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Teoria Quântica de Campos I Prof. Alysson F. Ferrari sites.google.com/site/alyssonferrari 15 de março de 2011

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Teoria Quântica de Campos IProf. Alysson F. Ferrari sites.google.com/site/alyssonferrari15 de março de 20112Estas notas são essencialmente um resumo das aulas da disciplina e não constituem uma fonte de referência completa sobre os temas abordados, não substituindo assim a leitura da bibliografia recomendada. Referências específicas à bibliografia da disciplina são eventualmente feitas, mas na maioria dos casos, subentende-se que o estudante complemente os comentários e exemplos aqui expos

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Teoria Quântica de Campos I

Prof. Alysson F. Ferrarisites.google.com/site/alyssonferrari

15 de março de 2011

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Estas notas são essencialmente um resumo das aulas da disciplina e não constituemuma fonte de referência completa sobre os temas abordados, não substituindo as-sim a leitura da bibliografia recomendada. Referências específicas à bibliografia dadisciplina são eventualmente feitas, mas na maioria dos casos, subentende-se que oestudante complemente os comentários e exemplos aqui expostos com uma leiturada fonte que lhe parecer mais conveniente.Alguns conhecimentos são pré-requisitos para o estudante desta disciplina. Aque-les absolutamente fundamentais são:

• Mecânica Quântica: uma boa formação em nível de graduação já é suficiente

• Relatividade Restrita: conhecimento da notação de tetravetores, geralmente vis-tos em cursos de Tensores ou de Relatividade um pouco mais avançados; aformulação covariante da eletrodinâmica, como encontrado em qualquer bom li-vro de Eletromagnetismo Clássico também deve ser revisada pelo estudante.

Alguns conceitos de matemática são também muito utilizados no desenvolvimentoda teoria, então é desejável que o estudante tenha tido algum contato com:

• teoria de grupos de Lie

• integração de funções complexas

• teoria de distribuições

Iremos muito brevemente revisar algumas destas noções conforme elas forem sendousadas neste curso.

Esta é uma versão ainda muito preliminar destas notas, portanto não divulgue este materialsem comunicar ao autor.

Bibliografia Recomendada:

• Quantum Field Theory, Mark Srednicki, Cambridge, 2007 (versão disponívelonline em http://www.physics.ucsb.edu/∼mark/qft.html)

• Field Theory, a Modern Primer, Pierre Ramond, 2nd edition, Addison-Wesley,1990

• Teoria Quântica dos Campos, Marcelo O. C. Gomes, Edusp, 2002

• The Quantum Theory of Fields, vol. I, Cambridge, 1997

• An Introduction to Quantum Field Theory, Peskin e Schroeder

• Field Quantization, Greiner e Reinhardt, Springer

• Quantum field theory, Itzykson & Zuber, Dover, 2005

• Quantum Field Theory in a nutshell, A. Zee, Princeton, 2003

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Sumário

1 Introdução 71.1 Porque estudar Teoria Quântica de Campos (TQC)? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7

2 Teoria Clássica de Campos 152.1 Funcional ação e equações de movimento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 152.2 Simetrias e o Teorema de Noether . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 172.3 Soluções da Equação de Klein-Gordon livre . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21

3 Simetria Relativística 253.1 O Grupo de Lorentz . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 253.2 A álgebra do Grupo de Poincaré . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 283.3 Estados de uma Partícula Relativística . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 303.4 Simetrias Discretas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 36

4 Quantização Canônica do Campo Escalar 394.1 A Quantização Canônica do Campo Escalar Complexo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 394.2 Divergências Ultravioletas na Teoria de Campos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 454.3 Invariância Relativística . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 494.4 Causalidade e Funções de Green . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 514.5 Funções de Green . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 54

A Suplemento Matemático 61A.1 Grupos e Álgebras de Lie . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61A.2 Noções de Teoria das Distribuições . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 67

B A função de Pauli-Jordan 71

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6 SUMÁRIO

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Capıtulo 1Introdução

1.1 Porque estudar Teoria Quântica de Campos (TQC)?

Em uma única sentença, a motivação fundamental para se estudar a TQC é a seguinte:

A união dos princípios da Relatividade Restrita e da Mecânica Quântica leva naturalmenteà Teoria Quântica de Campos.

Desta forma, a TQC é a resposta mais adequada à pergunta: como formular uma teoria de MecânicaQuântica totalmente consistente com os princípios da Relatividade Restrita?

No estudo da Relatividade Restrita, nos acostumamos à idéia de que interações são naturalmentedescritas por campos. O exemplo mais óbvio é a Interação Eletromagnética, que pode ser descrita emtermos dos potenciais escalar e vetor φ e ~A, que por sua vez são componentes de um único tetravetor: opotencial eletromagnético Aµ. Classicamente, da eq. de Maxwell ∂µFµν = jν segue-se a equação de onda. Daíaprendemos que excitações no campo eletromagnético se propagam como ondas eletromagnéticas.

Na Mecânica Quântica, sabemos que a luz é quantizada – ou seja, de alguma forma as excitações docampo eletromagnético deverão representar partículas de massa zero chamadas de fótons. Diz-se que ocampo eletromagnético Aµ deve ser quantizado, ou seja, tornar-se um operador Aµ. Deixando de lado umasérie de complicações que veremos a tempo, esta quantização é bastante simples para qualquer um que jáestudou a quantização do oscilador harmônico em termos de operadores de subida-e-descida. Partimos

de uma onda plana da forma eipµxµ= ei

(wt−~k·~x

), que é obviamente uma solução da equação de onda

livre, e fazemos uma superposição arbitrária de ondas planas1:

Aµ ∼∑~p

(aµa~peipµxµ

+ cc)

. (1.1)

Aqui, aµ é um tetravetor que define a direção de polarização do campo Aµ, a~p um coeficiente arbitrário,e “cc” significa que somamos o conjugado complexo do termo anterior, para obter um campo que sejareal. Como a equação de onda é linear, a soma arbitrária de soluções é também solução – trata-se de umasolução geral, como veremos.

Partindo desta solução clássica para Aµ, o que podemos fazer é simplesmente: promover os coefici-entes a~p a operadores a~p que satisfazem a relação de comutação de operadores de subida-e-descida:[

a~p, a†~p′

]∼ δ~p,~p′ , (1.2)

1A soma em ~p usualmente será uma integral, mas não vamos nos preocupar com tais detalhes agora.

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8 CAPÍTULO 1. INTRODUÇÃO

de tal forma que, a partir de um estado de vácuo |0〉, podemos definir estados excitados a†~p |0〉, a†

~p a†~q |0〉,

e assim por diante. Iremos nos convencer de que podemos interpretar os estados a†~p |0〉, a†

~p a†~q |0〉 como

estados de um fóton, dois fótons, etc...Definimos assim um campo quântico,

Aµ (~x, t) ∼∑~p

(aµ a~peipµxµ

+ cc)

, (1.3)

ou seja, associamos a cada ponto do espaço-tempo um determinado operador hermitiano Aµ, que con-tem operadores de criação e aniquilação para fótons. Costumamos dizer que as excitações do campoquântico correspondem a um certo número de fótons. Esta é a idéia essencial do que significa quantizaro campo eletromagnético.

Na Mecânica Quântica, partículas são descritas por uma função de onda ψ (~x, t) que satisfaz a Equaçãode Schrödinger,

ih∂tψ =

(− h2

2m∇2 + V

)ψ . (1.4)

A densidade de probabilidade é definida por ρ = |ψ|2. Pode-se reescrever a equação de Schrödinger daforma

∂tρ +∇ ·~j = 0 , (1.5)

que tem a forma de uma equação da continuidade, que fisicamente entendemos como representando aconservação de probabilidade. Lembrando as regras de correspondência,

E↔ ih∂t ; ~p↔ −ih∇ (1.6)

vemos que a Equação de Schrödinger implica na relação não-relativística entre energia e momento,

E =~p2

2m+ V . (1.7)

Não é de se surpreender, portanto, que a Equação de Schrödinger não é invariante por uma transforma-ção de Lorentz

x′ = 1√1−v2/c2 (x− vt)

t′ = 1√1−v2/c2

(t + vx/c2)

Buscando uma equação similar à de Schrödinger, que poderia governar a dinâmica de uma partículaquântica com velocidades relativísticas, podemos partir da relação relativística entre energia e momento

E2 = p2c2 + m2c4 (1.8)

e, usando as regras de correspondência (1.6), propor a equação(1c2 ∂2

t −∇2 +m2c2

h2

)ψKG (~x, t) = 0 . (1.9)

Aqui, ψKG seria interpretada como uma função de onda2. O problema com esta construção é que, setentamos reescrever a equação de Klein-Gordon na forma de uma equação de continuidade,

∂tρKG +∇ ·~jKG = 0 ,2Esta equação foi primeiramente estudada por Schrödinger, quando este buscava uma equação dinâmica para as “ondas

piloto” propostas por DeBroglie em 1925. Contudo, tal equação, aplicada ao cálculo de certas transições de níveis para o átomode Hidrogênio, levava a resultados incoerentes com resultados experimentais da época, de forma que foi abandonada porSchrödinger. Ela foi mais tarde reavaliada por Klein e Gordon, no contexto da Teoria de Campos, daí ter recebido o nome deequação de Klein-Gordon.

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1.1. PORQUE ESTUDAR TEORIA QUÂNTICA DE CAMPOS (TQC)? 9

chegaremos à conclusão queρKG ∼ ψ∗KG∂tψKG − (∂tψ

∗KG)ψKG .

Daí que ρKG não é positiva-definida, e portanto não pode ser interpretada como uma densidade deprobabilidade. Vamos chamar este de problema I.

Figura 1.1: Espectro de energia da equa-ção de Klein-Gordon.

Outro problema com que nos defrontamos: de (1.8) se-gue que E = ±

√p2c2 + m2c4, de forma que o espectro de

energia não é limitado por baixo (figura 1.1). Em princípio,a partícula sempre pode descer de um nível com E > 0 paraum nível com E < 0 emitindo uma certa quantidade de ener-gia ∆E, e nada a impede de descer até niveis com E → −∞,o que obviamente gera um absurdo. A teoria seria instável.Este é o problema II.

Estas duas dificuldades já nos indicam que é inviável in-terpretar ψKG como uma função de onda de uma partícula relati-vística.

Dirac propos-se a resolver o problema I da seguinte ma-neira: construir uma equação de 1ª ordem em derivadas tem-porais e espaciais que seja de alguma forma “equivalente”à equação de Klein-Gordon. Ele propos assim a chamadaEquação de Dirac que, na notação inicialmente usada por ele,escreve-se

ih∂tΨD = −ihc~α · ∇ΨD + α4mc2ΨD . (1.10)

Surpreendentemente, Dirac percebeu que ~α e α precisam ser matrizes 4 × 4, e portanto a “função deonda” ΨD é na verdade um vetor coluna

ΨD =

ψ1ψ2ψ3ψ4

(1.11)

A “equivalência” de (1.10) com (1.9) vem do fato de que as matrizes~α e α foram construídas de formaque3 (

ih∂t + ihc~α · ∇ − α4mc2)2 ∼(

1c2 ∂2

t −∇2 +m2c2

h2

). (1.12)

Desta forma, se ΨD satisfaz a equação (1.10), então cada uma das ψi vai satisfazer a equação (1.9)4.Pode-se mostrar que da Equação de Dirac segue a equação de continuidade para a densidade de

probabilidade ρD = Ψ†DΨD = ∑i |ψi|2, que é positivo definida.

Resolvido o problema I, Dirac ainda precisou atacar o problema II, da instabilidade. Claramente,a Equação de Dirac também implica na relação entre energia e momento (1.8), logo também tem umespectro que não é limitado por baixo. A solução veio quando Dirac percebeu que a equação de ondaΨD descreve uma partícula com spin 1/2 – logo, um férmion. Desta forma, as partículas descritas por estaequação obedecem ao princípio de exclusão de Pauli. Dirac então supos que todos os estados com energianegativa já estavam ocupados. Nenhuma transição de uma partícula com E > 0 para uma energia negativaseria possível (figura 1.2 à esquerda). A estabilidade da solução é obtida às custas da suposição daexistência de um mar de Dirac, ou seja, uma infinidade de estados quânticos já preenchidos por partículas

3Note que não estamos escrevendo explicitamente matrizes identidade 4× 4 onde elas são necessárias.4O inverso não é verdadeiro, daí porque das aspas em “equivalência”

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10 CAPÍTULO 1. INTRODUÇÃO

Figura 1.2: Espectro de energia da equação de Klein-Gordon.

indetectáveis. Pago este custo, Dirac apresentou a equação (1.10) como uma equação de onda relativísticaviável para descrever o elétron.

Se transições para E → −∞ são proibidas pelo princípio de exclusão, nada impede que energia sejafornecida ao sistema, subindo uma partícula de um nível com E < 0 para um nível com E > 0 (figura1.2 à direita). Do estado que inicialmente era o vácuo, surge uma partícula fermiônica com energiapositiva – um elétron, com carga negativa. Contudo, o “buraco” deixado no mar de estados com energianegativa também se comportaria como uma partícula de energia positiva – só que um férmion com cargapositiva. Num primeiro momento, Dirac chegou a supor que esta partícula corresponderia ao próton,o único férmion de carga positiva conhecido na época, mas esta hipótese não se sustentava pois, porsimetria, esta nova partícula deveria ter a mesma massa que o elétron. Posteriormente, a descobertaexperimental do pósitron revelou a correta interpretação para o “buraco” no mar de Dirac.

O resultado líquido desta análise é que, excitando-se o vácuo com suficiente energia, pode-se criarpares de partículas-antipartículas. Esta é uma consequência imediata da relatividade restrita.

Apesar de seus sucessos, a equação (1.10) apresenta limitações. A mais fundamental delas é que aequação de Dirac e sua brilhante solução para o problema da instabilidade só funciona para férmions, enão para bósons. Existem contudo partículas bosônicas, como mésons, átomos como He4 e assim pordiante, e a equação de Dirac não serve como uma equação de onda para tais sistemas.

Ademais, também existe o chamado paradoxo que Klein, que não vamos discutir aqui mas que o leitorpode pesquisar na bibliografia do curso5, que mostra dificuldades na interpretação de ΨD como umafunção de onda.

Tais dificuldades refletem uma inadequação mais fundamental da formulação da Mecânica Quânticanão-relativística para o tratamento de problemas relativísticos. De fato, um dos grandes princípios daRelatividade Restrita é que não deve haver tratamento diferenciado entre o tempo e as coordenadasespaciais. Ora, ao se escrever uma equação de onda

ih∂t |Ψ (t)〉 = H |Ψ (t)〉

5No artigo http://arxiv.org/abs/hep-th/0510040 o leitor encontrará uma descrição bastante simples do paradoxo deKlein.

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1.1. PORQUE ESTUDAR TEORIA QUÂNTICA DE CAMPOS (TQC)? 11

existe uma diferença crucial entre tempo e espaço: o tempo é um parâmetro de evolução, enquantoque as coordenadas espaciais são representadas no formalismo como operadores observáveis Xi

6. Taldistinção fundamental já sugere que procurar por uma equação de onda que seja plenamente compatívelcom os princípios da Relatividade e da Mecânica Quântica não é um caminho promissor.

Cabe lembrar aqui o que comentamos sobre a quantização do campo eletromagnético. Criamos umcampo quantizado que corresponde à associação de um operador Aµ (~x, t) a cada ponto do espaço-tempo.Note que aqui, tempo e espaço aparecem no formalismo de forma equivalente, como “etiquetas” (labels)que distinguem operadores associados a diferentes pontos do espaço-tempo. No caso do campo eletro-magnético, o caminho seguido não foi surpreendente, já que o conceito de campo já é muito familiarda teoria clássica. Que outras interações como as forças nuclares sejam também descritas por camposquantizados também não será, portanto, uma surpresa.

O que talvez surpreenderá ao leitor é que adotaremos o mesmo princípio para partículas “de ma-téria”, como o elétron. Ao invés de buscar uma “função de onda” para um elétron, iremos supor queexiste um “campo de elétrons” ΨD (~x, t), ou seja, uma associação de um “operador de elétron” a cadaponto do espaço-tempo. Este campo será responsável por criar e destruir partículas que identificaremoscomo elétrons e pósitrons. Assim como o fóton é o quanta do campo eletromagnético, elétrons e pósitronsserão quantas deste campo de elétron.

Ganharemos, assim, uma grande unidade conceitual entre o que usualmente chamamos de interações(ou forças) e partículas. Tanto uma, quanto outras, serão descritas por campos quânticos.

A idéia fundamental de estudar campos quânticos foi sugerida, acima, como o caminho natural ase seguir para combinar de forma consistente os princípios da Mecânica Quântica e da RelatividadeRestrita. Este caminho, contudo, não é destituido de obstáculos a serem vencidos. Ao longo de décadas,uma série de técnicas e idéias físicas tiveram que ser incorporadas, como a renormalização, a simetriade calibre e a quebra expontânea de simetrias, na busca de Teorias Quânticas de Campos que conseguissemdescrever, de forma satisfatória, as observações experimentais. Tanto que a finalização de uma TQCcapaz de descrever de forma realística as interações elementares conhecidas apenas foi obtida na décadade 1970, o que tem sido ainda recentemente reconhecida pelo prêmio Nobel (citando apenas os maisrecentes):

• 2008 – Nambu, Kobayashi e Masukawa – pelo estudo da quebra expontânea de simetria no modelopadrão

• 2004 – Gross, Politzer e Wilczek – pela descoberta da liberdade assintótica

• 1999 – t’Hoot e Veltman – pela prova da renormalizabilidade de teorias de calibre não-abelianas

O grande sucesso da TQC é representado pelo Modelo Padrão das Partículas Elementares. Trata-se de umateoria que descreve, num formalismo unificado, três das interações elementares conhecidas:

• Eletromagnetismo

• Força nuclear forte

• Força nuclear fraca

O Modelo Padrão é utilizado para calcular amplitudes de espalhamento que são verificadas experimen-talmente, com grande precisão, em aceleradores de partículas. Apesar do sucesso experimental, o Mo-delo Padrão é considerado insatisfatório do ponto de vista teórico, principalmente pelo grande númerode constantes envolvidas, que no momento só podem ser fixadas por dados experimentais.

6A notação usual ΨD (~x, t) para a função solução da equação de Dirac não deve enganar o leitor: aqui t é um parâmetro

de evolução, enquanto que ~x é um autovalor do operador de posição ~X, o que fica evidente se lembramos que |Ψ (t)〉 =´d3x |~x〉 〈~x|ΨD (t)〉 =

´d3x ΨD (~x, t) |~x〉.

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12 CAPÍTULO 1. INTRODUÇÃO

Note também que a força da gravidade não aparece no modelo padrão e, de fato, até hoje não seconseguiu propor uma teoria universalmente aceita para a gravitação quântica, seja seguindo métodossimilares aos do Modelo Padrão, seja por outros. Do ponto de vista experimental, tal limitação nãotraz problemas, já que a interação gravitacional entre partículas microscópicas, nas escalas de energiaacessíveis aos experimentos, é completamente desprezível. Muitos teóricos acreditam, contudo, quea quantização da gravitação necessariamente incorporará o Modelo Padrão dentro de um arcabouçoteórico mais fundamental, que seja capaz de “predizer” seus parâmetros livres. Esta é em particular avisão dos que estudam a Teoria das Cordas, uma das mais bem desenvolvidas candidatas a uma teoriaquântica da gravidade.

Se até agora defendemos que, conceitualmente, a Teoria Quântica de Campos é aproposta mais promissora para conciliar os princípios da Relatividade Restrita com osda Mecânica Quântica, do ponto de vista puramente pragmático, também vale a penacitar que as previsões da TQC tem sido verificadas numa ampla gama de experimen-tos, com grande precisão. O exemplo mais citado, muitas vezes como a previsão teóricamais bem confirmada por experimentos da Física, está o cálculo do momento magnéticoanômalo do elétron.

É um fato experimental que um elétron possui um pequeno momento magnéticoµe, responsável por gerar um campo magnético intrínseco (ver figura). Este momento

magnético está associado ao spin do elétron pela relação

~µe = −gs µB~Sh

, (1.13)

onde µB = eh/2me e, da teoria de Dirac para o elétron segue que gs = 2. Experimentalmente, contudo,percebeu-se que o valor de gS não é exatamente 2, costumando-se escrever

gs = 2 (1 + ε) , (1.14)

onde ε é o momento magnêtico anômalo. Em 1947, Schwinger usou os métodos da TQC para calcular εem primeira aproximação,

ε =α

2π, (1.15)

onde α = e2/ (4πε0) hc. Este resultado concidiu satisfatoriamente com os primeiros valores experimen-tais para ε, o que foi um dos primeiros grandes sucessos da TQC.

Na década de 80, tanto o cálculo teórico de ε quanto sua medida experimental melhoraram sensivel-mente. No artigo de Grabrielse e colaboradores de 19807, foram apresentados os resultados

εexp = 1.159.652.200(40)× 10−12

εteo = 1.159.652.570(140)× 10−12

uma concordância de 7 dígitos significativos. Em valores mais recentes, a concordância ultrapassa 10dígitos.

Finalmente, algumas palavras sobre convenções: usaremos quase sempre a notação covariante parateorias relativísticas, isto significando que coordenadas do espaço-tempo serão representadas por umtetravetor xµ =

(x0,~x

), onde x0 = ct. Índices de espaço-tempo são sempre contraídos com a métrica

espaço-temporal plana de Minkowski,

ηµν = diag (+1,−1,−1,−1) .

