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TERESA BERLINCK DESENHOS DO SONO Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Artes Visuais da Faculdade Santa Marcelina, como requisito parcial para a obtenção do Grau de Mestre em Artes Visuais. COORDENADORA: Profª. Drª. MIRTES MARINS DE OLIVEIRA ORIENTADOR: Profª. Drª. MIRTES MARINS DE OLIVEIRA SÃO PAULO 2006

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TERESA BERLINCK

DESENHOS DO SONO

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Artes Visuais da Faculdade Santa Marcelina, como requisito parcial para a obtenção do Grau de Mestre em Artes Visuais.

COORDENADORA: Profª. Drª. MIRTES MARINS DE OLIVEIRA ORIENTADOR: Profª. Drª. MIRTES MARINS DE OLIVEIRA

SÃO PAULO 2006

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Sumário Introdução 2 Desenhos do sono 3 Imagens monotipias 15 Imagens do projeto Intimidade 21

Desenhos do sono I 24 Desenhos do sono II 26 Segredos 28 Desenhos do sono III 30

Imagens Desenhos do sono na parede 32

Referências 47

Anexo – Desenhos do Sono 50

3

Introdução

O período do ingresso no mestrado coincidiu com a retomada, em meu

trabalho de artista, de um grupo de desenhos que chamei de Desenhos do

sono. Estes desenhos são a célula-mãe de uma série de obras e foram

definidos como objeto da pesquisa de mestrado, pois sua elaboração e

desdobramentos ocasionaram mudanças em minha maneira de ver e fazer

meu trabalho de arte.

A seguir apresento as imagens1 e o texto que configuram esta

pesquisa. As imagens são o meio, o ponto de partida do trabalho; o texto

pode ser definido como relato que apresenta dois aspectos do processo de

sua elaboração: a descrição de procedimentos e alguma reflexão sobre esta

produção.

1 As reproduções dos Desenhos do sono encontram-se em volume anexo.

4

Desenhos do sono

No ano de 1998 fiz um conjunto de desenhos à maneira de um diário

noturno. Nesse período, observava sensação de fadiga constante, estado em

que a posição deitada parecia representar não somente repouso e descanso,

mas também a ideal. A gravidade se impunha com intensidade nova: gestos

e iniciativas destacavam-se na imobilidade densa, como se meu corpo

estivesse submerso em uma realidade turva e lodosa. Em movimento, e

principalmente em repouso, pequenos gestos ou deslocamentos, mudanças

de posição, extensões ou contrações musculares surgiam muito nítidos, em

contraste com a sensação de peso.

Deitada na cama e próxima do momento de adormecer comecei a

desenhar e, por meio do desenho, observar mais detidamente as sensações

do corpo e as imagens que surgiam. Roland Barthes2 reflete sobre a fadiga

como ponto de partida para o trabalho:

Pode-se fazer uso de sua fadiga diante dos outros, mas pode-se também representar sua própria fadiga. Como? Dizendo-a. A fadiga pode ser observada enquanto trabalho, jogo, criação. (...) A fadiga pode ser criativa talvez a partir do momento onde aceitamos ouvir as ordens. Se eu aceito assumir as ordens da fadiga, ela pode criar algo. Por conseguinte, o direito à fadiga faz parte do novo. Coisas novas podem nascer da lassidão. (...) A fadiga funciona então como simples metáfora. Ou seja, um signo sem referente que provém do domínio do artista. É de Blanchot: "Não quero que suprimam a fadiga; quero ser conduzido a um lugar onde é possível ficar com fadiga". É então a reivindicação ao repouso social. (p. A – 31)

2 Trecho de curso ministrado por Roland Barthes, em 1978, no Collège de France, publicado na Folha de S. Paulo – caderno Ilustrada, em 3 de outubro de 1987 (p. A – 30 e A – 31), tradução e seleção: Lisette Lagnado.

5

Em relação à sensação de peso, imobilidade e cansaço, a posição

deitada poderia representar o estado físico limite, a postura ideal. Mas a partir

do momento em que os desenhos começaram a surgir, ela configurou uma

mudança de padrão. O desenho, em minha experiência, era geralmente

realizado na pose sentada ou de pé, com os braços livres, o corpo alerta e

atento. Mudar o local e a postura utilizados para essa atividade ocasionou

uma nova visão, que colaborou para a experiência da observação do corpo e

a busca por imagens. Manoel Tosta Berlinck (2005), observa:

O recolhimento e a lentificação das funções vitais próprios da depressão solicitam um espaço acolhedor e provedor onde o humano possa levar sua existência, uma vivência no tempo onde importantes mutações podem ocorrer. Esse espaço acolhedor e provedor, que alguns denominam de ambiente, é o circundante inespecífico que assegura a vida. Trata-se de um território, um espaço marcado por fronteiras, ou seja, com limites entre o dentro e o fora. (p. 14 )

Muitos dos desenhos que surgiram nesse diário apresentam figuras

em poses de tensão e extensão corporal. Essas posições surgiram como

imagens que representavam a tentativa de me acomodar, me adaptar e

eliminar o desconforto de estar no mundo, observados juntamente com

sensação de deslocamento e inadequação. Ainda citando Roland Barthes

(1978): "O que me cansa é procurar (sem encontrar) meu lugar"3.

*

O desenho começou no meio de um processo, como anotação. A

3 Ibid.

6

partir da posição deitada, no estado de sonolência próximo ao instante de

adormecer, surgiu a série de trabalhos posteriormente intitulada Desenhos do

sono. O ato de desenhar funcionou inicialmente como observação e registro

de sensações e sentimentos que apareciam por meio do corpo. O corpo e o

desenho foram instrumentos de captação, funcionaram como imaginação:

processo de busca e formação de imagens. A cineasta argentina Lucrecia

Martel4 explica seu cinema como sendo baseado na experiência física: "Meu

corpo é a única geografia sobre a qual posso assentar meu pensamento, o

único lugar que me serve de eixo. Mesmo que filmasse 'Alien 5' seria um

pouco autobiográfico".

