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Page 1: Teoria das Ciências Humanas I Período: 2015/02 Professor ... · civilização mundial sustentada em “Raça e história” (como plano de coexistência entre culturas heterogêneas),

Teoria das Ciências Humanas I Período: 2015/02 Professor: Marco Antonio Valentim

Aula 6: 21/10, 28/10

NOTAS DE AULA

Aviso sobre as duas próximas aulas, a serem ministradas pelo Pedro (uma em minha ausência, e outra com minha presença e participação).

Textos para a próxima aula:

Clastres, “Arqueologia da violência”

Clastres, “A sociedade contra o Estado”

Aviso sobre a “reintegração de posse” a ser sofrida hoje, 21/10, pelos Guarani-Kaiowá de MS. Ler os dois parágrafos finais da carta redigida por eles: antes contra os fazendeiros, agora contra o Estado. Apelo às organizações de direitos humanos. O problema do limite e da indispensabilidade do recurso a esses direitos.

Comentário sobre a aula do Thiago: Césaire sobre a colonização européia (anti-contato), Fanon sobre a “experiência vivida do negro” (colonização como aniquilação ontológica de outrem”), a crítica deste a Sartre (contra a filosofia da história, que impõe uma lógica totalizante e potencialmente totalitária à “guerra dos mundos). A ideia de descolonização.

Complexidade dessas relações: a diáspora contra a filosofia (Sartre; ler Fanon, Pele negra, máscaras brancas, p. 122) e a antropologia (Césaire e Fanon), enquanto formas de colonialismo, a antropologia contra a filosofia (Sartre), enquanto “canibalismo intelectual”. Resumo da situação: a filosofia é uma unanimidade negativa.

Depois de ir a Césaire e Fanon (Thiago), retorno a Lévi-Strauss, passagem a O pensamento selvagem (Capítulo 9: “História e dialética”). Esse livro, que toma por tarefa apresentar uma outra dimensão, completamente outra, do pensamento humano: o pensamento selvagem (x pensamento domesticado, civilizado, “científico”).

O pensamento selvagem, p. 28 (ler): qual é o grau de divergência entre essas formas de pensamento (signo x conceito, bricolagem x engenharia, magia x ciência, animismo x naturalismo, xamanismo x criticismo)? Para Lévi-Strauss, a diferença parece ser “modal”: “dois modos diferentes de pensamento científico, um e outro funções, não certamente estágios desiguais do desenvolvimento do espírito humano, mas dois níveis estratégicos em que a natureza se deixa abordar pelo conhecimento científico” (p. 30). Modalidade contra a desigualdade fundada na substancialidade da

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distinção; porém, modalidade fundada em uma identidade “essencial” do espírito humano, que remete, em última instância, à unidade substancial da natureza (a “Natureza única”). Multiculturalismo?!

Contudo, vamos antes ao ensaio “As descontinuidades culturais e o desenvolvimento econômico e social” (1961-63).

Motivo: Lévi-Strauss parece aí rever criticamente teses avançadas na conclusão de “Raça e história”, principalmente aquelas vinculadas a uma espécie de defesa do colonialismo como forma de “coalizão entre as culturas”.

“As descontinuidades culturais”, p. 346: “a fragilidade da visão unitária do 1

desenvolvimento da humanidade”. Isso parece entrar em tensão com a ideia de civilização mundial sustentada em “Raça e história” (como plano de coexistência entre culturas heterogêneas), apesar de, no mesmo texto, Lévi-Strauss sustentar que “a humanidade não evolui em um sentido único” (p. 390).

p. 347: “a colonização é lógica e historicamente anterior ao capitalismo”; “o regime capitalista consiste em tratar os povos ocidentais do mesmo modo que o Ocidente tinha anteriormente feito com populações indígenas”. A política como condição da economia (desnaturalização da ordem política). Imperialismo: colonialismo externo (dirigido aos povos não-ocidentais); capitalismo: colonialismo interno (dirigido aos povos ocidentais). Poderiam ainda colonialismo e capitalismo ser entendidos como formas de coalizão, “remédios” democraticamente eficazes contra a estagnação homogeneizante das culturas?

