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TERITORIALIDADE E EXTRATIVISMO NA AMAZÔNIA: OS DESAFIOS E AS POSSIBILIDADES PARA O DESENVOLVIMENTO LOCAL
SUSTENTADO DE POPULAÇÕES TRADICIONAIS FRENTE ÀS IMPOSIÇÕES EXÓGENAS
Ricardo Reis Pólen Universidade Federal do Pará
Resumo O presente artigo pretende demonstrar que, apesar de historicamente a região amazônica sempre ter sido vista, estudada, planejada e ocupada a partir de interesses, visões e estratégias externas à mesma, ignorando as territorialidades de suas populações tradicionais, e deixando de lado a importância de suas atividades, principalmente a extrativista, para a manutenção do modo de vida dessas populações, hoje há condições e até mesmo interesse de velhos e novos atores sociais para se reverter esta situação e promover a garantia/resgate desta territorialidade incentivando um desenvolvimento local sustentado. Palavras-chave: Amazônia. Territorialidade. Extrativismo. Populações Tradicionais. Desenvolvimento local. Introdução Sendo uma região com uma histórica e crescente importância geopolítica no espaço
mundial, principalmente a partir da 2ª metade do século XX, a Amazônia mostra-se
cada vez mais multifacetada, principalmente em virtude das complexas realidades
coexistentes na mesma. Embora na ótica de Becker (2007 p. 20) ainda sendo uma
fronteira não plenamente estruturada e por isso geradora de realidades novas a
Amazônia caracteriza-se cada vez mais como um espaço com uma dinâmica regional
própria, pois as últimas décadas, e mais intensamente os últimos 20 anos, têm sido de
grandes transformações para a mesma. Transformações estas que a elevaram ao posto
de região altamente estratégica no cenário internacional.
Não se trata mais do domínio das instituições governamentais, nem tanto da expansão territorial da economia e da população nacionais, mas sim de forças que, embora anteriormente presentes, têm uma forte e diferente atuação nas escalas global, nacional e regional/local, configurando verdadeiras fronteiras nesses níveis, pois que geradores de realidades novas. BECKER, (2007).
Percebe-se a partir desta constatação o caráter de espaço em constante transformação e
que se define como uma nova fronteira aberta a múltiplas realidades.
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A coexistência de várias fronteiras1 na Amazônia remete-se ao fato de haverem
inúmeras realidades e diversos atores coexistindo na mesma.
A maioria dos planos e projetos governamentais para a Amazônia rotineiramente foram
desenvolvidos a partir interesses externos. Interesses estes que buscaram e buscam
mostrar à própria região amazônica, ao próprio povo Amazônia, o seu caráter de
subdesenvolvimento, de região periférica. Por isso o saque contínuo de seus recursos
ocorre de forma tão intensa e, em muitos casos, é até mesmo festejada pela população
local, que ainda possui a visão colonial subalterna, pois esta acredita nas benesses
prometidas e nas verdades criadas sobre a Amazônia.
Hoje, há diversas atividades econômicas sendo processadas ou desenvolvidas na região,
entretanto, atividade extrativista na Amazônia sempre se destacou entre essas diversas
atividades existentes na região, mesmo as mais tradicionais ou aquelas introduzidas
desde o processo de colonização ou pelo processo de ocupação recente, pela sua
abundância e por produzir, importantes fontes de alimento e renda para as populações
locais.
Hoje, essa atividade tem constantemente sido referenciada como altamente estratégica
no sentido de garantir ou recuperar a territorialidade de populações tradicionais e de
pequenos produtores amazônidas e direcioná-los a um desenvolvimento local
sustentado.
As diferentes concepções sobre a Amazônia no contexto nacional e internacional
Historicamente o termo Amazônia foi definido a partir das crendices, das lendas e da
mitologia trazidas pelos colonizadores europeus no ato de seu “descobrimento” e
exploração relacionados ao chamado “novo mundo” a partir do século XV. A lenda das
amazonas, mulheres guerreiras que montadas em seus cavalos atacavam todos os que
vinham de fora, principalmente os homens, cujo atrativo destes, era baseado apenas no
interesse da reprodução. Após este ato, os homens, mesmo as crianças, eram
sacrificados impiedosamente.
