teoria da história - história e análise...

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Teoria da História REVISTA REVISTA Ano 6 - Edição Nº 9 Junho 2010 - R$ 15,00 Eurelino Coelho Daniel Bensaïd Luiz Bernardo Pericás Igor Gomes Santos Carlos Prado Michael Löwy Alex Callinicos Carla Luciana Silva Inés Nercesian Nazira Correia Camely Marco M. Pestana

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Teoria da História

REVISTAREVISTA Ano 6 - Edição Nº 9Junho 2010 - R$ 15,00

Eurelino Coelho

Daniel Bensaïd

Luiz Bernardo Pericás

Igor Gomes Santos

Carlos Prado

Michael Löwy

Alex Callinicos

Carla Luciana Silva

Inés Nercesian

Nazira Correia Camely

Marco M. Pestana

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Revista História & Luta de Classes Nº 9 – Junho de 2010

Organizadores gerais deste número: Virgínia Fontes (UFF); Eurelino Coelho (UEFS); Igor Gomes Santos (IFBA)Editor: Gilberto Calil (UNIOESTE)Comissão Editorial: Danilo Martuscelli (SP), Enrique Serra Padros (RS), Gelsom Rozentino de Almeida (RJ); Gilberto Calil (PR), Igor Gomes Santos (BA); Kênia Miranda (RJ); Lorene Figueiredo (MG), Lúcio Flávio de Almeida (SP); Virgínia Fontes (RJ)Conselho Editorial: Adalberto Paranhos (UFU), Adelmir Fiabani (UNIPAMPA), Afonso Alencastro (UFSJ), Alessandra Gasparotto (CAVG/UFPEL), Alexandre

Tavares Lira (UFF), Angélica Lovatto (NEILS), Antonio Cláudio Rabello (UNIR), Antonio de Pádua Bosi (UNIOESTE), Beatriz Loner (UFPEL), Carla Luciana Silva (UNIOESTE), Carlos Zacarias de Sena Júnior (UNEB), Cláudia Trindade (FIOCRUZ), Danilo Martuscelli (UNICAMP), David Maciel (UFG); Demian Melo (UFF), Diorge Konrad (UFSM), Dulce Portilho (UEG), Edílson José Gracioli (UFU), Enrique Serra Padrós (UFRGS), Eurelino Coelho (UEFS), Fabiano Faria (RJ), Fábio Frizzo (UFF), Felipe Demier (UFF), Francisco Dominguez (Middlesex Universitty), Gabriela Rodrigues (RS), Gelsom Rozentino (UERJ), Gilberto Calil (UNIOESTE), Gilson Dantas (UEG), Gláucia Konrad (UFSM), Hélio Rodrigues (IESB e CEUB), Hélvio Mariano (UNICENTRO), Igor Gomes Santos (IFBA), Isabel Gritti (URI), Jairo Santiago, Joana El-Jaick Andrade (USP), João Raimundo Araújo (FFSD), José Pedro Cabrera (UNT), José Rodrigues (UFF), Kátia Paranhos (UFU), Kênia Miranda (UFF), Lorene Figueiredo de Oliveira (UFJF), Lúcio Flávio de Almeida (PUC-SP), Luis Fernando Guimarães Zen (UNIOESTE) Luiz Bernardo Pericás (FLACSO); Marcelo Badaró Mattos (UFF), Maria José Acedo Del´Olmo (UNIVAP), Mario Jorge Bastos (UFF), Mário José Maestri Filho (UPF), Michel Silva (UDESC), Nara Machado (PUCRS), Osvaldo Maciel (UNEAL/UFAL), Paulo Douglas Barsotti (FGV-SP e NEILS), Paulo Villaça (UFF); Paulo Zarth (UFFS/UNIJUÍ), Pedro Marinho (MAST), Renata Gonçalves (UEL), Renato Lemos (UFRJ), Ricardo Gama da Costa (FFSD), Rômulo Costa Mattos (USS); Sarah Iurkiv Ribeiro (UNIOESTE), Selma Martins Duarte (SEED-PR), Sérgio Lessa (UFAL), Sirlei Gedoz (UNISINOS), Sônia Regina Mendonça (UFF), Tarcísio Carvalho (Pedro II), Teones Pimenta de França (SEE-RJ) Theo Piñeiro (UFF), Valério Arcary (CEFET-SP), Vera Barroso (FAPA), Vicente Ribeiro (UFFS), Virgínia Fontes (UFF/FIOCRUZ), Wanderson Fábio de Melo (USP), Zilda Alves de Moura (UFMS), Zuleide Simas da Silveira (CEFET-RJ).

Próximos Números: Dossiê Militares e Luta de Classes. Envio de contribuições até 30.5.2010; Violência e Criminalização. Envio de contribuições até 30.09.2010; Revolução e Contra-Revolução. Envio de contribuições até 30.03.2011.

Distribuição: [email protected]. Projeto Gráfico, Capa e Diagramação: Cristiane Carla Johann. Imagem da Capa: Paranoic visage. Salvador Dalí (1935). Revisão e Edição: Gilberto Calil.

Impressão: Gráfica Líder, Av. Maripá, 796 – Telefax (45 3254-1892) – 85960-000 – Marechal Cândido Rondon - PRForam impressos 1.000 exemplares em Junho de 2010.

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO..............................................................................................................................................................5

DOSSIÊ TEORIA DA HISTÓRIA

A dialética na oficina do historiador: ideias arriscadas sobre algumas questões de método

Eurelino Coelho...................................................................................................................................................................7

Tempos históricos e ritmos políticos

Daniel Bensaïd...................................................................................................................................................................17

Breves considerações sobre o método historiográfico

Luiz Bernardo Pericás.......................................................................................................................................................22

A “eficiência real”: apontamentos de Gramsci para uma história/concepção dos partidos políticos

Igor Gomes Santos......................................................................................................................................................................28

Walter Benjamin contra a história progressista

Carlos Prado......................................................................................................................................................................33

LÖWY-CALLINICOS: UM DEBATE IMPORTANTE...............................................................................................40

Compreender (os horrores de) a história

Michael Löwy....................................................................................................................................................................41

Resposta a Michael Löwy

Alex Callinicos..................................................................................................................................................................44

ARTIGOS

A “queda do muro” e a morte do comunismo em Veja

Carla Luciana Silva...........................................................................................................................................................46

Ernesto Che Guevara: el antiimperialismo y la construcción del socialismo en Cuba

Inés Nercesian...................................................................................................................................................................55

Haiti: holocaustos coloniais e o capitalismo da piedade

Nazira Correia Camely......................................................................................................................................................61

A multilateralidade da luta contra o capital: a formação da classe trabalhadora carioca do ponto de vista das associações recreativas - 1900-1920

Marco M. Pestana..............................................................................................................................................................66

NORMAS PARA AUTORES.........................................................................................................................................73

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Revista História & Luta de Classes Nº 9 – Junho de 2010

Organizadores gerais deste número: Virgínia Fontes (UFF); Eurelino Coelho (UEFS); Igor Gomes Santos (IFBA)Editor: Gilberto Calil (UNIOESTE)Comissão Editorial: Danilo Martuscelli (SP), Enrique Serra Padros (RS), Gelsom Rozentino de Almeida (RJ); Gilberto Calil (PR), Igor Gomes Santos (BA); Kênia Miranda (RJ); Lorene Figueiredo (MG), Lúcio Flávio de Almeida (SP); Virgínia Fontes (RJ)Conselho Editorial: Adalberto Paranhos (UFU), Adelmir Fiabani (UNIPAMPA), Afonso Alencastro (UFSJ), Alessandra Gasparotto (CAVG/UFPEL), Alexandre

Tavares Lira (UFF), Angélica Lovatto (NEILS), Antonio Cláudio Rabello (UNIR), Antonio de Pádua Bosi (UNIOESTE), Beatriz Loner (UFPEL), Carla Luciana Silva (UNIOESTE), Carlos Zacarias de Sena Júnior (UNEB), Cláudia Trindade (FIOCRUZ), Danilo Martuscelli (UNICAMP), David Maciel (UFG); Demian Melo (UFF), Diorge Konrad (UFSM), Dulce Portilho (UEG), Edílson José Gracioli (UFU), Enrique Serra Padrós (UFRGS), Eurelino Coelho (UEFS), Fabiano Faria (RJ), Fábio Frizzo (UFF), Felipe Demier (UFF), Francisco Dominguez (Middlesex Universitty), Gabriela Rodrigues (RS), Gelsom Rozentino (UERJ), Gilberto Calil (UNIOESTE), Gilson Dantas (UEG), Gláucia Konrad (UFSM), Hélio Rodrigues (IESB e CEUB), Hélvio Mariano (UNICENTRO), Igor Gomes Santos (IFBA), Isabel Gritti (URI), Jairo Santiago, Joana El-Jaick Andrade (USP), João Raimundo Araújo (FFSD), José Pedro Cabrera (UNT), José Rodrigues (UFF), Kátia Paranhos (UFU), Kênia Miranda (UFF), Lorene Figueiredo de Oliveira (UFJF), Lúcio Flávio de Almeida (PUC-SP), Luis Fernando Guimarães Zen (UNIOESTE) Luiz Bernardo Pericás (FLACSO); Marcelo Badaró Mattos (UFF), Maria José Acedo Del´Olmo (UNIVAP), Mario Jorge Bastos (UFF), Mário José Maestri Filho (UPF), Michel Silva (UDESC), Nara Machado (PUCRS), Osvaldo Maciel (UNEAL/UFAL), Paulo Douglas Barsotti (FGV-SP e NEILS), Paulo Villaça (UFF); Paulo Zarth (UFFS/UNIJUÍ), Pedro Marinho (MAST), Renata Gonçalves (UEL), Renato Lemos (UFRJ), Ricardo Gama da Costa (FFSD), Rômulo Costa Mattos (USS); Sarah Iurkiv Ribeiro (UNIOESTE), Selma Martins Duarte (SEED-PR), Sérgio Lessa (UFAL), Sirlei Gedoz (UNISINOS), Sônia Regina Mendonça (UFF), Tarcísio Carvalho (Pedro II), Teones Pimenta de França (SEE-RJ) Theo Piñeiro (UFF), Valério Arcary (CEFET-SP), Vera Barroso (FAPA), Vicente Ribeiro (UFFS), Virgínia Fontes (UFF/FIOCRUZ), Wanderson Fábio de Melo (USP), Zilda Alves de Moura (UFMS), Zuleide Simas da Silveira (CEFET-RJ).

Próximos Números: Dossiê Militares e Luta de Classes. Envio de contribuições até 30.5.2010; Violência e Criminalização. Envio de contribuições até 30.09.2010; Revolução e Contra-Revolução. Envio de contribuições até 30.03.2011.

Distribuição: [email protected]. Projeto Gráfico, Capa e Diagramação: Cristiane Carla Johann. Imagem da Capa: Paranoic visage. Salvador Dalí (1935). Revisão e Edição: Gilberto Calil.

Impressão: Gráfica Líder, Av. Maripá, 796 – Telefax (45 3254-1892) – 85960-000 – Marechal Cândido Rondon - PRForam impressos 1.000 exemplares em Junho de 2010.

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO..............................................................................................................................................................5

DOSSIÊ TEORIA DA HISTÓRIA

A dialética na oficina do historiador: ideias arriscadas sobre algumas questões de método

Eurelino Coelho...................................................................................................................................................................7

Tempos históricos e ritmos políticos

Daniel Bensaïd...................................................................................................................................................................17

Breves considerações sobre o método historiográfico

Luiz Bernardo Pericás.......................................................................................................................................................22

A “eficiência real”: apontamentos de Gramsci para uma história/concepção dos partidos políticos

Igor Gomes Santos......................................................................................................................................................................28

Walter Benjamin contra a história progressista

Carlos Prado......................................................................................................................................................................33

LÖWY-CALLINICOS: UM DEBATE IMPORTANTE...............................................................................................40

Compreender (os horrores de) a história

Michael Löwy....................................................................................................................................................................41

Resposta a Michael Löwy

Alex Callinicos..................................................................................................................................................................44

ARTIGOS

A “queda do muro” e a morte do comunismo em Veja

Carla Luciana Silva...........................................................................................................................................................46

Ernesto Che Guevara: el antiimperialismo y la construcción del socialismo en Cuba

Inés Nercesian...................................................................................................................................................................55

Haiti: holocaustos coloniais e o capitalismo da piedade

Nazira Correia Camely......................................................................................................................................................61

A multilateralidade da luta contra o capital: a formação da classe trabalhadora carioca do ponto de vista das associações recreativas - 1900-1920

Marco M. Pestana..............................................................................................................................................................66

NORMAS PARA AUTORES.........................................................................................................................................73

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APRESENTAÇÃO

Teoria da História

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oi comum para historiadores formados nas últimas décadas do século XX e nos primeiros anos do século XXI ouvir e repetir a recomendação sobre os perigos e riscos das teorias, principalmente na História. A sugestão era de que o historiador, na especificidade do seu ofício, deveria deixar as fontes falarem. As teorias atrapalhariam, pois traziam uma carga de perguntas, que seriam anteriores ao contato do historiador com a fonte. As hipóteses foram concebidas como recurso metodológico específico das ciências naturais e os historiadores que insistissem nelas eram aqueles que não conseguiam abandonar a velha História positivista ou apenas precisavam forçar o material empírico a confirmar suas certezas teóricas.

Alguns dentre os mais argutos historiadores dessa nova geração não abdicaram completamente das teorias. Ao contrário, bateram nas portas de outros saberes, como a Antropologia, e foram tirar deles teorias e métodos para a leitura das fontes. Buscavam dar conta de outro pavor das novas gerações de historiadores: as generalizações, a objetividade, as macro-Histórias. Uma certa Antropologia surgiu aos historiadores como um remédio potente contra um suposto mal infligido pela teoria, o silenciamento do sujeito (objeto) histórico. A Antropologia podia fazer o historiador perceber os padrões, rituais e códigos simbólicos de um grupo social naquilo que ele tinha de mais específico, peculiar e característico. Assim pretendiam evitar os anacronismos e as generalizações de conceitos como classes, raça, Estado, política, sempre que as fontes indicassem sua ausência no repertório de significantes de alguns grupos sociais e, ao mesmo tempo, recusavam-se as generalizações teórico-acadêmicas que pretendiam revelar a essência, o real, ou a verdade frente as representações, práticas culturais e modos de interpretação do sujeito da sua própria História. O significante ganhou autonomia perante o signo e o significado, descolou-se e ficou "livre como um pássaro", para lembrar a fina ironia de Marx, ao falar do trabalhador "livre" assalariado em O Capital.

Outra "virada" na historiografia teria sido um certo uso da Lingüística, que decretava o fim da objetividade e, de roldão, desqualificava as pretensões de qualquer teoria da História. De fato, se a teoria é uma tentativa de organizar em linhas gerais, certos princípios de pesquisa com base em observações da vida social, sofrendo e atualizando-se com as próprias questões históricas de sua época, isso significa que a teoria é tão histórica e social quanto a realidade sobre a qual se debruça. Mas não foi essa a conclusão do giro linguístico, que não admitia a historicidade: para seus arautos, nem o contexto, nem as "questões próprias de sua época", podem ser objetivamente apreendidos: reduziram todo contexto a texto, convertendo toda objetividade em subjetividade. As teorias não poderiam mais ser utilizadas como tais, pois seriam meros dispositivos de saber e poder, inventando incessantemente padrões, racionalizações, enquadramentos e generalizações das experiências que se caracterizariam justamente por serem múltiplas, irracionais, dispersas e fragmentadas.

A História quase retornou aos moldes positivistas da pura e simples narrativa. Os historiadores mais jovens estavam porém algo informados dos cuidados que deveriam tomar com as fontes oficiais, com os grandes nomes, desconfiavam da História vista por cima e da História como repetição enfadonha dos vencedores. Isto é, estavam comprometidos esteticamente com uma nova História (e uma parte só com a História enquanto olhar para o passado, descompromissado com o presente) interessada pelos “de baixo”, por novas abordagens, sujeitos e objetos, porém este compromisso estético não foi acompanhado de uma guinada ética. A forma continuou a se revelar conservadora e as conclusões das pesquisas davam mostras dos limites da pura empiria.

A História passou a ser encarada cada vez mais como literatura. Para fazê-la, basta uma dose de boa escrita, recurso a documentos históricos, organização destes documentos de acordo com a sua "invenção" da estória a contar e pronto! Aliás, com essa provocação começa o autor do primeiro texto da revista. Basta isso? Onde fica o método?

Necessário se faz aqui pronunciar, a respeito das viradas lingüísticas ou outras, que o contexto histórico no qual se processaram tantas novidades historiográficas foi de intenso ataque ao marxismo, de ascensão histórica de novas (velhas) formas de ataque do capital sobre as organizações políticas dos trabalhadores, de mercantilização da vida humana e de decréscimo de vínculos de solidariedade e identidades entre explorados e subalternizados. Essa mercantilização, que alcança todas as esferas da vida social, não podia deixar de afetar a prática dos

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APRESENTAÇÃO

Teoria da História

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oi comum para historiadores formados nas últimas décadas do século XX e nos primeiros anos do século XXI ouvir e repetir a recomendação sobre os perigos e riscos das teorias, principalmente na História. A sugestão era de que o historiador, na especificidade do seu ofício, deveria deixar as fontes falarem. As teorias atrapalhariam, pois traziam uma carga de perguntas, que seriam anteriores ao contato do historiador com a fonte. As hipóteses foram concebidas como recurso metodológico específico das ciências naturais e os historiadores que insistissem nelas eram aqueles que não conseguiam abandonar a velha História positivista ou apenas precisavam forçar o material empírico a confirmar suas certezas teóricas.

Alguns dentre os mais argutos historiadores dessa nova geração não abdicaram completamente das teorias. Ao contrário, bateram nas portas de outros saberes, como a Antropologia, e foram tirar deles teorias e métodos para a leitura das fontes. Buscavam dar conta de outro pavor das novas gerações de historiadores: as generalizações, a objetividade, as macro-Histórias. Uma certa Antropologia surgiu aos historiadores como um remédio potente contra um suposto mal infligido pela teoria, o silenciamento do sujeito (objeto) histórico. A Antropologia podia fazer o historiador perceber os padrões, rituais e códigos simbólicos de um grupo social naquilo que ele tinha de mais específico, peculiar e característico. Assim pretendiam evitar os anacronismos e as generalizações de conceitos como classes, raça, Estado, política, sempre que as fontes indicassem sua ausência no repertório de significantes de alguns grupos sociais e, ao mesmo tempo, recusavam-se as generalizações teórico-acadêmicas que pretendiam revelar a essência, o real, ou a verdade frente as representações, práticas culturais e modos de interpretação do sujeito da sua própria História. O significante ganhou autonomia perante o signo e o significado, descolou-se e ficou "livre como um pássaro", para lembrar a fina ironia de Marx, ao falar do trabalhador "livre" assalariado em O Capital.

Outra "virada" na historiografia teria sido um certo uso da Lingüística, que decretava o fim da objetividade e, de roldão, desqualificava as pretensões de qualquer teoria da História. De fato, se a teoria é uma tentativa de organizar em linhas gerais, certos princípios de pesquisa com base em observações da vida social, sofrendo e atualizando-se com as próprias questões históricas de sua época, isso significa que a teoria é tão histórica e social quanto a realidade sobre a qual se debruça. Mas não foi essa a conclusão do giro linguístico, que não admitia a historicidade: para seus arautos, nem o contexto, nem as "questões próprias de sua época", podem ser objetivamente apreendidos: reduziram todo contexto a texto, convertendo toda objetividade em subjetividade. As teorias não poderiam mais ser utilizadas como tais, pois seriam meros dispositivos de saber e poder, inventando incessantemente padrões, racionalizações, enquadramentos e generalizações das experiências que se caracterizariam justamente por serem múltiplas, irracionais, dispersas e fragmentadas.

A História quase retornou aos moldes positivistas da pura e simples narrativa. Os historiadores mais jovens estavam porém algo informados dos cuidados que deveriam tomar com as fontes oficiais, com os grandes nomes, desconfiavam da História vista por cima e da História como repetição enfadonha dos vencedores. Isto é, estavam comprometidos esteticamente com uma nova História (e uma parte só com a História enquanto olhar para o passado, descompromissado com o presente) interessada pelos “de baixo”, por novas abordagens, sujeitos e objetos, porém este compromisso estético não foi acompanhado de uma guinada ética. A forma continuou a se revelar conservadora e as conclusões das pesquisas davam mostras dos limites da pura empiria.

A História passou a ser encarada cada vez mais como literatura. Para fazê-la, basta uma dose de boa escrita, recurso a documentos históricos, organização destes documentos de acordo com a sua "invenção" da estória a contar e pronto! Aliás, com essa provocação começa o autor do primeiro texto da revista. Basta isso? Onde fica o método?

Necessário se faz aqui pronunciar, a respeito das viradas lingüísticas ou outras, que o contexto histórico no qual se processaram tantas novidades historiográficas foi de intenso ataque ao marxismo, de ascensão histórica de novas (velhas) formas de ataque do capital sobre as organizações políticas dos trabalhadores, de mercantilização da vida humana e de decréscimo de vínculos de solidariedade e identidades entre explorados e subalternizados. Essa mercantilização, que alcança todas as esferas da vida social, não podia deixar de afetar a prática dos

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História & Luta de Classes, Nº 9 - Junho de 2010 (7-16) - 7

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A dialética na oficina do historiador:ideias arriscadas sobre algumas questões de método

1Eurelino Coelho

2m artesão em sua oficina: ali está o historiador . Seu ofício é o de narrar, sua obra é um texto. Trabalha costurando outros textos (quaisquer retalhos que se deixem interpretar são aceitos como “textos”, mas geralmente são mesmo documentos escritos) que recolheu das fontes e aos quais acrescenta cuidadosamente os seus próprios. Não há um plano prévio para orientar a costura, apenas a decisão de remexer naquele conjunto de retalhos ao invés de outro. Os retalhos são arrumados segundo possibilidades de “encaixe” descobertas no manuseio e presos uns aos outros com os fios da narrativa. Há uma exigência: é preciso haver retalhos, é preciso trabalhar com eles porque, no fim, este é o ofício. Eis, afinal, a obra terminada (ela também um retalho feito de retalhos) e submetida ao julgamento severo dos leitores: é bem escrita?