Esses desenhos foram iniciados como um movimento de auto-

observação: conduzia minha atenção para o corpo e reparava nos resíduos

do dia que passou, na lembrança dos acontecimentos que reverberavam por

meio de sensações como tensão, cansaço ou relaxamento. A partir do

surgimento destas lembranças e persistências de intensidades vividas,

procurava ficar disponível para o surgimento de imagens. Mário Perniola

(1993) explica o sentir como atividade que "implica um querer sentir". Para

ele, "a sensibilidade, a afectividade, a emoção (...) significa precisamente

exercício (...) Não existe nada de espontâneo neste processo (...) A atenção,

a vigilância, a aplicação constante são condições do sentir" (p. 103).

Uma das buscas presentes no processo de elaboração destes

desenhos é a atenção e sua manutenção para minha relação física com

acontecimentos, o mundo e as coisas. Desenhar, perguntando: – Qual a

ocorrência que reverbera aqui-e-agora, em meu corpo? Desenhar,

observando: qual poderia ser a imagem (que também reverbera em mim de

forma notável) para esta sensação e a partir desta ocorrência?

4 ... e Deus criou a mulher - Reportagem de Silvana Arantes sobre o lançamento do filme A

Menina Santa, dirigido por Lucrecia Martel – Folha de S. Paulo, caderno Ilustrada, 11/8/2005.

7

O estado de fadiga e sonolência que ocorreu no gesto de fazer estes

desenhos, talvez possa ser comparado a características presentes no

desenho automático do programa dos surrealistas. A experiência de utilizar a

falta de tônus como parte de um tipo de método, foi definida pela consciência

"de desenhista": eu procurava me disponibilizar para o surgimento de

imagens, também a partir desse estado. Rosalind Krauss (2002) define a

idéia do gesto automático presente no Surrealismo de André Breton:

O desdobramento cursivo da escrita ou do desenho automático é para ele [Breton], (...) uma manifestação ou um registro, semelhante às linhas traçadas no papel por um sismógrafo ou um cardiógrafo. O que esta trama cursiva faz surgir ao ganhar visibilidade é a percepção direta do que Breton chama de "unidade rítmica", que define como "ausência de contradição, a mobilidade dos investimentos emotivos devidos ao recalcamento, a ausência de temporalidade e a substituição da realidade exterior pela realidade psíquica, submetida unicamente ao princípio do prazer ". (p. 112)

Alguns destes desenhos foram feitos apenas uma vez: são o resultado

do primeiro registro de uma cena, a nota tônica de uma lembrança ou de um

sonho. Outros ocorreram em etapas, como uma investigação: por meio do

redesenho na procura da imagem certa, experimentando diferentes

possibilidades com a pressão do lápis, a velocidade do gesto, a localização

da figura na folha branca.

A maneira como os desenhos foram realizados pode ser comparada à

definição para as palavras inglesas draw ou drawing, que aparece no texto

“Desenho e emancipação” (1973) de Flávio Motta: "... o draw ou drawing é

desenho entendido mais como esboço, croqui, delineação, isto é, 'tirar', atrair

para si, captar, puxar" (p. 1-2)

8

O que importava naquele momento e depois, quando os desenhos

configuraram um conjunto, eram as imagens que surgiam. Os sentimentos e

as sensações iniciaram alguma coisa, mas o que deu movimento ao

processo foi o ato de desenhar e as imagens que apareceram nos desenhos.

Considero estas imagens o resultado de um gesto investigativo e, de

certa forma, testemunhal. Testemunhal pois elas revelam e manifestam,

confirmam um fato, algo ocorrido, uma vivência. Fazem um tipo de relato – de

comunicação e, ao desenhar, revejo e revivo a experiência. Para Shoshana

Felman (2000), "Como uma forma de relação com os eventos, o testemunho

parece ser composto de pequenas partes de memória (...) uma prática

discursiva, em oposição à pura teoria. Testemunhar (...) é realizar um ato de

fala" (p. 18). Essa autora observa que, tanto na psicanálise como na literatura

[e aqui talvez possam ser incluídas as artes visuais], "o testemunho (...) será

compreendido não como uma modalidade de enunciado sobre, mas como

uma modalidade de acesso àquela verdade" (p. 27).

Desenhar figurando gestos e posições do corpo foi parte de uma

procura para entender e constituir imagens durante a experiência. Uma

tentativa de vivenciar e compreender algo por meio do desenho. O que foi

elaborado em meu trabalho, constituiu uma nova maneira de desenhar. Na

experiência de fazer esse tipo de diário, vejo meu olhar voltado de forma

sistemática (todas as noites), para mecanismos relativos ao espaço dos

devaneios, dos sonhos, do imaginar. Todas as noites pego as folhas em

branco e me proponho a entrar em contato com a sensação física daquele

momento para elaborar um tipo de imaginação que vai acontecendo no ato

do desenho.

O desejo de não esquecer, de não desviar-me do sentimento gerador

de cada imagem esteve presente o tempo todo no trabalho. Acreditar e me

esforçar para manter a conexão com o espaço interno. Os desenhos, de

9

alguma forma, deveriam ser portadores da mirada para dentro (no caso deste

trabalho), o meio do aparecimento da imagem, sua imaginação.

*

Ao mesmo tempo que observo (na busca de imagens para

sensações), a procura pela redução da distância entre uma impressão e sua

imagem, noto a impossibilidade de alcançar este objetivo. Os desenhos são

representações, e, assim, tentativas de formar imagens para algo não-visual.

E quando eles começaram a aparecer, iniciou-se uma fala do desenho, um a

partir do outro, noite após noite. Passei a me referir não somente às

sensações que estava procurando figurar, mas também às figuras que iam

surgindo.