7Physical Review D 22, 2236 (1980).

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1.1. PORQUE ESTUDAR TEORIA QUÂNTICA DE CAMPOS (TQC)? 13

Não existe uma convenção universal sobre os sinais de ηµν: o leitor perceberá que alguns livros da biblio-grafia usam esta métrica, outros a com sinal trocado. Esta troca pode implicar alguns sinais diferentes emalgumas expressões. O leitor deve estar atento, se optar por copiar fórmulas de várias fontes diferentes.

Supõe-se que o estudante já tenha aprendido que a covariância relativística é mantida se todos osíndices são contraídos de forma apropriada, por exemplo x2 = xµxµ = ηµνxµxν. Perceba também quea convenção de Einstein é utilizada: índices repetidos são sempre somados. Também supõe-se queconheça os tensores invariantes δ

µν e εµνρσ, onde ε0123 = +1.

Ocasionalmente, iremos trabalhar com vetores tridimensionais, neste caso usaremos índices latinospara representar as componentes: ~x =

(xi), onde i = 1, 2, 3. A notação de Einstein também será utilizada

neste caso: ~x2 = xixi. Os tensores tridimensionais δij e ε ijk também serão utilizados, sendo que ε123 = +1.É muito comum, em TQC, a utilização do sistema natural de unidades, em que h = c = 1. Em geral,

quando não for dito explicitamente o contrário, o mesmo será feito ao longo de todas estas notas.

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14 CAPÍTULO 1. INTRODUÇÃO

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Capıtulo 2Teoria Clássica de Campos

2.1 Funcional ação e equações de movimento

Um campo é a associação de uma certa quantidade a cada ponto do espaço e do tempo. O caso maissimples é o de uma função real φ (~x, t), que define um campo escalar. Exemplos que devem ser familiaresnão faltam: a temperatura numa determinada sala, a pressão em um fluido, etc. Também podemosassociar um vetor a cada ponto do espaço e do tempo: os campos eletromagnéticos ~E (~x, t) e ~B (~x, t) sãoexemplos canônicos. Em princípio, um campo deve variar no espaço e no tempo, obedecendo a certasEquações de Movimento. Tais equações podem ser postuladas a partir de considerações físicas, mas emgeral são obtidas por meio de um Princípio Variacional aplicado a uma Funcional Ação que depende docampo e de suas derivadas.

Queremos estudar a dinâmica de teorias que envolvem um certo número de campos, que podemincluir campo escalares, vetoriais, etc... Mais adiante, quando estudarmos as representações irredutíveisdo grupo de Lorentz, veremos que a simetria relativística dita exatamente os tipos de campos que po-demos ter numa teoria relativística, bem a forma como estes se transformam frente a uma mudança dereferencial inercial.

Para obter os resultados que estamos interessados neste capítulo, basta considerar um único campoescalar φ (x). Num caso mais geral, todos os resultados podem ser obtidos para cada componente decada campo considerado, de forma que esta simplificação não reduz em nada a generalidade destesresultados. Vamos considerar portanto a dinâmica de um campo escalar, que deve ser obtida a partir deuma Funcional Ação,

S [φ] =

ˆΩ

d4xL(φ, ∂µφ

), (2.1)

onde a densidade Lagrangeana L(φ, ∂µφ

)é uma função dos campos e de suas derivadas primeiras. Nesta

notação, d4x é um elemento de volume, Ω é uma região do espaço-tempo que, se for limitada, terá umaborda ∂Ω. Em muitos casos, consideraremos que a integral se estende por todo o espaço-tempo, o quesimbolizaremos formalmente por ∂Ω→ ∞ e/ou pela omissão do volume Ω na integral.

Note que ainda não discutimos em detalhe os requerimentos para garantir a invariância relativísticada teoria que estamos discutindo. Contudo, parece bastante natural impor que a densidade Lagrangeanaseja um escalar de Lorentz, ou seja: todos os índices espaço-temporais que aparecem em L devem estarapropriadamente contraídos. Isto também significa que L deve depender das derivadas espaciais etemporais de φ, e não de ∂0φ ou ∂iφ individualmente, por exemplo.

Usaremos sempre unidades naturais, o que significa que h = c = 1, e S [φ] não tem dimensões, deforma que dimL = cm−4.

A dinâmica dos campos vem do requerimento de que a ação (2.1) seja estacionária frente a uma

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16 CAPÍTULO 2. TEORIA CLÁSSICA DE CAMPOS

variação infinitesimal arbitrária do campo,

φ (x)→ φ (x) + δ0φ (x) , (2.2)

ou seja,

δS [φ] ≡ S [φ + δφ]− S [φ] = 0 , (2.3)

onde|δ0φ (x)| 1 para x ∈ Ω, e δ0φ se anula na borda do volume de integração1. Até a primeira ordemem δφ, temos

δS [φ] =

ˆΩ

d4x

[∂L∂φ

δ0φ +∂L

∂[∂µφ

]∂µδ0 (φ)

]. (2.4)

Note que os índices espaço-temporais estão apropriadamente contraídos, como deve ser já que a ação éum escalar de Lorentz. Integrando por partes:

δS [φ] =

ˆΩ

d4x Lφ (x) δ0φ +

˛∂Ω

δ0φ∂L

∂[∂µφ

]dσµ , (2.5)

ondeLφ (x) =

∂L∂φ− ∂µ

∂L∂[∂µφ

] . (2.6)

Como δ0φ (∂Ω) = 0, o termo de superfície desaparece.Generalizando o Princípio de Hamilton, vamos dizer que se φ (x) é solução das equações de mo-

vimento, então δS [φ] = 0 para δ0φ arbitrário, o que implica na seguinte forma das Equações de EulerLagrange.

∂L∂φ− ∂µ

∂L∂[∂µφ

] = 0 . (2.7)

Exemplo 1. O Campo Escalar RealConsidere a densidade Lagrangiana envolvendo um campo escalar real φ,

L(φ, ∂µφ

)=

12(∂µφ∂µφ−m2φ

)−V (φ) , (2.8)

onde V (φ) é, tipicamente, uma soma de termos com potências de φ maiores que dois. Note que usamos,aqui, o sistema de unidades naturais, em que c = h = 1.

Calculando-se as derivadas∂L∂φ

= −m2φ−V ′ (φ)

e∂L

∂[∂µφ

] = ∂

∂[∂µφ

] (12

ηαβ∂αφ∂βφ

)= ∂µφ

reescrevemos a equação (2.7) na forma

−m2φ−V ′ (φ)− ∂µ∂µ︸︷︷︸

φ = 0 ,

ou seja (+ m2) φ = −V ′ (φ) . (2.9)

Escrevendo explicitamente =(∂0)2 − ∇2, reconhecemos aqui (com exceção dos fatores de c e h) a

equação de Klein-Gordon (1.9), no caso em que V (φ) = 0.1Esta condição é similar à condição de que a posição inicial e final estão fixas no Princípio de Hamilton da Mecânica Clássica.

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2.2. SIMETRIAS E O TEOREMA DE NOETHER 17

2.2 Simetrias e o Teorema de Noether

Emmy Noether foi uma matemática alemã que demonstrou um dos resultados mais fundamentais dafísica teórica, o chamado Teorema de Noether, pois demonstra da forma mais geral a profunda relaçãoque existe entre leis de conservação e simetrias. Iremos demonstrar o teorema no contexto de teorias decampos descritas por uma Funcional Ação, como acabamos de definir.

Entendemos uma transformação de simetria como uma mudança que, aplicada a um sistema físico, re-sulta numa nova configuração do sistema que é idêntica à inicial. No contexto de teoria de campos, umatransformação de simetria em geral engloba tanto uma mudança de coordenadas quanto uma mudançano valor do campo em cada ponto do espaço-tempo, ou seja,

xµ → x′µ

φ (x)→ φ′ (x′). (2.10)

A interpretação desta última equação é: focalizando a atenção a um determinado ponto do espaço tempo,localizado pelas coordenadas xµ, inicialmente o valor do campo neste ponto é φ (x); após a transforma-ção, as coordenadas deste ponto mudam para x′µ e o valor do campo neste ponto também muda paraφ′ (x′). Ou seja: fisicamente, a mudança no valor do campo num determinado ponto fixo do espaço-tempo é dado pela diferença δφ = φ′ (x′)− φ (x), que chamaremos de variação total do campo.

Iremos oportunamente particularizar para uma transformação infinitesimal, considerando quex′µ = xµ + δxµ

φ′ (x′) = φ (x) + δφ (x), (2.11)

onde δxµ e δφ são muito pequenos. Neste ponto, vale lembrar a variação de forma de um campo, jádefinida em (2.2),

δ0φ (x) = φ′ (x)− φ (x) . (2.12)

Note a diferença: a variação total δφ corresponde à variação do campo num mesmo ponto físico. Avariação de forma δ0φ é um artifício matemático, que usamos para derivar as equações de movimento(caso em que δ0φ era arbitrária, exceto pela condição δ0φ (∂Ω) = 0). Abaixo, precisaremos relacionar avariação de forma com a variação total, o que pode ser feito para uma transformação infinitesimal daseguinte forma:

δφ (x) = φ′(x′)− φ (x) = φ′ (x) + δxµ∂µφ′ (x)− φ (x) .

Note que podemos fazer a simplificação δxµ∂µφ′ (x) = δxµ∂µφ (x), já que a diferença entre φ′ e φ já é deprimeira ordem. Portanto:

δφ (x) = δ0φ (x) + δxµ∂µφ (x) . (2.13)

Aplicando a transformação (2.10) a um determinado sistema físico cuja dinâmica é descrito por umaação S [φ], definimos uma ação transformada

S′[φ′]=

ˆΩ′

d4x′ L(

φ′(x′)

, ∂′µφ′(

x′))

, (2.14)

onde ∂′µ = ∂∂x′µ e Ω′ é a imagem de Ω frente à transformação de coordenadas considerada. Usando o

teorema de transformação de coordenadas2 na integral acima, podemos escrever

S′[φ′A]=

ˆΩ

d4x J(

x′µ

)L(

φ′(x′)

, ∂′µφ′(x′))

, (2.15)

2Veja, por exemplo, http://en.wikipedia.org/wiki/Change_of_variable.

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18 CAPÍTULO 2. TEORIA CLÁSSICA DE CAMPOS

onde agora x′ = x′ (x) é entendido como função de x, e

J(

x′µ

)= det

(∂x′µ

∂xν

)(2.16)

é o determinante Jacobiano da transformação xµ → x′µ. A diferença entre a ação original e a transfor-mada pode ser escrita, portanto, como

δS [φ] =

ˆΩ

d4x[

J(

x′µ

)L(

φ′(x′)

, ∂′µφ′(x′))−L

(φ, ∂µφ

)]. (2.17)

Agora vamos particularizar para uma transformação infinitesimal, conforme (2.11), e fazer todos oscálculos apenas em primeira ordem de δxµ e δφ. O determinante Jacobiano, em primeira ordem em δxµ

é dado por

det(

∂x′µ

∂xν

)∼ 1 + ∂µδxµ , (2.18)

de forma que a variação infinitesimal da ação vale

δS [φ] =

ˆΩ

d4x[δL(φ, ∂µφ

)+ ∂µδxµL

(φ, ∂µφ

)](2.19)

onde

δL = L(

φ′(

x′)

, ∂′µφ′(x′))−L

(φ (x) , ∂µφ (x)

)∼ δxµ∂µL

(φ (x) , ∂µφ (x)

)+ L

(φ′ (x) , ∂µφ′ (x)

)−L

(φ (x) , ∂µφ (x)

),

sempre desconsiderando termos de ordem mais alta. Note que a diferença envolvendo os dois últimostermos é justamente o que já calculamos na derivação das equações de movimento podemos portantocopiar o resultado da Eq. (2.5),

δL = δxµ∂µL(φ, ∂µφ

)+ Lφ (x) δ0φ + ∂µ

(∂L

∂[∂µφ

]δ0φ

), (2.20)

onde aparece novamente a variação de forma δ0φ já definida em (2.12), e Lφ definido em (2.6). Juntando(2.19) e (2.20),

δS [φ] =

ˆΩ

d4x

[Lφδ0φ + ∂µ

(δ0φ

∂L∂[∂µφ

] + δxµL)]

. (2.21)

Será conveniente, contudo, aplicar (2.13) no parêntesis mais interno da última expressão, reescrevendoδ0φ em termos de δφ, pois é este último que efetivamente corresponde à transformação física que estamosconsiderando, conforme discutido anteriormente. Desta forma, chegamos finalmente a

δS [φ] =

ˆΩ

d4x

Lφδ0φ− ∂µCµ

, (2.22)

onde

Cµ = −δxν

µνL(φ, ∂µφ

)− ∂νφ

∂L∂[∂µφ

])− δφ∂L

∂[∂µφ

] . (2.23)

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2.2. SIMETRIAS E O TEOREMA DE NOETHER 19

Estamos finalmente prontos a definir o que entendemos como uma simetria da teoria. Dizemos queuma transformação da forma (2.11) é uma simetria se o valor da ação S [φ] é invariante frente a estatransformação, ou seja, se δS [φ] = 0.

Logo, se a transformação (2.11) é uma simetria, para um campo arbitrário φ (x) temos que

Lφδ0φA − ∂µCµ = 0 .

Em particular, se φ (x) é solução das equações de movimento (2.7), Lφ = 0 e portanto

∂µCµ = 0 , (2.24)

de forma que Cµ é uma corrente conservada.Tipicamente, as simetrias da natureza são descritas por grupos contínuos (ou de Lie)3. Um resultado

fundamental da teoria de grupos de Lie é que qualquer transformação pode ser obtida por um númerofinito de geradores que fazem parte de uma álgebra de Lie. Suponha, portanto, que consideramos umasimetria descrita por um grupo G contendo N geradores. Isso significa que a transformação infinitesimal(2.11) depende dos N geradores do grupo e de N coeficientes infinitesimais ε`, ou seja, é possível escrever δxµ =

(δxµ

δε`

)ε`

δφ =(

δφ

δε`

)ε`

, ` = 1, . . . , N , (2.25)

onde(

δxµ

δε`

)e(

δφ

δε`

)representam simbolicamente uma representação adequada de cada um dos geradores

do grupo G.Inserindo (2.25) em (2.24), vemos que existem N correntes conservadas Cµ

`, dadas por

Cµ` ≡

(δxν

δε`

)(∂νφ

∂L∂[∂µφ

] − δµνL(φ, ∂µφ

))−(

δφ

δε`

)∂L

∂[∂µφ

] . (2.26)

Este é o enunciado do principal resultado de Noether: a cada gerador de um grupo de simetria da teoriaconsiderada, existe uma corrente conservada associada, dada pela Eq. (2.26).

Vamos discutir em mais detalhes em que sentido a equação (2.24) define uma lei de conservação.Note que Cµ pode ser, em princípio, uma função complicada de φ e ∂µφ que, por sua vez, dependem dexµ. Logo, podemos definir a partir de Cµ

ρ (~x, t) = C0 (~x, t)ji (~x, t) = Ci (~x, t)

. (2.27)

De (2.24), obtemos

∂0C0 + ∂iCi = 0 ⇒ ∂

∂tρ (~x, t) +∇ ·~j (~x, t) = 0 , (2.28)

que é uma equação da continuidade. Considere um volume tridimensional V arbitrário, e integre os doismembros da equação anterior neste volume: de um lado, teremos

ˆV

d3x∂

∂tρ (~x, t) =

ddt

ˆV

d3x ρ (~x, t) ,

por outro, ˆV

d3x∇ ·~j (~x, t) =˛

∂Vd3x~j (~x, t) · d~σ .

3O leitor encontrará uma brevíssima revisão dos conceitos mais fundamentais no Suplemento Matemático A.1.

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20 CAPÍTULO 2. TEORIA CLÁSSICA DE CAMPOS

Ou seja, se entendemos Q (t) =´

V d3x ρ (~x, t) como a quantidade de uma determinada grandeza contidaem V, mostramos que

ddt

Q (t) = −˛

∂Vd3x~j (~x, t) · d~σ , (2.29)

onde o membro da direita corresponde ao fluxo desta grandeza que atravessa a fronteira de V. Ou seja:a grandeza que consideramos é necessariamente conservada.

Por outro lado, tomando o volume V como todo o espaço, e supondo que~j tende a zero rapidamenteno infinito, temos que

ddt

Q (t) = 0 . (2.30)

Desta forma a grandeza Q (t) é na verdade independente do tempo. Ou seja, embora a integral´

d3x ρ (~x, t)formalmente depende do tempo, ao efetuarmos a integral por todo o espaço definiremos uma grandezaindependente do tempo,

Q =

ˆd3x ρ (~x, t) . (2.31)

Diz-se que Q é a carga associada à simetria considerada.

Exemplo 2. Simetria de TranslaçãoAs leis da física devem ser invariantes por uma mudança na escolha da origem do referencial de

espaço e tempo. Isso reflete-se no fato de que uma translação,

δxµ = εµ (2.32)

deve ser uma transformação de simetria de qualquer teoria física. Pelo teorema de Noether, deve haveruma carga conservada associada à simetria por translação. Reescrevendo a equação (2.25) para reprodu-zir (2.32), lembrando que por definição o campo escalar tem que satisfazer

δφ = φ′(

x′)− φ (x) = 0 ,

vemos que δxµ =

µν

)εν

δφ = 0,

de onde podemos identificar(

δxµ

δεα

)e(

δφ

δε`

), que inserido em (2.26) fornece

Cµν =

∂L∂[∂µφ

]∂νφ− δµνL ,

ou, equivalentemente

Tµν =∂L

∂[∂µφ

]∂νφ− ηµνL . (2.33)

O tensor Tµν é chamado de tensor energia-momento, e terá fundamental importância para a definiçãoda teoria quântica do campo escalar que faremos no capítulo 4. Conforme o teorema de Noether, acomponente µ = 0 do tensor de energia momento define a densidade de uma grandeza conservada,

Pν =

ˆd3x T0ν , (2.34)

grandeza que oportunamente identificaremos como o momento linear.

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2.3. SOLUÇÕES DA EQUAÇÃO DE KLEIN-GORDON LIVRE 21

Considere por exemplo a Lagrangiana do campo escalar real (2.8),

L(φ, ∂µφ

)=

12(∂µφ∂µφ−m2φ

)−V (φ) .

Calculando explicitamente Tµν neste caso, encontraremos

Tµν = ∂µφ∂νφ− 12

ηµν(∂µφ∂µφ−m2φ

)+ ηµνV (φ) . (2.35)

Em particular:

T00 =(∂0φ)2 − 1

2η00((

∂0φ)2 − (∇φ)2 −m2φ

)+ η00V (φ)

=12(∂0φ)2

+12(∇φ)2 1

2m2φ + V (φ) , (2.36)

eT0i = ∂0φ∂iφ . (2.37)

Note que T00 é uma grandeza estritamente positiva: este tinha que ser justamente o caso pois, comoveremos adiante, T00 será interpretado como a densidade de energia associado ao campo.

2.3 Soluções da Equação de Klein-Gordon livre

Na mecânica clássica, resolver um determinado problema significa encontrar uma solução das equa-ções diferenciais que determinam o problema, satisfazendo determinadas condições iniciais. Da mesmaforma, numa teoria de campos, podemos procurar pela função φ (~x, t) que satisfaz a equação de Klein-Gordon (

+ m2) φ (x) = −V ′ (φ) , (2.38)

e também satisfaz uma determinada condição inicial, tipicamente na forma de funções conhecidas φ (~x, t0)e ∂0φ (~x, t0), onde t0 é fixo. No caso em que V = 0, tais soluções podem ser encontradas explicitamente,e é o que faremos nesta seção. Tal solução será utilizada diretamente na quantização canônica do campoescalar, que faremos no capítulo 4.

Focalizaremos nossa atenção, portanto, à equação de Klein-Gordon livre,(+ m2) φ (x) = 0 . (2.39)

Iremos resolvê-la usando o método de Fourier: tentamos uma solução da forma

φ (x) =ˆ

d4k

(2π)2 eikxφ (k) , (2.40)

onde kx ≡ kµxµ =(k0x0)−~k ·~x. Inserindo em (2.39), usando a independência linear das exponenciais

eikx, vemos que a equação de Klein-Gordon será satisfeita se(k2 −m2) φ (k) = 0 .