3O parágrafo acima é uma caricatura . No entanto, é bem possível que grande parte da produção historiográfica contemporânea, especialmente no campo daquilo que se convencionou denominar “nova

4história cultural” , possa ser reconhecida em um ou outro traço desta representação exagerada. Em casos mais extremos poderemos constatar até mesmo a defesa sem rodeios da natureza ficcional do saber

5histórico . Fica logo evidente que, quanto mais a atividade dos historiadores (a produção do

1Professor Adjunto do DCHF/UEFS, pesquisador do Laboratório de História e Memória da Esquerda e das Lutas Sociais – LABELU/UEFS.2Retomo e desenvolvo nestas páginas dois conjuntos de reflexões inicialmente expostas em comunicações apresentadas no V Colóquio Internacional Marx-Engels (Campinas, 2007) e no XXV Simpósio Nacional de História (Fortaleza, 2009). Críticas e sugestões que me foram apresentadas naquelas ocasiões deram-me oportunidade de corrigir erros, pelo que sou grato. Agradeço também aos alunos das turmas de Metodologia da Pesquisa em História do Mestrado em História da UEFS (2007 e 2009) com os quais foram discutidas e aprofundadas várias idéias desenvolvidas neste texto.3Para a qual a célebre imagem do “ofício do historiador” composta por Marc Bloch (Introdução à História. Lisboa, 3ª ed., Lisboa, Europa-América, 1976) e o livro de François

aDosse (A História em Migalhas. 2 . ed., São Paulo, Ensaio, 1992) são inspirações evidentes.4Cf. BURKE, P. O que é história cultural? Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2005 e HUNT, Lynn. A Nova História Cultural. São Paulo, Martins Fontes, 2001.

conhecimento histórico) se aproxima deste “tipo ideal”, tanto menor a importância que possui a discussão sobre o método em História. E com efeito, o debate epistemológico e teórico-metodológico encontra-se fora de moda entre os historiadores. Não se deve mais falar em método, no singular, mas em práticas e experiências plurais de construção do saber histórico, escritas da história. Propõe-se, com certa frequência, a exclusão, nos currículos universitários, da disciplina Teoria da História com o argumento de que ela é perigosa e desnecessária: questões desta ordem (teoria e metodologia) deveriam ser alcançadas em cada disciplina específica, segundo perspectivas e abordagens que serão tanto melhores quanto mais fragmentárias. Também o objeto da história conservaria uma unidade apenas precária e genérica. Instituído pelas práticas de saber, sem direito a qualquer preexistência efetiva, o objeto se torna, ele também, múltiplo e irredutível a qualquer unidade.

Explodidos o método e o objeto, haveria ainda algum denominador comum, algo que autorize a referência à História como uma disciplina e aos historiadores como seus intelectuais? A erudição! Tesouro simbólico de todos os historiadores, apenas a erudição preservaria seu brilho discreto na noite paradigmática em que todos os gatos da História ficaram pardos. Assim pensam importantes intelectuais da História na atualidade, como

6Pesavento .

Apresentarei, nos próximos parágrafos, algumas meditações sobre o trabalho dos historiadores, sobre o seu modo de trabalhar, o seu método. Tenho em mente, num primeiro plano, os historiadores da política, mas não é impossível que as reflexões desenvolvidas aqui tenham alguma aplicabilidade também em outros domínios. Meu argumento é o de que as características do objeto da História abrem questões metodológicas inescapáveis. Procurarei demonstrar que alguns problemas epistemológicos gerais inerentes à produção do conhecimento histórico não desaparecem quando historiadores desistem de pensar neles. Muito ao contrário, lançados porta afora, retornam imediata e

5Penso em WHITE, Hayden. Trópicos do discurso. São Paulo, Edusp, 1994.6Cf. PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e História Cultural. Belo Horizonte, Autêntica, 2003, passim.

historiadores. A História passa a ser produzida e consumida tal qual a mercadoria, alienada da vida social.Na contramão deste processo de mercantilização da vida social, e explorando criticamente as novas

possibilidades colocadas pelas novas correntes da História, o Materialismo Histórico soube dialogar e consolidar o desenvolvimento do conhecimento histórico durante todo o século XX. Afinal não houve teoria nas ciências humanas que não dialogasse diretamente, a favor ou contra, com esta plataforma de conhecimento. Mesmo com todas as páginas gastas para afirmar o seu fim e o seu esgotamento, seu método e conceitos fundamentais (seu espectro) ainda rondam as Ciências Humanas e as lutas sociais.

Integra o dossiê também uma intervenção do marxista francês Daniel Bensaid, recentemente falecido, na qual propõe uma reavaliação do marxismo a partir da proposição de Engels de que “a historia não faz nada”, recolocando a temporalidade histórica e trazendo elementos para o estudo do tempo presente, em uma perspectiva fortemente antideterminista.

História e Luta de Classes participa desse movimento de afirmação e de crítica permanente do pensamento marxista no campo da História. Este número de HLC se dedica, em seu dossiê, aos estudos da teoria da História. Dois textos, de Eurelino Coelho e Luiz Bernardo Pericás, discutem o método da História, enfocando questões como temporalidades históricas, objetividade e subjetividade, ideologias, classes e luta de classes, determinação e totalidade. Apontam-se formas de pensar e fazer a História por caminhos bem diferentes daqueles privilegiados pelo mainstream contemporâneo.

Um estudo de Carlos Prado sobre a obra de Walter Benjamim discute a concepção de História deste autor, além de posicionar essa concepção frente aos debates políticos de sua época, o que teria gerado, segundo o autor, um pensamento bastante peculiar dentro do Materialismo Histórico. Gramsci é outro intelectual discutido no dossiê, em artigo de Igor Gomes que analisa hipóteses para uma metodologia de pesquisa sobre a História dos partidos políticos.

Também no dossiê há dois pequenos textos de intelectuais marxistas mundialmente conhecidos, Michael Lowy e Alex Callinicos que, a propósito dos comentários do primeiro sobre um livro do segundo, debatem temas como a noção de progresso e o lugar da contingência no processo histórico.

Na parte dos artigos a revista traz um estudo de Inés Nercesian sobre o pensamento de Che Guevara acerca do imperialismo. Carla Luciana Silva aborda a Revista Veja e, em perspectiva gramsciana, problematiza sua função organizativa e partidária a propósito da cobertura da crise dos regimes do Leste Europeu e da queda do Muro de Berlim. Marcos Pestana analisa os processos de constituição de culturas em comum do proletariado carioca frente às novas exigências do capital, enquanto Nazira Camely discute aspectos da herança colonial e do capitalismo contemporâneo no Haiti.

Boa leitura!

Junho de 2010Eurelino Coelho

Igor Gomes SantosVirgínia Fontes

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História & Luta de Classes, Nº 9 - Junho de 2010 (7-16) - 7

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A dialética na oficina do historiador:ideias arriscadas sobre algumas questões de método

1Eurelino Coelho

2m artesão em sua oficina: ali está o historiador . Seu ofício é o de narrar, sua obra é um texto. Trabalha costurando outros textos (quaisquer retalhos que se deixem interpretar são aceitos como “textos”, mas geralmente são mesmo documentos escritos) que recolheu das fontes e aos quais acrescenta cuidadosamente os seus próprios. Não há um plano prévio para orientar a costura, apenas a decisão de remexer naquele conjunto de retalhos ao invés de outro. Os retalhos são arrumados segundo possibilidades de “encaixe” descobertas no manuseio e presos uns aos outros com os fios da narrativa. Há uma exigência: é preciso haver retalhos, é preciso trabalhar com eles porque, no fim, este é o ofício. Eis, afinal, a obra terminada (ela também um retalho feito de retalhos) e submetida ao julgamento severo dos leitores: é bem escrita?

3O parágrafo acima é uma caricatura . No entanto, é bem possível que grande parte da produção historiográfica contemporânea, especialmente no campo daquilo que se convencionou denominar “nova

4história cultural” , possa ser reconhecida em um ou outro traço desta representação exagerada. Em casos mais extremos poderemos constatar até mesmo a defesa sem rodeios da natureza ficcional do saber

5histórico . Fica logo evidente que, quanto mais a atividade dos historiadores (a produção do

1Professor Adjunto do DCHF/UEFS, pesquisador do Laboratório de História e Memória da Esquerda e das Lutas Sociais – LABELU/UEFS.2Retomo e desenvolvo nestas páginas dois conjuntos de reflexões inicialmente expostas em comunicações apresentadas no V Colóquio Internacional Marx-Engels (Campinas, 2007) e no XXV Simpósio Nacional de História (Fortaleza, 2009). Críticas e sugestões que me foram apresentadas naquelas ocasiões deram-me oportunidade de corrigir erros, pelo que sou grato. Agradeço também aos alunos das turmas de Metodologia da Pesquisa em História do Mestrado em História da UEFS (2007 e 2009) com os quais foram discutidas e aprofundadas várias idéias desenvolvidas neste texto.3Para a qual a célebre imagem do “ofício do historiador” composta por Marc Bloch (Introdução à História. Lisboa, 3ª ed., Lisboa, Europa-América, 1976) e o livro de François

aDosse (A História em Migalhas. 2 . ed., São Paulo, Ensaio, 1992) são inspirações evidentes.4Cf. BURKE, P. O que é história cultural? Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2005 e HUNT, Lynn. A Nova História Cultural. São Paulo, Martins Fontes, 2001.

conhecimento histórico) se aproxima deste “tipo ideal”, tanto menor a importância que possui a discussão sobre o método em História. E com efeito, o debate epistemológico e teórico-metodológico encontra-se fora de moda entre os historiadores. Não se deve mais falar em método, no singular, mas em práticas e experiências plurais de construção do saber histórico, escritas da história. Propõe-se, com certa frequência, a exclusão, nos currículos universitários, da disciplina Teoria da História com o argumento de que ela é perigosa e desnecessária: questões desta ordem (teoria e metodologia) deveriam ser alcançadas em cada disciplina específica, segundo perspectivas e abordagens que serão tanto melhores quanto mais fragmentárias. Também o objeto da história conservaria uma unidade apenas precária e genérica. Instituído pelas práticas de saber, sem direito a qualquer preexistência efetiva, o objeto se torna, ele também, múltiplo e irredutível a qualquer unidade.

Explodidos o método e o objeto, haveria ainda algum denominador comum, algo que autorize a referência à História como uma disciplina e aos historiadores como seus intelectuais? A erudição! Tesouro simbólico de todos os historiadores, apenas a erudição preservaria seu brilho discreto na noite paradigmática em que todos os gatos da História ficaram pardos. Assim pensam importantes intelectuais da História na atualidade, como

6Pesavento .

Apresentarei, nos próximos parágrafos, algumas meditações sobre o trabalho dos historiadores, sobre o seu modo de trabalhar, o seu método. Tenho em mente, num primeiro plano, os historiadores da política, mas não é impossível que as reflexões desenvolvidas aqui tenham alguma aplicabilidade também em outros domínios. Meu argumento é o de que as características do objeto da História abrem questões metodológicas inescapáveis. Procurarei demonstrar que alguns problemas epistemológicos gerais inerentes à produção do conhecimento histórico não desaparecem quando historiadores desistem de pensar neles. Muito ao contrário, lançados porta afora, retornam imediata e

5Penso em WHITE, Hayden. Trópicos do discurso. São Paulo, Edusp, 1994.6Cf. PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e História Cultural. Belo Horizonte, Autêntica, 2003, passim.

historiadores. A História passa a ser produzida e consumida tal qual a mercadoria, alienada da vida social.Na contramão deste processo de mercantilização da vida social, e explorando criticamente as novas

possibilidades colocadas pelas novas correntes da História, o Materialismo Histórico soube dialogar e consolidar o desenvolvimento do conhecimento histórico durante todo o século XX. Afinal não houve teoria nas ciências humanas que não dialogasse diretamente, a favor ou contra, com esta plataforma de conhecimento. Mesmo com todas as páginas gastas para afirmar o seu fim e o seu esgotamento, seu método e conceitos fundamentais (seu espectro) ainda rondam as Ciências Humanas e as lutas sociais.

Integra o dossiê também uma intervenção do marxista francês Daniel Bensaid, recentemente falecido, na qual propõe uma reavaliação do marxismo a partir da proposição de Engels de que “a historia não faz nada”, recolocando a temporalidade histórica e trazendo elementos para o estudo do tempo presente, em uma perspectiva fortemente antideterminista.

História e Luta de Classes participa desse movimento de afirmação e de crítica permanente do pensamento marxista no campo da História. Este número de HLC se dedica, em seu dossiê, aos estudos da teoria da História. Dois textos, de Eurelino Coelho e Luiz Bernardo Pericás, discutem o método da História, enfocando questões como temporalidades históricas, objetividade e subjetividade, ideologias, classes e luta de classes, determinação e totalidade. Apontam-se formas de pensar e fazer a História por caminhos bem diferentes daqueles privilegiados pelo mainstream contemporâneo.

Um estudo de Carlos Prado sobre a obra de Walter Benjamim discute a concepção de História deste autor, além de posicionar essa concepção frente aos debates políticos de sua época, o que teria gerado, segundo o autor, um pensamento bastante peculiar dentro do Materialismo Histórico. Gramsci é outro intelectual discutido no dossiê, em artigo de Igor Gomes que analisa hipóteses para uma metodologia de pesquisa sobre a História dos partidos políticos.

Também no dossiê há dois pequenos textos de intelectuais marxistas mundialmente conhecidos, Michael Lowy e Alex Callinicos que, a propósito dos comentários do primeiro sobre um livro do segundo, debatem temas como a noção de progresso e o lugar da contingência no processo histórico.

Na parte dos artigos a revista traz um estudo de Inés Nercesian sobre o pensamento de Che Guevara acerca do imperialismo. Carla Luciana Silva aborda a Revista Veja e, em perspectiva gramsciana, problematiza sua função organizativa e partidária a propósito da cobertura da crise dos regimes do Leste Europeu e da queda do Muro de Berlim. Marcos Pestana analisa os processos de constituição de culturas em comum do proletariado carioca frente às novas exigências do capital, enquanto Nazira Camely discute aspectos da herança colonial e do capitalismo contemporâneo no Haiti.

Boa leitura!

Junho de 2010Eurelino Coelho

Igor Gomes SantosVirgínia Fontes

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silenciosamente pelas frestas e gretas e se instalam de novo na oficina do historiador, que age, entretanto, como se estivesse livre deles de fato. Contra esta auto-complacência proponho o retorno ao desafio de pensar sobre o método, assumindo todos os riscos. Não há certezas neste retorno ao método, mas é bom lembrar que, sendo um retorno, este caminho já foi trilhado antes e que sempre podemos aprender algo com as pistas deixadas por quem nos antecedeu. Trata-se, no fim, de pensar a história como a dialética entre a ação dos sujeitos históricos (que fazem a história) e as condições dadas em que tais sujeitos têm de agir (que eles não escolhem). Em Marx, particularmente nos textos em que ele analisou acontecimentos da história política francesa no século XIX, vamos encontrar essas pistas.

Dois problemas clássicos: singularidade e subjetividade

A História se ocupa daquilo que é singular? Feita a pergunta a um historiador do século XIX, a resposta seria, com grande probabilidade, afirmativa. Ainda hoje este poderia ser o caso quando se tratasse de história de acontecimentos, por exemplo, de História Política: Moreira César derrotado em Canudos, a greve geral de 1917 ou o golpe civil-militar de 1964 devem ser vistos como eventos únicos se é que se pretende investigar-lhes a história. Somente um acontecimento que possui história própria (que o fez acontecer do modo como aconteceu e não de outro modo) pode ser tomado como objeto da História. A hipótese contrária é, realmente, absurda: se a história de um acontecimento não é singular, então ela deveria se repetir. Mas então não se trata mais de história, que é sempre movimento, e sim da permanência de uma repetição. Por outro lado, como explicar a inexistência de dois acontecimentos históricos idênticos? A farsa não é a repetição exata da tragédia, o tio não reencarna no sobrinho, a França de 1851 não é a França de 1799. Além disso, cada acontecimento é protagonizado por sujeitos distintos, também irrepetíveis. Só mediante uma arbitrariedade metodológica se pode desconsiderar a evidência da singularidade dos sujeitos históricos.

Esta História confinada ao singular recusa-se a operar ao modo da ciência natural, isto é, através de deduções extraídas de leis gerais. No máximo admite formular indícios, quadros conceituais obtidos por indução, de alcance e validade restritos, como sugere

7Ginzburg com o seu “paradigma indiciário” . Ela se

7GINZBURG, Carlo. A Micro-história e outros ensaios. Lisboa, Difel, 1989. Carlo Ginzburg é um historiador admirável, cujas qualidades como investigador e expositor dificilmente são igualadas na atualidade. Suas obras, no entanto, parecem-me uma demonstração cabal da inaplicabilidade do “paradigma indiciário”, proposto por ele mesmo para caracterizar o trabalho do historiador.

mantém influente em nossos dias. Muitos historiadores contemporâneos realizam seu trabalho respeitando escrupulosamente estes limites, como os que procedem através da atualização do projeto weberiano

8de busca da “causação adequada” ou os que procuram aplicar modelos inspirados na etnografia como a

9“descrição densa” de Clifford Geertz . O interesse manifestado por boa parte da História Social pela subjetividade dos agentes também pode ter exatamente este caráter nos casos em que aparece acompanhado da recusa dos “modelos genera l izantes” ou “sociológicos” de explicação. Por esta via, por exemplo, as pesquisas passam a priorizar o escravo como sujeito em detrimento da escravidão como sistema, ou a identidade em detrimento das relações sociais.

Uma maneira de livrar-se do incômodo que a singularidade do objeto provoca aos que buscam uma História científica é secundarizar o acontecimento. Através da porteira aberta pelo estruturalismo, desenvolveu-se no século XX uma História das regularidades, das normas, das restrições e das instituições. A idéia de protagonismo dos sujeitos cede passagem à problemática do assujeitamento, as estruturas saltam para o centro da explicação histórica. Invisíveis a olho nu, as estruturas se revelam somente mediante a superação da visão comum, prisioneira do empirismo e do historicismo, pelo olhar da ciência. As singularidades históricas seriam apenas efeitos combinatórios dos componentes da estrutura, variações finitas que só são possíveis em virtude da invariância estrutural. Um evento histórico não encontraria sua explicação num mero desdobramento temporal (ilusão historicista), mas na investigação da teia oculta de relações estruturais que criam o próprio espaço em que ele pode aparecer como evento. Uma hipótese igualmente difícil de ser negada. Aceitar o contrário implicaria em conformar-se com o plano das aparências, tomar o fenômeno (o evento singular) como autodeterminado. A verdade do salário não é ser ele a renda do trabalho, mas sim ser a forma pela qual o trabalho é explorado em sua relação com o capital. Somente em função desta relação de exploração (que não é evidente no plano empírico) existe o trabalho assalariado como fenômeno histórico.

A longa duração de Braudel, o par modo de produção/formação econômico-social no marxismo althusseriano, a “história imóvel” de Emmanuel Le Roy Ladurie, a formação discursiva foucaultiana: a História aqui já não privilegia o plano dos acontecimentos singulares, mas a ordem da estrutura

que os subordina completamente. Esta linhagem de pensadores da História possui também seus herdeiros. Certo, o programa braudeliano não é facilmente reprodutível nas atuais condições dos centros de humanidades. Por seu turno, o legado de Althusser desperta cada vez menos interesse entre os historiadores, e isso não apenas porque leva o seu quinhão na crise geral do marxismo do final do século XX, mas também porque não teve como responder às questões formuladas por uma geração de historiadores que decidiu mergulhar nos arquivos e que encontrou em um autor como E. P. Thompson o seu campeão na cruzada contra o que eles acreditam ser o estruturalismo. Mas a problematização das permanências, dos regramentos e das formações discursivas, ou seja, a influência dos Annales e de Foucault permanece mais viva do que nunca sobre historiadores contemporâneos.

As duas formas de lidar com a questão da singularidade chocam-se contra limites que merecem ser examinados. Numa perspectiva ela (a singularidade) é admitida completamente, resultando daí uma metodologia indutiva e empirista. Tal método permite pensar o movimento, a trajetória, a transformação, mas somente dos entes singulares presos a cadeias causais finitas. Subjaz a este método u m a c o n c e p ç ã o d e s i n g u l a r i d a d e c o m o individualidade monádica, que pode estender-se somente até os limites da sua cadeia causal. Temos aqui um conhecimento do singular que se afirma mediante a exclusão da referência a qualquer totalidade. No limite, este modo de pensar pode começar a acreditar em subjetividades liberadas, propondo conceber o homem na esfera da liberdade e recusando qualquer abordagem orientada para a questão da determinação.

Na outra perspectiva, ao contrário, a singularidade é mitigada, reduzida a efeito da estrutura. O método aqui opera dedutivamente, fazendo aparecer as teias de relação (sistemas, formações) no interior das quais são instituídos os lugares dos sujeitos e os sentidos das suas práticas. A noção de estrutura dá acesso a uma certa visão de totalidade (mesmo que seja parcial e provisória, como as “formações” foucaultianas) mas, em compensação, embota a compreensão do movimento. A lógica da estrutura é a da norma, a repetição do mesmo. Não é fácil descobrir uma lógica de movimento e transformação no interior daquilo que é descrito como algo que nunca cessa de se reproduzir.

E, no entanto, há reprodução, sistema e totalidade mas também há transformação, singularidades e sujeitos na história. A exigência de dar conta de ambas as dimensões constitutivas do objeto não é eliminada pela decisão metodológica de privilegiar uma delas em detrimento da outra. Este é um dilema metodológico que se impõe a qualquer historiador, quer ele o enfrente conscientemente ou

não. As limitações metodológicas mencionadas acima se tornam sérias exatamente por não reconhecerem plenamente a validade das questões formuladas do outro lado da linha que distingue a ordem da estrutura da ordem do movimento. Sem renunciar à unilateralidade de cada pressuposto, não é possível ir além da defesa da própria posição contra a posição adversária. Foi a isto que se reduziu o debate metodológico em História, nas raras ocasiões em que ele ainda é feito.

Em geral, nem isto: método passou a ser o nome impropriamente atribuído à descrição de procedimentos técnicos empregados para trabalhar com as fontes. Interrompida no plano metodológico, a discussão entre os historiadores somente pode se desenvolver no plano empírico. E, com efeito, algumas reuniões de historiadores começam a ficar parecidas com feiras de artesanato erudito.

