefácio.

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O cerne do Iluminismo assenta na secularização e na racionalização(FALCON:1991), surge e se desdobra. Caracterizamos o problema da seculari-zação como passagem da transcendência à imanência,7 da verticalidade àhorizontalidade, que se expressou nas mudanças no campo político, econômico eno ideológico. Chauí caracteriza a modernidade no campo ético, “afasta a idéia(medieval renascentista) de um universo regido por forças espirituais secretasque precisam ser decifradas para que com elas entremos em comunhão.”8 Osecular impõe-se ao sagrado. O mundo se desencanta, afirma Max Weber.

A passagem à imanência está associada às idéias de ‘progresso’, ‘civiliza-ção’ e ‘cultura’, ao tratar as relações entre o Homem e a natureza. As reaçõescontra o novo espírito científico foram acentuadas. O paradigma naturalista co-locou-se em evidência e o racionalismo naturalista proporcionou, com o secularismo,independência nos diversos campos do conhecimento. Buscou-se a superaçãoda tutela teológica e metafísica. No campo da ética, conserva-se a idéia de quea virtude9 é dever e obrigação em face das normas e valores universais (obriga-ção da razão contra o império caótico das paixões).

Em nome da razão e da liberdade de pensamento, durante o períodoiluminista, desenvolveram-se ferrenhas críticas às crenças e práticas religiosas,afirmando que a razão deve ser o único critério válido, de acordo com a própriavontade divina10. O racionalismo do século XVII, de Descartes, Spinoza, Leibniz,e outros, não acredita numa razão definida como somatório ou síntese de idéiasinatas reveladoras da essência absoluta do existente, mas sim numa aquisiçãopossível. A razão “é uma força intelectual original cuja função maior é a de guiaro intelecto no caminho que o leva à verdade” (FALCON:1991). Também não éum conhecimento a priori sobre verdades preexistentes, mas energia, forçaintelectual compreensível e perceptível através da prática e não é escrava dosdados empíricos. É instrumento de mudança de pensamento. Pensar racional-mente é ter capacidade de criticar, de duvidar e, se necessário, de demolir. Écrítica de um modo tradicional de pensar nas suas formas e conteúdos. O tribu-nal da crítica chegou a criticar a concepção do racionalismo iluminista, e a gran-de expressão é I. Kant. Os iluministas compreendiam a filosofia enquanto formade pensar que, ao dar ênfase ao sentido da indagação descoberta, razão críticae criadora, e progresso da razão, levará o Homem à verdadeira liberdade.

7 Sérgio ROUANET em As razões do Iluminismo (1987) aponta no Iluminismo a questão datranscendência e imanência.8 CHAUI, Marilena. Público, privado e despotismo. In: Ética. Rio de Janeiro: Cia das Letras, 1996.p.350.9 Chauí, op. cit. p.350.10 Na França cresceu um anticlericalismo – Voltaire é uma das expressões – incutiu-se uma visãomaniqueísta na secularização: razão x religião, natural x sobrenatural, etc.

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Adorno em “Conceito do Iluminismo” (em parceria com Horkheimer), ex-pressa o risco da racionalidade:

Mesmo que não se possa deter na fuga diante da necessi-dade, no progresso e na civilização, sem renunciar ao pró-prio conhecimento, a humanidade não mais incorre no errode tomar por garantia de uma liberdade vindoura os diquesque constrói contra a necessidade, as instituições, as práti-cas de dominação, que desde sempre refletiram sobre a so-ciedade, a partir da subjugação da natureza.11

O pensador frankfurtiano adensa a razão enquanto predica que o Iluminismodeixou de lado a exigência clássica de pensar o pensamento, porque ela se des-viava do imperativo de comandar a práxis.

A modernidade, segundo HANSEN(1999:15), é entendida como um novomodo de compreender a existência humana e, a partir dela, a natureza, além dasrelações sociais, políticas e econômicas, jurídicas, morais e culturais; em suma, éum período marcado por um novo modelo de racionalidade de inspiração técni-co-instrumental, contrapondo a racionalidade religiosa, metafísica, proporcionandoconfiança no poder e na autonomia da razão. Frente às afirmações supra cita-das, duas questões levantam guarda: se os gregos, romanos, chineses e outrosdesenvolveram modelos de racionalidades para explicar e compreender a si pró-prios e ao entorno; e se a filosofia tem como tema fundamental a razão.

2. Modernidade, projeto inacabado

A modernidade é um tema complexo numa abordagem filosófica. Desde aorigem, há posições divergentes e dissonantes entre os opositores da metafísica– corrente de pensamento dominante (poderes institucionalizados: Igreja e Esta-do) até o século XVI. Surge a modernidade com modelos diversos no ato deconhecer, bem como nas concepções de sociedade, Homem e mundo.

No contexto social, econômico e político, marcado pelas Revoluções In-dustrial e Francesa, pelo surgimento dos Estados Nacionais e o movimento deReforma e Contra-Reforma, foi constituída a burguesia.

A modernidade, no campo da filosofia, expõe três pensadores: Kant, Hegele Marx, sendo eles os expoentes fundamentais que no seu eixo promoveramdiscordância e complementariedade no processo de reflexão e auto-avaliação

11 ADORNO, 1999, p.59.

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(HANSEN, 1999). Estes pensadores impulsionaram outros a darem continuida-de, tais como Nietzsche, Heidegger, Foucault, a Escola de Frankfurt e Max Weber.Estes repensaram a modernidade enquanto processos históricos, reinterpretandoe apontando um novo movimento estético-filosófico denominado Pós-Moder-no.12 Segundo os pensadores pós-modernos, a modernidade chegou ao fim aonão mais alimentar as utopias, gerando a pós-modernidade.

Surgem daí três modos de compreender a modernidade: 1. Modernidaderacionalista – tecnicista, que entende que a modernidade impulsionou negati-vamente a destruição, dominação e a miséria a partir do domínio da técnica; 2.Modernidade niilista, uma abordagem niilista, cuja razão assume caráter ins-trumental; instrumento de domínio e de emancipação do ser humano (Nietzsche- Foucault). Também é momento de maturação da razão, onde a própria razãodestrói a razão utópica da razão. Cresce, amadure e desaparece; 3. Modernidaderacionalista-universal, na qual os pensadores vêem a modernidade como mo-mento de desenvolvimento da razão humana e acreditam na emancipação darazão. Entendem que os problemas (crises) são frutos da absolutização da razãoe de seu aporte técnico-instrumental. Os limites de um modelo de racionalidadenão invalidam todo e qualquer modelo de racionalidade. Cabe aos filósofos refle-tir sobre o fazer – os modelos de racionalidade que melhor se adaptem às neces-sidades da população. Por isso, o modelo não chegou ao fim, mas ao ocaso.Continua sendo um projeto inacabado.

3. Linhas de pensamentos fundantes sobre a Modernidade

Segundo HANSEN (1999:37), os elementos filosóficos que caracterizama “mentalidade” moderna na sua gênese são: a Razão, na política - governoslegítimos e racionais com parlamentos funcionais; na economia - ações individu-ais e de grupos planejadas com parâmetros racionais; na esfera social – funcio-namento e participação dos vários segmentos em bases racionais na defesa dosdireitos; e, finalmente, no âmbito religioso, a Reforma inseriu as instituições reli-giosas nos moldes da nova racionalidade, e o Protestantismo é a expressão maisgenuína da compreensão de racionalidade.13 Por fim, o conhecimento sistemá-tico tornou-se o elemento mordaz na Modernidade, com a secularização do co-nhecimento, isto é, saindo dos mosteiros e universidades, proporcionando o de-senvolvimento e o entendimento crítico da população.

12 Alguns cientistas sociais denominaram de pós-industrial ou de pós-racional.13 Max WEBER tematiza na obra “Ética protestante e o espírito do capitalismo”,1985.

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TERRA E CULTURA, ANO XIX, Nº 37 10

O conhecimento assume validade se submetido a critérios racionais e amétodos de averiguações confiáveis. Terminando, desenvolve também, no berçoda busca do conhecimento, o resgate da subjetividade. As reflexões acerca doconhecimento, conforme Descartes, Bacon e outros, abordam a subjetividadesob o prisma da razão moderna.

Na tentativa de romper com a tradição e as concepções metafísicas sur-gem algumas reflexões: a) Francis Bacon prega uma nova corrente do conheci-mento, o Empirismo, cuja base está colocada na experiência desenvolvida porum sujeito dotado de razão, buscando o que envolve a existência do Homem(natureza, cultura e sociedade); lançou as bases da ciência moderna; b) O cogi-to cartesiano – René Descartes, com o Racionalismo, cujo ponto de partida é ocogito ergo sum: a partir de um ato de consciência (dúvida), instaura-se umprocesso que vai culminar com a certeza, não apenas do eu, como também dapossibilidade de, a partir dele deduzir o mundo.

O Empirismo (inglês) e o Racionalismo (francês) trouxeram contribuiçõesvaliosas, proporcionando o novo projeto de consolidação da modernidade no seiodo Idealismo Alemão, cujas maiores contribuições foram de Kant e Hegel, e, porextensão, de David Hume. Vejamos:

a) HUME – O EMPIRISMO E A CONSOLIDAÇÃO DA MODERNIDADE

A autocertificação da Modernidade, capaz de marcar as diferenças daracionalidade moderna na sua relação com os outros modelos que precederam oséculo XVIII, tem em Hume um crítico mordaz das interpretações do Racionalismoe do Empirismo. A obra de Hume Investigação sobre o entendimento huma-no (1748) apresenta a crítica ao Racionalismo que negligenciou a importânciada experiência, não lhe atribuindo o devido valor enquanto fonte do conheci-mento. Há uma primazia no método dedutivo e os racionalistas se perdem emelucubrações (HANSEN,1999:56). Os empiristas defendem o princípio de que oconhecimento advém da experiência, donde vêm as impressões que vão originaras idéias ou pensamentos.

A conexão das idéias, segundo HANSEN, se dá de três maneiras: porsemelhança, por contigüidade e por causalidade. A conexão ocorre sempree ali uma das duas classes de objetos investigados pelo entendimento, ou seja,refere-se a relações de idéias ou a questões ou coisas de fato (matters of fact).A causalidade é um princípio relacional oriundo da experiência, e não comoelemento à priori, seja do entendimento ou da natureza. Causa e efeito não sãonoções pré-dadas, mas sim conjunções habituais. Os hábitos e costumes como tempo vão adquirindo solidez, chegando à aparência de leis da própria nature-za. O futuro será semelhante ao passado a partir das experiências:

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O costume, pois, é o grande guia da vida humana. Unicamenteeste princípio nos torna úteis à experiência e nos faz esperarpara o futuro, uma série de eventos semelhantes àqueles queapareceram no passado. Sem a influência do costume, seríamosplenamente ignorantes em toda questão de fato para além doque está imediatamente presente à memória e aos sentidos.14

Assim sendo, Hume destrói os princípios da causalidade e as noções desubstância15 e identidade da tradição filosófica metafísica. Em suma, Hume vemconsolidar a concepção da razão formal e autônoma, não submetendo a tradiçãometafísica, embora tenha negligenciado a questão dos a priori que, na continui-dade, Kant abordou.

b) KANT – E A RAZÃO CRÍTICA

Contrapondo-se aos empiristas e inatistas, Kant diz que “todos os filóso-fos parecem ser como astrônomo geocêntrico, buscando um centro que não éverdadeiro”.16 Parecem alguém que quer assar um frango girando o forno emtorno dele e não o frango em torno do fogo. É preciso colocar a razão no centroe indagar: o que é a razão? O que ele (quem é ele? Se for a razão, é ela) podeconhecer? Quais são as condições para que haja conhecimento verdadeiro? Quaisos limites da razão humana? Como a razão e a experiência se relacionam?

Para Kant, a razão é constituída de três estruturas a priori: a) forma depercepção sensível e sensorial; b) estrutura ou forma de entendimento; c) razãopropriamente dita – que se relaciona consigo mesma. A razão é uma estruturavazia, sem conteúdo, e universal; a mesma para todos os seres humanos, emtodos os tempos e lugares. A estrutura é inata, isto é, a priori. O conteúdo quea razão conhece, este sim advém da experiência. A matéria do conhecimento,fornecida pela experiência, vem depois, a posteriori. A experiência não é cau-sa das idéias, mas é a ocasião para que a razão formule a idéia.

O conhecimento racional é a síntese que a razão realiza entre a formauniversal inata e o conteúdo particular oferecido pela experiência. A razão,propriamente dita, tem a função de regular e controlar a sensibilidade e o enten-dimento na atividade do sujeito do conhecimento.17

14 Cf. D. HUME, Investigação sobre o entendimento humano, p.49.15 Princípios do “corpus aristotelicum”.16 Kant em resposta filosófica aos problemas do inatismo e empirismo diz que é preciso realizaruma ‘revolução copernicana’, considerando o que fizera Copérnico, dois séculos antes, no campoda Astronomia.17 Cf. M. CHAUÍ, Convite à Filosofia, p.80.

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Assim sendo, segundo Kant, a razão com suas estruturas não pode conhe-cer a realidade em si mesma, mas sim os objetos do conhecimento, cujo conteú-do empírico recebeu as formas e categorias do sujeito do conhecimento. Não épossível conhecer a realidade em si, espacial, temporal, causal, qualitativa, quan-titativa. A razão é subjetiva ao possuir uma estrutura universal, necessária e apriori, que organiza a realidade em termos da forma da sensibilidade e dosconceitos e categorias do entendimento e pode garantir a verdade da Filosofia eda ciência, afirma Kant na Crítica da razão pura. Ao expor os limites da razãono conhecimento, assume o caráter de filosofia transcendental.

Denomino transcendental todo conhecimento que, em ge-ral, ocupa não tanto objetos, mas nosso modo de conheci-mento de objetos, na medida em que este deve ser possível apriori. Um sistema de tais conceitos denominar-se-ia filoso-fia transcendental.18

Como vimos, Kant tem importância fundamental na análise daModernidade, ao defender a necessidade de orientações a ações cuja origemnão advém da experiência, mas que estejam fundamentadas na razão autônoma.

A contribuição de Kant para compreender a Modernidade está nas pos-sibilidades da razão, ao estabelecer parâmetros e limites para a mesma. Propor-cionou o cuidado crítico de absolutização da razão e da validade do conhecimen-to e de sua objetividade. A razão se torna crítica de si mesma. A filosofia assu-me a dimensão argumentativa, expressando o caráter transcendental. A razãobusca a emancipação das ilusões e a saída da menoridade; é o momento doEsclarecimento19 (Aufklãrung), de realizar as potencialidades.

c) HEGEL – A RAZÃO É HISTÓRIA

A modernidade torna-se problema filosófico com Hegel. Ao criticar oempirismo, o inatismo e o kantismo, aponta que o fundamental no modelo deracionalidade é: a razão é histórica. Contrapõe as afirmações de Kant, Hume,Descartes, que consideravam que as idéias só seriam racionais e verdadeiras sefossem intemporais, perenes, eternas. A razão também teria que ser intemporal.

18 I. KANT, Crítica da razão pura, p.35.19 No artigo Resposta à pergunta: o que é Esclarecimento? Kant aponta o Esclarecimento(Aufklãrung) como a única saída para o ser humano se libertar da submissão à razão.

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Hegel afirmava que a mudança da razão e de seus conteúdos é obra daprópria razão. A razão não está na História, ela é a História. Não está no tempo,ela é o tempo; isto é, dá sentido ao tempo.

Quanto ao conhecimento racional, Hegel contrapunha-se aos empiristas,que afirmavam que a realidade ‘entra’ em nós pela experiência; ou aos inatistas,que afirmavam que a verdade advém de uma força espiritual, energia, fora denós. O conhecimento parece depender de algo que vem de fora para dentro denós. Os dois modelos acreditam que o conhecimento racional dependeria dosobjetos do conhecimento (objetividade). Também Kant se enganou por acredi-tar que dependeria exclusivamente do sujeito do conhecimento (subjetividade),isto é, das estruturas da sensibilidade e do entendimento.

O modelo de racionalidade de Hegel é que a razão é a unidade necessáriado objetivo com o subjetivo. É a harmonia entre as coisas e as idéias, entre omundo exterior e a consciência, entre o objeto e o sujeito, verdade objetiva esubjetiva.

Para Hegel, razão é o conjunto das leis do pensamento, isto é, princípios,procedimentos, formas e estruturas necessárias para pensar, as categorias, asidéias. É também a ordem, a organização e o encadeamento e relações daspróprias coisas; por outro lado, como síntese, é a unidade oriunda da relaçãoentre as leis do pensamento e do real. A unidade é uma conquista e tem comoponto de chegada o resultado do percurso histórico que a própria razão percorre.Os conflitos filosóficos são expressões históricas da razão que busca conhecer-se a si mesma e, graças a estes conflitos e contradições, pode-se chegar àdescoberta da razão como síntese, unidade das teses contraditórias.20

Hegel concebe o sujeito como um ser ativo e dinâmico, construindo-sepasso-a-passo na história, enfrentando suas contradições e, ao superá-las, torna-do-se mais consciente de si mesmo e dos outros. O sujeito é a expressão daautonomia da razão que se construiu livre e cujo conteúdo não é da razão formal.

A modernidade, que Hegel designava como ‘tempos modernos’, se tornaproblema filosófico, compreende que a filosofia não deve ensinar/preocupar-secom o futuro, mas tem um compromisso com o seu tempo, com o presente.21

Consiste na explicitação e dissolução das falsas identidades e nas contradiçõesdesabrochando um novo mundo. Neste sentido, a dialética imanente à existên-cia impele o sujeito à auto-construção e à evolução da consciência pela supera-ção das contradições vividas.

20 Cf. CHAUÍ, M., Op cit. p.81-82.21 Cf. J. HABERMAS, Discurso filosófico da modernidade, p.50.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tratar a Modernidade numa abordagem filosófica pressupõe apontar asmatizes da racionalidade, tendo como correlato a metafísica. Com o advento daciência no seu caráter prático, novos valores e instituições surgiram, promoven-do mudanças na vida social. Ao indagar sobre os fundamentos da modernidade,percebemos que houve continuidade e ruptura no quadro epistemológico, axiológicoe antropológico. Entender a gênese da Modernidade exige (re)descobrir oIluminismo.

A Modernidade se expressa de forma diferente, divergente, antagônica,paradoxal, como pós-modernidade, dizem alguns.22

As principais características da Modernidade são: racionalidade, universa-lidade, tecnologia, progresso linear, planejamento racional, padronização do co-nhecimento e da produção econômica, ênfase no grupo social, visão de históriacontínua e de verdades absolutas, e a objetividade nas análises. O racional é overdadeiro. Ciência é a expressão da totalidade.

A pós-modernidade se expressa na irracionalidade, na heterogeneidade,no pluralismo, na fragmentação, no fetichismo da totalidade, na indeterminação,na virtualidade, na descontinuidade e na alteridade. Percebemos uma contradi-ção entre as características da modernidade e da pós-modernidade, mas é nestenexo que ocorre a continuidade e a descontinuidade, e a ruptura com a tradiçãometafísica.

Todavia, seguindo Baudelaire, há uma tensão entre o “efêmero e o eter-no”. A pós-modernidade é uma continuidade da Modernidade, cuja potênciahavia se originado do Iluminismo. Por isso, entendemos a Modernidade como umfenômeno inacabado, cujos princípios da razão lhe são inerentes.

22 Marilena CHAUÍ. Convite à Filosofia. São Paulo:Ática, 1995.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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RUPTURAS E CONCILIAÇÕES NA HISTÓRIA DOBRASIL: UMA PEQUENA REFLEXÃO SOBRE O

PAPEL DO HISTORIADOR

*Agnaldo Kupper

RESUMO

O papel do historiador é o de sempre rever-se, como à própria História. Cabeao historiador levantar problemas e desvendar os processos reais, questionandosuas subjetividades e suas mutilações no processo de pesquisa, na busca de con-clusões críticas e suficientes, bem como identificar rupturas e continuidades.

PALAVRAS-CHAVE: História; Historiador; Desconstrução; Rupturas; Continuidades.

ABSTRACT

The role of a historian is not only always to re-evaluate himself, but also re-evaluate history. It is his job to raise problems and disclose actual processes,questioning their subjectivity and mutilations in the process of research, in searchfor critical and sufficient conclusions. He is also to identify disruptions andcontinuities.

KEY-WORDS: History; Historian; De-Construction; Disruption; Continuities.

INTRODUÇÃO

“Eu costumava pensar que a profissão do historiador, ao contrário, digamos,da do físico nuclear, não pudesse, pelo menos, produzir danos. Agora sei que pode”.

Eric Hobsbawn, Sobre História.

* Docente da UniFil.Historiador, escritor e professor de ensino médio e superior em Londrina. Mestre em História.Doutorando em História. Autor de ‘Colônia Cecília, uma experiência anarquista’ (FTD); co-autor de ‘História crítica do Brasil’ (FTD); ‘O navegante negro e a chibata’ (FTD), e ‘Malês:sangue em Salvador’ (Papel Virtual).E-mail: [email protected]

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Certa vez, um poeta espanhol disse que todo dia pela manhã olhava o jar-dim da casa em que morava através de um vitral colorido. A cada dia as floresassumiam tonalidades diferentes, dependendo do vitral que focava. Assim, creio,é a ciência histórica. Focá-la de diversos ângulos é engrandecê-la.

Como seria, por exemplo, a história brasileira se narrada pelas crianças, oupelas mulheres, ou pelos negros, ou pelos trabalhadores rurais?

Immanuel Kant (1724-1804) confidenciou que “não se aprende filosofia,mas a filosofar”.1 O estado de ignorância talvez nos seja favorável para que nossintamos mais seguros. É mais simples, mas não é correto. Talvez seja melhor aincerteza quando não sabemos como agir ou o que pensar, mas sentimos que nosfalta algo, que nosso conhecimento é incompleto.

A verdade (caso exista) deve vir de uma atitude filosófica (aqui, a grandecontribuição da ciência histórica). Caso não tenhamos tal atitude, a verdade viráatravés das decepções. Como grande exemplo temos o 11 de setembro de 2001,quando Nova Iorque foi violentada por supostos ataques terroristas. Acreditoque o governo e a sociedade norte-americanos, ao se colocarem acima das ex-pectativas e valores diversos (sejam eles ambientais, culturais, políticos, econô-micos, militares ou religiosos), esqueceram-se da postura filosófica tão necessá-ria. Foram cruelmente abalados (como o mundo ocidental em geral), tendo queaprender com a decepção.

História e filosofia não se desassociam.A História contemporânea caracterizou-se pela ausência de concordância

de idéias, de opiniões. A multiplicação das pesquisas faz com que seja perdida adimensão do conjunto, gerando fragmentação excessiva. Os historiadores per-dem-se em seus próprios critérios, afirmando suas dúvidas e relativizando suasconclusões e críticas.

Hoje temos a certeza de que História não significa progresso. Sabemosque História se faz desvendando processos reais, levantando problemas. Sabe-mos que fazer História é desconstruir, é “comer pelas bordas” ou, como defendeFoucault, “fazer História com postura filosófico-jornalística”.2

Fazer História concentra um duplo sentido: ação do sujeito que opera oconhecimento, e ação individual ou coletiva considerada relevante em determi-nada fase da vida humana. Mas, o que é relevante? Para quem?

A subjetividade do historiador deve ser questionada.

1 Immanuel KANT. Critique of judgement. Col. The Great Ideas, Enciclopaedia Britannica,v.42.2 M. FOUCAULT. Nietzsche, a genealogia e a História. In: Microfísica do poder. Rio de janeiro,

1979.

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Buscar e definir o sentido político de nossa ação como historiadores: eisnossa principal função. Nos dias globalizados de hoje, corremos o risco de per-der as fronteiras entre a economia, a política, a cultura e a sociedade. Tendemosa particularizar a História.

E não podemos errar nesta ciência. Podemos, sim, defender teses e revê-las quando oportuno.

Como brasileiros, por exemplo, somos únicos e inconfundíveis. Apagar o povode nossa História é um erro; afinal, este que entendemos atualmente por povo sem-pre lutou, mesmo que sempre tenha sido derrotado. E sempre luta, mesmo com suascontradições.

Como fazermos uma História baseada na ciência e em seus valores? Comonarrá-la se ainda não temos a certeza de como fazê-la?

Antônio Paulo Benatti, em artigo intitulado “História, Ciência, Escriturae Política”, nos lembra que a recusa de Gilberto Freyre em entrar para a univer-sidade se deu pelo fato de o autor de ‘Casa Grande e Senzala’ temer se “im-pregnar pelo ethos acadêmico burocrático que crespa os talentos artísticos”.3

Benatti nos lembra, no mesmo artigo, que “a gravura universitária é incapaz dediferenciar quem é e quem não é picareta; néscio e perito se eqüivalem”. Creioque o autor tenha razão. Ao escrevermos História, não sabemos se devemosatuar como escritores ou escreventes. O próprio fato do historiador escolher osdocumentos que analisará é subjetivo e seletivo. Ao errarmos em nossos proce-dimentos e relatos, induzimos o leitor curioso (ou até o estudioso) ao nosso erro,o que comprova que a vontade de verdade é insuficiente.

Os livros didáticos de História são, sim, perigosos, mas não podem ser critica-dos pelos acadêmicos simplesmente por serem didáticos. É difícil fazê-los, como édifícil publicá-los. Não podem ser desprezados por serem informadores para iniciantes.Este tipo de material possui seu valor, porém peca. Nestes, na História do Brasilcolonial, por exemplo, o negro aparece, com raríssimas exceções, como escravo,ignorando estudos que mostram a ascensão social dos filhos da escravidão, quechegaram a constituir famílias estáveis, mesmo no período pré-abolição. Estes mes-mos livros didáticos, em geral, tratam os negros introduzidos no Brasil por meio dotráfico como “africanos”, não os diferenciando culturalmente. Um pecado! Obvia-mente não existem verdades absolutas. Considerando o livro didático como uma“transcrição pedagógica e simplificada da verdade científica”, como nos pede Gil-berto Cotrim,4 ao limitarmos informações ou induzirmos o leitor a uma verdade abso-luta, podemos passar uma visão deturpada e incorreta, propagando-a entre iniciado-res dessa ciência.3 Antônio Paulo BENATTI em artigo “História, Ciência, Escritura e Política” – RAGO,Margareth e GIMENES, Renato A. de O. (Organizadores). Campinas: Ed. Unicamp, 2002.4 Gilberto Cotrim, autor de livros didáticos de História, em entrevista ao Jornal Folha de São Pauloem 05/09/2001.

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Os acadêmicos que criticam essas publicações, discriminando-as em muitosaspectos, deveriam perceber nelas grande valor, ao menos na forma como sãonarradas, geralmente de forma atraente, até porque a comercialização o exige.

Todo tipo de narração histórica é importante e, ao mesmo tempo, perigo-sa, pois mutila análises, encobrindo o global, globalizando ou “quebrando” emdemasia.

Breve Análise da Historiografia Brasileira

Nas diversas fases da historiografia brasileira, a História mostrou-se, emgeral, insuficiente.

Assim, de meados do século XVIII até a segunda década do XX, promo-ve-se, em geral, uma história factual, descritiva, sem análise crítica, contribuidorada exaltação do chamado espírito nacional brasileiro. Vale observar que o quechamamos nesta fase de Brasil (ao menos até 1821) nada mais era do que umamistura de pátrias: a paulista, a mineira, a pernambucana, a baiana, entre asdiversas outras. Ilsvaú Jancsó e João Paulo G. Pimenta, em artigo intitulado“Peças de um Mosaico”,5 apontam a surpresa dos deputados paulistas e baianos,que perceberam, por ocasião da elaboração de nova constituição portuguesa,que o Brasil era maior que as províncias que representavam e pelas quais luta-vam. Cipriano Barata chega a afirmar, antes de fugir de Lisboa para Falmouth,utilizando-se de um barco inglês, que “desde que os deputados tomaram assentono Congresso de Portugal, fizeram-no para lutar pelos interesses de sua pátria,do Brasil, e da nação em geral”.6

Nesta declaração de Barata, o Brasil seria o seu país. A Nação, Portugal.Sua pátria, a Bahia. Ser paulista, pernambucano ou baiense, portanto, significavaser português.

Como se percebe, não havia, até então, noção de nação no Brasil. Muitomenos espírito edificado nacional. Como exaltar o espírito nacional nesta fase dahistoriografia se não o possuíamos?

Em uma segunda fase (da 2ª década do XX ao final dos anos 40 do mesmoséculo), a historiografia brasileira passou a ser enriquecida com obrasinterpretativas de Gilberto Freyre, Oliveira Vianna, Sérgio Buarque de Holanda,entre outros. Há um avanço, ainda que insuficiente, pois a descrição do fatoainda mostrou-se mais relevante.

5 In Viagem incompleta, v.1, (Organizado por Carlos Guilherme Mota). São Paulo: Ed. Senac,1999.6 Declaração de alguns deputados do Brasil nas Cortes de Portugal, que de Lisboa se passaram àInglaterra, 1822; em Correio Brasiliense, vol. XXIX, nº 174.

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A partir dos anos 60 do século passado, nossa historiografia procurou inter-ligar História com literatura, sociologia, antropologia, em interdisciplinaridade comas ciências humanas. Um avanço, sem dúvidas, ampliando a visão histórica.

Ao final dos mesmos anos de 1960, houve um certo vazio na produção,devido, claramente, à censura imposta pela ditadura militar. Quem procuravafazer História, o fazia sob forte tendência marxista.

Ao chegarmos aos anos 80, talvez 90, nossa historiografia inaugurou achamada “História do cotidiano”, procurando ir a fundo nas questões triviais dodia-a-dia, nos hábitos, nas rotinas que formam a trama histórica: o trabalho, opensamento, as crendices populares, a sensualidade. A partir dessa fase, histori-adores procuraram estabelecer ligações com as articulações sociais e econômi-cas. As diversas fontes (musicais, escritas, rituais, orais, urbanísticas) passarama ser respeitadas, se significativas. As instituições sociais, como o Estado, aIgreja e a Família, passaram a ser levadas em consideração e o regional passoua prevalecer. O micro identificando-se com o macro. A visão de cidadania, nestaera de busca de direitos, aparece claramente.

Nesta última fase apontada, a História enquadra-se, definitivamente, naquestão da metodologia, permitindo que se chegue a uma conclusão própria.

Nos dias atuais, a aparente falência definitiva do marxismo teria estabele-cido também a falência das preocupações políticas, fixando-se na ciência histó-rica “a fragmentação excessiva da operação historiográfica”,7 com os historia-dores lançando mão de uma série de pesquisas sem a preocupação do conjunto,da totalidade. Ao mesmo tempo, a análise reflexiva do historiador, ao que pare-ce, procura acompanhar o mundo globalizado, seguindo as tendências de nossacomplexidade contemporânea, trazendo-nos uma História sem conclusões críti-cas, com obras abertas, quebradas, insuficientes.

Com nossa produção historiográfica atual tendendo à fragmentação, pre-valece a insistência em tratar, narrar ou interpretar nossa História como se amesma não possuísse rupturas claras. Ao mesmo tempo, com a totalidade e afragmentação revezando-se, perde-se a visão global e também a particular.

Rupturas e/ou Continuidades?

Precipitada é a impressão dada aos iniciantes na ciência histórica de que sómesmo a partir de um Duque de Caxias estabeleceu-se a ordem no Brasil; ante-rior à sua figura, fica a impressão de caos. Precipitada é a impressão passada deque a abolição da escravidão marca a introdução de nosso país na modernidade.

7 François DOSSE. A História em migalhas: das annales à “Nova História”. São Paulo:Ensaio; Editora da Unicamp, 1992.

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Precipitada é a idéia de que a história do negro ficou em 1888, de que omovimento operário estagnou-se nas primeiras décadas do século XX, que,com a proclamação da República, o Brasil finalmente saiu da sua condiçãode país aristocrata (aliás, importante salientar que a república é pensada nasConjuras Mineira, Baiana, Farroupilha, entre outros movimentos, não sendouma proposta apenas de alguns anos anteriores à sua implantação). Se assimfor, corre-se o risco de gerar a impressão da superioridade de uma fase emrelação à outra.

Uma “atitude anti-histórica” de ruptura abrupta com o passado, ignorando-se as conquistas sociais, políticas e culturais, leva, pois, à renúncia da liberdade eà valorização do Estado. Ao fazer tal consideração, Margareth Rago pede quese “desconstrua” a História, valorizando-se as lutas sociais e a participação dospopulares em sua própria edificação histórica. A idéia de desconstrução não éda autora, mas de Foucault, que distingue a “História dos historiadores”,estabelecida e focada sob a égide da continuidade e na lógica da identidade, nospedindo o “despedaçamento daquilo que constitui o jogo das imagens refletidasno espelho”.8

Na História brasileira, temos como apontar continuidades. Por ocasião denossa suposta independência, fica claro que o Brasil não teve modificada suaestrutura agrária e de dependência européia. Com o Golpe da Maioridade, de1840, buscou-se um federalismo que se impregnava pelo território brasileiro,garantindo a manutenção da estrutura. A ascensão do regime republicano man-teve afastadas as camadas mais populares de participação social e política. ARevolução de 1930 apregoou novos caminhos para a economia brasileira, massem ferir as elites. A ascensão da Nova República, com Tancredo-Sarney, ocor-reu em tom de conciliação.

Decifrar o que está pouco transparente em cada ato que apresenta ser decontinuísmo, assim como identificar as verdadeiras “rachaduras” em nosso pro-cesso histórico: eis a grande missão ao historiador que deseja ser especialistanesta linha de pesquisa.

Ao ser feita uma análise historiográfica sem critérios, pode-se contribuirpara a propagação das ideologias dominantes. É garantir continuidades,sedimentando-as como verdadeiras.

Quando Bloch pede a reconstrução da História, creio que clame para quepensemos o fato histórico em suas várias dimensões.9

8 Margareth RAGO em “Anarquismo e a História”. In FOUCAULT. Rio de Janeiro: Ed. Nau, 2000.9 Marc BLOCH. Introdução à História. Lisboa: Publicações Europa-América, 1965.

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A História brasileira possui, claro, continuidades. Basta observarmos nossaformação de Estado, vinculada à nossa colonização e patrimônio. Basta observar-mos que, como brasileiros, não temos clareza do que é democracia. Nas periferiasde nossas cidades, nos dias atuais, ainda são feitas “batidas” policiais e o Estadoatua violenta e impunemente. Nas concentrações de lazer mais elitizadas, pode-seter conhecimento sobre a lei, mas mexer com o mais provido parece ser perigoso.“Sabe com quem está falando?”, acaba soando como uma frase comum, quandodeveria ser trocada por “Quem você pensa que é?”. Nosso espírito também estávinculado à restrita participação política (outra continuidade): ao trabalhador cabea luta pela sobrevivência, nunca a discussão política ampla.

Talvez a ascensão da República em 1889 tenha colaborado ainda maispara este preconceito, já que a mesma restringiu ainda mais a participação popu-lar e foi menos benevolente com os “cabras” do que o próprio Império; daí, arazão de nos referirmos com carinho a pessoas, usando expressões como “rei”,“princesa”, entre outros, e não “presidente”, “primeira-dama” ou algo que ovalha.

A falta de apego à nação e a “falta de nacionalismo” criticada pelos quefazem uma avaliação simplória do perfil do brasileiro (a não ser em fases degrandes torneios de futebol – “a pátria de chuteiras”, como salientou NelsonRodrigues) é contínua ainda nestes dias contemporâneos. Já salientei que o povoluta a seu modo. Em momentos como o da nossa suposta independência emrelação a Portugal, os populares foram afastados do processo em nossahistoriografia tradicional, despontando apenas as divergências entre comercian-tes e latifundiários. Idem em nosso processo de rompimento com o Império.Idem na instalação da Nova República, apenas com o aparecimento de algumasfaixas sociais em ascensão.

Ao ser o indivíduo descolado de sua própria história, faz sentido vermosatualmente um funeral de um popular ilustre com a bandeira de um clube defutebol ou da escola de samba a que se dedicou, talvez porque haja mais vínculodo mesmo com o regional do que com o nacional.

Outra razão vem do fato do brasileiro admirar quem ganha e não quemluta. Assim, quando Emerson Fittipaldi, após vencer por duas vezes o campeo-nato mundial de Fórmula 1, resolveu investir em projeto brasileiro de carro develocidade, passou da fama ao desprezo. João Carlos de Oliveira, ao não terdado continuidade às vitórias após seu recorde mundial no salto triplo, deixou deser “João do Pulo” para ser o “João de um pulo”. O mesmo ocorreu com RicardoPrado na natação, com o vice-campeonato de futebol de 1998, e poderíamosseguir em exemplos. Talvez isto aconteça pelo fato de o povo perder, cansar deperder e passar a valorizar e respeitar apenas os considerados vitoriosos.

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O espírito brasileiro pode ser também observado em nossa culinária:agregador, acolhedor. Assim, a feijoada, nascida em nossas senzalas, não seacomodou ao negro-feijão, envolvendo o branco-arroz, a amarela-laranja, o mu-lato-torresmo, tudo bem enfeitado pelo verde-couve de nossas matas. Talvezuma demonstração de nossa virtude de inferioridade a que faz referência SérgioBuarque.10

A cultura brasileira de atribuir valor ao patrimônio é demonstrada em nossamaior festa popular: o Carnaval. Celebridades disputam os camarotes, os popu-lares pulam na avenida. Os camarotes nada mais são do que as varandas dascasas dos senhores e a avenida nada mais do que o terreiro que se estende àsenzala.

Continuidades que não podemos negar.

As Nossas Reais Rupturas

Como reconhecermos nossas reais rupturas históricas? Quais seriam?Ao indagar-me sobre os considerados momentos de quebra de conjuntura

histórica, desejando apontar aqueles que nos trouxeram novos ares, novos cami-nhos, posturas e perspectivas, observo (como normalmente se faz) que o sete desetembro de 1822 foi, como salientado, apenas a continuidade da estrutura vi-gente. Como se sabe, o Brasil não mudou seu perfil, os comerciantes e latifundi-ários mantiveram seus domínios, a economia brasileira continuou agrário-expor-tadora e a estrutura social não mudou. Mas é em 1831, com a renúncia de D.Pedro I, que vejo uma grande ruptura em nossa História, quando uma multidãoconcentrou-se no Campo de Santana, exigindo o fim do absolutismo absoluto doimperador. No auge dos protestos, as tropas imperiais aderiram aos manifestan-tes; caso não embarcasse no inglês Warspite, renunciando, o imperador poderiaser morto. Aqui, talvez, nossa real independência.

Mesmo estando em um grande impasse político com a renúncia de Pedro I,podemos dizer que tínhamos, finalmente, um impasse próprio: devido ao impedi-mento do herdeiro, ao ser constituída uma regência, vêem-se forças políticasautóctones brotarem no Brasil. E mais: passou-se a discutir a autonomia dasprovíncias, expulsam-se estrangeiros do “exército” imperial, diverge-se sobre aampliação do voto, discute-se nosso atrelamento à Inglaterra; os populares apa-recem na Cabanagem, Sabinada, Balaiada, na Revolta dos Malês de 1835. Umaexplosão ou, como preferiu Diogo Feijó, um “vulcão da anarquia”.11

10 Sérgio Buarque de HOLANDA. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1971.11 In História crítica do Brasil, de A. KUPPER e P. A. CHENSO. São Paulo: FTD, 1998.

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É a Regência (1831-1840) um grande ensaio para a República. O entãoPartido Brasileiro estava dividido entre restauradores, liberais moderados e libe-rais exaltados, sendo que estes últimos ousavam reivindicar, além de umadescentralização política, uma maior independência do Brasil com relação à In-glaterra. As forças que representavam os comerciantes e militares portugueses(caramurus e corcundas) e as que representavam os proprietários rurais(chimangos) preocupavam-se com as reformas sociais e econômicas, que pode-riam lhes ser prejudiciais.

Neste período de tumultos, o Brasil finalmente passava a ser discutido peloBrasil, não mais sendo pensado e planejado de fora para dentro. Se, aparente-mente, foi um período que não trouxe grandes resultados, trouxe, sim, discussõese debates de autonomia.

Já o Segundo Império (1841-1889), como continuidade de discussão doBrasil por ele mesmo, nos trouxe, também, rupturas espetaculares.

É nesta fase da história nacional que perdemos, de forma significativa,nosso aspecto eminentemente rural.

É neste período que discutimos de forma aberta a vergonha nacional deforma ampla e definitiva, não só pelas modificações econômicas, mas tambémdevido às transformações morais: a escravidão, a mesma que foi introduzida naAmérica a partir do século XVI, com características próprias, nunca antes ima-ginadas no mundo ocidental. Ainda no Segundo Império, passamos a admitir aindústria local como algo possível, mesmo com os obstáculos externos impostospela Inglaterra.

Este período manteve, claro, continuidades, mas não podemos avaliá-locomo conservador, estático.

Nesta fase houve grande avanço social dos menos favorecidos, muito maispermissivo aos mesmos do que à República, implantada com trajes demodernizadora.

Vale destacar no período a clareza nas relações Igreja e Estado ao final doImpério, definidas com as questões religiosas e a quebra do Padroado. O mesmoocorre com relação ao Estado e o Exército.

A ascensão da República em 1889 pode nos parecer um grande divisor deáguas. Afirmo que não, ao menos em seus primeiros momentos ou em sua pri-meira fase (Primeira República, 1889-1930). Estruturas como o coronelismo fo-ram mantidas e são provenientes do Império (aliás, nos dias de hoje, em períodoseleitorais, são mantidos o “curral” do churrasquinho e aperitivos, com motivos decompensação de voto).

A inauguração da chamada Era Vargas, em 1930 (e, conseqüentemente,do populismo), irá mudar o perfil brasileiro. O nacionalismo, a industrialização

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plena de substituições de importações, o atrelamento ao urbano e a manifesta-ção das classes trabalhadoras, rompem com tradições, passando Getúlio a ab-sorver o papel então fragmentado dos coronéis.