Posteriormente, a partir de um aprofundamento no processo de colonização e de um
“maior” conhecimento sobre a Amazônia começaram a surgir novas definições para a
região. Essas definições acabavam coincidindo com os interesses externos daqueles que
só objetivavam a exploração e o lucro a qualquer custo sobre as riquezas naturais da
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mesma. No século XVII, após o fim do Tratado de Tordesilhas, os portugueses
começaram um ambicioso projeto de consolidação da sua dominação nas Américas
expandindo as fronteiras da colônia para o oeste para consolidar o seu território e a
Amazônia seria uma aquisição valiosíssima para a coroa portuguesa. O grande problema
a ser enfrentado era a consolidação territorial e a formação de uma região que pudesse,
de imediato, suprir os interesses mercantilistas da época.
Desde o período colonial as concepções sobre a Amazônia têm sido amplamente influenciadas pelo imaginário de uma parcela da população européia medieval que estavam povoados pelas lendas orientais relatadas desde Marco Pólo, Jehan de Mandeville, Pierre D’aili, Jean de Plan de Carpin e Ibn Batuta, os relatos de viagens desses autores ganharam popularidade a partir do século XVII e esta se mantém ao longo dos séculos, numa tradição de relatos fabulosos. (GONDIM, 1994. SEIXO, 1996 apud BUENO 2004).
Aquela época das descobertas em um momento em que os povos europeus
encontravam-se em vias de esgotamento de seus recursos naturais, principalmente dos
metais preciosos como o ouro e a prata coincide com a descoberta do “novo mundo”, o
que imediatamente fez com que os povos europeus passassem a crer que ainda haviam
regiões e povos vivendo da abundância desses metais preciosos. Por isso ganham tanta
força mitos como o do Eldorado. Além das histórias e lendas fantásticas que
permeavam o imaginário europeu sobre a Amazônia, havia também, evidentemente, um
imaginário que buscava sempre tornar explícita a inferioridade do homem e da natureza
relacionados à região amazônica como imatura ou degenerada e que buscava mostrar a
partir de uma visão eurocêntrica que o europeu e sua natureza eram obviamente mais
evoluídos que estes.
No século XIX, que segundo Bueno (2004) é definido como o século dos naturalistas, a
região amazônica passa a despertar cada vez mais o interesse científico dos povos
europeus, privilegiando-se então a natureza e o aprofundamento do conhecimento sobre
as suas potencialidades.
Já no início do século XX a região amazônica começa a causar a curiosidade e também
a perplexidade de pesquisadores e curiosos Brasileiros. Não se tem certeza do real
motivo de somente neste período a Amazônia ter chamado mais a atenção de estudiosos
e romancistas brasileiros, mas Bueno (2004 p. 48) sugere que os brasileiros só
começaram a se interessar pela Amazônia neste momento, por que é a partir daí que o
Brasil está consolidando a sua identidade.
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Já a partir da década de 1950, e mais intensamente durante os governos militares (1964-
1985), o discurso do progresso que o Brasil vive intensamente se aplica também à
Amazônia. Nas palavras de Becker (1997) é o Estado brasileiro que toma a si a
incumbência de um novo e ordenado devassamento amazônico. Essa situação se vincula
a um novo padrão de inserção do Brasil (e outros países periféricos) numa ordem
planetária que é moldada por vetor científico-tecnológico moderno imbricado nas
estruturas sociais do poder.