Consideremos a outra questão, a da subjetividade. Uma das maiores dificuldades a serem transpostas por quem discute o método em História diz respeito a um aparente paradoxo: a dimensão subjetiva presente no objeto. Aqui é preciso dar razão à História Social: é difícil sustentar uma concepção sobre o objeto da História sem recorrer a uma problemática do sujeito. Aquele que faz a história em circunstâncias que não escolheu não é, no entanto, um simples produto direto do meio e das circunstâncias: é preciso não esquecer que “são precisamente os homens que

1 0transformam as circunstâncias” . Pois as circunstâncias não se constituem em objeto da História exceto quando em presença de sujeitos.

A diferença intransponível entre os objetos das ciências naturais e humanas é esta constituição subjetiva do objeto que preenche espaços de um mundo que era, até então, o da pura natureza com elementos não redutíveis diretamente a este mundo porque nascidos do trabalho, da moral, da cognição, da afetividade. Decerto nenhum destes elementos, tomados unilateralmente, é suficiente para fundar uma teoria do sujeito. Ela terá que se apoiar em outro conceito, como veremos. Mas não é exagerado afirmar que, onde quer que aqueles elementos não estejam de algum modo presentes, não se pode falar ali de existência humana. Considerada por este ângulo específico, a eliminação metodológica da subjetividade objetivada, que derivaria da “morte do sujeito” anunciada pelo estruturalismo, significaria o regresso à natureza e, por isso mesmo, a negação do humano como objeto de conhecimento.

Tendo chegado a este ponto, é preciso advertir contra o risco de curvar a vara até a extremidade oposta: uma concepção subjetivista do objeto da

10MARX, Karl. Teses sobre Feuerbach. In: MARX, K. e ENGELS, F. A Ideologia Alemã. São Paulo, Martins Fontes, 1989, p. 94.

8Cf. WEBER, Max. Estudos críticos sobre a lógica das ciências da cultura. In: WEBER, Max. Metodologia das Ciências

aSociais. 2 . ed., São Paulo, Cortez – Campinas, Edunicamp, 1993.9GEERTZ, Clifford. A interpretação das Culturas. Rio de Janeiro, LTC, 1989.

8 - A dialética na oficina do historiador: idéias arriscadas sobre algumas questões de método História & Luta de Classes, Nº 9 - Junho de 2010 (7-16) - 9

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silenciosamente pelas frestas e gretas e se instalam de novo na oficina do historiador, que age, entretanto, como se estivesse livre deles de fato. Contra esta auto-complacência proponho o retorno ao desafio de pensar sobre o método, assumindo todos os riscos. Não há certezas neste retorno ao método, mas é bom lembrar que, sendo um retorno, este caminho já foi trilhado antes e que sempre podemos aprender algo com as pistas deixadas por quem nos antecedeu. Trata-se, no fim, de pensar a história como a dialética entre a ação dos sujeitos históricos (que fazem a história) e as condições dadas em que tais sujeitos têm de agir (que eles não escolhem). Em Marx, particularmente nos textos em que ele analisou acontecimentos da história política francesa no século XIX, vamos encontrar essas pistas.

Dois problemas clássicos: singularidade e subjetividade

A História se ocupa daquilo que é singular? Feita a pergunta a um historiador do século XIX, a resposta seria, com grande probabilidade, afirmativa. Ainda hoje este poderia ser o caso quando se tratasse de história de acontecimentos, por exemplo, de História Política: Moreira César derrotado em Canudos, a greve geral de 1917 ou o golpe civil-militar de 1964 devem ser vistos como eventos únicos se é que se pretende investigar-lhes a história. Somente um acontecimento que possui história própria (que o fez acontecer do modo como aconteceu e não de outro modo) pode ser tomado como objeto da História. A hipótese contrária é, realmente, absurda: se a história de um acontecimento não é singular, então ela deveria se repetir. Mas então não se trata mais de história, que é sempre movimento, e sim da permanência de uma repetição. Por outro lado, como explicar a inexistência de dois acontecimentos históricos idênticos? A farsa não é a repetição exata da tragédia, o tio não reencarna no sobrinho, a França de 1851 não é a França de 1799. Além disso, cada acontecimento é protagonizado por sujeitos distintos, também irrepetíveis. Só mediante uma arbitrariedade metodológica se pode desconsiderar a evidência da singularidade dos sujeitos históricos.

Esta História confinada ao singular recusa-se a operar ao modo da ciência natural, isto é, através de deduções extraídas de leis gerais. No máximo admite formular indícios, quadros conceituais obtidos por indução, de alcance e validade restritos, como sugere

7Ginzburg com o seu “paradigma indiciário” . Ela se

7GINZBURG, Carlo. A Micro-história e outros ensaios. Lisboa, Difel, 1989. Carlo Ginzburg é um historiador admirável, cujas qualidades como investigador e expositor dificilmente são igualadas na atualidade. Suas obras, no entanto, parecem-me uma demonstração cabal da inaplicabilidade do “paradigma indiciário”, proposto por ele mesmo para caracterizar o trabalho do historiador.

mantém influente em nossos dias. Muitos historiadores contemporâneos realizam seu trabalho respeitando escrupulosamente estes limites, como os que procedem através da atualização do projeto weberiano

8de busca da “causação adequada” ou os que procuram aplicar modelos inspirados na etnografia como a

9“descrição densa” de Clifford Geertz . O interesse manifestado por boa parte da História Social pela subjetividade dos agentes também pode ter exatamente este caráter nos casos em que aparece acompanhado da recusa dos “modelos genera l izantes” ou “sociológicos” de explicação. Por esta via, por exemplo, as pesquisas passam a priorizar o escravo como sujeito em detrimento da escravidão como sistema, ou a identidade em detrimento das relações sociais.

Uma maneira de livrar-se do incômodo que a singularidade do objeto provoca aos que buscam uma História científica é secundarizar o acontecimento. Através da porteira aberta pelo estruturalismo, desenvolveu-se no século XX uma História das regularidades, das normas, das restrições e das instituições. A idéia de protagonismo dos sujeitos cede passagem à problemática do assujeitamento, as estruturas saltam para o centro da explicação histórica. Invisíveis a olho nu, as estruturas se revelam somente mediante a superação da visão comum, prisioneira do empirismo e do historicismo, pelo olhar da ciência. As singularidades históricas seriam apenas efeitos combinatórios dos componentes da estrutura, variações finitas que só são possíveis em virtude da invariância estrutural. Um evento histórico não encontraria sua explicação num mero desdobramento temporal (ilusão historicista), mas na investigação da teia oculta de relações estruturais que criam o próprio espaço em que ele pode aparecer como evento. Uma hipótese igualmente difícil de ser negada. Aceitar o contrário implicaria em conformar-se com o plano das aparências, tomar o fenômeno (o evento singular) como autodeterminado. A verdade do salário não é ser ele a renda do trabalho, mas sim ser a forma pela qual o trabalho é explorado em sua relação com o capital. Somente em função desta relação de exploração (que não é evidente no plano empírico) existe o trabalho assalariado como fenômeno histórico.

A longa duração de Braudel, o par modo de produção/formação econômico-social no marxismo althusseriano, a “história imóvel” de Emmanuel Le Roy Ladurie, a formação discursiva foucaultiana: a História aqui já não privilegia o plano dos acontecimentos singulares, mas a ordem da estrutura

que os subordina completamente. Esta linhagem de pensadores da História possui também seus herdeiros. Certo, o programa braudeliano não é facilmente reprodutível nas atuais condições dos centros de humanidades. Por seu turno, o legado de Althusser desperta cada vez menos interesse entre os historiadores, e isso não apenas porque leva o seu quinhão na crise geral do marxismo do final do século XX, mas também porque não teve como responder às questões formuladas por uma geração de historiadores que decidiu mergulhar nos arquivos e que encontrou em um autor como E. P. Thompson o seu campeão na cruzada contra o que eles acreditam ser o estruturalismo. Mas a problematização das permanências, dos regramentos e das formações discursivas, ou seja, a influência dos Annales e de Foucault permanece mais viva do que nunca sobre historiadores contemporâneos.

As duas formas de lidar com a questão da singularidade chocam-se contra limites que merecem ser examinados. Numa perspectiva ela (a singularidade) é admitida completamente, resultando daí uma metodologia indutiva e empirista. Tal método permite pensar o movimento, a trajetória, a transformação, mas somente dos entes singulares presos a cadeias causais finitas. Subjaz a este método u m a c o n c e p ç ã o d e s i n g u l a r i d a d e c o m o individualidade monádica, que pode estender-se somente até os limites da sua cadeia causal. Temos aqui um conhecimento do singular que se afirma mediante a exclusão da referência a qualquer totalidade. No limite, este modo de pensar pode começar a acreditar em subjetividades liberadas, propondo conceber o homem na esfera da liberdade e recusando qualquer abordagem orientada para a questão da determinação.

Na outra perspectiva, ao contrário, a singularidade é mitigada, reduzida a efeito da estrutura. O método aqui opera dedutivamente, fazendo aparecer as teias de relação (sistemas, formações) no interior das quais são instituídos os lugares dos sujeitos e os sentidos das suas práticas. A noção de estrutura dá acesso a uma certa visão de totalidade (mesmo que seja parcial e provisória, como as “formações” foucaultianas) mas, em compensação, embota a compreensão do movimento. A lógica da estrutura é a da norma, a repetição do mesmo. Não é fácil descobrir uma lógica de movimento e transformação no interior daquilo que é descrito como algo que nunca cessa de se reproduzir.

E, no entanto, há reprodução, sistema e totalidade mas também há transformação, singularidades e sujeitos na história. A exigência de dar conta de ambas as dimensões constitutivas do objeto não é eliminada pela decisão metodológica de privilegiar uma delas em detrimento da outra. Este é um dilema metodológico que se impõe a qualquer historiador, quer ele o enfrente conscientemente ou

não. As limitações metodológicas mencionadas acima se tornam sérias exatamente por não reconhecerem plenamente a validade das questões formuladas do outro lado da linha que distingue a ordem da estrutura da ordem do movimento. Sem renunciar à unilateralidade de cada pressuposto, não é possível ir além da defesa da própria posição contra a posição adversária. Foi a isto que se reduziu o debate metodológico em História, nas raras ocasiões em que ele ainda é feito.

Em geral, nem isto: método passou a ser o nome impropriamente atribuído à descrição de procedimentos técnicos empregados para trabalhar com as fontes. Interrompida no plano metodológico, a discussão entre os historiadores somente pode se desenvolver no plano empírico. E, com efeito, algumas reuniões de historiadores começam a ficar parecidas com feiras de artesanato erudito.

Consideremos a outra questão, a da subjetividade. Uma das maiores dificuldades a serem transpostas por quem discute o método em História diz respeito a um aparente paradoxo: a dimensão subjetiva presente no objeto. Aqui é preciso dar razão à História Social: é difícil sustentar uma concepção sobre o objeto da História sem recorrer a uma problemática do sujeito. Aquele que faz a história em circunstâncias que não escolheu não é, no entanto, um simples produto direto do meio e das circunstâncias: é preciso não esquecer que “são precisamente os homens que

1 0transformam as circunstâncias” . Pois as circunstâncias não se constituem em objeto da História exceto quando em presença de sujeitos.

A diferença intransponível entre os objetos das ciências naturais e humanas é esta constituição subjetiva do objeto que preenche espaços de um mundo que era, até então, o da pura natureza com elementos não redutíveis diretamente a este mundo porque nascidos do trabalho, da moral, da cognição, da afetividade. Decerto nenhum destes elementos, tomados unilateralmente, é suficiente para fundar uma teoria do sujeito. Ela terá que se apoiar em outro conceito, como veremos. Mas não é exagerado afirmar que, onde quer que aqueles elementos não estejam de algum modo presentes, não se pode falar ali de existência humana. Considerada por este ângulo específico, a eliminação metodológica da subjetividade objetivada, que derivaria da “morte do sujeito” anunciada pelo estruturalismo, significaria o regresso à natureza e, por isso mesmo, a negação do humano como objeto de conhecimento.

Tendo chegado a este ponto, é preciso advertir contra o risco de curvar a vara até a extremidade oposta: uma concepção subjetivista do objeto da

10MARX, Karl. Teses sobre Feuerbach. In: MARX, K. e ENGELS, F. A Ideologia Alemã. São Paulo, Martins Fontes, 1989, p. 94.

8Cf. WEBER, Max. Estudos críticos sobre a lógica das ciências da cultura. In: WEBER, Max. Metodologia das Ciências

aSociais. 2 . ed., São Paulo, Cortez – Campinas, Edunicamp, 1993.9GEERTZ, Clifford. A interpretação das Culturas. Rio de Janeiro, LTC, 1989.

8 - A dialética na oficina do historiador: idéias arriscadas sobre algumas questões de método História & Luta de Classes, Nº 9 - Junho de 2010 (7-16) - 9

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história não é menos unilateral e estéril do que a decretação metodológica da morte do sujeito. Este foi, porém, o caminho trilhado por algumas noções pós-modernas de história ou de política que propõem livrar os sujeitos de qualquer determinação exterior e pensá-

11los como puro desejo ou liberdade . Tampouco nos obriga, a constatação de que há uma dimensão subjetiva no objeto da História, a estar de acordo com Habermas, para quem uma racionalidade comunicativa entre sujeitos, oposta à racionalidade ins t rumenta l , poder i a an imar uma nova

12epistemologia .

Os delicados problemas da relação entre a singularidade dos eventos e a totalidade estruturada das relações, assim como a relação entre as ações históricas de sujei tos determinados e as “circunstâncias legadas e transmitidas pelo passado” têm sido tratados, como regra, em uma das três perspectivas abaixo:

a) Elisão das problemáticas do sujeito e da singularidade. É a marca das abordagens estruturalistas ou influenciadas, de algum modo, pela crítica das “filosofias do sujeito”, como as pesquisas inspiradas pelas fases arqueológica e genealógica de Foucault ou pelo marxismo althusseriano. As interrogações dirigem-se para as estruturas, formações ou epistemes e, quando há processos, eles são “sem sujeito”. A despeito de importantes legados provenientes desta perspectiva, como a considerável contribuição à ampliação e complexificação da problemática do poder, ela não tem como lidar com a recorrência de questões que repõem a força dos acontecimentos e da participação decisiva dos sujeitos em certos eventos. Como seria a história da Revolução de 17 sem Lênin e as Teses de Abril? Ou a história da Segunda Guerra se fosse outro o resultado da Batalha de Stalingrado? Ou a trajetória da luta de classes no Brasil se Collor tivesse perdido a eleição em 1989 para Lula da Silva? Basta formular as perguntas para evidenciar tanto a influência decisiva de eventos singulares quanto o caráter incontornável da interferência subjetiva na dinâmica histórica. O fato de que esta interferência ocorre sempre em circunstâncias precisas e momentâneas não reduz a importância dos

13efeitos que a partir dali são projetados .

11Veja-se, só como exemplo, o livro de Agnes Heller e Ferenc Feher: A condição política pós-moderna. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1998.12Cf. HABERMAS, J. Theorie des kommunikativen Handelns. Frankfurt, Surkamp, 1981.13A exigência de recuperar a problemática do sujeito parece ter produzido um efeito peculiar na corrente foucaultiana, pois a obra tardia daquele autor tem sido lida como uma redescoberta do sujeito na perspectiva do “cuidado de si”. Ver os artigos reunidos por PORTOCARRERO, Vera e CASTELO

b) Supervalorização da subjetividade e visão da singularidade como indeterminação. No extremo oposto das perspectivas estruturalistas e assemelhadas afirma-se uma História que se reencontrou com o acontecimento e que tende a vê-lo, sobretudo, como contingência. Em tais acontecimentos os sujeitos atuam em geral como soberanos e suas escolhas são o fator decisivo na inteligibilidade dos processos históricos. Com muita frequência a concepção de subjetividade (explícita ou oculta nos textos) que informa essas abordagens é liberal: o modelo é o indivíduo que age para maximizar seus interesses. Nenhum ramo da História é tão dominado por esta perspectiva como a Nova História Política, beneficiada, como explica um de seus expoentes, pelo fim da crise da História événementielle e pelo retorno da narrativa como

14forma de expressão do conhecimento histórico . O risco de escorregar em reducionismos e simplificações espúrias é muito grande, como se pode ler nas interpretações do Golpe de Estado de 1964 que responsabilizam a “estratégia do

15confronto” dos atores políticos envolvidos . Por outro lado, a pesquisa histórica voltada para os acontecimentos confunde-se, muitas vezes, com o “fontismo”, demitindo o historiador do trabalho de problematizar seu objeto e limitando-o a transcrever documentos e apresentar seu conteúdo enredado na forma narrativa. Este risco, naturalmente, é tanto maior quanto mais pobre é a formação teórico-metodológica dos próprios historiadores.

c) Soluções intermediárias ou de compromisso. Esta terceira perspectiva busca equilibrar-se sobre algum ponto fixado a certa distância de um ou outro dos pólos anteriores. Aqui os contextos estruturados e exteriores aos sujeitos aparecem com certa força, de modo a cumprirem um papel na explicação histórica. Também aos sujeitos é atribuído algum protagonismo efetivo e não mecanicamente derivado. A ênfase das narrativas oscila entre os planos paralelos em que são trabalhados o enredo e o enquadramento, o que tende a ampliar a perspectiva da cena histórica que interessa apresentar. Este tipo de abordagem é frequente nos trabalhos sobre a história das organizações e partidos de esquerda que procuram nexos entre a dinâmica da trajetória da organização,

BRANCO, Guilherme (orgs.) Retratos de Foucault. Rio de Janeiro, Nau, 2000. Especialmente os que compõem a terceira parte da coletânea, intitulada O último Foucault.14Cf. os artigos de RÉMOND, René. Uma história presente e Do político, publicados na coletânea por ele mesmo organizada: Por uma história política. Rio de Janeiro, UFRJ-FGV, 1996.15FERREIRA, Jorge. A estratégia do confronto: a frente de mobilização popular. Revista Brasileira de História, v. 24, n. 47, pp. 181-212.

construída a partir da documentação primária, e o ambiente histórico mais amplo em que tal trajetória aconteceu. Persiste, no entanto, alguma forma de descontinuidade entre os planos paralelos da análise, o que cria entre os elementos desses planos uma relação de exterioridade. Um capítulo de “contexto” que permanece semi-isolado no início de uma tese de doutorado, por exemplo, é uma boa imagem do hiato entre os elementos de moldura e de ação justapostos num texto de História. Não é ocioso mencionar, ademais, a ingenuidade que marca a noção de “contexto” quando ela significa apenas a descrição de um ambiente para a cena histórica. Basta lembrar que este ambiente, porque histórico, deve ser ele mesmo explicado historicamente para que esta noção de “contexto” se veja lançada numa regressão infinita.

A abordagem dialética: o problema da totalidade

O método que Marx expôs, de modo incompleto, na sua Introdução de 1857 é a base das reflexões que seguem. Na verdade pretendo demonstrar, mais à frente, que mesmo vários anos antes da escrita da Introdução, o método dialético já orientava as análises de Marx sobre a história política da França publicadas nos primeiros anos da década de 50. Não se trata, por conseguinte, de transpor para um domínio diferente o método concebido para a Economia Política e nem, certamente, de reivindicar a validade universal do método da Economia com base na idéia da determinação econômica. Proponho algo bem diferente, que é reconhecer a vigência do método dialético nas obras em que Marx trata de história e de política. As categorias expostas no texto de 1857 dizem respeito não apenas à Economia Política, mas ao próprio método dialético que Marx já experimentara em obras dedicadas a outros assuntos.

Retomemos os problemas clássicos da singularidade e da subjetividade. Eles podem ser formulados e tratados de uma perspectiva completamente diferente das anteriores. Ao invés da unilateralidade ou do paralelismo, a dialética materialista sugere pensar uma relação de outro tipo: os termos contrários (a singularidade do acontecimento e da ação do sujeito, por um lado, e a totalidade muito mais complexa de relações da qual aquela singularidade é uma parte), exatamente porque são a negação determinada um do outro, se determinam reciprocamente. Sigamos passo a passo.

O ponto de partida tem de ser sempre o evento, acessado quase sempre através das evidências documentais. Mas este evento não pode ser concebido como isolado, uma mônada auto-explicável, pois isto seria uma incongruência lógica e corresponderia a

afirmar que aquele fato não tem história. Então ao eleger seu objeto e recolher suas primeiras evidências, o historiador já sabe que ele – o objeto – está preso a um conjunto de relações e que conhecer o seu objeto implica em conhecer este nó de relações a que ele está ligado. Mesmo sem conhecer ainda o conteúdo real dessas relações o historiador já sabe que elas determinam as condições de possibilidade do seu objeto, fazem com que ele exista e possa ser pensado.

A relação entre a ação que faz a história (e o sujeito que a pratica) e as circunstâncias que tornam possível e efetiva esta ação aparece, aqui, como a relação entre a singularidade e a totalidade, a parte e o todo. A parte não existe, como tal, fora da relação com o todo. Assim, por exemplo, uma coisa qualquer só adquire o caráter de mercadoria (valor de troca) na medida em que é produzida e circula num meio social em que são vigentes as relações que engendram o trabalho abstrato e, tão logo seja transportada para um universo social diferente, a coisa deixa de ser mercadoria. Do mesmo modo o dinheiro, conforme exista dentro ou fora de um modo de produção de mercadorias ou o escravo, se numa sociedade escravista ou em outra qualquer, são realidades completamente diferentes. Mas seria equivocado pensar na relação da parte com o todo como sendo de subordinação unívoca. A parte é a materialização concreta, embora parcial e fragmentária, do todo, que por sua vez não pode existir senão em e através de cada parte. Destituído de suas partes, o todo deixaria de existir concretamente e assumiria uma forma ilusória.

Trata-se, portanto, de uma relação necessária. O que afeta a parte (acontecimentos singulares) repercute, de algum modo no todo. De algum modo porque mediado pela própria relação da parte com o todo, que a excede não apenas em quantidade (é maior), mas em qualidade (inclui realidades distintas da parte singular). A parte participa da vida do todo, atualiza-o, inicia ou interrompe mudanças explorando as contradições mas sempre desenvolvendo as possibilidades criadas pela sua relação com ele.

Todavia, uma vez que nos dispomos a conhecê-la, a relação é também contraditória: a parte revela e, ao mesmo tempo, esconde o todo. Lidando com as evidências documentais próprias de seu ofício, o historiador experiente sabe que elas possuem natureza fragmentária e que revelam, do seu objeto, apenas aspectos parciais. O trabalho com as fontes faz com que apareçam partes e, de fato, somente elas aparecerão de modo evidente. Sua aparição como parte é reveladora, já, de um aspecto do todo – mas apenas de um aspecto. A relação mais profunda daquele aspecto parcial com a totalidade, no entanto, não é necessariamente evidente na própria evidência documental. Ela permanece em geral oculta até que o historiador problematize a fonte. O todo não aparece, como tal, na parte.