Redimensionamento do problema colonial segundo uma reorientação descolonizatória?

p. 347: comentar referência ao Livro I do “Capital”, de Marx.

p. 348: sim! Ler último parágrafo inteiro. O desenvolvimento ocidental é tornado possível pela destruição dos mundos não-ocidentais. A aniquilação de outrem como “condição [ontológico-política] de possibilidade” da civilização mundial.

p. 349: confirmação direta na crítica a Malinowski. A colonização como “destruição do Novo Mundo”, e não como forma de coalizão cultural.

Contrastar com o exemplo proposto em “Raça e história”, p. 392: ao invés de fecundação de um mundo por outro, há destruição de muitos por um só. (Aproximação a Clastres: “dissolução do múltiplo no Um”.)

Afinal, Lévi-Strauss muda de posição? Se sim, o que explica essa mudança?

Estou citando o texto a partir da edição da Cosac Naify. Procurar as páginas correspondentes da 1

edição da Tempo Brasileiro, disponibilizada no blog.

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Historicamente: revoluções africanas anti-coloniais na década de 50.

Antropologicamente, filosoficamente. Hipótese: o reconhecimento da originariedade antropológica das “descontinuidades culturais”, isto é, da variação e instabilidade da condição humana e seu sentido no conflito entre os povos.

Para formulação dessa hipótese, ver Goldman, “Lévi-Strauss e os sentidos da história”, p. 53 (primeiro parágrafo). E, sobretudo, ver o início do ensaio de 1963 (p. 2

345): denúncia do caráter etnocida (no sentido de Clastres) da antropogênese ocidental.

Conexão com o parágrafo abissal do ensaio sobre Rousseau (p. 53): “o mito da dignidade exclusiva da natureza humana”, cultivado pelo “homem ocidental dos quatro últimos séculos” no sentido da instauração do “ciclo maldito” do especismo e do racismo. Lévi-Strauss reconhece um problema muito grave na realização ocidental-moderna da humanidade, constatável sobretudo em seu reflexo sobre o pensamento e a vida dos outros povos, sejam humanos ou não-humanos.

O pensamento selvagem, p. 274-275: contra Sartre, Lévi-Strauss projeta, como missão da antropologia, a reversão do “ciclo maldito”. Razão dialética (genética, histórica) e razão analítica (estrutural, classificatória). Diacronia x sincronia. Tempo x espaço. Essa crítica está inteiramente baseada na afirmação da originariedade do espaço vivido como “economia de alteridade”, ao lado do tempo e em tensão irredutível para com este – e isso, contra as filosofias da história, que pretendem poder integrar as “descontinuidades culturais” sob um mesmo “desenvolvimento unitário”.

“Dissolver o homem”! Complexidade dessa missão: da diversidade empírica ao estabelecimento de “invariantes”, mas esse processo não se conclui com a reunião destas últimas em uma “humanidade geral” - é preciso “reintegrar a cultura na natureza”.

Questões críticas:

Biologização da humanidade (redução das ciências humanas às naturais)? Ou reversão da antropogênese ocidental (afirmação da extra-humanidade do homem como refutação de sua dignidade exclusiva)? Desumanização (animalização e objetificação do humano), ou trans-humanização (humanização e subjetivação dos não-humanos)? Ou as duas coisas ao mesmo tempo? Anti-Kant, mas também anti-Darwin?!

Dissolver o Homem implica, mais radicalmente, também a dissolução do Um, ou é uma maneira, ela também, de redução do múltiplo (culturas) ao Um (natureza)? Considerar o que Lévi-Strauss diz a respeito (p. 276) sobre a complexidade última e irredutível dos elementos.

Mais uma vez, estou citando a partir de outra edição (no caso, a original) que aquela disponibilizada 2

no blog. Procurar página correspondente.

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Para tentar responder a essas questões, ver, sobretudo, o capítulo final (“A moral dos mitos”) do volume 3 das Mitológicas (A origem dos modos à mesa, de 1968!):