No processo de fazer os desenhos formou-se um alfabeto, um

vocabulário que definiu um conjunto com características comuns, como as

formas arredondadas feitas com poucas e meio mal traçadas linhas ou as

imagens soltas na metade inferior do campo branco da folha, sempre na

posição vertical. Rudolf Arnheim (1971) considera que "o conhecimento

intelectual em si não influencia o caráter de uma imagem visual. Só imagens

podem influenciar imagens. (p. 66).

O aparecimento repetido de características dos desenhos como as

linhas arredondadas ou a mesma imagem um pouco modificada é,

igualmente, a tentativa de ajuste, a procura para encontrar uma forma

satisfatória. Assim, o conjunto de desenhos representa também seu processo

de elaboração. À medida que as imagens apareciam elas ingressavam em

um movimento de redefinição contínua (durante o período de elaboração do

diário e depois, quando fiz outros trabalhos a partir deste grupo de

desenhos).

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Alguns dos Desenhos do sono têm a linha clara revelando a pressão

leve do lápis que apenas toca o papel. Este gesto cuidadoso é resultado da

procura por um movimento que não seja ruidoso, que não desvie a atenção

do processo de imaginar desenhando. Comparo este cuidado com o que

preciso ter ao acordar de manhã, quando desejo manter um sonho vívido

para sua rememoração completa: a concentração está voltada para as

imagens que se dispersam no meio dos estímulos, sons e solicitações do dia

que se inicia.

Ao fazer estes desenhos, minha atenção se dirigia para dentro, para

um lugar do silêncio e que foi acessado por meio dele. Roland Barthes (1978)

investiga o silêncio:

O silêncio: vamos primeiro fazer uma exploração de palavras latinas. "Sileo" e "taceo" significam calar-se, ficar quieto. Antigamente, havia uma nuança muito interessante. "Tacere" remetia ao silêncio verbal: é um estado de alguém que não fala. "Silere" denotava mais amplamente uma tranqüilidade, uma ausência de movimento e de barulho. "Silere" era empregado para objetos (por exemplo: a noite, a lua, se calam) remetendo a uma virgindade intemporal das coisas, antes que elas nasçam ou depois de sumirem. Fala-se do "silere" dos botões antes de brotar. "Silere" implicava no silêncio da natureza. (p. A – 31)

Observo que a posição deitada também caracteriza estes desenhos: a

mão e o braço têm o eixo de seu peso – a pressão da gravidade –

deslocados, pois o gesto é realizado com o suporte (a folha de papel) na

vertical. O movimento não tem o mesmo apoio que ocorre quando desenho

sentada numa cadeira, com o desenho sobre uma mesa. Quando trabalho

deitada as diferentes pressões do lápis sobre o papel dependem de uma

opção nítida, um gesto com intenção definida, talvez mais próximo à

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experiência de desenhar em pé, quando o papel também pode ser colocado

na posição vertical.

O coreógrafo Klauss Vianna (1990), fala sobre a experiência de

observação do corpo pelo contraste da gravidade:

Duas Forças Opostas geram um Conflito, que gera o Movimento. Este, ao surgir, se sustenta, reflete e projeta sua intenção para o exterior, no espaço. (...) Só quando descubro a gravidade, o chão, abre-se espaço para que o movimento crie raízes, seja mais profundo (...) À medida que vou sentindo o solo, empurrando o chão, abro espaço para minhas projeções internas, individuais, que, à medida que se expandem, me obrigam a uma projeção para o exterior. (p. 78)

*

A opção pelo lápis grafite e pela folha no tamanho A4 surgiram,

durante este processo, como parte do movimento da busca por imagens. O

formato do papel foi utilizado como suporte acessível, comum a todas as

pessoas, um tipo de espaço neutro: a folha que pode ser encontrada em

qualquer papelaria. Esta idéia de disponibilidade atribuída ao A4 combinou

com a da elaboração de um tipo de diário, de anotação. O importante era

manter a atenção voltada para a escuta das sensações e para o surgimento

das imagens relacionadas a elas.

O grafite, mais do que material de registro, representou um

instrumento sensível que pôde responder às mudanças de intensidade do

gesto, suas interrupções, aos diferentes níveis de pressão ou oscilações na

velocidade do traçado. Pensar sobre o movimento comparado à escuta e seu

registro por meio do lápis remete ao mesmo tipo de atenção demandada em

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minha experiência com o desenho de observação. A mão acompanha o

percurso do olhar, atento às intensidades da luz, ao peso das linhas. O olho,

que guia o movimento da mão – fixo no modelo – vai rapidamente para o

desenho para já retornar ao objeto ou pessoa observada. O corpo todo fica

concentrado e conectado nesta operação. Paul Valéry (2003) nota, na

atividade do desenho de observação, que "o artista avança, recua, debruça-

se, franze os olhos, comporta-se com todo o corpo como um acessório de

seu olho, torna-se por inteiro órgão de mira, de pontaria, de regulagem, de

focalização” (p. 71).

A técnica e o material utilizados são aspectos que motivam meu

trabalho em arte: processos podem ser iniciados pela curiosidade despertada

pelos meios. Idéias e imagens surgem relacionadas a diferentes

procedimentos e a questionamentos acerca de sua elaboração e resolução

física. Meu interesse por obras de arte também surge, muitas vezes,

relacionado aos procedimentos, antes mesmo do que às idéias contidas

nestas. A pergunta que surge primeiro é: ! Como isso foi feito? ! Qual o

material e a técnica utilizados?

O artista Robert Gober (2002) comenta sua relação com o fazer:

I get very frustrated when people ask me, “What does your sculpture mean?” I respond by talking about what it's made of and they get impatient, as though I'm avoiding the question. But I feel that unless you know what it's physically made off, you can't begin to understand it. A lot of times the metaphors are embedded right in the medium and the way that you work.5 (p. 96)

5 "Fico muito frustrado quando as pessoas me perguntam “O que a sua escultura significa?” Eu respondo dizendo do que ela é feita e as pessoas ficam impacientes, como se eu estivesse evitando a questão. Mas eu sinto que a não ser que você saiba do que a escultura é feita, você não consegue entendê-la. Muitas vezes as metáforas estão embutidas exatamente no meio (o material de que é feita a obra) e na maneira de trabalhar" (p. 96). Tradução: Regina Gomes de Sousa.