Neste período as propagandas e ideologias governamentais começam a retomar a idéia
de Amazônia como o paraíso perdido que precisa ser vitalmente ocupado, pois dela
depende o futuro do país. Neste contexto se fortalece a idéia de que a Amazônia poderia
tornar-se o “celeiro do mundo” devido a provável riqueza de seus solos. Além desta
visão, reforçada na década de 1950, percebe-se também no mesmo período estratégias
governamentais no intuito de promover a chamada integração nacional. Juntamente com
estas estratégias começam a ser formuladas uma série de doutrinas como a da
“segurança nacional”, mais particularmente a partir do golpe militar de 1964, que
passou uma certa paranóia do Estado nacional militarizado em ocupar e defender as
fronteiras, principalmente as amazônicas, no intuito de evitar uma possível invasão às
terras brasileiras por grupos estrangeiros, mais particularmente aqueles vinculados aos
movimentos guerrilheiros de esquerda alinhados aos interesses da União Soviética, que
se multiplicavam na América Latina e em alguns países que fazem fronteira com a
chamada Amazônia brasileira.
As implicações geopolíticas de ordem externa também pesaram: a vulnerabilidade da extensa e isolada região quanto à organização de focos revolucionários; o dinamismo interno dos países vizinhos, que, embora menos industrializados, têm também movimentos de investimento e de população para suas Amazônias, que são mais próximas de seus respectivos centros vitais. A essas preocupações soma-se a necessidade de assegurar a presença do Brasil na exploração dos recursos da Amazônia sul-americana(...)(BECKER 1997 p.13).
Tanto as estratégias de integração nacional quanto a doutrina da segurança nacional
estão imbuídas de projetos geopolíticos de garantia de recursos ou mesmo de
militarização da região. Não é a toa que se criou a idéia de que a Amazônia era um
vazio demográfico e que deveria efetivamente ser povoada. Esses artifícios trazem
consigo mais uma série de visões alienígenas para a Amazônia, não somente de
estrangeiros, sendo grupos multinacionais ou pessoas físicas, até mesmo os chamados
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sulistas, que mesmo sabendo que a maior parte da Amazônia pertencia ao Brasil, muito
pouco sabiam sobre ela, e a maior parte disto estava, como já citado, impregnada de
preconceitos e visões equivocadas do homem e da natureza amazônicos.
Ao mesmo tempo. Essa imensa região que abriga tão vastos recursos naturais, é vista
como um verdadeiro vazio demográfico e, portanto, vulneráveis a eventuais pretensões
de potências internacionais. Gonçalves (2008).
Concomitantemente à divulgação dos planos e estratégias do Estado brasileiro para a
Amazônia começa a era dos grandes projetos para a região. Grandes projetos por que na
visão desenvolvimentista uma região tão grandiosa como a Amazônia (diz-se aí
grandiosa mais pelo potencial do que pelo tamanho) precisava de forma urgente se
integrar aos grandes centros do capitalismo nacional e principalmente do famigerado
capital internacional, ávido por maiores lucratividades.
Esses grandes projetos são necessários na visão governamental, pois a Amazônia
encontrava-se isolada com relação aos grandes centros urbanos, econômicos e
consumidores do Brasil e do mundo, sem as redes técnicas que facilitariam uma maior
integração. Entretanto, essa mesma região, longínqua, isolada e subdesenvolvida, possui
um enorme potencial em vários aspectos, principalmente, à época, mineral e energético.
Para garantir a exploração deste gigantesco potencial, obviamente, o governo brasileiro
associou-se a grandes grupos empresariais nacionais e multinacionais que se
incumbiram de traçar os planos necessários à consolidação dos mesmos. Tudo passa a
ser desenvolvido e planejado fora da região, ou pelos tecnoburocratas do governo ou por
“especialistas” vindos do exterior. Em momento algum, segundo Branco (2004) a
população local amazônica, o índio, o caboclo, ou qualquer outro ator social local foi
consultado, nem mesmo ilustres estudiosos ou institutos de pesquisa regionais foram
ouvidos.