10 - A dialética na oficina do historiador: idéias arriscadas sobre algumas questões de método História & Luta de Classes, Nº 9 - Junho de 2010 (7-16) - 11

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história não é menos unilateral e estéril do que a decretação metodológica da morte do sujeito. Este foi, porém, o caminho trilhado por algumas noções pós-modernas de história ou de política que propõem livrar os sujeitos de qualquer determinação exterior e pensá-

11los como puro desejo ou liberdade . Tampouco nos obriga, a constatação de que há uma dimensão subjetiva no objeto da História, a estar de acordo com Habermas, para quem uma racionalidade comunicativa entre sujeitos, oposta à racionalidade ins t rumenta l , poder i a an imar uma nova

12epistemologia .

Os delicados problemas da relação entre a singularidade dos eventos e a totalidade estruturada das relações, assim como a relação entre as ações históricas de sujei tos determinados e as “circunstâncias legadas e transmitidas pelo passado” têm sido tratados, como regra, em uma das três perspectivas abaixo:

a) Elisão das problemáticas do sujeito e da singularidade. É a marca das abordagens estruturalistas ou influenciadas, de algum modo, pela crítica das “filosofias do sujeito”, como as pesquisas inspiradas pelas fases arqueológica e genealógica de Foucault ou pelo marxismo althusseriano. As interrogações dirigem-se para as estruturas, formações ou epistemes e, quando há processos, eles são “sem sujeito”. A despeito de importantes legados provenientes desta perspectiva, como a considerável contribuição à ampliação e complexificação da problemática do poder, ela não tem como lidar com a recorrência de questões que repõem a força dos acontecimentos e da participação decisiva dos sujeitos em certos eventos. Como seria a história da Revolução de 17 sem Lênin e as Teses de Abril? Ou a história da Segunda Guerra se fosse outro o resultado da Batalha de Stalingrado? Ou a trajetória da luta de classes no Brasil se Collor tivesse perdido a eleição em 1989 para Lula da Silva? Basta formular as perguntas para evidenciar tanto a influência decisiva de eventos singulares quanto o caráter incontornável da interferência subjetiva na dinâmica histórica. O fato de que esta interferência ocorre sempre em circunstâncias precisas e momentâneas não reduz a importância dos

13efeitos que a partir dali são projetados .

11Veja-se, só como exemplo, o livro de Agnes Heller e Ferenc Feher: A condição política pós-moderna. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1998.12Cf. HABERMAS, J. Theorie des kommunikativen Handelns. Frankfurt, Surkamp, 1981.13A exigência de recuperar a problemática do sujeito parece ter produzido um efeito peculiar na corrente foucaultiana, pois a obra tardia daquele autor tem sido lida como uma redescoberta do sujeito na perspectiva do “cuidado de si”. Ver os artigos reunidos por PORTOCARRERO, Vera e CASTELO

b) Supervalorização da subjetividade e visão da singularidade como indeterminação. No extremo oposto das perspectivas estruturalistas e assemelhadas afirma-se uma História que se reencontrou com o acontecimento e que tende a vê-lo, sobretudo, como contingência. Em tais acontecimentos os sujeitos atuam em geral como soberanos e suas escolhas são o fator decisivo na inteligibilidade dos processos históricos. Com muita frequência a concepção de subjetividade (explícita ou oculta nos textos) que informa essas abordagens é liberal: o modelo é o indivíduo que age para maximizar seus interesses. Nenhum ramo da História é tão dominado por esta perspectiva como a Nova História Política, beneficiada, como explica um de seus expoentes, pelo fim da crise da História événementielle e pelo retorno da narrativa como

14forma de expressão do conhecimento histórico . O risco de escorregar em reducionismos e simplificações espúrias é muito grande, como se pode ler nas interpretações do Golpe de Estado de 1964 que responsabilizam a “estratégia do

15confronto” dos atores políticos envolvidos . Por outro lado, a pesquisa histórica voltada para os acontecimentos confunde-se, muitas vezes, com o “fontismo”, demitindo o historiador do trabalho de problematizar seu objeto e limitando-o a transcrever documentos e apresentar seu conteúdo enredado na forma narrativa. Este risco, naturalmente, é tanto maior quanto mais pobre é a formação teórico-metodológica dos próprios historiadores.

c) Soluções intermediárias ou de compromisso. Esta terceira perspectiva busca equilibrar-se sobre algum ponto fixado a certa distância de um ou outro dos pólos anteriores. Aqui os contextos estruturados e exteriores aos sujeitos aparecem com certa força, de modo a cumprirem um papel na explicação histórica. Também aos sujeitos é atribuído algum protagonismo efetivo e não mecanicamente derivado. A ênfase das narrativas oscila entre os planos paralelos em que são trabalhados o enredo e o enquadramento, o que tende a ampliar a perspectiva da cena histórica que interessa apresentar. Este tipo de abordagem é frequente nos trabalhos sobre a história das organizações e partidos de esquerda que procuram nexos entre a dinâmica da trajetória da organização,

BRANCO, Guilherme (orgs.) Retratos de Foucault. Rio de Janeiro, Nau, 2000. Especialmente os que compõem a terceira parte da coletânea, intitulada O último Foucault.14Cf. os artigos de RÉMOND, René. Uma história presente e Do político, publicados na coletânea por ele mesmo organizada: Por uma história política. Rio de Janeiro, UFRJ-FGV, 1996.15FERREIRA, Jorge. A estratégia do confronto: a frente de mobilização popular. Revista Brasileira de História, v. 24, n. 47, pp. 181-212.

construída a partir da documentação primária, e o ambiente histórico mais amplo em que tal trajetória aconteceu. Persiste, no entanto, alguma forma de descontinuidade entre os planos paralelos da análise, o que cria entre os elementos desses planos uma relação de exterioridade. Um capítulo de “contexto” que permanece semi-isolado no início de uma tese de doutorado, por exemplo, é uma boa imagem do hiato entre os elementos de moldura e de ação justapostos num texto de História. Não é ocioso mencionar, ademais, a ingenuidade que marca a noção de “contexto” quando ela significa apenas a descrição de um ambiente para a cena histórica. Basta lembrar que este ambiente, porque histórico, deve ser ele mesmo explicado historicamente para que esta noção de “contexto” se veja lançada numa regressão infinita.

A abordagem dialética: o problema da totalidade

O método que Marx expôs, de modo incompleto, na sua Introdução de 1857 é a base das reflexões que seguem. Na verdade pretendo demonstrar, mais à frente, que mesmo vários anos antes da escrita da Introdução, o método dialético já orientava as análises de Marx sobre a história política da França publicadas nos primeiros anos da década de 50. Não se trata, por conseguinte, de transpor para um domínio diferente o método concebido para a Economia Política e nem, certamente, de reivindicar a validade universal do método da Economia com base na idéia da determinação econômica. Proponho algo bem diferente, que é reconhecer a vigência do método dialético nas obras em que Marx trata de história e de política. As categorias expostas no texto de 1857 dizem respeito não apenas à Economia Política, mas ao próprio método dialético que Marx já experimentara em obras dedicadas a outros assuntos.

Retomemos os problemas clássicos da singularidade e da subjetividade. Eles podem ser formulados e tratados de uma perspectiva completamente diferente das anteriores. Ao invés da unilateralidade ou do paralelismo, a dialética materialista sugere pensar uma relação de outro tipo: os termos contrários (a singularidade do acontecimento e da ação do sujeito, por um lado, e a totalidade muito mais complexa de relações da qual aquela singularidade é uma parte), exatamente porque são a negação determinada um do outro, se determinam reciprocamente. Sigamos passo a passo.

O ponto de partida tem de ser sempre o evento, acessado quase sempre através das evidências documentais. Mas este evento não pode ser concebido como isolado, uma mônada auto-explicável, pois isto seria uma incongruência lógica e corresponderia a

afirmar que aquele fato não tem história. Então ao eleger seu objeto e recolher suas primeiras evidências, o historiador já sabe que ele – o objeto – está preso a um conjunto de relações e que conhecer o seu objeto implica em conhecer este nó de relações a que ele está ligado. Mesmo sem conhecer ainda o conteúdo real dessas relações o historiador já sabe que elas determinam as condições de possibilidade do seu objeto, fazem com que ele exista e possa ser pensado.

A relação entre a ação que faz a história (e o sujeito que a pratica) e as circunstâncias que tornam possível e efetiva esta ação aparece, aqui, como a relação entre a singularidade e a totalidade, a parte e o todo. A parte não existe, como tal, fora da relação com o todo. Assim, por exemplo, uma coisa qualquer só adquire o caráter de mercadoria (valor de troca) na medida em que é produzida e circula num meio social em que são vigentes as relações que engendram o trabalho abstrato e, tão logo seja transportada para um universo social diferente, a coisa deixa de ser mercadoria. Do mesmo modo o dinheiro, conforme exista dentro ou fora de um modo de produção de mercadorias ou o escravo, se numa sociedade escravista ou em outra qualquer, são realidades completamente diferentes. Mas seria equivocado pensar na relação da parte com o todo como sendo de subordinação unívoca. A parte é a materialização concreta, embora parcial e fragmentária, do todo, que por sua vez não pode existir senão em e através de cada parte. Destituído de suas partes, o todo deixaria de existir concretamente e assumiria uma forma ilusória.

Trata-se, portanto, de uma relação necessária. O que afeta a parte (acontecimentos singulares) repercute, de algum modo no todo. De algum modo porque mediado pela própria relação da parte com o todo, que a excede não apenas em quantidade (é maior), mas em qualidade (inclui realidades distintas da parte singular). A parte participa da vida do todo, atualiza-o, inicia ou interrompe mudanças explorando as contradições mas sempre desenvolvendo as possibilidades criadas pela sua relação com ele.

Todavia, uma vez que nos dispomos a conhecê-la, a relação é também contraditória: a parte revela e, ao mesmo tempo, esconde o todo. Lidando com as evidências documentais próprias de seu ofício, o historiador experiente sabe que elas possuem natureza fragmentária e que revelam, do seu objeto, apenas aspectos parciais. O trabalho com as fontes faz com que apareçam partes e, de fato, somente elas aparecerão de modo evidente. Sua aparição como parte é reveladora, já, de um aspecto do todo – mas apenas de um aspecto. A relação mais profunda daquele aspecto parcial com a totalidade, no entanto, não é necessariamente evidente na própria evidência documental. Ela permanece em geral oculta até que o historiador problematize a fonte. O todo não aparece, como tal, na parte.

10 - A dialética na oficina do historiador: idéias arriscadas sobre algumas questões de método História & Luta de Classes, Nº 9 - Junho de 2010 (7-16) - 11

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Uma questão metodológica decisiva para os historiadores diz respeito à importância das evidências parciais no processo de produção do conhecimento. E, com efeito, sem o trabalho com as fontes não há pesquisa histórica que mereça esse nome. Se a interpretação das evidências exige restabelecer, no pensamento, sua conexão com o todo de relações a que elas se prendem, então o próprio todo, por seu turno, precisa se conhecido de alguma maneira. Ora, a compreensão do todo (como totalidade concreta) não pode prescindir do exame da concretude da parte, sem a qual o todo não passa de uma abstração de caráter hipotético ou, pior, simplesmente arbitrário. Este é, como todos sabem, um dos pontos quentes da crítica de Thompson a Althusser. O historiador censurou no filósofo a incapacidade de fazer o pensamento reconhecer como sua meta a apreensão da concretude singular dos fatos e dos sujeitos, o que o levava a

16resolver a explicação no plano da teoria pura .

Reconhecer a imprescindibilidade da análise das fontes não altera, no entanto, a exigência primordial do método dialético: superar a imanência e estabelecer um plano relacional de análise, buscar as relações das evidências (que expressam parcialmente fatos e subjetividades singulares) com a totalidade. O estudo da parte, precisamente ao descobrir e considerar a sua parcialidade, exige ultrapassar os limites finitos de cada evidência e procurar a percepção do todo. O estudo da finitude da parte e de sua história detecta a presença do todo que nela se insinua e abre caminho para a investigação que tratará de descobrir e exprimir, ao final, as múltiplas determinações ali concretamente sintetizadas. Este é, talvez, o passo mais controvertido do método, o que mais suscita dúvidas e objeções. Como pensar a totalidade, como falar dela se a posição do pensador será sempre parcial e finita, assim como o serão igualmente seus recursos de investigação e de exposição? Como manter a categoria totalidade diante do fato incontestável de que ela excede, por definição, qualquer tentativa de apreendê-la?

Penso que o problema deve ser encarado em duas frentes. A primeira diz respeito à sua dimensão ontológica e pode ser expressa no questionamento dos próprios termos em que ele é habitualmente formulado. Se for concebida como soma ou inventário total de eventos, a totalidade não é apenas uma categoria impossível e inútil, é também estúpida. Não é de uma totalidade empírica que se pode falar, mas da totalidade de relações, o que é muito diferente. Estabelecemos acima a premissa de que os fatos da vida social não são mônadas nem episódios isolados, já que se articulam em nós de relações. Resta saber se as relações de que falamos existem de modo aleatório e contingente ou se podemos falar de estrutura de relações ou de relações determinadas. Neste ponto a

16THOMPSON, E. P. A miséria da teoria ou um planetário de erros. Rio de Janeiro, Zahar, 1981.

contribuição fundamental de Marx permanece sem refutação: nenhuma forma de vida social pode existir sem produzir e reproduzir as bases materiais que viabilizam a sua sobrevivência física. A conseqüência deste axioma é importantíssima, a famosa “determinação em última instância”: as múltiplas relações sociais (e toda a miríade de acontecimentos sociais a elas ligados) não são aleatórias, mas determinadas pelo pertencimento a uma totalidade estruturada que é, ela própria, determinada pelo modo de produção. “Em última instância”, como insistia Engels, para lembrar que o modo de produção não atua como causa imediata dos fenômenos sociais, mas como determinante, condição de possibilidade do conjunto das relações sociais nas quais todos os fenômenos se inscrevem. A categoria totalidade se refere, portanto, à totalidade de relações determinadas e cujo princípio de determinação se pode conhecer.

O segundo aspecto do problema é de ordem epistemológica. Mesmo os mais intransigentes adversários da categoria totalidade não conseguem afastar-se dela como certamente desejariam. No caso dos historiadores é a noção de “contexto” que costuma fazer às vezes de cavalo de Tróia. Apesar de muitos abolirem o uso da categoria totalidade, os historiadores nunca deixam de fazer referências, em diversos níveis, aos espaços onde se encontram conjuntos mais amplos de sujeitos e relações. Suas narrativas e explicações perderiam elos lógicos fundamentais e dificilmente poderiam ser sustentados se tudo o que se refere ao contexto (e que, portanto, escapa ao tipo de controle direto que é possível fazer sobre o corpus documental) fosse subtraído de seus esquemas. Mas o que é o “contexto” senão uma forma ingênua de referir-se à totalidade? O que se ganha ao evitar a discussão aprofundada das categorias de análise e substituí-las por noções acolhidas sem crítica?

O caso dos historiadores, porém, parece ser uma manifestação particular de um problema mais geral. Todos os sistemas explicativos, não apenas os elaborados por historiadores, defrontam-se com o mesmo dilema: para serem internamente consistentes,

17não podem ser completos . É a remissão ao exterior do sistema que garante sua consistência lógica e isto pode ser verificado tanto em complicadas proposições matemáticas quanto em qualquer discurso denotativo. A mera suposição de que haverá um acordo entre o locutor e o destinatário quanto ao sentido das palavras escolhidas, suposição que é condição para a coerência de sentido da fala, baseia-se em algo exterior ao próprio discurso. A produção de sentido, para funcionar, depende não apenas do sistema e suas regras

17O dilema foi formulado inicialmente pelo matemático Gödel mas os analistas tendem a concordar que ele se aplica a todos os sistemas formais conhecidos. Cf. NAGEL, Ernest e NEWMAN, James R. A prova de Gödel. 2ª Ed. São Paulo, Perspectiva, 2001.

18É este um dos pontos em que a abordagem do problema da linguagem proposta por Bakhtin supera a lingüística estrutural de Saussure. Ver BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo, HUCITEC, 1995.

(a língua, por exemplo) mas do jogo de deslizamentos e 18acomodações que o uso social do sistema impõe .

É por isso que a totalidade não pode ser pensada como um mero sistema de relações, passível de uma definição lógica em termos de completude ou consistência. Ela é um todo determinado e internamente contraditório, portanto aberto e “vivo”, isto é, dotado de automovimento. Mas, como tal, a totalidade é uma exigência lógica presente na enunciação de qualquer explicação, mesmo quando o enunciador não lida com ela de modo consciente e crítico. O todo é uma condição para a inteligibilidade da parte.

Se o historiador não é um ficcionista e se, por conseguinte, seu pensamento se volta para o concreto na busca de apreendê-lo, as dimensões ontológica e epistemológica do problema da totalidade têm lugar em sua oficina. “O concreto é concreto porque é síntese de muitas determinações, isto é, unidade do diverso”, dizia Marx. Por isso mesmo é que pensá-lo significa reconstituir no cérebro (conceitualmente) como síntese pensada a multiplicidade de determinações de que ele se constitui. A singularidade da evidência documental e da subjetividade presente no evento vista não como mônada, mas como síntese, de um lado, e o todo orgânico de relações determinadas visto não como sistema fechado mas como totalidade aberta e contraditoriamente dinâmica, de outro, constituem dois pólos de uma relação dialética. Pensar esta relação exige preservar cada pólo: a singularidade não se dissolve no todo nem é dedutível a partir dele e, por isso mesmo, a pesquisa histórica não prescinde das evidências documentais; o todo não se reduz à soma das partes porque ele é qualitativamente distinto. Exige, porém, ao mesmo tempo, que cada pólo seja considerado a partir das relações necessárias (ontológica e epistemológica) que mantém com o pólo contrário: a parte não existe fora do todo, este não existe senão através daquela e um é condição para pensar o outro.

Na oficina de Marx

No início da década de 50 do século XIX este método foi aplicado por Marx no estudo de temas da História Política (contemporâneos do autor) da França. As Lutas de Classes da França de 1848 a 1850 e O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte, sobretudo o segundo, estão entre as obras mais citadas de Marx e são geralmente lembrados como os textos clássicos da interpretação marxista da história como história da luta de classes. Quando se trata de discutir o método,

porém, os debatedores sempre privilegiaram outros textos marxianos (principalmente os Manuscritos de 1844, a Introdução de 1857, o Prefácio de 1859, os Grundrisse, O Capital e seus prefácios e algumas

19cartas de Marx e de Engels) . Só raramente, e para sustentar linhas secundárias de argumentação, os textos de 1850-52 são incluídos entre as fontes para o estudo do método dialético. Pois é precisamente àqueles textos que recorrerei para observar a aplicação do método de Marx ao estudo da História. Não tenho como fazer, neste espaço, uma análise detida e aprofundada das obras, como seria mais apropriado. A pretensão será, portanto, bem mais modesta: não irei além de indicar aspectos dos textos em que a presença subterrânea do método se faz notar de algum modo.

Embora modesta, a empreitada tem seus riscos. O maior deles deriva de que o material de que dispomos – os textos – não nos coloca em contato direto com a oficina de Marx, ou seja, com o momento investigativo do trabalho informado pelo método. De fato o próprio Marx, acompanhando uma longa tradição filosófica, distinguiu cuidadosamente o momento da investigação (Forschung), que tem caráter analítico, do momento da exposição (Darstellung), de caráter sintético, sendo que o segundo só pode começar depois que o primeiro

20produziu seus resultados . Se vamos procurar o método dialético no texto é preciso considerar que ele se manifesta ali diretamente como método de exposição, mas só indiretamente, mediado pelo próprio trabalho de síntese expresso no texto, como método de investigação. Passemos aos aspectos que queremos sublinhar.

Não sem surpresa para muitos leitores que esperam confirmar a pecha de “reducionismo economicista” colada em Marx, os textos que mencionamos trazem uma história povoada de sujeitos, individuais e coletivos. Não é vazia a frase que na abertura do texto afirma que “os homens fazem a história”: a narrativa marxiana reconhece e valoriza o protagonismo dos sujeitos, nomeia-os, destaca suas características individuais, estilo, caráter, habilidades, interesses e intenções. O mesmo se pode dizer sobre os acontecimentos. Os eventos criados pela movimentação dos sujeitos na cena política francesa são acompanhados em detalhe por Marx. A profusão de fatos e sujeitos nos textos cria, paradoxalmente,

19Ver, como exemplos em perspectivas muito distintas: Rosdolsky, R. Génesis y estructura de El Capital de Marx. 6ª ed., Buenos Aires, Siglo Veintiuno, 1989 ALTHUSSER, Louis, RANCIÈRE, Jacques e MACHEREY, Pierre. Ler O Capital. Rio de Janeiro, Zahar,1979, BENSAÏD, Daniel. Marx, o Intempestivo. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1999 e TEIXEIRA, Francisco José Soares. Pensando com Marx. São Paulo, Ensaio, 1995.20Posfácio à segunda edição de O Capital. In: MARX, Karl. O

aCapital. 2 . ed., São Paulo, Nova Cultural, 1985, vol.1 (Col. Os Economistas).

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Uma questão metodológica decisiva para os historiadores diz respeito à importância das evidências parciais no processo de produção do conhecimento. E, com efeito, sem o trabalho com as fontes não há pesquisa histórica que mereça esse nome. Se a interpretação das evidências exige restabelecer, no pensamento, sua conexão com o todo de relações a que elas se prendem, então o próprio todo, por seu turno, precisa se conhecido de alguma maneira. Ora, a compreensão do todo (como totalidade concreta) não pode prescindir do exame da concretude da parte, sem a qual o todo não passa de uma abstração de caráter hipotético ou, pior, simplesmente arbitrário. Este é, como todos sabem, um dos pontos quentes da crítica de Thompson a Althusser. O historiador censurou no filósofo a incapacidade de fazer o pensamento reconhecer como sua meta a apreensão da concretude singular dos fatos e dos sujeitos, o que o levava a

16resolver a explicação no plano da teoria pura .