Como precisamos ter φ (k) 6= 0 para não ter uma solução trivial, temos que impor k2−m2 = 0. Fazemosisso escrevendo

φ (k) = δ(k2 −m2) φ (k) ,

onde φ (k) é, em princípio, arbitrária (oportunamente, será relacionada às condições iniciais do campo).Inserindo esta expressão em (2.40),

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22 CAPÍTULO 2. TEORIA CLÁSSICA DE CAMPOS

φ (x) =ˆ

d4k

(2π)2 eikxδ(k2 −m2) φ (k) . (2.41)

Vamos refletir sobre o resultado desta expressão: chegamos à conclusão que a amplitude de Fourierφ (k) pode ser arbitrária, desde que as integrais sejam sobre todos os momentos kµ tais que k2 −m2 = 0.Esta última condição significa que (

k0)2=~k2 + m2 , (2.42)

ou seja, que a componente k0 do momento kµ deve corresponder à energia física de uma partícula demomento~k e massa m. Tornamos isto mais claro, escrevendo a função δ em (2.41) da forma

δ(k2 −m2) = δ

((k0)2 −ω2

~k

), (2.43)

onde

ω~k ≡ +

√~k2 + m2 . (2.44)

Note que, de (2.42) segue que k0 = ±ω~k, ou seja, na expressão (2.41) teremos tanto contribuições comfrequência positiva quanto com frequência negativa. Para levar isto em conta, consideremos o seguintetruque: a identidade

1 = θ(x0)+ θ

(−x0) , (2.45)

em que θ (x) é a função salto (ou de Heavyside),

θ (x) =

0, x < 01, x ≥ 0

, (2.46)

é inserida em (2.41),

φ (x) =ˆ

d4k

(2π)2 ei(

k0x0−~k·~x)

δ((

k0)2 −ω2~k

) [θ(k0)+ θ

(−k0)] φ (k) . (2.47)

Fazemos a substituição k→ −k no termo proporcional a θ(−k0),

φ (x) =ˆ

d4k

(2π)2 δ((

k0)2 −ω2~k

)θ(k0) [ei

(k0x0−~k·~x

)φ (k) + e−i

(k0x0−~k·~x

)φ (−k)

]. (2.48)

Agora efetuamos a integral em k0, usando a identidade

δ((

k0)2 −ω2~k

)=

12ω~k

[δ(k0 −ω~k

)+ δ

(k0 + ω~k

)]. (2.49)

Como δ(k0 + ω~k

)θ(k0) = 0, chegamos a

φ (x) =ˆ

d3k

(2π)2

ei(

ω~kx0−~k·~x)

2ω~kφ(

ω~k,~k)+

e−i(

ω~kx0−~k·~x)

2ω~kφ(−ω~k,−~k

) . (2.50)

Agora algumas definições,φ±(~k)=√

2πφ(±ω~k,±~k

), (2.51)

f~k (x) =e−i

(ω~kx0−~k·~x

)(2π)3/2 , (2.52)

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2.3. SOLUÇÕES DA EQUAÇÃO DE KLEIN-GORDON LIVRE 23

nos permitem reescrever (2.50) da forma

φ (x) =ˆ

d3k2ω~k

[f~k (x) φ+

(~k)+ f ∗~k (x) φ−

(~k)]

. (2.53)

O fato de que φ deve ser real significa que(

φ+(~k))∗

= φ− (k).Pausa para reflexão: observe que, afora algumas normalizações, essencialmente a solução (2.53) cor-

responde a construir a solução geral φ (x) como uma superposição linear, com coeficientes arbitráriosφ±(~k)

, de soluções da equação de Klein-Gordon livre f~k (x) ∼ eikµxµ . O leitor atento perceberá que éjustamente isso que fizemos, sem nenhum detalhe, na equação (1.1) da introdução deste texto.

As funções f~k definidas em (2.52) obedecem a relações de ortogonalidade, i´

d3x f ∗~k (x)←→∂0 f~q (x) = 2ω~kδ3

(~k−~q

)i´

d3x f~k (x)←→∂0 f~q (x) = i

´d3x f ∗~k (x)

←→∂0 f ∗~q (x) = 0

, (2.54)

cuja prova fica como exercício para o leitor. Aqui, emprega-se a notação

A←→∂0 B ≡ A∂0B− (∂0A) B . (2.55)

Estas relações de ortogonalidade permitem, finalmente, relacionar as amplitudes de Fourier φ±(~k)

comas condições iniciais do campo, num dado tempo fixo t0. Fica também a cargo do leitor mostrar que φ+

(~k)= i´

d3x f ∗~k (x)←→∂0 φ (~x, t)

φ−(~k)= i´

d3x φ (~x, t)←→∂0 f~k (x)

, (2.56)

o que pode ser feito facilmente usando-se as relações de ortogonalidade (2.54). Note que o membro daesquerda destas relações é explicitamente independente de t, portanto, o membro da direita também deveser. Podemos assim fixar t = t0, e desta forma encontrar as amplitudes de Fourier φ±

(~k)

em termos dosvalores iniciais do campo, φ (~x, t0) e ∂0φ (~x, t0). O campo φ (x) fica, assim, completamente determinadopor (2.56) e (2.53) a partir de suas condições iniciais.

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24 CAPÍTULO 2. TEORIA CLÁSSICA DE CAMPOS

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Capıtulo 3Simetria Relativística

3.1 O Grupo de Lorentz

O princípio fundamental da Relatividade Restrita pode ser enunciado da seguinte maneira:

Uma mudança de um referencial inercial para outro implica na mudança das coordenadasassociadas a qualquer evento do espaço tempo xµ → x′µ, de tal forma que xµ e x′µ se-jam relacionados por uma transformação linear que deixa o intervalo relativístico entre doiseventos

∆s2 = (x− y)µ (x− y)µ =(x0 − y0)2 − (~x−~y)2 (3.1)

constante.

A restrição da linearidade da transformação xµ → x′µ é retirada na Relatividade Geral, que é invari-ante por reparametrizações arbitrárias xµ → x′µ (x). Ao tratar da Relatividade Restrita, contudo, bastasupor transformações da forma

x′µ = Λµνxν + bµ . (3.2)

O parâmetro bµ representa uma translação da origem das coordenadas. Tais transformações obviamentedeixam (3.1) invariante. Menos trivial é a parte homogênea da transformação,

x′µ = Λµνxν , (3.3)

que iremos inicialmente considerar. Para respeitar (3.1), temos que ter

x′µx′µ = ηµνx′µx′ν = ηµνΛµρxρΛν

σxσ = ηµνxµxν ; (3.4)

como isto vale para xµ arbitrário, tem que valer

ηρσΛρµΛσ

ν = ηµν . (3.5)

Aqui, obviamente, ηµν é a métrica plana do espaço de Minkowski, ηµν = diag (+1,−1,−1,−1). Es-crevendo η como uma matriz 4× 4, e também entendendo Λµ

ν como elementos de uma matriz 4× 4,podemos reescrever (3.5) da forma matricial da forma

ΛTηΛ = η . (3.6)

A equação acima define um conjunto de matrizes Λ que forma um grupo conhecido pelos matemáticosde O (3, 1)1, e que será por nós chamado de grupo de Lorentz, simbolizado por L.

1Leia-se: conjunto de transformações que deixam invariante uma métrica indefinida com 3 autovalores de um sinal e 1autovalor com outro sinal.

25

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26 CAPÍTULO 3. SIMETRIA RELATIVÍSTICA

Tomando-se o determinante de ambos os membros de (3.6) concluimos que

det2Λ = 1 ⇒ det Λ = ±1 .

De forma que L = L+⋃L−, onde L+ é o subconjunto próprio (matrizes com determinante +1) e L− é o

subconjunto impróprio (matrizes com determinante−1). Note que são dois subconjuntos disjuntos, e nãohá nenhuma mudança contínua de parâmetros que leva uma matriz de um para o outro. Além disso,tomando a componente µ = ν = 0 de (3.5) temos

ηρσΛρ0Λσ

0 =(Λ0

0)2 −∑

i

(Λi

0

)2= η00 = 1

logo ∣∣Λ00∣∣ ≥ 1

para qualquer Λ ∈ L. Isto significa que podemos ter matrizes Λ com Λ00 ≥ 1 (chamadas ortócronas) e

outras com Λ00 ≤ 1 (chamadas não-ortócronas), novamente definindo uma divisão de L em subconjuntos

que não podem ser continuamente conectados. Adota-se a seguinte simbologia e nomenclatura paraestes subconjuntos:

det Λ sgnΛ00

L↑+ +1 + próprio ortócrono (restrito)L↑− −1 + impróprio ortócronoL↓+ +1 - próprio não-ortócronoL↓− −1 - impróprio não-ortócrono

As diferentes componentes de L são conectadas por transformações de Lorentz especiais chamadasde transformações discretas, que são:

• inversão espacial (também chamada de paridade),~x → −~x, representada pela matriz P = diag (1,−1,−1,−1)

• inversão temporal, t→ −t, representada pela matriz T = diag (−1, 1, 1, 1)

• inversão espaço-temporal, obvimente representada por PT = − .

Claramente, P ∈ L↑− e T ∈ L↓−. Além disso, seja Λ ∈ L: é fácil ver que o produto PΛ tem determinantede sinal oposto ao de Λ, enquanto que TΛ tem determinante e a componente Λ0

0 de sinais opostos aode Λ. Isto significa que

PL↑+ = L↑− ; TL↑+ = L↓− ; PTL↑+ = L↓+ . (3.7)

As transformações discretas P, T e PT, portanto, comunicam as várias componentes de L.Note que ∈ L↑+, de forma que apenas o subconjunto de transformações de Lorentz restritas é um

subgrupo. Podemos, contudo, definir outros subgrupos de L da seguinte forma:

L+ = L↑+⋃L↓+ ; L0 = L↑+

⋃L↓− ; L↑ = L↑+

⋃L↑−

Como o subconjunto L+ contem apenas matrizes com determinante +1, trata-se do grupo que os mate-máticos chamam de SO (3, 1).

Toda esta informação sobre a estrutura do grupo de Lorentz é representada no diagrama abaixo.

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3.1. O GRUPO DE LORENTZ 27

De hora em diante, vamos sempre considerar apenas o subgrupo restrito L↑+, e consideraremos astransformações discretas separadamente. Na verdade, quando dissermos que uma teoria é invariante deLorentz, estaremos nos referindo apenas ao subgrupo restrito L↑+. Existem teorias que são invariantespor L↑+ mas não pelo grupo L completo: por exemplo, a teoria eletrofraca, responsável pela descriçãounificada das interações eletromagnéticas e nuclares fracas, viola a simetria de paridade (Prêmio Nobela T. D. Lee e C. N. Yang em 1957), e também a transformação de inversão temporal T é violada eminterações elementares (Nobel de 1964 e 2008).

A interpretação física das transformações descritas por matrizes Λ ∈ L↑+ vem do seguinte teorema:

Teorema 1. Seja Λ ∈ L↑+. Então Λ pode ser escrito da forma

Λ = ΛR2 ΛβΛR1

onde ΛR1,2 =

(1 00 R1,2

), sendo que R1,2 são matrizes do grupo de rotação tridimensional SO (3)2, enquanto

que

Λβ =

cosh β sinh β− sinh β cosh β

0

0 2×2

,

representa uma transformação de Lorentz usual no plano x0x1.

Não vamos provar o teorema aqui, mas sua interpretação física é clara: uma transformação de Lo-rentz genérica deve representar a passagem de um referencial S para outro referencial S′ que se movecom relação a S com a velocidade constante ~v. Tal transformação pode ser decomposta, pelo teorema,como o produto de três transformações consecutivas:

• uma rotação que alinha os eixos x1 de S com a velocidade ~v,

• um boost, ou seja, uma transformação de Lorentz ao longo de x1, da forma que conhecemos decursos elementares

2Ou seja, matrizes 3× 3 ortogonais com determinante unitário satisfazendo RTR =

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28 CAPÍTULO 3. SIMETRIA RELATIVÍSTICA

• uma rotação que alinha o eixo x1 do referencial após o boost ao do referencial S′.

Vamos agora nos restringir a matrizes Λ ∈ L↑+, e vamos estudar os geradores do grupo de Lorentzrestrito. Para tanto, vamos considerar uma transformação infinitesimal

Λµν = δ

µν + δλ

µν;

∣∣δλµν

∣∣ 1 . (3.8)

Inserindo em (3.5), pode-se ver que δλ tem que satisfazer δλµν = −δλνµ, ou seja, δλµν é antisimétrico. Istosignifica que a matriz de componentes δλµν tem seis componentes independentes, e portanto teremosseis geradores na álgebra de Lie de L↑+.

Tais geradores serão representados por matrizes antisimétricas Mαβ. Note que, a esta altura, os índi-ces α, β variam de 0 a 3 mas não são necessariamente índices espaço-temporais (discutiremos isto maisadiante). Pode-se encontrar explicitamente a forma das matrizes Lαβ e isto será proposto como um exer-cício ao estudante; citamos aqui o resultado:(

Mαβ

ν= i(

ηβµδαν − ηαµδ

βν

). (3.9)

Desta equação, pode-se por cálculo direto encontrar as relações de comutação entre os Lαβ mas, pormotivos puramente didáticos, vamos proceder de forma diferente, aproveitando o fato de que em úl-tima instância estaremos interessados em definir uma teoria quântica que seja invariante pelo grupo L↑+.Por isso, iremos posteriormente estudar como deve se implementar a simetria relativística na mecânicaquântica e, a partir daí, descobrir como é a álgebra dos geradores Mαβ. Antes, vamos voltar a discutir atransformação mais completa (3.2), incluindo a parte não homogênea.

3.2 A álgebra do Grupo de Poincaré

Voltando a considerar a transformação geral entre coordenadas

x′µ = Λµνxν + bµ = (Λ, b) xµ , (3.10)

vemos que além dos seis parâmetros que identificam as matrizes Λ, devem existir mais quatro associadosà parte inomogênea, portanto o grupo completo de transformações (Λ, b) possui dez geradores. Estegrupo é denominado de grupo de Poincaré P . Matematicamente, ele é dado pelo produto semi-diretodo grupo L↑+ com o grupo de translações em quatro dimensões T4: P = L↑+ n T4. A lei de produto dogrupo é obtida calculando-se o efeito de duas transformações consecutivas (Λ1, a) e (Λ2, b) sobre umvetor arbitrário xµ, e o resultado é

(Λ2, b) · (Λ1, a) = (Λ2Λ1, Λ2a + b) . (3.11)

Fica como exercício ao leitor perceber que tal produto efetivamente define um grupo. Por exemplo,a inversa da transformação (Λ1, a) é dada por

(Λ−1

1 ,−Λ−11 a)

.

Na Mecânica Quântica, toda operação de simetria deve estar associada a operadores U (Λ, a) que sãounitários,

U (Λ, a)† = U (Λ, a)−1 , (3.12)

que são responsáveis por transformar um vetor de estado que descreve um estado físico num dado refe-rencial, no novo vetor de estado correspondente ao mesmo estado físico visto por um outro referencialinercial, ou seja,

|ψ〉 → U (Λ, a) |ψ〉 . (3.13)

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3.2. A ÁLGEBRA DO GRUPO DE POINCARÉ 29

Similarmente, U (Λ, a) também relacionam operadores O num dado referencial para o referencial trans-formado:

O → U (Λ, a) OU (Λ, a)−1 . (3.14)

O requerimento de que U (Λ, a) efetivamente forma uma representação é que, respeitando (3.11), estesoperadores devem satisfazer

U (Λ2, b)U (Λ1, a) = U (Λ2Λ1, Λ2a + b) . (3.15)

O operador identidade corresponde a

U ( 4×4, 0) = 1 , (3.16)

e uma transformação infinitesimal é dada por

U ( + δω, δε) = 1 +i2

δωαβ Mαβ − iδεαPα . (3.17)

Como a matriz δω é antisimétria, Mαβ também o é. São portanto dez geradores Mαβ e Pα, que devem serhermiteanos para que U seja unitária.

Examinemos agora o produto

U (Λ)U ( + δω)U (Λ)−1 = U(

Λ · ( + δω) ·Λ−1)

, (3.18)

onde a identidade é consequencia imediata de (3.11). Expandiremos os dois membros da identidadeusando (3.17), obtendo

U (Λ)U ( + δω)U (Λ)−1 = 1 +i2

δωαβU (Λ) MαβU (Λ)−1

e

U(

Λ · ( + δω) ·Λ−1)= 1 +

i2

(Λ · ( + δω) ·Λ−1

)αβ

Mαβ

= 1 +i2

δωαβ

(Λ−1

µ

(Λ−1

νMµν ,

onde, para chegar à última identidade, temos que usar que Λ−1 = ηΛTη. Comparando-se as duasexpressões para δεαβ arbitrário, concluímos que

U (Λ) MαβU (Λ)−1 =(

Λ−1)α

µ

(Λ−1

νMµν . (3.19)

Daqui se vê que cada índice de Mαβ se transforma, frente a uma transformação de Lorentz, exatamentecomo deve se transformar um índice de espaço-tempo. O fato de aparecer a matriz inversa em (3.19) vemda diferença entre a visão ativa e passiva de uma transformação de coordenadas, e de que, na mecânicaquântica, sempre pensamos em transformações ativas sobre os estados; veremos isso mais adiante.

Um cálculo mais completo deveria partir de U (Λ, a)U ( + δω, δε)U (Λ, a)−1, incluindo também astranslações, o resultado que se obteria seria3

U (Λ, a) MαβU (Λ, a)−1 =(

Λ−1)α

µ

(Λ−1

ν[Mµν − aµPν + aνPµ] , (3.20a)

U (Λ, a) PαU (Λ, a)−1 =(

Λ−1)α

µPµ . (3.20b)

3O leitor interessado deve consultar Weinberg Vol I, seção 2.3.

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30 CAPÍTULO 3. SIMETRIA RELATIVÍSTICA

A leitura destas equações é: Pµ se transforma como um vetor frente a transformações de Lorentz ino-mogêneas, sendo invariante por translações como todo vetor deve ser. Já Mαβ se transforma como umtensor de dois índices que não é invariante por translações. Um objeto que o leitor já deve conhecer e quetem este comportamento é o momento angular.

Partindo-se agora de (3.20), considerando uma transformação infinitesimal U (Λ, a) = U ( + δω, δε),expandindo os dois lados das equações até primeira ordem em δω e δε, após as devidas simetrizaçõesobtemos finalmente as relações de comutação entre os geradores ou, em outras palavras, a álgebra de Liedo grupo de Poincaré: [

Mµν, Mαβ]= i(

ηµα Mνβ − ηνα Mµβ + ηµβ Mνα − ηνβ Mµα)

, (3.21a)[Mαβ, Pµ

]= i (ηαµPν − ηανPµ) , (3.21b)

[Pµ, Pν] = 0 . (3.21c)

Para facilitar a interpretação física destas relações, convêm “decompor” os geradores Mαβ e Pµ em com-ponentes espaciais e temporais da seguinte forma,

Ji = −12

ε ijk Mjk ; Ki = Mi0 . (3.22)

Pode-se obter de (3.21a-b) as relações:[Ji, Jj

]= iε ijk Jk ;

[Ji, Kj

]= iε ijkKk ;

[Ki, Kj

]= −iε ijk Jk, (3.23a)[

Ji, Pj]= iε ijkPk ;

[Ki, Pj

]= −iP0δij (3.23b)[

Ji, P0] = 0 ;[Ki, P0] = −iPi (3.23c)

Estas relações significam que

• Ji obedecem à algebra do momento angular, logo correspondem a rotações espaciais

• Ki, por exclusão, são os geradores responsáveis por boosts na direção dos três eixos coordenados

• considerando P0 como o operador que será identificado com a Hamiltoniana, vemos que Ji é con-servado, mas não Ki.

3.3 Estados de uma Partícula Relativística

Antes mesmo de introduzir a noção de campos e sua quantização, podemos inferir apenas dos princípiosfundamentais da mecânica quântica e da relatividade restrita a resposta a uma pergunta fundamental:quais são os estados quânticos de uma partícula relativística?

É esperado que os estados de uma partícula relativística seja descrita, na mecânica quântica, por umvetor identificado por um número adequado de rótulos,

|αi〉 ,

onde, como usual, os αi são os autovalores (contínuos ou discretos) de um conjunto completo de ope-radores que comutam entre si. Frente a uma transformação de Lorentz, a completude deste conjuntosignifica que

U (Λ, a) |αi〉 = ∑βi

Dαi βi (Λ, a) |βi〉 .

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3.3. ESTADOS DE UMA PARTÍCULA RELATIVÍSTICA 31

As matrizes Dαi βi (Λ, a) claramente devem corresponder a uma representação do grupo de Poincaré, ouseja, devem se multiplicar respeitando (3.11):

∑βi

Dαi βi (Λ1, b) Dβiγi (Λ1, a) = Dαiγi (Λ2Λ1, Λ2a + b) . (3.24)

Conforme discutido no Apêndice A.1, se estamos considerando uma partícula elementar, é naturalimpor que a matriz Dαi βi pertença a uma representação irredutível do grupo de Poincaré. Desta forma, apergunta inicial transforma-se na seguinte: quais as representações irredutíveis do grupo de Poincaré? Emparticular, quais os números quânticos que rotulam os vetores |αi〉 nestas representações?

A tarefa de catalogar as representações irredutíveis de um determinado grupo ou álgebra de Liecomeça pela identificação dos operadores de Casimir da álgebra, basicamente porque estes operadoresentrarão no conjunto completo de operadores comutantes, e os autovalores correspondes servem comorótulos que diferenciam as diferentes representações irredutíveis 4. Ou seja, os estados quânticos de umapartícula relativística terão a forma

|αi; βi〉 , (3.25)

onde αi são os autovalores dos operadores de Casimir, e frente a uma transformação de Lorentz teremos

U (Λ, a) |αi; βi〉 = ∑β′i

Dβi β′i(Λ, a)

∣∣αi; β′i⟩

. (3.26)

Os operadores de Casimir da álgebra de Poincaré são aqueles que comutam com Mµν e Pµ. Como oquadrado de um vetor xµxµ é um escalar de Lorentz, e como já provamos em (3.20b) que o gerador Pµ setransforma como um vetor, é intuitivo que P2 = PµPµ deve ser um operador de Casimir, como pode serfacilmente verificado. O outro operador de Casimir não é de interpretação física tão imediata. Define-seo vetor de Pauli-Lubanski como

Wµ =12

εµνρσPν Mρσ , (3.27)

tal que [Mρσ, Wµ

]= i(ηρµWσ − ησµWρ

);[Pµ, Wν

]= 0 . (3.28)

A primeira relação indica que Wµ se transforma como um vetor frente a transformações de Lorentz, eportanto W2 = WµWµ também comuta com Mµν e Pµ e portanto é também um Casimir.