É a partir dessa lógica que começa a surgir uma ocupação a partir da formação de
grandes enclaves2 na região (Becker 1997) ou como alguns estudiosos gostam de
definir, “os grandes objetos”. O Estado brasileiro passa a definir grandes projetos em
todas as áreas, sejam elas agropecuárias, minerais, infra-estruturais, energéticas, de
colonização. A mobilização é total e as propagandas oficiais do governo enaltecem a
importância de tal fato. A Amazônia começa “finalmente” a ser desmistificada e eleva-
se ao patamar de “salvação do Brasil”. A ideia do Eldorado retorna sob uma nova ótica:
“Amazônia, a região do futuro”. Entretanto, segundo Branco (2004), as tentativas de
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colonização, mineração e cultivo do solo amazônico, segundo as tradições européias,
foram desastrosas, provocando graves impactos ambientais e criando várias áreas
desérticas e improdutivas na região. Não se justifica, hoje em dia, contando com a
experiência calamitosa do passado contando com a missão oferecida pelo nativo e com
as pesquisas, que há mais de meio século vêm sendo desenvolvidas na região, persistir
no erro.
Seguidos foram os desastres ambientais, econômicos e sociais ocorridos na Amazônia e
que se repercutem até os dias atuais. A Amazônia passa a ser vista/percebida pelo Brasil
e pelo mundo uma região de conflitos, devastação, exploração e violência.
Devido aos grandes projetos milhares de pessoas migraram para a região, sejam grandes
empresários ou fazendeiros, sejam pequenos produtores ou despossuidos, sejam os
flagelados ou aventureiros, de todas as partes do Brasil e que traziam consigo as suas
próprias concepções acerca da Amazônia. Das mais românticas às mais cruéis visões e
intenções para a região.
Após a década de 1980 a Amazônia passou a ser vista como um “santuário ecológico”
em virtude de intensas mudanças ocorridas no âmbito mundial, principalmente as
relacionadas às questões ambientais, e devido às pressões, nacionais e internacionais, a
região amazônica passa a ter um novo, porém não menos importante papel.
À crise do Estado e à resistência social, somou-se a pressão ambientalista internacional e nacional para gerar um vetor tecno-ecológico (VTE) na dinâmica regional que, predominando entre 1985 e 1996, configurou na Amazônia uma fronteira sócioambiental, entende-se como vetor, uma força resultante da coalescência de múltiplos projetos. (BECKER 2007 p. 27).
Esse fato tem grande influência nos movimentos ambientalistas nacionais e
internacionais, que passam a enxergar a Amazônia como um santuário a ser preservado,
pois surge com muita força a idéia de que a Amazônia é o “pulmão” do mundo, e nas
novas concepções a respeito do chamado desenvolvimento sustentável.
No início do século XXI a problemática ambiental passa a ser a temática principal, ou
como alguns definem a nova “febre”, quando se fala em Amazônia, principalmente
devido ao fato de se constatar o suposto aquecimento global e as necessidades de se
manter as florestas intactas, uma vez que estas são responsáveis pela absorção do
dióxido de Carbono (CO2), principal responsável pelo Efeito Estufa e a Amazônia,
obviamente, passa a ter, novamente, um importante papel na manutenção climática
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global, pois é o grande “filtro do ar atmosférico”, ou simplesmente o “ar condicionado
do planeta”.
Todas essas visões e formas de concepções sobre a Amazônia que foram criadas,
formuladas, construídas e reconstruídas desde o século XV até os dias atuais contribuem
para a formação de um ou de diversos imaginários populares, mas que sempre remetem
à mesma ótica: a externa. A imagem que normalmente se tem a respeito da região amazônica é mais uma imagem sobre a região do que da região. Essa situação decorre da posição geográfico-política a que a região ficou submetida desde os tempos coloniais. Desde os primórdios de sua incorporação à ordem moderna, desencadeada pelo colonialismo, a região tem sido vista mais pela ótica dos colonizadores do que de seus próprios habitantes. Nesse sentido a Amazônia sofre daquelas características típicas de povos/regiões submetidos a desígnios outros que não aos de seus próprios habitantes” (GONÇALVES 2008 p. 12).