Não podemos duvidar que Getúlio Vargas regulamentou, impositivamente,as relações capital e trabalho, reorientando os rumos da economia brasileira soba égide do Estado, criando infra-estrutura para o desenvolvimento da indústrianacional, sabendo tirar proveito da situação internacional.

Vargas, em seu retorno ao poder, no início da década de 1950, manteve apolítica nacional-desenvolvimentista. Juscelino a herdou impondo uma cara maisrisonha e vinculando, definitivamente, o investimento ao capital internacional.Uma continuidade do que passou a ser estabelecido em 1930, com adição denovos ingredientes.

Com João Goulart (1961-1964), a sociedade mostrou-se dividida, com ossetores populares levantando a bandeira da salvaguarda dos interesses nacio-nais, da reforma agrária, da melhoria de vida aos trabalhadores. As elites apega-ram-se de modo intransigente a seus privilégios de classe secularmente estabe-lecidos. Estávamos diante de uma provável grande ruptura, condição gerada nãopela capacidade revolucionária de Jango, mas por sua provável irresponsabilidadepopulista. Mas esta ruptura não foi possível. O advento do regime militar nãopode nos parecer apenas uma ruptura, mas um bloqueio de uma possível quebrade tradições, afinal, durante décadas, a partir de 1964, o país esteve submetidoao arbítrio do Estado policial-militar, que abdicou da soberania nacional, suprimiuos direitos fundamentais do homem, concentrou renda e dilapidou nossos recur-sos, tudo em nome da segurança interna. Uma ruptura aparente sobrepôs-se auma provável.

A oposição dos pensamentos, o esgotamento de nossa capacidade deendividamento, a impossibilidade de conter as oposições, as contradições milita-res, não permitiram a continuidade do regime militar.

Não vejo a abertura política como um grande rompimento. Entristece-meainda mais meu ceticismo quando, com a formação da aliança Tancredo-Sarney(que viria a suceder os militares), enxergo apenas uma transição para uma con-tinuidade, com novos trajes. Com esse novo momento, a organização da novaConstituição, a de 1988, vem com avanços significativos.

Malgrado as manobras continuístas, o aprofundamento da crise econômicae o descontrole inflacionário, as eleições diretas foram restabelecidas. Eleitopara a presidência do Brasil, com grande apoio conservador, Fernando Collorsubmergiu o país na corrupção e no desconcerto administrativo, talvez apoiadopelas práticas históricas de impunidade. Um impeachment! Grande ruptura?Talvez não tão grande assim.

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O governo Itamar Franco, que seguiu ao de Collor, mudou de estilo, não secorroeu pela corrupção, mas, na essência, continuou com o credo neoliberal dedesmonte do Estado brasileiro. Com Fernando Henrique Cardoso, que elegeu omercado como o espaço soberano que norteia e controla todos os labirintos daatividade econômica, adveio uma ruptura imaginada, planejada pela necessidadeimposta pelas tendências mundiais globalizadas. Com a eleição, em 2002, deLula da Silva, o povo mostrou-se avesso às continuidades, demonstrando querermudanças e, talvez, rupturas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Estas breves considerações foram aqui jogadas, como que pedindo umaanálise mais profunda. Estabelecê-las como verdades absolutas é contradizer oque se pede ao historiador: a profunda quebra, o esmiuçamento do fato e do ato.Apenas os joguei como forma de demonstrar a desconstrução, afinal não cabeao historiador apenas denunciar os problemas sem vasculhá-los. Deve, creio, ohistoriador, buscar a compreensão das lutas políticas entre os grupos dominadose os dominantes em todos os níveis, “garimpando” em suas fontes (criteriosamenteselecionadas) as verdadeiras causas dos marasmos ou das tensões e conflitos esuas repercussões.

Deve, creio, a ciência histórica, apresentar-se como franca e aberta, per-mitindo interpretações contínuas no que constituir verdadeiro trabalho de umhistoriador: a reconstrução.

História não se faz apenas com o exótico, mas se faz procurando as inter-relações nos vários níveis de existência, em busca da cidadania.

A verdade nunca será definitiva, mas deve ser perseguida para que possa-mos desmistificar os mitos.

Lembremo-nos, sempre, do nosso poeta espanhol.12

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BENATTI, Antônio Paulo. História, ciência, escritura e política. In: RAGO,Margareth e Gimenes, Renato A. de O. (Org.). Campinas-S.P.: Ed. Unicamp,2002.BLOCH, Marc. Introdução à História. Lisboa: Publicações Europa-América,1965.

12 Citado na Introdução deste artigo (p.17).

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DOSSE, François. A História em migalhas: das annales à “ Nova Histó-ria”. São Paulo: Ensaio/Ed. da Unicamp, 1992.FOUCAULT, M. Nietzsche, a genealogia e a História. In: Microfísica do po-der. Rio de Janeiro, 1979.HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olímpio,1971.JORNAL CORREIO BRASILIENSE. Declaração de alguns deputados do Brasilnas Cortes de Portugal, que de Lisboa se passaram à Inglaterra, 1822. V.XXIX,n.174.JORNAL FOLHA DE SÃO PAULO. Entrevista com Gilberto Cotrim (autor delivros didáticos de História), 05/09/2001.KANT Immanuel. Critique of judgement. Coleção The Great Ideas.Enciclopaedia Britannica, v.42.KUPPER, Agnaldo; CHENSO, Paulo A. História crítica do Brasil. São Pulo:FTD, 1988.MOTA, Carlos Guilherme. Viagem incompleta. v.1. São Paulo: Ed. Senac,1999.RAGO, Margareth. Anarquismo e História. In: FOCAULT. Rio de janeiro:Ed. Nau, 2000.

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REFLEXÕES E POSSIBILIDADES PARA APRÁTICA DE HISTÓRIA NO ENSINO

FUNDAMENTAL

Leandro Henrique Magalhães1

RESUMO

O presente artigo é resultado de atividades das aulas realizadas junto aoterceiro ano de Pedagogia do Centro Universitário Filadélfia, na disciplina deMetodologia do Ensino de História e Geografia. Pretende-se aqui relatar, deforma sucinta, os debates realizados em sala de aula em torno de temáticasespecíficas da disciplina de História. Em um segundo momento, foi realizado umdebate sobre a importância e a necessidade de utilização de novos recursos emsala de aula. Em meio às discussões teóricas, os alunos fizeram propostas sobrecomo aplicar tal teoria em sala de aula, as quais estarão presentes na parte finaldeste artigo.

PALAVRAS-CHAVE: Metodologia; História; Teoria e Prática.

ABSTRACT

The present article is the result of classes taught to the third year of theundergraduate program on Pedagogy at Centro Universitário Filadélfia, in thesubject Methodology of the Teaching of History and Geography. We intend toreport briefly the debates carried out during the classes about specific themes ofHistory. Then, a debate on the importance and need for the use of new resourcesin the classroom was carried out. During the theoretical discussions, the studentsmade suggestions on how to apply theories in everyday classes, and they areincluded in the final part of this article.

1 Docente da UniFil.Mestre em História pela Universidade Federal do Paraná - UFPR. Aluno do Curso de Doutoradoem História pela mesma instituição. Professor de História Econômica Geral e de Formação Econô-mica Brasileira, e Coordenador de Pesquisas Acadêmicas, da Faculdade do Norte Pioneiro, de SantoAntônio da Platina - PR. Autor do livro “Olhares sobre a Colônia: Vieira e os indios”,publicado pela editora da Universidade Estadual de Londrina - UEL.E-mail: [email protected]

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KEY-WORDS: Methodology; History; Theory and Practice.

O início do século XX foi palco de uma importante mudança de paradigmasnas ciências humanas, afetando diretamente o estudo de História no mundo oci-dental. Passou-se a questionar o controle da História sobre os homens e a pers-pectiva teleológica decorrente, de que havia um único sentido possível a sertraçado pelos homens (REIS, 1994). Tal perspectiva partia do princípio de que ahumanidade não era livre para produzir eventos, pois estes seriam pré-determi-nados, e uma das funções do cientista social, assim como do historiador, eraidentificar o modo como a sociedade estava organizada e qual seria a melhorforma de utilizá-la (BASSO, 1989).

A partir da década de 30 do século XX, que marcou o início da produçãohistoriográfica da Escola dos Annales, uma nova perspectiva foi incorporada: ohomem e as sociedades humanas no tempo são identificados como sendo o ob-jeto do historiador, possibilitando a multiplicação dos atores históricos e, ao mes-mo tempo, as variantes temáticas e o uso de fontes, o que exige ampliação dasreflexões teóricas e metodológicas (REIS, 1994). A própria noção de verdadehistórica é questionada, pois, ao considerar-se a História como um produto socialmarcado pelo lugar de sua produção, modificado à medida em que a sociedadese transforma, torna-se necessário rescrevê-la constantemente, à luz das pers-pectivas e necessidades de cada época (GUARINELLO, 1994).

Os Parâmetros Curriculares Nacionais atuais, cuja premissa é servir deelemento norteador para o ensino fundamental, baseiam-se nessa perspectivahistórica, à medida em que entendem o aluno como produtor do conhecimento,sendo necessário levar em consideração suas habilidades e a realidade em queestá inserido. O aluno é considerado agente da História, que participa da realida-de e contribui para a produção do conhecimento (MICELI, 1989).

Com a ampliação dos sujeitos, torna-se necessário ampliar as fontes históricasa serem trabalhadas, assim como a diversidade de temporalidade, tendo em vista aexistência de possibilidades históricas. Considerar-se-á também os aspectos sociais,políticos, culturais e econômicos, de modo que se possibilite a identificação da diver-sidade social, cultural, espacial e histórica, ampliando a noção de alteridade.

Segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais, o ensino de História devepartir de três conceitos básicos: fato histórico, sujeito histórico e tempo histórico(PCN, 1997). A partir de tais perspectivas, os alunos do terceiro ano de Pedago-gia do Centro Universitário Filadélfia, orientados pelo professor da disciplina deMetodologia do Ensino de História e Geografia, realizaram, durante o primeirosemestre do ano letivo de 2001, uma série de debates acerca das principaistemáticas abordadas, oferecendo possibilidades de aplicação dos conceitos tra-

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balhados no Ensino Fundamental. Este artigo tem por objetivo apresentar taisdebates, pois entende as contribuições metodológicas oferecidas pelos alunoscomo uma forma de democratização do saber universitário.

Segundo o relatório para a UNESCO da Comissão Internacional da Educa-ção para o Século XXI, realizado em 1999, é necessário que o conhecimento histo-ricamente produzido, trabalhado e re-elaborado pelo ensino superior contribua parao desenvolvimento humano e para a renovação de uma vivência concreta da de-mocracia, necessitando-se da aproximação efetiva entre o saber acadêmico e acomunidade. Este texto visa contribuir com tais proposições, e está dividido emtrês partes: a primeira apresentará reflexões teóricas importantes para o debatehistórico atual, tais como: tempo, herói, memória e patrimônio histórico. A segundatratará de algumas possibilidades de uso de fontes para o ensino de História. Porfim, serão apresentadas algumas sugestões para o trabalho em sala-de-aula.

Reflexões teóricas

A noção de tempo histórico2 é, segundo os PCNs, um dos principais temasa serem abordados no Ensino Fundamental, devendo ultrapassar a perspectivalinear e teleológica que a acompanha, principalmente por causa da existência dediversos sujeitos históricos, o que implica em diversas temporalidades e fonteshistóricas.3

O tempo histórico pressupõe ainda a existência de permanências e ruptu-ras, e a totalidade histórica deve levar em consideração seus diversos ritmos eníveis. Segundo Elza Nadai e Circe Bittencourt, para a compreensão do tempohistórico é necessária uma série de habilidades que devem ser desenvolvidas emsala de aula: ter noção da medida do tempo e dos signos, representados pelosaber erudito, como anos, decênios e séculos; associar tempo e espaço, o quan-do com o onde; identificar permanências e rupturas, diferenças e semelhanças;atentar-se às relações sociais, o que pode ser feito a partir de análises temáticas.As autoras sugerem a utilização da idéia de trabalho, e a apresentação de suasdiversas formas nos variados períodos históricos. Além disso, é possível identifi-car algumas permanências, como o preconceito, com algumas atividades e adistinção entre o trabalho do campo e o da cidade.

2 Gostaria aqui de agradecer a todos os alunos da disciplina de Metodologia do Ensino de Históriae Geografia pela oportunidade de debater e refletir sobre as questões aqui analisadas. Tema traba-lhado pelas alunas Anelise de Marchi Azevedo, Cassandra Lemes, Cynthia Cristina CordeiroMiranda, Denise Caires Amoese, Flávia Cintra Crusiol, Joana D’Arc Vieira Quina, Paula CristinaBueno Salvador e Sandra Helena Tolardo Francisco.3 A partir do texto de Elza Nadai e Circe Bittencourt (NADAI e BITTENCOURT, 2000).

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A multiplicação do tempo histórico possibilita também a multiplicação dos sujei-tos, o que leva ao questionamento da figura do herói.4 Segundo Paulo Micelli, estespersonagens geralmente são identificados como aqueles que se destacam e queconduzem o destino coletivo, quase sempre construídos pelos poderes constituídos,com finalidade moral e objetivando a condução de capacidades e condutas.5

Em geral, o herói histórico simboliza a nação, o todo social, e busca a cons-trução de uma identidade a partir da diversidade que compõe a nação. Um heróipode ainda representar um grupo, e mesmo ser substituído por outro, como aPrincesa Isabel, ideologicamente imposta como heroína do movimento negro noBrasil, que foi substituída por Zumbi dos Palmares, pois a comunidade negra nãose identificava com a primeira, e a identificação é um dos pressupostos para aexistência do herói.

Como a sociedade é composta por diversos grupos sociais, existe tambémuma diversidade de heróis, que independem da eleição oficial, como no caso deVirgulino Ferreira, o Lampião, e Antonio Conselheiro, que oficialmente eramconsiderados inimigos da nação, mas foram tornados heróis para grande parteda população de sua época.

A análise de um herói exige que identifiquemos quem o elegeu como tal,quem ele representa, por que mereceu o título, se todos o entendem da mesmaforma e quais as condições de criação e recriação, ou seja, se as representaçõese interesses em torno dele continuam os mesmos ou são alterados com o tempo.Além disso, é necessário devolvê-lo ao seu lugar e relativizar seu papel enquantoherói, com a identificação de seus objetivos, desejos, valores e crenças.

Outras duas importantes temáticas abordadas foram a relação entre me-mória e história6 e a idéia de patrimônio histórico,7 pois ambas estão intimamen-te vinculadas. Essa idéia parte do princípio que o patrimônio e a memória não sãohomogêneos, mas configuram-se, como manifestações dos conflitos e contradi-ções presentes na sociedade, em um processo onde os grupos dominantes ten-tam silenciar a memória (e assim o patrimônio) dos demais grupos, buscando aconstituição de uma memória única, o que levaria ao aniquilamento das demais(SILVA, 1995, p.62).

4 Tema trabalhado pelas alunas Adriana Luciano Gomes, Alessandra Nunes Bazoli, Ana MariaRibeiro Zago, Ana Paula de Arruda Lajarim, Daniele Murasaki e Lucilene Lanhola Ribeiro.5 A partir do texto de Paulo Miceli (MICELI, 1989).6 Tema trabalhado pelas alunas Anagilda Zanella, Andréa Maria da Silva Caetano, Cleidemar Mariade Farias Serigate, Juliana Aparecida de Souza, Maria Sônia Batista de Paiva e Zilma da ConceiçãoSebastião.7 Tema trabalhado pelas alunas Andréa Haddad Barbosa, Célia Soares Dias, Enizelda de Oliveira,Juliana Martins Borges, Maria Izabel Rodrigues Gonçalves, Mariza Correia de Oliveira, Roselainedos Santos Mendes Hotz e Thelma Cristiane Bersanetti Negro.

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Segundo Marcos Silva, a memória é fundamental para a construção de iden-tidades sociais, pois cada grupo, a partir de sua historicidade e tradição, constróisua própria memória, em um processo de reelaboração contínua que permite atransformação do conhecimento histórico que se tem sobre si (SILVA, 1995, p.76). É necessário, entretanto, levar em consideração o fato de que uma pessoa nãopertence a um único grupo, pondo em evidência a multiplicidade de tensões, dispu-tas e identidades. A memória vincula-se à noção de tempo histórico, pois suaconstituição evidencia a existência de diversas experiências coletivas, e, assim, detemporalidades distintas, possibilitadas a partir da ampliação dos sujeitos históricos.

Devemos considerar que há a tentativa de monopólio da memória por partede grupos dominantes que se auto elegem representantes da vontade geral,desconsiderando as memórias que são constituídas à sua margem. Um exemploé a abolição da escravidão, pois, oficialmente, construiu-se determinada memó-ria em torno da assinatura da Lei Áurea, que desconsiderava a situação do ex-escravo e sua luta pela libertação. Atualmente, o movimento negro constrói suaprópria memória, e entende a abolição como resultado da luta cujo marco não foia abolição oficial, mas a constituição dos quilombos.8

A memória deve, portanto, ser entendida não como exclusividade de um grupo,mas a partir de sua articulação com as lutas sociais e com a construção de identida-des. Esta é uma temática de extrema importância para os dias atuais, pois a noção decidadania articula-se com o respeito à variedade de identidades e poderes, e, assim,de memórias. O respeito à memória, no entanto, pode significar a aceitação da pres-são política exercida por alguns grupos, como, por exemplo, a tentativa do Movimen-to dos Sem Terra de manter vivo o massacre de agricultores ocorrido no Pará, comoforma de preservar a identidade do grupo e a constituição de heróis próprios. Pode-mos afirmar, seguindo o raciocínio de Ricardo Oriá, que o resgate da memória seconfigura, no mundo moderno, como uma forma dos membros dos movimentos soci-ais reivindicarem seu direito à cidadania, como instrumento de luta e de afirmação deidentidades, condição essencial para a constituição de uma sociedade plural.9

Há, no entanto, a tentativa de construção da memória única e do passadohomogêneo, sem conflitos ou contradições. Essa perspectiva histórica configu-ra-se como um dos mais fortes e sutis meios de dominação e legitimação dopoder, que impossibilita a constituição de outras memórias e leva a maior parteda população a acreditar que não tem memória. Para Ricardo Oriá, um homemsem memória é um homem sem referência histórica, sem identidade, que não sereconhece como cidadão e como sujeito histórico.10

8 A partir do livro de Marcos Silva (SILVA, 1995).9 A partir dos textos de Ricardo Oriá e Norberto Guarinello (ORIÁ, 1997); (GUARINELLO, 1994).10 A partir do texto de Ricardo Oriá (ORIÁ, 1997).

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Essa questão pode ser identificada no debate sobre patrimônio histórico, quedeve ser considerado a partir da variedade dos campos de manifestação que vãoalém da arquitetura, como a música, artes plásticas e objetos do cotidiano, e possi-bilitam múltiplas falas e experiências, tendo em vista a diversidade de grupos quevivenciam o patrimônio, pressupondo conflitos, potencialidade e limites.11

A partir dessa definição, podemos afirmar que o patrimônio não pertence aum grupo exclusivo, mas ao conjunto da sociedade, embora haja a tentativa deimpor a idéia de que possua o mesmo valor para todos os grupos, apresentando-se como forma de manutenção de determinada memória. Se considerarmos asnoções de identidade e tradição, entretanto, entenderemos que o patrimônio nãoé comum a todos, pois não possui significado único.

Deve-se evitar que a preservação do patrimônio privilegie determinado públi-co em detrimento de outros, o que levaria ao processo de exclusão grupal. É ne-cessário que um patrimônio seja apropriado, material e simbolicamente, pelo maiornúmero possível de grupos, cada qual legando-lhe usos e significados distintos, demodo que entendamos o patrimônio como resultado das relações sociais.

Fontes Históricas

Como visto acima, temáticas como tempo, herói, memória e patrimôniohistórico levam à ampliação dos sujeitos históricos, e exigem também a amplia-ção das fontes históricas, tendo em vista a multiplicação dos modos de expres-são. Novas fontes buscam também por reflexões metodológicas sobre a formamais adequada de utilização; por isso, pretendemos aqui explicitar algumas delase seus métodos para o ensino de História, notadamente, a literatura, as artesplásticas, a música, o cinema,12 a fotografia13 e a televisão.14

O mundo moderno observa uma revolução dos meios de comunicação,principalmente por causa do chamado universo virtual onde, em minutos, épossível se adquirir qualquer tipo de informação, em qualquer lugar do mundo.Essa revolução não nega as demais formas de manifestações, mas as complementa

11 A partir do livro de Marcos Silva (SILVA, 1995).12 Temas trabalhados pelos alunos José Carlos de Souza, Beatriz Pereira de Freitas Carvalho,Cristiane Bastos Alves, Edilene Aparecida Santatto Frasson, Renata Cristina Turrissi Coscrato,Rejane Bastos Alves, Rosinéia Ferreira Fujita e Thais Rodrigues Gonzaga.13 Tema trabalhado pelos alunos Geraldo Ricardo Miranda, Beatriz dos Santos Pereira, CéliaAparecida da Silva, Cleusa Camargo de Oliveira Souza, Feranda Fernandes e Josiane Júnia Facundode Almeida.14 Tema trabalhado pelas alunas Elke Melo Sathler Mansur, Josmari Aparecida Pauzer Migliorini,Kelli Cristina Wosiack, Michelle Ferreira Alves Munhoz, Simone Cláudia de Lima e Taís LucianaFreitas Parpinelli.

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e traz novas possibilidades, as quais não podem ser ignoradas pelo professor deHistória, que deve situar-se nesse universo.15

O processo de mundialização do conhecimento é acompanhado de uma dimi-nuição gradativa do analfabetismo, o que não significa que os novos leitores possuamperspectivas críticas em relação ao que lêem. Essa questão é ampliada quando tra-tamos de outras formas de linguagem, como o telejornalismo, que alia a leitura, a falae a imagem, ou o discurso estético, como a literatura, a música e as artes plásticas.

No caso do discurso estético, temos que ter o cuidado de analisá-lo semdescaracterizá-lo como arte, possuidora de linguagem própria, que deve ser con-siderada. Uma das características do mundo moderno ocidental é o fato de gran-de parte das manifestações artísticas estarem vinculadas à indústria cultural e àcultura de massas (NAPOLITANO, AMARAL e BORJA, 1987). Estas, se-gundo Marcos Napolitano e colaboradores, teriam dupla finalidade: informar/formar consciências e controlá-las ideologicamente, servindo como instrumentode classe, o que é demonstrado pela impossibilidade de diálogo entre o especta-dor e o emissor da mensagem (rádio, TV e jornal), tendo em vista que este últimopermanece oculto e encarnado no veículo de comunicação, como algo transcen-dente ao homem (NAPOLITANO, AMARAL e BORJA, 1987).

Ainda segundo estes autores, podemos afirmar que a indústria cultural aliaestética e mercadoria, em um processo onde a linguagem fácil predomina epossibilita acesso a um público mais amplo e lucrativo. O público, entretanto, nãoestá passivo, construindo e reconstruindo significados a partir de suas perspecti-vas, identidades e interesses, formulando contra-mensagens ou contra-discur-sos.

Desta forma, podemos afirmar que a obra de arte possui elementos objetivose sócio-históricos, devendo-se considerar quem a produziu, para qual público, qualsua forma de difusão, qual mensagem expressa e qual seu gênero, além de seuaspecto dinâmico, não só em relação ao artista, mas também ao público. Cadadocumento, no entanto, possui especificidade semântica própria, autonomia de lin-guagem que interage com a sociedade, que a concretiza a partir de valores esignificados plurais, que demonstram os conflitos e contradições sociais.

Uma forma de linguagem que revolucionou a assimilação social das imagensfoi a fotografia que, surgida em meados do século XIX, tornou-se, juntamente como foto-jornalismo, uma forma de registro visual de eventos sócio-históricos, priva-dos e coletivos. A imagem fotográfica tornou-se uma das principais formas deassimilar e registrar eventos, ampliando o campo de visualização do mundo.16

15 A partir do texto de José Vicente de Freitas (FREITAS, 1993).16 A partir do texto de Marcos Napolitano (NAPOLITANO, 1997).

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A fotografia pode também ser utilizada como instrumento de propagandapolítica e ideológica na construção de fatos, heróis, memórias e, assim, deidentidades. Como as demais fontes históricas, ela não é neutra, mas possuiintencionalidade, que pode ser política, ideológica e de propaganda. Não deveser considerada como um registro da realidade, mas como o registro de uminstante de uma realidade específica, que necessita de seleção e de interpre-tação tanto por parte do fotógrafo como do seu leitor. Por isso, é necessáriolevar em consideração, além do contexto, a presença de outros códigos que aacompanham, como legendas, que já é uma forma de interpretação, e o veículode transmissão (revista, jornal, Internet, álbum), pois, de acordo com, ele pode-mos identificar a intenção do fotógrafo. A fotografia apresenta-se como aconsciência histórica própria da era das imagens, que tende a guiar nossasmemórias e transformar nossa vivência, desconsiderando, em muitos casos, atradição, ao levar em conta somente o instante. Transforma-se em um modode seleção da memória individual e coletiva.

Segundo José Miguel Arias Neto, a análise de fotografias deve conside-rar as condições técnicas de produção, ou seja, se houve manipulação visandoa alteração da imagem, ou montagem, além de se colocar a composição daimagem em seu contexto e identificar o veículo original da mensagem (ARIASNETO, 1996). Desta forma, poderemos compreender os meios pelos quais aimagem se estabelece socialmente. Outros fatores importantes são aintencionalidade e o impacto sócio-histórico, ou seja, o modo como as imagensforam socialmente recebidas.

A fotografia leva-nos a repensar também o uso da televisão como docu-mento histórico, tema abordado por Marcos Napolitano (NAPOLITANO,AMARAL e BORJA, 1987), segundo o qual, no caso do uso da imagem televisiva,o cuidado inicial a ser tomado é a seleção do gênero e do programa utilizado:jornal, novela, séries ou filmes, além da necessidade de levar em consideração aépoca em que o material foi produzido e de identificar seus objetivos políticos eideológicos e o público a que foi destinado. Essa questão deve ser discutidafrente à especificidade da televisão, que produz programas para consumo imedi-ato, no momento de sua difusão, construindo uma memória televisiva dinâmica,substituída a todo instante, ao contrário do cinema, que cria um produto culturalpara ser consumido por vários anos.

Assim como no caso da fotografia, a imagem televisiva pode ser utilizada apartir de princípios políticos e ideológicos, e sua análise deve considerar os obje-tivos da programação, destinada a determinado público em determinado horário.Há também a necessidade de se considerar o telespectador como fator ativo noprocesso de transmissão de imagens, pois este é portador de códigos e valores

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culturais que não são destruídos pela TV. A demanda social interfere no proces-so de recepção das mensagens e, desta forma, o modo de entender determinadoprograma varia no tempo e no espaço: um mesmo programa veiculado em épo-cas distintas será compreendido de diferentes maneiras, assim como grupos so-ciais distintos ou que vivem em espaços diferentes farão variadas interpreta-ções, não se podendo falar assim de uma homogeneidade televisiva.

Possibilidades de aplicação em sala-de-aula

A partir das leituras teóricas e metodológicas, foi apresentada uma sé-rie de sugestões de aplicação em sala-de-aula, sugestões válidas desde quesejam adequadas à série trabalhada e à realidade vivida por cada escola,classe e aluno.

Um recurso muito utilizado foi a música, usada para trabalhar diversastemáticas. Entre as sugestões, podemos destacar a música “Tic-tac”, deVinícius de Moraes, para trabalhar com a noção de tempo; “Saudosa maloca”,para tratar da idéia de patrimônio histórico; “Se esta rua fosse minha”, dedomínio público, para tratar da questão da paisagem e seu dinamismo; “OCio da terra”, de Milton Nascimento e Chico Buarque, para debater a ques-tão da terra como fonte de vida e a idéia do trabalho no campo; “A banda”,para pensar as cidades de interior e sua tradição; “Mulher rendeira”, dedomínio público, e “Fábrica”, da Legião Urbana, a primeira para tratar datradição artesanal, e a segunda para levantar questões relativas ao processode industrialização; e “Brasil”, de Cazuza, para iniciar um debate sobre omomento vivido pelo país.

O cinema também foi apresentado como um recurso possível de ser utiliza-do em sala de aula, como no caso do filme “GAIJIN, os caminhos da liberda-de”, cujo tema é a imigração japonesa e italiana, a partir do qual realizar-se-ãocomparações em relação à forma como cada grupo étnico entende o trabalho,como resultado de sua tradição e cultura. Outra possibilidade seria o uso dodesenho animado “Hércules” para introduzir a noção de herói e a questão desua construção histórica.

A televisão também pode ser utilizada para realizar debates em sala-de-aula, principalmente para tratar de questões atuais, como o apagão. Umadas possibilidades é solicitar aos alunos análise de diversos telejornais, visan-do a identificação das várias formas de tratar um mesmo problema. Apósessa etapa, pode-se iniciar um debate sobre o papel de cada um para resol-ver o problema, ou seja, do Estado, da comunidade e do indivíduo, permitindoque os alunos se identifiquem como sujeitos históricos, capazes de questio-nar determinados discursos transmitidos pela televisão.

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A fotografia é outra importante fonte de análise, principalmente quandonos referimos à idéia de memória e patrimônio histórico, pois, em muitos casos, éum meio de preservar a memória da família ou da comunidade em que o alunovive. Uma das formas de utilizá-la em sala-de-aula é solicitar que os alunostragam algumas fotos suas, desde seu nascimento, e fazer alguns paralelos, comoem relação às roupas e objetos que aparecem na imagem, distintos dos atuais, einiciar então debate sobre hábitos e costumes que mudam com o tempo, mesmosem que o percebamos claramente.

Além disso, a fotografia pode ser utilizada para trabalhar a noção de tempohistórico, ao demonstrar que cada aluno da sala possui uma história diferente,com experiências distintas, transmitindo-lhes a noção de sincronia. Além disso, épossível trabalhar com a idéia de tempo linear e cíclico: ao datar as fotos e fazeruma linha do tempo, o aluno poderá perceber a idéia de tempo linear e, ao atentarpara detalhes, como roupas, pode-se chamar atenção para as estações do ano,que se repetiram todos os anos no decorrer da vida do aluno.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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CONSIDERAÇÕES SOBRE DUAS DIFERENTESFORMAS DE SE FAZER ETNOLOGIA

* Marcelo Caetano de Cernev Rosa

RESUMO

Este artigo procura expor o debate entre Eduardo Viveiros de Castro eJoão Pacheco de Oliveira Filho, ocorrido no final da década de 90, sobre o de-senvolvimento da etnologia brasileira. Apesar de polêmico, tal debate baliza duasformas importantes de se fazer antropologia que devem ser consideradas frenteaos desafios da pesquisa etnológica nos dias atuais.

PALAVRAS-CHAVE: Etnologia; Etnogênese; Cultura; Análise Situacional.

ABSTRACT

This article tries to explain the debate between Eduardo Viveiros de Castroand João Pacheco de Oliveira Filho, which occurred in the end of the 90’s, on thedevelopment of the Brazilian ethnology. Despite polemic, such debate presentstwo important forms of making anthropology that are to be considered in face ofthe challenges of the ethnological research of the present day.

KEY-WORDS: Ethnology; Ethnogenesis; Culture; Situational Analysis.

INTRODUÇÃO

Neste artigo, procuro fazer uma reflexão sobre as possibilidades e limita-ções de duas formas de se fazer etnologia no Brasil, valendo-me do debate entreEduardo Viveiros de Castro e João Pacheco Filho, ambos do Museu Nacional daUniversidade Federal do Rio de Janeiro.

Certamente, o debate a que me refiro não possui motivações exclusiva-mente acadêmicas. Todavia, isto não impede a possibilidade de extrairmos deleimportantes elementos para uma reflexão sobre dois caminhos, ou vertentes dis-tintas de enfoque sobre a prática da etnologia, assim como sobre suas respecti-vas instrumentalidades e limitações.* Docente da UniFil.Mestrando em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas.E-mail: [email protected]

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Este texto pode ser dividido em três partes. Na primeira, apresento emlinhas gerais a argumentação de Oliveira. Em seguida, procuro expor oscontrapontos de Viveiros de Castro àquela argumentação. Na terceira, faço al-gumas considerações sobre o debate.

A etnogênese das populações indígenas nordestinas, segundo Oliveira Filho

Podemos destacar da argumentação de OLIVEIRA (1998), dentre outroselementos, dois pontos principais, segundo este autor:

os povos indígenas do Nordeste brasileiro,1 não teriam sido estudados pe-los antropólogos americanistas, em virtude de não se enquadrarem nos interes-ses desses pesquisadores, vindo a constituir uma espécie de “etnologia menor”;

os povos indígenas do Nordeste estariam apresentando uma característicaaparentemente contraditória, à medida em que, ao longo das últimas décadas, onúmero de populações teria aumentado consideravelmente, passando de 10 etnias,na década de 50, para 23, em 1994;

Oliveira procura demonstrar como, desde a primeira metade do século,as populações indígenas situadas no Nordeste têm sido vistas pela etnologiacomo populações caracterizadas por sua integração à sociedade envolvente epela perda de seus elementos tradicionais. Neste sentido, ele faz menção aotrabalho de Galvão, Áreas culturais indígenas do Brasil 1900/1959 e aoHandbook of South American Indians que, em suas ópticas, contribuírampara reforçar essa visão.

Como justificativa para o suposto “pouco” interesse que estas populaçõesteriam despertado nos etnólogos, principalmente no que diz respeito aos“americanistas norte-americanos”,2 o autor cita uma passagem de Lévi-Strauss,na qual este afirma:

1 Estou mantendo nestes dois itens o termo “índios do Nordeste”, tal como está presente no textode OLIVEIRA; no entanto, a partir deste momento procurarei utilizar expressões que se aproxi-mem do sentido de “índios no Nordeste”, pois considero que esta segunda forma seja mais adequa-da para se referir a populações autóctones, em virtude de que as classificações regionais não sãoconstitutivas de suas formas de organização social. Cabe lembrar que, no caso brasileiro, existemvárias populações indígenas que não se encerram nos limites do território nacional, mas que, pelocontrário, estão presentes em territórios atualmente pertencentes a outros países. Além disto,como será visto no decorrer deste trabalho, PEIRANO utiliza estas duas diferentes grafias para sereferir às populações indígenas para distinguir duas maneiras distintas de se fazer etnologia noBrasil.2 Como pode ser percebido, através de uma leitura atenta do texto, quando OLIVEIRA mencionaa expressão “americanistas norte-americanos”, esta engloba também os próprios etnólogos brasi-leiros, numa referência indireta a Viveiros de Castro.

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O antropólogo é o astrônomo das ciências sociais: ele está en-carregado de descobrir um sentido para configurações muitodiferentes, por sua ordem de grandeza e seu afastamento, dasque estão imediatamente próximas do observador (LÉVI-STRAUSS, 1967, p.472 apud OLIVEIRA, 1998, p.49).

O argumento de Oliveira caminha no sentido de relacionar a “poucadistintividade cultural” daquelas populações indígenas à passagem menciona-da acima, visando proporcionar uma suposta explicação do porquê, em sua opi-nião, a etnologia americanista não teria se interessado pelas populações indíge-nas presentes no Nordeste.

Em outras palavras, pode-se dizer que, segundo Oliveira, em virtude de quea concepção do antropólogo, enquanto “astrônomo”, não seria aplicável àquelaspopulações indígenas, e já que a etnologia americanista, em sua concepção, seriadevedora, dentre outras orientações teóricas, ao estruturalismo levistraussiano, odesinteresse em tais populações por parte dos “americanistas” seria quase queuma decorrência natural.

Porém, o “descrédito” em relação às populações autóctones presentesno Nordeste não seria oriundo apenas de uma óptica negativista presente emobras de referência, como, por exemplo, a de Galvão, mencionada acima,nem tampouco da suposta falta de interesse que os americanistas teriamdemonstrado para com tais populações. Oliveira afirma que Darcy Ribeiroteria sido ainda mais incisivo, ao se referir às populações indígenas presentesno Nordeste como “resíduos de população indígena e magotes de índiosdesajustados”. Segundo Ribeiro, tais populações estariam numa fase tãoadiantada de aculturação que não mais poderiam ser consideradas como su-jeitos históricos.

Uma vez apresentada a conotação negativa para com as populaçõesindígenas presentes no Nordeste, Oliveira procura destacar que seria atra-vés de “fatos de natureza política” que determinadas populações autóctonespresentes no Nordeste estariam voltando a adquirir uma certa “visibilida-de”3 no cenário nacional, vindo, inclusive, a despertar o interesse de pesqui-sadores de seu grupo.

3 Em que pesem as críticas de OLIVEIRA (1998:62) à utilização de termos que se remetam aosatributos de visibilidade/invisibilidade, por estarem relacionados, em sua opinião, ao que ele deno-mina como uma “etnologia das perdas e das ausências culturais”, reservo-me o direito de, nestetrabalho, utilizar termos desta natureza como mero artifício descritivo.

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Sua argumentação em relação a este ponto é muito interessante, pois, sepor um lado, tais populações teriam perdido sua “visibilidade” à etnologia e, decerta forma, parte de sua “essência” – afinal, nesta perspectiva, eles eram con-siderados como aculturados - por outro, seria através das demandas pelo acessoà terra que tais populações estariam despertando a atenção de uma determinadaetnologia.

Oliveira procura destacar que as análises mais contemporâneas que têmprocurado enfocar tais populações apresentam em comum o caráter de serempesquisas orientadas para uma determinada prática política.

O que aí ocorre exemplifica uma trajetória possível deinstitucionalização para uma antropologia periférica, tal como obser-vado por Peirano [...]: em lugar de definir suas práticas por diálogosteóricos, operam mais com objetos políticos ou ainda com a dimensãopolítica dos conceitos da antropologia. (OLIVEIRA, 1998, p.51.)

Desta forma, os “novos estudos”, surgidos a partir do início da décadade 1990, sobre as populações indígenas presentes no Nordeste, estariamcentrados em questões que dizem respeito tanto à problemática das emergên-cias étnicas, quanto à da reconstrução cultural. E, em sua perspectiva, elesrepresentariam um avanço significativo em relação às demais perspectivas deanálise que, até então, só teriam conseguido vislumbrar tais populações emtermos de perdas.

A “etnologia das perdas” deixou de possuir um apelo descritivoou interpretativo e a potencialidade da área do ponto de vistateórico passou a ser o debate sobre a problemática das emer-gências étnicas e da reconstrução cultural. E é orientado poressas preocupações teóricas, que se constituiu do início dos anos90 para cá um significativo conjunto de conhecimentos sobre ospovos e culturas indígenas do Nordeste, ancorado na bibliogra-fia inglesa e norte-americana sobre etnicidade e antropologiapolítica, e - é importante acrescentar - nos estudos brasileirossobre contato interétnico (OLIVEIRA, 1998, p.53).

Para propor uma forma de análise que possibilite compreender o que teriaocorrido no caso das populações indígenas presentes no Nordeste, Oliveira sevale da concepções de Barth sobre grupos étnicos e suas fronteiras. Porém, eleindica a necessidade de fazer alguns “ajustes” nas proposições desse autor.

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Oliveira destaca que Barth, concebe um grupo étnico como um:

[...] tipo organizacional, onde uma sociedade se utilizava de di-ferenças culturais para fabricar e refabricar sua individualidadediante de outras com que estava em um processo de interaçãosocial permanente [...] cujos limites seriam sempre construídossituacionalmente pelos próprios membros daquela sociedade(OLIVEIRA, 1998, p.55).

Ocorre um deslocamento do foco da análise, que deixa de se posicionarfrente a culturas isoladas, e passa a estar dirigido para processos identitários quedevem ser estudados em contextos precisos e percebidos como atos políti-cos4 (OLIVEIRA, 1998, p.55).

No entanto, a estas formulações de Barth, Oliveira acrescenta a necessi-dade de se considerar que a interação entre as sociedades seria processada nointerior de um quadro político preciso, cujos parâmetros estão dados peloEstado-Nação (1998, p.55). E, neste sentido, ele procura ressaltar a importân-cia que a “dimensão territorial” teria para a compreensão da incorporação dediferentes populações étnicas no interior deste Estado-Nação.

Oliveira considera a noção de territorialização como algo fundamental, com-parando o seu valor heurístico ao da noção de situação colonial. Segundo ele, seriaatravés da territorialização, enquanto um ato de natureza política, que se propicia-ria a formação de uma identidade própria, de uma determinada coletividade, vindo,inclusive, a reestruturar suas formas culturais. Neste sentido, pode-se afirmar -como também o faz Viveiros de Castro – que, para esse autor, a territorializaçãoteria um caráter sociogenético em relação aos grupos indígenas, à medida em quesua atuação não se restringiria somente à formação de certos mecanismos deliderança e de representação, mas, também, seria estruturante da própria culturados grupos envolvidos. Em suas próprias palavras:

A noção de territorialização tem a mesma função heurística que ade situação colonial - trabalhada por BALANDIER (1951),reelaborada por CARDOSO de OLIVEIRA (1964), pelosafricanistas franceses e, mais recentemente, por STOCKING JR.(1991) - da qual descende e é caudatária em termos teóricos. Éuma intervenção da esfera política que associa - de forma prescritivae insofismável - um conjunto de indivíduos e grupos a limites geo-

4 Isto, na óptica de OLIVEIRA, representaria um importante e necessário afastamento em relação aoculturalismo.

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gráficos bem determinados. É esse ato político - constituidor deobjetos étnicos através de mecanismos arbitrários e de arbitra-gem (no sentido de exteriores à população considerada e resul-tante das relações de força entre os diferentes grupos que inte-gram o Estado) - que estou propondo tomar como fio condutorda investigação antropológica. O que estou aqui chamando deprocesso de territorialização é, justamente, o movimento peloqual um objeto político-administrativo - nas colônias francesasseria a “etnia”, na América espanhola as “reducciones” e “res-guardos”, no Brasil as “comunidades indígenas” - vem a se trans-formar em uma coletividade organizada, formulando uma identi-dade própria, instituindo mecanismos de tomada de decisão e derepresentação, e reestruturando as suas formas culturais (inclu-sive as que o relacionam com o meio ambiente e com o universoreligioso). E aí volto a reencontrar Barth, mas sem restringir-meà dimensão identitária, vendo a distinção e a individualizaçãocomo vetores de organização social. As afinidades culturais oulingüísticas, bem como os vínculos afetivos e históricos porventuraexistentes entre os membros dessa unidade político-administra-tiva (arbitrária e circunstancial), serão retrabalhados pelos pró-prios sujeitos em um contexto histórico determinado e contras-tados com características atribuídas aos membros de outrasunidades, deflagrando um processo de reorganização socioculturalde amplas proporções (OLIVEIRA, 1998, p.56).