Escrevendo-se explicitamente as componentes temporais e espaciais de Wµ, em termos de Ji e Kidefinidos em (3.22), pode-se mostrar que

W0 = ~P ·~J ; ~W = P0~J − ~P× ~K , (3.29)

expressões que por enquanto não nos dizem muito sobre a interpretação física de Wµ, mas que serãoúteis mais adiante quando tal interpretação for investigada.

O conjunto completo de operadores comutantes cujos autovetores definem a representação portantonecessariamente inclui P2 e W2; os únicos outros geradores que podemos agregar a este conjunto cor-respondem aos Pµ (que comutam entre si) e uma das componentes de Wµ, que usualmente escolhe-secomo sendo W3. Não existe qualquer outro operador que pode-se agregar a tal conjunto e que aindacomute com todos os elementos que já estão neste conjunto. Isto significa que o espaço de estados deuma partícula relativística é gerado pelos vetores∣∣p2, ω2 ; pµ, σ

⟩, (3.30)

autovetor de P2, W2, Pµ e W3 com autovalores p2, ω2, pµ e σ, respectivamente.

4O leitor pouco acostumado a tal nomenclatura deve se reportar ao Apêndice A.1 para maiores esclarecimentos.

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32 CAPÍTULO 3. SIMETRIA RELATIVÍSTICA

A escolhe dos operadores Pµ como parte do conjunto completo de operadores comutantes cujosautovetores irá gerar o espaço de estados da partícula relativística é bastante afortunado, já que o efeitode uma translação pura

U ( , a) = e−iaµPµ(3.31)

sobre os vetores da base do espaço de estados é bastante simples:

U ( , a)∣∣p2, ω2 ; pµ, σ

⟩= e−iaµPµ ∣∣p2, ω2 ; pµ, σ

⟩= e−iaµ pµ

∣∣p2, ω2 ; pµ, σ⟩

. (3.32)

Para estudar o efeito da aplicação de uma transformação de Lorentz pura sobre um estado,

U (Λ, 0)∣∣p2, ω2 ; pµ, σ

⟩= ei/2ωαβ Mαβ ∣∣p2, ω2 ; pµ, σ

⟩, (3.33)

vamos primeiro reescrever a equação (3.20b) trocando Λ por Λ−1,

U (Λ)−1 PαU (Λ) = ΛαµPµ . (3.34)

Omitimos o parâmetro de translação pois este é nulo. Calculemos:

Pµ(U (Λ)

∣∣p2, ω2 ; pµ, σ⟩)

= U (Λ)U (Λ)−1 PµU (Λ)︸ ︷︷ ︸Λα

µPµ

∣∣p2, ω2 ; pµ, σ⟩

= U (Λ)ΛµαPα

∣∣p2, ω2 ; pµ, σ⟩︸ ︷︷ ︸

(Λp)|p2,ω2 ; pµ,σ〉

= (Λp)(U (Λ)

∣∣p2, ω2 ; pµ, σ⟩)

,

onde as diferentes notações Λp = ΛµαPα = Λpµ não devem confundir o leitor. O que vemos desta equa-

ção é que U (Λ)∣∣p2, ω2 ; pµ, σ

⟩é também um autovetor de Pµ com autovalor Λµ

αPα. Ou seja, escrevendode forma mais sintética,

U (Λ) |p〉 ∼ |Λp〉 ,

o que corresponde justamente ao que esperaríamos do efeito de uma transformação de Lorentz sobreuma partícula de momento pµ. Escrevendo de forma mais completa, temos

U (Λ)∣∣p2, ω2 ; pµ, σ

⟩= ∑

σ′Dσσ′ (Λ, p)

∣∣p2, ω2 ; Λpµ, σ′⟩

. (3.35)

O problema é determinar a forma das matrizes Dσσ′ (Λ, p). A solução deste problema é devido, emgrande parte, ao trabalho seminal de Wigner no final dos anos 19305, que demonstrou o seguinte resul-tado: Seja o vetor pµ tal que pµ = Wkµ onde kµ é um dado vetor fixado e W ∈ L↑+; então pode-se encontrara matriz Dσσ′ (Λ, p) a partir de Dσσ′ (Λ′, k), onde Λ′ é uma transformação de Lorentz que deixa k invariante:kµ = Λ′kµ.

Este resultado de Wigner permite uma grande simplificação no problema: ao invés de encontrarDσσ′ (Λ, p) para qualquer p e para qualquer Λ, podemos dividir o problema em categorias, cada umaincluindo momentos p que podem ser levados uns aos outros por transformações de L↑+. Em cadacategoria, basta considerar um momento fixo arbitrário k, e considerar o subconjunto das transformaçõesde L↑+ que deixam este vetor k fixo.

De forma mais concreta: uma transformação qualquer W ∈ L↑+ aplicada a um tetravetor arbitráriopµ não muda o valor de p2 = pµ pµ (que é um escalar de Lorentz) e também não muda o sinal de p0 (pois

5O leitor interessado encontrará disponível online o principal trabalho de Wigner sobre este tema: On Unitary Represen-tations of the Inhomogeneous Lorentz Group, The Annals of Mathematics, Vol. 40, No. 1 (Jan., 1939), pp. 149-204, no endereçohttp://www.jstor.org/stable/1968551.

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3.3. ESTADOS DE UMA PARTÍCULA RELATIVÍSTICA 33

W00 > 0). Desta forma, por exemplo, nenhuma transformação W ∈ L↑+ leva um vetor com p2 = m2 6= 0

a um vetor com p2 = 0, ou um vetor com p0 > 0 a um vetor com p0 < 0. Portanto, as categorias demomento pµ que temos que considerar são:

1. p2 6= 0 e p0 > 0

2. p2 6= 0 e p0 < 0

3. p2 = 0 e p0 > 0

4. p2 = 0 e p0 < 0

5. pµ = 0

A 5ª categoria corresponde à representação trivial do grupo de Poincaré, em que todos os geradores sãonulos e o grupo se reduz à transformação identidade. Fisicamente, podemos associar tal representaçãoao estado de vácuo, que é invariante por transformações de Poincaré.

Como queremos interpretar pµ como o vetor momento da partícula relativística, os casos em quep0 < 0 correspondem a partículas de energia negativa, o que não é fisicamente aceitável. As únicaspossibilidades fisicamente aceitáveis são: p2 6= 0 e p0 > 0 e p2 = 0 e p0 > 0. Vamos estudar cada umaindividualmente.

1º Caso: partículas com massa não nula, p2 = m2 6= 0 e p0 > 0

Partículas de massa não nula possuem um referencial de repouso: neste referencial, seu vetor mo-mento reduz-se a

kµ =(

m,~0)

. (3.36)

O grupo de transformações que deixa tal kµ invariante é o grupo de rotações em três dimensões:SO (3). Os geradores de tal grupo são os operadores de momento angular Ji. No referencial de repouso,contudo, o momento angular orbital anula-se, de forma que Ji = Si, onde Si é o operador de spin. A teoriade representações dos operadores de spin é bem conhecida: as representações irredutíveis correspondema s = 0, 1

2 , 1, . . . e, em cada representação, o número de estados é 2s + 1. Pelo teorema de Wigner, estasconclusões obtidas para a forma particular de k acima vale para qualquer partícula com massa não nulae energia positiva.

Daí conclui-se: uma partícula relativística de massa não nula e energia positiva e momento linear pµ possui2s + 1 estados, associados ao spin.

De fato, de (3.29) e (3.36), conclui-se que

~W = m~J = m~S

e portanto os estados quânticos correspondem a

|pµ, s〉

onde s corresponde ao spin.Pausa para a reflexão: acabamos de provar, baseados unicamente na teoria de representações do

grupo de Poincaré, que toda partícula relativística com massa não nula possui graus de liberdade asso-ciados a spin. Esta é a demonstração mais fundamental do fato de que a relatividade restrita impõe aintrodução, na teoria quântica, do conceito de spin.

1º Caso: partículas com massa nula, p2 = 0 e p0 > 0

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34 CAPÍTULO 3. SIMETRIA RELATIVÍSTICA

Partículas de massa nula viajam com a velocidade da luz e portanto não possuem referencial derepouso. Contudo, sempre podemos escolher um referencial em que o momento linear assume a forma

kµ =(

p0, 0, 0, p0) . (3.37)

De fato, de (3.29) e (3.37), pode-se mostrar que

W0 = W3 = p0 J3 . (3.38)

Introduzindo o conceito de helicidade, como sendo a projeção do momento angular na direção do movi-mento,

λ =~p ·~j|~p|

vemos que, neste casoλ = J3 . (3.39)

Um pouco de trabalho algébrico permite também demostrar que

[W1, W2] = 0 ,

e, consequentemente,W2 = WµWµ = λ+λ− , (3.40)

ondeλ± = W1 ± iW2 . (3.41)

Por fim, a relação de comutação[λ, λ±] = ±λ± , (3.42)

significa que λ± podem ser interpretados como operadores de subida e descida para autovalores de λ.Ou seja, se |α, β〉 satisfazem,

W2 |α, β〉 = α |α, β〉λ |α, β〉 = β |α, β〉 , (3.43)

entãoλ+ |α, β〉 = aα,β |α, β + 1〉 ; λ− |α, β〉 = bα,β |α, β− 1〉 . (3.44)

Até agora, não especificamos quais os valores de α e β, o que passaremos a fazer agora. De (3.44)concluímos que se β0 pertence ao espectro de λ, então β0 ± n, onde n ∈ Z, também deve pertencer. Poroutro lado, de (3.39) vem que λ é o operador que gera rotações em torno do eixo z, e portanto está sujeitoà restrição de que uma rotação pelo ângulo de 2π deve resultar num sinal, ou seja

ei2π J3 |α, β〉 = ei2πλ |α, β〉 = ei2πβ |α, β〉 = ± |α, β〉 ,

e portanto, β deve ser necessariamente inteiro ou semi-inteiro. Isso significa que o espectro de β é daforma

β ∈ 0,±1,±2, . . .

ou

β ∈

0,±12

,±32

, . . .

.

Até agora, o raciocínio é muito parecido como o que é feito ao se estudar as repreentações da álgebrade momento angular. Neste ponto, nos perguntamos se o espectro de β pode ser finito. Isso claramentedepende se aα,β e bα,β podem se anular para algum valor máximo e mínimo de β, respectivamente.

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3.3. ESTADOS DE UMA PARTÍCULA RELATIVÍSTICA 35

Contudo, a imposição de que os geradores da álgebra são todos hermitianos significa que (Wµ)† =

Wµ e, portanto, de (3.41) segue que (λ+)† = λ− e portanto usando (3.40) e (3.43)

α2 =⟨α, β

∣∣W2∣∣ α, β⟩

= 〈α, β |λ+λ−| α, β〉

= |λ− |α, β〉|2 =∣∣bα,β

∣∣2 .

Por outro lado

a∗α,β = (〈α, β + 1 |λ+| α, β〉)∗

= 〈α, β |λ−| α, β + 1〉 = bα,β+1 .

Destas duas últimas relações, se α 6= 0, então aα,β e bα,β não se anulam para qualquer valor de β. Isso significaque a representação é infinito-dimensional, e uma partícula de massa nula teria um número infinito degraus de liberdade, associado ao valor de β. Tal situação não é considerada aceitável, e portanto estapossibilidade é descartada.

Resta assim apenas a possibilidade que α = 0, o que por sua vez implica que aα,β e bα,β são identica-mente nulos, bem como os operadores λ±. Neste caso, não há operador de subida e descida para β, e oespaço de estados é descrito pelos vetores

|pµ, β〉

onde β, como já afirmamos, é inteiro ou semi-inteiro fixo.Uma sutileza aqui, contudo: até o momento consideramos apenas transformações de Lorentz conti-

das em L↑+. Ao considerar as transformações discretas, P e T, contudo, vamos mostrar logo mais que Pinverte o sinal de β, ou seja,

U (P, 0) |β〉 = |−β〉 .

Portanto, se consideramos uma partícula cujas interações respeitam a simetria de paridade, temos queincluir também no espaço de estados o estado com sinal trocado de β. Neste caso, dizemos que: umapartícula relativística de momento pµ de massa nula possui no máximo 2 estados, correspondes aos dois sinais dahelicidade λ.

Esta afirmação se aplica, por exemplo, ao fóton. O fóton é uma partícula de spin 1 que, como veremos,será representada na TQC por um campo vetorial Aµ, de quatro componentes. O que acabamos demostrar foi que um fóton de determinado momento deve ter dois estados quânticos, que correspondemfisicamente às duas polarizações possíveis da radiação eletromagnética. O mesmo pode-se dizer dográviton, a partícula que deve descrever a interação gravitacional numa teoria quântica da gravitação(ao menos em baixas energias): embora a partícula tenha spin 2, ela terá apenas 2 estados quânticos.

A teoria de representação do grupo de Poincaré, que discutimos aqui, é bastante complexa. Masmesmo ao leitor que não seja afeito a tais digressões matemáticas, esperamos que os resultados obtidos,pela sua generalidade, sejam relevantes:

• Toda partícula relativística de massa não nula e energia positiva e momento linear pµ possui 2s + 1 estados,associados ao spin.

• Toda partícula relativística de massa nula, energia positiva e momento pµ, possui no máximo 2 estados,correspondes aos dois sinais da helicidade.

Note que tais conclusões vieram apenas da aplicação dos princípios mais elementares da mecânica quân-tica, e do estudo da estrutura do grupo de simetria associado à Relatividade Restrita. Ou seja: não foifeita nenhuma consideração sobre modelos específicos, e sequer foi feito uso de todo ferramental daTQC que iremos introduzir a partir do próximo capítulo.

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36 CAPÍTULO 3. SIMETRIA RELATIVÍSTICA

3.4 Simetrias Discretas

Lembramos ao leitor que existem duas transformações de Lorentz que não pertencem a L↑+ e que portantoainda não levamos em conta:

P =

[1 00 − 3×3

]; T =

[−1 00 3×3

]. (3.45)

Deixamos estas transformações de lado basicamente por dois motivos,

• matematicamente, porque elas não pertencem a L↑+, que é o setor do grupo de Lorentz continua-mente conectado à identidade, e que portanto pode ser estudado via sua álgebra de Lie,

• fisicamente, porque P e T não são simetrias exatas, já que as interações fracas violam tanto P quantoT.

Vamos agora supor que estejamos em uma teoria em que o segundo motivo não se aplica, e portantoestamos interessados em estudar os operadores unitários U (P, 0) e U (T, 0). De ora em diante, vamosadotar o abuso de notação:

U (P, 0) = P ; U (T, 0) = T . (3.46)

Vamos estudar produtos de operadores similares ao da equação (3.18), agora envolvendo os opera-dores P e T:

P U (Λ, a) P−1 = U(

P ·Λ · P−1, Pa)

(3.47)

eT U (Λ, a) T−1 = U

(T ·Λ · T−1, Ta

). (3.48)

Consideramos agora a transformação infinitesimal U (Λ, a) = U ( + δω, δε) e utilizamos a expansão(3.17). Contudo, vamos tomar a prevenção de manter os fatores de i na posição original em que elesaparecem, por motivos que logo ficarão claros. Iremos encontrar relações similares a (3.19),

P iMαβ P−1 = iPαµPβ

ν Mµν , (3.49)

P iPα P−1 = iPαµPµ , (3.50)

T iMαβ T−1 = iTαµTβ

ν Mµν , (3.51)

T iPα T−1 = iTαµPµ . (3.52)

Considere a equação (3.50) para α = 0,

P iP0 P−1 = i P0µ︸︷︷︸

+δ0µ

Pµ = +iP0 .

Considerando que P0 corresponde à energia (e na teoria quântica deverá assumir o papel de Hamiltoni-ana), claramente seria indesejável se a simetria de paridade levasse uma partícula com E > 0 a uma comE < 0. Por isso, exigimos que P i = i P, o que significa que P é um operador linear, e garantimos assimque a Hamiltoniana é invariante por paridade,

P H P−1 = H . (3.53)

Considere, contudo, (3.52) para α = 0:

T iP0 T−1 = i T0µ︸︷︷︸

−δ0µ

Pµ = −iP0 .

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3.4. SIMETRIAS DISCRETAS 37

Se o operador T fosse linear, P0 seria levado a −P0 pela simetria de inversão temporal, o que queremosevitar pois queremos uma teoria quântica envolvendo apenas partículas com energias positivas. Somosforçados, portanto, a admitir que o operador T é antilinear:

Tα = α∗T , α ∈ C ,

de forma queT iP0 T−1 = (−i) T P0 T−1 = −iP0 ,

logoT H T−1 = H . (3.54)

Usando a antilinearidade de T, podemos finalmente escrever, das eqs. (3.49) a (3.52):

P Mαβ P−1 = PαµPβ

ν Mµν , (3.55a)

P Pα P−1 = PαµPµ , (3.55b)

T Mαβ T−1 = −TαµTβ

ν Mµν , (3.55c)

T Pα T−1 = −TαµPµ . (3.55d)

É conveniente reescrever as eqs. (3.55) em termos dos geradores Ji ∼ Mij e Ki ∼ Mi0, bem comoP0 = H e Pi. O leitor deve convencer-se que o resultado é

P~J P−1 = +~J , (3.56a)

P ~K P−1 = −~K , (3.56b)

P ~P P−1 = −~P , (3.56c)

P H P−1 = +H , (3.56d)

T~J T−1 = −~J , (3.57a)

T ~K T−1 = +~K , (3.57b)

T ~P T−1 = −~P , (3.57c)

T H T−1 = +H , (3.57d)

Quando discutimos a representação do grupo de Poincaré para partículas sem massa, afirmamos que

P |β〉 = |−β〉

onde β é um autovetor deλ = ~J · ~P .

Usando as relações (3.56), vemos que

P~J · ~P P−1 = P~J P−1︸ ︷︷ ︸~J

P · ~P P−1︸ ︷︷ ︸−~P

= −~J · ~P ,

o que prova que realmente a operação de paridade inverte o sinal do autovalor de λ.

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38 CAPÍTULO 3. SIMETRIA RELATIVÍSTICA

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Capıtulo 4Quantização Canônica do Campo Escalar

4.1 A Quantização Canônica do Campo Escalar Complexo

Até o presente momento, discutimos as consequências da simetria relativística na Mecânica Quântica deuma forma completamente geral e independente de modelos, de forma que as conclusões a que chega-mos não dependem de propriedades de uma formulação específica da Teoria Quântica de Campos. Oponto de vista que tentamos advogar é que estamos “descobrindo” as propriedades que esperamos deuma TQC, desde que esta se propõe como uma teoria quântica plenamente consistente com a Relativi-dade Geral.

Neste capítulo, vamos estudar uma primeira TQC específica, partindo da Lagrangeana clássica doCampo Escalar Complexo,

L = ∂µφ∂µφ∗ −m2 |φ|2 , (4.1)

e construindo, a partir dela, uma teoria quântica que satisfaz as propriedades esperadas.

Antes de mais nada, vamos considerar que tipo de partículas esperamos que o campo escalar possadescrever. Considere uma transformação de Lorentz xµ → x′µ = Λµ

νxν que corresponde à passagem deum referencial S para outro referencial S′. O valor do campo escalar num dado ponto do espaço-tempo édenotado por φ (x) no referencial S. No referencial S′, o mesmo ponto é especificado pelas coordenadasx′ e, em princípio, o valor do campo também pode mudar, de forma que denotaremos por φ′ (x′) o valordo campo neste ponto do espaço tempo, conforme observado por S′.

Por definição, um escalar de Lorentz é uma grandeza que não muda na passagem de um referencial Spara um S′: portanto, para um campo escalar φ (x) impomos que

φ (x) = φ′(x′)

. (4.2)

Por outro lado, fazendo a mudança x → Λ−1x podemos também escrever

φ′ (x) = φ(

Λ−1x)

. (4.3)

Para uma transformação infinitesimal,(Λ−1)µ

ν= δ

µν − δω

µν, em que δω é antisimétrico, e expandindo

até 1ª ordem em δω,

φ′ (x) = φ(xµ − δω

µνxν)

≈ φ (x)− δωµνxν∂µφ (x)

= φ (x)− i2

δωµν [i (xµ∂ν − xν∂µ)] φ (x) ,

39

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40 CAPÍTULO 4. QUANTIZAÇÃO CANÔNICA DO CAMPO ESCALAR

onde, para chegar à última linha, foi usada a antisimetria de δω. Identificando nesta expressão o geradorde uma transformação de Lorentz infinitesimal1,

δφ (x) = − i2

δωµν Mµνφ (x) , (4.4)

chegamos aMµν = i (xµ∂ν − xν∂µ) . (4.5)

Particularizando para as componentes espaciais Mij = Jij, em que Jij = Lij + Sij, e

Lij = xiPj − xjPi ,

é o momento angular orbital e Sij o spin, vemos que para o campo escalar vale que J = L, ou seja, S = 0.É de se esperar, portanto, que o campo escalar possa descrever uma partícula de spin zero. Conforme

o teorema geral discutido no capítulo 3, isso significa que os estados quânticos de uma partícula de massanão nula serão rotulados simplesmente pelas quatro componentes do momento linear pµ.