As diferentes visões sobre a Amazônia, como: Eldorado, Terra das Amazonas, paraíso
terrestre, natureza imaginária, inferno verde, reserva de recursos naturais, vazio
demográfico, celeiro do mundo, questão nacional, pulmão do mundo, região de
conflitos, filtro do ar atmosférico, inferno vermelho, região periférica e tantas outras,
mencionadas ou não, deixam clara a falta de definições reais sobre a referida região e
assim, tornam-na um lugar de referência simbólica. As visões que se tem sobre a região,
historicamente justificadoras de projetos, sejam eles políticos ou econômicos, ou de
territorialidades de atores hegemônicos que atuam sobre ela ou que sobre ela pensam.
Essa visão excludente desencadeou um processo de ocupação violento e de agressão às
territorialidades locais. As populações tradicionais como caboclos, ribeirinhos,
indígenas, etc, que historicamente sempre viveram de forma harmoniosa com o meio
natural passaram a sofrer um intenso processo de desterritorialização e perda de sua
identidade, muitos, no caso, sentem-se realmente inferiores por terem o seu modo de
vida “tradicional” tido como ultrapassado ou com pouco valor econômico agregado e
por isso acabam por migrar para as áreas de dinamismo econômico incentivadas pelos
grandes projetos, abandonando de vez seu modo de vida. A abertura de fronteiras
agrícolas na Amazônia tem refletido a imposição de Planos, Programas e Projetos de
desenvolvimento planejados fora e sem nenhuma discussão ou sintonia com os
moradores do local. Com isso os governos incorreram em erros que tiveram efeitos
jamais esquecidos pela humanidade, particularmente na Amazônia: os conflitos, as
chacinas, os assassinatos, as torturas, perseguições principalmente onde os mais
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atingidos foram setores marginalizados econômica e politicamente como os povos
indígenas, camponeses, camponesas e seus descendentes.
É neste momento de intensa consternação que se constata que o brasileiro, o amazônida,
nunca tiveram a sua visão a respeito da Amazônia, mas sempre a dos outros, talvez não
porque não quisessem, mas pelo fato de que nunca tiveram esta oportunidade.
No atual contexto global, devido a uma crescente preocupação de governos, sociedade
civil, ONGs, etc, a respeito da sustentabilidade, percebe-se um novo direcionamento do
“olhar” para a Amazônia. Este novo enfoque acaba por compreender que há uma
enorme necessidade de se obter maiores conhecimentos acerca dos recursos amazônicos
e de comunidades locais que vivem da atividade extrativista. O contexto atual favorece
a busca do chamado desenvolvimento local. Valorizando atividades tradicionais locais
em busca de um desenvolvimento endógeno, da região para a própria região. O processo
de globalização favorece uma nova leva de possibilidades para a Amazônia, como
vamos ver a seguir.
A importância geopolítica da Amazônia no contexto nacional e internacional
O final do século XX consolidou o processo de globalização e com ele abriu-se uma
nova leva de possibilidades para a Amazônia com a interconexão não só da economia e
das finanças, mas também das arenas política, nacional e internacional, a redefinição do
papel do Estado e a revalorização da natureza (Becker 2004 p 33). Esse fato fortalece o
surgimento de novos atores sociais e dá maiores possibilidades aos atores sociais
tradicionais a partir de uma maior conectividade; uma nova estrutura econômica como
processo de industrialização; um intenso processo de urbanização regional; uma
mudança na estrutura da sociedade regional envolvendo diversificação social,
conscientização e aprendizado político, fruto da conectividade; e a implantação de uma
malha sócio-ambiental que representa uma nova forma de apropriação do território por
grupos sociais.
Dessa forma, nos dizeres de Pinto (2002 p. 33):
Todos os cálculos econômicos de futuro incluem o fator amazônico como relevante, sobretudo para setores de ponta: a biotecnologia, a engenharia genética, a tecnologia de novos materiais, o controle da poluição e, naturalmente, refúgios de vida selvagem, cada vez mais vitais para a sobrevivência da humanidade, ou a manutenção de seu ciclo de evolução e progresso.