Reconhecer a imprescindibilidade da análise das fontes não altera, no entanto, a exigência primordial do método dialético: superar a imanência e estabelecer um plano relacional de análise, buscar as relações das evidências (que expressam parcialmente fatos e subjetividades singulares) com a totalidade. O estudo da parte, precisamente ao descobrir e considerar a sua parcialidade, exige ultrapassar os limites finitos de cada evidência e procurar a percepção do todo. O estudo da finitude da parte e de sua história detecta a presença do todo que nela se insinua e abre caminho para a investigação que tratará de descobrir e exprimir, ao final, as múltiplas determinações ali concretamente sintetizadas. Este é, talvez, o passo mais controvertido do método, o que mais suscita dúvidas e objeções. Como pensar a totalidade, como falar dela se a posição do pensador será sempre parcial e finita, assim como o serão igualmente seus recursos de investigação e de exposição? Como manter a categoria totalidade diante do fato incontestável de que ela excede, por definição, qualquer tentativa de apreendê-la?

Penso que o problema deve ser encarado em duas frentes. A primeira diz respeito à sua dimensão ontológica e pode ser expressa no questionamento dos próprios termos em que ele é habitualmente formulado. Se for concebida como soma ou inventário total de eventos, a totalidade não é apenas uma categoria impossível e inútil, é também estúpida. Não é de uma totalidade empírica que se pode falar, mas da totalidade de relações, o que é muito diferente. Estabelecemos acima a premissa de que os fatos da vida social não são mônadas nem episódios isolados, já que se articulam em nós de relações. Resta saber se as relações de que falamos existem de modo aleatório e contingente ou se podemos falar de estrutura de relações ou de relações determinadas. Neste ponto a

16THOMPSON, E. P. A miséria da teoria ou um planetário de erros. Rio de Janeiro, Zahar, 1981.

contribuição fundamental de Marx permanece sem refutação: nenhuma forma de vida social pode existir sem produzir e reproduzir as bases materiais que viabilizam a sua sobrevivência física. A conseqüência deste axioma é importantíssima, a famosa “determinação em última instância”: as múltiplas relações sociais (e toda a miríade de acontecimentos sociais a elas ligados) não são aleatórias, mas determinadas pelo pertencimento a uma totalidade estruturada que é, ela própria, determinada pelo modo de produção. “Em última instância”, como insistia Engels, para lembrar que o modo de produção não atua como causa imediata dos fenômenos sociais, mas como determinante, condição de possibilidade do conjunto das relações sociais nas quais todos os fenômenos se inscrevem. A categoria totalidade se refere, portanto, à totalidade de relações determinadas e cujo princípio de determinação se pode conhecer.

O segundo aspecto do problema é de ordem epistemológica. Mesmo os mais intransigentes adversários da categoria totalidade não conseguem afastar-se dela como certamente desejariam. No caso dos historiadores é a noção de “contexto” que costuma fazer às vezes de cavalo de Tróia. Apesar de muitos abolirem o uso da categoria totalidade, os historiadores nunca deixam de fazer referências, em diversos níveis, aos espaços onde se encontram conjuntos mais amplos de sujeitos e relações. Suas narrativas e explicações perderiam elos lógicos fundamentais e dificilmente poderiam ser sustentados se tudo o que se refere ao contexto (e que, portanto, escapa ao tipo de controle direto que é possível fazer sobre o corpus documental) fosse subtraído de seus esquemas. Mas o que é o “contexto” senão uma forma ingênua de referir-se à totalidade? O que se ganha ao evitar a discussão aprofundada das categorias de análise e substituí-las por noções acolhidas sem crítica?

O caso dos historiadores, porém, parece ser uma manifestação particular de um problema mais geral. Todos os sistemas explicativos, não apenas os elaborados por historiadores, defrontam-se com o mesmo dilema: para serem internamente consistentes,

17não podem ser completos . É a remissão ao exterior do sistema que garante sua consistência lógica e isto pode ser verificado tanto em complicadas proposições matemáticas quanto em qualquer discurso denotativo. A mera suposição de que haverá um acordo entre o locutor e o destinatário quanto ao sentido das palavras escolhidas, suposição que é condição para a coerência de sentido da fala, baseia-se em algo exterior ao próprio discurso. A produção de sentido, para funcionar, depende não apenas do sistema e suas regras

17O dilema foi formulado inicialmente pelo matemático Gödel mas os analistas tendem a concordar que ele se aplica a todos os sistemas formais conhecidos. Cf. NAGEL, Ernest e NEWMAN, James R. A prova de Gödel. 2ª Ed. São Paulo, Perspectiva, 2001.

18É este um dos pontos em que a abordagem do problema da linguagem proposta por Bakhtin supera a lingüística estrutural de Saussure. Ver BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo, HUCITEC, 1995.

(a língua, por exemplo) mas do jogo de deslizamentos e 18acomodações que o uso social do sistema impõe .

É por isso que a totalidade não pode ser pensada como um mero sistema de relações, passível de uma definição lógica em termos de completude ou consistência. Ela é um todo determinado e internamente contraditório, portanto aberto e “vivo”, isto é, dotado de automovimento. Mas, como tal, a totalidade é uma exigência lógica presente na enunciação de qualquer explicação, mesmo quando o enunciador não lida com ela de modo consciente e crítico. O todo é uma condição para a inteligibilidade da parte.

Se o historiador não é um ficcionista e se, por conseguinte, seu pensamento se volta para o concreto na busca de apreendê-lo, as dimensões ontológica e epistemológica do problema da totalidade têm lugar em sua oficina. “O concreto é concreto porque é síntese de muitas determinações, isto é, unidade do diverso”, dizia Marx. Por isso mesmo é que pensá-lo significa reconstituir no cérebro (conceitualmente) como síntese pensada a multiplicidade de determinações de que ele se constitui. A singularidade da evidência documental e da subjetividade presente no evento vista não como mônada, mas como síntese, de um lado, e o todo orgânico de relações determinadas visto não como sistema fechado mas como totalidade aberta e contraditoriamente dinâmica, de outro, constituem dois pólos de uma relação dialética. Pensar esta relação exige preservar cada pólo: a singularidade não se dissolve no todo nem é dedutível a partir dele e, por isso mesmo, a pesquisa histórica não prescinde das evidências documentais; o todo não se reduz à soma das partes porque ele é qualitativamente distinto. Exige, porém, ao mesmo tempo, que cada pólo seja considerado a partir das relações necessárias (ontológica e epistemológica) que mantém com o pólo contrário: a parte não existe fora do todo, este não existe senão através daquela e um é condição para pensar o outro.

Na oficina de Marx

No início da década de 50 do século XIX este método foi aplicado por Marx no estudo de temas da História Política (contemporâneos do autor) da França. As Lutas de Classes da França de 1848 a 1850 e O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte, sobretudo o segundo, estão entre as obras mais citadas de Marx e são geralmente lembrados como os textos clássicos da interpretação marxista da história como história da luta de classes. Quando se trata de discutir o método,

porém, os debatedores sempre privilegiaram outros textos marxianos (principalmente os Manuscritos de 1844, a Introdução de 1857, o Prefácio de 1859, os Grundrisse, O Capital e seus prefácios e algumas

19cartas de Marx e de Engels) . Só raramente, e para sustentar linhas secundárias de argumentação, os textos de 1850-52 são incluídos entre as fontes para o estudo do método dialético. Pois é precisamente àqueles textos que recorrerei para observar a aplicação do método de Marx ao estudo da História. Não tenho como fazer, neste espaço, uma análise detida e aprofundada das obras, como seria mais apropriado. A pretensão será, portanto, bem mais modesta: não irei além de indicar aspectos dos textos em que a presença subterrânea do método se faz notar de algum modo.

Embora modesta, a empreitada tem seus riscos. O maior deles deriva de que o material de que dispomos – os textos – não nos coloca em contato direto com a oficina de Marx, ou seja, com o momento investigativo do trabalho informado pelo método. De fato o próprio Marx, acompanhando uma longa tradição filosófica, distinguiu cuidadosamente o momento da investigação (Forschung), que tem caráter analítico, do momento da exposição (Darstellung), de caráter sintético, sendo que o segundo só pode começar depois que o primeiro

20produziu seus resultados . Se vamos procurar o método dialético no texto é preciso considerar que ele se manifesta ali diretamente como método de exposição, mas só indiretamente, mediado pelo próprio trabalho de síntese expresso no texto, como método de investigação. Passemos aos aspectos que queremos sublinhar.

Não sem surpresa para muitos leitores que esperam confirmar a pecha de “reducionismo economicista” colada em Marx, os textos que mencionamos trazem uma história povoada de sujeitos, individuais e coletivos. Não é vazia a frase que na abertura do texto afirma que “os homens fazem a história”: a narrativa marxiana reconhece e valoriza o protagonismo dos sujeitos, nomeia-os, destaca suas características individuais, estilo, caráter, habilidades, interesses e intenções. O mesmo se pode dizer sobre os acontecimentos. Os eventos criados pela movimentação dos sujeitos na cena política francesa são acompanhados em detalhe por Marx. A profusão de fatos e sujeitos nos textos cria, paradoxalmente,

19Ver, como exemplos em perspectivas muito distintas: Rosdolsky, R. Génesis y estructura de El Capital de Marx. 6ª ed., Buenos Aires, Siglo Veintiuno, 1989 ALTHUSSER, Louis, RANCIÈRE, Jacques e MACHEREY, Pierre. Ler O Capital. Rio de Janeiro, Zahar,1979, BENSAÏD, Daniel. Marx, o Intempestivo. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1999 e TEIXEIRA, Francisco José Soares. Pensando com Marx. São Paulo, Ensaio, 1995.20Posfácio à segunda edição de O Capital. In: MARX, Karl. O

aCapital. 2 . ed., São Paulo, Nova Cultural, 1985, vol.1 (Col. Os Economistas).

12 - A dialética na oficina do historiador: idéias arriscadas sobre algumas questões de método História & Luta de Classes, Nº 9 - Junho de 2010 (7-16) - 13

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dificuldades para leitores nossos contemporâneos que desconhecem aqueles personagens, datas e

21acontecimentos e terminam por “perder o fio” .

Quem imagina encontrar um pensamento que ignora ou secundariza as evidências em favor de uma teoria onisciente se assustará ao encontrar não apenas textos fartamente documentados, mas também o uso de fontes muito variadas. Ainda mais desconcertante poderá ser a constatação de que a forma de expressão literária predominante em ambos os textos é a narrativa e, para completar, uma narrativa cronologicamente orientada. A forma de exposição é, pois, distinta daquela preconizada na Introdução de 1857 e executada n'O Capital, que considera “errôneo colocar as categorias econômicas na ordem segundo a qual tiveram historicamente uma ação determinante” e propõe, ao contrário, que elas sejam determinadas “pelo relacionamento que têm umas com as outras na

22sociedade burguesa moderna” .

A diferença na forma de exposição indicaria uma diferença no método do Marx de 1850-52 para o de 1857? Ao contrário, penso que o método é rigorosamente o mesmo e, se a exposição é diferente isso se deve antes às diferenças substantivas nos objetos investigados e apresentados em cada uma. Na Introdução e n'O Capital o problema é dar a conhecer (expor) as determinações do modo de produção capitalista, investigadas por Marx em longos anos de intensa pesquisa. Os resultados da investigação, organizados e sistematizados em categorias, precisavam ser apresentados de modo a assegurar o objetivo central do projeto: a reconstrução cerebral do concreto (cada categoria como abstração de determinações concretas e o próprio modo de produção como “todo de pensamentos”) como síntese, “ totalidade concreta, como totalidade de pensamentos, como um concreto de pensamentos, [que] é de fato um produto do pensar, do conceber”. Não era da história do capitalismo que Marx tratava, mas do capitalismo como totalidade histórica. O descarte da exposição cronológica em favor da forma categorial-sistemática diz respeito às características do objeto, neste caso o modo de produção capitalista, e não a uma imposição metodológica a priori.

Ora, qual seria a forma de expressão adequada a um objeto completamente distinto – um processo, uma trajetória, um percurso cumprido, ou seja, o tipo de objeto familiar aos historiadores (ao menos a muitos deles)? Quando lidou com objetos assim, nos textos de

231850-52 , Marx optou por organizar sua exposição na forma de uma narrativa cronologicamente orientada,

21Nas muitas vezes em que trabalhei esses livros com alunos de Graduação em História esta foi, sempre, a principal dificuldade apontada por eles para a compreensão dos textos.22MARX, Karl. Introdução a Para a Crítica da Economia Política. In: MARX, K., São Paulo, Nova Cultural, 1986, (col. Os Economistas), p. 19.

23E também em alguns artigos publicados em jornais, sobretudo norte-americanos, nas décadas de 50 e 60, nos quais discute temas como política internacional e colonialismo.

entremeada por comentários que desdobravam aspectos teóricos. Naqueles textos o problema era como expor a dinâmica histórica da luta de classes que imprimia rápidas mudanças na forma e no conteúdo do Estado e na sociedade francesas. A investigação, embora menos profunda e mais breve que seus estudos sobre o capitalismo, também produziu resultados organizados em categorias, mas aqui a dimensão temporal (ou o sentido de processo, ou a periodização) entra como coordenada fundamental para a classificação e sistematização dos dados. No momento da exposição a tarefa do pensamento era fundamentalmente a mesma: produzir no cérebro a síntese das determinações descobertas pela pesquisa. A diferença é que, neste caso, o pensamento precisava lidar com esta dimensão fundamental do objeto – a temporalidade – e é isso que explica o recurso à narrativa como forma privilegiada (embora não a única) de expressão.

Uma narrativa atenta aos sujeitos e aos acontecimentos singulares indica, com muita precisão, que a investigação esteve igualmente atenta a estes temas pois, de outro modo, não teriam sido produzidas aquelas informações. Mas os textos de Marx conduzem também ao outro lado da relação dialética que descrevemos, o lado das “condições históricas” que os sujeitos herdam sem escolha. O que devemos entender por “condições históricas” senão a totalidade de relações dentro das quais os eventos e seus sujeitos podem existir? Múltiplas relações, e não apenas as “econômicas”, são consideradas na determinação do concreto. O peso de tradições políticas do passado, uma herança cultural, merece atenção e o reconhecimento de que ela “oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos”. A imaturidade política do proletariado, condição associada à sua própria história como classe muito jovem, entra como fator explicativo de grande relevância para as derrotas de maio e junho de 1848. As inconsistências da Constituição e as manobras desastradas dos grupos parlamentares burgueses são apresentadas como fatores de peso considerável na determinação da marcha dos acontecimentos. A corporação militar, com suas características específicas e a partir dos espaços criados pelas iniciativas dos grupos parlamentares e governamentais, termina por assumir um papel de alta relevância na história.

As classes têm, certamente, o papel decisivo na explicação, mas com muitas mediações. Isso porque não há qualquer imediatismo entre as classes como realidade social e sua representação política nos grupos políticos ou no Estado. Os republicanos burgueses, que desempenharam um papel decisivo na primeira fase, não representavam nenhuma das frações mais

importantes da burguesia que eram, ambas, monarquistas. Orleanistas e legitimistas representam, juntos, os setores mais importantes da classe dominante, mas não são capazes de dar à França um governo estável, mesmo depois de esmagar política e militarmente o proletariado. Uma classe muito numerosa, mas politicamente inexpressiva, a dos pequenos proprietários camponeses, unifica-se em torno de um programa fraudulento (as idées napoléonienes de que fala Marx) e se torna a força que leva ao poder a figura caricata do sobrinho de Napoleão. É certo que ao referir-se às classes Marx pensa no todo determinado de relações que dá existência às classes, sobretudo as relações sociais de produção (“as classes são uma palavra vazia de sentido se ignorarmos os elementos em que repousam,

24por exemplo: o trabalho assalariado, o capital, etc.” Todas essas determinações remetem à totalidade histórica em que aquelas classes e a luta entre elas são elementos fundamentais e não são compreensíveis sem esta remessa.

No entanto, como se vê sem dificuldades, é rigorosamente impossível deduzir a história política francesa da realidade de classes da França em meados do séc. XIX. A forma concreta da ação política das classes não corresponde diretamente à situação das classes no modo de produção, porque se enriquece de muitas outras determinações. A história política concreta da França, ao ser investigada e exposta, aparece nos textos, então, como síntese de múltiplas determinações. A rigor, a história exposta nem é mais política, no sentido de que o resultado da investigação faz a política aparecer como parte da totalidade social. Talvez o mais apropriado fosse falar de uma História Social da Política. No método dialético aplicado (à História, como à Economia Política), a totalidade, embora determinada, não opera como axioma, princípio a partir do qual, por dedução, chega-se às “leis”, mas como quadro necessário de referências. A relação entre a totalidade e os eventos e sujeitos singulares não é unívoca e mecânica, mas dialética e complexa. A teoria não fornece uma explicação a pr ior i da h is tór ia . E la propõe ques tões conscientemente orientadas para direcionar o processo investigativo e fornece hipóteses para a sistematização e interpretação dos dados empíricos.

Uma História com sujeitos determinados

Gostaria de concluir com uma reflexão sobre a subjetividade para sublinhar o que me parece ser outra importante contribuição de Marx à faina dos historiadores. Trata-se da concepção de sujeito baseada na teoria da práxis.

O sujeito é uma realidade contraditória em

24MARX, K. Introdução... op. Cit, p, 14.

vários aspectos. Tomemos dois. Ele é, num aspecto, sujeito no sentido comum, de ator/autor, sujeito de. Sua existência na história faz toda a diferença entre o mundo da natureza e o que resulta da ação humana. Esta ação, realizadora de uma obra que se distingue da e ultrapassa a natureza, não pode, a não ser por uma arbitrariedade metodológica, ser separada da subjetividade dos agentes e de tudo o que ela implica, como o fato de atribuir sentido à própria ação e ao mundo. Num outro aspecto, porém, o sujeito é sempre aquele que está submetido, sofre uma ação, é ou está sujeito a. A menos que aceitemos a idéia de que cada um de nós recebe uma alma imortal que seria a nossa verdade última, é preciso reconhecer que a subjetividade não é anterior à história do próprio sujeito. Ela só se desenvolve através da relação com o que lhe é exterior e contraposto: a objetividade (ob-jectum; Gegen-stand). Esta relação limita e modela o sujeito, embora não completamente.

Estes aspectos são contraditórios, pois um é a negação do outro, e mutuamente implicados. A condição de estar sujeito a determina de modo absoluto o que o sujeito de não pode ser, fazer ou mesmo pensar, determina seus limites: Aristóteles não poderia compreender o fundamento do valor porque as condições históricas não haviam tornado possível este conhecimento. Determina, porém, apenas de modo relativo (tendencial) o que ele efetivamente será, fará ou pensará: é hoje possível conhecer o fundamento do valor, mas nem todos conhecerão. Tendencialmente, no entanto, se pode verificar que intelectuais (economistas) organicamente vinculados à burguesia apresentarão com mais freqüência e intensidade rejeição à teoria (marxista) do valor. Não é uma lei de ferro: as trajetórias de Engels e Lukács são magníficos exemplos de que esta tendência, conquanto poderosa, não é absoluta.

Os sujeitos históricos são constituídos através desta contradição (determinam-se através do seu contrário) e a história deles é, em última instância, o desenvolvimento desta contradição. Ora, se a própria subjetividade não se esgota em si mesma, ou seja, se os sujeitos não podem ser considerados como auto-determinações, a História não pode limitar seu interesse à história das subjetividades. O indivíduo isolado, a subjetividade imanente ou a natureza humana são todas, por razões semelhantes, pistas falsas para os historiadores. Uma problemática dialética do sujeito começa pela noção de que a “essência humana (...) Na sua realidade, ela é o

25conjunto das relações sociais” . Se a História não tem como eclipsar a dimensão subjetiva do seu objeto, por outro lado a subjetividade não existe senão através da relação com o seu exterior, o mundo objetivo das relações sociais. Por esta via o sujeito se define como ser social e as relações sociais compõem,

25MARX, K. Teses sobre Feuerbach... op, cit, p. 95.

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dificuldades para leitores nossos contemporâneos que desconhecem aqueles personagens, datas e

21acontecimentos e terminam por “perder o fio” .

Quem imagina encontrar um pensamento que ignora ou secundariza as evidências em favor de uma teoria onisciente se assustará ao encontrar não apenas textos fartamente documentados, mas também o uso de fontes muito variadas. Ainda mais desconcertante poderá ser a constatação de que a forma de expressão literária predominante em ambos os textos é a narrativa e, para completar, uma narrativa cronologicamente orientada. A forma de exposição é, pois, distinta daquela preconizada na Introdução de 1857 e executada n'O Capital, que considera “errôneo colocar as categorias econômicas na ordem segundo a qual tiveram historicamente uma ação determinante” e propõe, ao contrário, que elas sejam determinadas “pelo relacionamento que têm umas com as outras na

22sociedade burguesa moderna” .

A diferença na forma de exposição indicaria uma diferença no método do Marx de 1850-52 para o de 1857? Ao contrário, penso que o método é rigorosamente o mesmo e, se a exposição é diferente isso se deve antes às diferenças substantivas nos objetos investigados e apresentados em cada uma. Na Introdução e n'O Capital o problema é dar a conhecer (expor) as determinações do modo de produção capitalista, investigadas por Marx em longos anos de intensa pesquisa. Os resultados da investigação, organizados e sistematizados em categorias, precisavam ser apresentados de modo a assegurar o objetivo central do projeto: a reconstrução cerebral do concreto (cada categoria como abstração de determinações concretas e o próprio modo de produção como “todo de pensamentos”) como síntese, “ totalidade concreta, como totalidade de pensamentos, como um concreto de pensamentos, [que] é de fato um produto do pensar, do conceber”. Não era da história do capitalismo que Marx tratava, mas do capitalismo como totalidade histórica. O descarte da exposição cronológica em favor da forma categorial-sistemática diz respeito às características do objeto, neste caso o modo de produção capitalista, e não a uma imposição metodológica a priori.

Ora, qual seria a forma de expressão adequada a um objeto completamente distinto – um processo, uma trajetória, um percurso cumprido, ou seja, o tipo de objeto familiar aos historiadores (ao menos a muitos deles)? Quando lidou com objetos assim, nos textos de

231850-52 , Marx optou por organizar sua exposição na forma de uma narrativa cronologicamente orientada,

21Nas muitas vezes em que trabalhei esses livros com alunos de Graduação em História esta foi, sempre, a principal dificuldade apontada por eles para a compreensão dos textos.22MARX, Karl. Introdução a Para a Crítica da Economia Política. In: MARX, K., São Paulo, Nova Cultural, 1986, (col. Os Economistas), p. 19.