A construção de uma teoria quântica a partir da Lagrangeana clássica (4.1) é feita a partir de umconjunto de regras que definem uma quantização. O método de quantização mais conhecido é a chamadaquantização canônica, usualmente considerada em cursos elementares de Mecânica Quântica. O nomevem de que esta quantização é baseada na formulação Hamiltoniana para a Mecânica Clássica.

Partindo-se de uma Lagrangeana que tipicamente é da forma

L (qi (t) , qi (t)) = ∑i,j

K (qi) qi qj −V (qi) , (4.6)

define-se os momentos canonicamente conjugados a cada coordenada qi (t),

pi =∂L∂qi

, (4.7)

e a HamiltonianaH = ∑

ipi qi −L (qi, qi) . (4.8)

A teoria quântica é construída a partir desta teoria clássica promovendo as coordenadas qi e momentospi a operador hermitianos qi e pi que satisfazem a uma álgebra definida a partir dos parêntesis de Poissonclássicos,

ih

qi, pj→[qi, pj

]. (4.9)

Uma vez construídos operadores qi e pi que satisfazem esta álgebra (o que usualmente é feito conjunta-mente com a construção do espaço de estados sobre os quais estes atuam), a dinâmica quântica é con-trolada pelo operador Hamiltoniano, obtido da função Hamiltoniana clássica pela substituição qi → qi epi → pi (salvo ambiguidades de ordenamento).

Queremos aplicar as regras da quantização canônica ao campo escalar, partindo da Lagrangeana(4.1); comparando esta equação com (4.6), vemos que ao conjunto discreto de coordenadas qi (t), pode-mos corresponder o conjunto infinito não-enumerável de “coordenadas” φ~x (t) = φ (t,~x), uma para cadaponto do espaço tridimensional, sendo que as somas nos índices de q e p tornam-se integrais em d3x.

Desta forma, podemos definir os momento canonicamente conjugados a φ e φ da seguinte maneira,

Π(x0,~x

)=

∂L∂ (∂0φ)

= ∂0φ(x0,~x

); Π

(x0,~x

)=

∂L∂(∂0φ) = ∂0φ

(x0,~x

), (4.10)

1Note que o sinal negativo aparece por tratar-se de uma transformação de Lorentz inversa, conforme (4.3).

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4.1. A QUANTIZAÇÃO CANÔNICA DO CAMPO ESCALAR COMPLEXO 41

e a Hamiltoniana,

H =

ˆd3x

[Π φ + Π φ−L

],

que, calculada explicitamente, reduz-se a

H =

ˆd3x

[Π Π + (∇φ)

(∇φ)+ m2φ φ

]. (4.11)

Observe que, conforme exercício da Lista, H =´

d3x T00, em que T0ν a corrente conservada associada,pelo teorema de Noether, à simetria de translação xµ → xµ + aµ. Desta forma, lembrando que tipica-mente a Hamiltoniana é associada à energia mecânica total do sistema, podemos identificar T00 como adensidade de energia, e

P0 =

ˆd3x T00 , (4.12)

corresponde efetivamente à componente temporal do tetravetor-momento.Relembramos agora a solução geral para a equação de Klein-Gordon encontrada no capítulo 2,

φ (x) =ˆ

d3k2ω~k

[f~k (x) a~k + f ∗~k (x) b∗~k

], (4.13)

em que

f~k (x) =e−i

(ω~kx0−~k·~x

)(2π)3/2 , (4.14)

e ω~k =√~k2 + m2. Claramente, a~k e b∗~k são o que chamamos anteriormente de φ±

(~k)

; esta mudança denomenclatura é conveniente para tratar da quantização.

Pode-se mostrar que, se promovemos a~k e b~k a operadores que satisfazem as relações de comutação[a~k, a†

~q

]= 2ω~kδ3

(~k−~q

);[b~k, b†

~q

]= 2ω~kδ3

(~k−~q

),

todas os demais comutadores se anulando, então os operadores φ (x) e φ† (x) assim definidos, e oscorrespondentes momentos canonicamente conjugados, satisfazem às relações de comutação,[

φ(x0,~x

), φ(x0,~y

)]=[Π(x0,~x

), Π(x0,~y

)]= 0 ,[

φ(

x0,~x)

, Π(x0,~y

)]= iδ3 (~x−~y) ,

de acordo com a álgebra clássica de Parêntesis de Poisson da teoria clássica, segundo a correspondênciai ·, · → [·, ·].

Daí motivamos a proposta para a teoria quântica do Campo Escalar Complexo: os campos são dadospor

φ (x) =ˆ

d3k2ω~k

[f~k (x) a~k + f ∗~k (x) b†

~k

], (4.15a)

Π (x) = ∂0φ† (x) = iˆ

d3k2ω~k

ω~k

[f ∗~k (x) a†

~k− f~k (x) b~k

], (4.15b)

onde os operadores a~k e b~k satisfazem[a~k, a†

~q

]= 2ω~kδ3

(~k−~q

);[b~k, b†

~q

]= 2ω~kδ3

(~k−~q

). (4.16)

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42 CAPÍTULO 4. QUANTIZAÇÃO CANÔNICA DO CAMPO ESCALAR

O operador Hamiltoniano obtêm-se diretamente de (4.11) substituindo-se os campos pelos corres-pondentes operadores. O uso de (4.15) e (4.16) permite reescrever a Hamiltoniana em termos dos opera-dores a~k e b~k da seguinte forma,

H =

ˆd3k2ω~k

ω~k

[a†~k

a~k + b~k b†~k

]. (4.17)

Finalmente, calculamos a álgebra deH com os operadores a~k e b~k, obtendo

[H, a~k

]= −ω~k a~k ;

[H, a†

~k

]= +ω~k a†

~k, (4.18a)[

H, b~k]= −ω~k b~k ;

[H, b†

~k

]= +ω~k b†

~k. (4.18b)

Estas relações já devem ser conhecidas do leitor, significam que tanto a~k, a†~k

quanto b~k, b†~k

são operadoresque sobem e descem o autovalor do operador H pela quantidade ω~k. Por exemplo, se H |E〉 = E |E〉,então

Ha~k |E〉 =([H, a~k

]+ a~kH

)|E〉 =

(E−ω~k

)a~k |E〉 .

Ou seja, o operador a~k diminui a energia do estado pela quantidade ω~k =√~k2 + m2, que corresponde

justamente à energia de uma partícula relativística de massa m e momento linear~k. Isso nos motiva ainterpretar a~k como o operador que destrói uma partícula. De forma similar, a†

~ksatisfaz

Ha†~k|E〉 =

(E + ω~k

)a†~k|E〉 ,

e portanto interpretamos a†~k

como o operador que cria uma partícula. Exatamente o mesmo pode-se

dizer dos operadores b~k e b†~k

.

Para distinguir o papel dos operadores a e b, temos que considerar outra simetria da Lagrangeana(4.1): a simetria de fase

φ→ φeiqθ ; φ→ φe−iqθ , (4.19)

em que θ ∈ [0, 2π] e q é um número real positivo arbitrário. A transformação infinitesimal é dada por

δφ (x) = iqεφ (x) ; δφ (x) = −iqεφ (x) . (4.20)

Lembramos aqui a expressão derivada no capítulo 2 para a corrente de Noether associada a umasimetria qualquer, devidamente generalizada para o caso do campo complexo, e omitindo termos quenão serão aqui necessários,

Cµ ≡(

δxν

δε

)[· · ·]−(

δφ

δε

)∂L

∂[∂µφ

] −(δφ

δε

)∂L

∂[∂µφ

] ,

em que δxµ =(

δxµ

δε

δφ =(

δφδε

.

Comparando com (4.20),(

δxµ

δε

)= 0 (pois a transformação de fase não modifica as coordenadas x) e

(δφ

δε

)= iqφ (x) ;

(δφ

δε

)= iqφ (x) ,

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4.1. A QUANTIZAÇÃO CANÔNICA DO CAMPO ESCALAR COMPLEXO 43

o que leva à corrente de Noether

Cµ = −(

δφ

δε

)︸ ︷︷ ︸

iqφ

∂L∂∂µφ︸ ︷︷ ︸

∂µφ

−(

δφ

δε

)︸ ︷︷ ︸−iqφ

∂L∂∂µφ︸ ︷︷ ︸

∂µφ

,

ou seja,

Cµ (x) = iqφ (x)←→∂µ φ (x) , (4.21)

lembrando que A←→∂ B = A∂B− (∂A) B. Obtemos assim a grandeza conservada associada à simetria de

fase,

Q =

ˆd3x C0 (x) = iq

ˆd3x φ (x)

←→∂µ φ (x) . (4.22)

Na teoria quântica, definimos o operador Q substituindo os campos pelos correspondentes operado-res. Usando (4.16), reescreveremos Q em termos de a e b da forma

Q = qˆ

d3k2ω~k

[a†~k

a~k − b~k b†~k

]. (4.23)

Precisamos calcular os comutadores de Q com a e b, e com a HamiltonianaH; os resultados são[Q, a~k

]= −qa~k ;

[Q, a†

~k

]= +qa†

~k, (4.24a)[

Q, b~k]= +qb~k ;

[Q, b†

~k

]= −qb†

~k. (4.24b)

e [H, Q

]= 0 . (4.25)

A segunda equação nos diz que podemos considerar vetores que são autoestados simultâneos deH e Q,

H |E, Q〉 = E |E, Q〉 ; Q |E, Q〉 = Q |E, Q〉 , (4.26)

enquanto que as primeiras indicam que a~k, a†~k

são operadores que descem/sobem o autovalor de Q por

uma unidade q, enquanto que os papéis de b~k, b†~k

são trocados. Por hora, não temos nenhuma razãopara dar um nome especial ao valor Q, mas mais adiante, quando estudarmos o campo eletromagnético,veremos que será natural interpretar Q como sendo a carga elétrica. Vamos adotar esta identificação deora em diante.

Os resultados até agora obtidos sobre os operadores a~k e b~k nos sugerem que eles estão associadosa operadores de criação/aniquilação de partículas. Para proceder à construção explícita do espaço deestados onde atuam todos os operadores que consideramos, vamos postular a existência de um estado devácuo, que é definido como o estado de menor valor de energia do sistema, denotado por |0〉. Segundo (4.18),o que caracteriza o vácuo é que

a~k |0〉 = b~k |0〉 = 0 . (4.27)

Atuando no vácuo, o operador a†~k

aumenta o valor de carga por +q e de energia por +ω~k. Por outro

lado, o operador b†~k

diminui o valor de carga por −q e aumenta o de energia por +ω~k. Podemos dizerque,

• a†~k

cria uma partícula de carga positiva +q e energia positiva +ω~k

• a~k destrói uma partícula de carga positiva +q e energia positiva +ω~k

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44 CAPÍTULO 4. QUANTIZAÇÃO CANÔNICA DO CAMPO ESCALAR

• b†~k

cria uma partícula de carga negativa −q e energia positiva +ω~k

• b~k destrói uma partícula de carga negativa −q e energia positiva +ω~k

Vemos que nossa teoria inclui apenas partículas de energia positiva, de forma que não temos os proble-mas de instabilidade discutidos no capítulo 1. Por outro lado, o campos escalar complexo descreve doistipos de partículas, de mesma massa mas cargas de sinais opostos. Assim como no capítulo 1, vemosque a mecânica quântica relativística naturalmente descreve partículas e antipartículas.

O estado geral|~q1, . . . ,~qn;~p1, . . . ,~pm〉 = a†

~q1· · · a†

~qnb†~p1· · · b†

~pm|0〉 , (4.28)

pode ser interpretado como um estado de n partículas idênticas com momentos ~q1, . . . ,~qn e m antipar-tículas idênticas de momentos ~p1, . . . ,~pm. Note que como os a†’s e os b†’s comutam entre si, o estado|~q1, . . . ,~qn;~p1, . . . ,~pm〉 é simétrico por qualquer permutação envolvendo os~qi ou os ~pi, exatamente o quese espera de um estado que representa um sistema de bósons idênticos.

No caso de um campo escalar real, devemos ter

φ (x) = φ† (x) ,

o que, observando (4.15), implicaa~k = b~k .

Note que, neste caso, Q = 0. Temos portanto apenas um conjunto de operadores de criação e aniquilaçãode partículas neutras de massa m. Note que, consistentemente, a Lagrangeana de um campo escalar realnão é invariante frente à transformação de fase (4.19).

Definindo

φ+ (x) =ˆ

d3k2ω~k

f ∗~k (x) a†~k

; φ− (x) =ˆ

d3k2ω~k

f~k (x) a~k ,

podemos construir um estado

|x〉 = φ+ (x) |0〉 =ˆ

d3k2ω~k

f ∗~k (x)∣∣∣~k⟩ ,

que corresponde a uma superposição linear de autoestados de momento linear para~k totalmente arbitrá-rio. Considerando a relação de incerteza da mecânica quântica não-relativística ∆x∆p ∼ 1, se ∆p → ∞esperaríamos ter ∆x → 0, e portanto poderíamos esperar que |x〉 corresponda a um estado de umapartícula perfeitamente localizada no ponto x. Contudo, calculando a amplitude de probabilidade deencontrar a partícula descrita pelo estado

∣∣x0,~x⟩

num outro ponto arbitrário ~y, encontramos⟨x0,~y

∣∣ x0,~x⟩=⟨0∣∣φ− (x0,~y

)φ+(x0,~x

)∣∣ 0⟩

=1

(2π)3

ˆd3k2ω~k

e−i~k·(~x−~y) . (4.29)

Não fosse o fator 1/2ω~k que compõe a medida de integração relativisticamente invariante, teríamos´d3k e−i~k·(~x−~y) ∼ δ3 (~x−~y), o que justificaria a identificação de

∣∣x0,~x⟩

como um estado de uma partículaperfeitamente localizada. Contudo, calculando-se explicitamente a integral em (4.29) obtemos

⟨x0,~y

∣∣ x0,~x⟩∼ K1 (mr)

r, (4.30)

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4.2. DIVERGÊNCIAS ULTRAVIOLETAS NA TEORIA DE CAMPOS 45

onde K1 é uma função de Bessel, e r = |~x−~y|. No limite mr 1,

K1 (mr) ∼ e−mr√

mr, (4.31)

de forma que o máximo que podemos dizer é que a partícula está bem localizada numa região de raior ∼ 1/m ao redor de ~x.

Fisicamente, este resultado é consistente com o que esperamos de uma teoria quântica relativística.Afinal, localizar uma partícula com uma precisão da ordem ∆x ∼ 1/m implica na utilização de umapartícula teste com momento da ordem ∆p ∼ m ou, equivalentemente, energia da ordem ∆E ∼ m.Esta quantidade de energia é suficiente para criar pares de partículas/antipartículas de massa m, o queefetivamente acontece numa teoria relativística, inviabilizando portanto a localização da partícula inicial.

4.2 Divergências Ultravioletas na Teoria de Campos

Note que até o momento, tomamos cuidado de definir o estado de vácuo como o estado de menorenergia, mas não dissemos qual o valor desta energia; também não afirmamos qual a carga do vácuo.Vamos considerar agora a resposta a estas duas perguntas, ou seja, vamos calcular 〈0 |H| 0〉 e

⟨0∣∣Q∣∣ 0

⟩.

Calculando a energia do vácuo:

〈0 |H| 0〉 =ˆ

d3k2ω~k

ω~k

⟨0∣∣∣a†~k

a~k + b~k b†~k

∣∣∣ 0⟩

. (4.32)

Como o vácuo é aniquilado por a~k, o primeiro termo se anula. No segundo, escrevemos

b~k b†~k=[b~k, b†

~k

]︸ ︷︷ ︸2ω~kδ3

(~0)+ b†

~kb~k ,

e apenas o termo com o comutator sobrevive, fornecendo

〈0 |H| 0〉 =ˆ

d3k

(2π)3 ω~k︸ ︷︷ ︸→∞

× (2π)3 δ3(~0)

︸ ︷︷ ︸→∞

. (4.33)

Encontramos um resultado que é o produto de dois fatores divergentes. Fisicamente, a energia do vácuonão pode ser infinita, de forma que claramente temos um problema. Esta é apenas a primeira das váriasdivergências que encontraremos em Teorias de Campo, então vamos agora buscar entender um poucoda origem deste problema, antes de mostrar como tratá-lo.

Formalmente, podemos escrever o segundo fator divergente em (4.33) da forma

(2π)3 δ3(~0)=

ˆd3x ei~0·~x︸︷︷︸

1

= V , (4.34)

onde V é o volume (infinito) do espaço. Podemos eliminar esta divergência considerando que o espaçoseja finito, com xi ∈ [−L/2,+L/2], ou seja, uma caixa tridimensional de aresta L. Neste caso,

V = L3 = finito .

Parte da divergência de 〈0 |H| 0〉 vem, portanto, de supor que o espaço é infinito. Esta conclusão énatural na relatividade restrita mas, na relatividade geral, o universo pode ser muito bem fechado e

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46 CAPÍTULO 4. QUANTIZAÇÃO CANÔNICA DO CAMPO ESCALAR

limitado, por exemplo, então talvez esta divergência venha apenas de uma aproximação não-adequadapara a natureza global do espaço-tempo. Contudo, ainda resta um fator divergente a considerar. No casoem que o universo é uma caixa limitada, a expansão de Fourier de qualquer campo passa a ser sobre umconjunto discreto de momentos ki =

2πL ni, de forma que temos,

〈0 |H| 0〉 = 1

(2π)3 ∑ni∈Z

√∑ (ki)

2 + m2

︸ ︷︷ ︸→∞

×V . (4.35)

Figura 4.1: Representação esquemática deque, examinando o espaço-tempo em escalasde comprimento cada vez menores, eventual-mente as flutuações quânticas da própria geo-metria tornam-se aparentes, e perde-se a “su-avidade” característica da noção de variedadediferenciável.

O outro fator divergente vem de considerarmos, naexpansão de Fourier

φ (x) ∼ ∑ni∈Z

ei~ki ·~xφ~ki,

valores arbitrariamente altos de ni e, consequente-mente, de~ki. Vejamos o que isto significa, fisicamente:um modo de Fourier de momento da ordem Λ im-plica, no espaço real, numa resolução da ordem de∆x ∼ 1/Λ. Permitir que Λ → ∞ significa essenci-almente que podemos discernir pontos com separaçãoespacial arbitrariamente pequena, ∆x → 0. Esta su-posição matematicamente é expressa no fato de que,em todas as teorias físicas atualmente aceitas, o espaço-tempo é descrito por uma variedade diferenciável – emsuma, um conjunto contínuo de pontos. O formalismomatemático destas teorias permite, em princípio, dis-tinguir pontos do espaço-tempo com uma precisão ar-bitrariamente alta.

Esta talvez seja uma suposição forte demais. Pri-meiro, porque todas as experiências e observações fei-tas até o momento envolvem partículas com energiafinita, e pode não ser válido extrapolar estes resulta-dos para escalas de energia arbitrariamente alta. Se-gundo, existem argumentos de que, em escalas de com-primento muito pequenas, efeitos quânticos da gravi-tação devem se tornar importantes. Não existe aindauma teoria de gravitação quântica bem estabelecida,mas várias propostas sugerem que a estrutura de varie-dade diferenciável pode não servir para descrever bemo espaço-tempo em tais escalas – sendo na verdade umaaproximação válida para comprimentos maiores. Valelembrar que, na Relatividade Geral, a geometria é de-

finida pela métrica gµν (x), que é justamente o campo cuja quantização deve descrever os grávitons.As flutuações quânticas do campo gµν (x) representam flutuações quânticas na própria geometria doespaço-tempo, que deve perder a “suavidade” característica de uma variedade diferenciável (figura 4.1).

O matemático Alain Connes2 desde a década de 1980 defende que o espaço-tempo é descrito naverdade por uma geometria não-comutativa, uma generalização dos conceitos de geometria usual, capazde descrever as modificações da gravitação quântica. Uma das motivações de Connes é aplicar para o

2Connes, A., Noncommutative Geometry, Academic Press, 1994.

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4.2. DIVERGÊNCIAS ULTRAVIOLETAS NA TEORIA DE CAMPOS 47

espaço-tempo o mesmo que acontece como o espaço de fase na transição da Mecânica Clássica para aMecânica Quântica: um espaço tradicional, com coordenadas qi, pi é substituído por uma estrutura maiscomplexa, em que qi, pi tornam-se operadores que não-comutam entre si. Da mesma forma, sugere-seque as coordenadas xµ do espaço-tempo tornem-se operadores não-comutantes xµ → xµ.

Na década de 1990, Doplicher et al3 usaram argumentos de gravitação semiclássica para argumen-tar que é fisicamente impossível discernir dois pontos do espaço-tempo com precisão melhor do que ocomprimento de Planck `P ∼ 10−35m. Para tanto, consideraram que a medida da posição de uma par-tícula com precisão δx implica necessariamente no uso de uma partícula teste com momento da ordemδp ∼ 1/δx, e portanto energia da mesma ordem. Se δx é pequeno, tal processo de medida necessari-amente envolve uma concentração de energia muito alta num espaço muito pequeno – o que implicanuma densidade de energia-momento muito alta. Esta densidade, por sua vez, é fonte do campo gravitaci-onal. Se δx ∼ `P, este campo gravitacional torna-se tão forte que forma um horizonte de eventos, que“esconde” o sistema e portanto impede a medição. Desta forma, a noção de “ponto” no espaço-tempoperde o sentido operacional, da mesma forma como a noção de “simultaneidade absoluta” perdeu osentido operacional na passagem da mecânica clássica para a relativística, por exemplo.