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Esses são apenas alguns dos vários fatores estratégicos na região que a tornam nova(s)
fronteira(s) atrativa e cobiçada a partir da lógica dos mercados com o chamado capital
natural e as enormes possibilidades de mercantilização da natureza com os novos
mercados que se abrem com a viabilização deste capital natural, como o “mercado do
ar”, o “mercado da vida” e o “mercado da água”.
De acordo com toda essa lógica, Becker (2007) conclui que:
Enfim, a Amazônia adquiriu uma nova escala como região efetiva do país. Nesse processo de conflitos e mudanças, foram elaboradas geopolíticas de diferentes grupos sociais e, fato novo na região, resistências à sua livre apropriação por forças externas, tanto em nível da construção material quanto da organização social, que influem no seu contexto atual.
A importância do extrativismo
Ao longo da história social e econômica da Amazônia, percebemos que o extrativismo
sempre foi a principal, quando não a única, alternativa de exploração, ocupação ou
desenvolvimento em grande parte da sua população. Desde as “especiarias” da
Amazônia, o látex das seringueiras, os recursos minerais do subsolo amazônico, etc.
sempre sendo explorados em “surtos”3 econômicos a partir de interesses, visões ou
necessidades externas à mesma (Bueno 2002), gerando riqueza mundo afora e
distribuindo migalhas na Amazônia.
O camponês amazônico, enquanto categoria social, que de acordo com Shanin (2008),
possui uma intensa capacidade de se reproduzir mesmo nas adversidades é um ator que
muitas vezes é difícil de ser definido, mas que sempre busca estratágias mais variadas
de sobrevivência, sejam elas capitalistas ou não. Sobre as características do
campesinato, os estudos de Shanin, apontam que:
A flexibilidade de adaptação, o objetivo de reproduzir o seu modo de vida e não a acumulação, bem como a multiplicidade de soluções encontradas para o problema de como ganhar a vida, são qualidades encontradas em todos os camponeses que sobrevivem a crise. E, no centro dessas particularidades, está a natureza da economia camponesa (Shanin, 2008, p. 25-26)
As concepções de Hurtienne (2005) são de crucial importância para se compreender a
complexidade que a categoria camponês pode ter na Amazônia, pois, este demonstra
que há uma visão equivocada do pequeno agricultor familiar na região como aquele que
trabalha somente no sistema de agricultura migratória, de corte e queima de culturas
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temporárias voltadas para a subsistência, quando na verdade, a agricultura familiar na
Amazônia já possui muitos sistemas complexos de produção agrícola.
Jean Hebette (2004) discrevendo sobre o campesinato na Amazônia, mostra dados que
indicam que a precariedade é uma característica que integra a vida do camponês na
região. Precariedade essa que nas comunidades locais passa pela baixa escolaridade,
baixo uso de insumos, pouca capacidade de produção e comercialização, grandes
distâncias dos centros de comercialização, o que facilita a ação de atravessadores e
dificulta o acesso a assistência técnica.
Para o camponês na referida região, de forma geral, historicamente, a prática do
extrativismo tem representado muito mais que fonte de emprego e complementação da
renda para as milhares de famílias aqui instaladas (pois muitos também são agricultores
familiares). Tem representado também, a ampliação da possibilidade da reprodução
social, e a oportunidade de recuperar a identidade social camponesa a partir da
recuperação dos vínculos com a terra e o desenvolvimento de sistemas familiares de
produção agropecuários ou extrativistas próprios. No Brasil, essa categoria social de
famílias camponesas, vem enfrentando historicamente um processo de
desterritorialização, conseqüência de uma estrutura agrária que privilegia a
concentração de terras nas mãos de poucos, sem valorizar outras formas de uso da terra
como aquela da agricultura camponesa, dos grupos indígenas, das comunidades
tradicionais entre outras, pois nos dizeres de Souza (2008 p. 84) “a ocupação do
território é vista como algo gerador de raízes e identidade: um grupo não pode mais
ser compreendido sem o seu território”, e na Amazônia este fato tem sido uma
constante.
Mesmo com toda essa problemática todos os cálculos econômicos de futuro incluem a
região amazônica e suas riquezas naturais como altamente relevantes (Pinto, 2002).