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Gilo Dorfles (1992) reflete sobre o valor da técnica e do meio expressivo:

a arte, além de simbólica, é essencialmente técnica (no sentido geral da construção) e, (...) constitui uma só coisa com o meio técnico-expressivo em que se apóia e no qual se encarna (...) impõe-se uma análise das diversas artes que leve em consideração os seus media exatamente porque este é o único meio honesto e lícito de estudar as suas características 'somáticas e psíquicas'. (p. 39)

*

Quando os desenhos começaram a somar-se formando um conjunto, sua

fala da esfera íntima apareceu como um ato de desnudamento. Olhar para

eles suscitou questões sobre o lugar que o material ocupava em meu

trabalho: poderia ficar com esses registros e considerá-los a justa tradução

das sensações que eles procuravam figurar? No momento de incerteza

(instante seguinte à sua configuração), aquelas imagens evocavam o

sentimento de exposição: ao olhar para os desenhos (falas de minha

intimidade) sentia-me, ao mesmo tempo, invadida e intrusa.

Para Mário Eduardo Costa Pereira (2003), o cansaço presente na hora

de dormir (estado de onde vem os Desenhos do sono), impõem um

desligamento do próprio eu: "Nesse momento – erigido em hora da verdade,

o sujeito (p. 136) "estaria despido da roupagem vistosa com que se apresenta

ao mundo e a si próprio: "Trata-se de um encontro diário, marcado com a

verdade de si mesmo" (p. 140).

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O grupo de aproximadamente 100 desenhos ficou guardado por mais de

dois anos após sua realização. Somente após transcorrido o tempo, pude

lançar um olhar afastado sobre eles.

No período de recolhimento dos desenhos ocorreu uma etapa em que a

elaboração do trabalho não dependia de ações conscientes: os controles da

mente passaram para um estado de espera que, nesse processo, durou

cerca de quatro anos. Essa espera porém, não excluiu uma condição de

alerta em relação às imagens engavetadas; um tipo de observação para

captar e anotar idéias que poderiam surgir e servir em futuras definições.

Paul Valéry (1999), explica como "espaços de dispersão iminente e

presságios", os aspectos que colaboram – quase tanto como a própria

concentração – para a produção da obra:

A instabilidade, a incoerência, a inconseqüência de que eu falava, que são para ele [o artista] dificuldades e limites no seu trabalho de construção ou de composição contínua, são também tesouros de possibilidades nos quais ele pressente a riqueza nas proximidades do próprio momento em que se consulta. (...) Ele sempre pode pressentir na penumbra a verdade ou a decisão procurada, que sabe estar à mercê de um nada, desse mesmo obstáculo insignificante que parecia distraí-lo e distanciá-lo indefinitivamente. (...) Parece haver nessa ordem das coisas mentais algumas relações muito misteriosas entre o desejo e o acontecimento (...) esperamos simplesmente que aquilo que desejamos produza-se, pois só podemos esperar. Não temos qualquer meio para atingir exatamente em nós o que desejamos obter. (...) Sabe-se que freqüentemente acontece de a solução desejada chegar após um tempo de desinteresse no problema, como a recompensa da liberdade dada a nosso espírito. (p. 187-88)

15

Esse tempo de latência está presente em notas de diferentes épocas,

é notável sempre. A produção é interrompida por períodos onde o trabalho

fica (sem ser considerado concluído) guardado, aguardando, minha atenção

estando voltada para outras tarefas. Os acontecimentos parecem

permanecer num espaço que fica ocultado.

As razões e movimentos que ocasionam os intervalos de espera

(períodos em que meus trabalhos inacabados ficam guardados para depois

serem retomados) podem ser variados, mas eles sempre aparecem. Podem

ser causados pela sensação de esgotamento, por vezes experimentada na

execução do trabalho, ou pelo simples desinteresse. A produção é então

colocada de lado e somente com o passar do tempo surgem motivações que

acabam legitimando sua continuidade (estas retomadas muitas vezes surgem

a partir de acontecimentos ocorridos fora do ateliê). É como se o próprio

trabalho exigisse um tempo de decantação para poder então ser retomado.

*

Quando fiz os desenhos que posteriormente foram chamados de

Desenhos do sono não havia expectativas ou fim definido para eles.

Transcorrido o período em que ficaram guardados e distante das

intensidades presentes no processo de seu surgimento, comecei a olhar para

o conjunto. Essa reaproximação ocorreu gradualmente. Primeiro, as imagens

serviram de ponto de partida para uma pequena série de monotipias

elaboradas a partir de posições de tensão e extensões do corpo que

aparecem em alguns Desenhos do sono e do desenho de observação da

figura humana.

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Monotipias

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Em seguida, as imagens do corpo presentes nas monotipias

suscitaram a necessidade de procurar e pesquisar técnicas de modelagem

da figura humana. Iniciei então o processo de elaboração de esculturas em

materiais como cerâmica, cera, massa biscuit6 e gesso, entre outros, a partir

de imagens selecionadas dos Desenhos do sono e do espaço de

introspecção de onde eles vieram.

As esculturas iniciadas em 2002 ainda estão em elaboração. Foram

feitas a partir dos Desenhos do sono e passaram por um processo que inclui

a fotografia, desenho e modelagem da figura humana. Esses trabalhos não

serão comentados com maior profundidade aqui. O que importa é observar

que o movimento de produzi-los representou uma etapa na retomada dos

Desenhos do sono.

A experiência de guardar o trabalho para depois de um tempo poder

vê-lo como um pólo gerador de possibilidades direcionou meu olhar para

outras notas, estudos, desenhos e projetos registrados em cadernos e folhas

dispersas. A partir daí, iniciei uma nova relação com esse tipo de material.