“Resta a saber se a vitória sobre a impotência, explorada muito além de todos os objetivos com que o homem se satisfez durante milênios, não leva à insensatez. Os dois primeiros volumes desta obra nos permitiram isolar a lógica secreta que guia o pensamento mítico, sob seu duplo aspecto de lógica das qualidades e de lógica das formas. Constatamos agora que a mitologia também encerra uma moral, porém infelizmente mais afastada da nossa do que sua lógica o é de nossa lógica. Se a origem dos modos à mesa e, para falar de modo mais geral, do decoro, se encontra, como julgamos haver mostrado, numa deferência para com o mundo, cuja civilidade consiste, precisamente, em respeitar as obrigações, segue-se que a moral imanente dos mitos vai no sentido contrário da que professamos atualmente. Em todo caso, ela nos ensina que uma fórmula de que fizemos tanto caso, como ‘o inferno são os outros’ não constitui uma proposição filosófica, e sim um testemunho etnográfico sobre uma determinada civilização. Pois fomos habituados desde a infância a temer a impureza de fora. Quando proclamam, ao contrário, que ‘o inferno somos nós mesmos’, os povos selvagens dão uma lição de modéstia que gostaríamos de crer que ainda somos capazes de escutar. Neste século em que o homem teima em destruir inumeráveis formas de vida, depois de tantas sociedades cuja riqueza e diversidade constituíam desde tempos imemoriais seu maior patrimônio, nunca, com certeza, nunca foi mais necessário dizer, como o fazem os mitos que um humanismo bem ordenado não começa por si mesmo. Coloca o mundo antes da vida, a vida antes do homem, o respeito pelos outros seres antes do amor-próprio. E que mesmo uma estadia de um ou dois milhões de anos nesta terra — já que de todo modo há um dia de acabar — não pode servir de desculpa para uma espécie qualquer, mesmo a nossa, dela se apropriar como coisa e se comportar sem pudor ou moderação” (p. 459-460).

Fundamental como explicação do propósito de dissolução do Homem: “o mundo antes da vida, a vida antes do homem, e o respeito pelos outros seres antes do amor-próprio”. Redefinição radical do conceito de humanidade: o humano em meio ao mundo e à vida, com os não-humanos, e os diferentemente humanos. A humanidade como relação instável e provisória entre seres extra-humanos.

Portanto, parece que, com aquele projeto anti-filosófico, Lévi-Strauss pretende guiar-se antes pela moral indígena não-ocidental do que a moral alienígena dos ocidentais…

Qual é essa moral? Em que modo de articulação entre cultura (humanidade) e natureza (não-humanidade) ela se acha baseada?

Ver novamente o ensaio de 1963, p. 353-354: a ambiguidade essencial da natureza: subcultura e sobrenatureza (acima da cultura). A orientação pelo “ponto de vista de Outrem” (extra-/sobre-humano).

Será que então dissolver o Homem significa colocá-lo sob essa perspectiva totalmente outra, sobrenatural? Lembrar a anedota das Antilhas (animais x espíritos).

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Todavia, contrariamente a isso, Lévi-Strauss parece concluir que dissolver o homem resulta em outro “humanismo”.

[Digressão baseada em A teoria e a queda do céu (Marco Antonio Valentim): objetividade kantiana como instrumento de conjuração da alteridade cosmológica dos espíritos – alteridade extra-humana (sobrenatural) que se opõe à unificação do mundo pelo homem (natureza), bem como a unificação do próprio homem no sentido da identidade consigo mesmo (cultura).

Trecho:

A hipótese lançada acima, de que o cosmopolitismo de Kant – a sua “teoria do céu” em sentido mais amplo – consiste em uma certa política cósmica, resultante da aliança dos humanos com os extraterrestres, ganha uma confirmação decisiva a partir de outro ensaio, Sonhos de um visionário explicados por sonhos da metafísica (1766). Aí se torna possível discriminar que espécie de outro extra-humano é necessariamente preterido ou, como propõe Monique David-Ménard (A loucura na razão pura, p. 102), “recalcado” pelo homem cosmopolita, em benefício de seu duplo extraterrestre. No entanto, é curioso observar que Kant escreve esse ensaio, decisivo no advento da Crítica, para renegar como irremediavelmente ilusórias “filosoficções” sobre a ideia de mundo tais como as que ele próprio desenvolve na Teoria do céu. Segundo David-Ménard, essa renegação se consolida na discussão da antinomia da razão pura realizada pela Primeira Crítica, mediante a exclusão do “estatuto do provável nas categorias do entendimento”, e seria motivada, principalmente, pela necessidade de desmentir “a perigosa vizinhança do noumenon com os espíritos dos mortos” (idem, p. 25-27). Essa vizinhança, será ela apenas ideológica, ou radicalmente cosmológica? Tomando como alvo exemplar de suas considerações a obra do místico sueco Swedenborg, o filósofo empreende uma “Anticabala” (Sonhos de um visionário, p. 176 e ss.). Nessa polêmica, Kant preocupa-se em elucidar a ilusão que acomete “pessoas incomuns”, fazendo-as tomar “objetos como exteriores a elas, os quais seriam tidos como uma presença de naturezas espirituais em seus sentidos corporais”, de modo que “imagens aparentadas da fantasia [assumam] a aparências de sensações” (idem, p. 173). O perigo de tal espécie de ilusão reside, em seu limite, no fato de que os sujeitos dela cativos – sejam loucos, impostores ou mesmo filósofos – julgariam habitar ou ter acesso a “mundos diferentes daqueles em que eles têm sensações” (idem, p. 210-211). Essa hipóstase da alucinação espiritual teria ainda por consequência a violação da própria apercepção identitária subjetiva (a “unidade pessoal”; idem, p. 163):