23E também em alguns artigos publicados em jornais, sobretudo norte-americanos, nas décadas de 50 e 60, nos quais discute temas como política internacional e colonialismo.

entremeada por comentários que desdobravam aspectos teóricos. Naqueles textos o problema era como expor a dinâmica histórica da luta de classes que imprimia rápidas mudanças na forma e no conteúdo do Estado e na sociedade francesas. A investigação, embora menos profunda e mais breve que seus estudos sobre o capitalismo, também produziu resultados organizados em categorias, mas aqui a dimensão temporal (ou o sentido de processo, ou a periodização) entra como coordenada fundamental para a classificação e sistematização dos dados. No momento da exposição a tarefa do pensamento era fundamentalmente a mesma: produzir no cérebro a síntese das determinações descobertas pela pesquisa. A diferença é que, neste caso, o pensamento precisava lidar com esta dimensão fundamental do objeto – a temporalidade – e é isso que explica o recurso à narrativa como forma privilegiada (embora não a única) de expressão.

Uma narrativa atenta aos sujeitos e aos acontecimentos singulares indica, com muita precisão, que a investigação esteve igualmente atenta a estes temas pois, de outro modo, não teriam sido produzidas aquelas informações. Mas os textos de Marx conduzem também ao outro lado da relação dialética que descrevemos, o lado das “condições históricas” que os sujeitos herdam sem escolha. O que devemos entender por “condições históricas” senão a totalidade de relações dentro das quais os eventos e seus sujeitos podem existir? Múltiplas relações, e não apenas as “econômicas”, são consideradas na determinação do concreto. O peso de tradições políticas do passado, uma herança cultural, merece atenção e o reconhecimento de que ela “oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos”. A imaturidade política do proletariado, condição associada à sua própria história como classe muito jovem, entra como fator explicativo de grande relevância para as derrotas de maio e junho de 1848. As inconsistências da Constituição e as manobras desastradas dos grupos parlamentares burgueses são apresentadas como fatores de peso considerável na determinação da marcha dos acontecimentos. A corporação militar, com suas características específicas e a partir dos espaços criados pelas iniciativas dos grupos parlamentares e governamentais, termina por assumir um papel de alta relevância na história.

As classes têm, certamente, o papel decisivo na explicação, mas com muitas mediações. Isso porque não há qualquer imediatismo entre as classes como realidade social e sua representação política nos grupos políticos ou no Estado. Os republicanos burgueses, que desempenharam um papel decisivo na primeira fase, não representavam nenhuma das frações mais

importantes da burguesia que eram, ambas, monarquistas. Orleanistas e legitimistas representam, juntos, os setores mais importantes da classe dominante, mas não são capazes de dar à França um governo estável, mesmo depois de esmagar política e militarmente o proletariado. Uma classe muito numerosa, mas politicamente inexpressiva, a dos pequenos proprietários camponeses, unifica-se em torno de um programa fraudulento (as idées napoléonienes de que fala Marx) e se torna a força que leva ao poder a figura caricata do sobrinho de Napoleão. É certo que ao referir-se às classes Marx pensa no todo determinado de relações que dá existência às classes, sobretudo as relações sociais de produção (“as classes são uma palavra vazia de sentido se ignorarmos os elementos em que repousam,

24por exemplo: o trabalho assalariado, o capital, etc.” Todas essas determinações remetem à totalidade histórica em que aquelas classes e a luta entre elas são elementos fundamentais e não são compreensíveis sem esta remessa.

No entanto, como se vê sem dificuldades, é rigorosamente impossível deduzir a história política francesa da realidade de classes da França em meados do séc. XIX. A forma concreta da ação política das classes não corresponde diretamente à situação das classes no modo de produção, porque se enriquece de muitas outras determinações. A história política concreta da França, ao ser investigada e exposta, aparece nos textos, então, como síntese de múltiplas determinações. A rigor, a história exposta nem é mais política, no sentido de que o resultado da investigação faz a política aparecer como parte da totalidade social. Talvez o mais apropriado fosse falar de uma História Social da Política. No método dialético aplicado (à História, como à Economia Política), a totalidade, embora determinada, não opera como axioma, princípio a partir do qual, por dedução, chega-se às “leis”, mas como quadro necessário de referências. A relação entre a totalidade e os eventos e sujeitos singulares não é unívoca e mecânica, mas dialética e complexa. A teoria não fornece uma explicação a pr ior i da h is tór ia . E la propõe ques tões conscientemente orientadas para direcionar o processo investigativo e fornece hipóteses para a sistematização e interpretação dos dados empíricos.

Uma História com sujeitos determinados

Gostaria de concluir com uma reflexão sobre a subjetividade para sublinhar o que me parece ser outra importante contribuição de Marx à faina dos historiadores. Trata-se da concepção de sujeito baseada na teoria da práxis.

O sujeito é uma realidade contraditória em

24MARX, K. Introdução... op. Cit, p, 14.

vários aspectos. Tomemos dois. Ele é, num aspecto, sujeito no sentido comum, de ator/autor, sujeito de. Sua existência na história faz toda a diferença entre o mundo da natureza e o que resulta da ação humana. Esta ação, realizadora de uma obra que se distingue da e ultrapassa a natureza, não pode, a não ser por uma arbitrariedade metodológica, ser separada da subjetividade dos agentes e de tudo o que ela implica, como o fato de atribuir sentido à própria ação e ao mundo. Num outro aspecto, porém, o sujeito é sempre aquele que está submetido, sofre uma ação, é ou está sujeito a. A menos que aceitemos a idéia de que cada um de nós recebe uma alma imortal que seria a nossa verdade última, é preciso reconhecer que a subjetividade não é anterior à história do próprio sujeito. Ela só se desenvolve através da relação com o que lhe é exterior e contraposto: a objetividade (ob-jectum; Gegen-stand). Esta relação limita e modela o sujeito, embora não completamente.

Estes aspectos são contraditórios, pois um é a negação do outro, e mutuamente implicados. A condição de estar sujeito a determina de modo absoluto o que o sujeito de não pode ser, fazer ou mesmo pensar, determina seus limites: Aristóteles não poderia compreender o fundamento do valor porque as condições históricas não haviam tornado possível este conhecimento. Determina, porém, apenas de modo relativo (tendencial) o que ele efetivamente será, fará ou pensará: é hoje possível conhecer o fundamento do valor, mas nem todos conhecerão. Tendencialmente, no entanto, se pode verificar que intelectuais (economistas) organicamente vinculados à burguesia apresentarão com mais freqüência e intensidade rejeição à teoria (marxista) do valor. Não é uma lei de ferro: as trajetórias de Engels e Lukács são magníficos exemplos de que esta tendência, conquanto poderosa, não é absoluta.

Os sujeitos históricos são constituídos através desta contradição (determinam-se através do seu contrário) e a história deles é, em última instância, o desenvolvimento desta contradição. Ora, se a própria subjetividade não se esgota em si mesma, ou seja, se os sujeitos não podem ser considerados como auto-determinações, a História não pode limitar seu interesse à história das subjetividades. O indivíduo isolado, a subjetividade imanente ou a natureza humana são todas, por razões semelhantes, pistas falsas para os historiadores. Uma problemática dialética do sujeito começa pela noção de que a “essência humana (...) Na sua realidade, ela é o

25conjunto das relações sociais” . Se a História não tem como eclipsar a dimensão subjetiva do seu objeto, por outro lado a subjetividade não existe senão através da relação com o seu exterior, o mundo objetivo das relações sociais. Por esta via o sujeito se define como ser social e as relações sociais compõem,

25MARX, K. Teses sobre Feuerbach... op, cit, p. 95.

14 - A dialética na oficina do historiador: idéias arriscadas sobre algumas questões de método História & Luta de Classes, Nº 9 - Junho de 2010 (7-16) - 15

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necessariamente, a outra dimensão constitutiva do objeto da História.

História será, então, sempre a investigação da história do ser social, isto é, de sujeitos determinados atuando em circunstâncias determinadas. Se aceitarmos esta forma de enunciar o objeto, teremos que concordar que a questão central da História é, muito a contragosto do mainstream historiográfico, a da determinação. Inteiramente distinta da idéia de causação, a questão da determinação convida a interrogar sobre como tal ação, tal sujeito e tais circunstâncias tornaram-se aquilo mesmo que efetivamente são, como se constituiu o seu modo determinado de ser. O problema da determinação é uma outra forma de abordar a própria história do ser social.

Sempre é possível levar em consideração apenas aspectos isolados da vida social ao estudar uma história qualquer. Retalhos costurados mostram, de algum modo, formas e cores que não são falsos em si mesmos. Concretamente, no entanto, a vida social é uma totalidade complexa de relações e a decisão metodológica de tomar somente um ou alguns de seus aspectos tem conseqüências que devem ser ponderadas. Claro, os historiadores podem desistir de pensar sobre o problema, declará-lo insolúvel ou indigno da sua atenção e confortarem-se com seus divertidos retalhos de retalhos. Não possuem, no entanto, meios para fazê-lo desaparecer.

Em se tratando da vida social, tudo o que for tomado ou considerado à parte do conjunto de relações sociais, que é, “na realidade”, a “essência da humanidade” será portador de uma incompletude radical. A única forma de lidar com esta incompletude sem recair numa deliberada unilateralidade é abrir-se para a totalidade, detectar e registrar as marcas da determinação do singular pela totalidade social. Mas, logo que se compreende que a questão da totalidade não pode ser abordada como enumeração ou inventário, compreende-se melhor a importância do conceito de práxis. Sujeitos, ações e circunstâncias tornam-se o que são através das relações ativadas pela práxis social. “Toda vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios que conduzem ao misticismo encontram sua solução racional na práxis

26humana e na compreensão dessa práxis.” A própria história permanece envolta em misticismo se não compreendemos a práxis.

Nada seria mais equivocado do que acreditar que a idéia de práxis simplifica ou reduz o trabalho do historiador. Ao contrár io, complexif ica-o extraordinariamente. Saber que não pode haver vida social sem que estejam asseguradas (produzidas e reproduzidas) as condições materiais que a tornam possível, condições estas que dizem diretamente

26Idem, ibidem, p. 96.

respeito às relações de produção e à práxis, não resolve de antemão o enigma da história. Apenas repõe perante o historiador a exigência de pensar seu objeto contra o pando de fundo da totalidade da vida social da qual ele não pode ser separado, a não ser por um ato de abstração.

Para uma História concebida como interrogação do automovimento do ser social (ser/relações), o método não oferece qualquer garantia prévia de resultados, mas, ao contrário, abre um conjunto de questões incontornáveis. Tais questões decorrem, por um lado, da exigência de compreender o objeto em perspectiva relacional e inscrito na totalidade. Por outro lado, decorrem da exigência de submeter as próprias categorias de análise à crítica histórica radical, desafiando em todos os níveis a ilusão positivista da neutralidade. A mais promissora perspectiva para enfrentar estas questões (categorias analíticas radicalmente historicizadas e produzidas através da atividade crítica, inteligibilidade do objeto mediante a pesquisa da sua determinação histórica e relacional) encontra-se no método dialético desenvolvido por Marx.

16 - A dialética na oficina do historiador: idéias arriscadas sobre algumas questões de método História & Luta de Classes, Nº 9 - Junho de 2010 (17-21) - 17

A

1*Tempos históricos e ritmos políticos

2Daniel Bensaïd

o contrário do que muitos supõem, Marx não é um “filósofo da história”. Ele foi precisamente - e muito antes da segunda Consideração intempestiva de Nietzsche, de A Eternidade pelos Astros de Blanqui; de Clio, de Peguy; das teses Sobre o conceito de história, de Walter Benjamin, ou do livro póstumo de Siegfried Kracauer A História – um dos primeiros a ter rompido categoricamente com as filosofias especulativas da história universal: providência divina, teleologia natural, ou odisséia do Espírito. Essa ruptura com respeito às “concepções verdadeiramente religiosas da história” está selada pela formulação definitiva de Engels na Sagrada Família: “A história não faz nada!”. Esta constatação lapidar põe de lado toda representação antropomórfica da história como um personagem todo poderoso que manuseia os marcos da comédia humana de costas aos seres humanos reais. Isto está desenvolvido e expresso muitas vezes na Ideologia Alemã.

A história não faz nada

Marx e Engels rechaçam essa visão apologética da história segundo a qual tudo o que ocorre devia necessariamente produzir-se para que o mundo seja hoje o que é e para que nós viéssemos a ser o que somos: “graças a artifícios especulativos, pode-se nos fazer crer que a história por vir era a meta da história passada”. Essa fatalização do devir histórico sepulta uma segunda vez “os possíveis laterais”

1Artigo publicado em Herramienta. Revista de debate y crítica marxista, sob o título Tiempos Históricos y ritmos políticos. Buenos Aires, março de 2009, n. 40. Agradecemos aos editores da revista por autorizarem sua republicação. Tradução de Carla Luciana Silva, a partir da versão publicada em Herramienta.*Nota do Editor:

A tradução manteve o formato do artigo publicado em Herramienta. Em vista disto, em algumas passagens as referências e indicações bibliográficas estão diferentes do padrão editorial usual de História & Luta de Classes.2Intelectual e militante marxista revolucionário, Daniel Bensaïd

faleceu em janeiro de 2010. Foi dirigente da Liga Comunista Revolucionária e participou da fundação do Novo Partido Anticapitalista. Foi Professor de Filosofía na Universidade de París VIII, Saint Denis e Diretor da revista ContreTemps. A republicação do artigo se constitui em uma homenagem póstuma.

Originalmente este texto foi apresentado no Colóquio “Pensare con Marx, Repensare Marx”, promovido pelo Centro de Estudos Livio Maitan, em janeiro de 2007, em Roma.

(segundo a expressão de Pierre Boudieu) que, no entanto, não são menos reais (no sentido de um Reale Möglichkeit) que o fato consumado resultante de uma luta incerta.

Essa crítica marxiana da razão histórica e da ideologia do progresso antecipa a crítica desapiedada feita por Blanqui ao positivismo como ideologia dominante da ordem estabelecida. Em suas notas de 1869, nas vésperas da Comuna de Paris, o indomável insurreto escrevia, com efeito:

No juízo do passado ante o futuro, as memórias contemporâneas são os testemunhos, a história é o juiz, e a sentença é quase sempre uma iniqüidade, seja pela falsidade das declarações, pela sua ausência, ou pela ignorância do tribunal. Afortunadamente, a convocatória segue aberta para sempre, e à luz de novos séculos, projetada a partir de longe sobre os séculos transcorridos, denuncia os juizes tenebrosos.

Assim como não é um deus ex-machina, nem um demiurgo, a história não é tampouco um tribunal. E quando pretende sê-lo, não é realmente mais que um cenáculo de juízes que se valem de falsos testemunhos.

Com efeito, o recurso ao juiz da história conduz, como escreveu Maximiliano Tomba, a bloquear a questão da justiça. É o que constatava já Blanqui:

De sua pretensa ciência da sociologia, assim como de sua filosofia da história, o positivismo exclui a idéia de justiça. Não admite nenhuma lei que não seja a do progresso contínuo, fatalizada. Cada coisa é excelente em seu momento, posto que ocupa seu lugar na sucessão de aperfeiçoamentos. Tudo é melhor sempre. Nenhum critério para apreciar o bom ou mau.

Para Blanqui, o passado segue sendo, portanto, um campo de batalha no qual o juizo das flechas, a sorte das armas e o fato consumado não provam nada quanto à discriminação do justo e do injusto:

Posto que as coisas seguiram esse curso, não teriam podido seguir outro. O fato consumado tem uma potência irresistível. É o destino mesmo. O espírito se aflige e não se atreve a se rebelar. Terrível força para os fatalistas da história, adoradores do fato consumado! Todas as atrocidades do vencedor, sua longa série de

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necessariamente, a outra dimensão constitutiva do objeto da História.

História será, então, sempre a investigação da história do ser social, isto é, de sujeitos determinados atuando em circunstâncias determinadas. Se aceitarmos esta forma de enunciar o objeto, teremos que concordar que a questão central da História é, muito a contragosto do mainstream historiográfico, a da determinação. Inteiramente distinta da idéia de causação, a questão da determinação convida a interrogar sobre como tal ação, tal sujeito e tais circunstâncias tornaram-se aquilo mesmo que efetivamente são, como se constituiu o seu modo determinado de ser. O problema da determinação é uma outra forma de abordar a própria história do ser social.

Sempre é possível levar em consideração apenas aspectos isolados da vida social ao estudar uma história qualquer. Retalhos costurados mostram, de algum modo, formas e cores que não são falsos em si mesmos. Concretamente, no entanto, a vida social é uma totalidade complexa de relações e a decisão metodológica de tomar somente um ou alguns de seus aspectos tem conseqüências que devem ser ponderadas. Claro, os historiadores podem desistir de pensar sobre o problema, declará-lo insolúvel ou indigno da sua atenção e confortarem-se com seus divertidos retalhos de retalhos. Não possuem, no entanto, meios para fazê-lo desaparecer.

Em se tratando da vida social, tudo o que for tomado ou considerado à parte do conjunto de relações sociais, que é, “na realidade”, a “essência da humanidade” será portador de uma incompletude radical. A única forma de lidar com esta incompletude sem recair numa deliberada unilateralidade é abrir-se para a totalidade, detectar e registrar as marcas da determinação do singular pela totalidade social. Mas, logo que se compreende que a questão da totalidade não pode ser abordada como enumeração ou inventário, compreende-se melhor a importância do conceito de práxis. Sujeitos, ações e circunstâncias tornam-se o que são através das relações ativadas pela práxis social. “Toda vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios que conduzem ao misticismo encontram sua solução racional na práxis

26humana e na compreensão dessa práxis.” A própria história permanece envolta em misticismo se não compreendemos a práxis.

Nada seria mais equivocado do que acreditar que a idéia de práxis simplifica ou reduz o trabalho do historiador. Ao contrár io, complexif ica-o extraordinariamente. Saber que não pode haver vida social sem que estejam asseguradas (produzidas e reproduzidas) as condições materiais que a tornam possível, condições estas que dizem diretamente

26Idem, ibidem, p. 96.

respeito às relações de produção e à práxis, não resolve de antemão o enigma da história. Apenas repõe perante o historiador a exigência de pensar seu objeto contra o pando de fundo da totalidade da vida social da qual ele não pode ser separado, a não ser por um ato de abstração.

Para uma História concebida como interrogação do automovimento do ser social (ser/relações), o método não oferece qualquer garantia prévia de resultados, mas, ao contrário, abre um conjunto de questões incontornáveis. Tais questões decorrem, por um lado, da exigência de compreender o objeto em perspectiva relacional e inscrito na totalidade. Por outro lado, decorrem da exigência de submeter as próprias categorias de análise à crítica histórica radical, desafiando em todos os níveis a ilusão positivista da neutralidade. A mais promissora perspectiva para enfrentar estas questões (categorias analíticas radicalmente historicizadas e produzidas através da atividade crítica, inteligibilidade do objeto mediante a pesquisa da sua determinação histórica e relacional) encontra-se no método dialético desenvolvido por Marx.

16 - A dialética na oficina do historiador: idéias arriscadas sobre algumas questões de método História & Luta de Classes, Nº 9 - Junho de 2010 (17-21) - 17

A

1*Tempos históricos e ritmos políticos

2Daniel Bensaïd

o contrário do que muitos supõem, Marx não é um “filósofo da história”. Ele foi precisamente - e muito antes da segunda Consideração intempestiva de Nietzsche, de A Eternidade pelos Astros de Blanqui; de Clio, de Peguy; das teses Sobre o conceito de história, de Walter Benjamin, ou do livro póstumo de Siegfried Kracauer A História – um dos primeiros a ter rompido categoricamente com as filosofias especulativas da história universal: providência divina, teleologia natural, ou odisséia do Espírito. Essa ruptura com respeito às “concepções verdadeiramente religiosas da história” está selada pela formulação definitiva de Engels na Sagrada Família: “A história não faz nada!”. Esta constatação lapidar põe de lado toda representação antropomórfica da história como um personagem todo poderoso que manuseia os marcos da comédia humana de costas aos seres humanos reais. Isto está desenvolvido e expresso muitas vezes na Ideologia Alemã.

A história não faz nada

Marx e Engels rechaçam essa visão apologética da história segundo a qual tudo o que ocorre devia necessariamente produzir-se para que o mundo seja hoje o que é e para que nós viéssemos a ser o que somos: “graças a artifícios especulativos, pode-se nos fazer crer que a história por vir era a meta da história passada”. Essa fatalização do devir histórico sepulta uma segunda vez “os possíveis laterais”

1Artigo publicado em Herramienta. Revista de debate y crítica marxista, sob o título Tiempos Históricos y ritmos políticos. Buenos Aires, março de 2009, n. 40. Agradecemos aos editores da revista por autorizarem sua republicação. Tradução de Carla Luciana Silva, a partir da versão publicada em Herramienta.*Nota do Editor:

A tradução manteve o formato do artigo publicado em Herramienta. Em vista disto, em algumas passagens as referências e indicações bibliográficas estão diferentes do padrão editorial usual de História & Luta de Classes.2Intelectual e militante marxista revolucionário, Daniel Bensaïd

faleceu em janeiro de 2010. Foi dirigente da Liga Comunista Revolucionária e participou da fundação do Novo Partido Anticapitalista. Foi Professor de Filosofía na Universidade de París VIII, Saint Denis e Diretor da revista ContreTemps. A republicação do artigo se constitui em uma homenagem póstuma.

Originalmente este texto foi apresentado no Colóquio “Pensare con Marx, Repensare Marx”, promovido pelo Centro de Estudos Livio Maitan, em janeiro de 2007, em Roma.

(segundo a expressão de Pierre Boudieu) que, no entanto, não são menos reais (no sentido de um Reale Möglichkeit) que o fato consumado resultante de uma luta incerta.

Essa crítica marxiana da razão histórica e da ideologia do progresso antecipa a crítica desapiedada feita por Blanqui ao positivismo como ideologia dominante da ordem estabelecida. Em suas notas de 1869, nas vésperas da Comuna de Paris, o indomável insurreto escrevia, com efeito:

No juízo do passado ante o futuro, as memórias contemporâneas são os testemunhos, a história é o juiz, e a sentença é quase sempre uma iniqüidade, seja pela falsidade das declarações, pela sua ausência, ou pela ignorância do tribunal. Afortunadamente, a convocatória segue aberta para sempre, e à luz de novos séculos, projetada a partir de longe sobre os séculos transcorridos, denuncia os juizes tenebrosos.