Todos estes argumentos, embora não definitivos porque em última instância tratam de uma escalade comprimentos para as quais não temos uma teoria bem estabelecida, sugerem que tomar |ni| → ∞em (4.35) seja uma aproximação fisicamente não-justificável e que, sendo mais cuidadosos, temos quesupor a existência de uma corte ultravioleta, um valor máximo para um momento ~ki que faça sentidofisicamente, ∣∣∣~ki

∣∣∣ < Λ . (4.36)

Considerando este corte ultravioleta, temos finalmente um valor finito para a energia do vácuo,

〈0 |H| 0〉 = 1

(2π)3 ∑|ki |<Λ

√∑ (ki)

2 + m2 ×V = finito . (4.37)

Melhor que isto, podemos facilmente ajustar a teoria para que a energia do vácuo seja nula. Basta consi-derar como ponto de partida, ao invés de (4.1) a Lagrangiana

L = ∂µφ∂µφ∗ −m2 |φ|2 + Ω0 ,

em que Ω0 é uma constante que não altera em nada as equações de movimento. A Hamiltoniana quânticaque obtemos neste caso torna-se

H = ∑ ω~k

[a†~k

a~k + b~k b†~k

]−Ω0V ,

e portanto,

〈0 |H| 0〉 = 1

(2π)3 ∑|ki |<Λ

√∑ (ki)

2 + m2 ×V −Ω0V .

Podemos ajustar o valor de Ω0 para Ω0 = 1(2π)3 ∑|ki |<Λ

√∑ (ki)

2 + m2, e desta forma, obtemos

〈0 |H| 0〉 = 0 ,

um resultado fisicamente bastante razoável.Neste ponto, podemos agora remover o limite ultravioleta Λ e voltar a considerar o espaço-tempo

como infinito, e pelo menos no que concerne ao valor da energia de vácuo, nenhuma divergência éencontrada.

3Doplicher et al, Commun. Math. Phys. 172, 187 (1995); Phys. Lett. B 331, 39 (1994).

Page 48: Teoria Quantica de Campos  Prof. Alysson F. Ferrari

48 CAPÍTULO 4. QUANTIZAÇÃO CANÔNICA DO CAMPO ESCALAR

Pausa para reflexão: conseguimos eliminar a divergência que encontramos inicialmente por um pro-cedimento de duas etapas. Primeiro, tivemos que tornar a teoria finita, para que pudéssemos manipularconsistentemente as expressões formalmente divergentes – isto se chama de regularização. Segundo,introduzimos uma constante arbitrária na teoria, que pudemos ajustar para cancelar o termo que for-malmente diverge – o que se chama de renormalização. Após feito este cancelamento, podemos removera regularização, obtendo um resultado finito. Dizemos que renormalizamos a teoria.

Modernamente, acredita-se que a existência das divergências nas teorias quânticas de campos signi-fica que ao considerar momentos arbitrariamente altos no formalismo, estamos fazendo uma extrapo-lação que não é válida fisicamente. A TQC é portanto uma teoria efetiva que descreve bem a física emescalas de energia bem abaixo de um corte ultravioleta Λ, e ao extrapolar a TQC para o regime de ener-gias maiores que Λ surgem as divergências. Não conhecemos ainda a teoria física que funciona nesteregime de energias miores do que Λ. Para alguns modelos, contudo, o procedimento de renormalizaçãoesboçado acima é suficiente para eliminar todas as divergências do cálculo de grandezas observáveis.Estes modelos são chamados de renormalizáveis, e são modelos quânticos que podem ser construídosconsistentemente, apesar da extrapolação para momentos maiores que Λ: a renormalização consegue“esconder” nossa ignorância sobre o que acontece para energias maiores que Λ. O Modelo Padrão dasPartículas Elementares é uma TQC renormalizável, mas este já não é o caso da gravitação, por exemplo.

No caso particular da divergência da energia do vácuo, podemos tratar formalmente do problemadefinindo o “produto normal”, ou “forma normal”, ou “ordenamento normal”,

: H := H− 〈0 |H| 0〉 , (4.38)

tal que, por construção, 〈0 | : H :| 0〉 = 0. Como

〈0 |H| 0〉 =ˆ

d3k2ω~k

ω~k

⟨0∣∣∣a†~k

a~k + b~k b†~k

∣∣∣ 0⟩=

ˆd3k2ω~k

ω~k

[b~k, b†

~k

]temos,

: H : =ˆ

d3k2ω~k

ω~k

(a†~k

a~k + b~k b†~k−[b~k, b†

~k

])=

ˆd3k2ω~k

ω~k

(a†~k

a~k + b†~k

b~k)

. (4.39)

Desta forma, podemos alternativamente definir o produto normal como sendo a operação que rearranja osoperadores de criação/aniquilação, fazendo com que os primeiros fiquem à esquerda dos segundos.

De (4.38) é claro que a diferença entre o operador e sua forma normal é um número, e portanto

[H,O] = [H− 〈0 |H| 0〉 ,O] = [: H :,O] ,

ou seja, comutadores são invariantes frente à ordem normal. Isto significa que podemos, sem prejuízopara as conclusões que obtivemos até agora, redefinir todos os operadores compostos com que lidamosusando o ordenamento normal,

H =

ˆd3k2ω~k

ω~k

(a†~k

a~k + b†~k

b~k)

, (4.40a)

Q = qˆ

d3k2ω~k

(a†~k

a~k − b†~k

b~k)

, (4.40b)

de tal forma que, por construção, o estado do vácuo tem energia e carga nulos.

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4.3. INVARIÂNCIA RELATIVÍSTICA 49

De ora em diante, sempre que considerarmos uma expressão clássicaO = F(φ, φ

), o correspondente

operador quântico incluirá o ordenamento normal:

O =: F(

φ, φ†)

: , (4.41)

o que já automaticamente eliminará as divergências do tipo encontradas nesta seção. Isto é suficientepara remover divergências da teoria livre, de forma que sequer precisaríamos ter discutido o conceitode “renormalização”. Contudo, na teoria em interações, encontraremos novas divergências que nãosão eliminadas por este procedimento, quando então teremos que fazer uso de todo o ferramental daRenormalização para conseguir eliminá-las.

A definição do produto normal aproveita-se de uma ambiguidade presente no formalismo que esta-mos construindo: o produto de operadores num mesmo ponto do espaço-tempo não está bem definido. Um rápidocálculo nos mostra que, por exemplo,⟨

0∣∣∣φ (x) φ† (y)

∣∣∣ 0⟩∼ˆ

d3k2ω~k

e−i[ω~k

(x0−y0)−~k·(~x−~y)] ,

e enquanto x 6= y a integral está bem definida, se x → y ela diverge. Um produto da forma φ (x) φ† (x)não está portanto matematicamente bem definido, e o ordenamento normal pode ser visto como umadefinição formal deste produto.

Numa abordagem menos formal, o que se faz é desistir de trabalhar com o valor do operador φ (x)num ponto específico do espaço, e introduzir “operadores suavizados” (“smeared operators”),

φ f =

ˆd4x φ (x) f (x) ,

em que f (x) é uma função bastante suave, e que é diferente de zero numa região muito pequena doespaço-tempo em torno de um determinado ponto x0. Pode-se mostrar que o operador φ f é bem definidomatematicamente, e a chamada “Teoria Quântica de Campos Axiomática” parte deste φ f para provar deforma matematicamente rigorosa vários teoremas gerais sobre as propriedades das Teorias Quânticas deCampo. Esta abordagem não é muito utilizada para cálculos de grandezas observáveis, contudo, porisso não será aqui discutida.

4.3 Invariância Relativística

A escolha da quantização canônica implica na quebra da covariância relativística explícita, já que o forma-lismo trata de forma diferenciada o tempo x0 e as coordenadas ~x. Não é óbvio, portanto, que a teoriaquântica que definimos respeita a Relatividade Restrita.

Já discutimos em muito detalhe no capítulo 3 os requisitos impostos sobre a teoria quântica pelarelatividade: temos que construir operadores hermiteanos Mαβ e Pµ tal que o operador unitário

U (Λ, a) = exp[

i2

δωµν Mµν − iaµPµ ,]

, (4.42)

satisfaça a regra de produto do grupo de Poincaré,

U (Λ2, b)U (Λ1, a) = U (Λ2Λ1, Λ2a + b) , (4.43)

o que mostramos ser equivalente a dizer que os operadores Mαβ e Pµ satisfazem a álgebra de Poincaré[Mµν, Mαβ

]= i(

ηµα Mνβ − ηνα Mµβ + ηµβ Mνα − ηνβ Mµα)

, (4.44a)[Mαβ, Pµ

]= i (ηαµPν − ηανPµ) , (4.44b)

[Pµ, Pν] = 0 . (4.44c)

Page 50: Teoria Quantica de Campos  Prof. Alysson F. Ferrari

50 CAPÍTULO 4. QUANTIZAÇÃO CANÔNICA DO CAMPO ESCALAR

Por outro lado, sobre estados de uma partícula |kµ〉 devemos ter

U (Λ, a) |kµ〉 = e−ia·k ∣∣Λµνkν⟩

. (4.45)

A prova completa da invariância relativística da teoria englobaria a construção explícita dos opera-dores Mαβ e Pµ, e a prova por cálculo direto de que eles satisfazem (4.44) e (4.45). Esta é uma tarefabastante longa, que apenas cumpriremos em parte nesta seção, considerando os operadores Pµ.

O operador P0 = H já foi definido a partir da densidade de Noether T00 associada à simetria portranslações no tempo. De forma similar procederemos para definir Pi, incluindo também o ordenamentonormal,

Pi =

ˆd3x : T0i :=

ˆd3x : ∂0φ∂iφ† + ∂0φ†∂iφ : . (4.46)

Pode-se mostrar que

Pi =

ˆd3k2ω~k

ki(

a†~k

a~k + b†~k

b~k)

. (4.47)

Por cálculo direto, pode-se mostrar que[H, Pi] = [

Pi, Pj] = 0 e que Pi |kµ〉 = ki |kµ〉, ou seja, os estadosde uma partícula |kµ〉 são autovetores do operador Pi. Tudo isto garante que, de fato

U ( , a) |kµ〉 = e−iaµPµ |kµ〉 = e−ia·k |k〉 , (4.48)

mostrando que a invariância por translações está devidamente implementada na teoria quântica, pormeio dos geradoresH e Pi.

Um cálculo interessante a ser feito é o efeito de uma translação sobre o operador de campo,

U ( , a) φ (x)U† ( , a) ,

e para tanto consideramos uma translação infinitesimal,

U ( , ε) φ (x)U† ( , ε) = e−iεµPµφ (x) e+iεµPµ

∼(1− iεµPµ

)φ (x)

(1 + iεµPµ

)∼ φ (x)− iεµ

[Pµ, φ (x)

]. (4.49)

Por cálculo direto, pode-se mostrar que

[Pµ, φ (x)

]=

ˆd3k2ω~k

(−kµ f~k (x) a~k +−kµ f ∗~k (x) b†

~k

),

e−kµ f~k (x) = i

∂xµf~k (x) ,

logo, [Pµ, φ (x)

]= i∂µφ (x) . (4.50)

De (4.49) e (4.50) concluimos que

U ( , ε) φ (x)U† ( , ε) ∼ φ (x) + εµ∂µφ (x) ∼ φ (x + ε) .

De forma que o operador de translação U ( , a) tem a ação esperada sobre os campos,

U ( , a) φ (x)U† ( , a) = φ (x + a) . (4.51)

Por fim, investigamos o efeito de uma translação sobre os operadores de criação/aniquilação. De(4.48),

U ( , a) |kµ〉 = U ( , a) a†~k|0〉 = U ( , a) a†

~kU† ( , a)U ( , a) |0〉 = e−ia·k a†

~k|0〉 .

Page 51: Teoria Quantica de Campos  Prof. Alysson F. Ferrari

4.4. CAUSALIDADE E FUNÇÕES DE GREEN 51

Comparando-se os dois últimos membros da igualde vemos que se o vácuo é invariante por translação,

U ( , a) |0〉 = |0〉 , (4.52)

então deve valerU ( , a) a†

~kU† ( , a) = e−ia·k a†

~k. (4.53)

A equação (4.52) é de particular interesse. Quando uma simetria deixa o vácuo invariante, diz-se que estaé uma boa simetria. Existem muitos casos físicos de interesse, contudo, em que o vácuo não é invariantepor uma simetria da teoria. Neste caso, diz-se que há quebra expontânea da simetria, e este é um efeitochave que aparece, por exemplo, no Modelo Padrão das Partículas Elementares.

4.4 Causalidade e Funções de Green

Figura 4.2: Cone de luz centrado emum ponto do espaço-tempo.

Um dos requerimentos físicos que impomos sobre qualquer teo-ria física é a causalidade: basicamente, efeitos não podem precedersuas causas. No contexto de relatividade restrita, isto é o mesmoque exigir que nenhuma influência pode se propagar mais rapida-mente que a luz. De fato, se um evento localizado em x1 é causade outro evento localizado em x2, então ∆x = x2 − x1 é tal que(∆x)0 > 0, e se o invariante relativístico (∆x)2 for positivo, o sinalde (∆x)0 é invariante por transformações de Lorentz, logo x1 pre-cede x2 em qualquer referencial inercial. Por outro lado, dizer que(∆x)2 > 0 é o mesmo que dizer que x1 e x2 podem ser conectadospor um sinal que viaja com velocidade inferior à da luz. Por isso,dado qualquer evento x1, podemos dizer que os únicos eventosque podem ter qualquer relação causal com x1 são aqueles locali-zados dentro do cone de luz centrado em x1 (ver figura).

Na TQC, operadores observáveis são funções dos campos bá-sicos O = O

(φ, φ†), e como estes campos são localizados no

tempo e no espaço, assim também são os operadores observáveis:O = O

(x0,~x

). Dois observáveis O1 e O2 localizados no espaço-

tempo de forma que um esteja fora do cone de luz do outro re-presentam medidas que não podem ter qualquer influência umasobre a outra: diz-se que O1 e O2 são “causalmente desconexos”.Matematicamente, o que temos que exigir é que os operadores O1 e O2 comutem sempre que foremcausalmente desconexos.

Em resumo, o princípio da causalidade implica que

[O (x1) ,O (x2)] = 0 se (x1 − x2)2 < 0 . (4.54)

Como4 [φ (x) , φ (y)] = 0, a equação anterior é equivalente a[φ (x) , φ† (y)

]= 0 se (x1 − x2)

2 < 0 . (4.55)

Por cálculo direto a partir de (4.15) e (4.16), pode-se mostrar que[φ (x) , φ† (y)

]=

1

(2π)3

ˆd3k2ω~k

[e−iω~k

(x0−y0)

ei~k·(~x−~y) + e+iω~k

(x0−y0)

e−i~k·(~x−~y)]

, (4.56)

4Obviamente, isto só vale para o caso do campo escalar complexo. O leitor atento não terá dificuldade para adaptar estadiscussão ao caso do campo escalar real.

Page 52: Teoria Quantica de Campos  Prof. Alysson F. Ferrari

52 CAPÍTULO 4. QUANTIZAÇÃO CANÔNICA DO CAMPO ESCALAR

fazendo-se~k→ −~k no 1º termo, obtemos[φ (x) , φ† (y)

]=

1

(2π)3

ˆd3k2ω~k

e−i~k·(~x−~y)[e−iω~k

(x0−y0)

+ e+iω~k

(x0−y0)]︸ ︷︷ ︸

−2i sin[ω~k(x0−y0)

],

ou seja, [φ (x) , φ† (y)

]= −i∆ (x− y) , (4.57)

onde

∆ (z) =1

(2π)3

ˆd3k e−i~k·~z sin

(ω~kz0)

ω~k, (4.58)

é a chamada função de Pauli-Jordan. Esta função satisfaz uma série de propriedades importantes que nãodiscutiremos aqui. Citaremos apenas três:

1. ∆ (z)|z0=0 = 0

Uma consequência elementar é que [O(

x0,~x)

,O(x0,~y

)]= 0 ,

ou seja, observações realizadas no mesmo instante, em diferentes pontos do espaço, comutam entresi.

2.(+ m2)∆ (z) = 0

A função de Pauli-Jordan é solução da equação de Klein-Gordon homogênea. Discutiremos logomais a relação dela com as funções de Green desta equação.

3. ∆ (z) = 0 se z2 < 0

Esta propriedade é justamente o que garante a causalidade na TQC. Por cálculo direto (veja apên-dice B) mostra-se que

∆ (z) =1

2πε(z0) δ

(z2)− m

4π√

λθ(z2) ε

(z0) J1

(m√

z2)

, (4.59)

o que claramente satisfaz a propriedade 2.

Uma forma mais simples de provar esta propriedade, mas menos direto, é a seguinte: comecenotando que ∆ (z) é invariante por uma transformação de Lorentz, ou seja,

∆ (Λz) = ∆ (z) . (4.60)

Isto significa que ∆ necessariamente assume o mesmo valor para todos os z que são levados unsaos outros por uma transformação de Lorentz própria Λ ∈ L↑+.

Quando x2 > 0, prova-se que o sinal de x0 é um invariante de Lorentz, de forma que se x2 > 0, ∆pode assumir valores diferentes nos dois hiperbolóides definidos por x0 = ±

√~r2 + x2, ou seja,

∆ (x) = θ(x0) f

(x2)+ θ

(−x0) g

(x2) se x2 > 0 ,

onde f e g são funções arbitrárias, e θ é a função salto de Heavyside. Se x2 < 0, o sinal de x0 já nãoé invariante, logo

∆ (x) = h(x2) se x2 < 0 ,

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4.4. CAUSALIDADE E FUNÇÕES DE GREEN 53

onde h também é uma função arbitrária. Juntando as duas informações:

∆ (x) = θ(x2) [θ (x0) f

(x2)+ θ

(−x0) g

(x2)]+ θ

(−x2) h

(x2) .

Consideremos agora a função sinal ε definida por

ε (x) =

+1, x > 0−1, x < 0

,

que claramente está relacionada com as funções de Heavyside por

θ(x0) = 1

2[1 + ε

(x0)] ; θ

(−x0) = 1

2[1− ε

(x0)] ,

o que nos permite escrever

∆ (x) = θ(

x2) [12(

f(

x2)+ g(x2))︸ ︷︷ ︸

f ′(x2)

+ ε(x0) 1

2(

f(x2)− g

(x2))︸ ︷︷ ︸

g′(x2)

]+ θ

(−x2) h

(x2) ,

onde agora f ′ e g′ podem ser consideradas duas funções arbitrárias. Usando que

θ(−x2) = 1− θ

(x2) ,

chegamos a∆ (x) = h

(x2)+ θ

(x2) [ f ′

(x2)− h

(x2)]︸ ︷︷ ︸

f ′′(x2)

+ ε(

x0) θ(x2) g′

(x2) ,

onde f ′′ é uma função arbitrária (possivelmente descontínua, devido à presença de uma θ).

O que provamos é que qualquer função ∆ (z) que satisfaz ∆ (Λz) = ∆ (z) é necessariamente da forma

∆ (z) = f(x2)+ ε

(x0) θ

(x2) g

(x2) , (4.61)

onde f e g são funções arbitrárias do invariante x2.

Da definição (4.56) é fácil ver que a função de Pauli-Jordan satisfaz

− ∆ (−z) = ∆ (z) . (4.62)

Logo, aplicando (4.61):

−∆ (−z) = − f(x2)− ε

(−x0)︸ ︷︷ ︸−ε(x0)

θ(x2) g

(x2) = − f

(x2)+ ε

(x0) θ

(x2) g

(x2)

= f(x2)+ ε

(x0) θ

(x2) g

(x2) ,

o que significa que, necessariamente, f(x2) = 0, e daí ∆ (z) = ε

(x0) θ

(x2) g

(x2), o que efetiva-

mente se anula se x2 < 0 devido à função de Heavyside.

Note que nesta demostração não somos capazes de dizer exatamente o que acontece em x2 = 0,já que as funções sinal e Heavyside são descontínuas neste ponto. De fato, conforme o cálculoexplicito mostra em (4.59), há um termo adicional, proporcional a δ

(x2), que contudo não invalida

a conclusão principal de que a função de Pauli-Jordan se anula fora do cone de luz, respeitando oprincípio de causalidade.

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54 CAPÍTULO 4. QUANTIZAÇÃO CANÔNICA DO CAMPO ESCALAR

4.5 Funções de Green

A função de Pauli-Jordan ∆ (x− y) está relacionada às funções de Green do operador de Klein-Gordon(+ m2). Vamos discutir esta relação nesta seção.

Considere a equação de Klein-Gordon com um termo de fonte arbitrário j (x),(+ m2) φ (x) = j (x) . (4.63)

Trata-se de uma equação diferencial não-homogênea, cuja solução é da forma

φ (x) = φhomogenea (x) + φparticular (x) , (4.64)

onde(+ m2) φhomogenea = 0. A solução da equação de Klein-Gordon homogênea já foi encontrada

no capítulo 2. A solução particular pode ser encontrada pelo método da função de Green.Defina a função de Green G (x− y) como a solução de(

x + m2)G (x− y) = δ4 (x− y) . (4.65)

Note que indicamos explicitamente que o Laplaciano atua na variável x. Se encontramos a função deGreen definida acima, então encontramos uma solução particular da equação (4.63) na forma,

φparticular (x) =ˆ

d4y G (x− y) j (y) , (4.66)

já que

(x + m2) φparticular (x) =

(x + m2) ˆ d4y G (x− y) j (y)

=

ˆd4y

(x + m2)G (x− y)︸ ︷︷ ︸

δ4(x−y)

j (y)

= j (x) .