É certamente um mesmo sujeito que pertence como um membro simultaneamente ao mundo visível e invisível, mas não exatamente a mesma pessoa, porque as representações de uma não são ideias que acompanhem as representações do outro mundo, devido à sua constituição distinta, e, por isso, não lembro enquanto homem aquilo que penso como espírito e, vice-versa, meu estado como um homem não entra na representação de mim mesmo como um espírito (idem, p. 170).

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Dito de outro modo, “a alma humana deveria, por isso, ser considerada já na vida presente como ligada a dois mundos simultaneamente” (Sonhos de um visionário, p. 162): o “mundo comum”, objetivamente dado, e a “comunidade dos espíritos”, em que “seria tão fácil falar com um habitante de Saturno quanto com uma alma humana defunta” (idem, p. 204). Donde o problema não simplesmente epistemológico, mas intensamente cosmológico, com o qual Kant se debate (sem dúvida, muito além de seus Sonhos): como “construir a fronteira entre um espírito e outro, ou entre o interior e o exterior para um mesmo sujeito” (David-Ménard, A loucura na razão pura, p. 99)? Contra a ilusão da diferença entre mundos que paradoxalmente se superpõem em conflito, como assegurar em definitivo a unidade do “mundo comum”, cosmopolita? Com extrema perspicácia, David-Ménard demonstra como Kant oscila, quanto a propósito, entre uma explicação fisiológica da ilusão espectral e um fascínio pelo “estranho parentesco”, “acordo prodigioso”, do idealismo metafísico com o ocultismo visionário (A loucura na razão pura, p. 92 e ss.). De fato, há que observar a indisfarçável semelhança de condição entre os “outros cosmopolitas defuntos” (Sonhos de um visionário, p. 204) que, aos olhos de Kant, jamais poderíamos ser e os genuínos “cidadãos do mundo”, em que, segundo o filósofo, todos sempre podemos nos tornar: assim como um espírito “ocupa um espaço sem poder preenchê-lo” (idem, p. 151), o homem cosmopolita, que exerce sua liberdade moral em meio à causalidade da natureza. Ora, desse ponto de vista, que diferença haveria entre a sobrenatureza de um e a Cultura de outro, senão aquela que Kant presume haver entre os “sonhos da sensação”, supostamente idiossincráticos, e os “sonhos da razão”, por princípio universalizáveis (A loucura na razão pura, p. 94)? Não obstante, importa sobretudo destacar a manifesta divergência de função entre os espíritos e aqueles outros, os extraterrestres, na economia do discurso kantiano: enquanto os primeiros multiplicam os mundos, constituindo para Kant o modelo da alteridade cosmológica, os segundos só vêm a confirmar a unidade do mundo, refletindo a imagem universal da humanidade. Segundo David-Ménard, tal fronteira entre os outros-outros e os outros-mesmos, unicamente capaz de garantir a coincidência dos humanos consigo próprios, é erigida por Kant, nos Sonhos de um visionário, mediante a “noção crítica de limite” (A loucura na razão pura, p. 98), mais precisamente, por recurso à objetividade – como nada menos que dispositivo de neutralização da alteridade cosmológica: o objeto da experiência “constrasta com os fantasmas e limita-lhes com isso o desenvolvimento” (idem, p. 101). Portanto, 3

considerada assim cosmologicamente, a revolução copernicana de Kant é, antes de mais nada, como que um levante político: do homem cosmopolita, extraterrestre, contra a multidão dos espíritos terrenos, extra-humanos.