Assim como não é um deus ex-machina, nem um demiurgo, a história não é tampouco um tribunal. E quando pretende sê-lo, não é realmente mais que um cenáculo de juízes que se valem de falsos testemunhos.

Com efeito, o recurso ao juiz da história conduz, como escreveu Maximiliano Tomba, a bloquear a questão da justiça. É o que constatava já Blanqui:

De sua pretensa ciência da sociologia, assim como de sua filosofia da história, o positivismo exclui a idéia de justiça. Não admite nenhuma lei que não seja a do progresso contínuo, fatalizada. Cada coisa é excelente em seu momento, posto que ocupa seu lugar na sucessão de aperfeiçoamentos. Tudo é melhor sempre. Nenhum critério para apreciar o bom ou mau.

Para Blanqui, o passado segue sendo, portanto, um campo de batalha no qual o juizo das flechas, a sorte das armas e o fato consumado não provam nada quanto à discriminação do justo e do injusto:

Posto que as coisas seguiram esse curso, não teriam podido seguir outro. O fato consumado tem uma potência irresistível. É o destino mesmo. O espírito se aflige e não se atreve a se rebelar. Terrível força para os fatalistas da história, adoradores do fato consumado! Todas as atrocidades do vencedor, sua longa série de

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atentados, se transformam friamente em uma evolução regular inelutável, como a da natureza.

Mas “a engrenagem das coisas humanas não é fatal como a do universo: é modificável a cada momento”. Porque, acrescentará Benjamin, cada minuto é uma estreita porta pela qual pode surgir o Messias.

Ao culto que faz da História uma simples forma secularizada do antigo Destino ou da Providencia, Marx e Engels opunham, desde A Ideologia alemã, uma concepção radicalmente profana e desencantada: “a história não é mais que a sucessão de gerações que vem umas depois das outras”. Dar-lhe sentido é problema dos homens e não dos deuses.

Logicamente, essa critica da Razão histórica implica uma crítica do conceito abstrato de progresso. Depois de A Ideologia alemã, em muito poucas ocasiões Marx fez considerações gerais sobre a história. A “crítica da economia política” é de fato, na prática, essa “outra escritura da história”, essa escritura profana enunciada. Apenas se encontram, ao longo de sua obra, algumas considerações dispersas a esse respeito, em particular, algumas notas telegráficas incluídas na introdução dos Grundrisse. Trata-se de notas de trabalho pessoais (um “Nota bene”, escrevia Marx), um tipo de pensamento “bruto”, não elaborado senão para ele mesmo, jogado no papel em um estilo sucinto e às vezes enigmático. Duas dessas oito breves observações merecem uma atenção especial. Na sexta, Marx recomenda: “o conceito de progresso não deve ser concebido da maneira abstrata habitual”, mas tendo em conta “o desenvolvimento desigual” entre as relações de produção, as relações jurídicas, os fenômenos estéticos; tendo em conta, portanto, os efeitos do contratempo e a não contemporaneidade. Na sétima, mais lapidarmente ainda, recorda que sua concepção da história, “se apresenta como um desenvolvimento necessário” (grifado por ele mesmo), ainda que precise, imediatamente, “Mas justificação do azar. Como. (Entre outras coisas, também da liberdade). Influência dos meios de comunicação. A história universal nem sempre existiu;

3a história como história universal é um resultado)” . Trata-se de dialetizar efetivamente a necessidade em sua relação com o contingente, sem o que não haveria agora nem história nem acontecimento. A história universal já não é, pois, uma teodicéia, mas um devir, uma universalização efetiva da espécie humana, através da universalização da produção, da comunicação, da cultura, como o afirma já no Manifesto do Partido Comunista.

Essa problemática é novamente confirmada na famosa carta de 1877 em resposta aos críticos russos, onde Marx rechaça “uma teoria historico-filosófico

3MARX, Karl. Grundisse, p. 31.

4MARX, Karl. Correspondência, p. 291.5Ver Henryk Grossmann, Marx, l'économie politique classique et le problème de la dynamique, Paris, Champ Libre; Stavros Tombazos, Les temps du capital, Paris, Cahiers des saisons, 1995.

geral cuja suprema virtude consiste em ser 4suprahistorica” . Com efeito, essa suposição de um

sentido da história que se superporia à história real, a suas lutas e suas incertezas, guardava continuidade com as grandes filosofias especulativas, com as que havia rompido muito tempo antes. E essa ruptura teórica não deixa de ter conseqüências práticas. Em uma história aberta, já não existe norma histórica preestabelecida, nem desenvolvimento “normal”, que possam ser opostos a anomalias, desvios ou malformações. Provam isso as cartas a Vera Zassoulitch, projetando para a Rússia diversos desenvolvimentos possíveis que lhe evitariam recorrer o calvário do capitalismo ocidental. São cartas que abrem passagem ao estudo de Lênin sobre o desenvolvimento do capitalismo na Rússia e às teses de Parvus e Trotsky sobre o desenvolvimento desigual e combinado.

Na contramão das filosofias especulativas da História universal e sua temporalidade “homogênea e vazia”, a crítica da economia política – desde os Manuscritos de 1844 até O capital, passando pelos Grundisse – se apresenta portanto como uma conceitualização do tempo e dos ritmos imanentes à lógica do capital, como uma escuta do pulso e das crises da história. Marx, segundo resume Henrik Grossman, “deve forjar em primeiro lugar todas as categorias conceituais relativas ao fator tempo: ciclo,

5rotação, tempo de rotação, ciclo de rotação” .

Esta crítica radical da razão histórica seguiu sendo no entanto parcial, propícia então aos mal-entendidos e inclusive aos contra-sentidos aos quais podem dar sustento, às vezes, ae expressões contraditórias do próprio Marx. Esses equívocos provêm em grande medida da grande questão estratégica não resolvida: Como os proletários, frequentemente descritos no Capital como seres mutilados fisica e mentalmente pelo trabalho, poderiam transformar-se em classe hegemônica na luta para a emancipação humana? A resposta parece residir em uma aposta sociológica, segundo a qual a concentração industrial acarretaria o correspondente crescimento e concentração do proletariado, com um nível crescente de resistência e organização, que se traduziria em uma elevação do nível de consciência até que a “classe política” chegaria finalmente a unir-se com a “classe social”, passando de classe-em-si para classe-para-si. Essa seqüência lógica permitiria à “classe universal” resolver o enigma estratégico da emancipação.

Mas o século XX não quis confirmar essa visão otimista que permitiu a numerosos intérpretes

6AntiDühring. p. 1397AntiDühring. 146-148.

atribuírem a Marx uma teoria determinista da História. Sua argumentação se apoiou principalmente em:

�O formalismo dialético tal como aparece no penúltimo capítulo do Livro I do Capital sobre a negação da negação. Permitiu tantas simplificações que no AntiDühring Engels teve que corrigi-las (e não somente as interpretações abusivas, mas em certa medida seu espírito mesmo): “Que papel tem em Marx a negação da negação? [....] Ele não pensa em demonstrar a necessidade histórica mediante este argumento: ao contrário, é depois de haver demonstrado pela historicamente que o processo em parte já ocorreu, e em parte tem necessariamente que ocorrer, que Marx o define como um processo sujeito em sua execução a uma

6determinada lei dialética” . Semelhante comentário de texto parece, no entanto, muito forçado. Mais adiante, Engels é mais claro: “Que é, pois, a negação? Uma lei extraordinariamente geral, e por isso extraordinariamente eficaz e importante que rege o desenvolvimento da natureza, da história e do pensamento [...] dito está que quando digo que o processo que recorre, por exemplo, o grão de cevada desde que germina até que morre a planta que o brota, é uma negação da negação, não prejulgo para nada o conteúdo concreto desse processo”. Claro que se ela “consiste nessa forma pueril de escrever em uma lousa um a para logo apagar-lhe, ou em dizer que uma rosa é uma rosa para afirmar em seguida que não o é, não pode sair nada, como não seja a idiotice do que se entregue a semelhantes

7operações” .

�A controvérsia remete também ao conceito de necessidade, de tal modo que pode ser interpretado, sobretudo a partir da “Introdução” de 1859, como necessidade mecânica, enquanto que em boa lógica dialética é indissociável da contingência que a acompanha como sua sombra; mas é um fato que às vezes resulta difícil estabelecer se Marx utiliza o conceito de necessidade em um sentido preditivo ou em um sentido performativo.

O grande giro

Para distinguir entre estas interpretações, os escritos políticos sobre a luta de classes na França, a colonização inglesa na Índia, as revoluções

espanholas, ou a Guerra de Secessão, são por certo mais úteis que as especulações lógicas. O caráter central da luta de classes e seus incertos desenlaces exige, com efeito, uma parte de contingência e um conceito não mecânico de causalidade, uma causalidade aberta cujas condições iniciais determinam um campo de possibilidades, sem determinar mecanicamente qual triunfará. A lógica histórica se aparenta então mais com o caos determinista que com a física clássica: nem tudo é possível, mas existe uma pluralidade de possibilidades reais, entre as quais a luta decide.

Também aqui é necessário recorrer ao Blanqui da Eternidade pelos Astros, para quem depois das derrotas decorrentes de 1832, 1848 e 1871 “somente o capítulo das bifurcações” está “aberto à esperança”. O termo “bifurcação”, pouco utilizado nessa época, tinha um brilhante futuro no vocabulário da física quântica e no das matemáticas da catástrofe de René Thom.

Na época das guerras e das revoluções, esta concepção de uma história na qual o passado condic iona o presente sem determiná- lo mecanicamente, se reforçou no período que vai da Primeira à Segunda Guerra Mundial com desenvolvimentos teóricos paralelos de Gramsci e Benjamin. O primeiro sublinha: “realmente, não se pode prever cientificamente senão a luta, e não somente seus momentos concretos”. E acrescenta: “somente a luta, e não seu resultado imediato, mas aquele que se expressa em uma vitória permanente dirá o que é racional ou irracional”. O desenlace da luta e não uma norma preestabelecida determina então a racionalidade do desenvolvimento. Mas esse desenlace não se limita ao resultado imediato, às vitórias e às derrotas, que podem revelar-se a longo prazo, como simples episódios. Não se pode estabelecer senão retrospectivamente, à luz “de uma vitória permanente”. Que é então o permanente da vitória em uma história aberta, em uma luta que, diferentemente dos jogos na teoria do mesmo nome, não tem “fim de jogo”? Que é vencer para sempre se, como disse Blanqui, “a convocatória está sempre aberta”?

Em Benjamin, para terminar com os sussurros anestesiantes da história, com as engrenagens e as rodas dentadas do progresso, com o juízo final do tribunal da história, a relação entre história e política é definitivamente invertida. Trata-se desde agora de abordar o passado “já não como antes, de maneira histórica, mas de maneira política, com categorias políticas”. E mais laconicamente: “a política precede desde agora à história”. A frase parece fazer eco, retirando as conseqüências, daquela de Engels que dizia que a história não faz nada. A resultante é um radical reordenamento da semântica dos tempos históricos. O presente já não é mais um elo efêmero e evanescente no encadeamento do tempo. O passado já

18 - Tempos históricos e ritmos políticos História & Luta de Classes, Nº 9 - Junho de 2010 (17-21) - 19

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atentados, se transformam friamente em uma evolução regular inelutável, como a da natureza.

Mas “a engrenagem das coisas humanas não é fatal como a do universo: é modificável a cada momento”. Porque, acrescentará Benjamin, cada minuto é uma estreita porta pela qual pode surgir o Messias.

Ao culto que faz da História uma simples forma secularizada do antigo Destino ou da Providencia, Marx e Engels opunham, desde A Ideologia alemã, uma concepção radicalmente profana e desencantada: “a história não é mais que a sucessão de gerações que vem umas depois das outras”. Dar-lhe sentido é problema dos homens e não dos deuses.

Logicamente, essa critica da Razão histórica implica uma crítica do conceito abstrato de progresso. Depois de A Ideologia alemã, em muito poucas ocasiões Marx fez considerações gerais sobre a história. A “crítica da economia política” é de fato, na prática, essa “outra escritura da história”, essa escritura profana enunciada. Apenas se encontram, ao longo de sua obra, algumas considerações dispersas a esse respeito, em particular, algumas notas telegráficas incluídas na introdução dos Grundrisse. Trata-se de notas de trabalho pessoais (um “Nota bene”, escrevia Marx), um tipo de pensamento “bruto”, não elaborado senão para ele mesmo, jogado no papel em um estilo sucinto e às vezes enigmático. Duas dessas oito breves observações merecem uma atenção especial. Na sexta, Marx recomenda: “o conceito de progresso não deve ser concebido da maneira abstrata habitual”, mas tendo em conta “o desenvolvimento desigual” entre as relações de produção, as relações jurídicas, os fenômenos estéticos; tendo em conta, portanto, os efeitos do contratempo e a não contemporaneidade. Na sétima, mais lapidarmente ainda, recorda que sua concepção da história, “se apresenta como um desenvolvimento necessário” (grifado por ele mesmo), ainda que precise, imediatamente, “Mas justificação do azar. Como. (Entre outras coisas, também da liberdade). Influência dos meios de comunicação. A história universal nem sempre existiu;

3a história como história universal é um resultado)” . Trata-se de dialetizar efetivamente a necessidade em sua relação com o contingente, sem o que não haveria agora nem história nem acontecimento. A história universal já não é, pois, uma teodicéia, mas um devir, uma universalização efetiva da espécie humana, através da universalização da produção, da comunicação, da cultura, como o afirma já no Manifesto do Partido Comunista.

Essa problemática é novamente confirmada na famosa carta de 1877 em resposta aos críticos russos, onde Marx rechaça “uma teoria historico-filosófico

3MARX, Karl. Grundisse, p. 31.

4MARX, Karl. Correspondência, p. 291.5Ver Henryk Grossmann, Marx, l'économie politique classique et le problème de la dynamique, Paris, Champ Libre; Stavros Tombazos, Les temps du capital, Paris, Cahiers des saisons, 1995.

geral cuja suprema virtude consiste em ser 4suprahistorica” . Com efeito, essa suposição de um

sentido da história que se superporia à história real, a suas lutas e suas incertezas, guardava continuidade com as grandes filosofias especulativas, com as que havia rompido muito tempo antes. E essa ruptura teórica não deixa de ter conseqüências práticas. Em uma história aberta, já não existe norma histórica preestabelecida, nem desenvolvimento “normal”, que possam ser opostos a anomalias, desvios ou malformações. Provam isso as cartas a Vera Zassoulitch, projetando para a Rússia diversos desenvolvimentos possíveis que lhe evitariam recorrer o calvário do capitalismo ocidental. São cartas que abrem passagem ao estudo de Lênin sobre o desenvolvimento do capitalismo na Rússia e às teses de Parvus e Trotsky sobre o desenvolvimento desigual e combinado.

Na contramão das filosofias especulativas da História universal e sua temporalidade “homogênea e vazia”, a crítica da economia política – desde os Manuscritos de 1844 até O capital, passando pelos Grundisse – se apresenta portanto como uma conceitualização do tempo e dos ritmos imanentes à lógica do capital, como uma escuta do pulso e das crises da história. Marx, segundo resume Henrik Grossman, “deve forjar em primeiro lugar todas as categorias conceituais relativas ao fator tempo: ciclo,

5rotação, tempo de rotação, ciclo de rotação” .

Esta crítica radical da razão histórica seguiu sendo no entanto parcial, propícia então aos mal-entendidos e inclusive aos contra-sentidos aos quais podem dar sustento, às vezes, ae expressões contraditórias do próprio Marx. Esses equívocos provêm em grande medida da grande questão estratégica não resolvida: Como os proletários, frequentemente descritos no Capital como seres mutilados fisica e mentalmente pelo trabalho, poderiam transformar-se em classe hegemônica na luta para a emancipação humana? A resposta parece residir em uma aposta sociológica, segundo a qual a concentração industrial acarretaria o correspondente crescimento e concentração do proletariado, com um nível crescente de resistência e organização, que se traduziria em uma elevação do nível de consciência até que a “classe política” chegaria finalmente a unir-se com a “classe social”, passando de classe-em-si para classe-para-si. Essa seqüência lógica permitiria à “classe universal” resolver o enigma estratégico da emancipação.

Mas o século XX não quis confirmar essa visão otimista que permitiu a numerosos intérpretes

6AntiDühring. p. 1397AntiDühring. 146-148.

atribuírem a Marx uma teoria determinista da História. Sua argumentação se apoiou principalmente em:

�O formalismo dialético tal como aparece no penúltimo capítulo do Livro I do Capital sobre a negação da negação. Permitiu tantas simplificações que no AntiDühring Engels teve que corrigi-las (e não somente as interpretações abusivas, mas em certa medida seu espírito mesmo): “Que papel tem em Marx a negação da negação? [....] Ele não pensa em demonstrar a necessidade histórica mediante este argumento: ao contrário, é depois de haver demonstrado pela historicamente que o processo em parte já ocorreu, e em parte tem necessariamente que ocorrer, que Marx o define como um processo sujeito em sua execução a uma

6determinada lei dialética” . Semelhante comentário de texto parece, no entanto, muito forçado. Mais adiante, Engels é mais claro: “Que é, pois, a negação? Uma lei extraordinariamente geral, e por isso extraordinariamente eficaz e importante que rege o desenvolvimento da natureza, da história e do pensamento [...] dito está que quando digo que o processo que recorre, por exemplo, o grão de cevada desde que germina até que morre a planta que o brota, é uma negação da negação, não prejulgo para nada o conteúdo concreto desse processo”. Claro que se ela “consiste nessa forma pueril de escrever em uma lousa um a para logo apagar-lhe, ou em dizer que uma rosa é uma rosa para afirmar em seguida que não o é, não pode sair nada, como não seja a idiotice do que se entregue a semelhantes

7operações” .

�A controvérsia remete também ao conceito de necessidade, de tal modo que pode ser interpretado, sobretudo a partir da “Introdução” de 1859, como necessidade mecânica, enquanto que em boa lógica dialética é indissociável da contingência que a acompanha como sua sombra; mas é um fato que às vezes resulta difícil estabelecer se Marx utiliza o conceito de necessidade em um sentido preditivo ou em um sentido performativo.

O grande giro

Para distinguir entre estas interpretações, os escritos políticos sobre a luta de classes na França, a colonização inglesa na Índia, as revoluções

espanholas, ou a Guerra de Secessão, são por certo mais úteis que as especulações lógicas. O caráter central da luta de classes e seus incertos desenlaces exige, com efeito, uma parte de contingência e um conceito não mecânico de causalidade, uma causalidade aberta cujas condições iniciais determinam um campo de possibilidades, sem determinar mecanicamente qual triunfará. A lógica histórica se aparenta então mais com o caos determinista que com a física clássica: nem tudo é possível, mas existe uma pluralidade de possibilidades reais, entre as quais a luta decide.

Também aqui é necessário recorrer ao Blanqui da Eternidade pelos Astros, para quem depois das derrotas decorrentes de 1832, 1848 e 1871 “somente o capítulo das bifurcações” está “aberto à esperança”. O termo “bifurcação”, pouco utilizado nessa época, tinha um brilhante futuro no vocabulário da física quântica e no das matemáticas da catástrofe de René Thom.

Na época das guerras e das revoluções, esta concepção de uma história na qual o passado condic iona o presente sem determiná- lo mecanicamente, se reforçou no período que vai da Primeira à Segunda Guerra Mundial com desenvolvimentos teóricos paralelos de Gramsci e Benjamin. O primeiro sublinha: “realmente, não se pode prever cientificamente senão a luta, e não somente seus momentos concretos”. E acrescenta: “somente a luta, e não seu resultado imediato, mas aquele que se expressa em uma vitória permanente dirá o que é racional ou irracional”. O desenlace da luta e não uma norma preestabelecida determina então a racionalidade do desenvolvimento. Mas esse desenlace não se limita ao resultado imediato, às vitórias e às derrotas, que podem revelar-se a longo prazo, como simples episódios. Não se pode estabelecer senão retrospectivamente, à luz “de uma vitória permanente”. Que é então o permanente da vitória em uma história aberta, em uma luta que, diferentemente dos jogos na teoria do mesmo nome, não tem “fim de jogo”? Que é vencer para sempre se, como disse Blanqui, “a convocatória está sempre aberta”?

Em Benjamin, para terminar com os sussurros anestesiantes da história, com as engrenagens e as rodas dentadas do progresso, com o juízo final do tribunal da história, a relação entre história e política é definitivamente invertida. Trata-se desde agora de abordar o passado “já não como antes, de maneira histórica, mas de maneira política, com categorias políticas”. E mais laconicamente: “a política precede desde agora à história”. A frase parece fazer eco, retirando as conseqüências, daquela de Engels que dizia que a história não faz nada. A resultante é um radical reordenamento da semântica dos tempos históricos. O presente já não é mais um elo efêmero e evanescente no encadeamento do tempo. O passado já

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não contém o germe do presente, assim como o futuro tampouco é já seu destino. O presente é o tempo por excelência da política, o tempo da ação e da decisão, a partir de onde se joga e se volta a jogar permanentemente o sentido do passado e o do futuro. É o tempo do desenlace entre uma pluralidade de possibilidades. E a política que desde agora precede à história é precisamente essa “arte do presente e do contra-tempo” (Françoise Proust), dito em outras palavras uma arte estratégica da conjuntura no momento propício.

História e estratégia

Essa inversão que restabelece a primazia da política sobre a história, não revela, no entanto, o que ocorre com sua relação invertida. Com a ajuda da pulverização pós-moderna dos relatos e também do tempo histórico, certos discursos teóricos retêm a idéia de uma política desenraizada de todas as determinações e condicionantes históricos, que se reduziria desde agora a uma justaposição de ações dia por dia, de seqüências flutuantes, sem vinculo lógico nem continuidade. Este estrei tamento da temporalidade política ao redor de um presente efêmero continuamente recomeçado, traz como conseqüência a exclusão de todo pensamento estratégico, de um modo simétrico à forma em que o fizeram as filosofias da história.

Grande aficcionado aos escritos e jogos estratégicos, Guy Debord sublinhou com energia o vínculo entre uma temporalidade histórica aberta e um pensamento estratégico capaz de deslocar-se de modo duradouro, e de integrar aos seus cálculos probabi l í s t icos uma par te i r redut íve l de acontecimentos contingentes. Afirmava assim que um partido ou uma vanguarda com um projeto que sofrera um grave déficit de conhecimentos históricos já não p o d e r i a o r i e n t a r - s e o u “ s e r c o n d u z i d o estrategicamente”.