Assim, em sua perspectiva, as populações indígenas presentes no Nordes-te teriam passado no decorrer do tempo por vários processos diferentes deterritorialização. Um primeiro ocorrido em associação às missões religiosas dosséculos XVII e XVIII; um segundo ocorrido no século passado, relacionado àagência indigenista (SPI); e um terceiro, já nas décadas de 70/80. Enquanto oprimeiro processo de territorialização teria pretendido aldear tais populações ecatequizá-las, procurando integrá-las à sociedade envolvente, os demais possui-riam naturezas diversas.

Posteriormente à Lei de Terras (1850), os governos das províncias acaba-ram extinguindo os antigos aldeamentos indígenas, que haviam sido criados pelasmissões, incorporando os seus territórios. Assim, antes mesmo do final do séculoXIX, destituídos de seus territórios, tais populações teriam deixado de ser reconhe-cidas como grupos ou coletividades, e passaram a ser referidas individualmentecomo “remanescentes”, “descendentes”, ou como “índios misturados”.

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Oliveira destaca que, no segundo processo de territorialização, iniciado apartir da segunda década do século passado, houve a implantação de diversospostos indígenas, principalmente a partir dos anos 30, em várias áreas do Nor-deste, demarcando e destinando terras a várias populações.

Tal processo de territorialização teria imposto, segundo ele, determinadasinstituições e crenças, possibilitando o desenvolvimento de uma certa indianidadeque poderia ser percebida em dois pontos centrais: na estrutura política da mai-oria das áreas indígenas, que passou a dispor de três elementos distintos (caci-que, pajé e conselheiro), que inclusive passariam a ser vistos como “tradicio-nais” e “autenticamente indígenas”; e na utilização de rituais diferenciadores,como o toré.

O terceiro movimento de territorialização teria ocorrido nas décadas de 70e 80, quando se tornaram conhecidas as demandas de populações até então nãoreconhecidas e que também não constavam da literatura etnográfica. Por estemotivo, populações como os Tinguí-Botó, os Karapotó, os Kantaruré, os Jeripancó,os Tapeba e os Wassu teriam sido descritos como “novas etnias” ou “índiosemergentes”.

No entanto, segundo Oliveira, estes termos, assim como alguns outros quetêm sido utilizados para se referir a tais populações, não seriam corretos. Umcaminho que ele considera mais adequado passaria pela noção de diáspora,formulada por Clifford: diáspora remete àquelas situações em que o indiví-duo elabora sua identidade pessoal com base no sentimento de estar divi-dido entre duas lealdades contraditórias, a de sua terra de origem (home)e do lugar onde está atualmente, onde vive e constrói sua inserção social... (OLIVEIRA, 1998, p.63). Porém, Clifford exclui a possibilidade de utilizaçãodo termo diáspora às populações indígenas, exclusão da qual Oliveira discorda.Em suas palavras:

A razão da exclusão dos povos indígenas do conceito guarda-chuva de diáspora parece-me vazada em um uso esquemáticodas polaridades culturais em uma situação interétnica, o que ameu ver, inclusive, compromete o esforço de Clifford na cons-trução relacional do conceito de diáspora. Mas o que interessaaqui é outro aspecto: feitas as devidas ressalvas, poderia dizerque Clifford, implicitamente, estaria sinalizando a importânciada relação com a origem como característica das identidadesindígenas. Por que os povos indígenas nunca chegariam à con-dição de unhomed [...], tão típica das populações que sofremprocessos migratórios? (OLIVEIRA, 1998, p.63-64).

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Baseado na noção de diáspora, o autor propõe a utilização da imagem da“viagem da volta”, referindo-se a uma passagem que Torquato Neto teria regis-trado em versos, da experiência de migração dos nordestinos: “desde que saíde casa, trouxe a viagem da volta gravada na minha mão, enterrada noumbigo, dentro e fora assim comigo, minha própria condução” (OLIVEI-RA, 1998, p.64).

Segundo Oliveira, a utilização dessa imagem figurativa teria como finalida-de superar a polaridade existente no interior dos debates sobre etnicidade entreduas posturas distintas, que ele denomina como sendo composta, de um lado,pelos instrumentalistas (dentre os quais relaciona Barth) e, de outro, pelosprimordialistas (Geertz, Keyes dentre outros).

Neste sentido, ele procura afirmar a necessidade de se considerar queambas as posições – tanto instrumentalista quanto primordialista – não seriammutuamente excludentes entre si, mas, pelo contrário, possibilitariam operar comdiferentes dimensões constitutivas da etnicidade, dimensões estas que deveriamser levadas em conta.

A imagem figurativa por mim utilizada tem, justamente, comofinalidade superar essa polaridade, também objeto de reflexãode Carneiro da CUNHA (1987), mostrando que ambas as cor-rentes apontam para dimensões constitutivas, sem as quais aetnicidade não poderia ser pensada. A etnicidade supõe, neces-sariamente, uma trajetória (que é histórica e determinada pormúltiplos fatores) e uma origem (que é uma experiência primá-ria, individual, mas que também está traduzida em saberes enarrativas aos quais vem a se acoplar). O que seria próprio dasidentidades étnicas é que nelas a atualização histórica não anulao sentimento de referência à origem, mas até mesmo o reforça.É da resolução simbólica e coletiva dessa contradição que de-corre a força política e emocional da etnicidade (OLIVEIRA,1998, p.64).

Oliveira teria escolhido a imagem da “viagem da volta” por dois motivosprincipais: primeiro, porque ela expressaria tanto a existência de uma relaçãoentre “etnicidade e território”, quanto a relação que denomina como entre“identidade e características físicas”.

A expressão “enterrada no umbigo” traz para os nordestinosuma associação muito particular. [...] Como é freqüente nessas

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regiões a migração em busca de melhores oportunidades de tra-balho, tal ato mágico (uma “simpatia”) aumentaria as chancesde a criança retornar um dia à sua terra natal. O que a figurapoética sugere é uma poderosa conexão entre o sentimento depertencimento étnico e um lugar de origem específico, onde oindivíduo e seus componentes mágicos se unem e identificamcom a própria terra, passando a integrar um destino comum. Arelação entre a pessoa e o grupo étnico seria mediada pelo ter-ritório e a sua representação poderia remeter não só a uma re-cuperação mais primária da memória, mas também às imagensmais expressivas da autoctonia. [...] O outro ponto é a relaçãoentre etnicidade e características físicas. Ao dizer que sua natu-reza está “gravada” na própria mão, o narrador cria um vínculoprimário inextirpável, transmitido biologicamente, entre ele e acoletividade maior. Trata-se de algo muito mais forte do queuma lealdade, a qual remeteria a fenômenos socioculturais e acontextos e oportunidades de atualização histórica (ou não). Ins-crita em seu próprio corpo e sempre presente (“dentro e fora,assim comigo”), a relação com a coletividade de origem remeteao domínio da fatalidade, do irrevogável, que estabelece o nortee os parâmetros de uma trajetória social concreta (OLIVEIRA,1998, p.64-65).

Em segundo lugar, os estudos mais recentes sobre os grupos étnicospresentes no nordeste comprovariam a importância que as peregrinaçõespossuem como meios de construção de unidades socioculturais, o que,conforme ele enfatiza, já é de conhecimento dos antropólogos, desdeTurner.

O autor apresenta dados etnográficos sobre viagens que determina-dos líderes das populações autóctones fizeram com vista a obter o reco-nhecimento e a demarcação de suas terras, junto ao SPI. Tais viagensteriam não somente se constituído em romarias políticas, mas [...] institu-íram mecanismos de representação, constituíram alianças externas,elaboraram e divulgaram projetos de futuro, cristalizaram internamenteos interesses dispersos e fizeram nascer uma unidade política antesinexistente; mas que também teriam adquirido um [...] sentido religioso,voltadas para a reafirmação de valores morais e de crenças funda-mentais que fornecem as bases de possibilidade de uma existênciacoletiva (OLIVEIRA, 1998, p.65-66).

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Antes de fechar sua exposição, Oliveira retorna ao tema das divergênciaspara com os “americanistas”. Citando BERNARD e GRUZINSKI (1992), eleafirma que, segundo tais autores, a antropologia americanista teria se esquecido dosmestiços (ou seja, dos “índios misturados”). Quanto ao que considera como sendoos “pressupostos do americanismo”, Oliveira propõe quatro pontos de ruptura:

• questiona um excesso de abstração no que diz respeito aos contextos deonde os etnólogos obtêm suas informações;

• ressalta a impossibilidade de “descrever os fatos e acontecimentos den-tro de uma cultura a partir de uma temporalidade única ehomogeneizadora” (OLIVEIRA, 1998, p.68);

• aponta a necessidade de resgatar a polifonia das populações, inclusivelevando-se em conta que “As ações e os conteúdos simbólicos quetrazem não correspondem unicamente a uma projeção de modelosatemporais e inconscientes, mas representam uma solução a proble-mas (inclusive com uma dimensão ético-valorativa) surgidos no cur-so das interações;

• afirma não considerar as culturas como simplesmente coextensivas àssociedades nacionais ou aos grupos étnicos.

Tais observações de Oliveira, apontam para a necessidade de uma espéciede incursão pela história, na prática da etnografia. Como ele mesmo afirma,

... a [...] intenção não é propor uma etnologia dos “Índios doNordeste”, ou mesmo uma etnologia dos “índios misturados”,que funcionasse como um contraponto ao modelo dosamericanistas. ... [mas] ... talvez fosse oportuno destacar a pre-ocupação de buscar caminhos para uma possível “antropologiahistórica” (OLIVEIRA:, 1998, p.68).

A etnologia brasileira segundo Viveiros de Castro

Em um texto publicado no final da década de 90, Viveiros de Castro procu-ra fazer uma espécie de “balanço” da etnologia brasileira. Neste, ele estabele-ce diálogos com vários autores, dentre os quais podemos destacar Alcida Ramose Mariza Peirano. Porém, é possível perceber que o texto foi construído com oobjetivo principal de responder às críticas dirigidas por Oliveira aos“americanistas”. Assim, procuro salientar alguns dos aspectos que considerocomo os mais pertinentes no interior deste debate.5

5 Cabe ressaltar que em virtude dos objetivos do presente trabalho, a riqueza e a complexidade do texto deViveiros de Castro, a que estou me referindo, provavelmente não serão tão visíveis ao leitor, comomereceria.

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Viveiros de Castro, de uma forma bastante direta, coloca as “cartas namesa”, nomeando quais são os envolvidos no debate que surgiu no Museu Naci-onal. Se autodenominando “uma das encarnações atuais da ‘etnologia clás-sica’”, ele se refere a Oliveira, assim como a seus discípulos, como pertencen-tes à “escola contatualista” e, em determinadas passagens, de forma irônica,como pertencentes à “variante fundamentalista” dessa escola.6

Várias são as críticas que o autor formula à escola contatualista. A come-çar pelo que Oliveira denominou como “etnologia das perdas”, Viveiros deCastro procura demonstrar que a leitura feita por Oliveira sobre o desenvolvi-mento da antropologia no Brasil não seria adequada. No balanço crítico realiza-do por esse etnólogo, não teria sido levada em conta a existência de toda umasérie de autores – trata-se obviamente dos não-contatualistas - cujos aportesseriam bastante significativos.

Viveiros de Castro ressalta a distinção formulada por Peirano entre duasformas de se considerarem as populações indígenas em relação a um contextomais amplo. Segundo a autora, tais populações podem ser consideradas comoíndios no Brasil ou índios do Brasil. Valendo-se desta distinção, o autor procu-ra demonstrar como as análises dos contatualistas se aproximam muito mais daprimeira formulação do que da segunda. Desta forma, segundo ele, os compo-nentes dessa escola estariam fazendo muito mais uma “sociologia do Brasil”do que uma antropologia indígena.

Viveiros de Castro indica que, durante algum tempo, a etnologia brasileirafoi vista através de prismas dicotômicos. Por um lado, haveria enfoques suposta-mente direcionados às “dimensões internas” das populações indígenas; por outro,enfoques que procurariam trabalhar com os processos de “contato interétnico”.

Fazendo uso de uma perspectiva deste tipo, o autor destaca que, segundo oscontatualistas, as análises realizadas pela etnologia clássica supostamente se limi-tariam aos aspectos “internos” das sociedades indígenas em detrimento dos as-pectos “externos”. No entanto, Viveiros de Castro procura frisar que esta distin-ção entre “interno” e “externo” é algo que não se pode aplicar. Para as socieda-des indígenas com as quais tem trabalhado, o que na óptica do etnólogo aparente-mente poderia ser considerado como algo externo a tais populações, seria algoque, na verdade, seria apreendido pela cultura de tais populações como um ele-mento interno. Assim, essa crítica, segundo ele, não teria qualquer fundamento.

6 Neste trabalho adoto determinados termos, que Viveiros de Castro utiliza para diferençar as duasperspectivas que estão em oposição neste debate. Utilizo os termos “etnologia clássica” e “etnologianão contatualista” como sinônimos, e em contraposição a estes, os termos “etnologia do contato”e “etnologia contatualista”.

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Segundo Viveiros de Castro, a etnologia não-contatualista não teria deixadode se ocupar daquilo que, na perspectiva de Oliveira, corresponderia ao que eledenomina como “aspectos externos”. Assim, a questão do contato interétnicoteria sido incorporada pela etnologia não-contatualista, como parte das cosmologiasnativas das populações com quem esteve trabalhando. Em suas próprias palavras,

A dita “etnologia clássica”, assim, incorporou a questão do con-tato interétnico, valendo-se dos conhecimentos que viera acu-mulando desde as décadas anteriores. O tema da transforma-ção foi dissociado da teoria do “acamponesamento” [...] e deoutras objetivações igualmente redutoras, passando a se inscre-ver no plano mesmo dos pressupostos sociocosmológicos dosregimes nativos. [...] Enquanto os etnólogos do contato estavampreocupados em sublinhar os processo homogeneizadores quesubmergiriam os arbitrários culturais indígenas em uma condi-ção de ‘indianidade’ genérica, os etnólogos estruturalistas daAmazônia não se contentaram em produzir descriçõesparticularizantes de sistemas discretos, mas logo buscaramrestabelecer a continuidade entre os diversos sistemasindígenas [...] e situar os processos de articulação entre‘instituições nativas’ e ‘instituições coloniais’ nesse qua-dro histórico-sociológico nativo (VIVEIROS DE CASTRO,p.143, 147-148, grifos meus).

Porém, em virtude do enfoque dicotômico a que nos referimos acima, queconsiderava a existência de uma oposição ou polaridade entre as duas etnologias,muitas vezes a “etnologia contatualista” foi considerada como a vertente verda-deiramente comprometida com a luta indígena. Assim, em contrapartida, a cor-rente da qual Viveiros de Castro faz parte teria sido considerada como uma “an-tropologia colonialista”, que inclusive utilizaria certos paradigmas tidos por al-guns como “suspeitos”.7

7 No que diz respeito à utilização de instrumentais analíticos “importados” e supostamenteinadequados às populações autóctones situadas no Brasil, o autor ressalta que apesar de ter,utilizado certos modelos etnológicos produzidos por pesquisadores de outras regiões (África eOceania), a antropologia – clássica – brasileira ao constatar, através da realização dos trabalhos decampo, que a realidade empírica exigia a elaboração de novas ferramentas analíticas mais apropria-das, teria operado uma “crítica amazonizante” destas linguagens, o que teria propiciado um grandeavanço na antropologia americanista como um todo.

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No entanto, Viveiros de Castro destaca que, apesar da escola contatualistase valer dessa oposição entre as duas etnologias, reivindicando para si certaexclusividade explicativa, e afirmando-se como a epistemológica e politicamentemais correta, os seus resultados teriam sido muito pobres, quando comparadosaos dos etnólogos não-contatualistas.

Quanto à reformulação do instrumental analítico que Oliveira admite terrealizado, Viveiros de Castro destaca, dentre outros pontos, que esse autor esta-ria insistindo em continuar utilizando certas distinções ultrapassadas, como, porexemplo, aquela entre “etnologia dos ‘índios puros ou isolados’ versus a dos‘índios aculturados ou camponeses’”. Essa distinção desde 1980 teria deixa-do de fazer qualquer sentido. Em relação a isso, caberia destacar que, apesar deutilizar a noção de “índios misturados” ao longo de seu trabalho, em nenhummomento Oliveira faz menção ao trabalho de GOW (1991) sobre os Piro daAmazônia. Tal “desconhecimento” – se é que se trata disto - se mostra bastanteprofícuo aos seus objetivos, uma vez que, como Viveiros de Castro destaca,nessa obra, Gow teria desconstruído os fundamentos desse tipo de distinção.

As críticas de Viveiros de Castro à reconstrução do instrumental analíticoque Oliveira propõe não se limitam aos pontos acima. Ele destaca que a análisesituacional proposta por Oliveira, apesar de ter se inspirado em Barth, teria seconstituído em uma tentativa frustrada, por parte dos contatualistas, de articular“temas da organização social e de mudança”.

Podemos dizer que as reflexões que Viveiros de Castro faz sobre a análisesituacional praticada pelos contatualistas procuram salientar a existência de umadeficiência muito grave no que diz respeito à articulação entre a cultura dosgrupos analisados e os fatores situacionais. Segundo ele, em tais estudos, a “si-tuação” tende a estar sempre em primeiro plano, enquanto a cultura é vistacomo estando subordinada àquela.

Existem dois fatores neste debate, que considero serem muito importantesno que diz respeito à prática da etnografia. Retomando Oliveira, caberia salien-tar suas observações no sentido da necessidade de:

• levar em consideração, durante a realização de uma análise situacional, ofato de que a interação existente entre as diferentes sociedades se dariano interior de um quadro político preciso, cujos parâmetros estãodados pelo Estado-Nação (OLIVEIRA, 1998, p.56, grifos meus);

• buscar trilhar por um caminho de aproximação entre etnologia e história.Quanto a tais pontos, Viveiros de Castro é muito enfático em contra-argu-

mentar, no sentido de que não seria em virtude da existência de uma situação decontato de uma determinada sociedade indígena com a sociedade nacional quetal situação poderia explicar tudo o que ocorre nessa sociedade.

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Tratando especificamente da questão da história, ele admite que al-guns trabalhos podem ter sido realizados, sem terem dado muita atenção aela. Porém, em sua opinião, isto não desqualificaria as respectivas contri-buições de tais trabalhos. Por outro lado, guardando uma certa analogiacom as suas considerações sobre a situação de contato, ele afirma que ofato de uma sociedade ser apreendida em uma determinada situação histó-rica não torna legítimo buscar nesta as respostas para todas as questões doinvestigador.

Ainda sobre a importância da história, destacada por Oliveira, Viveiros deCastro questiona a forma como os contatualistas a utilizam. Segundo ele, naperspectiva dessa corrente, a história das populações estudadas só passaria aexistir a partir do momento do contato dessas sociedades com os europeus. Emsuas próprias palavras:

... o mundo social ameríndio anterior ao contato com os euro-peus é visto em termos descontinuístas, estáticos e naturalizantes.Como se a história só começasse, para esses povos, a partir domomento em que eles começam a se transformar em apêndicesdo Estado nacional. É só a partir dali que eles se tornam objetivae subjetivamente “desnaturalizados”, isto é, históricos,situacionados, e assim por diante (VIVEIROS DE CASTRO,1999, p.167).

Outro elemento importante nas contraposições que o autor faz em relaçãoa Oliveira diz respeito à forma como este último considera o Estado. SegundoViveiros de Castro, Oliveira peca em sua análise, em atribuir ao Estado umaimportância central quanto à etnogênese de determinadas populações indígenaspresentes no nordeste. Ele ressalta que, na análise de Oliveira, seria como se acultura, ou a “indianidade” de tais populações, “brotasse”, por assim dizer,fundamentalmente da aglutinação de um projeto político em torno de um idealcomum.

Este ponto remete a uma outra questão que considero fundamental naargumentação de Viveiros de Castro: a relação entre cultura e política. Se-gundo Viveiros de Castro, Oliveira teria se proposto a readmitir a cultura nocenário contatualista, mas apenas como uma espécie de “extensão” da polí-tica. Ele afirma que, ao invés de colocar a “política na cultura”, Oliveirateria colocado a “cultura na política”, o que seria um procedimentoquestionável.

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Segundo ele, se um dos principais afãs da etnologia contatualista seria o deprocurar desnaturalizar as categorias antropológicas e os fenômenos sociais,seria necessário também que se fizesse uma desnaturalização da noção de polí-tica. No entanto, em sua óptica, isto seria impossível aos contatualistas, já que,na perspectiva destes, a política seria vista “como uma espécie de éter domundo social, substância mística a mediar universalmente as ações huma-nas” (VIVEIROS DE CASTRO, 1999, p.199).

Um outro ponto importante nas críticas de Viveiros de Castro diz respeito àcentralidade que a noção de territorialização ocupa na análise de Oliveira. En-quanto para a etnologia clássica a relação entre pessoa e grupo étnico seriamediada pelo parentesco, na óptica contatualista o território seria o elemento quemediaria este mesmo tipo de relação entre os índios presentes no nordeste. Vi-veiros de Castro procura demonstrar que, enquanto a etnologia amazônica temcomprovado a transformação de relações territoriais em relações de parentes-co8, Oliveira estaria procurando elaborar um modelo no sentido contrário.

Entretanto, a emergência desse modelo “alternativo”, por assim dizer, ao daetnologia clássica, por parte de Oliveira, pode ser considerada na perspectiva adota-da por Viveiros de Castro, como sendo fruto do modo incorreto pelo qual Oliveiraenfoca o território. Tal enfoque não permitiria visualizar a existência e a operação dedeterminadas linguagens e práticas do parentesco, que ficariam ocultas, em razão deuma importância excessiva atribuída ao território. Em suas próprias palavras,

No caso do modelo que Oliveira parece estar concebendo paraos índios do Nordeste, é o parentesco que se converte em terri-tório. [...] Parece haver, entretanto, um discurso e uma práticado parentesco nas comunidades nordestinas, mas infelizmenteficamos sabendo muito pouco sobre isso, porque na visão deOliveira o território engloba o parentesco a ponto de eclipsá-lo(VIVEIROS DE CASTRO, 1999, p.196-197).

Finalmente, para Viveiros de Castro, o tema da “viagem da volta”, menci-onado por Oliveira, seria bastante sugestivo para se pensar em outros tipos de“retorno”. Ele seria aplicável principalmente no que diz respeito a uma “viagemde volta da escola brasileira de etnologia ao país da cultura”. No entanto,o percurso trilhado por Oliveira no sentido de reformular seu instrumental teóri-co-analítico estaria ainda bastante longe do que Viveiros de Castro considerariacomo sendo o verdadeiro ponto de chegada.

8 O trabalho de KAPLAN mostra muito claramente como isto acontece entre os Piaroa.

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Considerações Finais

Uma vez exposta, em linhas gerais, a argumentação de ambos os autores,caberia a nós propor algumas considerações. As perspectivas de Oliveira e deViveiros de Castro dizem respeito a formas muito diferentes de enfoque. Acre-dito que tenha ficado bastante claro que, enquanto o segundo possui uma pers-pectiva antropológica, o primeiro possui uma perspectiva mais sociológica.

Pode ser percebido por parte de Oliveira a intenção de agregar, a uma formajá “tradicionalmente” adotada por autores de sua vertente, outros instrumentais deanálise que lhe possibilitem dar conta, ao menos em parte, de alguns elementospróprios à dinâmica cultural das populações com quem tem trabalhado.

Daí, o interesse em propor a realização de uma análise situacional e odesenvolvimento de uma argumentação sobre etnicidade que, em sua perspecti-va, passaria pela noção de territorialidade.

É importante salientar que, apesar das severas críticas de Viveiros de Castro, aperspectiva de análise adotada por Oliveira não deixa de ter valor explicativo. Em umenfoque sociológico podem ser mapeados os conflitos, assim como as formas atra-vés das quais essas populações têm se articulado com vistas a obter acesso a direitosque lhes são fundamentais, construindo uma certa luta política que se contrapõe aoEstado nacional.

Porém, caberia destacar que, mesmo tendo incorporado alguns elementos deBarth, a argumentação de Oliveira acaba indo numa direção bastante diferenciadaem relação àquele autor. Desta forma, apesar de ter proposto “novos elementos” emseu instrumental analítico, a análise situacional a que se propõe acaba tendo umalcance um tanto quanto limitado, em virtude de continuar adotando um enfoquebastante centrado na questão do contato interétnico e na importância da territorialidadecomo fator praticamente exclusivo da etnogênese que procura analisar.9

No entanto, se existem certas limitações por parte do que talvez se possamencionar como uma sociologia indígena desenvolvida por Oliveira, a realiza-ção de um bom trabalho etnográfico deve levar em conta a necessidade dereconhecer que, apesar do antagonismo entre ambas as perspectivas, nenhumadelas consegue, sozinha, dar conta de uma suposta “totalidade”.

Sem querer voltar à dicotomia entre “elementos internos” e “elementosexternos”, uma análise antropológica adequada, em muitos casos, de acordocom o objeto que a constitui, tem que se valer de um enfoque que permitaapreendê-lo sob mais de um ângulo.

Assim, ambas as perspectivas de análise podem constituir um quadro depossibilidades analíticas a ser utilizado pelo investigador em conformidade comas peculiaridades de seu objeto de estudo.

9 O trabalho desenvolvido por Gluckman na Zululândia poderia servir como exemplo da fecundidadedeste tipo de análise.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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LEITURA E COMUNICAÇÃO

* Lealis Conceição Guimarães

RESUMO

Sabe-se que atualmente, no Brasil, o mercado de trabalho valoriza muito o profis-sional que consegue agregar aos seus conhecimentos específicos a facilidade de co-municação através da expressão, escrita e oral, em língua portuguesa. Em vista disso,este texto apresenta algumas considerações básicas sobre a organização das idéiaspara que se efetive a comunicação pela palavra, seja ela escrita ou oral. O ponto departida para qualquer manifestação do pensamento é o domínio do assunto, o queevidencia a importância da leitura para reforçar e embasar o conteúdo expresso.

PALAVRAS-CHAVE: Leitura; Comunicação; Organização de Idéias.

ABSTRACT

Nowadays, in Brazil, the job market values the professional able toincorporate communicative (written or oral) skills in the Portuguese language tohis/her specific knowledge. Considering that, this text presents some basicconsiderations of ideas to make communication through words (in written or oralcontexts) more effective. The starting point is presenting a good command ofthe subject which makes evident the importance of reading in order to reinforceand give support to the content.

KEY-WORDS: Reading; Communication; Organization of Ideas.

INTRODUÇÃO

A comunicação objetiva, primordialmente, o entendimento entre as pesso-as. Ela tem papel preponderante em toda sociedade, seja na forma não-verbal,com gestos, sons, imagens ou outros, seja na verbal, com a oralidade ou o seucódigo substitutivo escrito. Isso porque, desde os tempos imemoriais, o homememprega, em primeiro lugar, a expressão oral e depois a escrita.

* Docente da UniFil.Docente da UNOPAR - Universidade Norte do Paraná.Mestre em Letras.Doutoranda em Letras pela UNESP – Universidade Estadual Paulista, campus de Assis, SP.E-mail: [email protected]

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Sabe-se que atualmente, no Brasil, o mercado de trabalho valoriza muito oprofissional que consegue agregar aos seus conhecimentos específicos a facili-dade de comunicação através da expressão, escrita e oral, em língua portugue-sa. Em vista disso, pretende-se apresentar, neste artigo, algumas consideraçõesbásicas sobre a importância da organização das idéias para que se efetive acomunicação, seja ela escrita ou oral.

Como a maioria das categorias profissionais tem necessidade de associar odomínio da expressão escrita com a oral, é obrigação de quem se prepara parater boa atuação no mercado atender às exigências deste. Para um profissionalqualificado, a comunicação através da expressão verbal pode ser, muitas vezes,a chave para abrir ou fechar o mercado de trabalho. Ela funciona como umdiferencial competitivo para se granjear uma imagem positiva sobre si mesmo.

Em virtude disso, o desafio é saber empregar os vocábulos certos, a concor-dância, a regência e a pontuação ou entonação adequadas para expressar as idéiasde maneira clara, concisa e criativa, nas formas escrita ou oral, de acordo com asituação. Apesar da rapidez característica dos tempos modernos, em todos os seto-res, ainda não existem fórmulas mágicas para aprender a falar e escrever bem.

Antes de tudo, importa a conscientização de que se deve ter muita paciên-cia e boa vontade para romper determinadas barreiras criadas em torno do apren-dizado da língua portuguesa no Brasil. Sob a alegação de que a língua portuguesaé muito difícil, não se procura vencer as dificuldades encontradas para adquirir odomínio da escrita e da fala.

Tal justificativa não tem fundamento, tendo em vista o grande número depessoas que se preocupa com falar e escrever fluentemente uma língua estran-geira (difícil ou não), preterindo a língua materna, usada para se comunicardiuturnamente. Esquece-se de que a língua portuguesa é a língua oficial do Bra-sil e também a representação da cidadania do seu povo.

A comunicação e a expressão verbal

A comunicação expressa corretamente é fundamental para se transmitiremos sentimentos, as opiniões e a visão de mundo de cada um, visando a compartilharmodos de vida e comportamentos, estabelecidos por regras de caráter social. Alinguagem da comunicação é instrumento necessário à interação humana, é elaque vai situar o homem em determinado espaço social e mercadológico.

Toda mensagem, escrita ou oral, é dirigida a um destinatário, em certomomento, e manifesta-se marcada pela originalidade do estilo. A propósito, opesquisador francês Francis VANOYE, em seu livro Usos da linguagem (1998),ao comentar problemas da linguagem e propor técnicas para a produção oral eescrita, destaca a diversidade dos tipos precisos de linguagem para atingir de-

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terminados objetivos. Assim, a eficiência da comunicação é caracterizada pelaexpressão pessoal construída entre as regras lingüísticas estabelecidas e as mar-cas da mensagem individual. Isso se aplica tanto à expressão escrita quanto à oral.

De modo geral, a oralidade é mais espontânea que a escrita e tem o poderda comunicação imediata, enriquecido pela pronúncia, pela entonação, pela me-lodia, pelo timbre da voz, pela acentuação e pela expressão corporal. A formacomo se processa o ato da comunicação através da palavra falada muitas vezesdetermina o sucesso ou o fracasso de um profissional, na medida em que oemprego das palavras na manifestação das idéias, complementado pelo tom devoz, pela expressão corporal e pelo modo de se vestir, fica registrado como suamarca na sociedade em que vive.

As pessoas precisam aprimorar o seu conhecimento sobre a utilização daspalavras, já que é por meio delas que revelam pensamentos e ações, constituindo-se um dos mecanismos da comunicação do ser humano com o mundo que o cerca.

Percebe-se, por exemplo, que as pessoas menos instruídas, normalmente apre-sentam mais dificuldade de comunicação, pois têm um vocabulário mais limitado e, emconseqüência, menos recursos de expressão verbal do que outras com mais preparointelectual. Porém, isso não é tudo, uma vez que o relacionamento entre as pessoas, pormeio da expressão oral, conta com a ajuda de algumas estratégias, como o olhar, ogesto e a postura, além do bom conteúdo, para impressionar o ouvinte.

Entretanto, para se atingir um nível intelectual mais elevado, na comunica-ção escrita ou oral, há que se vencer um dos maiores problemas, que consiste nafalta de conteúdo e de organização das idéias. A preocupação deve centrar-sena qualidade e não na quantidade da leitura, isto é, na seleção do que se lê ecomo se lê, procurando-se fazer análise crítica positiva ou negativa.

A eficácia da comunicação deve-se, em grande parte, à leitura. Trata-seaqui da leitura num sentido amplo, ou seja, da percepção do mundo pelo leitor maisatento. Isso não exclui a necessidade da leitura de textos, que dá sustentaçãolingüística e acrescenta conhecimentos aos adquiridos na observação cotidiana.

Em 9 de junho de 2002, no caderno “Classificados”, a Gazeta do Povoveiculou a seguinte propaganda do próprio jornal: Quem lê tem mais a dizer(p.17). As palavras do anúncio ilustram bem a proposição: precisa-se ler mais,informar-se para ter condições intelectuais de reagir diante dos fatos que inco-modam de algum modo. Não se pode ter uma atitude passiva diante da vida.

Por outro lado, levantamentos estatísticos veiculados recentemente pelamídia concluíram que os brasileiros lêem pouco. Em vista disso, a realidade lin-güística do país, em especial do jovem, tem sido muito criticada. Após os resulta-dos do último exame do ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio), o Ministroda Educação reconheceu que o maior problema dos alunos, que estavam termi-nando o ensino médio, era a falta de leitura.

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No entanto, já faz algum tempo que, em todo o território nacional, divul-gam-se campanhas de incentivo à leitura. Observa-se, então, que algo estáerrado no ensino. É necessário conhecer a realidade educacional brasileirapara que sejam compreendidos os motivos de tal defasagem.

A solução para o problema está não só na leitura freqüente de livros, revis-tas ou jornais bem escritos, mas principalmente no exercício da capacidade deentender e selecionar informações, interpretá-las em determinado contexto etirar as próprias conclusões. Enfatizando tal aspecto, SAVIOLI & FIORIN (1996)afirmam:

Ler com proficiência implica ser capaz de apreender os sig-nificados inscritos no interior de um texto e de correlacionartais significados com o conhecimento de mundo que circulano meio social em que o texto é produzido (p.3).

Como se vê, há um conjunto de atitudes que completam o ato de ler edevem se tornar hábito, por serem de extrema importância para o alcance damaturidade lingüística na sustentação de um ponto de vista, através da exposiçãoescrita ou oral do pensamento.

O aprendizado eficiente da leitura não cessa, uma vez que quanto mais selê, mais conhecimento se adquire. É importante enfatizar a comunhão entre aleitura das palavras e a leitura do mundo, com a cumplicidade do leitor que tran-sita de um plano a outro. Nesse processo, deve-se levar em conta a diferençaindividual. Não há uma leitura convencionada e inquestionável, há várias delas.Dependendo da interação do leitor com o texto, podem surgir novos significados,desde que acompanhados de argumentação consistente.

O leitor competente é crítico, porque consegue captar as informaçõesimplícitas estabelecidas pelos pressupostos e subentendidos, as relaçõesintertextuais e situar o texto nos contextos social e histórico. Assim, ele constróia própria leitura, reconhecendo e/ou confrontando as ideologias apresenta-das. Para chegar a esse estágio, precisa-se de constante treino da capacida-de de ler o mundo antes de ler a palavra. A importância do processo deleitura é tamanha que se pode considerar realmente alfabetizado só quemconsegue compreender e interpretar o que lê, interagindo com a proposta doautor.

Para se conseguir uma leitura eficaz, importa exercitar a paciência e aatenção. Nunca é demais reafirmar que é primordial passo fazer, pacientemente,a leitura atenta do texto para compreendê-lo bem, antes de interpretá-lo, oumelhor, de opinar sobre ele.

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Num teste seletivo escrito, por exemplo, há que se considerar, ainda, aobediência aos comandos das questões. Já numa entrevista ou qualquer outrotipo de expressão oral, a atenção deve estar centralizada nas perguntas feitas, ouno assunto que deverá ser explanado, para que se responda ou se fale de acordocom o que foi solicitado.

Ao se comunicarem idéias e argumentos pela expressão oral ou escrita, énecessário ter criatividade, empregar linguagem simples e correta, evitando-seos chavões ou textos pré-fabricados, isto é, em todas as circunstâncias, as pala-vras devem compor uma mensagem clara, objetiva e concisa, e apresentar ascaracterísticas individuais do emissor. O bom uso das palavras constitui a estru-tura dinâmica da comunicação humana envolvente. O poder da palavra podeservir para destruir ou para criar algo ou alguém, conforme o modo negativo oupositivo em que for empregado.

A comunicação de sucesso deve considerar alguns quesitos essenciais,como: conhecimento do assunto (o quê?), objetivo (para quê?), público alvo (paraquem?), ambiente (onde?) e modo de transmissão da mensagem (como?).

Quanto à comunicação oral, de modo geral, o improviso causa boa impres-são na comunicação oral, tendo em vista seu caráter mais espontâneo que o daescrita. No entanto, é muito importante o planejamento para que uma exposiçãooral alcance o objetivo a que se propõe.

É evidente que o ponto de partida para qualquer manifestação do pensa-mento, oral ou escrita, é o domínio do assunto, o que comprova a importância daleitura para reforçar e embasar o conteúdo apresentado. Mattoso CÂMARAJÚNIOR (1986), quando comenta sobre a relevância de um plano para a expo-sição oral, enfatiza que esse trabalho preliminar exige alguns cuidados, como:

1º) determinar o que vamos dizer e consolidar nosso conhecimento a res-peito, através de reflexões e pesquisas;

2º) organizar a distribuição do assunto da maneira que nos parecemais interessante, clara e impressiva (p.46).

Tais procedimentos são indicados pelo autor como essenciais, uma vez queas reflexões e pesquisas necessárias para a expressão das idéias fundamentam-se na leitura, entendida no seu sentido mais amplo, não apenas como adecodificação de letras.

Tanto a expressão escrita como a oral exigem o aprendizado de habilidadesque as pessoas podem adquirir ou desenvolver, dependendo da necessidade. Adiferença é que a oralidade caracteriza-se pela espontaneidade, por provocar ainteração instantânea entre emissor e receptor. Isso significa que a reação doouvinte é percebida imediatamente.

Assim, para falar em público, principalmente em situações, como debates,

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entrevistas, palestras, discursos ou reuniões de trabalho, é muito importante de-senvolver a confiança em si mesmo para dominar o medo. A falta de coragemde enfrentar a platéia é comum à maior parte das pessoas, principalmente às quenão estão acostumadas com a situação. Entretanto, isso pode incentivar positi-vamente a pessoa a buscar aprimoramento.

Para conseguir êxito numa exposição oral, deve haver a preparação de acordocom o objetivo que se pretende alcançar. O profissional que não se prepara para umaapresentação, por mais simples que seja, pode provocar efeitos desastrosos para suaimagem. Diante disso, é importante falar apenas sobre o que realmente se sabe porcompetência adquirida na prática e complementada por estudos.

Em geral, a exposição oral enfoca um ou mais objetivos, como divertir,informar ou persuadir. A arte de falar em público consiste em combinar, combom senso, os elementos citados, de maneira sedutora e interessante. O ideal éilustrar a exposição, mesclando-a com a narração de pequenos fatos e a forçada retórica, de modo equilibrado.

Uma palestra bem feita é uma ótima oportunidade de se transmitir umamensagem, empregando a fala cuidadosamente elaborada para se persuadir al-guém a fazer ou acreditar em algo. Pode ser uma excelente estratégia demarketing pessoal. A comunicação oral é a que tem mais condições de revelara personalidade humana, já que valoriza, além do domínio do assunto, a seguran-ça demonstrada através da postura, dos gestos, do olhar e da voz.

Existem técnicas de comunicação verbal que têm como objetivo transmitirinformações práticas e funcionais sobre como falar bem em público, expondo suasidéias de maneira interativa e dinâmica. Todas elas ressaltam que o plano geral deuma exposição oral consiste em definir claramente o assunto e a meta (ou asmetas) que se deseja alcançar, conforme a necessidade do público. Em seguida,parte-se para um planejamento mais específico em que se determina a estruturada apresentação, ou seja, o quê, como e por que apresentar. Como assinala WEISS(1991), as metas dão direção e estilo à sua apresentação; a estrutura a tornaeficaz (p.19). Assim se manifesta o caráter pessoal de cada palestrante.

Após o trabalho prévio acima descrito, começa-se a preparar a exposiçãooral propriamente dita. O primeiro passo é deixar-se absorver pelo tema epesquisar em livros, revistas, jornais, e até conversar com especialistas. Depoisvem a etapa da listagem das idéias para que possam ser organizadas em pro-gressão discursiva.

As frases devem ser ditas, de preferência, em ordem direta, cuidando-separa não empregar termos com sentido ambíguo. O vocabulário é o responsávelpela tradução das idéias, por isso a simplicidade, a clareza e a adequação aoauditório são qualidades imprescindíveis a ele. Não se pode esquecer de que, no

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caso, o texto é para o ouvido e não para os olhos. Karen KALISH, em seu livroComo fazer apresentações espetaculares (2000), esclarece:

Escrever para os olhos é escrever um artigo, uma carta,um editorial ou um relatório – algo que será lido. Es-crever para os ouvidos é escrever algo que será ouvidona televisão, no rádio, ou em palestra ou apresentação(p.10).

Dependendo do tipo de apresentação, o texto pode ser apenas umroteiro ou sumário, onde constem a tese, ou introdução, o desenvolvimentoem tópicos e o encerramento, ou conclusão. A tese é a parte principal,visto que é a partir dela que o orador consegue a simpatia ou a antipatia dopúblico.

