term1 ernesto filosofia da linguagem - uso-menção

4
Uso / Menção Considerem o seguinte exemplo [Lyons, 6]: (i) ela detesta ‘Epaminondas’; (ii) aquele homem sentado é Epaminondas; (iii) logo, ela detesta aquele homem sentado. Este argumento é verdadeiro (considerando que a referência a Epaminondas não é ambígua no contexto em que a frase é dita, que não estamos, por exemplo, num encontro bianual de Epaminondas) se ‘Epaminondas’ referir-se ao homem que está ali sentado e que se chama Epaminondas, mas falso se estivermos falando do nome ‘Epaminondas’; distinção entre uso e menção; o argumento será verdadeiro se a palavra ‘Epaminondas’ estiver sendo usada, e falso, se estiver sendo mencionada; outro exemplo [Sparkes, 8]: (iv) o rio Nilo é maior do que o rio das Velhas (v) ‘o rio Nilo’ é menor do que ‘o rio das Velhas’ introdução de um símbolo gráfico para distinguir as duas situações; necessário quando se fala da linguagem; distinções suplementares: (vi) João tem quatro letras (vii) Eu detesto ‘João’ Não é certo que em ambos casos nos referimos à mesma coisa; possibilidade de variação do meio (posso, por exemplo, detestar apenas a forma escrita João); possibilidade de variação da forma (‘João’ poderia aparecer sob outra forma, o que não é o caso em português - substantivos não têm outras formas; comparar com o latim Johannes, Johannem, Johanni etc.); possibilidade de outra inscrição, desviante, de ‘João’, (‘Jhoão’); possibilidade de extensão a outras línguas (Jean, John, Ivan etc.); em todas estas variações, posso manter (vii), mas não (vi); João poderia também ser impronunciável; possso dizer, por exemplo, (viii) Xdth tem quatro letras; 1

Upload: frederico-almeida-rocha

Post on 21-Jan-2016

143 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: TERM1 Ernesto Filosofia da Linguagem - Uso-menção

Uso / Menção

Considerem o seguinte exemplo [Lyons, 6]:(i) ela detesta ‘Epaminondas’;(ii) aquele homem sentado é Epaminondas;(iii) logo, ela detesta aquele homem sentado.Este argumento é verdadeiro (considerando que a referência a Epaminondas não é ambígua no contexto em que a frase é dita, que não estamos, por exemplo, num encontro bianual de Epaminondas) se ‘Epaminondas’ referir-se ao homem que está ali sentado e que se chama Epaminondas, mas falso se estivermos falando do nome ‘Epaminondas’; distinção entre uso e menção; o argumento será verdadeiro se a palavra ‘Epaminondas’ estiver sendo usada, e falso, se estiver sendo mencionada; outro exemplo [Sparkes, 8]:(iv) o rio Nilo é maior do que o rio das Velhas(v) ‘o rio Nilo’ é menor do que ‘o rio das Velhas’introdução de um símbolo gráfico para distinguir as duas situações; necessário quando se fala da linguagem;distinções suplementares:(vi) João tem quatro letras(vii) Eu detesto ‘João’Não é certo que em ambos casos nos referimos à mesma coisa; possibilidade de variação do meio (posso, por exemplo, detestar apenas a forma escrita João); possibilidade de variação da forma (‘João’ poderia aparecer sob outra forma, o que não é o caso em português - substantivos não têm outras formas; comparar com o latim Johannes, Johannem, Johanni etc.); possibilidade de outra inscrição, desviante, de ‘João’, (‘Jhoão’); possibilidade de extensão a outras línguas (Jean, John, Ivan etc.); em todas estas variações, posso manter (vii), mas não (vi);João poderia também ser impronunciável; possso dizer, por exemplo, (viii) Xdth tem quatro letras;ou ainda o nome atual do cantor anteriormente conhecido como ‘Prince’; João será a forma de citação de ‘João’; a menção de ‘João’ e a de João admitem variações diferentes.Nem sempre é possível separar radicalmente o uso e a menção de uma mesma ocorrência de um termo;(ix) Aninha é chamada assim por seu tamanhoNeste caso, ‘Aninha’ não é mencionada, não falo da palavra, mas da pessoa, mas, por outro lado, a forma do nome é importante para a compreensão da frase; comparem com:(x) Ana é chamada assim por do seu tamanho,que não tem o mesmo sentido de (ix), aliás não tem sentido algum.Voltaremos a este ponto quando tratarmos de contextos referencialmente opacos, mas há uma duplicidade de papéis da palavra que impede a separação radical entre uso e menção [Cf. Quine, Word and Objetct, 153].Reflexividade de línguas naturais, a língua pode falar de si mesma; identificar quando a língua fala de si mesma e quando não fala de si mesma; uma fonte clássica

1

Page 2: TERM1 Ernesto Filosofia da Linguagem - Uso-menção

de erros em filosofia, denunciada na tradição analítica, mas antes, numa certa linha da filosofia medieval, que tem uma distinção semelhante (doutrina da suppostio).