“O objeto percebido não se define aqui por si mesmo, independentemente do efeito de limitação que 3

exerce sobre os fantasmas; uma representação merece o nome de percepção quando contrasta com as imaginações e, com isso, assegura estar-se no sonho de vigília e não na alucinação. O limite entre o interior e o exterior é aqui o resultado de uma limitação da manifestação da imaginação, decorrente do efeito de contraste. O que vem antes é esse efeito. O sonho de vigília é de imediato uma relação; é a efetividade de uma diferenciação entre o sonho e o percebido, garantindo com isso a separação entre o interior e o exterior. […] com a Crítica da razão pura, essa origem voltará no fato de que, no seio de uma teoria do conhecimento em princípio tomada em si mesma, o objeto de conhecimento tem, em relação às errâncias da razão, a mesma função restritiva que tinha o efeito de contraste assegurado pelo objeto percebido no sonho de vigília” (A loucura na razão pura, p. 101, 105).

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Para uma ideia sobre como a derrocada do antropocentrismo tem sido considerada contemporaneamente na filosofia, ver Ludueña sobre “mito an-antropomórfico” e Preciado sobre o “animalismo”.

Luduenã, Astrophobos o la in-harmonia mundi. Glosas a la obra poética de H.P. Lovecraft (p. 192): “En ese sentido, el universo que se prefigura en los cuentos imbuidos del materialismo propio del último período lovecraftiano es también profundamente in-humano, es decir, allí no rigen más las grandes polaridades que habían estructurado el mundo del ánthropos: los dioses son reemplazados por seres biológicamente diversos que habitan el universo desde eones inconmensurablemente anteriores al hombre, las leyes humanas abolidas, las nociones de bien y de mal carecen de todo fundamento y, finalmente, el cosmos se revela como el lugar más inhóspito que se pueda concebir para una especie insustancial como la humana. […] La asunción radical del universo de la física moderna implica que la hipótesis hipercosmológica se resuelve en una anulación del concepto mismo de cosmos.”

Disponível em: http://www.revistalanda.ufsc.br/PDFs/ed2/Fabian%20Ludueña.pdf.

Preciado, O feminismo não é um humanismo (O Povo, 24/11/2014): “O Renascimento, o Iluminismo, o milagre da revolução industrial repousam, portanto, sobre a redução de escravos e mulheres à condição de animais e sobre a redução dos três (escravos, mulheres e animais) à condição de máquinas (re) produtivas. Se o animal foi um dia concebido e tratado como máquina, a máquina se torna pouco a pouco um tecnoanimal vivo entre os animais tecnovivos. A máquina e o animal (migrantes, corpos farmacopornográficos, filhos da ovelha Dolly, cérebros eletrodigitais) se constituem como novos sujeitos políticos do animalismo por vir. A máquina e o animal são nossos homônimos quânticos. […] A mudança necessária é tão profunda que se costuma dizer que ela é impossível. Tão profunda que se costuma dizer que ela é inimaginável. Mas o impossível está por vir. E o inimaginável nos é devido. O que era o mais impossível e inimaginável, a escravidão ou o fim da escravidão? O tempo de animalismo é o do impossível e o do inimaginável. Este é o nosso tempo: o único que nos resta”.

Disponível em: http://www.opovo.com.br/app/colunas/filosofiapop/2014/11/24/noticiasfilosofiapop,3352134/o-feminismo-nao-e-um-humanismo.shtml.]

O pensamento selvagem, p. 276: contra a filosofia da história: o que fazer com os “povos sem história”?

p. 277: o egocentrismo historicista x a verdade do homem como “sistema de suas diferenças e propriedades comuns”.

p. 277-278: o primitivismo sartreano como variação do “cogito” de Descartes. A oposição entre o eu e o outro no solipsismo historicista como abismo entre “o ser e o nada”.

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p. 278, nota 82: fundamental: o projeto de uma etnografia da filosofia!

p. 282: o “paradoxo do sistema”: a história é a-histórica (“totalidade sincrônica”), o seu devir é neutralizado pela lógica totalizadora. A história como mito. (Comparação problemática com o “passado” imemorial dos “primitivos”: ora, esse passado é presente! Lembrar Davi Kopenawa sobre os espíritos como persistência virtual dos ancestrais na atualidade cósmica).

p. 284: generalização da crítica. Diferença entre história e etnologia em termos das categorias de tempo e espaço (lembrar “Raça e história”). Simetria entre elas: antropologia; assimetria (hierárquica): filosofia.

p. 285, final: argumento contra a ideia de história universal. A universalidade é sempre parcial, porque há múltiplas “histórias universais” (exemplo da Revolução Francesa, dividida entre a perspectiva dos jacobinos e a dos aristocratas). A história é sempre “história-para”.