A introdução deve apresentar a proposta de trabalho de forma a cau-sar impacto e induzir o ouvinte à reflexão, despertando nele a curiosidadepara acompanhar a palestra. Deve-se ter o cuidado de estimular a platéia aparticipar. A empolgação do palestrante também faz que o auditório seanime e participe, interagindo com o olhar, a expressão facial, os gestos e apostura.

Todas as decisões referentes à montagem da palestra dependem de quemvai expor. A interpretação que o conferencista (emissor) faz das necessidadesda audiência (receptor) vai determinar a construção da parte central da apresen-tação.

O desenvolvimento do trabalho normalmente será conseqüência de umatese bem demonstrada. Nessa fase, há várias etapas até se comprovar que oponto de vista preestabelecido na tese é verdadeiro. Para isso, às vezes, épreciso conduzir o auditório, em gradação ascendente, a rápidos momentosde falsos clímax, com o intuito de mantê-lo sintonizado no que se está falan-do.

O encerramento, ou conclusão, como todas as outras partes de um discur-so ou apresentação, deve ser planejado antecipadamente. Consiste nareapresentação da tese introdutória aliada à retomada de outras idéias importan-tes sobre o assunto, arroladas no desenvolvimento. A conclusão, que deve servibrante, é o golpe final que o orador lança sobre a platéia para vencê-la defini-tivamente.

O brasileiro Reinaldo POLITO (1999), especialista em ensino da expres-são verbal oral, destaca como o palestrante deve encerrar seu trabalho:

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Reafirmará os principais pontos da argumentação, valori-zando o conteúdo da mensagem e afastando eventuais in-disposições remanescentes na platéia. Levará os ouvintes àreflexão, tratará de persuadi-los e orientá-los para a ação.Colocará todo o vigor e competência a fim de cumprir osobjetivos estabelecidos no plano do discurso, ou seja, co-mover e convencer o auditório (p.178).

Aqui se atinge o verdadeiro clímax. Aconselha-se a fazer, em poucas pala-vras, um resumo do discurso para avivar a memória das pessoas presentes.A eficácia de uma comunicação oral mede-se também pela aparência física doapresentador, pela linguagem do corpo, pela expressão facial e pela entonaçãovocal. A maneira como se porta diante do público e como se dirige a ele determi-nam a avaliação positiva ou negativa. O equilíbrio e o bom-tom sugerem umavestimenta igual ou ligeiramente melhor que a do público, dispensando-se osexageros, como gravatas extravagantes (homens) ou brincos muito grandes, sai-as muito curtas, justas, etc. (mulheres).

Outros aspectos considerados fundamentais para conseguir um bom rela-cionamento com os ouvintes são: a freqüência do contato visual com as pessoasda platéia, o que revela sinceridade; e a atenção ao tempo da exposição, sinal derespeito. Às vezes, pode-se perder um importante negócio se não for observadoo critério do tempo disponível para falar e ser ouvido com atenção.

Quanto aos recursos audiovisuais, sua função é ilustrar uma mensagem,com o objetivo de prender a atenção dos receptores, facilitar a sua compreensãoe fazê-los reter as informações por mais tempo. É importante utilizar os recursosapropriados à circunstância, levando-se em conta os ouvintes, a acústica, a visãoe o tamanho do ambiente da apresentação. Recomenda-se, ainda, não usá-losdemais e não iniciar ou finalizar uma palestra com eles.

Ao escrever neles, as frases devem ser curtas, digitadas com letras gran-des e legíveis por todas as pessoas do recinto. Quanto ao número de linhas,aconselham-se, no máximo, seis linhas, se o visual for no sentido horizontal, enove linhas, se vertical. Não se deve esquecer de que muitas linhas escritasdesviam a atenção do espectador e, em conseqüência, atrapalham o entendi-mento da mensagem. Num sentido ou no outro, as palavras têm que ser escritassempre na horizontal para tornar fácil e rápida a leitura. Já as imagens coloridas,se não forem usadas com exagero, em geral enriquecem uma exposição oral eagradam a platéia.

Independentemente da situação, salienta-se que os recursos aqui citadosconstituem apenas material de apoio à comunicação oral.

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Considerações finais

Como se observa, a maior parte dos erros cometidos na comunicação oralou escrita refere-se à falta de preparação individual. Para evitar isso, convémmanter-se atualizado através de leituras de livros, jornais, revistas, além de fre-qüentar cursos e assistir a documentários e palestras interessantes.

O profissional brasileiro qualificado precisa ter consciência de que demons-trar organização de idéias e conhecimento da língua materna, tanto na expressãoescrita como na oral, determina a sua valorização no mercado de trabalho. Ade-mais, não há como esquecer que dominar a língua portuguesa, mais que umdever e um direito do cidadão brasileiro, é uma demonstração de patriotismo e deorgulho próprio.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDRADE, Maria Margarida de. Comunicação em língua portuguesa: paraos cursos de jornalismo, propaganda e letras. São Paulo: Atlas, 2000.BELL, Gordon. Segredos para ser bem-sucedido em discursos e apre-sentações. Trad. Antônio Carlos R. Serrano. São Paulo: Nobel, 1992.CAMARA JÚNIOR, Joaquim Mattoso. Manual de expressão oral e escri-ta. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.CARNEGIE, Dale. Como falar em público e influenciar pessoas no mun-do dos negócios. Trad. Carlos Evaristo M. Costa. Rio de Janeiro: Record,2001.FIORIN, José Luiz & SAVIOLI, Francisco Platão. Lições de texto: leitura eredação. São Paulo: Ática, 1996._______. Para entender o texto. São Paulo: Ática, 1998.KALISH, Karen. Como fazer apresentações espetaculares. Trad. MarceloFilardi Ferreira. Rio de Janeiro: Campus, 2000.POLITO, Reinaldo. Como falar corretamente e sem inibições. São Paulo:Saraiva, 1999._______. Recursos audiovisuais. São Paulo: Saraiva, 1995.PROPEG. Quem lê tem mais a dizer. Gazeta do Povo. Curitiba, 9 jun. 2002,Classificados, p.17.VANOYE, Francis. Usos da linguagem. Trad. Clarisse Madureira Sabóia. SãoPaulo: Martins Fontes, 1998.WEISS, Donald. Como falar em público. Trad. Marta Mortara. São Paulo:Nobel, 1991.

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PAIS DE FAMÍLIAS ORIGINAIS E DE FAMÍLIASSEPARADAS: UM ESTUDO COMPARATIVO DAS

PRÁTICAS EDUCATIVAS E DORELACIONAMENTO COM OS FILHOS

*Sílvia Cristiane Murari**Carmen Garcia de Almeida

RESUMO

As profundas transformações que a instituição família vem sofrendo ao longodos anos são analisadas no presente trabalho. Em função destas mudanças, dificul-dades são experimentadas pelos pais em seu papel de educadores. Com o objetivode investigar aspectos do relacionamento familiar e algumas práticas utilizadas naeducação dos filhos, foi realizada uma pesquisa com 145 pais de famílias originais(FO) e 49 de famílias separadas (FS). Para a coleta de dados foram utilizados 2questionários, um para FO, contendo 16 questões, e um para FS contendo 18 ques-tões. A análise dos dados mostrou semelhanças nos resultados obtidos pelos pais nasduas condições, sendo o diálogo a estratégia mais utilizada, tanto por pais FO quantoFS, para resolução de problemas. Embora pareçam existir investimentos por partedos pais, o que pode facilitar a comunicação com os filhos também, parece faltar-lhes conhecimento e habilidades para uma análise efetiva das estratégias por elesselecionadas. Finalmente, é necessário que a sociedade seja informada sobre o campode atuação e possibilidades da Psicologia, ao mesmo tempo em que tenha acessoaos conhecimentos produzidos pela análise do comportamento.

PALAVRAS-CHAVE: Separação Conjugal; Relacionamento Pais- Filhos; Práticas Educativas; Família.

ABSTRACT

The deep changes the family institution has been going through along the yearsare analyzed in the present article. Due to such changes, difficulties are faced byparents on their role as educators. Aiming at investigating aspects of the familyrelationship and some practices employed in the upbringing of children, a survey wascarried out with 145 parents in original families (OF) and 49 parents in divorced

* Psicóloga. Docente da Universidade Estadual de Londrina. Mestranda em Psicologia.** Docente da UniFil.Doutora em Psicologia.E-mail: [email protected]

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families (DF). In order to gather data, two question forms were used: one forOF, with 16 questions, and another with 18 questions for DF. The data analysisshowed similarities in the results on what concerned the parents in both situations:the dialogue is the most employed strategy by both OF and DF parents in order tosolve problems. Although there seems to exist investments by parents, which mayfacilitate communication with children, parents seem to lack knowledge and abilitiesfor an efficient analysis of the two strategies selected by them. Finally, it’s necessarythat society be informed about the possibilities and field of action of Psychology and,at the same time, have access to the knowledge produced by the behavior analysis.

KEY-WORDS: Divorce; Parents-Children Relationship; Educational Practices; Family.

1 - INTRODUÇÃO

A família é o conjunto das relações entre seus membros através dos tempos,considerando-se as influências socioculturais de cada época histórica, incluindoquestões referentes aos valores, à educação e ao papel do homem na sociedade,que delineiam as relações familiares de diferentes maneiras. Assim, as profundastransformações sociais que a instituição família vem sofrendo ao longo dos tempostêm sido alvo de investigação em diferentes áreas do conhecimento.

Segundo MORAES (1997), todas as mudanças, sejam elas pessoais ousociais, geram novas contingências e isso, por sua vez, pode gerar conflitos. Oquestionamento dos modelos tradicionais de família, herdados das gerações denossos antepassados, o aparecimento de novas teorias de educação e a sociali-zação do conhecimento referente ao desenvolvimento psico-sócio-afetivo hu-mano caracterizam, por assim dizer, as novas contingências, e os conflitos ca-racterizam-se pelo não saber “o que” e “como” melhorar a educação dos filhos.WAGNER e cols. (1998) ressaltam que as práticas educativas utilizadas pelospais no processo de instrução e educação dos filhos implicam diretamente nadeterminação das características comportamentais, sendo a disciplina familiarum processo fundamental na socialização destes últimos.

Na tentativa de melhorar a educação dos filhos, os pais procuram, nasfontes de conhecimento disponíveis, estratégias a serem seguidas. Livrarias, re-vistas, TV estão inundadas com materiais que explicitam os estágios de desen-volvimento e os passos de como agir. Muitas vezes essas informações acabampor comprometer as soluções, mantendo uma prática de seguimento de regrasque, na maioria das vezes, retrata o fracasso dos pais na construção de práticaseducativas. Dos estágios de desenvolvimento humano, o que parece receber

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maior atenção, por causar maior dificuldade de compreensão por parte dos pais,é o da adolescência. Na opinião de ZAGURY (1991), os pais modernosdisponibilizam informações diversificadas, mesmo que de forma leiga ou nãoespecializada. O importante, contudo, é saber como estão usando essas informa-ções. Eles precisam entender as estratégias selecionadas, e não simplesmentesegui-las por estarem em um livro. Entendê-las significa responderdiscriminativamente aos comportamentos que afetam o comportamento dos ou-tros, gerando conseqüências que, por sua vez, voltam a afetar seus próprioscomportamentos. Este processo é complexo, mas, por outro lado, é objetivo,evitando as explicações do tipo “não tem jeito mesmo, isso faz parte da suanatureza”, “puxou ao pai, ou ao avô, ou à tia ...”, que dificilmente levam a mu-danças eficazes. SKINNER (1985) já advertia que, se considerarmos os traçoscomportamentais como inatos, simplesmente emergindo em determinada fase,não há quase nada a se fazer; mas se sua presença puder ser atribuída a aspec-tos especiais do mundo, os problemas seriam mais fáceis de serem resolvidos.

Tomando por base as informações disponibilizadas, os pais podem cons-truir regras que não são funcionais no estabelecimento das relações familiares.Segundo FÉRES-CARNEIRO (1992), as regras familiares são uma importantevariável no funcionamento da família, desde que sejam coerentes, flexíveis eexplicitamente discutidas, facilitando assim o desenvolvimento emocional saudá-vel de seus membros. Desta forma, o contexto familiar influenciado por contex-tos culturais é mantenedor e modificador de comportamentos, quer sejam estesadequados ou não (ROCHA e BRANDÃO, 1997).

Ao enfatizar as relações familiares como fator importante da interaçãopais-filhos e do processo educacional, automaticamente surgem consideraçõescom relação às diferenças entre famílias originais e famílias separadas. Estasúltimas são muitas vezes consideradas como um contexto diferenciado respon-sável por desajustes no desenvolvimento dos filhos que nela se desenvolvem.Vimos, assim, a separação conjugal como a grande vilã dos problemas dos filhos(TASCHANN 1989; TEYBER e HOFFMAN, 1987; GIUSTI,1987).

EMERY (1988) afirma, entretanto, que, apesar da separação estar associ-ada a conseqüências negativas para os filhos, aqueles que apresentam proble-mas não são necessariamente filhos de famílias separadas (apud AMATO eKEITH, 1999). Atualmente, vem sendo combatida a percepção usual de que,em lares desfeitos, pais e filhos apresentam mais problemas do que em laresoriginais. Deste modo, o trabalho objetiva verificar a percepção de pais de Famí-lias Originais e Famílias Separadas quanto ao relacionamento com filhos, bemcomo a utilização de algumas práticas educativas. Os dados serão comparadose, então, será verificado se há diferenças nas condutas dos dois tipos de paiscom relação a seus filhos.

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2 - Metodologia

O início da pesquisa deu-se a partir de uma lista de escolas públicas eparticulares cedida pelo Núcleo Regional de Ensino de Londrina. Desta, reali-zou-se o sorteio de duas escolas, uma particular e uma pública, que foram con-sultadas sobre o interesse e a possibilidade de realização da pesquisa na institui-ção. A população foi contatada pelas escolas através dos filhos estudantes.

O universo pesquisado consistiu de 145 pais, sendo 96 de famílias originaise 49 de famílias separadas. Famílias originais (FO) foram consideradas aquelasque mantêm o 1º casamento, coabitando em domicílio conjugal, na companhiados filhos. Famílias separadas (FS) foram consideradas aquelas cujos pais esta-vam separados de seus cônjuges por um período mínimo de 6 meses e que man-têm a guarda dos filhos.

Para a coleta dos dados foram utilizados dois questionários, um para FO, con-tendo 16 questões, e um para FS, contendo 18 questões. Ambos os questionáriosforam compostos de questões fechadas de múltipla escolha, que abordavam aspec-tos do relacionamento familiar e de algumas práticas utilizadas na educação de filhos.

3 - Resultados

A análise dos dados foi realizada a partir do levantamento e comparaçãodas porcentagens das respostas dos sujeitos com relação a cada variável doestudo, apresentadas nas figuras que seguem.

Figura 1: Como é o relacionamento com seu filho?A. Estou satisfeito com a forma como conversamos.B. Consigo expressar todos os meus sentimentos.C. Eles percebem o que estou sentindo mesmo que eu não fale.D. Quando estou com dificuldades posso, contá-las a ele.

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Os dados da Figura 1 mostram que 56% de pais FO e 52% de pais FSestão satisfeitos com a forma com que conversam com seus filhos. Quanto àexpressão de sentimentos tem-se que 44% de pais FO e 48% de pais FS afir-maram conseguir expressá-los a seus filhos. Os dados que seguem, 43,2% depais FO e 54% de pais FS, relativos à percepção do comportamento dos filhossobre seus problemas, mesmo que isso não seja verbalizado, demonstram quea percentagem apresentada pelos pais FS é maior que a dos pais FO. A figuramostra ainda que 48,4% de pais FO e 60% de pais FS podem compartilharsuas dificuldades com os filhos.

Figura 2: Estratégias utilizadas na busca de soluções de problemas com os filhos:A. Busco ajuda e conselho com amigos.B. Busco ajuda com religiosos (grupos, pastores, padres).C. Busco ajuda e conselho com médicos.D. Busco ajuda e conselho com psicólogos.E. Dialogo com meu filho.F. Busco resolver as dificuldades através de palestras ou revistas.G. Deixo para que o tempo resolva.

Na Figura 2, é possível observar semelhanças nas estratégias utilizadaspor pais FO e FS, com pequenas diferenças nos índices percentuais. A es-tratégia mais utilizada tanto por pais FS ( 82%) quanto por pais FO (76,8%)é o diálogo com o filho. Pais FS (18%) recorrem mais aos amigos para auxiliá-los nos problemas com seus filhos do que pais FO (12%). Buscar ajuda juntoa religiosos obteve um índice de respostas praticamente igual entre as duascategorias (15,8% de FO e 16% de FS). No que diz respeito à busca de

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ajuda junto a psicólogos e médicos, é interessante notar a inversão de por-centagens: 14,7% de pais FO e 4% de FS buscam ajuda junto a médicos.Quando investigados sobre a busca de ajuda junto a psicólogos, os dadosmostram que isso ocorre com 7,4% de pais FO e com 12% de pais FS. Estedado parece refletir um estigma criado, e estabelecido, em nossa cultura,tanto em relação a filhos de pais separados quanto à profissão de psicólogo.Pais FO (15,8%) e FS (10%) recorrem ainda a palestras e revistas. Os re-sultados obtidos com relação à estratégia Deixo para que o tempo resolvasão bastante otimistas (3,2% de pais FO e 4% de FS), pois indicam que ospais, mesmo diante de dificuldades, estão buscando alternativas para resolvê-las.

Figura 3: Comportamentos adotados para que o filho cumpra ordens:A. Transmito a ordem de maneira calma, segura e sem gritos.B. Estabeleço uma relação de troca: se a ordem é cumprida, recebe uma

recompensa.C. Estabeleço uma relação de troca: se a ordem não é cumprida. puno de

alguma maneira.

Com relação aos comportamentos dos pais, que se mostram eficientes emfazer com que seu filho cumpra uma ordem, tem-se que 38,9% de pais FO e36% de pais FS relataram ser o transmitir a ordem de maneira calma segura esem gritos. A relação de troca aparece em ambas as configurações como possi-bilidade de ação, sendo que 10,5% de pais FO e 22% de FS recompensam o filhopelo cumprimento de uma ordem, enquanto que 17,9% de pais FO e 24% de FSpunem quando a ordem não é cumprida. Nota-se que os índices de FS são sem-

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pre superiores aos de FO.

Figura 4: Comportamentos adotados quando o filho não cumpre a ordem:A. Bato.B. Impeço que faça alguma coisa de que goste, como ir ao cinema, ao

shopping, assistir TV.C. Brigo, utilizando agressões verbais.D. Ameaço punir.E. Faço chantagem emocional.F. Não faço nada.

A Figura 4 mostra a percentagem de comportamentos punitivos utilizadospor pais quando seu filho não cumpre uma ordem. Os índices percentuais derespostas entre pais FO e FS são bastante próximos. Os dados que se destacammostram que 38,9% de pais FO e 38% de FS afirmam impedir o filho de realizaralguma coisa de que goste, enquanto que, 22,1% e 24% respectivamente, ape-nas ameaçam punir. As agressões verbais estão presentes em 8,4% das respos-tas de pais FO e em 6% das dos pais FS. Agressões físicas, como bater, é asegunda opção mais utilizada por pais FO (32,2%) e a menos utilizada por paisFS (2%). A opção menos utilizada por pais FO (3,2%) refere-se à chantagememocional, sendo que 6% de pais FS assinalaram esta opção. Apenas 4,2% depais FO e 2% de FS não fazem nada quando seu filho não cumpre as ordensestabelecidas.

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4 – Discussão e Conclusões

A análise dos resultados permitiu levantar algumas questões importantesno que diz respeito ao relacionamento entre pais e filhos, tanto em famílias origi-nais quanto separadas. O aspecto que merece maior destaque, de maneira geral,é a semelhança nos resultados obtidos nas duas condições. Esta constatação, aomesmo tempo em que aponta para uma desmistificação quanto ao relaciona-mento em famílias separadas, caracterizado muitas vezes como problemático,pode vir a possibilitar a compreensão das interações, na medida em que podecontribuir para que estas se estabeleçam de forma mais positiva e gratificante.

Outros aspectos que podem ser evidenciados são a utilização do diálogocomo estratégia para a resolução de problemas e a satisfação na forma de con-dução do mesmo. Esses dados precisam ser analisados com cautela, pois elesnão descrevem como o diálogo se dá, ou seja, não explicitam as variáveis envol-vidas no seu estabelecimento e nem os efeitos produzidos. Seria pouco cuidado-so avaliar estes dados positivamente, até porque o uso da punição é uma estraté-gia de controle de comportamento utilizada pelos pais, apesar de já ter sido com-provada como inadequada para se atingir tal objetivo (SKINNER,1998;SIDMAN,1995).

Embora pareçam existir investimentos por parte dos pais, o que pode faci-litar a comunicação com os filhos, parece faltar-lhes conhecimento e habilidadespara uma análise efetiva das estratégias por eles selecionadas. Isso em parteacontece porque a Psicologia ainda é vista de maneira preconceituosa, seja naforma de elitização ( somente quem tem dinheiro vai ao psicólogo para se “co-nhecer”), ou na forma de exclusão (só cuida de “doentes”). Não se conhece aPsicologia como uma ciência natural dedicada ao estudo amplo e complexo dasinterações do homem com seu meio, capaz de produzir tecnologias eficazes paramelhor compreensão dos comportamentos humanos. Este ponto parece ser cor-roborado pelos dados obtidos referentes às estratégias utilizadas pelos pais nasolução de problemas com seus filhos. Dentre as opções apresentadas, tem-seque pais FO buscam ajuda com médico, e pais FS, com psicólogos.

Vê-se assim que alternativas precisam ser viabilizadas e apresentadas.Para tanto, dois passos são considerados fundamentais:

1º fornecer informações para a sociedade (escolas, associações de bairro,grupos religiosos, dentre outros) sobre o campo de atuação e possibilidades daPsicologia enquanto ciência; e

2º facilitar o acesso da comunidade aos conhecimentos produzidos pelaAnálise do Comportamento.

É possível que com essas informações os pais possam analisar melhor as

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idiossincrasias das realidades onde estão inseridos, o que muitas vezes os livros,revistas e outros meios disponíveis não têm viabilizado. A análise desses materi-ais tem revelado que eles oferecem um auxílio de efeito imediato, mas não sufi-ciente para produzir mudanças duradouras que garantam uma melhor qualidadenas interações futuras com crianças e adolescentes.

A ênfase até aqui foi dada ao trabalho de conscientização e mudança depostura dos pais. No entanto, o objetivo maior é que, a longo prazo, os filhosdestes pais, quando estiverem no exercício da maternidade e/ou paternidade,possam obter melhores resultados no que diz respeito às estratégias para manejode comportamentos.

5 – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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GLOBALIZAÇÃO, ASSÉDIO MORAL EPERVERSIDADE NO COTIDIANO

* Ana Paula Bigheti dos Santos*Juliana de Rezende Penhaki

** Lydia Akemy Onesti

RESUMO

O foco principal deste artigo é refletir e destacar a importância da existên-cia do assédio moral nas organizações, considerando que a globalização, avançotecnológico, automação de processos e métodos de trabalho, vêm confirmando ofim das dependências das empresas em relação às pessoas, o que gera o desem-prego em massa e a sujeição da classe trabalhadora à condição de ser assedia-da. O trabalho pretende ainda apresentar as conseqüências psicológicas decor-rentes da perversidade imposta, com vistas ao esclarecimento e compreensãoda classe trabalhadora sobre as formas de lidar com o assédio moral.

PALAVRAS-CHAVE: Assédio Moral; Globalização; Classe Operária; Conseqüências Psicológicas; Desemprego.

ABSTRACT

The main focus of this article is to reflect and detach the existence of moralharassment in organizations, considering that globalization, technological growth,automation processes and working methods have been confirming the end of therelationship between employees and employers, which establish the condition ofmass unemployment and the possibility of the working class to be harassed.Another focus present is the demonstration of the psychological consequencessteamed from the imposed perversity, aiming at the clarification and understandingof the different ways in dealing with moral harassment.

KEY-WORDS: Moral Harassment; Globalization; Working Class; Psychological Consequences; Unemployment.

* Psicóloga graduada pela Unifil.** Docente da UniFil.Mestre em Psicologia.E-mail: [email protected]

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A globalização, processo social que atua no sentido de uma mudança naestrutura política e econômica das sociedades, ocorre com avanços e retro-cessos separados por intervalos que podem durar séculos. Na economia, signi-fica integrar os mercados em nível mundial no sentido de que um produto,independentemente de sua origem ou procedência, possa ser oferecido paraconsumo em qualquer parte do globo terrestre. Do ponto de vista social, apre-senta sinais de ser cada vez menos inclusiva, homogeneizadora ou convergen-te, aumentando a polarização entre países e classes quanto à distribuição deriqueza, renda e emprego (http://globalizz.cjb.net).

Assim, o advento da globalização, associado ao capitalismo flexível,vem permitindo que as empresas desloquem as suas unidades produtivaspara os países menos desenvolvidos. A globalização e a flexibilidade do ca-pital só trazem vantagem para aqueles que estão em uma posição favorável(SENNET, 2000).

A globalidade segue fatos objetivos e universais, expressando uma cres-cente interdependência das economias nacionais e a emergência de um siste-ma transacional bancário-produtivo-comunicativo, que é dominante, e cuja as-censão coincide com um enfraquecimento real da soberania dos estados-na-ções e das correntes nacionalistas, anti-imperialistas, marxista-leninistas, estasúltimas em estado de confusão ou de reversão nos poucos países ou organiza-ções que dizem segui-la. Pode aqui ser considerada a “Metamorfose da ques-tão social”, exposta por CASTEL (1995), como “desafio que interroga, põe emquestão a capacidade de uma sociedade para existir como um conjunto ligadopor relações de interdependência.”

Sendo assim, este discurso não obedece somente a uma realidade epistêmicalegítima; é usado também para uma “reconversão da dependência”. Com fre-qüência, serve para ocultar ou ocultar-se dos efeitos da política liberal neo-con-servadora nos países do Terceiro Mundo e os problemas sociais cada vez maio-res em toda a humanidade.

“O pressuposto do liberalismo, ou neoliberalismo, hegemônico em nos-sos dias, tanto no plano econômico como no filosófico e social, é de que oprogresso e o desenvolvimento só são possíveis através da competitividade.É o confronto, o choque entre interesses diferentes ou contrários, que vaifazer com que as pessoas lutem, trabalhem, se esforcem para conseguirmelhorar seu bem-estar, sua qualidade de vida, sua ascensãoeconômica”(GUARESCHI, 1999), no aspecto coletivo, mas sob a perspecti-va do processo de modernização de um individualismo exacerbado. Sobreisso, WEBER e SIMMEL, apud GENTIL (1996), apontam como partesintegrantes também a racionalização e a urbanização.

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É evidente que a ideologia da modernidade é valorizar sempre o novo,quebrando as tradições vigentes. Assim, o fenômeno do desemprego, que estáatrelado a um projeto de sociedade moderna e neo-liberal, é “aceito” como umevento natural.

CASTEL (1994), ao avaliar a dinâmica social do capitalismo informacional,conclui com a síntese: No que diz respeito às relações de distribuição/consumo,ou à apropriação diferenciada da riqueza, encontramos processos de desigualda-de, polarização entre ricos e pobres, pobreza e miséria. Por outro lado, diante dasrelações de produção, encontramos processos de individualização do trabalho,superexploração dos trabalhadores, exclusão social e integração perversa, isto é,o processo de trabalho na economia criminosa com atividades de geração derenda que são declaradas por lei como sendo criminosas, tais como o tráfico dedrogas, as compras de armamentos, etc. GUARESCHI (1999) questiona: o quedizer sobre isso tudo? Recebe como resposta uma multidão de seres humanosempobrecidos e descartáveis.

Recorre-se novamente a SENNET (2000) para se constatar que osefeitos nocivos da globalização da produção proporcionada pelo capitalismoflexível e a possibilidade de dominação e exploração dos países mais neces-sitados sequer questionam os custos ambientais. Além disso, tal condiçãopromove um índice crescente de desemprego e as conseqüências para aclasse trabalhadora anunciam algo a que não mais terão acesso: empregocom carteira assinada.

Segundo KREIN (1998), o tema desemprego é polêmico, pois é só oavanço tecnológico que substitui o trabalho humano pela máquina. “O de-semprego não pode ser explicado somente pelas novas tecnologias, pois uma sociedade em mudança (novas tecnologias e reestruturação produtiva)exige trabalhadores com um maior nível de escolaridade, mas o empregopara toda a sociedade não depende do nível de estudo; uma parte do desem-prego é causada pela facilidade, dada pelas políticas de governo, em com-prar produtos de outros países. No Brasil, boa parte do desemprego estásendo causada pela nossa política econômica do governo” (KREIN, 1998).Se levados em consideração os apontamentos feitos por esse autor, vê-seuma provável exclusão social e o porquê de uma pessoa fora domercado de trabalho dificilmente conseguir uma recolocação no mesmo, deforma satisfatória. Acredita-se que, se houvesse a intervenção do Estado,de forma a propiciar uma melhor distribuição de rendas, ao contrário do queocorre, que é o preocupar-se com o capital fornecido por empresas privadase centralizadoras de poder, poder-se-ia ter melhor qualidade nas condiçõesde trabalho e um baixo nível de desemprego.

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Com a revolução das comunicações, o processo de globalização tor-nou-se mais rápido, além de ter se tornado mais abrangente, envolvendo nãosó o comércio e capitais, mas também telecomunicações, finanças e servi-ços, antes cobertos por várias formas de proteção. Conseqüentemente, asociedade vem sofrendo uma deriva feita de exclusões, desigualdades e in-justiças, que sustenta, por sua vez, um clima repleto de agressividades, noâmbito social como também no mundo do trabalho. No ambiente de trabalho,em decorrência da modernização e automação de processos, as pessoas cri-am um clima de competição como forma de garantia de emprego, o que astorna agressivas e insensíveis umas com as outras, exigindo a exclusão dealguns e privilegiando outros, para que se estabeleçam parâmetros de oposi-ção que vão forçar as pessoas, na competição, a ter de lutar para não seremrejeitadas e excluídas, propiciando, entre outras situações, o aparecimentodo assédio moral e outros conflitos.

Vale ressaltar algumas variáveis decorrentes do processo deglobalização que predispõem o aparecimento do Assédio Moral: rompimentodos laços afetivos e individualismo; práticas agressivas nas relações detrabalho; comprometimento da saúde, identidade e dignidade; sentimentode inutilidade e descontentamento no trabalho; aumento do absenteísmo ediminuição da produtividade; demissão forçada e desemprego. “É angusti-ante saber que, para a economia do mercado, as desigualdades e a concor-rência são necessárias para facilitar a exclusão, descartando os trabalha-dores considerados ‘inadequados’, delegando-lhes culpa pela falta deempregabilidade desejada em meio a um mercado altamente competitivo.Assim, sob o princípio da eficiência e da racionalidade, promovem-se adesqualificação, a marginalização e a degradação social de uma grandeparcela da população ativa, elevando-se ainda mais as estatísticas sobre apobreza e os excluídos socialmente” (ONESTI, 2002).

O emprego é, sem dúvida, o que dá sentido à vida do trabalhador; é oalicerce que lhe dá condições de edificar sonhos, planejar seus projetos,valorizar-se e construir o seu eu. O trabalho, como se verificou ao longo desua história, é mais do que o não-trabalho e, portanto, o não-trabalho é maisdo que o desemprego, o que não quer dizer pouco. CASTEL apudMARCHI(1999) traz a denúncia de Hannah Arendt em relação ao elevadoreaparecimento de um perfil de “trabalhadores sem trabalho” na socieda-de, ou seja, os inúteis para o mundo.

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Esse temor impele as pessoas a se submeterem aos ditames do imperia-lismo empresarial, condição essa que favorece o surgimento do assédio moralno trabalho.

O assédio moral está presente em diversas situações do cotidiano, emcasa, na escola e nas organizações, desde os primórdios da humanidade. Oproblema é quase desconhecido e de difícil diagnóstico, mas, ainda assim, senão enfrentado, pode levar à debilidade da saúde de milhares de trabalhadores,prejudicando seu rendimento.

A psicóloga francesa Marie-France Hirigoyen, autora de um estudo so-bre o assunto, acredita que a punição ao assédio moral ajudaria a combater oproblema, pois “imporia um limite ao indivíduo perverso.” Da mesma forma, aDra. Margarida Barreto, autora de tese em Psicologia Social pela PUC - SP,constatou que a ação do chefe que humilha seus subalternos é mais prejudicialà saúde do que se imagina, pois a exposição do trabalhador a freqüentes situ-ações de humilhação pode causar-lhe doenças acentuadas, culminando inclu-sive com tentativas ou pensamentos suicidas como manifestações explosivasdas emoções arquivadas, já que o assédio moral fere a dignidade e é percebidopelos que sofrem como fracasso e incapacidade (http://www.assediomoral.org/legisla/br).

Segundo Marie-France Hirigoyen e Margarida Barreto, precursorada discussão no Brasil, assédio moral no trabalho consiste em “qualquerconduta abusiva (gesto, palavra, comportamento, atitude) que atende, porsua repetição ou sistematização, contra a dignidade ou integridade psíquicaou física de uma pessoa, ameaçando seu emprego ou degradando o climade trabalho” (HIRIGOYEN, 2002, p.17).* A principal característica do as-sédio moral é seu aparecimento de forma a expor os trabalhadores a situ-ações constrangedoras e humilhantes, repetitivas, intencionais e prolonga-das durante o período de trabalho. A sua identificação é difícil, poismetodologicamente é preciso fazer um acompanhamento e observaçõessistemáticas por um determinado período de tempo. Porém, deve-se consi-derar que, em determinadas situações onde o chefe constrange o subordi-nado esporadicamente ou, após a atuação, reconhece seu erro, aquele atonão é aceito como assédio moral.

Considerando todo o processo de humilhação repetitiva e de longa duraçãopelo qual a vítima é submetida é possível observar um comprometimento de suaidentidade, dignidade e relações afetivas e sociais, o que traz graves danos à sua

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saúde física e mental, podendo evoluir para a incapacidade laborativa e o desem-prego.

Toda essa situação desestabiliza a relação da vítima com o ambiente detrabalho, o que proporciona os seguintes sintomas:

*Fonte: site www.assediomoral.org

Sintomas Mulheres Homens

Crises de choro 100 -

Dores generalizadas 80

Palpitações, tremores 80 40

Sentimento de inutilidade 72 40

Insônia ou sonolência excessiva 69,6 63,6

Depressão 60 70

Diminuição da libido 60 15

Sede de vingança 50 100

Aumento da pressão arterial 40 51,6

Dor de cabeça 40 33,2

Distúrbios digestivos 40 15

Tonturas 22,3 3,2

Idéia de suicídio 16,2 100

Falta de apetite 13,6 2,1

Falta de ar 10 30

Passa a beber 5 63

Tentativa de suicídio - 18,3

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Muitas vezes, a vítima sente-se desvalorizada e culpada pela situação, nãoconsiderando as atuações como assédio.

Para reconhecer quando o chefe está passando dos limites, é necessárioidentificar as estratégias comumente utilizadas: escolher e isolar a vítima; impe-di-la de se expressar; menosprezá-la, ridicularizá-la e fragilizá-la perante os com-panheiros; desestabilizá-la emocional e profissionalmente; livrar-se da vítima;impor ao coletivo sua autoridade. É comum o aparecimento do assédio em rela-ções hierárquicas autoritárias, desumanas e sem ética, o que não exclui a possi-bilidade, em casos isolados, do assédio aparecer entre subordinados.

As pessoas mais vulneráveis ao assédio nem sempre são frágeis, inábeisou portadoras de alguma deficiência ou patologia; geralmente são: o trabalhadorcriativo; o adoecido ou acidentado no trabalho; a mulheres, especialmente ascom filhos menores de 10 anos; os críticos e resistentes; e os funcionários maisvelhos (BARRETO, 2001).

Não se fará aqui uma rotulação de como é o perfil do assediador; é impor-tante ressaltar, no entanto, que o trabalhador é sujeitado por alguém que detém opoder e se satisfaz vendo o outro em situação de fragilidade, de inferioridade eculpabilidade.

Ao perceber atitudes que podem estar vinculadas ao assédio moral, o quea vítima deve fazer? Anotar com detalhes todas humilhações sofridas, com data,horário e local, setor, nome do agressor e de colegas que testemunharam, bemcomo o conteúdo da conversa; procurar ajuda de colegas, principalmente os queforam testemunhas ou o Departamento de Gestão de Pessoas; evitar conversascom o assediador, sem a presença de testemunhas; após reunir queixas e regis-tros deve procurar o seu sindicato e um advogado de lei cível.

Ser otimista é acreditar na potencialidade do sujeito para lutar contra con-dições sociais e humanas sem desconsiderar a determinação social. A utopia e acrença no sujeito da ação e na possibilidade de uma ordem social sem exclusãonão remetem a uma visão happy end ou ao paradigma da redenção, comum nasciências humanas, tanto positivistas quanto críticas.

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RECORTES DO TRABALHO DOMÉSTICO DECOSTUREIRAS E SUAS INTERFACES COM A

ESFERA FAMILIAR, SOCIAL E POLÍTICA

*Analuisa Bernardi de Almeida*Semíramis Fabíola Hirata

**Lydia Akemy Onesti

RESUMO

A crescente taxa de desemprego e os baixos salários têm levado apopulação brasileira a procurar o trabalho informal como estratégia de ga-rantir ou auxiliar a renda familiar. Sendo o trabalho doméstico um exemplode trabalho informal, buscou-se em CATTANI (1997) a definição dessamodalidade. Por sua vez, a mulher busca o trabalho, facilitando o cumpri-mento dos seus vários papéis (mãe, esposa, dona-de-casa). Com o objetivode verificar a relação entre trabalho doméstico de costureiras e suas impli-cações na esfera familiar, social e política, a presente pesquisa vem sendodesenvolvida com 19 costureiras da cidade de Londrina. O método utilizadofoi o de entrevista individual semi-estruturada e realizada em suas própriasresidências. Os dados obtidos apontam para a importância da renda no orça-mento doméstico, sendo em alguns casos a fonte principal de sustento dafamília. Pelo fato do trabalho ser desenvolvido na própria casa, não havercômodo específico e por não se fixarem horários de atendimentos, observa-se que o espaço da intimidade doméstica é invadido pela clientela. Devido àbaixa freqüência de saídas de sua casa, constatou-se nas mulherespesquisadas uma dificuldade na compreensão da transformação das rela-ções sociais, em decorrência de mudanças bruscas e rápidas, que trazemimplicações sobre a subjetividade das pessoas.

PALAVRAS-CHAVE: Trabalho Informal Doméstico; Subjetividade; Invasão da Intimidade Doméstica; Participação Social.

*Psicóloga graduada pela Unifil.** Docente da UniFil.Mestre em Psicologia.E-mail: [email protected]

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ABSTRACT

Growing unemployment rates and low salaries have made the Brazilianpopulation seek for informal work as a strategy of granting or helping with thefamily income. Being the domestic work an example of informal work, it wassearched in CATTANI (1997) the definition of this modality. In turn, the womanseeks for work, facilitating the accomplishment of her several roles (mother, wife,housekeeper). With the objective of verifying the relations between domestic workas dressmakers and the implications on the family, social and political spheres, thepresent research was developed having 19 dressmakers from the city of Londrinaas subjects. The method used was the individual semi-structured interview whichwas developed in the subjects’ own homes. The data obtained points to theimportance of that income for the domestic budget, being in some cases the mainsource of family support. Because the work is being developed at home, not havingspecific rooms or appointment times, it can be observed that the space of privacyis invaded by the customers. Since they scarcely go out, it was evidenced on theresearched women a difficulty to understand the changes in social relations as aresult of rapid and brusque changes, that causes implications on people’s subjectivity.

KEY-WORDS: Informal Domestic Work; Subjectivity; Invasion of the Domestic Privacy; Social Participation.

INTRODUÇÃO

Anteriormente ao século XIX, as mulheres já trabalhavam para ganhar oseu sustento e as atividades em que elas mais se envolviam eram as de fiandeiras,costureiras, parteiras, domésticas, criadas da lavoura, entre outras.

Mas a sua inserção no mercado de trabalho se dá com a chegada da Revo-lução Industrial. A mudança no panorama do mundo do trabalho se fez observarpelo aumento substancial de fábricas e criação de postos de trabalho, requeren-do um número maior de trabalhadores.

Para a mulher abrem-se novas oportunidades de participação social notrabalho, embora o pensamento predominante fosse a impossibilidade de concili-ação da atividade produtiva com a criação de filhos e cuidados com a casa.Pressupunha-se que as responsabilidades familiares deveriam ser privilegiadaspor serem de tempo integral.

A priorização das obrigações domésticas e maternais contribui para a ge-ração de empregos de baixos salários e não especializados. Talvez aqui esteja araiz histórica da discriminação sofrida pelas mulheres no mundo do trabalho.

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No Brasil, a década de 1970 constituiu-se um marco do avanço das con-quistas femininas, em especial a sua participação no mundo de trabalho. Deacordo BRUSCHINI, in SAFFIOTO (1994: 63), “as estatísticas têm reveladoque a presença das mulheres no mercado de trabalho brasileiro, sobretudoo urbano, é cada vez mais intensa e diversificada e não mostra nenhumatendência de retrocesso, apesar das sucessivas crises econômicas que têmassolado o país a partir dos anos 80”.

Deve-se considerar também, observando-se o panorama econômico bra-sileiro, que a remuneração do trabalho masculino não tem sido suficientepara suprir os gastos de uma família e, por isso, a mulher se obriga a buscaruma atividade que renda lucros para auxiliar com tais gastos, fato este cons-tatado por BRUSCHINI (1994). A autora revela ainda que, em função damudança da expectativa de consumo, modifica-se o conceito de necessida-de. Assim, maior ganho significa a possibilidade de acesso a novos produtosde consumo.