Roland Barthes (1984) observa (sobre fotografias antigas): "A história (...) só

se constitui se a olhamos – e para olhá-la é preciso estar excluído dela" (p.

96-7).

*

Em 1998 (ano da elaboração do diário noturno), como parte de

exercício proposto em um curso de cenografia, elaborei um projeto de

performance a partir dos desenhos. Com o título de Intimidade (esse trabalho

não foi apresentado ao público), a ação ! com duração de aproximadamente

30 minutos !, se passa num "ambiente-cama", cenário forrado de colchões e

6 Massa obtida a partir da mistura de fécula de milho e cola PVA

22

lençóis brancos e cor da pele, onde os desenhos em sulfite A4 estão

espalhados. Os mesmos desenhos que aparecem nas folhas aparecem

ampliados, impressos ou projetados em tecidos que descem do alto e

formam os fechamentos, divisórias e rotundas do ambiente.

Nesse projeto, a performance é realizada por uma atriz careca e com

roupas de dormir que se move pelo espaço alternando atividades como

desenhar, ler e se movimentar pelo cenário. Sua voz aparece em off por meio

da gravação de falas sobrepostas em diferentes ritmos e volumes. O texto

das falas reproduz pensamentos sobre acontecimentos do dia que passou,

músicas cantaroladas, diálogos internos, narração de sonhos, entre outros.

Esse projeto constava de memorial descritivo, desenhos do ambiente

e dos figurinos e de uma fita de vídeo com imagens da maquete do cenário.

O trabalho foi arquivado após sua apresentação na escola e somente a partir

do ano de 2003, comecei a elaborar e apresentar outros trabalhos com os

Desenhos do sono.

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Desenhos do sono I

Na exposição coletiva Bola de Fogo na Galeria SESC Paulista, em

2004, o espectador encontrava fotocópias dos Desenhos do sono sobre um

colchão colocado no piso e forrado com lençol cor da pele. Na parede de

cabeceira do colchão via-se duas fileiras verticais de imagens dos Desenhos

do sono, transferidas por meio de papel carbono. Ao pé do colchão, letras

adesivadas no piso ofereciam: ESCOLHA UM DESENHO PARA VOCÊ.

Durante o período da exposição os espectadores escolhiam e levavam

suas cópias e o colchão ia ficando vazio. Quando terminadas, as cópias eram

repostas para serem escolhidas e levadas por outros visitantes. Além das

cópias A4 e das imagens na parede de cabeceira do colchão, transferi (por

meio do papel carbono) imagens dos Desenhos do sono para diversos

pontos do espaço expositivo. Esses locais foram pensados como

inesperados: lugares onde os desenhos surgiriam "de surpresa" como na

superfície de uma porta fechada; no degrau de uma escada; próximo ao

trabalho de outro artista ou no pedestal do livro de assinaturas.

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Desenhos do sono II

Apresentado na exposição Bola de Fogo no Museu de Arte

Contemporânea de Americana, em 2005. Esse trabalho foi elaborado com as

imagens dos Desenhos do sono transferidas por meio de papel carbono para

uma das paredes da sala de exposições. Além das imagens decalcadas, a

parede recebeu uma das monotipias (emoldurada) da série de 2003 que

mostra a figura humana em posições de tensão e extensão do corpo. A

parede com os desenhos foi iluminada com uma quantidade de luz maior do

que a do resto da mostra, destacando sua superfície branca. Pelo tamanho

pequeno e a delicadeza de suas linhas, os desenhos e a monotipia se

tornavam visíveis apenas com a aproximação física do observador.

Como em Desenhos do sono I, outras imagens dos Desenhos do sono

foram decalcadas/transferidas para locais diversos do museu: uma lateral de

parede, junto à obra de outro artista; no corredor de acesso à sala de

exposições.

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Segredos

Trabalho em colaboração com o público na exposição com um dia de

duração no Estrela do Pari Futebol Clube, em São Paulo, 2005.

O trabalho Segredos foi elaborado a partir da seguinte proposição para

o público: fazer um desenho que tenha uma só imagem, apenas uma figura.

Essa figura deve ser um elemento – uma parte de um segredo seu. Esse

segredo não é revelado, ele continua guardado: continua sendo um segredo,

pois apenas uma parte dele aparece no desenho e não o segredo completo.

Os participantes do público que se dispuseram a fazer o desenho de

uma parte de seu segredo realizaram o trabalho numa parede previamente

indicada, por meio da transferência com papel carbono. Assim, as imagens

dos segredos ficaram impressas na parede e desenhadas nas folhas de

papel branco, que foram guardadas.

Com esta proposta procurei aproximar o observador de seu espaço

interno. Sugerindo a busca por imagens para vivências pessoais e a

elaboração de um tipo de registro da intimidade, relacionei esse movimento

ao meu processo com os Desenhos do sono.

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Desenhos do sono III

Apresentado na exposição Bola de Fogo gravura, no Instituto de Arte

Contemporânea da Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2006. No

trabalho apresentado em Recife transferi quatro imagens de Desenhos do

sono para uma das paredes do espaço expositivo, além de outras duas, para

paredes diferentes.

Nesse período, havia retomado o trabalho com o diário noturno

(deitada na cama antes de dormir). As imagens que apareceram então,

revelaram diferenças em relação às dos Desenho do sono de 1998/99: os

novos desenhos mostram cenas relacionadas a acontecimentos do dia que

passou e imagens de sonhos. Neste novo grupo, as figuras que mostram

posições, movimentos para sensações do corpo não estão presentes.

Em Desenhos do sono III utilizei imagens dos Desenhos do sono junto

com os da nova série.

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Imagens

Desenhos do sono na parede, julho de 2006

(ateliê de Teresa Berlinck)

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Nesses trabalhos utilizo a parede pensando-a como divisão de

ambientes, espaço de passagem e superfície de projeção – espaço a ser

impregnado por tudo que não é palpável (como as imagens da representação

que ela acolhe). Assim, a parede se torna suporte para os Desenhos do

sono.