Por enquanto, vamos resolver em detalhe a equação (4.65), encontrando a função de Green corres-pondente à equação de Klein-Gordon. Como usual, usamos a técnica de Fourier, G (x− y) =

´ d4k(2π)4 G (k) eik·(x−y)

δ4 (x− y) =´ d4k

(2π)4 eik·(x−y) . (4.67)

Como

xG (x− y) =ˆ

d4k

(2π)4 G (k)xeik·(x−y)︸ ︷︷ ︸−k2eik·(x−y)

,

a equação (4.65) é equivalente a(−k2 + m2) G (k) =

(−(k0)2

+~k2 + m2)

G (k) =(−(k0)2

+ ω2~k

)G (k) = 1 .

A solução é imediata,

G (k) = − 1

(k0)2 −ω2~k

,

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4.5. FUNÇÕES DE GREEN 55

e portanto,

G (x− y) = −ˆ

d4k

(2π)4eik·(x−y)

(k0)2 −ω2~k

. (4.68)

Queremos calcular a integral

G (z) = − 1

(2π)4

ˆd3k e−i~k·~z

ˆdk0 eik0z0

(k0)2 −ω2~k︸ ︷︷ ︸

I(~k,z0

). (4.69)

Figura 4.3: Plano complexo para u, represen-tando o caminho de integração original e a lo-calização dos pólos do integrando.

Começamos pela integral em k0, que escrevemos daforma,

I(~k, z0

)=

ˆdu

eiuz0

(u− u1) (u− u2), (4.70)

ondeu1 = −ω~k ; u2 = +ω~k . (4.71)

Fica evidente, em (4.70) que temos um problema: o in-tegrando é singular em u = u1 e u = u2 e por isso a in-tegral diverge. Para calcular a integral, teremos que in-troduzir um regulador: vamos “inventar” um parâmetroε arbitrário, que faça a integral convergir, e esperamospoder eliminar ε após calcular a integral. Além disso,para efetivamente calcular (4.70) vamos usar o seguintetruque: estender u para o plano complexo, e consideraro integrando como uma função da variável complexau ∈ C. Em outras palavras: faremos uma continuaçãoanalítica do integrando no plano complexo. Desta forma, a integral em (4.70) corresponde à integração

da função complexa eiuz0

(u−u1)(u−u2)sobre um caminho que coincide com o eixo real, conforme a figura 4.3.

Note que o integrando apresenta pólos sobre o caminho de integração, o que provoca a divergência daintegral em (4.70).

A regularização adotada consistirá basicamente em remover os pólos da reta real, deslocando-osligeiramente. O interessante é que, dependendo da forma como fazemos este deslocamento, estamosselecionando diferentes condições de contorno sobre a função de Green.

A função de Green Retardada

Figura 4.4: Plano complexo para u, represen-tando o caminho de integração modificado e anova localização dos pólos do integrando.

Modificamos (4.70) da seguinte forma,

(~k, z0

)=

ˆdu

eiuz0

[u− (u1 + iε)] [u− (u2 + iε)],

(4.72)o que corresponde a deslocar os pólos para acima doeixo real, conforme a figura 4.4.

A integral Iε

(~k, z0

)pode ser calculada modificando

o caminho de integração. Para z0 > 0, ao invés de inte-grar sobre o eixo real, fechamos o caminho por meio de

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56 CAPÍTULO 4. QUANTIZAÇÃO CANÔNICA DO CAMPO ESCALAR

um semicírculo de raio L, por cima do eixo real, comona figura. Calculamos

˛f (u) du =

ˆ L

−Lf (u) du +

ˆsemicírculo

f (u) du .

Na integral sobre o semicírculo, u = Leiθ com θ ∈[−π, π], de forma que no limite L → ∞, o integrandocontem um fator exponencial da forma

exp[iuz0

]= exp

[iL (cos θ + i sin θ) z0

]= exp

[− L sin θz0︸ ︷︷ ︸

→+∞

]exp

[iL cos θz0

]→ 0 ,

ou seja,´semicírculo f (u) du→ 0, e

(~k, z0

)= lim

L→∞

˛f (u) du .

A vantagem é que a integral pelo circuito fechado pode ser calculado pelo teorema dos Resíduos:˛

f (u) du = 2πi [Res f (u1 + iε) + Res f (u2 + iε)] .

Explicitamente:

Res f (u1 + iε) = [u− (u1 + iε)] f (u)|u→u1+iε

=eiuz0

u− (u2 + iε)

∣∣∣∣∣u→u1+iε

=eiu1z0

u1 − u2= − e−iω~kz0

2ω~k,

e

Res f (u1 + iε) = +eiω~kz0

2ω~k.

Note que, neste ponto, já tomamos ε → 0 pois não existe mais nenhuma singularidade. Encontramosassim

I(~k, z0

)=

πiω~k

[eiω~kz0 − e−iω~kz0

]= −2π

sin(ω~kz0)

ω~k

(para z0 > 0

).

Para z0 < 0, temos que fechar o caminho por baixo do eixo real, para que exp[iuz0

]→ 0. Neste caso,¸

f (u) du = 0 pois não há pólos abaixo do eixo real, e portanto

I(~k, z0

)= 0

(para z0 < 0

).

Usando estes resultados em (4.69), concluimos que

GR (z) = − 1

(2π)4

ˆd3k e−i~k·~z I

(~k, z0

)= θ

(z0)× 1

(2π)3

ˆd3k e−i~k·~z sin

(ω~kz0)

ω~k,

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4.5. FUNÇÕES DE GREEN 57

Figura 4.5: Pela função de Green retardada, o campo num determinado ponto depende dos valores dafonte no interior do cone de luz do passado deste ponto (esquerda); já a função de Green avançada temo comportamento inverso (direita).

reconhecendo a definição da função de Pauli-Jordan (4.58), concluímos que

GR (x− y) = θ(x0 − y0)∆ (x− y) . (4.73)

Ou seja, a função de Green retardada é simplesmente a função de Pauli-Jordan multiplicada por umafunção de Heavyside. Para interpretar o resultado, voltamos a (4.66),

φ(x0,~x

)=

ˆGR (x− y) j (y) dy

=

ˆd3yˆ ∞

−∞dy0θ

(x0 − y0)∆ (x− y) j

(y0,~y

). (4.74)

A função de Heavyside faz com que o integrando se anule sempre que y0 > x0. Por outro lado, afunção de Pauli-Jordan se anula fora do cone de luz, i.e., se (x− y)2 < 0. Em resumo: o valor do campono intante x0 e no ponto ~x recebe contribuições da fonte j

(y0,~y

)em pontos dentro do cone de luz do

passado centrado em(x0,~x

), o que está ilustrado na figura 4.5.

A função de Green Retardada, portanto, propaga efeitos da fonte para frente no tempo, respeitando acausalidade. Na mecânica clássica, é justamente este o resultado que esperaríamos, de forma que GR é afunção de Green adequada para problemas de campos clássicos relativísticos, por exemplo a eletrodinâ-mica. Na teoria quântica, contudo, veremos que não é esta a função de Green adequada.

A função de Green Avançada

Fica como exercício para o leitor calcular a função de Green avançada, que vem de modificar (4.70) da forma

(~k, z0

)=

ˆdu

eiuz0

[u− (u1 − iε)] [u− (u2 − iε)], (4.75)

de forma que os pólos agora são deslocados para baixo do eixo real. O resultado é o seguinte:

GA (x− y) = −θ(y0 − x0)∆ (x− y) . (4.76)

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58 CAPÍTULO 4. QUANTIZAÇÃO CANÔNICA DO CAMPO ESCALAR

Figura 4.6: Pela função de Green avançada, o campo num determinado ponto depende dos valores dafonte no interior do cone de luz do futuro deste ponto.

A função de Green avançada propaga efeitos da fonte para trás no tempo, pois o valor do campo numponto

(x0,~x

)depende dos valores da fonte no cone de luz futuro centrado neste ponto, como mostrado

na figura 4.5.

A função de Green de Feynman

A função de Green mais relevante na TQC é a chamada função de Feynman, que se obtêm através dasubstituição m2 → m2 + iε, ou seja,

(~k, z0

)=

ˆdu

eiuz0

(k0)2 −ω2~k− iε

. (4.77)

Fica como exercício para o leitor mostrar que, neste caso, os pólos são deslocados conforme a figura 4.6,e que o resultado final para a função de Green é

∆F (x− y) = θ(x0 − y0)∆− (x− y)− θ

(y0 − x0)∆+ (x− y) , (4.78)

em que ∆± são as partes de frequência positiva e negativa da função de Pauli-Jordan,

∆ (x− y) = ∆+ (x− y) + ∆− (x− y) , (4.79)

veja mais detalhes no apêndice B.A função de Feynman faz com que o operador φ

(x0,~y

)dependa do valor da fonte tanto em instantes

do futuro quanto do passado. Além disso: das expressões explícitas para ∆± (z) obtidas no apêndice,ve-se que a função de Feynman é diferente de zero fora do cone de luz. Este comportamento parecedesclassificar a função ∆F como uma função de Green válida para uma teoria física: no entanto, na TQCé justamente a função ∆F que tem uma interpretação física fundamental, a de descrever a propagação deuma partícula entre dois pontos do espaço-tempo.

Para ver isto, separamos o campo φ (x) em sua parte de criação e de aniquilação,

φ (x) = φ(+) (x) + φ(−) (x) ,

onde, φ(+) (x) =´ d3k

2ω~kf ∗~k (x) b†

~k

φ(−) (x) =´ d3k

2ω~kf~k (x) a~k

.

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4.5. FUNÇÕES DE GREEN 59

Figura 4.7: Processos elementares que correspondem ao transporte de uma carga +q do ponto ~x até ~y.

Então pode-se mostrar que

[φ(±) (x) ,

(φ(±) (y)

)†]= −i∆(±) (x− y) ,

onde ∆(±) são as partes de frequencia positiva e negativa da função de Pauli-Jordan, definidas no apên-dice B. Além disso, temos a propriedade

∆(+) (z) = −∆(−) (−z) .

Considere agora o seguinte processo: uma partícula de carga +q, inicialmente localizada em tornodo ponto ~x no instante x0 é posteriormente localizada em torno do ponto ~y no instante y0 > x0. Talprocesso está esquematicamente representado na figura 4.7 à esquerda. O estado inicial é dado por

|i〉 =(

φ(−) (x))†|0〉 e o final por 〈 f | =

((φ(−) (y)

)†|0〉)†

= 〈0| φ(−) (y). A amplitude de probabilidade

para este processo é dada por

〈 f | i〉 =⟨

0∣∣∣∣φ(−) (y)

(φ(−) (x)

)†∣∣∣∣ 0⟩

θ(y0 − x0)

=

⟨0∣∣∣∣ [φ(−) (y) ,

(φ(−) (x)

)†]∣∣∣∣ 0⟩

θ(y0 − x0)

= −i∆(−) (y− x) θ(y0 − x0)

= i∆(+) (x− y) θ(y0 − x0) .

Existe outro processo físico, contudo, que também envolve o transporte de uma carga +q de ~x até ~y:trata-se de uma antipartícula de carga −q que se move de ~y até ~x, onde agora x0 > y0, representado na figura

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60 CAPÍTULO 4. QUANTIZAÇÃO CANÔNICA DO CAMPO ESCALAR

4.7 à direita. Para este processo, |i〉 = φ(+) (y) |0〉 e 〈 f | = 〈0|(

φ(+) (x))†

, logo

〈 f | i〉 =⟨

0∣∣∣∣ (φ(+) (x)

)†φ(+) (y)

∣∣∣∣ 0⟩

θ(x0 − y0)

=

⟨0∣∣∣∣ [(φ(+) (x)

)†, φ(+) (y)

]∣∣∣∣ 0⟩

θ(x0 − y0)

= −⟨

0∣∣∣∣ [φ(+) (y) ,

(φ(+) (x)

)†]∣∣∣∣ 0⟩

θ(x0 − y0)

= i∆(+) (y− x) θ(x0 − y0)

= −i∆(−) (x− y) θ(x0 − y0) .

A soma das amplitudes é

−i[θ(

x0 − y0)∆− (x− y)− θ(y0 − x0)∆+ (x− y)

]= −i∆F (x− y) ,

de forma que a função de Feynman representa conjuntamente os dois processos físicos, envolvendopartículas e antipartículas.

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Apendice ASuplemento Matemático

A.1 Grupos e Álgebras de Lie

A noção de grupo é uma das mais fundamentais em matemática, e encontra vasta aplicação na físicateórica por ser uma ferramenta matemática feita sob medida para se estudar simetrias. De fato, o estudoda teoria de grupos pode parecer abstrata demais ou árida ao estudante de física, mas o que se temaprendido é que todas as poderosas ferramentas desenvolvidas pelos matemáticos para estudar a estru-tura de grupos refletem-se num profundo conhecimento das consequências das simetrias da naturezanas teorias que descrevem os fenômenos naturais.

Matematicamente, um grupo G é um conjunto de elementos em que está definida uma operação quechamamos de produto, que satisfaz os seguintes axiomas,

• se g1, g2 ∈ G, então g1 · g2 = g3 ∈ G (propriedade de fechamento)

• existe um elemento ∈ G tal que, para qualquer g ∈ G, vale que · g = g · = g (existência daunidade)

• para qualquer g ∈ G, existe g−1 ∈ G tal que g · g−1 = g−1 · g = (existência da inversa)

• para quaisquer g1, g2, g3 ∈ G, vale que (g1 · g2) · g3 = g1 · (g2 · g3) (associatividade).

A sugestão de que grupos são estruturas que podem representar muito bem simetrias vem de se perceberque cada um desses axiomas é bastante natural se traduzido para transformações de simetria, desde queentendemos que o produto do grupo significa a aplicação sucessiva de transformações. Por exemplo, énatural que a aplicação sucessiva de duas transformações de simetria também é uma simetria do sistema.

Um grupo é dito discreto quando seus elementos podem ser enumerados,

G = g1, g2, g3, . . . ,

sendo que grupos discretos podem ser finitos ou infinitos. Um grupo é dito contínuo quando seus elemen-tos são identificados por um certo número de parâmetros contínuos,

G = g (α1, α2, α3, . . .)

onde αi são reais, e podem ser entendidos como coordenadas de um espaço chamado de variedade degrupo (“group manifold”). Cada ponto nesta variedade é associado a um elemento do grupo.

61

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62 APÊNDICE A. SUPLEMENTO MATEMÁTICO

Exemplo 3. Translações na reta.Represente por T (a) a operação de translação ψ (x) → ψ (x + a). Então o conjunto dos T (a) para

a ∈ R forma grupo, com produto definido por

T (a) · T (b) = T (a + b) .

Este produto claramente representa o resultado das translações sucessivas ψ (x)→ ψ (x + a)→ ψ (x + a + b).A identidade é T (0) e T (−a) é a inversa de T (a). A associatividade também é trivialmente verificada.

Trata-se de um grupo contínuo com um parâmetro. A variedade de grupo é a reta real.

Exemplo 4. Rotações no plano.Considere uma rotação por um ângulo θ num espaço bidimensional. O efeito de tal transformação

sobre um vetor[

xy

]corresponde à transformação linear

[x′

y′

]=

[cos θ − sin θsin θ cos θ

] [xy

]= R (θ)

[xy

].

Então o conjunto das matrizes R (θ), com θ ∈ [0, 2π], forma um grupo, em que

R (θ) · R (ϕ) = R (θ + ϕ) ,

R (−θ) = [R (θ)]−1 ; R (0) = .

Novamente, é um grupo contínuo, com um parâmetro, só que agora este parâmetro varia no intervalo[0, 2π], que é a variedade de grupo neste caso.

Note que, se ε é muito pequeno, o elemento do grupo R (ε) resulta ser muito próximo à identidade,

R (ε) =

[1 + ε2

2 −ε

ε 1 + ε2

2

],

ou seja, até a segunda ordem em ε,

R (ε) ∼ 2×2 + ε

[0 −11 0

]+

ε2

2

[1 00 1

].

Note que [0 −11 0

]2

=

[1 00 1

],

ou seja

R (ε) ∼ 2×2 + ε

[0 −11 0

]+

ε2

2

[0 −11 0

]2

.

Esta expressão sugere que qualquer elemento do grupo R (θ) pode ser escrito na forma

R (θ) = eθG ,

onde G é a matriz[

0 −11 0

], que pode ser calculada da forma

G = limε→0

R (ε)−ε

.

Chamamos G de gerador do grupo. No caso, o grupo de rotações no plano tem um único gerador,associado ao seu único parâmetro.

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A.1. GRUPOS E ÁLGEBRAS DE LIE 63

Num grupo contínuo, cada elemento do grupo está associado a um ponto na variedade de grupo.Esta variedade em princípio pode ter uma estrutura topológica muito complicada, mas se ela for sufici-entemente suave para ser uma variedade diferenciável, então o grupo é dito um Grupo de Lie.

O essencial da teoria de grupos de Lie é que: para cada parâmetro αi podemos associar um geradordefinido por

Gi = limε→0

g (αi = ε)−ε

,

em que g (αi = ε) é o elemento do grupo com αi = ε e todos os demais α’s nulos. Os geradores represen-tam a “ação linearizada” do grupo, ou seja, correspondem à ação dos elementos que são muito próximosda identidade. Definidos os geradores, pode-se mostrar que os elementos do grupo são representadospelo mapa exponencial

g (α) = eαiGi ,

sendo que as condições para que o mapa exponencial exista, e respeite os axiomas de fechamento eassociatividade do grupo, é que os geradores Gi satisfaçam uma álgebra de Lie,[

Gi, Gj]= ck

ijGk ,

bem como a identidade de Jacobi[Gi,[Gj, Gk

]]+ permutações cíclicas = 0 .

Esta descrição é essencialmente correta ao menos numa proximidade da identidade. Para muitos gru-pos, ela vale para todos os elementos do grupo que podem ser continuamente conectados à identidade.Existem casos mais sutis, envolvendo variedades de grupo com topologias não triviais, mas que nãoiremos discutir aqui.

A vantagem de se lidar com grupos de Lie é que ao invés de estudar o grupo em si, que incluium infinito não enumerável de elementos g (α), essencialmente toda a estrutura do grupo pode serinvestigada a partir da sua versão linearizada, ou seja, sua álgebra de Lie, que é o conjunto finito degeradores Gi.

Consideremos, por pura simplicidade de notações, um grupo discreto G = g1, g2, . . .. O grupo éconsiderado como o conjunto abstrato de elementos gi que satisfazem uma determinada lei de produtogi · gj = gp(i,j), chamada de tabela de multiplicação do grupo. Um mesmo grupo pode ter várias repre-sentações na forma de matrizes quadradas de uma certa dimensionalidade. Sempre que construímosum conjunto de matrizes [gi], uma associada a cada elemento abstrato do grupo gi, dizemos que esteconjunto de matrizes define uma representação do grupo se a multiplicação matricial reproduz a lei deproduto do grupo, ou seja,

[gi] ·[gj]=[

gp(i,j)

]para qualquer gi, gj ∈ G. Tipicamente, as matrizes [gi] são construídas como transformações linearesnum certo espaço vetorial, que representam os estados físicos que sofrem a ação do grupo considerado.

O fato é que um mesmo grupo G pode ter muitas representações de diferentes dimensionalidades.Um exemplo muito familiar é o do grupo SU (2), muito estudado em Mecânica Quântica quando sediscute o spin.

Exemplo 5. O grupo SU (2)O grupo SU (2) possui uma álgebra de Lie chamada de su (2), composta por três geradores T1, T2, T3

que satisfazem as relações de comutação [Ti, Tj

]= iε ijkTk .

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64 APÊNDICE A. SUPLEMENTO MATEMÁTICO

Em cursos de Mecânica Quântica, tradicionalmente se aprende um método que permite construir repre-sentações de su (2) da seguinte forma: define-se

T± = T1 ± iT2 ; T2 = (T1)2 + (T2)

2 + (T3)2 .

Prova-se então que[Ti, T2] = 0, de forma que a matriz T2 pode ser diagonalizada junto com T3, e o

espaço de estados será composto por vetores da forma |j; m〉. Após uma série de análises, se descobreque, para que as matrizes que representam os Ti tenham dimensionalidade finita, j tem que assumirvalores semi-inteiros, j = 0, 1

2 , 1, . . ., e para cada j, m varia de unidade em unidade dentro do limite|m| ≤ j. Isso significa que, para cada j, a álgebra será representada por matrizes com dimensão 2j + 1.

Desta forma, pode-se fazer um catálogo de presentações de su (2):

• j = 0: a representação trivial, em que [Ti] = 0 e portanto o grupo associado só tem o elementoidentidade.

• j = 12 : as matrizes Ti são representadas pelas matrizes de Pauli,

Ti =σi

2,

que são matrizes 2× 2 associadas ao spin.

• j = 1: as matrizes Ti tem representação

T1 =

0 0 00 0 i0 −i 0

; T1 =

0 0 i0 0 0−i 0 0

; T1 =

0 i 0−i 0 00 0 0

(A.1)

agindo sobre um espaço de vetores tridimensionais ~x =

x1x2x3

.É fácil ver que, por exemplo,

eiθT1 =

0 0 00 cos θ − sin θ0 sin θ cos θ

,

donde se vê que as transformações geradas por Ti correspondem a rotações em torno dos três eixoscoordenados, o que significa que su (2) = so (3), onde so (3) é a álgebra de Lie do grupo de rotaçõesem três dimensões1.