Assumir, portanto, uma atividade que gere renda implica em ter que har-monizar e equilibrar as atividades econômicas e familiares, especialmente se hápresença de criança na casa.

Associa-se a esses problemas a ideologia de uma sociedade machista,em que a mulher deve ser a única responsável pelos afazeres domésticos ecuidados dos filhos, tendo, por isso, que assumir dupla jornada de trabalho, umano emprego e outra na casa. Tal conciliação é dificultada por atividades for-mais e com horários regulares. Soma-se a isso a discriminação existente sobrea mulher. De acordo com SUARÉZ (2002), as mulheres acham-se ainda ex-cluídas de muitas profissões e recebem, de acordo com LAVINAS et al. (2002),salários inferiores aos dos masculinos, mesmo desempenhando atividades iguais.Outra dificuldade enfrentada por elas diz respeito a atitudes negativas de cola-boradores masculinos quando elas ocupam cargos de chefia. A atividade in-formal, como é o caso do trabalho domiciliar e na qual não há jornadas regula-res de trabalho, costuma facilitar o equilíbrio entre família e trabalho, emboranão ofereça garantias trabalhistas (BRUSCHINI, 1994).

O perfil da desigualdade apresenta-se de forma mais evidente se levarmosem conta que a elas cabe conciliar a atividade doméstica com a atividade profis-sional. Mas a dupla jornada de trabalho e a busca de um trabalho alternativo, quemuitas vezes, é realizado na própria residência para facilitar a administração dotempo e das atividades, acaba resultando, em muitos casos, num trabalho malremunerado e isento de benefícios.

Muitas mulheres buscam o trabalho informal para poderem assumir seuscompromissos familiares. O trabalho informal é definido como a:

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“atividade exercida no espaço doméstico, por conta própria,quando o produto é diretamente comercializado com o consu-midor, ou encomendado por terceiros (...) é uma atividade naqual o trabalhador tem autonomia sobre seu tempo e ritmo detrabalho, controle sobre as técnicas e procedimentos de suaelaboração e determinação do preço” (CATTANI, 1997: 275).

Para esse autor, o trabalho doméstico enquadra-se nesta modalidade e eleutiliza o trabalho de costureiras como exemplo.

O trabalho doméstico (entenda-se por trabalho doméstico o trabalhorealizado no domicílio, como fazer salgados, costuras, etc., e não o comoo trabalho do domicílio, como lavar, passar, cozinhar) permite que a mu-lher cumpra as tarefas sociais que são esperadas dela, como, por exem-plo, cuidar da casa, dos filhos, e ainda exerça uma atividade que sejalucrativa.

Este tipo de atividade cria uma imagem de disponibilidade permanente,pelo fato de ser desenvolvido na própria casa. Dessa forma, o espaço domésticopassa a ter dupla significação: local de trabalho e local de descanso familiar. Esteúltimo passa a não ser respeitado pela clientela, pois esta interfere nas atividadesfamiliares aos finais de semana, tampouco respeitando os horários de refeições,de lazer e descanso.

A execução do trabalho doméstico, como costureira, implica necessa-riamente em transformar a casa no local de sua produção, exigindo organi-zação do espaço doméstico, seja nos aspectos físicos ou sociais e familia-res.

A costura pode constituir-se inicialmente numa complementação darenda familiar, sofrendo transformação, passando, em muitos casos, aser a principal fonte de rendas. No entanto, tal condição não faz com quehaja necessariamente uma inversão de poder, mas certamente aumenta oespaço de negociação entre homens e mulheres, o que pode conduzir auma maior flexibilização nas atribuições de cada um (CARNEIRO e PE-REIRA, 2002).

Os autores ainda apresentam a necessidade de se refletir sobre aresignificação das atividades desenvolvidas na esfera doméstica, podendo inclu-sive os homens se inserirem nesse processo produtivo, rompendo assim comuma identidade masculina historicamente constituída.

Portanto, este artigo tem como objetivos conhecer o cotidiano do seutrabalho e o significado de sua renda no orçamento doméstico, verificar a

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influência do trabalho doméstico nas suas interfaces com a esfera familiar,social e política, e constatar os fatores que contribuem direta ou indiretamen-te para a sua participação e envolvimento em questões que afetam a comu-nidade e seus membros.

Metodologia:

- Participantes: 19 mulheres, exercendo a profissão de costureira domicili-ar, com idades variando de 35 a 76 anos, com grau de escolaridade entre ensinofundamental incompleto e ensino médio completo, sendo todas residentes nacidade de Londrina - Pr.

- Instrumento: roteiro de entrevista semi-estruturada abordando o signi-ficado do trabalho, o ambiente e condições de trabalho, perspectiva, relaçãotrabalho e doença, relação trabalho e família, além de questões que visavama identificação da participante (omitindo o nome), composição familiar, im-portância da renda advinda do trabalho de costureira e saber como ela setornou costureira.

- Procedimento: a composição das participantes desta pesquisa se deuatravés de indicação de costureiras já entrevistadas ou de conhecimento daspróprias pesquisadoras, devido à natureza do trabalho por elas executado, que éde difícil identificação, uma vez que é realizado em suas residências. A coleta dedados foi realizada através do uso do roteiro de entrevista semi-estruturada, emsuas próprias residências, após obter a aprovação do dia e do horário que lhesfossem mais convenientes. Nessa ocasião, já eram expostos os objetivos dotrabalho e o tempo médio de duração da entrevista, de forma que pudessemplanejar e organizar suas atividades.

Foram anotadas frases e palavras-chave durante a entrevista e, imediata-mente, construía-se o relato completo para garantir a fidedignidade dos dados eas expressões emocionais e gestuais observadas.

Os dados analisados foram colocados em categorias específicas, de formaa facilitar a compreensão das dificuldades e dos aspectos do cotidiano vivido poressas mulheres.

Resultados e Discussão

I. Caracterização da população analisadaDas 19 costureiras entrevistadas, a maioria se encontrava na faixa etária

entre 45 e 55 anos, com grau de escolaridade de nível primário incompleto. Ou-tros dados de caracterização acham-se na Tabela 1, a seguir:

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TABELA 1: CARACTERÍSTICAS DA AMOSTRA ESTUDADA

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II. Significado do Trabalho

Antes de abordarmos esta questão, é relevante explicitar a relação entreas profissões caracterizadas como sendo pertencentes às mulheres e as oportu-nidades de trabalho no final da década de 50 e durante a de 60.

Como eram restritas as profissões consideradas femininas, de professora, au-xiliar de enfermagem, cabeleireira, empregada doméstica, zeladora e costureira, ha-via pouca opção para outras atividades que não impedissem a conciliação de seusdeveres domésticos, bem como de seu papel social: o de servir.

Talvez em função disso, 58% das entrevistadas tenham aprendido a arte dacostura, pois a família apregoava valores relacionados ao papel da mulher ao secasar: estar preparada para cuidar plenamente da casa, incluindo-se aí toda aindumentária, pois era raro encontrar roupas prontas. Este aprendizado tornou-se significativo para muitas delas em épocas posteriores quando se defrontaramcom a viuvez, divórcio ou desemprego do marido.

Mesmo diante de tais condições (a imposição do aprendizado determinadosocialmente para mulher), 79% sentem-se realizadas pessoalmente exercendo aprofissão de costureira, embora 58% mudariam de profissão se tivessem oportu-nidade. Chama a atenção que as ocupações escolhidas, no caso de mudança,continuam sendo enquadradas em atividades consideradas femininas, tais como:enfermeiras, cabeleireiras e artesãs.

Este dado revela a influência ainda presente dos valores culturais na esco-lha da atividade profissional, por estarem relacionadas à sua condição de mulher.O foco reside em ajudar os outros ou em ocupar um espaço doméstico para oatendimento das duas áreas: profissional e familiar.

Neste sentido, SUAREZ (2002) afirma que o fenômeno do trabalho infor-mal atrai muitas mulheres por opção, pois podem assim assumir seus compro-missos familiares. Além disso, elas podem assumir este tipo de trabalho por sero único disponível, considerando o seu grau de escolarização e preparo para ummercado de trabalho altamente competitivo e exigente. Em nossa pesquisa, 53%das participantes possuem apenas o 1º grau incompleto, o que restringe seu le-que de opções profissionais.

O trabalho para elas significa a possibilidade de se realizarem pessoalmen-te através da valorização de seu trabalho e a liberdade sentida no ato de criar.Além de essa atividade propiciar autonomia, constitui-se numa fonte de rendapara suprir suas necessidades. Percebe-se, portanto, que ser costureira é umaatividade prazerosa, sem qualquer imposição alheia sobre o grau de compromis-so e responsabilidade assumidos.

A atividade escolhida, ou seja, o trabalho informal doméstico, possibilita a

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administração do tempo e das atividades, conforme afirma CATTANI (1997).Além disso, este tipo de trabalho proporciona “controle sobre as técnicas eprocedimentos de sua elaboração e determinação do preço” (p.275).

III – Ambiente, Condições de Trabalho e Relação Familiar

Apenas 21% das entrevistadas fixam horário de trabalho, preservandoum limite na relação profissional, evitando que o seu trabalho interfira em ou-tras atividades pessoais, em especial, as relacionadas à sua família. Consta-tou-se que a maioria das clientes não demonstra respeito aos períodos de des-canso familiar (horário das refeições, noite e finais-de-semana) para serematendidas, interferindo no funcionamento familiar, uma vez que os atendimen-tos são feitos em cômodos no corpo da casa e, muitas vezes, no próprio quartoda costureira.

Embora elas não percebam que a presença das clientes no interior de suacasa afeta a privacidade dos membros de sua família, é evidente que este tipo deatividade redunde implicitamente em invasão da intimidade. Porém, como nãopossuem condições para destinar um cômodo exclusivamente para o seu traba-lho, observa-se uma aceitação da invasão de sua intimidade como algo inerenteà sua profissão.

Além disso, observou-se um respeito às atividades profissionais de suasclientes, permitindo que elas sejam procuradas nos intervalos de trabalho e noperíodo de tempo livre que as clientes encontram. Nesse sentido, reconhece-seque o trabalho assume uma importância maior na vida das pessoas, impedindo-as de reservarem um tempo que possa ser dedicado a si próprias. Porém, hácasos em que algumas responsabilidades familiares

“têm impacto sobre as responsabilidades profissionais, in-fluenciando na atuação da força de trabalho e naperformance do trabalhador. No caso da existência do con-flito entre trabalho e família, onde o trabalhador sente-seroubado de um tempo que poderia estar se dedicando àfamília, percebe-se um aumento significativo dos fatoresexaustão emocional e despersonalização” (CODO,VASQUES-MENEZES e MEDEIROS) In: CODO (1999,p.257).

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Quanto ao ambiente de trabalho, percebe-se que a casa sofre alteraçõespara acolher a profissão da mulher, permitindo “que o tempo de trabalho nãoseja distinto do tempo do não-trabalho ou do ‘serviço-de-casa’” (CAR-NEIRO e PEREIRA, 2002) e contribuindo para que o espaço doméstico passe areproduzir não apenas as relações familiares, mas também as relações profissi-onais, pois “a máquina de costura não pode mais ocupar qualquer lugardentro da casa.” Essa atividade passa a ser realizada em um determinado cô-modo da casa que deixa de exercer a função que lhe era atribuída.

Com a transformação da casa em lócus de produção, novos conteúdos sãointroduzidos às relações de gênero dentro da esfera familiar, uma vez que arenda advinda do trabalho feminino vem assumindo maior importância no orça-mento familiar. Porém, observa-se na literatura que o trabalho da mulher “nãoconstitui uma situação nova que forçosamente abale os fundamentos patri-arcais da família pobre, porque não desestrutura o lugar de autoridade dohomem, que pode se manter, sendo, inclusive, transferido para outros ho-mens da rede familiar” (SARTI, 1996:76). Mas a entrada das mulherespara o mercado de trabalho trouxe conseqüências positivas nas represen-tações femininas, pois novas alternativas de relações entre homens e mu-lheres passaram a existir na família ou fora dela (ROMANELLI, 2000: 77).Esse autor não desconsidera a importância do movimento feminista nessesavanços que redefinem o papel da mulher socialmente e equilibram a soci-abilidade entre os gêneros, embora não eliminem as relações hierarquizadase a dominância masculina na família, “sustentada por representações diver-sas” (p.83).

Se, de início, constituiu-se numa ajuda doméstica, hoje, para 37% delas, é afonte principal de sustento da casa. Embora não obtivéssemos relatos explícitossobre a imprescindibilidade do seu ganho, observamos que 47% das costureirasentrevistadas participam ativamente na complementação da renda, assumindocompromissos fixos, como pagamento de água, telefone, compra de mantimen-tos e roupas. Tal condição favorece seu reconhecimento, permitindo a reduçãoda desigualdade de classe, significando uma abertura para a sua autonomia.Também é importante ressaltar que a mulher pode se satisfazer com a remune-ração de seu trabalho (mesmo que baixa) quando vê seus filhos vestidos, “acomida na mesa e a família bem alimentada” (SARTI, 1996:76). Conformerelatado por algumas mulheres, o trabalho tem o poder também de satisfazê-las,“afirmando em algum nível sua individualidade, mesmo que seus rendimen-tos não se destinem para si mesma, uma vez que esta individualidade nãodeixa de ser referida à família.”

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IV – Participação Social e Política

De acordo com os relatos das entrevistadas, os relacionamentos interpessoaisque possuem restringem-se às suas famílias e clientes. Diferente do trabalhoformal, que possibilita a tomada de consciência, tomada de decisão, troca deexperiências, sensação de viver no mundo e ter voz ativa (FISCHER, 2002), otrabalho informal restringe o círculo social do indivíduo, como é o caso das cos-tureiras. Portanto, embora elas relatem obter informações dos acontecimentossociais e políticos via rádio, televisão e com as próprias clientes, a sua participa-ção efetiva é mínima ou até mesmo nula em alguns casos.

Uma minoria das mulheres participantes contribui com o sistema previdenciário,visando garantir uma aposentadoria que lhes possa auxiliar no futuro. Mas 84%delas não fazem qualquer recolhimento e “como trabalham por conta e nãopagam impostos, acabam sendo excluídas dos direitos sociais eprevidenciários” (ROUQUAYROL e FILHO, 2002). Em função disso, o perío-do de trabalho pode vir a se estender a uma idade bastante avançada para, obriga-toriamente, garantir sua sobrevivência. Caso a sua saúde não lhe permita continu-ar na atividade, certamente dependerá do auxílio de filhos e/ou familiares.

A condição que ora se instala afeta sua identidade, pois a dimensão dadependência exige-lhes novas formas de ação e de condutas, podendo-se aindapressupor a existência de um sentimento de constrangimento não revelado. Aperda do trabalho é nociva à subjetividade e identidade de qualquer ser humano,afirma CODO (1993).

CONCLUSÕES

Nos últimos anos, as mudanças que vêm ocorrendo no mundo têm afetadoo mercado de trabalho. A revolução tecnocientífica e a globalização vêm elimi-nando milhares de postos de trabalho. O desemprego se tornou uma ameaçaconstante e, com a deterioração dos salários e a precariedade das relações detrabalho, fez-se necessária a entrada da mulher no mercado de trabalho.

“A globalização, fenômeno de repercussões mundiais, au-mentou a competitividade nacional e internacional e impli-cou na perda de postos de trabalho, corte de custos de pro-dução, aumento da flexibilidade, terceirização e formas tem-porárias de emprego. Isso gerou insegurança no emprego,desigualdade salarial, desemprego estrutural, subemprego,trabalho informal e, conseqüentemente, diminuição do po-

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der de negociação dos salários e condições de trabalhopor parte dos sindicatos. A maior individualização das re-lações de trabalho levou ao enfraquecimento do vínculo desolidariedade” (SAMDEN, 2002).

Essa condição favoreceu o aumento da participação da mulher no merca-do de trabalho, através do mercado informal, pois este permite que seja possívelconciliar os compromissos familiares e os profissionais.

Segundo BRUSCHINI (1994:77), a “flexibilidade no uso do tempo, noentanto, que permite a conciliação entre atividades familiares e econômi-cas, continua atraindo mulheres com responsabilidades domésticas paraatividades como essas, que não contam com nenhum tipo de garantia.”

A mulher, por sua vez, escolhe o ofício de costureira por ser uma atividadeconsiderada feminina e por não ser necessária uma formação específica, ouseja, na família sempre existia alguém que havia aprendido a costurar e queensinava para as outras.

Este tipo de trabalho assume grande importância no orçamento familiar,tornando-se, em alguns casos, fonte exclusiva de renda.

Com isso, as mulheres estão assumindo cada vez mais responsabilidadesnas esferas doméstica e profissional, o que, nesse caso, estimula a revisão dospapéis tradicionalmente instituídos para elas.

“Por isso, é fundamental que sejam criadas condições con-cretas que permitam ampliar a possibilidade de escolha dasmulheres por ter ou não uma atividade econômica remune-rada mais regular, na qual possam ter acesso aos benefíci-os trabalhistas previstos na Constituição” (BRUSCHINI;1994:79).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRUSCHINI, Cristina. O trabalho da mulher no Brasil: tendências recen-tes. In: SAFFIOTI, Heleieth I. B.; MUÑHOZ-VARGAS, Mônica. Mulher bra-sileira é assim. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos/NIPAS; Brasília,D.F.:UNICEF, 1994.CARNEIRO, Maria José; PEREIRA, Jorge Luiz Goes. Confecção domésticaem área rural: relações de gênero em questão. Consultado na INTERNET,

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PERFIL NUTRICIONAL E CONSUMO ALIMENTARDE CRIANÇAS ATENDIDAS EM CRECHE

FILANTRÓPICA DA CIDADE DE LONDRINA – PR

*Marisa Batista Brighenti*Flávia Hernandez Fernandez

**Gersislei Antonia Salado

RESUMO

Este estudo foi realizado numa creche filantrópica da cidade de Londrina, naqual foram avaliadas 63 crianças, sendo 57,14% do sexo masculino e 42,86% dosexo feminino, com faixa etária entre 4 meses e 7 anos. Foram realizadas duasavaliações, uma no início e outra no final do estudo, após a intervenção nutricional.Para a classificação do estado nutricional foram utilizados o NCHS (1983) e SISVAN(1996). As crianças foram classificadas, sendo Pº < 3 desnutrição grave; de Pº=3 a< 5 desnutrição leve; de Pº = 5 a < 10 baixo peso, e de Pº = 10 a < 90 eutrofia; de Pº= 90 a < 95 sobrepeso e, obesidade, Pº > 95. Quanto à classificação nutricional naavaliação inicial, verificou-se que 3,17% das crianças estavam com desnutrição gra-ve, 82,54% estavam eutróficas, 4,76% com sobrepeso e 9,52% com obesidade. Naavaliação final, após intervenção, verificou-se que 1,59% das crianças permaneciamcom desnutrição grave e 1,59% estavam com baixo peso, enquanto que as criançaseutróficas, com sobrepeso e com obesidade permaneceram iguais à primeira avalia-ção. Na análise dos cardápios, verificou-se que, para a faixa etária de 1,1 a 3 anos,obteve-se adequação de 78,6% para energia, 40,5% para cálcio e 76,5% para ferro.Para a faixa etária de 3,1 a 5 anos, obteve-se 63,4% para energia, 32,6% para cálcioe 61,2% para ferro. Para a faixa etária de 5,1 a 7 anos, verificou-se uma adequaçãode 54,6% para energia, 28,1% para cálcio e 51,0% para ferro. Em relação à proteína,foi verificada uma taxa de adequação acima de 100% das necessidades diárias paratodas as faixas etárias. Visando manter o bom estado nutricional dos eutróficos ecorrigir os desvios nutricionais encontrados, foram ainda realizados atendimentosindividualizados com os pais ou responsáveis pelas crianças, implementadas ativida-des lúdico-pedagógicas e determinadas algumas alterações necessárias no cardápio.

PALAVRAS-CHAVE: Creche; Avaliação Nutricional; Consumo Alimentar.

* Docente do Curso de Nutrição da UniFil. Mestre em Nutrição.** Docente do Curso de Nutrição da UniFil. Doutora em Nutrição.E-mail: [email protected]

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ABSTRACT

This study was conducted in a philanthropic day-care center in the city ofLondrina. Sixty-three children, of which 57.14% were boys and 42.86% weregirls, from 4 months to 7 years old, were evaluated. Two evaluations wereperformed, one at the beginning of the study and the second at the end, afternutritional intervention. Children were classified according to their nutritional statususing NCHS (1983) and SISVAN (1996). Classifications were: severeundernutrition (perguntar para as autoras se o termo melhor não seria“malnutrition”) (Pº<3); light undernutrition (idem à nota anterior) (from Pº3 to<5); underweight (from Pº5 to <10 ); eutrophic (from Pº10 to 90); overweight(from Pº90 to 95); and obesity (from Pº > 95). At the initial classification, 3.17%of the children were classified as severe undernourished, 82.54% were classifiedas eutrophic, 4.76% were classified as overweight, and 9.52% as obese.

At the final evaluation, after intervention, it was observed that 1.59% of thechildren remained with severe undernutrition, (verificar) and 1.59% wereunderweight, while the eutrophic, overweight and obese children remained as inthe first evaluation. In the analysis of the menu, it was observed, for childrenfrom 1,1 to 3 years, an adequacy of 78.6% for energy, 40.5% for calcium, and76.5% for iron. For children from 3,1 to 5 years, the adequacy was 63.4% forenergy, 32.6% for calcium, and 61.2% for iron. For ages 5,1 to 7 years theadequacy was 54,6% for energy, 28.1% for calcium, and 51.0% for iron. Theadequacy index for protein was over 100% of the daily requirements for all ages.In order to keep the good nutritional status of the eutrophic and trying to correctnutritional deviations, parents or those in charge of the children were assistedattended individually, ludic-pedagogical activities were implemented, and necessarymenu modifications were determoned.

KEY-WORDS: Day-Care Center; Nutritional Assessment; Food Consumption.

INTRODUÇÃO

A caracterização do estado nutricional da população, sob o ponto de vistaqualitativo e quantitativo, representa, atualmente, um dos objetivos centrais dosestudos sobre distribuição do processo saúde/doença.

O estado nutricional é um bom indicador das condições de vida da popula-ção, por ser um resultado da interação entre vários fatores sócio-econômicos eculturais, refletindo, portanto, sensivelmente suas tendências e oscilações. Aavaliação nutricional através de inquéritos, especialmente o consumo de energia

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TERRA E CULTURA, ANO XIX, Nº 37 96

e proteínas, pode ser considerada como uma gradação contínua de situações quese iniciam por estados normais, prolongando-se por estados leves e moderadosde desnutrição, até síndromes avançadas ( FURUMOTO e ARAÚJO, 1996).

No ano de 1995, segundo dados do SISVAN (Sistema de Vigilância Ali-mentar e Nutricional), o percentual de crianças avaliadas abaixo do percentil 10do NCHS (1979) para peso/idade foi de 18,9% na cidade de Curitiba. O SISVANestá atualmente implantado praticamente em todo o Brasil, tendo como finalida-de coletar dados, processar, interpretar e difundir informações sobre a situaçãoalimentar e nutricional e seus fatores determinantes (BATISTA FILHO, 1994).

Segundo CASTRO e ANJOS (1993), na cidade do Rio de Janeiro opercentual de crianças desnutridas foi de 20,83% numa unidade de saúde ondefoi implantado o SISVAN.

Na cidade de Londrina, de acordo com dados do SISVAN (1997), opercentual de crianças que demonstraram algum grau de desnutrição, ou seja,abaixo do percentil 10, na faixa etária menor que 1 ano, atinge um total de 29,8%e, somando-se as faixas de 12 a 59 meses, o percentual é de 33,0%.

Investigando o estado nutricional de pré-escolares do semi-árido baiano,SANTOS et al. (1995) encontraram 22,9% de crianças com altura/idade abaixodo percentil 10, o que indica desnutrição pregressa, além de 19,1% com peso/idadee 3,6% com peso/altura abaixo do percentil 10, indicando desnutrição atual.

Num estudo de seguimento após 5 anos da avaliação inicial feito por CAR-VALHO et al. (l992), as crianças foram reavaliadas. Das 61 famílias que havi-am participado do estudo apenas, 39 crianças foram encontradas. Destas, 82,3%apresentaram algum grau de desnutrição (P/I < que 90% do padrão), 71,7%tinham A/I < 95 % do padrão, e 14,3 % possuiam P/A < que 90 % do padrão.

MARTINS e MENEZES (1994), investigando o estado nutricional decrianças indígenas menores de 5 anos, encontraram 76,1% de prevalência dedesnutrição. Entretanto, apesar de tantas evidências de desnutrição, não pode-mos esquecer o outro extremo da avaliação nutricional, que é a obesidade. Aobesidade é das patologias nutricionais que mais têm apresentado aumento,não apenas nos países ricos, mas também nos países em desenvolvimento,podendo-se observar quase que uma equiparação com a desnutrição (FISBERG,1993).

Na infância e adolescência, a obesidade tem como importância a possibili-dade de sua manutenção na vida adulta, que predisporá o indivíduo a maiormorbiletalidade. Segundo FISBERG (1993), alguns fatores são determinantespara o estabelecimento da obesidade: desmame precoce, introdução inadequadade alimentos, emprego de fórmulas preparadas de modo incorreto, distúrbios docomportamento alimentar.

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TERRA E CULTURA, ANO XIX, Nº 37 97

A composição da dieta, segundo muitos estudos, tem demonstrado relaçãodireta na alteração do peso de crianças. Dietas hiperlipídicas poderiam favore-cer a obesidade, enquanto que dietas deficientes poderiam levar a deficiênciasnutricionais (CINTRA e FISBERG, 1995).

Tratando-se de pré-escolares e escolares, acredita-se que a melhor manei-ra de prevenir alterações nutricionais presentes e futuras é a atenção continuadae a educação nutricional, que deve estender-se a todos os membros que diretaou indiretamente cuidam da criança.

CATALAN et al. (1993) definem educação nutricional como: “qualquercombinação de atividades de informação e educação que leve a uma situ-ação em que as pessoas desejam estar sãs, saibam como alcançar a saúde,façam o que puderem individual ou coletivamente para manter a saúde ebusquem ajuda quando necessitem.” É preciso enfatizar que a educaçãodirigida à criança pode contribuir para a formação de hábitos adequados, tendo-se em mente que o comportamento na idade adulta depende do aprendizadorecebido na infância (MOTTA et al., 1991).

Neste contexto, as crianças de creches, pré-escolares e escolares de1o grau que se beneficiam da merenda escolar constituem campo fértil parao sucesso de qualquer programa de educação nutricional (CAMPOS et al. ,1995).

FORRESTER (1990) afirma que, da integração entre todos os membros,sejam funcionários, professores, diretores e pais, ou pessoas que cuidam da cri-ança, depende o sucesso de qualquer proposta de educação ou intervençãonutricional.

Os objetivos desse trabalho foram avaliar o estado nutricional das criançase a adequação da alimentação oferecida por uma creche filantrópica da cidadede Londrina.

METODOLOGIA

Participaram do estudo 63 crianças de 4 meses a 7 anos atendidas por umacreche filantrópica. A avaliação foi realizada através de antropometria, sendo opeso obtido por balança digital e a altura através de plataforma e fita métricaafixada à parede. A criança foi pesada descalça e com o mínimo de roupas, e aaltura foi determinada com a criança encostada à parede, olhando para o hori-zonte. A estatura dos bebês de 4 meses a 1 ano foi obtida em posição recumbente,utilizando-se antropômetro. Foram feitas duas avaliações, sendo uma no início eoutra no final do estudo, após a intervenção nutricional.

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TERRA E CULTURA, ANO XIX, Nº 37 98

As classificações foram feitas segundo o Nacional Center for HealthStatistics (NCHS, 1983), e a distribuição foi realizada em decis segundo SISVAN(1996), sendo Pº < 3 desnutrição grave; de Pº = 3 a < 5 desnutrição leve; de Pº= 5 a < 10 baixo peso; e de Pº = 10 a < 90 eutrofia; de Pº = 90 a < 95 sobrepeso;e obesidade Pº > 95.

Para avaliação da dieta consumida foram utilizadas análises de cardápiosdurante 5 dias não consecutivos, sendo determinado um porcionamento médioatravés de pesagem da porção servida e os restos. Foram analisadosmacronutrientes (proteínas, carboidratos e lipídeos), micronutrientes (cálcio, fer-ro) e energia. Para avaliação química foi utilizada a tabela de composição dosalimentos (FRANCO, 1998). Para efetuar a porcentagem de adequação dasnecessidades nutricionais das crianças, foram consideradas a faixa etária de 1 a7 anos.

As ofertas de macro e micro nutrientes foram avaliadas tendo-se comoparâmetro o SBAN (1990) para cada faixa etária.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Pelos resultados obtidos, verificou-se que 57,1% das criança eram do sexomasculino e 42,9% do sexo feminino, conforme pode-se observar na Figura 1.

Quanto à classificação nutricional na avaliação inicial, verificou-se que 3,17%das crianças estavam com desnutrição grave, 82,54% estavam eutróficas, 4,76%

Figura 1. Distribuição das crianças segundo sexo

43%

57%

FEMININOMASCULINO

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TERRA E CULTURA, ANO XIX, Nº 37 99

com sobrepeso e 9,52% com obesidade. Na avaliação final, após a intervenção,verificou-se que 1,59% das crianças permaneciam com desnutrição grave e 1,59%estavam com baixo peso, enquanto as crianças eutróficas, com sobrepeso e comobesidade permaneceram iguais à primeira avaliação, conforme pode ser obser-vado na Figura 2.

A análise dos cardápios de cinco dias não consecutivos demonstrou que aenergia fornecida pela dieta foi de 982,92 ± 156,92kcal. Quanto aosmacronutrientes, verificou-se que 61,83 ± 3%, 14,63 ± 2,42% e 23,53 ± 2,96%eram carboidratos, proteínas e lipídeos, respectivamente. Dos micronutrientesanalisados, observou-se uma oferta de 253 ± 87,57mg de cálcio e 6,12 ± 1,42mgpara o ferro.

O ferro é um micronutriente muito importante na dieta de criançaspequenas. Sua deficiência está associada com anemia ferropriva, retardono desenvolvimento neuropsicomotor, diminuição das defesas no organis-mo e da capacidade intelectual e motora (FILER, 1989). Além da quanti-dade de ferro, deve-se levar em consideração sua biodisponibilidade, ouseja, quanto de ferro é biodisponível para ser usado no metabolismo. Nestetrabalho, observou-se que a adequação de ferro na faixa etária de 1,1 a 3anos foi de 76.5%, enquanto que nas crianças de 3,1 a 5 anos foi de61.2%, apresentando um índice ainda menor para crianças de 5,1 a 7anos, 51.0%.

0

20

40

60

80

100

1ª avaliação 2ª avaliação

Figura 2. Estado nutricional das crianças nas avaliações inicial e final

Desnutrição graveDesnutrição leveBaixo PesoEutrofiaSobrepesoObesidade

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TERRA E CULTURA, ANO XIX, Nº 37 100

Na Tabela 1 são mostrados os índices de adequação para energia, cálcio,ferro e proteína.

Tabela 1. Adequação dos nutrientes da alimentação oferecidas,segundo as faixas etárias

Os alimentos ricos em ferro são consumidos em quantidades insuficientespor crianças abaixo de dois anos de idade, resultando em risco de anemia futura.A deficiência de ferro é considerada a carência nutricional específica maisprevalente, tanto nos países em desenvolvimento quanto nos países desenvolvi-dos. A OMS estima que metade da população de crianças menores de 4 anosresidentes nos países em desenvolvimento sofre de anemia ferropriva (Fundodas Nações Unidas para a Infância, 1998).

Conforme foi observado em trabalho realizado por MIGLIORANZA et al.(2002), na cidade de Londrina, verificou-se uma prevalência de 41,3% de ane-mia em crianças de escolas da rede pública.

Quanto à adequação de cálcio, verificou-se que os índices também foramdecrescentes, sendo estes inversamente proporcionais à idade. Para crianças de1,1 a 3 anos, foi de 40,5%, de 3,1 a 5 anos, de 32,6%, e de 5,1 a 7 anos atingindosomente 28,1% da recomendação. A deficiência deste mineral pode acarretarsérios prejuízos quanto ao crescimento e desenvolvimento normal da criança.Desta forma, pode-se concluir que o consumo de produtos lácteos e alimentosfontes de cálcio foi insuficiente para atingir o mínimo necessário para promoçãode um estado de saúde adequado, o que contrasta com a dieta base de criançasnesta faixa etária, que em sua maioria é composta por laticínios e seus deriva-dos.

A quantidade de proteínas nas dietas das crianças brasileiras menores de 2anos é bem superior à recomendada, como evidenciado no estudo multicêntricode consumo alimentar (Brasil, 1999), o que corrobora os dados obtidos nestetrabalho, em que se verificou um consumo protéico acima de 100% das necessi-dades recomendadas, para todas as faixas etárias.

Energia Cálcio Ferro Proteína

Faixa

etária

Recom.

(kcal)

%Adeq. Recom.

(mg)

%Adeq. Recom.

(mg)

%Adeq. Recom.

(g)

%Adeq.

1,1 – 3 1250 78.6 625 40.5 8 76.5 18.9 191.0

3,1 – 5 1550 63.4 775 32.6 10 61.2 24.75 145.9

5,1 - 7 1800 54.6 900 28.1 12 51.0 27.67 130.5

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CONCLUSÕES

Considerando-se que a criança que freqüenta a creche durante 8 horas pordia deverá receber alimentação que satisfaça 70% de suas necessidadesnutricionais diárias, observou-se que as calorias atenderam às necessidades dascrianças da faixa etária menor; entretanto, ocorreu déficit com as outras faixas,principalmente as crianças de 5 a 7 anos.

Com os resultados deste estudo, ficou evidente que a atuação do profissio-nal de Nutrição nesses locais é de suma importância, tanto para prevenção comopara recuperação de deficiências nutricionais e promoção de hábitos alimenta-res saudáveis.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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TERRA E CULTURA, ANO XIX, Nº 37 103

1

ESTRESSE DE PROFISSIONAIS DE SAÚDE DASUNIDADES BÁSICAS DO MUNICÍPIO DE LONDRINA

*Edvilson Cristiano Lentine**Tereza Kiomi Sonoda

***Damares Tomasin Biazin

RESUMO

O estresse é a resposta fisiológica, psicológica e comportamental de umapessoa, visando adaptação a mudanças ou situações novas, geradas por pres-sões externas ou internas. Por isso, este trabalho tem por objetivos: analisar osníveis de estresse nos profissionais das Unidades Básicas de Saúde (UBS) domunicípio de Londrina; identificar as fontes geradoras de estresse nas atividadesdas pessoas que trabalham nessas UBS e verificar as principais alterações docomportamento que o estresse pode acarretar sobre a saúde desses profissio-nais. Esta pesquisa foi desenvolvida na linha quantitativa e a coleta de dados foirealizada nas 51 UBS através de questionário desenvolvido pelos autores. Apopulação alvo do estudo foram os profissionais da rede de saúde: enfermeiros,médicos e auxiliares de enfermagem, totalizando 812 profissionais, obtendo-seretorno de 429 (53%) questionários, sendo 102 enfermeiros, 61 médicos e 266auxiliares de enfermagem, que então constituíram a amostra. Os resultados mos-tram que todos os profissionais referiram nível médio de estresse em seu local detrabalho, sendo 62% dos enfermeiros, 61% dos médicos e 62% dos auxiliares deenfermagem. A grande maioria dos profissionais considera seu trabalhoestressante, sendo que esta foi a resposta de 96% dos enfermeiros, 77% dosmédicos e 73% dos auxiliares de enfermagem. Os profissionais afirmam quealiviam seu estresse praticando atividades físicas. Citaram esta atividade enfer-meiros (23%), médicos (31%) e auxiliares de enfermagem (15%). Em seus lo-cais de trabalho, o que causa mais estresse é: para 19% dos enfermeiros, a altademanda; para 18% dos médicos, a carga horária excessiva; para 19% dos

* Enfermeiro graduado pela UniFil. Discente de Especialização em Saúde Pública na UniFIL.Enfermeiro e Coordenador do Programa Saúde da Família das Unidades Básicas de Saúde dosdistritos de Maravilha e de Três Bocas do município de Londrina – Pr.** Discente de Especialização em Saúde Pública na UniFIL. Enfermeira e Coordenadora do Progra-ma Saúde da Família da Unidade Básica de Saúde do distrito Taquara do Reino do município deIbiporã – Pr.*** Docente no Curso de Enfermagem da UniFil. Docente de Especialização em Saúde Pública daUniFil. Mestre em Enfermagem, Coordenadora do Curso de Enfermagem da UniFil e Doutorandapela USP de Ribeirão Preto.E-mail: [email protected]

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TERRA E CULTURA, ANO XIX, Nº 37 104

auxiliares de enfermagem, os pacientes sem respeito/estressados e sem consci-ência do trabalho na UBS. A maioria dos profissionais classifica como bom onível de relacionamento com seus colegas de trabalho, sendo assim para 72%dos enfermeiros, 66% dos médicos e 70% dos auxiliares de enfermagem. Osmesmos avaliam como gratificante o seu trabalho, sendo 67% dos enfermeiros,59% dos médicos e 69% dos auxiliares de enfermagem. Como principal ativida-de de lazer, enfermeiros, médicos e auxiliares de enfermagem apontaram a leitu-ra (15%, 16% e 13%, respectivamente). Os resultados sugerem que o estressegerado pelas atividades destes profissionais desencadeia neles alterações na saúde,sendo necessário um programa de prevenção e redução do estresse em todas asUBS.

PALAVRAS-CHAVE: Estresse; Trabalho; Unidades Básicas de Saúde do Município de Londrina.

ABSTRACT

Stress is a person’s physiologic, psychological, and behavioral response,seeking for adaptation to changes or new situations, generated by internal orexternal pressures. The goal of this work is three-fold: to analyze stress levels inprofessionals of the Basic Units of Health (UBS) in the city of Londrina; toidentify the generating sources of stress in the activities of those who work in theUBS; and to verify the main behavioral alterations that can be caused by stresson the professionals’ health. This is a quantitative research and the collection ofdata was carried out in 51 UBS through a questionnaire developed by the authors.The subjects were health professionals, namely, nurses, doctors and nursingassistants, totaling 812 professionals. The return data obtained was 429 (53%)questionnaires, being 102 nurses, 61 doctors, and 266 nursing assistants, constitutingthe sample. The results show that all the professionals signaled medium level ofstress in their workplace, being 62% of nurses, 61% of doctors, and 62% ofnursing assistants. The professionals’ great majority consider their work to bestressful, that being the answer of 96% of nurses, 77% of doctors and 73% ofnursing assistants. The professionals consider doing physical exercise a relief fortheir stress. Those who mentioned this activity are: nurses (23%), doctors (31%),and nursing assistants (15%). In their workplace, what they consider as the maincause of stress are: for 19% of nurses, the high demand; for 18% of doctors, theexcessive workload; 19% of nursing assistants mentioned lack of respect on the

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TERRA E CULTURA, ANO XIX, Nº 37 105

patients’ part, stressed patients, and patients’ lack of understanding of what thework at UBS is. Most professionals classified as good the relationship level amongtheir work partners, namely, 72% of nurses, 66% of doctors, and 70% of nursingassistants. They also evaluate their work as gratifying, namely, 67% of nurses,59% of doctors and 69% of nursing assistants. As for their main leisure activity,nurses, doctors, and nursing assistants mentioned reading (15%, 16%, and 13%,respectively). The results suggest that the stress generated by these professionals’activities cause alterations in their health, so there is the need for a preventionprogram aiming at the reduction of stress in all UBS.

KEY-WORDS: Stress; Work; Basic Units of Health in the City of Londrina.

I. INTRODUÇÃO

O estresse é um estado produzido por uma mudança no ambiente que épercebido como desafiador, ameaçador ou perigoso para o balanço ou equilíbriodinâmico da pessoa. Em termos mais científicos, o estresse é a resposta fisioló-gica e de comportamento de um indivíduo que se esforça para adaptar-se eajustar-se a pressões internas e externas. Como a energia necessária para essaadaptação é limitada, o organismo entra finalmente na fase do esgotamento (BARE& SMELTZER, 1998, p.93).

As primeiras referências à palavra “stress” significando “aflição” e “ad-versidade” datam do século XIV, mas seu uso era esporádico e não-sistemático.No século XVII, o vocábulo, que tem origem latina, passou a ser utilizado eminglês para designar “opressão, desconforto e adversidade” (LIPP, 1996, p.17).

A palavra “Estresse” vem do inglês “Stress”. Este termo foi usadoinicialmente na física para traduzir o grau de deformidade sofrido por ummaterial quando submetido a um esforço ou tensão. Hans Selye (médico)transpôs este termo para a medicina e biologia, significando esforço de adapta-ção do organismo para enfrentar situações que considere ameaçadoras à suavida e ao seu equilíbrio interno (PINHEIRO, 2002, p.1).

Segundo SABBATINI (2002, p.1), o estresse é um conjunto de reaçõesdo organismo a agressões de ordem física e psíquica capazes de perturbaro equilíbrio orgânico, apresentando sintomas como: perda de concentra-ção mental, fadiga fácil, fraqueza, mal-estar, instabilidade emocional, des-controle, agressividade, irritabilidade, depressão, angústia, palpitações car-díacas, suores frios, tonturas, vertigens, dores musculares e de cabeça,dores de estômago, etc.