Hoje, a região se destaca no mercado mundial de frutas, que são consideradas parte do
tesouro local, e cuja extração e/ou cultivo é sempre incluído como alternativa para o
desenvolvimento sustentável da região (Clement, 2008). Vários produtos extrativistas
amazônicos como o açaí, a Castanha-do-pará, o palmito, entre outros, estão emergindo
no mercado mundial e nacional como alimentos exóticos e saudáveis e possuem um
enorme potencial de expansão, mesmo com todas as dificuldades inerentes ao Brasil4 e,
particularmente, à região amazônica. As possibilidades para o extrativismo na
Amazônia fortalecem-se quanto mais se aprofunda o processo de globalização, pois
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como afirma Castro (2005): “em face da concorrência e da competição, os âmbitos
regional e local estão vinculados a estratégias, que remetem, de certa forma, às
relações mercantis globalizadas”, dessa forma, os produtos extrativistas amazônicos
enquanto produtos regionais, passando a ter grande importância global, favorece
mudanças no nível local.
A garantia da territorialidade e o desenvolvimento local sustentável de
comunidades tradicionais amazônicas.
Segundo Saquet (2007) o território “é produto histórico da relação sociedade-natureza,
multiescalar e condição para a vida”, dessa forma, as diversas comunidades camponesas
extrativistas da Amazônia ao se territorializarem mantém um vínculo essencial com o
local onde se encontram. Assim, as novas possibilidades que estão sendo introduzidas a
partir do processo de globalização proporcionam condições para estas fortalecerem ou
recuperarem a sua territorialidade e obterem condições para o desenvolvimento local
sustentado.
A partir dos estudos de Oliveira (2001), desenvolvimento local não se entende apenas à
satisfação de um conjunto de requisitos de bem-estar e qualidade de vida, mas sim como
uma alternativa para que não se reproduza a forma estrutural e seja entendido como
tendência contrária aos processos dominantes; Souza & Vasconcellos (2010) indicam
que o desenvolvimento local pode ser entendido como um processo endógeno de
mudança capaz de levar dinamismo econômico e melhoria da qualidade de vida à
população em pequenas unidades territoriais e agrupamentos humanos. A citação de
Saquet (2007 p. 115) complementa a idéia quando este afirma que:
Nada se pensa, muda ou se faz, que não seja por meio da materialidade dos lugares; é através dela que passam, necessariamente, todas as relações sociais, as representações conceituais e as iniciativas e os projetos de desenvolvimento local.
Ainda segundo Souza & Vasconcellos (2010) esse desenvolvimento local é sustentável
no momento em que mobiliza e explora potencialidades locais e contribui para elevar
estas potencialidades ao mesmo tempo em que assegura a conservação dos recursos
naturais locais.
Saquet (2007 p. 114) afirma ainda que:
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Há uma relação de complementaridade entre o local e o global, sem anular o território. As condições de cada lugar ou os valores específicos, locais, são constantemente transformados em valores universais através de organizações territoriais cristalizadas em rede, ratificando aspectos das abordagens de Alberto Magnaghi e Claude Raffestin.
Essas concepções acerca das novas possibilidades de desenvolvimento local e de
garantia da manutenção da territorialidade de comunidades extrativistas amazônicas
encontra também forças ainda no mesmo autor, que dando prosseguimento às suas
idéias a respeito do território e da territorialidade afirma que:
A territorialidade é um fenômeno social, que envolve indivíduos que fazem parte de grupos interagidos entre sí, mediados pelo território; mediações que mudam no tempo e no espaço. Ao mesmo tempo a territorialidade não depende somente do sistema territorial local, mas também de relações intersubjetivas; existem redes locais de sujeitos que interligam o local com outros lugares do mundo e estão em relação com a natureza. O agir social é local, territorial e significa territorialidade (Saquet 2007 p. 115).