*

A parede como superfície que divide dois ambientes. Neste momento,

aqui e no ambiente vizinho, ocorrem acontecimentos diferentes. Estando aqui

não sei o que está acontecendo do outro lado. O que define essa separação,

essa distância, é a parede. E dentro, ou durante esta separação ! neste

"entre", eu incluo uma idéia de tempo: a parede definindo o espaço e também

funcionando como o tempo que divide dois acontecimentos. Pode ser um

tempo imenso ou uma simultaneidade. Nessa idéia a parede é um lugar de

passagem, de transição, como o espelho ou a toca do coelho onde Alice, de

Lewis Carrol (1996), cai sem fim, local em que a experiência temporal do

relógio, que precisa do dia depois da noite e outro dia depois, é substituída

por algo diferente:

... and then dipped suddenly down, so sudenly that Alice had not a moment to think about stopping herself before she found herself falling down what seemed to be a very deep well.

Either the well was very deep, or she fell very slowly, for she had planty of time as she went down to look about her, and to wonder what was going to happen next.7 (p. 16)

7 “... e então caiu de repente, tão de repente que Alice nem teve tempo de pensar em parar e já se viu escorregando pelo que parecia ser um poço muito fundo. Ou o poço era muito fundo

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A parede funcionando como lugar de passagem, um tipo de túnel do

tempo e do espaço, um veículo para instâncias ocultas e misteriosas. Ao

transferir as imagens dos Desenhos do sono para a parede é como se elas

passassem a fazer parte desse outro mundo, um lugar da imaginação.

A parede se transforma numa superfície de projeção para

pensamentos, fantasias e sonhos. Um local onde as coisas podem acontecer

livremente e onde podemos observá-las enquanto acontecem. Nesse espaço

comparado com o dos sonhos, somos os autores e atores das histórias que

inventamos e com as quais nos surpreendemos. Jorge Luis Borges (1983)

reflete sobre o funcionamento dos sonhos:

Também podemos sonhar que nos perguntam algo e não sabemos o que responder; quando nos dão a resposta, ficamos atônitos. A resposta pode ser absurda, mas exata, dentro do sonho. Já tínhamos preparado tudo, antecipadamente. Chego à conclusão – que não sei se é científica ou não – de que os sonhos são a atividade estética mais antiga. (p. 58-9)

Imagino a parede de minha cabeceira (no aposento em que os

desenhos foram feitos), ficando impregnada pela persistência de algumas

dessas imagens: como se as linhas leves dos desenhos deixados ao lado da

cama tivessem se soltado da folha de papel e vagado pelo quarto enquanto

eu dormia, para, atraídas pela brancura disponível, aderir à superfície da

parede.

Assim, a parede seria comparável ao lugar psíquico, a imaginação, o

mundo das lembranças e da memória. Phillipe Dubois (2004) explica as

ou ela caiu muito devagar, pois, à medida que caía, teve tempo de olhar em torno e de imaginar o que iria acontecer em seguida” (p. 16). Tradução: Regina Gomes de Sousa.

40

”artes da memória” (Ars Memoriae) segundo a tradição da Antiguidade grega

transmitida pelos latinos:

... a arte da memória baseia-se de fato no jogo de duas noções completamente fundamentais todo o tempo retomadas em todos os tratados: os lugares (loci) e as imagens (imagines). (...) Enquanto as imagens, que na maioria das vezes são signos simbólicos, alegóricos, compósitos, só são colocados num lugar por um tempo, os lugares permanecem na memória. As imagens que nele depusemos, na medida em que não precisamos mais lembrar-nos delas, apagamo-las. E os mesmos lugares podem ser reativados para receber um outro conjunto de imagens destinado a um outro trabalho da memória. (p. 314-15)

Neste trabalho, a parede funciona como receptáculo da memória ou

como esse lugar (loci) que pode ser reativado quando recebe imagens. Uma

superfície de projeção; vazia, branca, onde penduram-se quadros e abrem-se

janelas para a ficção e também para o mundo externo, de onde vem ar e luz.

A parede, neste contexto, possui as possibilidades de uma superfície que

acolhe: tem uma disponibilidade, a princípio.

*

O papel carbono utilizado na transferência das imagens dos Desenhos

do sono para a parede é o da cor preta. Segundo Ralph Mayer (1996), o

carbono puro é o Negro-de-fumo: "Um pó fino, leve e macio obtido pela coleta

da fuligem dos óleos queimados etc. O mais conhecido do grupo de negro-

de-carbono-puro. (...) Em uso desde os tempos pré-históricos, é o pigmento

mais antigo conhecido pelo homem" (p. 112).

41

Um desenho feito na parede com a tinta do papel carbono fica

exposto: pode ser desgastado pelo tempo, desbotando até sumir, ou

simplesmente ser coberto pelo rolo de tinta branca de um pintor de paredes.

Assim, estes desenhos têm também uma qualidade de impermanência:

fugidios, tornam-se próximos da idéia de memória como superfície, lugar de

projeção: são imagens que se apagam, são esquecidas e depois

relembradas de outra maneira, depois esquecidas novamente...

*

No processo de transferência ocorreram modificações em algumas

características dos desenhos. Uma delas é que o pigmento preto do papel

carbono não proporciona a obtenção do mesmo tipo de variação de valores

tonais do grafite utilizado no desenho sobre papel. O que obtive foram

diferentes espessuras, diferentes pesos das linhas, por meio do controle da

pressão da mão (a mesma pressão que com o grafite obtém-se diferentes

valores de cinza), no momento de transferir os desenhos. E se no papel

essas linhas já eram um pouco oscilantes, na superfície de alvenaria elas

sofreram também com os acidentes e asperezas.