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Existem 3 tipos de estresse: o profissional, o situacional e o estresse pesso-al. Estes ainda podem ser caracterizados como agudos ou crônicos. O estresseprofissional é o estresse associado aos processos de profissionalização e desen-volvimento na sociedade. Está vinculado a administrar o peso da responsabilida-de profissional, lidar com situações difíceis e problemáticas geradas pelas pesso-as. O estresse situacional é o decorrente de características como: privação dosono, fadiga, excesso de trabalho (NOGUEIRA-MARTINS & JORGE, 1998,p.28). Já o estresse pessoal é o que está vinculado a características individuais esituações pessoais, como sexo, características de personalidade, vulnerabilidadespsicológicas, situação sócio-econômica, problemas familiares, eventos de vida,etc. O estresse agudo é o conseqüente a um acontecimento traumático, como aperda de um ente querido, um assalto, uma doença grave na família, perda dotrabalho, perda de um bem. O estresse crônico é o do dia-a-dia, como os proble-mas de trânsito, da profissão, econômicos, relações de trabalho, de família (NO-GUEIRA-MARTINS & JORGE, 1998, p.28).

O ser humano cada vez mais se vê diante de inúmeras situações às quaisprecisa adaptar-se. Por exemplo, ele se vê diante de demandas e pressões ex-ternas vindas da família, do meio social, do trabalho/escola ou do meio ambiente.Outros fatores aos quais precisa adaptar-se são as responsabilidades, obriga-ções, auto-crítica, dificuldades fisiológicas e psicológicas (PINHEIRO, 2002, p.1).

No dia-a-dia, frases como “estou estressado”, ou “isto me estressa”, sãousadas para qualquer situação que fuja do controle. Desde a jovem que vibraporque entrou na faculdade, até aquela que “explode” com o marido, ou aqueleque trabalha obstinadamente, ou mesmo o torcedor que “delira” com a goleadado seu time, o mecanismo de reação é o mesmo (ZANUZZI, 1999, p.21).

Segundo FRANÇA & RODRIGUES (1996, p.22), os estressores podemadvir do meio externo, como o frio, o calor, condições de insalubridade; ou aindado ambiente social, como o trabalho; e do mundo interno, aquele vasto mundoque temos dentro de nós, como os pensamentos e as emoções – angústia, medo,alegria, tristeza. Tanto um como o outro tipo de estressor é capaz de disparar emnosso organismo uma série imensa de reações via sistema nervoso, sistema ner-voso endócrino (relacionado às glândulas), sistema imunológico, através daestimulação do hipotálamo – uma glândula situada na base do cérebro – e siste-ma límbico, que são importantes estruturas do Sistema Nervoso Central relacio-nadas com o funcionamento dos órgãos e regulação das emoções (ANEXO I).

Segundo FRANÇA & RODRIGUES (1996, p.20), o médico Hans Selyetranspôs o conceito de “Estresse” da física para a medicina e biologia e o dividiudidaticamente em 3 fases interdependentes. Com esse conceito, ele deu umanova interpretação aos distúrbios psicossomáticos. Diante de um(a) ou mais

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dos(as) estímulos (condições) citados(as), o indivíduo entra na 1ª Fase descritapor Selye, denominada Fase de Alarme. Nesta fase o organismo entra emestado de alerta para se proteger do perigo percebido e dá prioridade aos órgãosde defesa, ataque ou fuga. As reações corporais desenvolvidas nesta fase são:dilatação das pupilas; estimulação do coração (palpitação), pois a noradrenalina,produzida nas glândulas supra-renais, acelera os batimentos cardíacos e provocauma alta da pressão arterial, permitindo uma melhor circulação do oxigênio; arespiração se altera (tornando-se ofegante) e os brônquios se dilatam para pode-rem receber maior quantidade de oxigênio; aumento na possibilidade de coagula-ção do sangue (para assim poder fechar possíveis ferimentos); o fígado libera oaçúcar armazenado para que este seja usado pelos músculos; redistribuição dareserva sangüínea da pele e das vísceras para os músculos e cérebro; frieza nasmãos e pés; tensão nos músculos; inibição da digestão (inibição da produção defluidos digestivos, inibição dos movimentos peristálticos do percursogastrointestinal); inibição da produção de saliva (boca seca).

Na 2ª Fase, denominada Fase de Resistência, Intermediária ou “Estresse”Contínuo, persiste o desgaste necessário à manutenção do estado de alerta. Oorganismo continua sendo provido com fontes de energia rapidamente mobiliza-das, aumentando a potencialidade para outras ações no caso de novos perigosimediatos serem acrescentados ao seu quadro de “estresse” contínuo. O orga-nismo continua a buscar ajustar-se à situação em que se encontra (FRANÇA &RODRIGUES, 1996, p.20).

Toda essa mobilização de energia traz algumas conseqüências, como: re-dução da resistência do organismo em relação a infecções; sensação de desgas-te, provocando cansaço e lapsos de memória; supressão de várias funções cor-porais relacionadas com o comportamento sexual, reprodutor e com o cresci-mento. Alguns exemplos são: queda na produção de espermatozóides; reduçãode testosterona; atraso ou supressão total da puberdade; diminuição do apetitesexual; impotência; desequilíbrio ou supressão do ciclo menstrual; falha na ovu-lação ou falha no óvulo fertilizado ao dirigir-se para o útero; aumento do númerode abortos espontâneos; dificuldades na amamentação (FRANÇA &RODRIGUES, 1996, p.20).

Com a persistência de estímulos estressores, o indivíduo entra na 3ª Fase,denominada Fase de Exaustão ou Esgotamento, onde há uma queda na imu-nidade e o surgimento da maioria das doenças, como, por exemplo: dores vagas;taquicardia; alergias; psoríase; caspa e seborréia; hipertensão; diabetes; herpes;graves infecções; problemas respiratórios (asma, rinite, tuberculose pulmonar);intoxicações; distúrbios gastrointestinais (úlcera, gastrite, diarréia, náuseas); al-teração de peso; depressão; ansiedade; fobias; hiperatividade; hipervigilância;

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alterações no sono (insônia, pesadelos, sono em excesso); sintomas cognitivos,como dificuldade de aprendizagem, lapsos de memória, dificuldade de concentra-ção; bruxismo, o que pode ocasionar a perda de dentes; envelhecimento; distúrbiosno comportamento sexual e reprodutivo (FRANÇA & RODRIGUES, 1996, p.20).

Há um tipo de estresse chamado * Síndrome de Burnout, que se carac-teriza pela insatisfação profissional.

O termo Burnout é uma composição de burn = queima e out = exterior,sugerindo assim que a pessoa com esse tipo de estresse consome-se física eemocionalmente, passando a apresentar um comportamento agressivo e irritadiço.A Síndrome de Burnout é uma resposta ao estresse ocupacional crônico e ca-racterizada pela desmotivação, ou desinteresse, mal estar interno ou insatisfaçãoocupacional, que parece afetar, em maior ou menor grau, alguma categoria ougrupo profissional (CODO, 1999, p.237).

O quadro evolutivo tem 4 níveis de manifestação: 1º nível - Falta de von-tade, ânimo ou prazer de ir trabalhar. Dores nas costas, pescoço e coluna. Dian-te da pergunta “O que você tem?” normalmente a resposta é “Não sei, não mesinto bem.” 2º nível - Começa a deteriorar o relacionamento com outros. Podehaver uma sensação de perseguição (“Todos estão contra mim”); aumenta oabsenteísmo e a rotatividade de empregos. 3º nível - Diminuição notável dacapacidade ocupacional. Podem começar a aparecer doenças psicossomáticas,tais como alergias, psoríase, picos de hipertensão, etc. Nesta etapa, começa aautomedicação que, no princípio, tem efeito placebo mas, logo em seguida, re-quer doses maiores. Neste nível tem-se verificado também um aumento daingestão alcoólica. 4º nível - Esta etapa se caracteriza por alcoolismo, drogadição,idéias ou tentativas de suicídio, podendo surgir doenças mais graves, tais comocâncer, acidentes cardiovasculares, etc. Durante esta etapa ou antes dela, nosperíodos prévios, o ideal é afastar-se do trabalho (CODO, 1999, p.237).

Como enfermeiros de UBS, observamos em nosso local de trabalho profissi-onais apresentando sinais e sintomas de estresse, como por exemplo, dores mus-culares e de cabeça, cansaço físico e mental, irritabilidade, agressividade,desmotivação em relação ao trabalho. Diante do exposto, desenvolvemos um estu-do junto aos profissionais enfermeiros, médicos e auxiliares de enfermagem dasUBS do município de Londrina, com a finalidade de obter dados referentes aossintomas físicos e emocionais, nível e causas de estresse em seu local de trabalhoe quais as atividades de lazer que esses profissionais realizam fora de seu trabalho.

* Nota do Editor: Uma completa revisão a respeito desta síndrome foi publicada nesta Revista. FRITCHE, Anna Thais Cantoni. Burnout - uma ameaça à integridade do trabalhador com sérios prejuízos às organizações. Terra e Cultura, n.36, 2003, p.91-102.

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Por isso, devemos dar importância ao estresse, uma vez que tais profissio-nais de saúde estão susceptíveis a esta situação, identificando suas fontes eprocurando apresentar ações junto à Secretaria Municipal de Saúde para tentarreduzi-las ou eliminá-las, para prevenir situações perigosas, como, por exemplo,doenças cardiovasculares e psíquicas.

Nesse sentido, a pesquisa teve por objetivos: 1) identificar os níveis de estressenos profissionais da área de saúde das Unidades Básicas (UBS) do município deLondrina; 2) identificar as fontes geradoras de estresse nas atividades das pessoasque trabalham nessas UBS; 3) verificar as principais alterações do comportamen-to que o estresse pode acarretar sobre a saúde desses profissionais.

II. METODOLOGIA

O presente trabalho foi realizado nas 51 Unidades Básicas de Saúde (UBS)do município de Londrina, assim distribuídas: 7 UBS na região central, 8 na regiãonorte, 8 na região sul, 8 na região leste, 7 na região oeste e 13 na área rural. Estapesquisa foi desenvolvida na linha quantitativa e a coleta dos dados aconteceu nosmeses de fevereiro a maio de 2003. A população-alvo do estudo foram os seguin-tes profissionais da rede de saúde: 121 enfermeiros, 202 médicos, 489 auxiliares deenfermagem, totalizando 812 profissionais, os quais foram levantados junto aoDepartamento de Recursos Humanos da Autarquia Municipal de Saúde (AMS).

Para a realização desta pesquisa, foi solicitada uma autorização, junto àCoordenação da Autarquia de Saúde do município de Londrina e o projeto foisubmetido à avaliação do Comitê de Bioética da Irmandade Santa Casa de Lon-drina, obtendo aprovação.

Para a coleta dos dados foi desenvolvido um instrumento, elaborado pelos au-tores, contendo 14 questões fechadas e 2 questões abertas, relativas às informaçõespessoais e demográficas, incluindo condições de saúde, relacionamento com os de-mais colegas de trabalho e preferências quanto ao lazer. O instrumento elaborado foisubmetido à análise de conteúdo por especialistas da área e avaliado através de umestudo-piloto, a fim de ser validado. Os resultados do estudo piloto mostraram nãohaver necessidade de nenhum reajuste. Os instrumentos validados (ANEXO II)foram enviados pelo serviço de malote da AMS a todas as UBS do município deLondrina, juntamente com o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, confor-me preconiza a Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde (CNS).

O total de questionários enviados foi de 812, obtendo-se retorno de 429(53%), sendo 102 enfermeiros, 61 médicos e 266 auxiliares de enfermagem. Acomposição da amostra ficou, ao final da fase de tabulação, com 53% do origi-nal. No processo de tabulação dos dados, 43% dos questionários foram excluí-

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dos por apresentar respostas em branco ou foram devolvidos porque os profissi-onais estavam em férias. Foram feitos contatos via telefone com os enfermei-ros/coordenadores das UBS, solicitando cooperação dos mesmos para a devolu-ção dos questionários em tempo hábil. Os pesquisadores também comparece-ram pessoalmente em algumas UBS para recolher os instrumentos respondidos.

Após a coleta, os dados foram tabulados, analisados através de estatísticadescritiva e os resultados foram apresentados em tabelas no capítulo referente aResultados e Discussão.

III. RESULTADOS E DISCUSSÃO

TABELA 1: Distribuição do número de profissionais da UBS doMunicípio de Londrina que responderam o questionário – 2003

Foram distribuídos 812 questionários para 121 enfermeiros, 202 médicos e489 auxiliares de enfermagem. Deste total, foram respondidos 429 questionári-os, conforme mostra a Tabela 1, sendo 102 enfermeiros, 61 médicos e 266 auxi-liares de enfermagem. Os profissionais enfermeiros, conforme pode-se verifi-car, foram os que mais responderam os questionários.

TABELA 2: Distribuição dos profissionais pesquisados das UBS do Município de Londrina, segundo faixa etária – 2003

A maioria dos enfermeiros e auxiliares de enfermagem estão distribuídosna faixa etária entre 30 e 40 anos, e os médicos na faixa etária entre 40 e 50anos, conforme mostra a Tabela 2.

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TABELA 3: Distribuição dos profissionais pesquisados das UBS do Município de Londrina, por regiões – 2003

A Tabela 3 mostra que a maioria dos enfermeiros, médicos e auxiliares deenfermagem que responderam são das regiões norte e sul, possivelmente devidoao número elevado de UBS nessas regiões, oito em cada.

TABELA 4: Distribuição dos profissionais pesquisados, das UBS do Município de Londrina, segundo o sexo - 2003

Na área de enfermagem, há um número maior de profissionais do sexofeminino, enquanto que na área da medicina, há um equilíbrio entre ambos ossexos, segundo dados da Tabela 4.

Este resultado era esperado, porque as estatísticas mostram que a equipede enfermagem brasileira é constituída, em sua grande maioria, por profissionaisdo sexo feminino.

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TABELA 5: Distribuição dos profissionais pesquisados das UBS do Município de Londrina, quanto ao grau de escolaridade - 2003

(*) Existem profissionais que trabalham como auxiliar de enfermagem, maspossuem especialização ou curso superior completo ou incompleto, não sendopossível averiguar a área de profissionalização dos mesmos, conforme mostra aTabela 5.

Os profissionais enfermeiros e médicos possuem especialização em suamaioria, enquanto os auxiliares de enfermagem possuem formação de 2º graucompleto.

TABELA 6: Distribuição dos profissionais pesquisados das UBS do Município de Londrina, quanto à renda salarial mensal - 2003

Os profissionais enfermeiros possuem renda salarial mensal, em sua maio-ria, entre 4 e 6 salários mínimos, devido a novas contratações, seguidos de 8 a 10salários mínimos, devido ao tempo de serviço na rede pública e realização deplantões de finais de semana pelos mesmos. A maior parte dos médicos recebe10 ou mais salários mínimos, pois alguns realizam plantões fora da UBS. Osauxiliares de enfermagem possuem renda mensal entre 4 e 6 salários mínimos,em sua maioria, conforme os dados apresentados na Tabela 6.

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TABELA 7: Distribuição dos profissionais pesquisados das UBS do Município de Londrina, quanto à carga horária semanal de trabalho - 2003

Quanto à carga horária cumprida pelos enfermeiros, para 85% predomi-nam as 40 horas semanais devido ao Programa Saúde da Família (PSF). Médi-cos (62%) e auxiliares de enfermagem (58%) trabalham 30 horas semanais, poisnem todos os profissionais aderiram ao PSF, como mostra a Tabela 7.

TABELA 8: Distribuição dos profissionais das UBS do Município de Londrina, quanto à classificação do nível de estresse no trabalho – 2003

A Tabela 8 mostra que em todas as categorias profissionais o nível médiode estresse foi citado em seu local de trabalho, sendo 62% dos enfermeiros, 61%dos médicos e 62% dos auxiliares de enfermagem, ressaltando que 31% dosenfermeiros apresentaram nível alto, enquanto que os médicos apresentaram21% e auxiliares de enfermagem, 15%. Segundo CARVALHO & LIMA (2001,p.31-34) e STACCIARINI & TRÓCCOLI (1999, p.30-34), os trabalhadores daequipe de enfermagem apresentam nível elevado de estresse em seu ambientede trabalho. Segundo NOGUEIRA-MARTINS & JORGE (1998, p.28-34), osníveis de estresse são os principais distúrbios comportamentais e disfunções pro-fissionais que afetam os médicos residentes, salientando-se a importância doconhecimento desses dados para o planejamento, organização e avaliação deprogramas de Residência Médica.

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TABELA 9: Distribuição dos profissionais pesquisados das UBS do município de Londrina quanto à resposta à questão “Você considera seu trabalho estressante?”

A grande maioria dos profissionais considera o seu trabalho estressante,sendo que foi essa a resposta de 96% dos enfermeiros, 77% dos médicos e 73%dos auxiliares de enfermagem, como mostra a Tabela 9.

TABELA 10: Distribuição das atividades realizadas pelos profissionais a fim de aliviarem seu nível de estresse – 2003

TABELA 10 A TABELA 10 B TABELA 10 C

O item “outros” engloba outras atividades mencionadas com baixo índice.De acordo com a Tabela 10, todos os profissionais mencionaram que aliviam

seu estresse praticando atividades físicas. Citaram esta atividade, enfermeiros (23%),médicos (31%) e auxiliares de enfermagem (15%). Em seguida os enfermeirosafirmaram passear, assistir televisão e freqüentar o cinema; os médicos menciona-ram ler e ouvir música; e os auxiliares de enfermagem relataram passear e ler.

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TABELA 11 – Distribuição dos profissionais das UBS do município de Londrina quanto à resposta à questão “O que no seu trabalho lhe causa estresse?”

TABELA 11 A TABELA 11 B

TABELA 11 C

Enfermeiro N %alta demanda 37 19

baixa/ falta de resolutividade 20 10falta de apoio, motivação,cobrança da chefia 16 08

falta de recursos humanos 15 08população s/ consciência dotrabalho na UBS 15 08

carga horária excessiva 13 07falta de materiais e estruturafísica 12 06falta de comprometimento defuncionário 11 06relacionamento com colegasde trabalho 10 05

falta de vagas no computador 08 04

lidar com o público 07 04baixa remuneração para muitaresponsabilidade 06 03problemas sociais/ culturais/econômicos 06 03

burocracia/ relatórios 05 03

outros 15 08

Médico N %carga horária excessiva 14 18

alta responsabilidade 11 14rotina de trabalho/ correria dodia-a-dia 07 09

alta demanda 05 06

horários 03 04

lidar com o público 03 04

baixo salário 03 04problemas sociais/ culturais/econômicos 03 04pacientes com queixasmúltiplas 03 04

outros 24 31

Auxiliar de Enfermagem N %pacientes sem respeito/estressado e s/ consciênciado trabalho na UBS 51 19alta demanda 37 14falta de recursos humanos 28 10falta de materiais e estruturafísica 28 10falta de comprometimento defuncionário 23 09falta/ baixa resolutividade 16 06lidar com público 14 05falta de organização ecomunicação na equipe 10 04falta de apoio/reconhecimento da chefia/humanização 08 04problemas sociais/ culturais/econômicos 07 03rotina 07 03falta de vagas para consultamédicas 07 03cobrança da chefia/comunidade 07 03poluição sonora 04 02desmotivação dosfuncionários 03 01competição entre os colegas 03 01outros 16 06

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O item “outros” engloba outras respostas, com baixo índice, mencionadasna questão “O que no seu trabalho lhe causa estresse?”

Em seus locais de trabalho, os fatores que causam mais estresse são: para19% dos enfermeiros, a alta demanda, 10% referem-se à baixa/falta deresolutividade, e 8% mencionam falta de apoio, motivação, cobrança da chefia.Para 18% dos médicos, a carga horária excessiva é o fator principal, 14% menci-onam a alta responsabilidade, e 9% citam a rotina de trabalho/correria do dia-a-dia. 19% dos auxiliares de enfermagem mencionaram pacientes sem respeito/estressados e sem consciência do trabalho na UBS; 14% citaram a alta demanda,e 10%, a falta de recursos humanos juntamente com a falta de materiais e estrutu-ra física.

Segundo LAUTERT, CHAVES & MOURA (1999, p. 415-425), a sobrecar-ga de trabalho foi a fonte que determinou a maior estimativa de risco relativo (5,9)de estresse. A seguir, estão as situações críticas, com risco de 5,09; conflito defunções, com 5,04; relacionamento interpessoal, 3,83; e gerenciamento de pessoal,3,66. As situações críticas foram a fonte que obtiveram as maiores pontuaçõesnos relatos dos enfermeiros.

TABELA 12: Sinais e sintomas apresentados pelos profissionais que trabalham nas UBS do Município de Londrina – 2003

TABELA 12 A TABELA 12 B TABELA 12 CEnfermeiro

Sinais e sintomas N %dores MM e decabeça

65 15

irritabilidade 57 13perda deconcentraçãomental

52 12

alteração do sono 44 10angústia 41 10fadiga fácil 32 08alteração do apetitealimentar

26 06

dores de estômago 25 06alteração do alibidosexual

21 05

depressão 20 05agressividade 18 04

vertigens e tonturas 17 04nenhuns destessintomas

08 02

MédicoSinais e sintomas N %irritabilidade 31 14

dores MM e de cabeça 27 13

alteração do sono 27 13

fadiga fácil 26 12perda de concentraçãomental

17 08

angústia 16 07

dores de estômago 13 06nenhuns destessintomas

13 06

alteração do apetitealimentar

12 06

depressão 11 05

agressividade 09 04alteração da libidosexual

06 03

vertigens e tonturas 06 03

Aux. Enf.Sinais e sintomas N %irritabilidade 157 15dores MM e decabeça

153 14

alteração do sono 112 11perda deconcentraçãomental

101 10

angústia 85 08

dores de estômago 73 07alteração da libidosexual

64 06

vertigens e tonturas 64 06

fadiga fácil 62 06

alteração do apetitealimentar

60 05

depressão 53 05

nenhuns destessintomas 41 04

agressividade 37 03

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A Tabela 12 mostra o que os profissionais de saúde mencionaram como sinaise sintomas mais freqüentes, a saber: 15% dos enfermeiros apresentam dores muscu-lares e de cabeça, 13%, irritabilidade e 12%, perda de concentração mental; 14%dos médicos apresentaram irritabilidade, 13%, dores musculares e de cabeça e alte-ração do sono e 12%, fadiga fácil. Dentre os auxiliares de enfermagem, 15% relata-ram irritabilidade, 14%, dores musculares e de cabeça e 11%, alteração do sono.

Em muitas situações, as dores de cabeça são causadas por tensão muscu-lar ou por espasmos de vasos sangüíneos, criados pelo organismo como respos-tas a situações estressantes. As perturbações gastrintestinais são sintomascomumente desencadeados ou agravados pelo estresse crônico. O aumento deácidos gástricos, provocado como resposta ao estresse, pode levar ao desenvol-vimento de úlceras pépticas (DUNN & DUNN, 1986, p.7-12).

Segundo ALBRECHT (1990, p.291), “as situações de ansiedade e ten-são levam a uma mobilização química coordenada de todo o corpo huma-no”. A taquicardia e a sudorese podem resultar das modificações químicas queocorrem nessa reação fisiológica desencadeada quando a pessoa enfrenta umasituação estressante.

Segundo SELLIGMAN-SILVA (1995, p.287-310), “a fadiga é um sinto-ma que se apresenta na síndrome conhecida como “burnout” e “fadigacrônica”. A síndrome da fadiga crônica se caracteriza por uma constante sen-sação de cansaço, má qualidade do sono, dores de cabeça e no corpo, perda doapetite, irritabilidade e desânimo. Estas alterações levam ao empobrecimento davida relacional do trabalhador, diminuindo as demonstrações de afeto, incluindo avida sexual e os outros relacionamentos familiares ou sociais.

TABELA 13: Nível de relacionamento com os colegas pelos profissionais pesquisados que trabalham nas UBS do Município de Londrina - 2003

Todos os profissionais mencionaram maior relacionamento em nível decoleguismo, sendo 47% dos enfermeiros, 57% dos médicos e 48% dos auxiliares deenfermagem, seguido de “amizade em seu local de trabalho”, conforme Tabela 13.

Enfermeiro(a) Médico(a) Aux. EnfermagemRelacionamento N % N % N %

apenas profissional 19 19 06 10 20 08de amizade 35 34 20 33 118 44de coleguismo 48 47 35 57 128 48Total 102 100 61 100 266 100

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TERRA E CULTURA, ANO XIX, Nº 37 118

TABELA 14: Classificação do nível de relacionamento com os colegas pelos profissionais que trabalham nas UBS do Município de Londrina - 2003

Todos os profissionais classificam como bom o nível de relacionamentocom seus colegas de trabalho, sendo 72% dos enfermeiros, 66% dos médicos e70% dos auxiliares de enfermagem, conforme mostra a Tabela 14.

Estes resultados confirmam o estudo realizado por TAIRA et al. (1997),onde mostraram que, em relação ao nível de relacionamento chefia/supervisão eos funcionários, 80% acharam bom e 10%, satisfatório e regular.

TABELA 15: Avaliação do trabalho realizado pelos profissionais pesquisados que trabalham nas UBS doMunicípio de Londrina – 2003

TABELA 15 A TABELA 15 B TABELA 15 C

Todos os profissionais avaliam como ‘gratificante’ o seu trabalho, sendo67% dos enfermeiros, 59% dos médicos e 69% dos auxiliares de enfermagem,seguido de ‘repetitivo’ para todos os profissionais e, em seguida, ‘monótono’para os enfermeiros e médicos, enquanto que só os auxiliares de enfermagemcitam ser ‘lucrativo financeiramente’, como mostra a Tabela 15.

Enfermeiro(a) Médico(a) Aux. EnfermagemRelacionamento N % N % N %

Regular 03 03 04 06 10 04Bom 74 72 40 66 186 70Ótimo 25 25 17 28 70 26Total 102 100 61 100 266 100

Avaliação doTrabalho

Enfermeiro(a)

N %gratificante 68 67repetitivo 20 19monótono 09 09chato 05 05lucrativofinanceiramente

- -

Total 102 100

Avaliação doTrabalho

Médico (a)

N %gratificante 36 59repetitivo 22 36monótono 03 05chato - -lucrativofinanceiramente

- -

Total 61 100

Avaliação doTrabalho

Aux. Enf.

N %

gratificante 185 69

repetitivo 63 24

lucrativofinanceiramente

15 06

monótono 02 01

chato 01 -

Total 266 100

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TABELA 16: Atividades de lazer que os profissionais das UBS do Município de Londrina realizam fora de seu trabalho - 2003

TABELA 16 A TABELA 16 B TABELA 16 C

Como principal atividade de lazer, todos os profissionais enfermeiros, médi-cos e auxiliares de enfermagem assinalaram a leitura (15%, 16% e 13%, respec-tivamente); seguida de passear (15%) e dançar (13%) para os enfermeiros;cantar (14%) e dançar (14%) para os médicos; desenhar (12%) e cantar (12%)para os auxiliares de enfermagem, como mostra a Tabela 16.

CABRAL et al. (2003) afirmam que “a diversão e descontração tor-nam-se cada vez mais importantes no combate ao estresse puramente mental,físico e psicológico. E o melhor remédio é a diversão e a descontração emque se encontra qualquer coisa que tome o lugar dos pensamentospreocupantes, para afugentá-los, e nada afasta tão eficazmente pensamen-tos desagradáveis quanto a concentração em pensamentos agradáveis.”

IV. CONCLUSÕES E SUGESTÕES

De acordo com os dados obtidos, podemos identificar algumas linhas deconsiderações na investigação da percepção sobre a ocorrência de estresse esuas conseqüências nos profissionais enfermeiros, médicos e auxiliares de en-fermagem das Unidades Básicas (UBS) do município de Londrina, sendo que agrande maioria desses profissionais considerou o seu trabalho estressante.

O resultado obtido quanto ao estresse relacionado à sobrecarga de traba-lho, relatado por estes profissionais, nos incita a refletir sobre as condições nasquais o trabalho é desenvolvido nessas instituições, condições que podem estarcontribuindo para o estresse desses profissionais.

Atividades Enfermeiro (a) N %

ler 76 15

passear 75 15

dançar 64 13

viajar 59 12

desenhar 54 11

assistir Tv 48 09

escrever 47 09

dormir 35 07

ouvir música 31 06

cantar 16 03

TOTAL 102 100

Atividades Médico (a) N %

ler 45 16

cantar 40 14

dançar 40 14

passear 37 13

desenhar 27 10

viajar 27 10

escrever 26 09

assistir Tv 15 06

ouvir música 13 05

dormir 09 03

TOTAL 61 100

Atividades Aux. Enf. N %

ler 188 13

desenhar 174 12

cantar 169 12

dançar 165 11

passear 164 11

viajar 136 10

assistir Tv 124 09

escrever 120 08

dormir 108 08

ouvir música 88 06

TOTAL 266 100

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Outro ponto importante foi que os profissionais mencionaram como sinais esintomas mais freqüentes: dores musculares e de cabeça, irritabilidade, perda deconcentração mental, alteração do sono e fadiga fácil.

Apesar disso, todos os profissionais enfermeiros, médicos e auxiliares deenfermagem avaliaram como gratificante o seu trabalho. Os mesmos tambémassinalaram a leitura como sua principal atividade de lazer.

Concluiu-se que os profissionais das Unidades Básicas do município deLondrina indicam sinais característicos de estresse, reconhecem os fatores cau-sadores de estresse e as medidas redutoras. Diante desses resultados, se reco-nhece a necessidade de medidas urgentes e, por isso, sugere-se à SecretariaMunicipal de Saúde a implantação de programas de educação para a saúde, deprevenção e redução do estresse para todos esses profissionais pesquisados etambém outros que trabalham na UBS deste município.

O alívio do estresse moderado pode ser obtido por meio de exercício físicoou de qualquer tipo de meditação, como a ioga. Algumas vezes, a mudança deambiente ou de modo de vida produz boa resposta terapêutica. Somente com oconhecimento e conscientização dos fatores de risco de adoecimento no traba-lho é possível estabelecer medidas corretas para a redução do estresse e pre-venção de doenças que nele têm sua origem.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ANEXOS

ANEXO I

1. Profissão:( ) Enfermeiro(a) ( ) Médico(a) ( ) Auxiliar de Enfermagem

2. Idade:( ) Menos de 30 Anos ( ) De 30 a 40 Anos ( ) De 40 a 50 Anos( ) De 50 a 60 Anos ( ) Mais de 60 Anos

3. Local de trabalho: UBS da região:( ) Norte ( ) Sul ( ) Leste ( ) Oeste ( ) Centro ( ) Rural

4. Sexo:( ) Masculino ( ) Feminino

5. Escolaridade:( ) 1º Grau Completo ( ) 2º Grau Completo ( ) 2º Grau Incompleto( ) 3º Grau Completo ( ) 3º Grau Incompleto ( ) Especialização

6. Renda salarial total mensal:( ) De 4 a 6 Salários Mínimos ( ) De 6 a 8 Salários Mínimos( ) De 8 a 10 Salários Mínimos ( ) Mais de 10 Salários Mínimos

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7. Carga horária:( ) 30 Horas Semanais ( ) 40 Horas Semanais

8. Como você classificaria o seu nível de estresse?( ) Baixo ( ) Médio ( ) Alto

9. Você considera o seu trabalho estressante?( ) Sim ( ) NãoSe “Sim”, responda: O que no seu trabalho lhe causa estresse?__________________________________________________________________________

10. O que você faz para aliviar este estresse?__________________________________________________________________________

11. Freqüentemente eu tenho sentido:( ) Perda de concentração mental ( ) Fadiga fácil( ) Irritabilidade ( ) Agressividade( ) Depressão ( ) Angústia( ) Dores de estômago ( ) Dores musculares e de cabeça( ) Alteração no apetite alimentar ( ) Vertigens e tonturas( ) Alteração do sono ( ) Alteração da libido( ) Nenhum destes sintomas

12. Qual o nível de relacionamento com os colegas de trabalho?( ) Apenas Profissional ( ) De Amizade ( ) De Coleguismo

13. Conforme sua resposta do item anterior, classifique o nível de relacionamen- to com seus colegas de trabalho.( ) Regular ( ) Bom ( ) Ótimo

14. Como avalia o seu trabalho?( ) Gratificante ( ) Chato( ) Monótono ( ) Repetitivo( ) Lucrativo Financeiramente

15. Das alternativas abaixo, eu gosto de:( ) Cantar ( ) Dançar ( ) Passear ( ) Viajar( ) Dormir ( ) Ler ( ) Desenhar ( ) Escrever( ) Assistir TV ( ) Ouvir Música

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1

O PLANEJAMENTO E A PRÁTICA DO ENSINOCOMO UM ATO POLÍTICO

* Alda Ap. Mastelaro Hayashi* Andréia Bendine Gastaldi

RESUMO

O artigo trata de uma reflexão sobre o planejamento e a prática do ensino,vistos como um ato político-pedagógico que, conseqüentemente, exige do docen-te uma postura bem definida politicamente. Procura alertar para que os planeja-mentos sejam encarados como um discurso a ser colocado em prática e queestes interferirão na vida das pessoas para as quais se planeja.

PALAVRAS-CHAVE: Planejamento; Prática de Ensino.

ABSTRACT

The article is a reflection on teaching planning and practice seen as a political-pedagogical action, which consequently demands a well determined attitude on thepart of the teacher. The work alerts that planning should be seen as a speech to beput into practice and that it will interfere in the lives of those they are aimed at.

KEY-WORDS: Planning; Teaching Practice.

INTRODUÇÃO

A prática do ensino, aparentemente neutra, reveste-se de característicasideológicas quando analisada dentro de uma visão moderna de educação, umavez que toda ação educativa, por ser consciente e intencional, representa umapostura política, sendo o professor responsável pelo que está propondo.

Planejar revela, então, a intenção da prática educativa, envolvendo homense mulheres situados num dado momento histórico, dentro de determinada culturae reflete a visão que o educador tem da realidade.

* Docente do Curso de Enfermagem da UniFil.Mestre em Assistência de Enfermagem pela UFSC/UFPR.E-mail: [email protected]: [email protected]

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SILVA & MOREIRA (1995, p.141) afirmam que:

...para se construir uma sociedade nova é preciso criticar/desconstruir o modelo neoliberal em curso, que exclui gran-des contingentes da população, e criar/reconstruir uma so-ciedade que se paute pela inclusão de todos que contribu-em com o seu trabalho para a produção de riquezas, inde-pendente de sua classe social, gênero, raça e etnia. Estanova sociedade será uma sociedade multicultural, em quea diferença não mais será o estigma, assumindo a suaenriquecedora potencialidade.

A prática do ensino não é uma ação alienada e arbitrária como muitos denós a estamos praticando, mas é um guia flexível de intenções políticas e educativas.Utilizando-se da lógica, RAYS (1989) chega ao seguinte raciocínio: o ato deplanejar o ensino é um ato pedagógico; o ato pedagógico é um ato político; porconseguinte, o ato de planejar o ensino é um ato político.

Podemos dizer que ao fazer a leitura do mundo, o homem utiliza seu própriorepertório, passando a interpretar a realidade de maneira pessoal. Seus concei-tos e valores interferem nessa leitura e sua prática educativa revela esta repre-sentação do real, que muitas vezes não são representações objetivas, por isso oprofessor tem que repensar a dimensão política da ação educativa, que requerpensar a ação social, com grande interferência ideológica.

Ideologia, segundo SANTAELLA (1980), é um sistema de representações(imagens, mitos, idéias e conceitos) dotados de uma experiência e de um papelhistórico na sociedade. Portanto, toda e qualquer prática existe através e sobuma ideologia, estando presente em todos os atos e gestos dos indivíduos. Temosque entender que nossos limites são reais, mas são a nossa prática, e podemoslutar contra a corrente da hegemonia do liberalismo para iluminá-lo.

Em suma, as ideologias são sistemas de representações sociais que abrangemas idéias (políticas, jurídicas, morais, religiosas, estéticas e filosóficas) dos homens deuma determinada sociedade, pois os homens interagem entre si e com o mundodentro da ideologia. Esta, então, é que forma a consciência, as atitudes e os compor-tamentos dos homens para amoldá-los às condições de sua existência social.

O docente pode ampliar conscientemente o nível de sistematização do seutrabalho, tornando-o mais intencionalmente político. Isso é possível uma vez quea neutralidade não existe e, segundo VERON (1970), a objetividade da ciêncianão consiste em reduzir a subjetividade do homem à ciência.

Essa visão supera a nossa idéia de planejamento e prática do ensino tidos

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como um ato mecânico de programar conteúdos a serem desenvolvidos, elabo-rar conteúdos a serem atingidos, decidir sobre a metodologia a ser empregada erealizar uma avaliação conseqüente.

RAYS (1989) propõe cinco momentos para conseguir que o planejamentocontemple essa ação política. O primeiro momento reside em entender a realida-de social onde esse processo se realiza, ou seja, a escola e a comunidade. Osegundo momento faz um retrato do educando, através do diálogo crítico, envol-vendo o educador e os alunos. De posse desses dados que superam a identificaçãodo nível socio-econômico-cultural dos alunos, o educador inicia o terceiro momen-to, que trata dos objetivos e do conteúdo. O quarto momento está ligado ao esta-belecimento de propostas de situações didáticas, com a participação conjunta deprofessor e alunos, no sentido de atingir a produção, redescoberta e a redefiniçãodo conhecimento. Por último, mas fazendo parte de todas as fases do processoeducativo, está a avaliação. Nesse momento de reflexão, devemos levar em contao homem que a educação quer promover, o tipo de profissional que se quer formare a sociedade em que este desenvolverá suas atividades.

No entender de FRIGOTTO (1994, p.187), a construção dos bens, da ciên-cia é um produto coletivo, fruto da humanidade e deveria estar à disposição detodos, e não ao alcance de poucos privilegiados.

Cremos ser necessário questionar nossos valores e nosso modo de pensarindividualista: não lutamos e não pensamos historicamente, deixando que apenaso Estado ou os outros façam algo para mudar a sociedade. Observa-se um con-formismo demonstrado pela aceitação de situações como a inversão de papéisnas políticas educacionais, visto que hoje cabe ao Estado apenas o controle emobservância à política estabelecida, e à sociedade civil, a execução dos progra-mas de ação.

Fica a proposta, então, de que nossos próximos planejamentos serão enca-rados como um discurso a ser colocado em prática já que, como discurso, eleestará interferindo na vida das pessoas para as quais estamos planejando e, porisso, é necessária uma posição bem definida politicamente, ou seja, devemosassumir uma posição clara e não ficar “sobre o muro”.

O PROFESSOR NO COTIDIANO DA SALA-DE-AULA

Quem gosta de ensinar, vive o cotidiano entre o estar em sala-de-aula e opreparar-se para a sala-de-aula. O que é, então, a sala-de-aula?

Sala-de-aula é o espaço de ensino onde se repetem duas lendas gregas,cada uma envolvendo seu herói: Sísifo e Prometeu. Sísifo nasceu condenado arolar uma grande pedra ao pico de uma montanha donde ela recaía sem cessar.

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Era eterna sua condenação. Prometeu empreende um trabalho à primeira vistamais extraordinário. Sobe aos céus, rouba fogo dos deuses e cria com sua forçaa primeira civilização (BUZZI, 1974, p.30).

Nós, professores, nos assemelhamos a Sísifo quando todas as semanas,meses e anos repetimos, de alguma forma, várias vezes, conteúdos ensinados àsmais diversas turmas. É claro que, mesmo repetindo este ato, rolamos a pedra deformas variadas. Também nos assemelhamos a ele pelo eterno recomeço e pelaenergia dispendida nesse recomeçar cotidiano.

Incorporamos algo, também, de Prometeu quando, ao roubar fogo dos deu-ses, construímos junto com o aluno o conhecimento novo. Isso ocorre quando, norepetir do dia-a-dia, atingimos ambiguamente o extraordinário daquele momentoem que: um aluno que possuía dificuldades, consegue melhorar; nos voltamosmais para ele e obtemos bons resultados; abordamos um assunto numa novaperspectiva e, assim, sucessivamente. E quando um aluno que dizia não ter entu-siasmo pela disciplina que lecionamos, de repente, afirma estar entusiasmado?É aí que o extraordinário da vida escolar se revela.

Mas, como é que vou conduzir a sala-de-aula? Com autoridade, respon-dem, mas sem autoritarismo. É MORAIS (1996, p.24) quem nos diz: ... autori-dade tem a ver com liderança, e nada tem a ver com chefia; entendendo-seque líder é aquele que se propõe e é aceito, enquanto chefe é aquele que seimpõe por um recurso de poder.

E, como saber se estamos agindo corretamente, se somos bons professo-res? O bom professor lidera e, de forma sutil, conduz democraticamente as ativi-dades da sala de aula, respeitando os sujeitos ali presentes, sem perder a condu-ção do processo de ensino, incentivando cada aluno, orientando-os no processopedagógico e, por gostar de ensinar, realimenta-se da energia que se faz presen-te na sala de aula. O professor concebe o processo educativo como tendo oaluno por centro (SAVIANI, 1983, p.40).

Conforme FREIRE (1997, p.53), ... ensinar não é transferir conheci-mento, mas sim criar possibilidade para sua construção e sua produção.Quando você ensina, você forma e se forma; quem ensina aprende ao en-sinar e quem aprende ensina ao aprender. Ensinar exige segurança, compe-tência profissional e generosidade. Ensinar é uma especificidade humana.

Mas, quem é esse ser humano, o nosso aluno? No dizer de SARTRE,citado por CYRINO & PENHA (1988, p.43), no homem, a existência precedea essência. É o homem que, no decorrer da existência, define a sua essên-cia. É, portanto, pela educação que o ser humano se faz e se determina a sercada vez melhor. Aí, esse filósofo coloca a responsabilidade em cada um de nós,pois é pela existência que nos realizamos como seres humanos. Para SARTRE,

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ainda, o ser humano é também ser-para-o-outro. O que somos para nós mes-mos é o que os outros vêem em nós. A gente se vê pelo olhar do outro.Assim, a educação se concretiza nesta relação, entre o meu eu e o eu do outro,e é nesta rica troca coletiva das subjetividades que a aprendizagem se realiza.