Referir aqui a conferência de Dussel sobre a história universal: https://www.youtube.com/watch?v=6GLzHSlGf4o.

p. 286, nota 83: fundamental: a filosofia da história como baseada na operação de exclusão dos “outros nós”. Os outros são simplesmente outros (não-eu), e não outros eus, eus-outros. De um ponto de vista etnológico, a filosofia histórica se revela como “canibalismo intelectual”.

[Digressão sobre o conceito deleuzo-guattariano de “racismo europeu”:

Olhando-se mais de perto, um prejuízo genuinamente transcendental parece garantir o nexo a priori entre humanismo e racismo, tal como exemplificado pela filosofia kantiana:

O racismo europeu como pretensão do homem branco nunca procedeu por exclusão nem atribuição de alguém designado como Outro: seria antes nas sociedades primitivas que se apreenderia o estrangeiro como um “outro”. O racismo procede por determinação das variações de desvianças, em função do rosto Homem branco que pretende integrar em ondas cada vez mais excêntricas e retardadas os traços que não são conformes, ora para tolerá-los em determinado lugar e em determinadas condições, em certo gueto, ora para apagá-los no muro que jamais suporta a alteridade (é um judeu, é um árabe, é um negro, é um louco..., etc). Do ponto de vista do racismo, não existe exterior, não existem as pessoas de fora. Só existem pessoas que deveriam ser como nós, e cujo crime é não o serem. A cisão não passa mais entre um dentro e um fora, mas no interior das cadeias significantes simultâneas e das escolhas subjetivas sucessivas. O racismo jamais detecta as partículas do outro, ele propaga as ondas do mesmo até à extinção daquilo que não se deixa identificar (ou que só se deixa identificar a partir de tal ou qual desvio) (Deleuze & Guattari, “Rostidade”, in: Mil platôs 3, p. 45-46).

O mencionado prejuízo advém da postulação do caráter ontologicamente derivado da alteridade (como “variação desviante”), sem o que a pretensão a um pensamento

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universal e necessário – notadamente, a ideia de uma natureza humana – não poderia sequer fazer sentido: extrapolando-se outra tese clastreana, “a negação etnocida do Outro” é o que torna possível a “identificação a si” (Clastres, “Do etnocídio”, p. 79) requerida para a instituição tanto do entendimento transcendental quanto do Estado 4

cosmopolita. E, com efeito, o postulado ontológico-político da inexistência de 5

Outrem (cujas origens remontam, sem dúvida, à ciência aristotélica do ente enquanto ente), constitui nada menos que o fundamento metafísico da experiência colonial:

Enquanto o negro estiver em casa não precisará, salvo por ocasião de pequenas lutas intestinas, confirmar seu ser diante de um outro. Claro, bem que existe o momento de “ser-para-o-outro”, de que fala Hegel, mas qualquer ontologia torna-se irrealizável em uma sociedade colonizada e civilizada. Parece que este fato não reteve suficientemente a atenção daqueles que escreveram sobre a questão colonial. Há, na Weltanschauung de um povo colonizado, uma impureza, uma tara que proíbe qualquer explicação ontológica. Pode-se contestar, argumentando que o mesmo pode acontecer a qualquer indivíduo, mas, na verdade, está se mascarando um problema fundamental. A ontologia, quando se admitir de uma vez por todas que ela deixa de lado a existência, não nos permite compreender o ser do negro. Pois o negro não tem mais de ser negro, mas sê-lo diante do branco. Alguns meterão na cabeça que devem nos lembrar que a situação tem um duplo sentido. Respondemos que não é verdade. Aos olhos do branco, o negro não tem resistência ontológica. De um dia para o outro, os pretos tiveram de se situar diante de dois sistemas de referência. Sua metafísica ou, menos pretensiosamente, seus costumes e instâncias de referência foram abolidos porque estavam em contradição com uma civilização que não conheciam e que lhes foi imposta (Fanon, Pele negra, máscaras brancas, p. 103-104).]