Estes aspectos, que podem acentuar características de instabilidade e

fragilidade nos desenhos da parede, parecem ser compensados pelo

contraste total na relação do negro do carbono com a superfície branca e fria

do espaço arquitetônico. Talvez porque, feitos com o pigmento preto, os

desenhos tenham perdido um tanto do caráter de anotação que o grafite

pode sugerir e ganhado um aspecto "acabado" próximo à visualidade da

imagem impressa.

*

42

Com as transferências dos Desenho do sono, procuro criar um sentido

de continuidade entre o espaço de onde estas imagens vieram (a

introspecção), e o espaço físico onde o observador se encontra. Elas saem

da intimidade do quarto, da cama, para o espaço público, as pequenas

imagens e a precariedade de suas linhas contrastando com a amplidão e a

solidez das paredes que compõem e sustentam o edifício. Em O pensamento

selvagem (2005), Claude Lévi-Strauss reflete sobre a redução do tamanho do

modelo, na representação:

... todo o modelo reduzido tem vocação estética (...) a imensa maioria das obras de arte é formada de modelos reduzidos, (...) mesmo o "tamanho natural" supõe o modelo reduzido, pois que a transposição gráfica ou plástica implica sempre uma renúncia a certas dimensões do objeto (...) para conhecer o objeto real em sua totalidade, sempre tivemos tendência a proceder começando das partes. Dividindo-a, quebramos a resistência que ela nos opõe (...) Inversamente do que se passa quando procuramos conhecer uma coisa ou um ser em seu tamanho real, com o modelo reduzido o conhecimento do todo precede o das partes. E, mesmo que isso seja uma ilusão, a razão desse procedimento é criar ou manter essa ilusão, que gratifica a inteligência e a sensibilidade de um prazer que, nessa base apenas, já pode ser chamado de prazer estético. (...) Mas o modelo reduzido possui um atributo suplementar: ele é construído, man made, e mais que isso, "feito à mão". Não é, portanto, uma simples projeção, um homólogo passivo do objeto: constitui uma verdadeira experiência sobre o objeto. Ora, na medida em que o modelo é artificial, torna-se possível compreender como ele é feito, e essa apreensão do modo de fabricação acrescenta uma dimensão suplementar a seu ser. (p. 38-9)

Com os desenhos na parede busco aproximar o observador pela

curiosidade. Como suporte pouco utilizado em nossos dias, creio que pelo

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ligeiro estranhamento de elas estarem ali, as imagens retornam ao local que

era seu antigamente, quando elaboradas e vistas em murais, afrescos e

mosaicos. Assim, procuro um retorno do observador a algo superado, mas

familiar, algo que ficou no passado, mas que está na memória. Um antigo

olhar para uma antiga forma de mostrar imagens.

Acredito que desenhar na parede tem a ver com retomar essa língua

antiga que vem das cavernas, passa por todas as pinturas murais, mosaicos

e representações em trompe-l'oeil. Os Desenhos do sono, porém, em sua

escala íntima e diminuta, tem a ver com a pintura parietal doméstica e não

com os murais e afrescos elaborados em igrejas e palácios. São imagens

que talvez possam ser relacionadas com a pintura feita por artesãos em

paredes de residências ou, ainda, com o gesto infantil de ir desenhando além

do papel no movimento contínuo que contamina o piso, móveis e paredes e

que depois é removido pela limpeza ou coberto pela tinta branca. Assim,

neste trabalho, a parede funciona como um meio; um veículo para a procura

de algo oculto, guardado ou esquecido, como o passado.

Nota-se, na produção artística de nossos dias, o uso da parede como

suporte para a elaboração de imagens. Na esfera íntima dos espaços

internos, aparece o gesto de artistas que desenham ou realizam outros tipos

de intervenção (como a remoção do reboco ou o corte e remoção da massa

fina, entre outros), produzindo imagens nessa superfície.

O trabalho que reinaugura este movimento a partir dos anos 1980 no

Brasil, é o de Sandra Cinto. Em sua obra, a artista parece tecer um mundo

flutuante formado por linhas que crescem como vegetais enredando as

paredes. Moacir dos Anjos (2003) define este trabalho como "Um mundo de

sonhos, de um outro tempo e de um lugar afastado, como uma melodia nova

e estranha"

Jacinto Lageira (2000) compara esses desenhos com as plantas, a

antiga escrita – o grafar – e observa, na parede, um caráter de

44

disponibilidade para a projeção, comparando esta superfície ao papel

fotográfico:

(...) Even the architetural space is submitted to this lush growth of objects and vegetables that parasitise it and fed on it (...) Cinto’s drawings refer back mainly to a form of writing, which would largely explain the stubborn will of fixating and inscribing over every kind of materials and objects. The byzantine painting did not estabilish a distinction between writing and drawing, inscribing and representing, as one word – graphein – described both actions. The derivatives from this suffix will be used to create words such as “photography” or “autobiography”, procedures of registering or of writing of the self. In this way it is not with an accidental or metaphorical meaning that Sandra Cinto mixes the processes – writing of the drawing or drawing of the writing, since her graphemes try to tell and fixate an existence. (...) Sandra Cinto’s walls invite the spectator to project his imaginary, as most of the forms, apart from a few elements, are not easily identifiable. There are signs here and there, but it is up to us to unravel the storys line. (...) As photografic paper, the white wall works as a support for their image to appear. 7

7 " (...) Até mesmo o espaço arquitetônico é submetido a esse luxuriante crescimento de objetos e vegetais que nele parasitam e dele se alimentam (...) Os desenhos de Cinto remetem principalmente a uma forma de escrita, o que explicaria a teimosa vontade de fixar e inscrever sobre todo tipo de materiais e objetos. A pintura bizantina não estabelecia distinção entre escrever e desenhar, inscrever e representar – a palavra graphein descreve as duas ações. Os derivados desse sufixo seriam usados para criar palavras como “fotografia” ou “autobiografia”, procedimentos do self de registrar e de escrever. Assim, não é com significado acidental ou metafórico que Sandra Cinto mistura os processos – a escrita do desenho ou o desenho da escrita, pois seus grafemas tentam contar e fixar uma existência. (...) As paredes de Sandra Cinto convidam o espectador a projetar seu imaginário, pois a maior parte das formas, exceto alguns poucos elementos, não é facilmente identificável. Há sinais aqui e ali, mas cabe a nós desenrolar o fio da história. (...) Como o papel fotográfico, a parede funciona como o suporte para sua imagem aparecer". Tradução: Regina Gomes de Sousa.