SARTRE ainda argumenta que a liberdade é a característica humanadeterminante por excelência. A liberdade não é nem ato gratuito, nem arbí-trio absoluto. Ser livre significa poder escolher relativamente em uma rea-lidade concreta que me condiciona e estabelece um número limitado dealternativas (CYRINO & PENHA, 1988, p.45).

A liberdade é uma liberdade sob condição. As condições sociais, econômi-cas, políticas e filosóficas, isto é, humanas, são necessárias à liberdade, tantoquanto o ar é necessário para que o pássaro exerça a sua liberdade de voar. É aliberdade, a característica humana básica que deve ser respeitada pelo professorao relacionar-se com seus alunos, lembrando que estamos preparando sujeitospara viverem democraticamente em sociedade. Assim, queremos acreditar quenós, professores, sejamos Sísifo e Prometeu. Herói grego se oculta no outro,pois, no repetir diário, buscamos o encontro com o extraordinário. O ordinárionos alimenta com a sua quietude e o extraordinário, com a sua luminosidade.

O PAPEL DO PROFESSOR NO CONTEXTO DA GLOBALIZAÇÃO

Ao analisarmos as perspectivas da educação dentro de um contexto maisglobal, o que se observa nos países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento,como o Brasil, é a interferência do Banco Mundial, através de diretrizes para aspolíticas governamentais, objetivando a redução dos gastos públicos, condiçãonecessária ao pagamento da dívida externa, e também à adequação educacio-nal. Estas diretrizes são utilizadas pelos dominantes do mercado, como forma defortalecer a hegemonia ideológica necessária à manutenção do regime de acu-mulação flexível.

Neste sentido, observamos o autoritarismo e a esperteza do governo que,por orientação do Banco Mundial, vem reduzindo gradativamente os recursos definanciamento da educação, utilizando como estratégia a participação cada vezmaior dos pais na administração das escolas, conseguindo, além da contribuiçãofinanceira, a participação da comunidade como forma de neutralizar protestosque possam surgir da sociedade e dos sindicatos.

O pior disto tudo é que, normalmente, a escola reproduz as relações sociaisvigentes, através da formação da força de trabalho e da propagação da ideologiadominante, e, muitas vezes, tem como uma das funções garantir a exploração

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dos trabalhadores e reforçar e perpetuar a dominação capitalista. Concordamoscom SAVIANI (1983, p.42) quando diz que o professor não é, pois, outracoisa senão um agente da exploração, porta-voz dos interesses dominan-tes, lacaio da burguesia. Mas nós, professores, não conseguimos compreen-der essa crítica, de sermos considerados agentes da exploração quando, naverdade, nos sentimos a primeira vítima da exploração, pois, afinal, o nosso tra-balho não está sendo crescentemente desvalorizado? Não estamos sendo cadavez mais proletarizados? Então, se somos nós os explorados, como podemos seracusados de exploradores? Mas a lógica da acusação mostra o argumento: oprofessor é explorado para explorar; é dominado para dominar. É explorado nasua boa fé . Enquanto pensamos que estamos colaborando com os outros, queestamos ajudando os alunos, tanto mais eficazmente estamos cumprindo a fun-ção da dominação.

Talvez não tenha remédio, mas o melhor que se poderia fazer para tentarreverter o quadro que se instaura seria, através do conhecimento da situaçãopolítica desde a comunidade local, do município, do estado, do país e do mundo,compreendermos o processo de globalização. Desenvolver a capacidade dediscernimento na escolha dos governantes resultaria na possibilidade de evitarmaiores prejuízos, como o que vem ocorrendo com os grupos econômicos, go-vernos e até com camadas da sociedade.

Para SAVIANI (1988, p.43),

...a tênue chama da esperança se aviva e se transforma emfarol que aponta o caminho: a luta pela expansão de esco-las, pela ampliação do tempo diário de permanência dascrianças na escola, pela eliminação dos índices de evasãoe repetência, de modo a convertê-la em instrumento eficazde conteúdos significativos a todas as crianças das classestrabalhadoras; em suma, a luta por transformar a educa-ção e a escola em instrumentos de reapropriação do saberpor parte dos trabalhadores, potencializando, assim, a suacapacidade de organização, de reivindicação e de pressão.

Cada vez mais se impõe a necessidade de uma luta mais global, lutar paratransformar o local de trabalho e, simultaneamente, todo o mundo; lutar na rela-ção com o Estado e além dele.

Em qualquer que seja o contexto em que o homem esteja inserido, nãodeve abdicar do seu direito humano de dirigir e produzir sua existência, porémnão de forma voluntária e ingênua, mas com o aprofundamento do conhecimento

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das questões históricas. Concluímos com as palavras de NUNES (1998, p.38) ao afirmar que o

conhecimento de como ocorre a globalização nos faz buscar a compreen-der a ação e o trabalho de educadores, militantes em sua necessidade demanterem-se vivos como seres humanos na possibilidade de sonhar e con-cretizar sonhos.

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ARQUITETURA E SUSTENTABILIDADE NASOCIEDADE DE RISCO

*Antonio Manuel N. Castelnou

RESUMO

Fundamentando-se no conceito de Sociedade de Risco, de Ulrich Beck, esteartigo tem como objetivo principal apontar algumas considerações sobre a práticaarquitetônica sustentável, visando apresentar possíveis caminhos que conduziriam àsustentabilidade das cidades, assim como da vida urbana. A partir da caracterizaçãoe crítica do pensamento desse autor, busca-se discutir as potencialidades da arquite-tura dita ecológica, assim como seu rebatimento na discussão contemporânea refe-rente à questão do meio ambiente e desenvolvimento.

PALAVRAS-CHAVE: Arquitetura Ecológica; Desenvolvimento Sustentável; Sociedade de Risco.

ABSTRACT

Based on Ulrich Bech’s concept of Risk Society, this article aims at pointingout some considerations on the green architectural practice, seeking to presentpossible ways that would lead to the sustainability of cities as well as of urbanlife. Starting from the characterization and criticism of that author’s thought, thearticle discusses the potentialities of ecological architecture, as well as theirapplication in the contemporary discussion regarding environment anddevelopment.

KEY-WORDS: Green Architecture; Sustainable Development; Risk Society.

* Docente de Teoria e História da Arquitetura na UniFil. Arquiteto e engenheiro civil. Mestre emTecnologia do Ambiente Construído pela ESCOLA DE ENGENHARIA DE SÃO CARLOS, UNIVERSIDADE DE

SÃO PAULO – EESC/USP. Atualmente, é doutorando em Meio Ambiente e Desenvolvimento Urba-no pela UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ – UFPR.E-mail: [email protected]

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INTRODUÇÃO

Todas as espécies vivas hoje conhecidas, inclusive o homem, dependem dabiosfera para sobreviver. Entretanto, a espécie que mais a agride e coloca em riscoé justamente o ser humano. Se, desde a Pré-História, o impacto sobre o ambienteera pequeno, já que as populações eram modestas e tecnologicamente pouco de-senvolvidas, nos dois últimos séculos, a suposição de que o crescimento econômicoilimitado fosse indispensável ao progresso criou uma visão unilateral de desenvol-vimento, baseada no volume da produção material, que não leva em conta a quali-dade de vida, nem a distribuição social dessa produção. A Revolução Industrial(1750-1830) trouxe assim uma nova realidade sócio-econômica, apoiada em umprocesso acelerado de urbanização, o qual vem exercendo um violento impactosobre os sistemas naturais, especialmente por ser grande consumidor de energia ematérias-primas, além de produtor de poluição e resíduos tóxicos.

A arquitetura e o urbanismo, cujo principal objetivo foi sempre criar e organi-zar o espaço humano, de modo a abrigar suas atividades segundo imperativos deordem funcional, técnica e estética, desempenham um importante papel neste con-texto, já que foram de suas posturas que se originaram muitos problemas ambientaisurbanos, devido principalmente às práticas de construção e aplicação de determi-nadas tecnologias e materiais. Atualmente, as cidades abrigam populações desejo-sas do progresso material e do conforto proporcionado pela industrialização e utili-zação da energia. Contudo, esse tipo de desenvolvimento também gerou poluição,enchentes, congestionamentos, insuficiência ou precariedade de serviços básicos,miséria e violência; problemas estes que prejudicam a qualidade de vida nas cida-des de todo o mundo e colocam em risco a própria sobrevivência.

Diante do contexto a que BECK (1992; 1997) denominou Sociedade de Ris-co, este texto busca apontar algumas considerações sobre a prática arquitetônicasustentável, visando apresentar possíveis caminhos que conduziriam àsustentabilidade das cidades, assim como da vida urbana. A partir da caracteriza-ção e crítica do pensamento desse autor, busca-se discutir as potencialidades daarquitetura dita ecológica, assim como seu rebatimento na discussão contemporâ-nea referente à questão do meio ambiente e desenvolvimento.

MODERNIZAÇÃO REFLEXIVA E SOCIEDADE DE RISCO

De modo geral, considera-se modernização o processo a partir do qual háuma quebra dos laços sociais tradicionais, paralela a uma integração das forçasprodutivas naturais ao processo econômico, especialmente através de novastecnologias iniciadas com a industrialização. De acordo com BECK et al. (1997),ela passou a ser reflexiva quando, a partir dos anos 70 do século passado, trans-

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formou-se tema para si mesma, ou melhor, quando a sociedade industrial seautoconfrontou, principalmente ao se deparar com os problemas por ela mesmaproduzidos. Nascia assim a Sociedade de Risco: enquanto a sociedade industri-al caracterizava-se por sua capacidade de produzir riqueza, a atual caracterizar-se-ia por estar saturada, além de estar repleta de efeitos não previsíveis, o quefaz com que produza e distribua, desta vez, riscos ambientais e sociais.

Referindo-se mais especificamente, segundo GOLDBLATT (1996), aos Esta-dos territoriais denominados países industrializados, cujas sociedades supera-ram, pelo menos tendencialmente, o problema da escassez de bens básicos e desua distribuição desigual entre os grupos ou camadas sociais, a Sociedade deRisco caracteriza-se pelo fato de que, ao invés dos benefícios da industrialização,seriam seus malefícios – ou riscos – que seriam distribuídos uniformemente. Opróprio processo de modernização transformou-se em um problema por causa dasinstabilidades e riscos que as novidades tecnológicas e organizacionais provoca-ram. Assim, a sociedade contemporânea estaria transformando as principais es-truturas modernas – camadas sociais, formações de classes, ocupação e papéisdos sexos, família nuclear, agricultura, setores empresariais, etc. – e também ospré-requisitos e as formas contínuas do progresso técnico-econômico.

Nas sociedades pré-industriais, os riscos tomavam a forma de perigos natu-rais (tremores de terra, secas, enchentes, etc.) e não dependiam das decisões dosindivíduos. Efetivamente inevitáveis, não eram criados intencionalmente e podiamser, tanto espacial como socialmente, localizados ou bastante amplos. Com a in-dustrialização, os riscos e acidentes passaram a estar claramente dependentes dasações tanto dos indivíduos como de forças sociais, o que fez com que se criasseminstituições, leis e indenizações de modo a vencer e atenuar os perigos. Atualmen-te, conforme BRÜSEKE (2001), o risco civilizatório é igualmente uma expressão damodernização industrial, mas também representa uma nova dimensão, globalizante,que envolve, no contexto de perigo, lugares distantes e populações sem conheci-mento sobre as verdadeiras causas do seu sofrimento presente e futuro.

Nos dias atuais, os riscos tornaram-se incalculáveis e imprevisíveis, nãopossuindo assim certezas ou garantias no que se refere à atribuição de suasresponsabilidades e causas, como na modernidade clássica (QUADRO I). Logo,para BECK (1992), o processo de modernização reflexiva anuncia uma Socieda-de de Risco proveniente do corpo de uma sociedade industrial em decadência eque estaria firmada e definida pela emergência dos perigos ecológicos, caracte-risticamente novos e problemáticos. Exemplificando, enquanto que, nas socieda-des industriais, as posições de classe e as posições de risco (os graus de expo-sição dos indivíduos aos perigos, dadas as suas posições sociais e geográficas)estavam mais ou menos relacionadas, atualmente deixaram de estar, já que o

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envenenamento por pesticidas, a fusão nuclear ou a acumulação de gases tóxi-cos na cadeia de alimentos afetam a todos.Quadro I – Caracterização Comparativa entre a Primeira e a Segunda Modernidade

FONTE: Notas de aula. Disciplina: Conservação da natureza e sustentabilidadesócio-ambiental (MA-722), Prof. Dr. Alfio Brandenburg, Doutorado em Meio Am-biente e Desenvolvimento – UFPR, out.2002.

Enquanto que o impacto dos perigos ecológicos podia ser anteriormenteentendido em termos de ausência, ou de um índice pouco elevado de oferta debens e serviços para controlar e atenuar os perigos, como, por exemplo, os siste-mas de saúde pública e as empresas de serviços públicos acessíveis, na socieda-de de risco, o problema estaria no próprio processo de produção de riqueza.Além disso, os problemas ecológicos contemporâneos possuem característicasdiferentes, as quais evocam e exigem formas muito determinadas de respostapolítica e psicológica. Ainda segundo BECK (1992), as formas atuais de degrada-ção não estão limitadas espacialmente ao âmbito de seu impacto, nem estãoconfinadas em termos sociais a determinadas comunidades. Além de seus riscosirem se acumulando em intensidade e complexidade através das gerações, exce-dendo também as fronteiras temporais, seu ponto de impacto não está obvia-mente ligado ao seu ponto de origem e, a sua transmissão e movimentos, sãomuitas vezes invisíveis e insondáveis para a percepção cotidiana. Acima de tudo,existe a possibilidade de autodestruição do homem.

Diante disso, pode-se dizer que, devido às ameaças ecológicas, a moderniza-ção – em conjunto com o crescimento econômico e a transformação tecnológica –criou as condições para a sua própria crise, desgastando sua estrutura essencial e

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o próprio princípio da modernidade. Hoje em dia, os efeitos secundários do cresci-mento econômico ameaçam inclusive a possibilidade de bem-estar econômico con-tínuo e coletivo. De acordo com GOLDBLATT (1996), as teorias de BECK (1992)mostram que, paralelamente a tudo isto, os indivíduos tendem a enfrentar o risco ea insegurança pessoal e biográfica. Assim, o processo de modernização reflexivadesfaz os parâmetros culturais tradicionais e as estruturas sociais institucionaisanteriores, conduzindo à crescente individualização e perda de referenciais.

Verificam-se hoje grandes transformações nos mercados de trabalho dassociedades ocidentais, tais como: o surto do desemprego em massa e em longoprazo; as mudanças na composição da estrutura dos trabalhadores por sexo; aqueda do trabalho por tempo integral em favor do parcial; e a decadência dasestruturas tradicionais de emprego na busca da flexibilidade, com grande insegu-rança econômica. Isto levou à transformação das estruturas de classes e à dimi-nuição da importância do trabalho como meio de identidade pessoal, e, daí, a umenfraquecimento da relação entre posições sócio-econômicas e interesses indi-viduais, identidades e consciência. Romperam-se também todos os padrões fa-miliares de biografia pessoal antes aceitos e estáveis.

A dissolução das funções tradicionais e a intensificação daindividualização aumentaram a necessidade e o interesseemotivo em criar relações abertas, sustentáveis. Uma vez de-saparecidas as funções tradicionais e a camisa de forças ide-ológica que ajudava a prender as pessoas, as insegurançasda vida pessoal e profissional parecem multiplicar-se – di-vórcio, paternidade ou maternidade unilateral, ameaças àsegurança econômica, conflitos quanto às necessidades decasa e trabalho – numa altura em que a capacidade e asintenções do governo para oferecer apoio institucional –autorização do poder paternal, lei do divórcio por mútuoconsentimento, assistência à infância – são mínimas(GOLDBLATT, 1996, p.239-40).

Finalmente, acrescenta-se o conceito de irresponsabilidade organizada,o qual se refere às instituições da sociedade que reconhecem inevitavelmente arealidade da catástrofe, mas negam simultaneamente sua existência, ocultandosuas origens e evitando a indenização e o controle. Presente na chamada Soci-edade de Risco, tal idéia denota um encadeamento de mecanismos culturais einstitucionais pelos quais as elites políticas e econômicas encobrem efetivamenteas origens e conseqüências dos riscos e perigos catastróficos da recente indus-

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trialização. Ao fazê-lo, essas elites limitam, desviam e controlam os protestosque estes riscos provocam, o que, conseqüentemente, leva à inércia e ao desca-so da maioria das populações e dos governos.

DEGRADAÇÃO AMBIENTAL E RISCOS URBANOS

Existem poucas dúvidas de que o meio ambiente e o equilíbrio ecológico doplaneta tornaram-se praticamente insustentáveis. No século passado, economis-tas, sociólogos e geógrafos já denunciavam a degradação ambiental e o perigoque isso representava. Após a Segunda Guerra Mundial (1939/45), as formascomo o homem vem ocupando o espaço e as condições da sua própria sobrevi-vência começaram a ser realmente questionadas. Segundo MENEZES (1999), ainstitucionalização dessa problemática ocorreu no início dos anos 70, paralela àemergência de movimentos sociais urbanos e ambientais. A Terra tem uma ca-pacidade limitada para sustentar a humanidade, o que vem diminuindoirreversivelmente em inúmeras regiões do planeta, sendo as principais causasdessa redução o grande crescimento demográfico, o esgotamento dos recursosnaturais e a poluição ambiental.

Conforme PAPANEK (1998), a humanidade já passou por muitas crises eco-lógicas, ambientais e energéticas, antes da grande crise petrolífera de 1973. Hácerca de 12.000 (são 12 mil anos) anos, a agricultura iniciou-se sobre a simultâ-nea pressão da seca, temperaturas elevadas, superpovoamento e exploraçãoexcessiva dos recursos naturais. Na China, o abate abusivo de árvores causou afalta desse combustível entre 1400 e 1800, o que fez seus habitantes passarem aqueimar a palha e desenvolver uma tecnologia de estruturas em bambu somenteigualada pela América Latina antes da conquista. A Pequena Era Glacial daEuropa Ocidental durou mais ou menos de 1550 a 1700 e ajudou a criar modosde vida, de agricultura e, conseqüentemente, de expressão artística. O maiortempo passado dentro de casa durante os longos invernos levou ao florescimentode artefatos e técnicas para tornar a vida mais confortável, como a tecelagem demantas e o fabrico de artigos de cerâmica. Verificou-se ainda uma crise energéticana Inglaterra no século XVI, obrigando as pessoas a queimarem carvão ou turfapara afastar o frio nos meses de inverno.

Entretanto, a atual preocupação com a biosfera é resultado de uma sériede catástrofes recentes, as quais vão desde o intoxicamento em grande escala(Bhopal, Índia, em 1984; Exxon Valdez, no Alaska, em 1990) até acidentes nu-cleares de porte (Three Mile Island, Pensilvânia, em 1982; Chernobyl, Ucrânia,1986). Segundo ainda PAPANEK (1998), “tivemos, em média, a cada dois dias,durante os últimos dezoito anos, um grande derramamento oceânico de petró-

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leo” (p.21). Soma-se a tudo isso a morte lenta das florestas, rios e lagos; aextinção de espécies; o aumento do efeito-estufa e do buraco da camada deozônio; além da crise energética.

Tanto a explosão demográfica2 como a busca da qualidade de vida nascidades ocasionou um processo geométrico de exploração dos recursos naturaisrenováveis (florestas, plantações, pastagens, etc.) e não-renováveis (mineraismetálicos, compostos químicos, matérias-primas energéticas, como carvão epetróleo, etc.). Além disso, a intensa atividade comercial, a flutuação da popula-ção móvel e o desenvolvimento tecnológico são fatores que influenciam a pro-blemática urbana, o que acaba interferindo nos padrões de transporte, habitaçãoe serviços. As atividades industrial e comercial, assim como a exploração dematérias-primas, poluem o meio em que vive o homem. Assim, as atuais práticasno uso dos recursos naturais – inclusive nas áreas da arquitetura e construção –estão levando o mundo a uma crise de escassez, tornando irreversíveis os pro-cessos que agridem o meio ambiente.

Neste início de século, de acordo com CHAFFUN (1997), a intensidade e ascaracterísticas da urbanização em todo o mundo geraram dois grandes proble-mas: a questão urbana e a questão ambiental. Embora a deterioração ambiental,tanto na cidade como no campo, seja um problema antigo, que sempre existiu nahistória da humanidade, nova hoje é a intensidade dos processos de degradaçãoque acompanham a urbanização, resultando na crescente vulnerabilidade dascidades, problema agravado pela atual intensidade de concentração. Após vári-os fóruns e conferências internacionais, foi a partir da Conferência das NaçõesUnidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento – CNUMAD, ocorrida no Riode Janeiro em 1992, que se reforçaram as iniciativas visando associar essasduas questões.

Ao se analisar a aproximação dos aspectos ambiental e urbano, deve-seconsiderar que a cidade é um meio densamente artificial, aglomerado e transfor-mado. O meio urbano sugere uma modificação das condições naturais da regiãoem que se insere, sendo que seus habitantes ficam isolados da realidade natural,muitas vezes, inclusive, ignorando-a. Nas últimas décadas, a exploração desen-

2 Recentes relatórios da ONU indicam que, em 2015, 21 cidades do mundo terão mais de 10milhões de habitantes, encabeçadas por Tóquio e Bombaim. No Brasil, o número de pessoasvivendo em áreas urbanas crescerá dos 80% atuais para 90%; e a frota automobilística será deaproximadamente 47 milhões de automóveis. Em 2025, a população mundial poderá ser de 8,4bilhões de pessoas; e, em 2070, será de quase 16 bilhões. Atualmente, existem 700 milhões deveículos no mundo. Em 25 anos, esse número duplicará.

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freada, a concentração populacional, as atividades econômicas e os padrõestecnológicos têm reforçado esse quadro ambiental altamente deteriorado, sob aconseqüência de um desenvolvimento que leva ao uso predatório e ilimitado dosrecursos naturais. Logo, as cidades, por serem os principais centros de produçãoe consumo, que exploram recursos, como a água e os combustíveis fósseis, sãoos lugares que mais absorvem essa problemática, concentrando os riscos maissérios.

Os problemas ambientais urbanos vêm crescendo gradativamente, e suasconseqüências estão sendo sentidas de perto pelos moradores das cidades, comoo aumento da temperatura causado pelo efeito-estufa, este provocado tanto pelapoluição das indústrias e dos automóveis como pelo uso de produtos à base declorofluorcarbonetos – CFC. Soma-se a isto a emissão de gases tóxicos e aprodução de resíduos perigosos, muitas vezes armazenados em locais abertos oulançados em vias hídricas, ameaçando a qualidade do ar, da água e do solo.Assim, aumentam os riscos de câncer de pele, doenças ligadas às vias respirató-rias e outras enfermidades relacionadas às condições higiênicas e de saneamen-to. Ao mesmo tempo em que o aquecimento global conduz à perda de áreasférteis de agricultura e pastagem em todo o mundo, coloca em risco partes dascidades litorâneas do planeta, já que pode provocar o aumento do nível das ma-rés e conseqüentes inundações.

Para GOLDEMBERG (1998), as raízes da atual crise urbana aprofundam-seem décadas de exploração desenfreada de recursos energéticos não-renováveis,cujos estoques caminham inexoravelmente para o esgotamento. E apesar, detoda a experiência acumulada em séculos de relações políticas, industriais e co-merciais, as nações e estruturas internacionais não se mostram preparadas paraenfrentar a situação em curto prazo. A manutenção das atuais taxas de cresci-mento populacional, do consumo dos recursos naturais, da concentração da ren-da e riqueza e da sua distribuição de forma profundamente desigual – o que fazda exclusão social a marca do modelo econômico vigente – levará a humanida-de, dentro de 50 anos, a viver as crises de água, de energia e de alimentos. E,além de toda essa problemática ambiental, haverá o impacto urbano, especial-mente sobre a infra-estrutura, a habitação, os serviços e, enfim, sobre a qualida-de e a segurança de vida nas cidades.

Os riscos a que estão submetidos os habitantes das grandes metrópoles,os quais se relacionam desde os perigos ligados a inundações e deslizamentoscausados pela impermeabilização excessiva das superfícies, até as doençasprovocadas pelas condições insalubres, passam, muitas vezes, desapercebidos aeles próprios. Tal problemática, já apresentada por BECK (1992; 1997), mostra-sedesafiadora em uma sociedade cujos interesses coletivos se vêem substituídos

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pelos individuais. Logo, deve-se buscar a co-responsabilidade política entre osgovernantes locais e os diversos setores da sociedade, de modo que se possamobter práticas que apontem para um ambiente urbano saudável, democrático esolidário. Ressalta-se ainda a importância de se criarem soluções alternativasque respeitem as diversidades locais e que conduzam a uma cidade ambientalmentesustentável.

ARQUITETURA E SUSTENTABILIDADE

Em 1991, a Comissão Mundial de Meio Ambiente e Desenvolvimento –CMMAD, em seu estudo intitulado Nosso Futuro Comum, definiu que, para seatingir o desenvolvimento sustentável, seria preciso suprir as necessidades dopresente sem comprometer a capacidade das próximas gerações suprirem as deseu tempo. Isto significaria incorporar ao planejamento urbano não apenas osfatores econômicos, mas também as variáveis sociais e ambientais, consideran-do as conseqüências das ações em longo prazo, bem como os resultados emcurto prazo. A Conferência das Nações Unidas sobre Assentamentos Hu-manos, ou HABITAT II, ocorrida em Istambul, em 1996, ficou conhecida como aCúpula das Cidades e deu ênfase à questão urbana ambiental ao definir asustentabilidade como princípio, e os assentamentos humanos sustentáveis comoobjetivo mundial a ser perseguido.

De acordo com HELENE-BICUDO (1994), é importante assinalar que a transi-ção para sociedades mais sustentáveis pressupõe o tratamento de temasambientais urbanos tangíveis, como transporte, uso do solo, qualidade do ar econservação de energia, da mesma forma que temas intangíveis, como os desaúde e segurança pública, igualdade entre sexos, educação ambiental, respon-sabilidade ambiental global, etc. Para tanto, a alteração dos processos de tomadade decisão é considerada ponto essencial da sustentabilidade, visando-se o forta-lecimento dos níveis locais, mais aptos a distinguir e estabelecer prioridades esoluções pertinentes. Paralelamente, a manutenção dos processos ecológicos,da diversidade biológica e do meio físico, garantida pelo manejo cuidadoso dosrecursos naturais, seria uma conduta essencial em sociedades que desejam tor-nar-se sustentáveis.

Para CHAVES-PAIM (1995), o princípio do desenvolvimento sustentável re-sume o grande imperativo ético-ecológico de nossa época. Nas palavras de ALVA

(1997), a sustentabilidade deve ser entendida como um conceito ecológico, istoé, como a capacidade que tem um ecossistema de atender às necessidades daspopulações que nele vivem; e como um conceito político, que limita o crescimen-

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to em função da dotação de recursos naturais, da tecnologia aplicada no usodesses recursos e do nível efetivo de bem-estar da coletividade. Na verdade, sãoconceitos complementares: a partir de certa capacidade “natural” de suporte, associedades organizadas buscariam ampliar sua capacidade de sustentação parasuprir o aumento da população ou a elevação dos níveis de consumo. No casoespecífico das cidades, a prática da arquitetura estaria diretamente relacionadaa esta problemática, pois envolve os métodos e os materiais que são empregadosna construção urbana (QUADRO II).

Fonte: SILVA, B. F. Sistema de indicadores de avaliação de desem-penho urbano e ambiental. São Carlos SP: Dissertação de Mestrado,Universidade Federal de São Carlos – UFSCar, 2000.

Segundo VILLENEUVE (1992), o desenvolvimento sustentável consistiria emassegurar uma gestão responsável dos recursos do planeta de forma a preservaros interesses de gerações futuras e, ao mesmo tempo, atender às necessidadesatuais. Trata-se de um desafio particular e estimulante para indivíduos e coletivi-dades, sendo necessário enfrentá-lo o mais cedo possível, pois, à medida que otempo passa, torna-se cada vez mais difícil implementar as medidas necessáriasà sua efetivação. Ele provavelmente representa para a humanidade o mais im-portante desafio de toda a história. Têm-se hoje extraordinários instrumentoscientíficos para prever a evolução do meio ambiente. Seria possível saber evitar

PRINCÍPIO ABORDAGEM DE MENORSUSTENTABILIDADE

ABORDAGEM DE MAIORSUSTENTABILIDADE

Economia forte • Competição e incentivos detaxas

• Ausência deregulamentações eincumbências

• Investimento público

• Alianças estratégicas• Base de informação e infra-

estrutura• Meio ambiente atrativo• Participação em taxas

Meio ambientelimpo

• Uso abundante de recursosnaturais

• Usos segregados• Baixos índices de densidade

• Conservação de recursos eprevenção da poluição

• Uso misto coordenado comsistema de transportes, criaçãode parques e áreas depreservação

• Altas densidades em certasáreas

Eqüidade social • Aumento da disparidadeentre grupos e raças

• Investimentos estratégicos emforça de trabalho eoportunidades comoresponsabilidade pública eprivada

Engajamento • Mínimo de participaçãocívica

• Governo centralizado

• Encorajamento de participação• Autonomias locais e aliança

estratégica

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as catástrofes e, ao mesmo tempo, melhorar a qualidade de vida? Ou deve-sedeixar arrastar até a crise por modelos econômicos que levam a crer na existên-cia do infinito em um mundo finito?

Conforme CORCUERA (2002), o ponto chave da sustentabilidade aplicada àquestão urbana seria justamente a disseminação da chamada eco-arquitetura ouarquitetura sustentável, termos estes intimamente ligados a dois conceitos bási-cos: energia e meio ambiente. Nesta prática arquitetônica, destacam-se a eficiên-cia energética do edifício, a correta especificação dos materiais, a proteção dapaisagem natural e o planejamento territorial, além do reaproveitamento de edifíci-os existentes, históricos ou não, procurando dar-lhes um novo uso. De acordo comFAIVRE (2000), ao se projetar uma edificação, deve-se saber quanto petróleo éconsumido para fabricar ou processar os materiais empregados na construção;quanta água intervém no processo de produção; e como completar uma tramaurbana existente para não repetir falsas soluções, anti-sociais e insustentáveis.

Para PESCI (2000), voltar-se para a prática da arquitetura sustentável éuma realidade irrefutável, estando esta apoiada basicamente sobre quatro pila-res. Primeiro, em um programa eco-lógico – ecológica e economicamente ló-gico – para que sua inserção no meio contribua para sustentar a diversidade e aqualidade dos recursos naturais e da sociedade em que se insere. Em segundolugar, nas energias do comportamento, para recriar as identidades e as melho-res tendências de convivência locais e regionais. Depois, nas energias do espa-ço e do clima, para enfatizar as melhores tensões do espaço circundante pré-existente e as do próprio espaço a intervir, de modo a se aproveitar o clima parapoupar energias e melhorar o conforto humano. E, finalmente, nas práticasmorfológicas e tecnológicas mais apropriadas, que capitalizem a mão-de-obra existente e os materiais locais não-esgotáveis, para conseguir linguagensmorfológicas comprometidas com a história e as condições ambientais.

Atualmente, já são muitas as ações para se promover o desenvolvimentosustentável em relação à arquitetura. A União Internacional dos Arquitetos –UIA, por exemplo, adotou, em 1993, juntamente com o Instituto dos Arquitetosdos EUA, a Declaração de interdependência para um futuro sustentável,que coloca a sustentabilidade social e ambiental como sendo o centro de respon-sabilidade profissional e prática. Alguns documentos, tais como a ISO 14.000 ea Agenda Habitat, são de fundamental importância no sentido de fornecer dire-trizes e instrumentos para o melhor desenvolvimento dos recursos econômicos esociais, com adequado respeito ao meio ambiente. Obviamente, paralelamente atudo isto, deve existir uma iniciativa na formação das novas gerações deplanejadores urbanos e arquitetos em direção a uma prática adequada aos prin-cípios da sustentabilidade.

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Em uma sociedade onde os riscos passam a compor o dia-a-dia das pesso-as, em especial nos ambientes urbanizados, a prática arquitetônica e urbanísticadeve procurar avançar em direção a metodologias e procedimentos que objetivam,essencialmente, a diminuição do desperdício energético das edificações, a utiliza-ção de matérias-primas renováveis, a adequação topográfica e bioclimática dasestruturas, a reciclagem de edifícios antigos, o zoneamento ambiental e a preser-vação das áreas naturais. Deve-se fazer a promoção de saúde e do saneamento,cujo objetivo básico é garantir a qualidade da água para a prevenção de doenças;o tratamento adequado do lixo e resíduos urbanos, evitando a contaminação dosolo e das águas; a ênfase em fontes alternativas e limpas de energia, tais como asolar, a eólica e a hidráulica, aplicadas tanto no espaço construído como no trans-porte, em especial no coletivo, solução mais viável para as metrópoles futuras.

Hoje em dia, a tarefa tem de ser firme e clara de modo tanto a convencerquem está intrigado por estas novas posições, quanto para atrair quem está longedelas. É preciso avançar em direção a uma arquitetura ecológica ou greenarchitecture (WINES, 1998), integrando todas as contribuições parciais. Afinal, existeuma dimensão ecológica e ambiental em todas as atividades humanas, o que vaidesde a reciclagem do lixo doméstico até a responsabilidade ética no corte de umaárvore ou na economia de luz e energia. Entretanto, de maneira paradoxal, a mai-oria dos habitantes do chamado primeiro mundo é vagamente consciente de quea utilidade em curto prazo tem de ser substituída por modos de vida mais sustentá-veis. No momento, ainda são muito poucos os cidadãos preparados para abando-nar hábitos esbanjadores e, em grande parte, isto se atribui a uma carência dealternativas confiáveis, que estejam plenamente desenvolvidas ou mesmo acessí-veis à população. Além disso, a própria divulgação de conceitos, tais como o dasustentabilidade, ainda depende, lamentavelmente, dos interesses políticos e co-merciais. E aqui novamente predomina a irresponsabilidade organizada.

ALGUMAS CONCLUSÕES

Nos relatórios oficiais elaborados mais recentemente acerca da proble-mática global, ressalta-se a necessidade de se buscarem estratégias que resul-tem em uma nova forma de pensar a vida urbana, tendo como base a inclusão depolíticas ambientais nos programas estratégicos de governo. Discute-se, enfim,no limiar do século XXI, frente a um descontrole inevitável do crescimento urba-no em todo o mundo, se o ser humano está ciente das transformações em cursonas cidades e no campo, ou se a consciência das questões urbana e ambiental ésuficiente para uma transformação do atual estado das coisas, envolvendo mu-danças de comportamento e ação rumo à sustentabilidade.

Os padrões térmicos e meteorológicos absolutamente imprevisíveis dasúltimas décadas vêm sugerindo estarmos vivendo em uma época de grande

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mudança ambiental. São vários os indicadores dessa transformação, por vezes,amedrontadora. Para que haja futuro, seria preciso que o homem aprendesse apreservar e a conservar os recursos da Terra, alterando seus padrões básicos deconsumo, fabricação e reciclagem. A maioria das pessoas concorda que as ca-tástrofes ecológicas acarretam enormes perigos, mas lhes dá pouca importância,convencida de que as mudanças decorrem lentamente na natureza durante perí-odos que vão até milhões de anos. Confundem-se os tempos geológicos comaqueles inerentes à sociedade contemporânea. Assim, este conceito de tempo nãopassa de ilusão, já que, durante uma vida, uma década, um ano ou um mesmo umdia, podem ocorrer mudanças dramáticas, profundas e impessoais. ConformePAPANEK (1998), devemos “compreender o conceito de que os continentes podemse deslocar ao longo de uma eternidade e que, em termos nucleares, podem morrerrapidamente” (p.29). Na verdade, a maior parte dos danos ecológicos e, possivel-mente, irreversíveis ocorreu apenas durante os últimos trinta anos.3

Na sociedade de risco descrita por BECK (1986; 1992), muitos dos proble-mas de destruição de recursos e de desgaste do meio ambiente não se inseremna idéia de que existam de um lado vilões e de outro vítimas, pois todos estariamem melhores condições se cada um considerasse os efeitos de seus atos sobreos demais. Contudo, ninguém parece disposto a crer que os outros agirão dessemodo, e, assim, todos continuam a buscar seus próprios interesses. A sensaçãoé de que a “culpa” é de todos e, ao mesmo tempo, de ninguém. As comunidadesou os governos tentam compensar essa situação mediante leis, seguros, impos-tos, subsídios, educação e outros métodos. Até que ponto isto é suficiente?

Convém lembrar que quase todos os desertos do mundo foram criadospelo homem, assim como estudos recentes sugerem a influência do clima e dasecocatástrofes na mudança do destino da civilização maia na América Central.Muitas vezes as pessoas parecem demasiado alheias aos seus governos emmatéria de preocupação com o ambiente, como, por exemplo, com a destruiçãoe o desfolhamento sistemático das florestas do Vietnã, Laos e Cambodja, entre1968 e 1971, através do uso do “agente laranja” e outros produtos químicos; oucom o incêndio de mais de 500 poços de petróleo no Kuwait, no fim da Guerra

3 Segundo PAPANEK (1998), o tempo do mundo que conhecemos, no qual os seres humanos seconstituíram em uma espécie de civilização, pode ser facilmente compreensível, diferentemente dequando se enfoca, por exemplo, os 600 milhões de anos em que viviam os trilobitas ou os 150milhões de anos em que havia dinossauros. Os povos começaram a se estabelecer em grupos sociaisprototípicos na Mesopotâmia aproximadamente há 12.000 anos. Se presumirmos que 25 anosseria a duração de uma geração, isso significaria que a civilização começou há apenas 480 gerações.Entretanto, foi somente a partir do Renascimento que compreendemos o mundo e, principalmenteapós a Revolução Industrial, que passamos a conhecê-lo realmente como contemporâneo. Assim,o mundo em que nos sentimos à vontade começou mesmo há não mais que dois séculos ou oitogerações. E este é um tempo bastante incipiente dentro da história da Terra (N. do autor).

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do Golfo. Isto sem contar outros desastres não menos devastadores senão si-lenciosos, como a chuva ácida provocada pelas emanações das chaminés indus-triais; o desaparecimento de espécies animais e vegetais que nem ao menosforam descobertas; ou a terrível ameaça que representa o efeito-estufa em to-das as cidades do planeta. Até mesmo mudanças aparentemente triviais no meioambiente, como o aumento de moscas e mosquitos portadores da malária e dadengue, podem ser diretamente imputadas à atividade humana.

Tais riscos contemporâneos, cada vez em maior número e complexidade,fazem com que seja vital para a sobrevivência do mundo, tal como o conhece-mos, que os planejadores urbanos e arquitetos envolvam-se na procura de solu-ções ambientais, contribuindo objetivamente a partir de suas áreas específicasde conhecimento e influência, e associando-se a outras disciplinas. Nestes tem-pos perigosos, não se necessita somente de imaginação, inteligência e trabalhoárduo, mas, essencialmente, de uma consciência ambiental, capaz de conferirefeito mesmo a pequenos atos individuais sobre o cenário global. Os problemaspodem se situar em nível mundial; no entanto, só cederão com uma intervençãodescentralizada, local e em escala humana (PAPANEK, 1998).

Grande parte dos profissionais em arquitetura sente que a atual tecnologia épassível de perturbar profundamente o equilíbrio ecológico, manifestando tal preo-cupação através do anseio nostálgico pelo passado, defendendo o retorno ao estilode vida aparentemente simples e primitivo, através de técnicas e materiais verná-culos (SVENSSON, 1992). Outros, igualmente preocupados com o ambiente, estãoconvencidos de que tais problemas requerem uma solução tecnológica, ou seja, ouso da eco-tech architecture (SLESSOR, 2001) para resolver os problemas ambientaisque o planeta e a humanidade enfrentam. Todavia, ambos pontos-de-vista estãoequivocados. Embora se possa encontrar muitas respostas a estes problemas empráticas construtivas antigas, como no uso de materiais naturais e de sistemastradicionais, que se apropriam da ventilação e iluminação naturais, ou mesmo naalta tecnologia, como a eletrônica, a computação e os circuitos integrados, há anecessidade de se reencontrar um equilíbrio entre o eco e o tecnocentrismo.

Por fim, vale salientar que a questão da arquitetura sustentável deve in-corporar, em uma época onde a incerteza, a insegurança e a individualidadeparecem se afirmar cada vez mais, um verdadeiro e profundo diálogo de sabe-res (LEFF, 2001). Além das ferramentas tecnológicas representadas pelos avan-ços dos sistemas de informação e comunicação, deve envolver os conhecimen-tos provenientes das ciências humanas e sociais, tais como a antropologia, asociologia e a geografia cultural, em consonância com os das ciências naturais,que podem em muito contribuir com seus pontos-de-vista em relação à geologia,à biologia e à ecologia, e assim por diante. Paralelamente, a incorporação de

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saberes populares e tradicionais aos conhecimentos científicos atuais conduziria,sem dúvida, à construção de uma racionalidade ambiental capaz de compreen-der e, mais ainda, transformar o mundo de forma eficiente e sustentável.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ESTRUTURA DE CAPITAL E O PROCESSO DEALAVANCAGEM FINANCEIRA: UMA DISCUSSÃO

SOBRE A RELAÇÃO ENTRE NÍVEIS DEENDIVIDAMENTO E LUCRATIVIDADE

1Juliano Di Luca2Marcos Jerônimo Goroski Rambalducci

RESUMO

O presente trabalho discute as formas de estrutura de capital utilizadaspelas empresas e sua relação com a alavancagem financeira das mesmas. Operfil da gestão é mostrado como um dos principais influenciadores no pro-cesso de alavancagem financeira. Os pontos positivos e negativos doendividamento são mostrados, e o conceito de estrutura ótima, defendido poralguns autores, é discutido.

PALAVRAS-CHAVE: Estrutura de Capital; Alavancagem Financeira; Endividamento; Estrutura Ótima de Capital; Risco Financeiro.