Do exemplo anterior fica evidente que um mesmo grupo pode ter diferentes representações de dife-rentes dimensionalidades,

gi → [gi]n×n ; gi → [gi]m×m ; . . .

Em geral, toda representação pode ser, por uma transformação unitária, levada a uma forma diagonalpor blocos, ou seja

[gi] =

[gi]n1×n1

0 · · · · · ·0 [gi]n2×n2

0 · · ·

0 0. . . · · ·

......

.... . .

,

1Os grupos SU (2) e SO (3) não são idênticos devido à diferente topologia da variedade de grupo. O fato de que ambospossuem a mesma álgebra de Lie, contudo, significa que numa vizinhança da identidade os dois grupos são de fato idênticos.

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A.1. GRUPOS E ÁLGEBRAS DE LIE 65

em que cada bloco [gi]ni×ninão pode, por sua vez, ser reduzido da mesma forma. As representações

[gi]ni×nisão ditas representações irredutíveis do grupo, e elas são essenciais pois prova-se que qualquer

presentação pode ser construída combinando-se, da forma acima, representações irredutíveis.No caso de SU (2) discutido anteriormente, o catálogo de representações citadas é o catálogo com-

pleto de todas as representações irredutíveis. O método aprendido em cursos de MQ, portanto, exauretodas as possíveis representações de SU (2).

Lembrando-se que cada representação [gi]ni×nipode ser entendida como um grupo de matrizes que

operam num dado espaço vetorial[

v]

ni

, então vemos que a ação de uma representação redutível é da

forma [

gi

]n1×n1

0

0[

gi

]n2×n2

[

v]

n1[v]

n2

=

[

gi

]n1×n1

·[

v]

n1[gi

]n2×n2

·[

v]

n2

,

ou seja, o subespaço[

v]

n1

não se mistura com o subespaço[

v]

n2

frente a uma transformação do grupo.

Fisicamente, isto significa que possivelmente o espaço de matrizes[

v]

n1[v]

n2

representa um sistema não elementar, composto por subsistemas menores, estes sim representados pelos

subespaços irredutíveis[

v]

n1

e[

v]

n2

.

Na Teoria de Campos, um subespaço irredutível[

v]

ni

das simetrias físicas das interações elementa-

res será associado aos estados de uma partícula elementar: a irreducibilidade da representação [gi]ni×nié a

contrapartida matemática ao fato de que a partícula elementar não pode ser “quebrada” em subsistemasmenores, mais elementares. O catálogo de todas as representações irredutíveis do grupo que define a si-metria da natureza, portanto, é também o catálogo de todos os tipos de partículas elementares que podemexistir na natureza. Esta idéia é discutida em mais detalhe no capítulo 3.

Exemplo 6. O Campo EletromagnéticoOs vetores ~E e ~B se transforam, frente ao grupo de rotações tridimensionais SO (3) de forma E′x

E′yE′z

= eiθiTi

ExEyEz

,

e similarmente para ~B, onde Ti é a representação irredutível de 3 dimensões da álgebra de SU (2) apre-sentada em (A.1). Frente ao grupo SO (3), portanto, os vetores ~E e ~B representam entidades fisicamentedistintas.

Contudo, frente a uma transformação de Lorentz, que é representada matematicamente pelo grupoSO (2, 1) que são estudados em detalhe nos capítulos 3 e ??, as componentes de ~E e ~B “se misturam”entre si. Isto significa que, frente ao grupo de Lorentz, ~E e ~B constituem uma única representação irre-dutível, e portanto são fisicamente entendidos como componentes de uma mesma entidade: o campoeletromagnético Fµν.

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66 APÊNDICE A. SUPLEMENTO MATEMÁTICO

Tipicamente, é de grande interesse conseguir construir todas as representações irredutíveis de umdado grupo de Lie. Existe uma tecnologia bastante bem desenvolvida para este fim. Tipicamente, issoé feito construindo representações dos geradores Gi do grupo como matrizes atuando sobre um certoespaço de estados representados por vetores

|αi〉 ,

onde αi denota coletivamente um conjunto apropriado de rótulos contínuos ou discretos. Como usualna Mecânica Quântica, estes rótulos representam autovalores de um determinado conjunto completo deoperadores que comutam entre si, e que portanto podem ser simultaneamente diagonalizados.

Os chamados operadores de Casimir da álgebra são de suma importância para identificar as represen-tações irredutíveis. Um operator Ci (que geralmente é uma combinação não linear dos geradores Gi) échamado de Casimir da álgebra se ele comuta com todos os geradores:[

Ci, Gj]= 0 .

A relevância dos operadores de Casimir é dada pelo por um teorema devido a Schuur: numa representaçãoirredutível, todo operador de Casimir é representado por uma matriz múltipla da identidade. Isso permite dividiros rótulos dos estados |αi〉 em dois tipos,

|αi ; βi〉 ,

em que agora os αi são os autovalores associados aos operadores de Casimir. Como estes comutamcom todos os Gi, os autovalores αi ficam “congelados” em qualquer transformação do grupo, e portantoservem para rotular as diferentes representações irredutíveis.

Exemplo 7. As representações irredutíveis de SU (2)Os geradores da álgebra são os operadores de Momento Angular Ji. Existe apenas um operador

de Casimir: ~J2 = ∑i J2i . O conjunto completo de operadores comutantes tradicionalmente utilizado é

~J2, J3

.

Os geradores são representados por matrizes que operam em estados |j; m〉. O autovalor j = 0, 12 , 1, . . .

identifica cada representação irredutível. O operador de Casimir~J2 é representado pela matriz

~J2 = j (j + 1)

e o operador J3 pela matriz diagonalJ

J3 =

j 0 · · · · · · · · ·0 j− 1 0 · · · · · ·... 0

. . . 0 · · ·...

... 0 −j + 1 0...

...... 0 −j

.

Os demais geradores J1 e J2 são representados por matrizes não diagonais:

J1 |j; m〉 = ∑m′

[J1]mm′∣∣j; m′

⟩; J2 |j; m〉 = ∑

m′[J2]mm′

∣∣j; m′⟩

.

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A.2. NOÇÕES DE TEORIA DAS DISTRIBUIÇÕES 67

A.2 Noções de Teoria das Distribuições

Considere uma carga puntiforme q localizada na origem. Podemos nos perguntar qual a densidade decarga associada a esta carga: uma função ρ (r) tal queˆ

todo o espaçoρ (r) d3V = q

mas, ao mesmo tempo,ρ (r) = 0 se r 6= 0 .

O problema é que não existe nenhuma função que satisfaça, ao mesmo tempo, as duas condições acima.O físico Paul A. M. Dirac percebeu que podia-se trabalhar com “funções generalizadas”, que satisfi-zessem estas propriedades. O uso de tais “funções” está cuidadosamente justificado por um ramo damatemática chamada de teoria das distribuições ou das funções generalizadas. Vamos dar uma noção intui-tiva desta teoria, e mostrar as regras práticas que permitem o uso de distribuições para a modelagem esolução de problemas físicos.

Suponha que tenhamos uma certa quantidade de carga, digamos q = 1C, numa certa região delargura L próxima à origem. Uma possível densidade de carga seria a função

ρL (x) = 1

L , se − L2 < x < L

20, se x < − L

2 ou x > L2

Note que´ ∞−∞ ρL (x) dx = 1 o que justamente nos diz que ρL (x) descreve uma distribuição de carga total

1C.Pensando em modelar uma partícula pontual, tomamos o limite L → 0 da função ρL (x), obtendo

uma função δ (x) “infinitamente concentrada” em x = 0. O problema é que esta função não está bemdefinida em x = 0. Seríamos tentados a escrever

δ (x) = limL→0

ρL (x) =

0 , se x 6= 0∞ , se x = 0

.

Contudo, o valor de uma integral ˆf (x) dx

não muda se mudamos o valor da função f (x) num único ponto x0. Ou seja, mesmo que eliminemosa divergência em x = 0 associando um valor arbitrário qualquer para δ (0), a integral

´δ (x) dx não vai

diferir da integral de uma função f (x) que é identicamente nula (pois δ e f só diferem num único ponto)– ou seja, teremos um resultado nulo.

Isto significa que não existe nenhuma função que faz o papel de uma carga puntiforme na origem.Contudo, a “função” δ (x) definida acima intuitivamente representa a idéia de uma carga totalmenteconcentrada na origem, se entendermos sua integral da forma

ˆ ∞

−∞δ (x) dx = lim

L→0

ˆ ∞

−∞ρL (x) dx = 1 .

Podemos multiplicar a “função” δ (x) por uma função contínua f (x), e obter uma expressão bemdefinida, se integrada conforme

ˆ ∞

−∞f (x) δ (x) dx = lim

L→0

ˆ ∞

−∞f (x) ρL (x) dx .

Para calcular o limite, note que ρL (x) = 0 se |x| > L/2, logoˆ ∞

−∞f (x) ρL (x) dx =

ˆ L/2

−L/2f (x) ρL (x) dx

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68 APÊNDICE A. SUPLEMENTO MATEMÁTICO

e, para L suficientemente pequeno, podemos tomar f aproximadamente constante, igual a f (0), naregião de integração, ˆ ∞

−∞f (x) ρL (x) dx ≈ f (0)

ˆ L/2

−L/2ρL (x) dx︸ ︷︷ ︸

1

= f (0) .

Portanto, tomando o limite L→ 0,ˆ ∞

−∞f (x) δ (x) dx = f (0) ,

o que nos permite escrever, no sentido de distribuição,

f (x) δ (x) = f (0) δ (x) .

Esta igualdade é razoável já que δ (x) = 0 se x 6= 0, portanto, o produto f (x) δ (x) não pode dependerdo valor de f em qualquer x 6= 0.

Obviamente, o ponto x = 0 não tem nada de especial, e poderíamos ter escolhido um x = a qualquer.Temos assim, mais geralmente, a propriedade fundamental da “função” δ (x) como sendo

ˆ ∞

−∞f (x) δ (x− a) dx = f (a) .

A “função” δ (x) é chamada de função delta de Dirac. A “moral da história” é que δ (x) não faz sentidose tentamos defini-la como uma função usual, definida para todo x, mas sua integração dá um resultadobem definido, obtido por um procedimento “honesto” de limite de integrais de funções regulares.

Um pouco mais formalmente: vamos considerar um espaço de “funções teste” F , contendo funçõesξ (x) ∈ F que são contínuas, infinitamente diferenciáveis, e que se anulam fora de um intervalo finito.Este último requerimento garante que podemos integrar por partes qualquer integral em que apareçauma função de teste, sem gerar termos de superfície nos extremos de integração.

Dada qualquer função f (x) razoavelmente suave2, claramente podemos definir uma operação queassocia a cada função teste ξ (x) o valor f [ξ] dado pela integral

f [ξ] =ˆ ∞

−∞f (x) ξ (x) dx . (A.2)

Definimos, assim, uma funcional no espaço de funções teste, associada à função f . Estas funcionais serãochamadas de distribuições.

Considere agora uma distribuição que chamaremos de δx0 , que satisfaz

δx0 [ξ] ≡ ξ (x0) , (A.3)

para qualquer funções de teste ξ (x). Aqui, x0 é uma parâmetro real arbitrário. Como vimos, não existenenhuma função δ (x− x0) que satisfaça

ˆ ∞

−∞δ (x− x0) ξ (x) dx = ξ (x0) (A.4)

e no entanto a funcional δx0 está bem definida. Como vimos, podemos construir sequencias de funçõesδL (x− x0) que, num limite apropriado, produzem o resultado desejado. Ou, como tradicionalmenteé feito, omitimos a necessidade deste processo de limite e formalmente consideramos uma “função”

2As condições de suavidade sobre f são muito mais fracas do que sobre as funções teste ξ: a continuidade de f já é suficientepara garantir a convergência da integral.

Page 69: Teoria Quantica de Campos  Prof. Alysson F. Ferrari

A.2. NOÇÕES DE TEORIA DAS DISTRIBUIÇÕES 69

δ (x− x0) satisfazendo (A.4). Este procedimento, aparentemente pouco formal, nunca vai nos levar anenhuma inconsistência desde que entendemos que a “função” δ (x− x0) só faz sentido se aparecer sobo sinal de integral, e multiplicada por uma função teste. Desta forma, podemos mesmo aplicar à “função”δ (x− x0) operações como derivação, por exemplo.

Por exemplo, se g (x) é uma função contínua, que significado podemos dar a um produto da formag (x) δ (x− x0)? A resposta é obtida integrando-se com uma função teste,

ˆg (x) δ (x− x0) ξ (x) dx = g (x0) ξ (x0) .

Note que, se ξ é uma função de teste, o produto gξ também o será, desde que g seja uma função sufici-entemente bem comportada. Isto significa que podemos fazer a identificação

g (x) δ (x− x0) = g (x0) δ (x− x0) ,

desde que os dois membros da equação produzem o mesmo resultado quando integrado com uma fun-ção teste.

Por outro lado, podemos considerar a derivada ∂xδ (x− x0). O resultado de tal expressão, lembrandoque ξ se anula no infinito e portanto podemos integrar por partes sem produzir qualquer termo desuperfície, é ˆ

∂xδ (x− x0) ξ (x) dx =

ˆδ (x− x0) (−∂xξ (x)) dx = −∂xξ (x0) .

Ou seja: mesmo que δ (x− x0) não seja uma função, no sentido de distribuição a derivada ∂xδ (x− x0)está bem definida! Por outro lado, podemos também calcular a derivada de δ (x− x0) com relação aoparâmetro x0. O resultado:

ˆ(∂x0 δ (x− x0)) ξ (x) dx = ∂x0

ˆδ (x− x0) ξ (x) dx = ∂x0 ξ (x0) .

Considere agora a expressãog (x) ∂xδ (x− x0) ,

em que g é uma função contínua e derivável. Integrando com uma função teste, podemos escreverˆ

g (x) ∂xδ (x− x0) ξ (x) dx = −ˆ

δ (x− x0) ∂x (g (x) ξ (x)) dx

= −ˆ

δ (x− x0) ∂xg (x) ξ (x) dx−ˆ

δ (x− x0) g (x) ∂xξ (x) dx

= −∂xg (x0)

ˆδ (x− x0) ξ (x) dx− g (x0)

ˆδ (x− x0) ∂xξ (x) dx

=

ˆ[−∂xg (x0) δ (x− x0) + g (x0) ∂xδ (x− x0)] ξ (x) dx

ou seja,g (x) ∂xδ (x− x0) = g (x0) ∂xδ (x− x0)− ∂xg (x0) δ (x− x0) .

Este último exemplo deve ser estudado com cuidado pelo leitor, já que mostra a importância de consi-derar a presença da função teste ao manipular uma expressão envolvendo “funções” δ.

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70 APÊNDICE A. SUPLEMENTO MATEMÁTICO

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Apendice BA função de Pauli-Jordan

Primeiramente, defina, ∆− (z) = + i(2π)3

´d3k e−i~k·~z e−iω~k

z0

2ω~k

∆+ (z) = − i(2π)3

´d3k e−i~k·~z eiω~k

z0

2ω~k

, (B.1)

de forma que

∆+ (z) + ∆− (z) =1

(2π)3

ˆd3k

e−i~k·~z

ω~k

12i

[eiω~kz0 + e−iω~kz0

]︸ ︷︷ ︸

2i sin(ω~kz0

)=

1

(2π)3

ˆd3k e−i~k·~z sin

(ω~kz0

)ω~k

,

ou seja,

∆ (z) = ∆+ (z) + ∆− (z) . (B.2)

As funções ∆+ (z) e ∆− (z) são chamadas de parte de frequência positiva e parte de frequência negativa dafunção de Pauli Jordan. Note que

(∆+ (x)

)∗=

i

(2π)3

ˆd3k e+i~k·~z︸ ︷︷ ︸~k→−~k

e−iω~kz0

2ω~k= ∆− (x) (B.3)

e, similarmente,

∆+ (−x) = − i

(2π)3

ˆd3k e+i~k·~z︸ ︷︷ ︸~k→−~k

e−iω~kz0

2ω~k= −∆− (x) . (B.4)

Vamos explicitamente calcular a integral em (B.1). Usamos coordenadas esféricas para o espaço dos~k ,

∆+ (z) = − i

(2π)3

ˆ ∞

0

∣∣∣~k∣∣∣2 d∣∣∣~k∣∣∣ ˆ dΩ~k e−i

∣∣∣~k∣∣∣|~z| cos θ eiω~kz0

2ω~k,

onde dΩ~k é um elemento de ângulo sólido; como o integrando não depende de ϕ, então dΩ~k = (2π) sin θdθ,

71

Page 72: Teoria Quantica de Campos  Prof. Alysson F. Ferrari

72 APÊNDICE B. A FUNÇÃO DE PAULI-JORDAN

logo

∆+ (z) = − i

(2π)2

ˆ ∞

0

eiω~kz0

2ω~k

∣∣∣~k∣∣∣2 d∣∣∣~k∣∣∣ ˆ π

0sin θdθ e−i

∣∣∣~k∣∣∣|~z| cos θ

︸ ︷︷ ︸cos θ→u

= − i

(2π)2

ˆ ∞

0

eiω~kz0

2ω~k

∣∣∣~k∣∣∣2 d∣∣∣~k∣∣∣ ˆ 1

−1du e−i

∣∣∣~k∣∣∣|~z|u

= − i

(2π)2

ˆ ∞

0

eiω~kz0

2ω~k

∣∣∣~k∣∣∣2 d∣∣∣~k∣∣∣− e−i

∣∣∣~k∣∣∣|~z|ui∣∣∣~k∣∣∣ |~z|

1

−1

= − 1

(2π)2 |~z|

ˆ ∞

0

eiω~kz0

2ω~k

∣∣∣~k∣∣∣ d∣∣∣~k∣∣∣ (ei

∣∣∣~k∣∣∣|~z| − e−i∣∣∣~k∣∣∣|~z|) .

Agora, ω~k é uma função par em∣∣∣~k∣∣∣ . Logo, fazendo a substituição

∣∣∣~k∣∣∣ ↔ − ∣∣∣~k∣∣∣ no segundo termo emparêntesis,

−ˆ ∞

0[· · · ]

∣∣∣~k∣∣∣ d∣∣∣~k∣∣∣ e−i

∣∣∣~k∣∣∣|~z| → − ˆ −∞

0[· · · ]

(−∣∣∣~k∣∣∣) (−d

∣∣∣~k∣∣∣) ei∣∣∣~k∣∣∣|~z|

=

ˆ 0

−∞[· · · ]

∣∣∣~k∣∣∣ d∣∣∣~k∣∣∣ ei

∣∣∣~k∣∣∣|~z|logo

∆+ (z) = − 1

(2π)2 |~z|

ˆ ∞

−∞

eiω~kz0

2ω~k

∣∣∣~k∣∣∣ d∣∣∣~k∣∣∣ ei

∣∣∣~k∣∣∣|~z|

=i

8π2 |~z|∂

∂ |~z|

ˆ ∞

−∞ei(

ωkz0+∣∣∣~k∣∣∣|~z|) d

∣∣∣~k∣∣∣ωk

.

Definindo a função

f (z0, r) ≡ i2π

ˆ ∞

−∞d∣∣∣~k∣∣∣ ei

(ω~kz0+r

∣∣∣~k∣∣∣)ω~k

, (B.5)

temos que

∆+ (z) =1

4π∂|~z| f (|~z|) .

A função f definida acima pode ser encontrada em tabelas de integrais. Definindo λ = z20 − r2 , o

resultado que encontramos é, em termos de funções de Bessel N, J e K,

f (x) =

12i N0

(m√

λ)− 1

2 ε(x0) J0

(m√

λ)

, λ > 0iπ K0

(m√

λ)

, λ < 0.

Derivando as funções de Bessel, encontramos a fórmula explicita para ∆+ ,

∆+ (z) =1

4πε(z0) δ (λ)− im

8π√

λθ (λ)

[N1

(m√

λ)− iε

(z0) J1

(m√

λ)]

+θ (−λ)im

4π√−λ2

K1

(m√−λ)

.

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73

Usando (B.3),

∆− (z) =1

4πε(z0) δ (λ) +

im8π√

λθ (λ)

[N1

(m√

λ)+ iε

(z0) J1

(m√

λ)]

−θ (−λ)im

4π√−λ2

K1

(m√−λ)

.

Note que ∆+ (z) e ∆− (z) assumem valores diferentes de zero tanto dentro quanto fora do cone de luz.Em particular, fora do cone de luz, as funções de Bessel tendem a zero exponencialmente,

K1

(m√−λ)∼ e−m

√−λ√

m√−λ

.

Finalmente, podemos escrever a função de Pauli-Jordan:

∆ (z) = ∆+ (z) + ∆− (z)

=1

2πε(z0) δ (λ)− m

4π√

λθ (λ) ε

(z0) J1

(m√

λ)

,

que, como requerido pela causalidade, se anula fora do cone de luz.É interessante perceber que o limite de m→ 0 pode ser imediatamente encontrado:

D (x) =1

2πε(x0) δ (λ) ,

ou seja, para uma função de massa zero, a função causal é diferente de zero apenas sobre o cone de luzfuturo, o que é razoável já que partículas de massa zero só podem se mover com a velocidade da luz.