Crítica de dois postulados assumidos na distinção uso/menção por Garver [1965]: (a) o postulado da menção pura, segundo o qual há instâncias de pura menção: para se reconhecer o termo ‘gato’ em “gato’ é um substantivo’ é preciso reconhecer que ‘gato’ é um substantivo, não se trata assim de pura menção, mas de uma função especial do substantivo; (b) o postulado da compreensividade, segundo o qual a distinção uso/menção é exaustiva e exclusiva: a ocorrência de uma expressão como predicado de uma frase que estabelece um sentido é diferente de sua ocorrência em outros tipos de frase, mas esta diferença não é descrita corretamente pela distinção uso/menção; distinção entre a referência a palavras (menção) e ao sentido das palavras; as duas críticas procuram mostrar que há variedades de uso e de menção; pode-se manter a distinção sem incorrer em (a) nem (b); elas apontam para outro fato obscurecido pelos termos ‘uso’ e ‘menção’: a menção é um uso da expressão; como funciona este recurso linguístico de citação? Quine diz que a forma citada é um nome próprio para a expressão mencionada (“To mention something, we use its, or some description”, Quine, 231) (teoria do nome próprio da citação, Davidson), posição defendida também por Tarski, por exemplo; Lyons diz, por exemplo, que poderíamos substituir a forma de citação de qualquer palavra por um número e, em vez de(xi) A palavra francesa ‘homme’ é um substantivo,dizer a sentença equivalente(xii) A palavra francesa 457 é um substantivo,com uma convenção ligando ‘homme’ a 457 [Lyons, 1977, 11];nesta teoria, a expressão dentro da marca de menção é uma palavra não estruturada; se ‘homme’ é um nome próprio em (xi), não há como diferenciar as condições de verdade de (xi) das condições de verdade de (xiii) Epaminondas está sentadoDavidson diz que desta forma não podemos dar nenhuma condição de verdade de sentenças com expressões citadas, nenhum aspecto estrutural da sentença que explique em que condições tal tipo de sentença é verdadeira; nomes próprios são infinitos (há infinitas expressões), é necessário portanto teoria que apontem fatores estruturais da citação que apontem para as condições de verdade de uma sentença com uma citação, uma teoria que apresente as condições de verdade para toda sentença com uma citação (Davidson discute outra teoria que não apresentarei aqui, picture-theory da citação, mas que cai no mesmo problema);Davidson sugere uma teoria demonstrativa da citação; a marca de citação indica que a expressão refere-se ao que está dentro da marca de citação; esta teoria evita a consideração da expressão citada como um todo desestruturado, sem partes que se correlacionem entre si e expliquem as condições de verdade de uma sentença que a contenha; a referência é feita pela marca de citação, diz Davidson, e ela o faz apontando para a expressão interna; a menção é portanto um mecanismo com uma estrutura complexa que explica a auto-referencialidade da linguagem; a teoria de Davidson retoma o tipo de problema que está na origem da distinção entre uso e

2

Page 3: TERM1 Ernesto Filosofia da Linguagem - Uso-menção

menção; a auto-referencialidade é um aspecto fundamental da língua, a distinção uso/menção é uma abordagem deste aspecto;o problema que deve ser elucidado é se fazemos referência à ocorrência física individual de cada expressão ou à mesma expressão recorrente em diversas ocorrências físicas diferentes; este problema é tratado por outra distinção importante, a distinção tipo/ocorrência (type/token).

Bibliografia1. DAVIDSON, Donald. Quotation. Inquiries into Truth and Interpretation. Oxford: Clarendon.

1984. p.79-92.2. GARVER, Newton. Varieties of Use and Mention. Philosophy and Phenomenological

Research. n.26. 1965. p.230-238.3. LYONS, John. Semantics. Cambridge: Cambridge UP. 1977. p.5-10.4. QUINE, Willard V. Quiddities; An Intermittently Philosophical Dictionary. Cambridge;

Harvard UP. 1987. p.231-235.5. SPARKES, A. W. Talking Philosophy; a Wordbook. London: Routledge. 1991. p.8-10.

3