O pensamento selvagem, p. 290: finalmente: “recusar a equivalência entre a noção de história e a de humanidade”. O que isso significa? Recusar a universalidade do humano (“nós” exclusivo) possibilitada pela exclusão da multiplicidade antropológica (os outros “eus”). Contra o “humanismo transcendental”, a humanidade como “sistema de diferenças”. A “ilusão da liberdade” (“o inferno são os outros”).

Mas isso quer dizer também que Lévi-Strauss renuncia em definitivo à própria ideia de uma natureza humana universal? Não parece, pois, a princípio, essa universalidade não é necessariamente unívoca: universalidade exclusiva x universalidade inclusiva.

Evidência nesse sentido:

p. 297-298: “o processo total do conhecimento humano” através da solidariedade essencial entre pensamento domesticado (científico) e selvagem (mágico). O mesmo e único mundo (o “mundo físico”) é “abordado por extremidades opostas”. Será que então a unidade do mundo funciona como fundamento para a universalidade (sempre parcial e, por isso, potencialmente inclusiva) do humano? Lévi-Strauss parece se apoiar na “natureza única” para garantir a coexistência sistemática entre as diferentes

“[…] aquela autoconsciência que, ao produzir a representação eu penso, que deve poder acompanhar 4

todas as demais e é una e idêntica em toda consciência, não pode jamais ser acompanhada por nenhuma outra” (Kant, Crítica da razão pura, p. 85, B132).

“Portanto, o postulado que serve de fundamento a todos os artigos seguintes [para a instituição da paz 5

perpétua entre os Estados] é: todos os homens que podem influenciar-se reciprocamente têm de pertencer a alguma constituição civil” (Kant, À paz perpétua, p. 23)

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culturas e povos (Latour). Multiculturalismo? Teleologia estruturalista: “as coisas caminham inevitavelmente nessse sentido” (“Raça e história”, fim).

Possível exemplificação da tese conclusiva de O pensamento selvagem: “O equivalente funcional do xamanismo indígena é a ciência. É o cientista, é o laboratório de física de altas energias, é o acelerador de partículas. O chocalho do xamã é um acelerador de partículas” (Viveiros de Castro, Encontros, p. 45).

Contudo, no contexto, Viveiros de Castro não está afirmando uma semelhança entre xamanismo e ciência. Ele quer dizer que o xamanismo é tão epistemologicamente referencial nos mundos indígenas quanto a ciência é no nosso. E, não obstante, xamanismo e ciência operam segundo princípios completamente distintos, radicalmente divergentes: subjetivação do objeto x objetivação do sujeito (ver seção sobre xamanismo de “Perspectivismo e multinaturalismo na América indígena”).

Donde, a crítica implícita a Lévi-Strauss:

“Em outras palavras, essa cosmopolítica, ou ontologia política da diferença sensível universal, atualiza um outro universo que o nosso, ou outra coisa que um universo — o seu cosmos é um multiverso, para falarmos como William James, uma multiplicidade de províncias e agências intersecantes em relação de ‘desarmonia preestabelecida’, como procurei mostrar em minhas considerações sobre o ‘multinaturalismo’ indígena (Viveiros de Castro 1996, 2004). Esse pensamento, enfim, reconhece outros modos de existência que o nosso; justifica uma outra prática da vida, e um outro modelo do laço social; distribui diferentemente as potências e as competências do corpo e da alma, do humano e do extra-humano, do geral e do particular, do ordinário e do singular, do fato e do feito; mobiliza, em suma, toda uma outra imagem do pensamento. Alteridade cultural radical. Como explicou um kadiwéu à etnógrafa Mônica Pechincha (1994:140): ‘O índio é parecido, mas o pensamento dele é muito diferente’. Aforismo contra-antropológico exemplar, visto que alguém de nosso ofício diria, antes, algo como: ‘o índio parece diferente, mas seu pensamento é muito semelhante’. Eis que o ‘selvagem’, então, parece que pensa diferentemente sobre o pensamento selvagem” (Viveiros de Castro, “Transformação na antropologia, transformação da antropologia”, p. 158).

Universo x multiverso: a “alteridade cultural radical” implica uma diferença de mundo - e de pensamento!

“Dissolver o homem”: não uma outra antropologia, nem um humanismo, mas uma contra-antropologia, um trans-humanismo.

Contra-: Clastres (x o “com” de Lévi-Strauss). Não há conexão sistemática entre os mundos; há, sim, divergência originária (inclusive, sob a forma extrema da “exclusão recíproca”).

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