Dessa forma, não podemos deixar de incluir a importância dos lugares para a
territorialidade e o desenvolvimento local de comunidades tradicionais amazônicas, pois
de acordo com o aporte teórico e metodológico da definição de lugar nas obras de
Santos (1988), que afirma que “ao mesmo tempo em que a singularidade garante
configurações únicas, os lugares estão em interação, graças a atuação das forças
motrizes do modo de acumulação hegemonicamente universal (o capitalismo)”. E
também de Carlos (1996, p. 20) que acrescenta ainda uma dimensão histórica na
concepção do lugar. Esta diz respeito a prática cotidiana, ou seja, às concepções que
surgem do plano do vivido. Para ela, pensar o lugar significa pensar a história particular
(de cada lugar), se desenvolvendo, ou melhor, se realizando em função de uma
cultura/tradição/língua/hábitos que lhe são próprios, construídos ao longo da história e o
que vem de fora, isto é, que se vai construindo e se impondo como conseqüência do
processo de constituição do mundial.
Portanto, o território é produto histórico e condição de processos sociais, com formas e
territorialidades, interações entre a sociedade e a natureza:
Tem um caráter político muito forte em direção à constituição da sociedade local, articulada, mas com a capacidade de autogestão, valorizando a natureza, a ajuda mútua, o pequeno comércio, a autonomia, o trabalho manual do agricultor, os saberes populares, a cooperação, os marginalizados, o patrimônio cultural identitário, a biodiversidade, as microempresas, enfim, a vida(...) em detrimento da mercadoria, da degradação, do imediatismo e do individualismo (Saquet 2007 p. 117).
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Considerações Finais
Tudo isso proporciona enormes possibilidades para que as populações tradicionais que
têm o extrativismo como meio de vida e fonte de renda possam conquistar de volta ou
fortalecer a sua territorialidade. Pois observa-se que mesmo após décadas de intensa
intervenção governamental, do grande capital, nacional e multinacional e seus “grandes
projetos” para a Amazônia ocorreu também a formação/surgimento de atores sociais
que discordam do discurso oficial e buscam explorar a região a partir de uma visão
endógena da mesma, ou seja, explorar, pesquisar, usufruir dos recursos da Amazônia de
acordo com a lógica dos interesses dos amazônidas. Estes “sujeitos sociais têm ações
territorializadas e territorializantes que podem ser potencializadas como mediação
para o desenvolvimento local territorial”(Saquet, 2007 p. 119).
Neste sentido, percebemos que, hoje, devido ao processo de globalização que hora se
processa e com todas as possibilidades trazidas por este à região amazônica, há grandes
chances de realmente ocorrer um desenvolvimento local endógeno de comunidades
amazônicas.
Notas ________________ 1 Segundo Becker 1997 p. 10 “A fronteira no final do século XX tem novas feições por se expandir num novo patamar de integração nacional, com mercado em grande parte unificado e sob o comando de uma nova dimensão de capitais envolvidos: a) Já nasce heterogênea (...); b) Já nasce urbana (...); c) o governo federal tem papel fundamental no planejamento e no volume de investimentos infra-estruturais. ² Os grandes projetos passam a ter caráter de enclaves no sentido de estarem totalmente dissociados do contexto local, totalmente fora da realidade amazônida, pois não foram realizados para a região, e sim na região. ³ Vide BECKER,Bertha K. & EGLER, Cláudio in Brasil, uma nova potencia regional na economia mundo, 6ª Ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010, 4 CLEMENT afirma que no Brasil essas dificuldades podem ser atribuídas aos custos adicionais, afetando projetos atuais, destacando-se as distâncias enormes agravadas pela deficiente estrutura viária (portos, hidrovias, ferrovias); a insuficiência de armazéns e apoio para o transporte; ausência ou insuficiência de cadeias comerciais; e os impostos distorcidos e excessivos. Referências BECKER, Bertha K. (2007). Amazônia: Geopolítica na virada do terceiro milênio. Rio de Janeiro, Garamond. BECKER,Bertha K. & EGLER, Cláudio (2010) Brasil, uma nova potencia regional na economia mundo, 6ª Ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.
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