45

Nos desenhos elaborados em espaços internos, observo um tipo de

gesto que pode ser comparado ao do prisioneiro que conta os dias de sua

pena riscando diariamente pequenos traços paralelos nas paredes da cela.

Na falta do papel, a necessidade solitária de lembrar, anotar e marcar,

desenha o passado e o futuro em linhas que se expandem pelo ambiente.

*

A utilização do papel carbono na transferência dos Desenhos do sono

para a parede, caracteriza a imagem resultante como um tipo de marca, de

decalque, pois ela é obtida a partir do contato – da contigüidade com o

desenho, seu referencial. Este gesto, porém, não parece determinar os

Desenhos do sono na parede como imagens do tipo indiciárias. Definindo a

fotografia como uma arte do índice, Rosalind Krauss (2002), explica uma

idéia de imagem indiciária:

... ligado aos objetos concretos a que se reporta por uma relação de causalidade paralela à que existe para uma impressão digital, um rastro de passo ou os círculos úmidos que copos gelados deixam sobre uma mesa. A fotografia é portanto geneticamente diferente da pintura, da escultura ou do desenho. Na árvore genealógica das representações, ela se situa do lado das impressões das mãos, das máscaras mortuárias, do sudário de Turim ou das pequenas pegadas das gaivotas na areia das praias. Isto porque de maneira técnica ou semiológica, os desenhos e as pinturas são ícones, enquanto as fotografias são índices. (p. 120)

No caso dos Desenhos do sono na parede o referencial já é

representação: do ponto de vista da idéia acima, ícone. A imagem decalcada

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vem de um desenho e não do objeto referencial que acaba por representar.8

Assim, talvez estes desenhos estejam mais relacionados com a impressão

que produz imagens obtidas a partir de uma matriz. Minhas matrizes são as

fotocópias dos desenhos originais onde são anexadas folhas de papel

carbono e, como no processo da monotipia, por meio da pressão de uma

ponta sobre as linhas dos desenhos – num gesto de redesenhar, as imagens

são impressas na parede.

*

Transferir com o papel carbono refazendo o percurso do lápis sobre as

linhas dessas imagens, foi um movimento que ocasionou um novo olhar, um

tipo de estudo dos Desenhos do sono. Com o objetivo de aproximar os

valores tonais das linhas feitas na parede às dos desenhos-matrizes, precisei

reduzir a velocidade do gesto, a atenção voltada para a comparação da cópia

com seu original. A necessidade de aumentar a pressão da mão (comparada

ao gesto de desenhar com lápis sobre papel) para transferir a imagem com o

papel carbono e a textura resistente das paredes, também contribuíram para

a lentificação do movimento de imprimir os desenhos. Neste processo, cada

trecho desenhado no estado de sonolência foi refeito com o corpo e a

atenção despertos.

*

A localização dos desenhos na parede foi feita em etapas: primeiro as

folhas foram fixadas temporariamente (com fita adesiva); experiências com

8 O interesse por idéias e reflexão sobre a imagem indiciária aparece junto ao surgimento de

trabalhos recentes de minha autoria, em que observo procedimentos que podem ser assim classificados.

47

diferentes configurações foram elaboradas e, depois de definidas as

composições, as imagens foram transferidas com o papel carbono. A

elaboração dessas composições ocorreu como jogos de montar e produzir

imagens a partir da reunião de diferentes figuras dadas.

Se nas folhas de papel essas figuras apareciam solitárias, uma por

desenho, na parede elas ficaram lado-a-lado e criou-se um tipo de relação

entre elas, uma narrativa do grupo. Às vezes o olhar de uma figura se

direciona para outra; figuras deitadas foram colocadas próximas à linha

horizontal do piso (onde parecem apoiadas); figuras em queda ficaram mais

soltas e velozes, como que suscetíveis à força da gravidade.

Além das imagens agrupadas em uma parede, decalquei alguns

desenhos para diferentes pontos do espaço expositivo: próximo à obra de

outro artista, numa lateral de parede, no pedestal do livro de assinaturas,

sobre uma porta fechada. Minha intenção com as transferências isoladas é

que as imagens fossem vistas reunidas em uma parede e depois

reaparecessem como pensamentos involuntários, pequenas surpresas, como

algumas idéias, memórias, ou como uma impressão, durante o percurso de

deslocamento do observador pelo espaço.

*

A aparente infinitude de possibilidades que observei nas experiências

realizadas a partir do movimento de retomada dos Desenhos do sono trouxe

a meu trabalho uma noção de abertura; uma dimensão fluida que não era

nítida antes dessas experiências.

Os estudos proporcionados pela pesquisa no mestrado provocaram e

possibilitaram desdobramentos e aprofundamento na atividade de artista:

leituras e escrita executados sistematicamente foram motores de novas

idéias e caminhos para o trabalho com arte.

48

A partir da retomada dos Desenhos do sono e com o exercício de

reconhecimento desta produção, no mestrado, pude vislumbrar uma fala do

conjunto e uma comunicação interna em minha produção como um todo. A

meus olhos e na sua existência, o trabalho se transforma, toma corpo e nova

dimensão, ao mesmo tempo em que é absorvido e assumido como projeto

contínuo. O trabalho e sua reflexão parecem não ter início ou fim, mas se

mostram como parte de um movimento circular de retomadas, intervalos,

reflexões e mais trabalho, sempre.

49

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52

ANEXO

Desenhos do Sono, 1998

Lápis grafite e papel 29 x 21 cm (aproximadamente)

(todos os desenhos)

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