ABSTRACT

The present paper deals with capital structure choices and their relation tofinancial leverage. The profile of management is shown as one of the mostimportant factors in the financial leverage processes. Debt advantages anddisadvantages are shown, and the concept of optimal capital structure, defendedby some authors, is discussed.

KEY-WORDS: Capital Structure; Financial Leverage; Debts; Optimal Capital Structure; Financial Risk.

1 Docente da UniFil. Mestre em Administração de Empresas pela Pontifícia Universidade Católicade São Paulo. Docente e pesquisador na área de Estratégia Empresarial e Análise Organizacional.E-mail: [email protected] Mestre em Administração de Empresas pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.Docente e pesquisador na área de Marketing.E-mail: [email protected]

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INTRODUÇÃO

Ao se expandir as empresas necessitam de capital, seja de origem própriaou de terceiros (BRIGHAM e HOUSTON, 1999, p.448). A maneira pela qual aempresa organiza esta necessidade de capital é a chamada estrutura de capitalda empresa. Segundo ROSS, WESTERFIELD e JAFFE (1995, p.27), “a estru-tura de capital indica as proporções de financiamento com capital próprio e capi-tal de terceiros de curto e de longo prazo”.

Apesar da estrutura de capital ser uma das áreas mais complexas na toma-da de decisões financeiras, devido ao seu inter-relacionamento com outras vari-áveis de decisões financeiras (GITMAN, 1997, p.430), uma determinada estru-tura de capital pode maximizar os lucros da empresa e servir como uma excelen-te ferramenta de alavancagem financeira.

A essência deste sucesso está associada ao que alguns administradoresfinanceiros chamam de estrutura ótima de capital. Esta estrutura ótima de capi-tal resulta do equilíbrio dos custos e benefícios dos empréstimos, para minimizaro custo médio ponderado de capital (GITMAN, 1997, p.430), ou, ainda, segundoBRIGHAM e HOUSTON (1999, p.449), a estrutura ótima de capital é o equilí-brio entre risco e retorno que maximiza o preço das ações de uma empresa.

Estes benefícios do endividamento talvez tenham sido o principal fator doscrescentes níveis de endividamento das empresas norte-americanas. SegundoWESTON e BRIGHAM (2000, p.657), “o índice de endividamento da empresamédia norte-americana elevou-se de cerca de 47% em 1972 para quase 60%em princípios de 1991.”

Porém, os especialistas estão longe de alcançar um consenso: se al-tos níveis de endividamento são benéficos ou não para uma empresa. HenryKaufman, um economista bem conhecido de Wall Street, argumentou queos níveis de endividamento haviam se elevado tanto que um pequeno revéseconômico poderia transformar-se em grande recessão. Por outro lado,John Paulus, o principal economista da Morgan Stanley, contra-argumen-ta dizendo que a dívida constitui a fonte mais barata de capital e que, paraas empresas norte-americanas competirem eficazmente nos mercados glo-bais, elas devem captar ainda mais recursos financeiros (WESTON eBRIGHAM, 2000, p.657).

O caso da Crown Cork & Seal Company,3 uma empresa de 4,5 bilhões,listada na NYSE, é um bom exemplo de utilização vantajosa de capital de tercei-

3 Extraído de BRIGHAM, E. F.; HOUSTON, J. F. Fundamentos da moderna administraçãofinanceira. Rio de Janeiro: Campus, 1999. p.448.

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ros. Durante um período de dez anos, de 1983 a 1993, a Crown aumentou sua dívidade $15,6 milhões para $860 milhões, ou seja, em mais de 5.000 por cento. Nesse meiotempo, seu capital acionário aumentou em apenas 148 por cento. Como a Crownganhou muito mais sobre seus ativos do que o custo de sua dívida, seus lucros subi-ram acentuadamente, o que levou o preço de suas ações de $3 para $40.

Por outro lado, o endividamento representou a destruição para diversosgrandes varejistas, incluindo a Federated Department Stores e a R.H. Macy &Company.4 O problema começou em 1986, quando Edward Finkelstein, ex-presidente do conselho da Macy, realizou uma aquisição financiada por capitalde terceiros, deixando a Macy tão endividada que, mais tarde, a empresa se viuforçada à falência. Então, em 1988, Robert Campeau, um empreendedor imobi-liário canadense, utilizou capital de dívida para comprar a Federated. Logo após,a Federated foi à falência porque não podia pagar os juros de suas dívidas. Emambos os casos, os acionistas tiveram grandes perdas.

Como se pode perceber, o endividamento pode gerar resultados significati-vos, assim como catastróficos. É a partir deste entendimento que este artigo pro-cura fazer uma revisão das diversas correntes atuais, abordando a forma pela quala correta gestão da estrutura de capital pode auxiliar a organização naalavancagem de seus recursos e conseqüente maximização dos lucros,mostrando também os perigos decorrentes dos variados níveis de endividamento ea influência que o perfil da gestão da empresa tem sobre sua estrutura.

DEFININDO A ESTRUTURA DE CAPITAL DESEJADA

As fontes de recursos de uma empresa (passivo) sempre estão estruturadasde alguma forma, independentemente dessa estrutura ser o reflexo de um prévioplanejamento ou não. Essa estrutura de capital, para que seja eficiente e sirvacomo alavanca para o desenvolvimento empresarial, precisa ser previamentedefinida de acordo com alguns princípios básicos.

BRIGHAM e HOUSTON (1999) explicam que quatro fatores principaisinfluenciam as decisões sobre a estrutura de capital:

1. O risco do negócio, ou o grau de risco inerente às operações da empre-sa, caso não utilize capital de terceiros. Quanto maior for o risco do negó-cio da empresa, mais baixo será seu grau de endividamento ótimo.2. A posição tributária da empresa. Uma das principais razões para se usarcapital de terceiros é que os juros podem ser deduzidos para fins de impos-tos, o que reduz o custo efetivo da dívida. No entanto, se a maior parte do

4 Op. Cit.

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lucro de uma empresa já está protegida da tributação por meio de escudostributários de depreciação ou por compensação de prejuízos fiscais anteri-ores, sua alíquota de impostos será baixa, de modo que a dívida não serátão vantajosa quanto seria para uma empresa com uma alíquota de impos-tos efetiva mais alta.3. Flexibilidade financeira, ou a capacidade de levantar capital sob condi-ções razoáveis em situação adversa. Os administradores financeirosde empresas sabem que uma oferta uniforme de capital é necessáriapara operações estáveis – o que é vital para o sucesso a longo prazo.Eles também sabem que, quando há redução de crédito na economia,ou quando uma empresa está passando por dificuldades operacionais,os provedores de capital preferem fornecer fundos a empresas combalanços patrimoniais fortes. Portanto, tanto a necessidade potencialfutura de fundos como as conseqüências de uma deficiência de fun-dos têm grande influência na estrutura de capital desejada – quantomaior for a necessidade futura provável de capital e quanto pioresforem as conseqüências de uma falta de capital, mais forte precisa sero balanço patrimonial.4. Conservadorismo ou agressividade da administração. Alguns admi-nistradores são mais agressivos que outros e por isso algumas empresassão mais propensas à utilização de dívidas para alavancar os lucros.Este fator não afeta a estrutura de capital ótima ou maximizadora devalor, mas influencia a estrutura de capital desejada (1999, p.449).

A estrutura escolhida com base nestes princípios será chamada de estruturade capital desejada. Essa estrutura não é estática, podendo mudar ao longo dotempo, à medida que mudam as condições, mas, em qualquer dado momento, agerência tem em mente uma estrutura de capital específica (BRIGHAM eHOUSTON, 1999, p.449). Esse grau de endividamento existente é monitoradopara que fique dentro de uma variação previamente estabelecida. Se, por exemplo,na composição de sua estrutura, uma empresa optar por manter o capital de tercei-ros em torno de 45%, e se, por qualquer motivo, este índice começar a crescer, éprovável que os recursos para a nova expansão deverão originar-se de financia-mento interno a fim de ajustar a quantidade de capital próprio e capital de terceiros.

Financiamento interno “surge das operações da empresa (...), inclui fontescomo lucros retidos, salários provisionados ou contas a pagar” (BODIE eMERTON, 1999, p.296). Um exemplo simples de financiamento interno é o casode uma empresa que obtém lucros e os reinveste em novas fábricas e equipa-mentos. O financiamento externo “ocorre sempre que os gerentes da empresa

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precisam levantar fundos através de investidores e financiadores externos” (1999,p.396), como, por exemplo, através da emissão de debêntures ou ações parafinanciar a compra de uma nova fábrica e equipamentos.

Desta forma, entende-se a alternância entre fontes internas e externas definanciamento como o mecanismo básico que as empresas utilizam para fazercom que a sua estrutura de capital real esteja sempre igual ou próxima de suaestrutura de capital desejada.

ALAVANCAGEM FINANCEIRA

BREALEY e MYERS trabalham com o seguinte entendimento:

O recurso básico de qualquer empresa é a corrente de flu-xos de tesouraria produzida pelos seus ativos. Quando aempresa é inteiramente financiada por capitais próprios,todos esses fluxos da tesouraria pertencem aos acionistas.Quando emite dívida e ações, a empresa compromete-se adividir os fluxos de tesouraria em duas partes: uma, relati-vamente segura, que se destina aos detentores da dívida, euma outra, com maior risco, que se destina aos detentoresde ações (1998, p.447).

Podemos dizer que a empresa que se financia em parte por dívidas é umaempresa que trabalha alavancada em um determinado grau. Segundo a defini-ção de BRIGHAM e HOUSTON (1999, p.456), alavancagem financeira é ograu de utilização de títulos de renda fixa (de dívida e ações preferenciais) naestrutura de capital de uma empresa.

Sendo assim, se uma empresa faz uma captação de dinheiro contraindodívidas e sua capacidade em gerar lucros é superior às taxas emprestadas, entãoo excedente pode ser considerado o resultado da alavancagem. GITMAN (1997,p.116) explica que, quanto maior o endividamento a custos fixos, ou alavancagemfinanceira, de uma empresa, maiores serão seu risco e retorno esperados.

Mas, se pensarmos no princípio básico de investimento, em que o aumen-to do retorno deve ser proporcional ao aumento do risco, então os ganhos daalavancagem seriam ilusórios, uma vez que o prêmio do investidor é aumentadodevido ao aumento de risco. Num mercado perfeito, uma dada combinação devalores imobiliários é tão boa quanto outra (BREALEY e MYERS, 1998, p.449),ou, em outras palavras, independentemente de sua estrutura de capital, o valorda empresa não se altera.

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Modigliani e Miller (apud ROSS, WESTERFIELD e JAFFE, 1995, p.302)apresentam um argumento convincente, dizendo que uma empresa não pode alteraro valor total de seus títulos mudando as proporções de sua estrutura de capital. Emoutras palavras, o valor da empresa é sempre o mesmo, qualquer que seja a estruturade capital, entendendo-se desta forma que nenhuma estrutura de capital é melhor oupior do que qualquer outra, para os acionistas da empresa. A razão disto é a seguinte:à medida em que a empresa acrescenta mais capital de terceiros, o capital próprioremanescente se torna mais arriscado. À medida que esse risco se eleva, o custo decapital próprio acaba aumentando. O aumento do custo do capital próprio remanes-cente compensa a vantagem obtida com a maior proporção da empresa financiadacom o capital de terceiros mais barato. Na verdade, Modigliani e Miller provam queos dois efeitos compensam um ao outro exatamente, de modo que o valor da empre-sa e o custo geral de capital acabam sendo insensíveis ao grau de endividamento(ROSS, WESTERFIELD e JAFFE, 1995, p.312).

Mas este raciocínio, inicialmente fácil de entender, acaba por gerar umcerto desconforto e confusão, uma vez que, se uma empresa consegue umafonte de financiamento mais baixo que seus concorrentes, então esta poderágerar retornos desiguais, já que o risco da empresa é o mesmo que seu concor-rente, porém com um custo de capital inferior.

Este modelo, apesar de coerente, sustenta-se nas premissas da concor-rência perfeita, com os mercados de capitais completos e perfeitos, que é a basedos estudos de Modigliani e Miller, nos quais todas as empresas têm acesso àsmesmas fontes de recursos e informação, o que acaba por ocasionar um equilí-brio geral, uma vez que não existe nenhum tipo de favorecimento.

A própria analogia empregada por Modigliani e Miller, utilizando alimentos,acaba por elucidar esta questão quando consideram um produtor de lacticíniosque tem duas opções. Se, por um lado, pode vender leite integral, por outro, tema opção de vender uma combinação de creme e leite semi-desnatado. Embora oagricultor possa elevar um preço por causa do creme, o preço do leite semi-desnatado é baixo, o que significa que não há ganho algum. Na verdade, imagineque a receita da estratégia de venda de leite integral seja menor do que a daestratégia combinando creme e leite semi-desnatado. Indivíduos que desejassemfazer arbitragem comprariam o leite integral e o transformariam, eles mesmos,em creme e leite semi-desnatado, e os venderiam separadamente. A concorrên-cia entre os indivíduos que fizessem arbitragem tenderia a elevar o preço do leiteintegral até que o resultado com as duas estratégias fosse equacionado. Portan-to, o valor do leite é independente do modo pelo qual o leite é transformado evendido (ROSS, WESTERFIELD e JAFFE, 1995, p.312).

O aumento do lucro seria ilusório, uma vez que este não seria nada maisnada menos que uma maneira de compensar o aumento do risco. Mas, então,

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como as empresas podem se utilizar de dívidas, e obter lucros desproporcionaisao aumento do risco?

Como não vivemos em um mundo ideal e perfeito, as empresas acabampor se beneficiar de fontes exclusivas de financiamento, o que lhes proporcionaum custo mais baixo de financiamento em relação aos seus concorrentes. Nestecontexto, são patentes os benefícios do endividamento. Porém, como estas situ-ações não são tão comuns, mesmo em mercados eficientes no nível fraco, existeuma outra situação em que as empresas podem maximizar seus lucros em umaproporção desigual ao seu aumento de risco.

Conforme já abordado, um dos fatores que se deve levar em conta nomomento da decisão da estrutura de capital a ser utilizada pela empresa é aposição tributária da mesma. O mundo de Modigliani e Miller não só era ideal,como também não sofria a incidência de impostos ou custos de agency.5

A idéia básica do imposto de renda de pessoa jurídica inserida no conceito dealavancagem financeira apoia-se na idéia de que o valor da empresa está positivamen-te relacionado ao nível de capital de terceiros (ROSS, WESTERFIELD e JAFFE,1995, p.314). Em outras palavras, quanto mais uma empresa se endivida, menos impos-tos ela paga. Esta diminuição é decorrente de uma peculiaridade do sistema tributáriobrasileiro, bem como de outros inúmeros países, incluindo os Estados Unidos.

Se tomarmos o exemplo da empresa IN DOUBT, que está avaliando doistipos de financiamento para compor sua estrutura de capital, a primeira utilizan-do-se apenas de capital próprio, e a segunda utilizando-se de metade de capitalpróprio e metade de capital de terceiros, então teremos a seguinte proposta:

QUADRO 1. DEMONSTRAÇÕES FINANCEIRAS RELATIVAS ÀS ALTERNATIVAS DA “IN DOUBT”

5 Custos da resolução do conflito de interesses entre administradores e acionistas.

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TERRA E CULTURA, ANO XIX, Nº 37 154

Este exemplo mostra que a tributação do imposto de renda só aconteceapós o pagamento dos juros, propiciando ao final do DRE um maior fluxo decaixa na posição endividada com relação à posição sem dívida. ROSS,WESTERFIELD e JAFFE, (1995, p.314) explicam que, como o benefício fiscalse eleva com o nível de capital de terceiros, a empresa pode aumentar seu fluxototal de caixa e seu valor, substituindo capital próprio por capital de terceiros.

Sendo assim, a importância da estrutura de capital de uma empresa é desta-cada, uma vez que, elevando o quociente entre capital de terceiros e capital pró-prio, a empresa pode reduzir seus impostos e, conseqüentemente, aumentar seuvalor total. As importantes forças que atuam no sentido de maximizar o valor daempresa parecem empurrá-la para uma estrutura de capital integralmente com-posta por capital de terceiros (ROSS, WESTERFIELD e JAFFE, 1995, p.316).

FAMA e MELHER (1999), baseados em um estudo sobre as 500 maioresempresas da América Latina em faturamento líquido em 1995, “disseram” haverfortes indícios de que o nível de endividamento se constitui num fator que potencializaos resultados das empresas com tendência a gerar lucro, aumentando, conseqüente-mente, seu valor, e age negativamente sobre aquelas com tendência a gerar prejuízo.

Esta observação de Fama e Melher sobre potencializar os resultados dasempresas é de extrema importância, uma vez que apenas as empresas gerado-ras de lucros operacionais se beneficiariam da alavancagem. A alavanca agecomo impulsionadora para cima ou para baixo. Apesar do raciocínio dealavancagem financeira ser um pouco complexo, não podemos esquecer que aempresa que se endivida o faz mediante uma taxa, taxa esta que deverá ser, nomínimo, igualada operacionalmente, para que não exista prejuízo.

ESTRUTURA DE CAPITAL: LIMITES AO USO DE CAPITAL DE TERCEIROS

Mas, se o endividamento ocasiona o aumento dos fluxos de caixa e, conse-qüentemente, do valor da empresa, por que então, segundo WESTON eBRIGHAM (2000, p.657), as empresas estão começando a desalavancar, subs-tituindo endividamento por capital próprio?

O endividamento acrescenta um risco financeiro ao risco do negócio, o quepode fazer com que algumas empresas decidam por níveis de risco de acordocom a agressividade administrativa da empresa.

Em 1991, pela primeira vez em oito anos, os balanços patrimoniais dasempresas não-financeiras encerraram o ano com índices mais baixos deendividamento em relação ao começo do ano. Os efeitos da desalavancagemsão substanciais. À medida em que novas parcelas de capital próprio são realiza-das e a dívida é paga, os custos de juros são reduzidos, as restrições operacionais

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são relaxadas e as agências de classificação de crédito consideram adesalavancagem um sinal favorável. Ademais, o pagamento do endividamentolibera caixa que as empresas podem dedicar a dispêndios de capital e coisas dogênero (WESTON e BRIGHAM, 2000, p.658).

Não se pode esquecer que o que produz valor não é o passivo, mas sim osativos. Sendo assim, se a empresa que capta dinheiro no mercado não conseguegerar valor em suas operações, então o endividamento não é apenas inútil mas tam-bém prejudicial à empresa. É o mesmo que um investidor captar dinheiro em umbanco a uma determinada taxa e, ao invés de investir em aplicações que lhe propor-cionem retornos superiores às taxas de captação, não aplicar em lugar algum.

Segundo FAMA e MELHER (1999), a alavancagem financeira pode geraralguns problemas para a empresa, a saber:

1. Elevação do risco, tendo em vista que os juros acabam se constitu-indo numa modalidade de custo fixo, gerando risco financeiro.

2. Existência, segundo alguns autores,6 do denominado “custo de fa-lência”, em parte também ligado ao risco do negócio.

3. Risco de flutuação para maior, da taxa de juros ao longo do tempo.Este tipo de risco parece ter sido pouco abordado pelos autores deTeoria de Finanças. A variabilidade desta taxa, por fatoresconjunturais, poderia inviabilizar, em determinado momento, a rolagemda dívida pela geração de alavancagem negativa ao negócio.

Conforme Brigham e Houston, apud FAMA e MELHER (1999):

O capital de terceiros tem diversas vantagens. Primeiro, osjuros são dedutíveis para fins de imposto, o que reduz ocusto efetivo da dívida. Segundo, como os portadores detítulos de dívidas obtêm um retorno fixo, os acionistas nãoprecisam partilhar seus lucros se os negócios forem extre-mamente bem-sucedidos. No entanto, o capital de terceirostambém tem desvantagens. Primeiro, quanto mais alto for ograu de endividamento, mais alta será a taxa de juros. Se-gundo, se uma empresa enfrenta tempos difíceis e o lucrooperacional não é suficiente para cobrir os pagamentos dejuros, os acionistas terão de cobrir a diferença e, se nãopuderem fazê-lo, a empresa irá à falência. Épocas boaspodem estar logo adiante, mas o excesso de dívidas aindapode impedir a empresa de chegar lá e ainda arruinar osacionistas nesse meio-tempo.

6 Ver ROSS, WESTERFIELD e JAFFE (1995, p.325); BREADLEY, R. A.; e MYERS, S. C.(1998, p.485).

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Estes são apenas alguns problemas que podem ser causados peloendividamento da empresa. Existem outros fatores negativos que não foramaqui abordados e que também podem prejudicar o funcionamento da empresa.

Todos esses fatores são analisados com pura racionalidade e, às vezes, compura subjetividade. Nível de agressividade é algo abstrato e difícil de se medir. Porisso, alguns autores, como ROSS, WESTERFIELD e JAFFE (1995, p.302), argu-mentam ser impossível definir uma estrutura de capital que produza o maior valorda empresa. Mas, sem dúvida, os dados aqui discutidos servem como uma ótimareferência para a decisão de se utilizar da alavancagem financeira ou não.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apesar de alguns autores defenderem a idéia da existência de um conceitode estrutura ótima de capital, a presente discussão lembra que endividamento éuma moeda na qual em uma das faces encontra-se o lucro e na outra o prejuízo.Inúmeros fatores podem fazer com que empresas endividadas acabem em umprocesso de insolvência.

É abordada também a importância que o ambiente empresarial impõe so-bre os gestores financeiros no momento da decisão sobre a estrutura de capitalde suas empresas; argumentamos ser esta condicionada a fatores macro emicroeconômicos.

Outrossim, a disposição para correr risco é de caráter pessoal, caracteri-zando a opção de cada organização de acordo com a premissa e o entendimentode seu corpo diretivo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASBODIE, Z. e MERTON, R. C. Finanças. Porto Alegre: Bookman, 1999.BREALEY, R. A.; MYERS, S. Princípios de finanças empresariais. 5.ed.Portugal: McGraw- Hill, 1998.BRIGHAM, E. F.; HOUSTON, J. F. Fundamentos da moderna administra-ção financeira. Rio de Janeiro: Campus, 1999.FAMA, R.; MELHER, S. Estrutura de capital na América Latina: existiria umacorrelação com o lucro das empresas? IV SEMEAD, outubro, 1999.GITMAN, L. Princípios de administração financeira. 7.ed. São Paulo: Harbra,1997.ROSS, S. A.; WESTERFIELD, R. W.; JAFFE, J. F. Administração financei-ra. São Paulo: Atlas, 1995.WESTON, J. F.; BRIGHAM, E. F. Fundamentos da administração finan-ceira. 10.ed. São Paulo: Makron Books, 2000.

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UMA PROJEÇÃO DAS FINANÇAS NA PRIMEIRADÉCADA DO SÉCULO XXI

*Adalberto Brandalize

RESUMO

Este trabalho mostra que, devido a uma nova realidade financeira provocadaprincipalmente pelo fenômeno da globalização, surge um novo perfil de homemde finanças; explora também a tendência de que os executivos financeiros, antespreocupados com cálculos e vendas, vêm desenvolvendo inesperadas habilida-des mercadológicas e domínio de grandes quantidades de dados utilizáveis paraalcançar metas relacionadas tanto com custos quanto com faturamento, mos-trando como estes começam a se esforçar para aumentar o faturamento daempresa e não apenas os lucros. Depois de décadas dedicando-se prioritariamentea aumentar o lucro líquido de empresas, os executivos financeiros voltam a sepreocupar com o faturamento, a ponto de até parecerem vendedores.

PALAVRAS-CHAVE: Executivos; Estratégia; Finanças; Faturamento; Retorno; Lucros; Custos.

ABSTRACT

This work shows that, due to a new financial reality caused mainly by theglobalization phenomenon, a new profile of financial executives appears; the workalso explores the tendency that financial businessmen, earlier concerned withcalculations and sales, have been developing unexpected market abilities anddominion over large amounts of data usable to reach goals related both to costs andsales, showing that they start to make an effort to increase not only the companysales but also its profits. After decades dedicated to increase the company profits,financial executives are again concerned with sales, even resembling shop assistants.

KEY-WORDS: Executives; Strategy; Finances; Sales; Return; Profits; Costs.

* Docente da UniFil. Graduado em Administração de Empresas pela UEL.Mestrando em Administração-Gestão de Negócios/UEL. Especialista em Finanças e O&M.Ex-executivo e consultor empresarial.E-mail: [email protected]: [email protected]

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1. INTRODUÇÃO

Este trabalho é um exercício de projeção de como será composta e atuaráa área financeira na primeira década do século XXI. Um ponto importante é queos mercados financeiros estão mais imprevisíveis que no passado devido à cres-cente interação entre os países. Quando um país ou um bloco de países foratingido por uma crise, com o advento da globalização, todos os demais, de umaforma ou de outra, sofrerão algum dano; é como um dominó, as pedras vãocaindo até atingir nosso país e, provavelmente, nossa empresa. Exemplos são asrecentes crises da Argentina, dos Tigres Asiáticos, do México e outras.

Uma das habilidades financeiras mais valorizadas pelas empresas será acapacidade do profissional em analisar, avaliar e escolher, entre inúmeras opor-tunidades de investimentos ou obtenção de recursos, qual o melhor investimento,ou a melhor fonte de recursos, considerando fatores como segurança e risco e oseu conseqüente retorno.

Do ponto de vista da Administração, os enfoques podem ser diferenciados,mas todos continuarão a considerar a empresa como uma organização que dis-põe de um conjunto de recursos e busca atingir certos objetivos. Nesse contexto,as atividades de planejamento e controle financeiro serão privilegiadas.

Na Teoria Econômica, a empresa continuará a ser vista como uma unidadeprodutiva, que transforma insumos em produtos, gerando, dessa forma, valor. Aempresa, ao produzir bens e serviços demandados pelo mercado, obtém lucropara sobreviver e crescer, além de contribuir para o bem-estar com sua produ-ção e estimular outras atividades produtivas para a frente, através de seu produ-to, e para trás, através de suas compras de insumos. Porém, o caráter impessoalestará cada vez mais presente e o executivo financeiro terá pouco contato comseu cliente, podendo este ser um número eletrônico; a empresa terá que se ajus-tar a esta nova realidade.

GITMAN (1997: p.7) define finanças como: “a arte e a ciência de admi-nistrar fundos. Praticamente todos os indivíduos e organizações obtêm re-ceitas ou levantam fundos, gastam ou investem. Finanças ocupa-se do pro-cesso, instituições, mercados e instrumentos envolvidos na transferênciade fundos entre pessoas, empresas e governos.”

Uma nova visão de finanças será trabalhada neste estudo.Um Sistema de Informações Gerenciais eficiente será fundamental princi-

palmente para o executivo financeiro, e este terá seu desempenho avaliado peloretorno que obtiver na utilização eficaz destas informações.

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2. ADMINISTRAÇÃO FINANCEIRA AO FINAL DA PRIMEIRA DÉCADA DO SÉCULO XXI

Os executivos financeiros terão, entre outras, atividades de vendedores defaturamento financeiro, isto é, com meios de auxiliar a empresa a obter ganho decapital em todas as suas atividades, utilizando-se de técnicas financeiras e deseu relacionamento interpessoal.

Os executivos financeiros serão vendedores, preocupando-se menos emaumentar o lucro líquido e mais com o faturamento, produção, marketing, enfim,com a empresa como um todo. O retorno financeiro será encarado como umaconseqüência do trabalho de toda a empresa. A grande preocupação do Execu-tivo Financeiro será a gestão do retorno dos ativos e a manutenção de capital degiro, sendo as tarefas burocráticas automatizadas na origem.

O executivo financeiro fará visitas a clientes, buscando identificar suas necessi-dades e grau de satisfação em relação aos serviços prestados pelas funções financei-ras da empresa, reforçando a premissa de que será um vendedor de serviços e tam-bém da imagem da empresa perante o maior objetivo da empresa, que é seu cliente.

O cliente somente adquirirá produtos de valor relativo da empresa que elesentir que tem saúde financeira. Desta premissa nasce a necessidade da forteligação do executivo financeiro com os principais clientes da empresa, e aconfiabilidade da empresa será a mola mestra para alavancar grandes negócios.

Comenta O’BRIEN (2001: p.189), sobre previsão e planejamento financeiros:

“Os analistas financeiros normalmente utilizam planilhaseletrônicas e outros ‘softwares’ de planejamento financeiropara avaliar o desempenho financeiro presente e projetadopara uma empresa. Estes ‘softwares’ também ajudam a de-terminar as necessidades de financiamento de uma empresae analisam métodos alternativos de financiamento. Os ana-listas financeiros utilizam previsões financeiras relativas àsituação econômica, operações das empresas, tipos de fi-nanciamento disponíveis, taxas de juros e preços de açõese obrigações para desenvolver um plano ótimo de financia-mento para a empresa. Os pacotes de planilhas eletrônicas,‘software DSS’ e ‘groupware’ de rede podem ser usadospara montar e manipular modelos financeiros. Respostas asituações hipotéticas e perguntas relativas à busca de obje-tivos podem ser exploradas quando os analistas e gerentesfinanceiros avaliam suas alternativas de financiamento einvestimento.”

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As empresas direcionarão os esforços de seus executivos e funcionáriospara o crescimento das vendas. Todos os executivos da empresa serão verda-deiros vendedores de serviços e produtos, concentrando as habilidades e conhe-cimentos destes nas necessidades ambientais e de produtividade. Exemplifica-se esta idéia na Figura I, que segue:

Figura 1 – Sistema Básico de Trabalho das Empresas do Futuro

Fonte: Dados do autor.

Todos os executivos das empresas terão sólidos conhecimentos financei-ros e o executivo da área também terá grande conhecimento das demais áreasda empresa. Isto fará com que as decisões sejam tomadas com a participaçãode todos os executivos, após ampla discussão. Grande parte das operações fun-cionará com auto-atendimento. A empresa será enxuta, com no máximo, trêsníveis hierárquicos, sendo: direção, executivos e executantes. Cada funcionárioexecutante fará tarefas inerentes às funções da administração que a operaçãoexigir, por exemplo: uma venda de um produto - o funcionário fará o cadastro,aprovará, providenciará a documentação, receberá valores, recolherá os valoresao banco, empacotará e entregará o produto ao cliente, utilizando o máximo detecnologia em automatização; portanto, os funcionários serão atendentes execu-tivos e estarão subordinados a vários executivos, prestando contas da atividadepertinente à área responsável pela função.

FORÇA DE TRABALHO DA EMPRESA

HABILIDADES, CAPITAL INTELECTUAL E ESFORÇOS

Concentrada em

Direcionados para

NECESSIDADES DOS CLIENTES, AMBIENTAIS E DE PRODUTIVIDADE

Com o objetivo principal de

SURPREENDER POSITIVAMENTE OS CLIENTESComo conseqüência obter

RENTABILIDADE FINANCEIRA

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A atuação do executivo financeiro será mais no nível de aprovação deinvestimentos e obtenção de recursos de longo prazo. As demais operações,hoje executadas na área financeira, serão cada vez mais automatizadas. O pro-fissional será conhecedor de faturamento, marketing, produção, enfim, de todasas atividades da empresa e não somente da supervisão financeira.

O executivo financeiro desenvolverá talentos direcionados à Administra-ção Estratégica, que, provavelmente, será a melhor ferramenta de gestão em-presarial, desenvolvendo, entre outras, habilidades mercadológicas e domínio degrandes quantidades de dados utilizáveis para alcançar metas relacionadas tantocom custos quanto com faturamento.

O executivo financeiro terá grande conhecimento logístico. Vide Figura 2,a seguir, que demonstra um modelo futuro de Processo de Planejamento Empre-sarial do Executivo Financeiro:

Figura 2 - O Processo de Planejamento Empresarial do Executivo Financeiro

Fonte: dados do autor.

Afirma BRAGA (1995: p.23) que:

“A função financeira compreende um conjunto de ativida-des relacionadas com a gestão dos fundos movimentadospor todas as áreas da empresa. Essa função é responsávelpela obtenção dos recursos necessários e pela formulaçãode uma estratégia voltada para a otimização do uso dessesfundos. Encontrada em qualquer tipo de empresa, a funçãofinanceira tem um papel muito importante no desenvolvi-mento de todas as atividades operacionais, contribuindosignificativamente para o sucesso do empreendimento.”

COMPONENTES DOPLANEJAMENTODO EXECUTIVOFINANCNEIRO

Valor do cliente

Distribuição e Administração de Estoques

Desenvolvimento do Capital Intelectual

Resultados Financeiros

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O Executivo Financeiro gerenciará a função financeira, ou seja, as pessoasque executam funções financeiras; a supervisão será feita pelos resultados enão em nível de tarefas; portanto, a atuação do executivo será funcional, confor-me exemplificado na Figura 3, a seguir:

Figura 3 – Supervisão da Função Financeira

Fonte: Dados do autor.

O executivo financeiro terá um contato pessoal com o banco, mas somentepara negociação de aplicações ou financiamentos; as demais operações serãotodas automáticas, não havendo deslocamento até o banco; as operações emvalor deverão ser todas com dinheiro de plástico, portanto, com transferênciasautomáticas, entre o devedor e o credor, via agente financeiro. A Internet serácada vez mais o instrumento de vendas, para pequenas e grandes empresas.

A área financeira analisará criteriosamente os investimentos, desde novosprodutos, investimentos, reformas. Qualquer atividade que demande locação derecursos somente ocorrerá após estudo completo e aval da área financeira.

Haverá a intensificação do efeito conhecido por “desintermediação”, quedesigna o fenômeno da eliminação de intermediários, sendo que os principais sãoos estabelecimentos bancários. A reaproximação somente acontecerá com osbancos que oferecerem confiabilidade aliada a uma capacidade de distribuição eatendimento especializado.

A área financeira terá papel fundamental, pois a maioria dos negócios comclientes em vendas no varejo será através de meios eletrônicos (Internet), ha-vendo a necessidade de desenvolvimento de sistemas de negociação ágeis eseguros, dimensionamento de risco e retorno, bem como, distribuição, cobrançae assistência técnica. Administrar este relacionamento impessoal com clientes

EXECUTIVO FINANCEIRO

FUNÇÕESFINANCEIRASNA ÁREA DEMARKETING

FUNÇÕESFINANCEIRAS

NA ÁREAINDUSTRIAL

FUNÇÕESFINANCEIRASNA ÁREA DE

R. H.

FUNÇÕESFINANCEIRAS

NA ÁREACOMERCIAL

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consistirá em um desafio à área financeira e, concomitantemente, às demaisáreas da empresa. Diante desta premissa básica, investimentos em marketingserão fundamentais para assegurar o faturamento.

Em síntese, o mercado financeiro, em sua maior parte será virtual econectará os investidores aos usuários de capital e aos fornecedores de diversosserviços, como seleção de ativos e informações especializadas. Esta evoluçãodo mercado virtual provocará grandes mudanças na distribuição de produtosfinanceiros. À medida que as empresas de ‘software’ forem aprimorando econectando as peças do quebra-cabeça dos financiamentos e investimentosempresariais, a competição ocorrerá em outra esfera. Isso será feito em interfacesintegradas com dispositivos padronizados, conectando as mesas de trabalho naempresa a fornecedores de serviços financeiros, serviços de pesquisa e de notí-cias e, em última instância, usuários de capitais.

A área financeira passará a trabalhar diretamente com assuntos estratégi-cos, visando garantir a demanda criada pelos planos de vendas e marketing eque possam ser atendidas pela produção, além de assegurar que haja caixa dis-ponível para ambos.

Em um avanço, a área financeira migrará da estrutura funcional, a seradotada nos próximos anos, para a estrutura matricial, que aproveitará as habili-dades de atendimento completo de cada operação para um trabalho participativoe de responsabilidade compartilhada.

Abordando as tendências do Administrador Financeiro, afirma GITMAN(1997: p.4):

“Outra importante tendência recente tem sido a globalizaçãodas atividades empresariais. As grandes companhias norte-americanas têm aumentado drasticamente suas vendas einvestimentos em outros países, enquanto as empresas es-trangeiras têm aumentado suas vendas e seus investimentosdiretos nos Estados Unidos. Essas mudanças criaram a ne-cessidade de Administradores Financeiros capazes de ad-ministrar fluxo de caixa nomeados em diferentes moedas,além de protegê-los dos riscos político e cambial que natu-ralmente emergem das transações internacionais.”

Serão condições sine qua non ao administrador o conhecimento de finan-ças internacionais e a capacidade de rápida adaptação a novas situações e ten-dências no mundo globalizado. O capital migrará rapidamente de uma parte domundo para outra, dependendo do risco e oportunidade oferecidos.

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Comentou-se anteriormente que o principal executivo da área financeira pre-cisará ser um estrategista e, como tal, terá que desenvolver habilidades especiaispara realizar estas funções. Em vez de ser aquele que junta todas as informações,faz todas as análises e diz como a empresa deve agir, ele será um catalisador doprocesso de mudança das empresas. Foi elaborada a Figura 4, apresentada a se-guir, demonstrando algumas particularidades deste novo papel do financeiro.

Figura 4 – O Financeiro Estrategista e seus Novos Papéis

Fonte: dados do autor.

3. A GLOBALIZAÇÃO E SEUS EFEITOS FUTUROS NO MERCA- DO FINANCEIRO

A maior exigência da globalização da economia acentuará a busca da má-xima eficiência, que passa por avaliação criteriosa de investimentos de recursosfinanceiros, riscos, retorno, reduções dos custos de produção, de capital e, ainda,pelo aproveitamento de vantagens comparativas, como localização estratégicaou acesso facilitado a matérias-primas.

A redução dos custos de produção ensejará investimentos em pesquisaspara o avanço tecnológico, além de melhor qualificação e aplicação dos recursosfinanceiros/humanos, aprimoramento da logística e do planejamento estratégico.O aproveitamento das sinergias do próprio parque industrial nacional tambémserá fator importante de redução dos custos de produção individual. Portanto, omenor custo de energia elétrica, de telecomunicações e de financiamento dos

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TERRA E CULTURA, ANO XIX, Nº 37 165

meios produtivos reduzirá custos de produção e preços finais em outros segmen-tos, aumentando assim a competitividade perante o globo. Pode-se afirmar queas privatizações, que continuarão a acontecer, tendo por objetivo viabilizar inves-timentos em infra-estrutura e melhorar sua eficiência, de forma a se conseguirpermanente redução de custos no Brasil, buscando uma eficiente competitividadeem todos os mercados mundiais.

Teremos os grandes ganhos alicerçados por grandes idéias, no conheci-mento, no talento das pessoas que a compõem, na criatividade; isto, na áreafinanceira e nas demais áreas empresariais. Não há tendência de retorno dasépocas de inflação elevada, onde os ganhos financeiros e não-operacionais cos-tumavam ter uma participação significativa no resultado das empresas. As pre-ocupações com qualificação profissional, evolução tecnológica e reduções decusto de capital eram relegadas a um segundo plano, pois representavam gran-des esforços para pequenos resultados, quando contextualizadas em ambientesinflacionários. A estabilização da economia, que no Brasil deve experimentaruma seqüência, consolidará uma inversão deste processo, pois os ganhos queadvêm destas variáveis passam a causar grandes impactos para as empresas.

A redução dos custos de capital imporá, de modo cada vez mais acentua-do, o estabelecimento de novo relacionamento entre as empresas e os bancos:algo de mais personalizado, que se pareça com uma parceria, uma grande diver-sidade de serviços prestados de forma bastante apropriada à realidade de cadaempresa. Será um tratamento especial através, das recentemente criadas, áreascorporativas dos mais diversos bancos.

O aumento do retorno do negócio pela fórmula do aumento do preço tornar-se-á impraticável e inviável, já que todos buscarão reduzir preços e sabem queaumentá-los em mercados competitivos e com economias estabilizadas é perderfatias deste mercado. A globalização tende a aumentar a competitividade e a efi-ciência dos mercados, pois traz, principalmente para as economias globalizadas,melhores tecnologias e mais intervenientes, capazes de limitar manipulações.

Em tempos de economia estabilizada, globalizada e substancialmente cal-cada na produção, tem-se a certeza que os resultados do segmento bancárioserão, em gradativa maior proporção, oriundos da prestação de serviços para asempresas. A boa prestação destes serviços passa pelo bom entendimento dasformas de redução dos custos de capital destas empresas, trazendo melhora daclassificação de risco e captação de recursos mais baratos via operações deadministração e análise financeira junto a mercados financeiros estruturados demercadoria, de instrumentos financeiros e de futuros, nacionais e internacionais.

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CONCLUSÕES

Um ponto importante a destacar é que os mercados financeiros, hoje, estãomais imprevisíveis que no passado devido à crescente interação entre os países.Quando um país ou um bloco de países for atingido por uma crise, com o adventoda globalização, todos os demais, de uma forma ou de outra, sofrerão de algumdano; é como um dominó, as pedras vão caindo até atingir nosso país e, prova-velmente, nossa empresa.

Neste contexto, em que o administrador operará como vendedor de servi-ços da empresa e a avaliação de clientes será despersonalizada, o dinheiro maisusual será manipulado por meios eletrônicos e a empresa não poderá sujeitar-sea correr os riscos de alocar recursos em investimentos que não tragam o retornoproporcional ao capital investido, ou ainda, o retorno que remunere adequada-mente o investimento.

As habilidades em transformar informações, conhecimento e motivaçãoem resultados serão fundamentais para o sucesso do empreendimento. Não seráa empresa “A” que concorrerá com a empresa “B”, mas sim a capacidade daspessoas da empresa “A” com a capacidade das pessoas da empresa “B”. Esteefeito se aplicará, principalmente aos executivos financeiros, pois a eficiência ouineficiência deste profissional será facilmente avaliada com base nos resultadosobtidos. Com o aumento das empresas que utilizarão em seus sistemas de custoso custeio por atividades, a eficiência financeira será visível e indisfarçável.

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