As derrotas acumuladas no “século dos extremos” obscureceram o horizonte da espera e congelaram a história na desgraça. É a época do zapping, do quick, do fast, do rápido e do instantâneo. O tempo estratégico se debulha e se fragmenta em episódios anedóticos. A saudável reabilitação do presente se transforma assim no culto ao transitório e ao perecível, em uma sucessão de fatos sem passado nem futuro: “um eterno presente se impõe, feito de instantes efêmeros que brilham com o prestígio de uma ilusória novidade, mas não fazem mais que substituir cada vez mais rapidamente, o mesmo com o mesmo”. (Jérome Baschet).

O fato é que as resistências imediatas à Contra-Reforma liberal carecem frequentemente de interesse e cultura histórica. Já a moda estruturalista dos anos

1960 havia conduzido a tratar o relato histórico como o parente pobre das “ciências humanas”. O gesto platônico reivindicado hoje por Alain Badiou tende a absolutizar o acontecimento para fazer dele o ato fundante de uma “sequência” autônoma, fechada por um “desastre”, sem antecedentes nem conseqüência. O imperativo categórico de uma resistência estóica se encarrega então de nos eximir de interrogantes sobre os acordos falidos da história passada assim como de projetos e sonhos para o futuro. Carpe diem. No futur. “Point de lendemanin”, já escreviam os libertinos do século XVIII (nesse caso, Dominique Vivant de Non).

À pretensão de “fazer a história” (de contribuir, dito de outro modo, para a realização de um fim programado), Hannah Arendt opunha a incerteza da ação política. A seus olhos, com efeito, a substituição da história pela política atribuía a responsabilidade da ação enfrentada à “contingência deplorável do particular”. A des-fatalização da história, provocada a partir da Primeira Guerra Mundial pela derrocada dos mitos do progresso, podia no entanto revestir-se de varias formas: a da decisão incondicional em Schmitt; a da erupção messiânica em Benjamin; e finalmente a do acontecimento milagroso em Arendt: “somente uma espécie de milagre permitirá uma mudança decisiva e saudável”. Todos caem na tentação de absolutizar o acontecimento.

A evenementialité regressou com força, nas retóricas pós-estruturalistas, mas a espera de um acontecimento redentor, incondicionado, surgido do Vazio ou do Nada (da eternidade?) se relaciona mais com o milagre da Imaculada Conceição. A esperança em um acontecimento absoluto e o “radicalismo passivo” do velho socialismo “ortodoxo” da II Internacional podem então unir-se inesperadamente: a revolução, como dizia Kautsky, não se prepara, não se faz. Simplesmente ocorre quando chega a hora, segundo uma lei quase natural, como um fruto maduro, ou como uma divina surpresa evenementialle. Muito longe das exigências da revolução permanente ou da continuidade estratégica na ação partidária de Lenin, a escassez de política em autores como Badiou ou Rancière é o corolário da escassez de tais erupções.

O tempo quebrado da estratégia

A revolução, associada ao nome de Lenin, impulsiona ao contrário, até suas ultimas conseqüências, a ruptura com a representação do tempo do relógio, “homogêneo e vazio”, segundo o qual se supõe que marcha a engrenagem do progresso. O tempo estratégico está cheio de nós e de giros, de acelerações súbitas e sensíveis detenções, de saltos para diante e salto pra trás, de síncopes e contra-tempos. As agulhas de seu quadrante nem sempre giram no mesmo sentido. Trata-se de um tempo quebrado, descompassado pela crise e pelos instantes a

aproveitar (como o testemunham as notas de Lenin em outubro de 1917, urgindo os dirigentes bolcheviques a tomar a iniciativa da insurreição amanhã ou depois de amanhã, porque depois seria demasiado tarde), sem o que a decisão já não teria sentido, e o papel do partido se reduziria ao de um pedagogo que acompanha a espontaneidade das massas, e não o de um estrategista organizando a retirada ou a ofensiva segundo os fluxos e refluxos da luta. Essa temporalidade da ação política tem seu próprio vocabulário: o período, concebido em suas relações com o antes e com o depois dos que se distingue; os ciclos de mobilização (às vezes a contra-tempo dos ciclos econômicos); a crise em que a ordem fraturada deixa escapar um leque de possibilidades; a situação (revolucionária) na qual se preparam os protagonistas da luta; a conjuntura ou o momento favorável que deve captar 'a presença de ânimo” necessária em toda estratégia. A gama destas categorias permite articular, em vez de dissociar, o acontecimento e a história, o necessário e o contingente, o social e a política. Sem tal articulação dialética, a idéia mesma de estratégia revolucionária ficaria vazia de sentido, e não restaria mais que “o socialismo fora do tempo” (Angelo Tasca), tão caro às Penélopes parlamentares.

Réquiem para o tempo presente

De onde viemos? De uma derrota histórica, é necessário admiti-lo, e apreciar sua dimensão, da qual a contra-ofensiva liberal do último quarto de século é tanto causa como conseqüência e coroamento. Algo se acabou com a mudança de direção do século, entre a queda do Muro de Berlim e o 11 de setembro. Algo... Mas o que? O “curto século XX” e seu ciclo de guerras e revoluções? O tempo da modernidade? Ciclo, período ou época?

Fernand Braudel distingue três tipos de duração:

�o acontecimento, que é “o mais caprichoso e enganoso”, inacessível (impensável?) para as ciências sociais;

�a “longa duração” dos movimentos econômicos, demográficos, climáticos;

�o ciclo da conjuntura, aproximadamente decenal, que estabeleceria um vínculo entre o acontecimento e a estrutura, o tempo longo e o tempo curto.

Essa temporalização tem o inconveniente de estabelecer em uma mesma temporalidade histórica uma pluralidade de tempos sociais discordantes, sem explicar outras modalidades de tempos além da simples descrição de suas combinações e conexões. Esta unificação do tempo histórico tende assim a anular os efeitos de contratempos e da não contemporaneidade.

Então: fim do “curto século vinte” ou fim do “século dos extremos”? Mudança de período ou mudança de época? Derrota histórica das políticas de emancipação ou simples alternância dos ciclos de mobilização? Hans Blumenberg destaca que somente a época Moderna se pensou como época, segundo a nova “semântica dos tempos históricos” analisada por Reinhart Koselleck. Porque de nenhuma maneira é a história mesma – que, o recordo pela ultima vez, não faz nada – a que marca ao final, recorta o tempo ou data o acontecimento, senão quem o observa a posteriori: “um giro de época é um limite imperceptível que não está vinculado a nenhuma data ou acontecimento destacado”. O homem faz a história, mas não faz a época. Representação construída de uma seqüência histórica, a delimitação de uma época segue estando, pois, indefinidamente em litígio, tal como o ilustram as distintas datações da “modernidade”. Enquanto “a frágil unidade de um período”, Kracauer a compara com a sala de espera de uma estação, onde não se estabelecem senão encontros ao azar ou aventuras passageiras. Mais que emergir o tempo, instaura uma relação paradoxal entre a continuidade histórica que representa e as rupturas que implica.

Mudança de época, de período ou de ciclo, o alcance desta mudança que está em curso somente se determinará à luz do que, confusamente, está iniciando. Depois da “Belle Époque”, do período do entre-guerras e da “guerra civil européia”, dos “Trinta anos gloriosos” e a Guerra fria, da Restauração liberal... Que? Uma reorganização política se desenha. A globalização mercantil e a guerra infinita produzem novas escalas espaciais, uma nova configuração de espaços e lugares, novos ritmos de ação. Um novo paradigma quem sabe, ao qual não convém certamente chamar pós-moderno, porque a palavra parece inscrever-se em uma sucessão cronológica e na mania estéril dos pós-ismos”.

Não é, portanto, mais que o princípio de algo que ainda apenas percebemos, entre o frágil “já não mais” e o “ainda não”. Será longo, anunciava o profeta Jeremias... Mas “o futuro dura muito tempo”. Outro mundo é necessário. É urgente fazê-lo possível antes que o velho mundo nos destrua e arruíne o planeta.

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não contém o germe do presente, assim como o futuro tampouco é já seu destino. O presente é o tempo por excelência da política, o tempo da ação e da decisão, a partir de onde se joga e se volta a jogar permanentemente o sentido do passado e o do futuro. É o tempo do desenlace entre uma pluralidade de possibilidades. E a política que desde agora precede à história é precisamente essa “arte do presente e do contra-tempo” (Françoise Proust), dito em outras palavras uma arte estratégica da conjuntura no momento propício.

História e estratégia

Essa inversão que restabelece a primazia da política sobre a história, não revela, no entanto, o que ocorre com sua relação invertida. Com a ajuda da pulverização pós-moderna dos relatos e também do tempo histórico, certos discursos teóricos retêm a idéia de uma política desenraizada de todas as determinações e condicionantes históricos, que se reduziria desde agora a uma justaposição de ações dia por dia, de seqüências flutuantes, sem vinculo lógico nem continuidade. Este estrei tamento da temporalidade política ao redor de um presente efêmero continuamente recomeçado, traz como conseqüência a exclusão de todo pensamento estratégico, de um modo simétrico à forma em que o fizeram as filosofias da história.

Grande aficcionado aos escritos e jogos estratégicos, Guy Debord sublinhou com energia o vínculo entre uma temporalidade histórica aberta e um pensamento estratégico capaz de deslocar-se de modo duradouro, e de integrar aos seus cálculos probabi l í s t icos uma par te i r redut íve l de acontecimentos contingentes. Afirmava assim que um partido ou uma vanguarda com um projeto que sofrera um grave déficit de conhecimentos históricos já não p o d e r i a o r i e n t a r - s e o u “ s e r c o n d u z i d o estrategicamente”.

As derrotas acumuladas no “século dos extremos” obscureceram o horizonte da espera e congelaram a história na desgraça. É a época do zapping, do quick, do fast, do rápido e do instantâneo. O tempo estratégico se debulha e se fragmenta em episódios anedóticos. A saudável reabilitação do presente se transforma assim no culto ao transitório e ao perecível, em uma sucessão de fatos sem passado nem futuro: “um eterno presente se impõe, feito de instantes efêmeros que brilham com o prestígio de uma ilusória novidade, mas não fazem mais que substituir cada vez mais rapidamente, o mesmo com o mesmo”. (Jérome Baschet).

O fato é que as resistências imediatas à Contra-Reforma liberal carecem frequentemente de interesse e cultura histórica. Já a moda estruturalista dos anos

1960 havia conduzido a tratar o relato histórico como o parente pobre das “ciências humanas”. O gesto platônico reivindicado hoje por Alain Badiou tende a absolutizar o acontecimento para fazer dele o ato fundante de uma “sequência” autônoma, fechada por um “desastre”, sem antecedentes nem conseqüência. O imperativo categórico de uma resistência estóica se encarrega então de nos eximir de interrogantes sobre os acordos falidos da história passada assim como de projetos e sonhos para o futuro. Carpe diem. No futur. “Point de lendemanin”, já escreviam os libertinos do século XVIII (nesse caso, Dominique Vivant de Non).

À pretensão de “fazer a história” (de contribuir, dito de outro modo, para a realização de um fim programado), Hannah Arendt opunha a incerteza da ação política. A seus olhos, com efeito, a substituição da história pela política atribuía a responsabilidade da ação enfrentada à “contingência deplorável do particular”. A des-fatalização da história, provocada a partir da Primeira Guerra Mundial pela derrocada dos mitos do progresso, podia no entanto revestir-se de varias formas: a da decisão incondicional em Schmitt; a da erupção messiânica em Benjamin; e finalmente a do acontecimento milagroso em Arendt: “somente uma espécie de milagre permitirá uma mudança decisiva e saudável”. Todos caem na tentação de absolutizar o acontecimento.

A evenementialité regressou com força, nas retóricas pós-estruturalistas, mas a espera de um acontecimento redentor, incondicionado, surgido do Vazio ou do Nada (da eternidade?) se relaciona mais com o milagre da Imaculada Conceição. A esperança em um acontecimento absoluto e o “radicalismo passivo” do velho socialismo “ortodoxo” da II Internacional podem então unir-se inesperadamente: a revolução, como dizia Kautsky, não se prepara, não se faz. Simplesmente ocorre quando chega a hora, segundo uma lei quase natural, como um fruto maduro, ou como uma divina surpresa evenementialle. Muito longe das exigências da revolução permanente ou da continuidade estratégica na ação partidária de Lenin, a escassez de política em autores como Badiou ou Rancière é o corolário da escassez de tais erupções.

O tempo quebrado da estratégia

A revolução, associada ao nome de Lenin, impulsiona ao contrário, até suas ultimas conseqüências, a ruptura com a representação do tempo do relógio, “homogêneo e vazio”, segundo o qual se supõe que marcha a engrenagem do progresso. O tempo estratégico está cheio de nós e de giros, de acelerações súbitas e sensíveis detenções, de saltos para diante e salto pra trás, de síncopes e contra-tempos. As agulhas de seu quadrante nem sempre giram no mesmo sentido. Trata-se de um tempo quebrado, descompassado pela crise e pelos instantes a

aproveitar (como o testemunham as notas de Lenin em outubro de 1917, urgindo os dirigentes bolcheviques a tomar a iniciativa da insurreição amanhã ou depois de amanhã, porque depois seria demasiado tarde), sem o que a decisão já não teria sentido, e o papel do partido se reduziria ao de um pedagogo que acompanha a espontaneidade das massas, e não o de um estrategista organizando a retirada ou a ofensiva segundo os fluxos e refluxos da luta. Essa temporalidade da ação política tem seu próprio vocabulário: o período, concebido em suas relações com o antes e com o depois dos que se distingue; os ciclos de mobilização (às vezes a contra-tempo dos ciclos econômicos); a crise em que a ordem fraturada deixa escapar um leque de possibilidades; a situação (revolucionária) na qual se preparam os protagonistas da luta; a conjuntura ou o momento favorável que deve captar 'a presença de ânimo” necessária em toda estratégia. A gama destas categorias permite articular, em vez de dissociar, o acontecimento e a história, o necessário e o contingente, o social e a política. Sem tal articulação dialética, a idéia mesma de estratégia revolucionária ficaria vazia de sentido, e não restaria mais que “o socialismo fora do tempo” (Angelo Tasca), tão caro às Penélopes parlamentares.

Réquiem para o tempo presente

De onde viemos? De uma derrota histórica, é necessário admiti-lo, e apreciar sua dimensão, da qual a contra-ofensiva liberal do último quarto de século é tanto causa como conseqüência e coroamento. Algo se acabou com a mudança de direção do século, entre a queda do Muro de Berlim e o 11 de setembro. Algo... Mas o que? O “curto século XX” e seu ciclo de guerras e revoluções? O tempo da modernidade? Ciclo, período ou época?

Fernand Braudel distingue três tipos de duração:

�o acontecimento, que é “o mais caprichoso e enganoso”, inacessível (impensável?) para as ciências sociais;

�a “longa duração” dos movimentos econômicos, demográficos, climáticos;

�o ciclo da conjuntura, aproximadamente decenal, que estabeleceria um vínculo entre o acontecimento e a estrutura, o tempo longo e o tempo curto.

Essa temporalização tem o inconveniente de estabelecer em uma mesma temporalidade histórica uma pluralidade de tempos sociais discordantes, sem explicar outras modalidades de tempos além da simples descrição de suas combinações e conexões. Esta unificação do tempo histórico tende assim a anular os efeitos de contratempos e da não contemporaneidade.

Então: fim do “curto século vinte” ou fim do “século dos extremos”? Mudança de período ou mudança de época? Derrota histórica das políticas de emancipação ou simples alternância dos ciclos de mobilização? Hans Blumenberg destaca que somente a época Moderna se pensou como época, segundo a nova “semântica dos tempos históricos” analisada por Reinhart Koselleck. Porque de nenhuma maneira é a história mesma – que, o recordo pela ultima vez, não faz nada – a que marca ao final, recorta o tempo ou data o acontecimento, senão quem o observa a posteriori: “um giro de época é um limite imperceptível que não está vinculado a nenhuma data ou acontecimento destacado”. O homem faz a história, mas não faz a época. Representação construída de uma seqüência histórica, a delimitação de uma época segue estando, pois, indefinidamente em litígio, tal como o ilustram as distintas datações da “modernidade”. Enquanto “a frágil unidade de um período”, Kracauer a compara com a sala de espera de uma estação, onde não se estabelecem senão encontros ao azar ou aventuras passageiras. Mais que emergir o tempo, instaura uma relação paradoxal entre a continuidade histórica que representa e as rupturas que implica.

Mudança de época, de período ou de ciclo, o alcance desta mudança que está em curso somente se determinará à luz do que, confusamente, está iniciando. Depois da “Belle Époque”, do período do entre-guerras e da “guerra civil européia”, dos “Trinta anos gloriosos” e a Guerra fria, da Restauração liberal... Que? Uma reorganização política se desenha. A globalização mercantil e a guerra infinita produzem novas escalas espaciais, uma nova configuração de espaços e lugares, novos ritmos de ação. Um novo paradigma quem sabe, ao qual não convém certamente chamar pós-moderno, porque a palavra parece inscrever-se em uma sucessão cronológica e na mania estéril dos pós-ismos”.

Não é, portanto, mais que o princípio de algo que ainda apenas percebemos, entre o frágil “já não mais” e o “ainda não”. Será longo, anunciava o profeta Jeremias... Mas “o futuro dura muito tempo”. Outro mundo é necessário. É urgente fazê-lo possível antes que o velho mundo nos destrua e arruíne o planeta.

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Q

Breves considerações sobre o método historiográfico

1Luiz Bernardo Pericás

ualquer trabalho de caráter historiográfico deve partir de determinadas premissas metodológicas que indiquem os caminhos tomados pelo estudioso, assim como os objetivos e organização de sua obra. Para se analisar um período específico da história é necessário discutir tanto os fatores conjunturais intrínsecos do momento em questão e os diferentes papéis desempenhados pelas superestruturas jurídica, política e ideológica dentro da sociedade como também os movimentos mais amplos de sincronias e diacronias ligadas à base econômica. Mas, se dentro do marco do capitalismo monopolista, a variável dominante de todo o século XX, algumas modalidades de relações sociais aparentemente permaneceram intactas, como que petrificadas dentro de um continuum linear, em múltiplos rincões do planeta, poder-se-ia indagar se, na prática, estas manifestações não seriam apenas resquícios de épocas passadas, mas t a m b é m c a r a c t e r í s t i c a s i n e q u í v o c a s d e comportamentos contemporâneos, que certamente não apareceriam sem um legado cultural anterior, mas que nunca poderiam ter surgido em outro momento histórico nem tampouco num ambiente geográfico que não aqueles nos quais se originaram. Seriam, portanto, adaptações modernas de modalidades teoricamente já ultrapassadas, ou pelo menos, “antigas”. Não constituiriam “tempos históricos” distintos, independentes, mas o mesmo tempo histórico, mutável e heterogêneo, moldando as relações sociais a partir de suas influências internas e externas.

Para alguns, a história “inconsciente” se situaria dentro da “longa duração”, na qual se interpenetrariam elementos complementares do sistema, que seguiriam um curso em “camadas lentas”, em estado de “semimobilidade”, ou seja, numa trajetória de “inércias”. Assim, se acentuaria prioritariamente a resistência de modalidades e sua sobrevivência no tempo, em contraposição às forças dinâmicas da mudança. O que se pode questionar é até onde iria a falta de consciência num processo de larga duração, vista a partir de uma ótica contemplativa, e quando começaria a ação consciente, ativa, dos indivíduos, classes e “vanguardas”.

A história conjuntural, imediata, por si só, não poderia representar a única resposta para isso, mesmo que sobreposta a outros “tempos”. Já dentro da historiografia econômica, com cortes distintivos, fatias cronológicas e “ciclos”, tanto curtos como longos, identificáveis especialmente a partir de métodos quantitativos e estatísticos, haveria o intuito de compreender “tendências”, utilizando-se de vetores como flutuações de preços, ocupação, produção, população, salários e crescimento industrial, por exemplo. Mesmo assim, ela poderia deixar de lado algumas sutilezas e especificidades no que se refere aos padrões culturais locais e relações entre os indivíduos.

As diferentes linhas citadas anteriormente têm méritos ao apresentar a modulação histórica em ciclos de crises, interciclos e movimentos longos e perenes que permaneceriam incrustados nas sociedades ao longo do tempo. Mais importante do que apenas identificar os “ritmos” diacrônicos ou “cortes” de tempos históricos, porém, talvez seja encontrar as articulações e entrelaçamentos dos diferentes “níveis” da superestrutura e da infra-estrutura dentro de um espaço físico onde ocorre a ação dos homens. Alguns resquícios, em geral importantes, das estruturas mentais e econômicas, por exemplo, sobrevivem ao longo dos anos, mas nunca permanecem estáticos e seguem em constante mutação, mesmo em períodos relativamente breves da história. Somente “lendo” as entrelinhas, interpretando as singularidades de uma época, e em seguida, construindo uma organização lógica para colocar as peças no lugar, dando sentido ao esforço de interpretação, é que se pode ser bem sucedido na elaboração coerente de um trabalho historiográfico. Não haveria, portanto, uma justaposição de histórias “autônomas”, mas um painel muito mais rico e complexo construído a partir de uma totalidade heterogênea, o que exigiria explorações em outros campos das ciências humanas.

Essas afirmações, que parecem óbvias, nem sempre são levadas em conta pelos historiadores, muitas vezes preocupados com discussões “academicistas” em torno de posicionamentos teóricos distintos. Em outras palavras, não se negaria a validade de outros métodos historiográficos, mas se colocaria ênfase distinta no foco e no trabalho de análise histórica, que certamente não prescindiria dos estudos

1Doutor em História pela USP, pós-doutorado pela FLACSO (México) e Universidade do Texas (Austin), professor-pesquisador da FLACSO, Brasil.

realizados anteriormente. Seria talvez a tentativa de construção de uma “conjunção” dos tempos.

A História é constituída de fatos, sem dúvida, mas deve, não obstante, ter um nítido substrato teórico, caso contrário será apenas “narrativa”. Mas a história é também realizada por homens concretos. Isso nos leva a tentar compreender o papel do indivíduo na história. É claro que se pode discutir as distintas existências históricas da individualidade. O que é inequívoco, contudo, é que há uma relação de reciprocidade entre o ambiente que influencia o homem e as particularidades do indivíduo, com traços e idiossincrasias que não correspondem àqueles dos seus concidadãos. O homem é formado dentro do seu meio e age de acordo com sua época. Isso não impede que as peculiaridades de seu caráter e de seu background venham a afetar o ambiente à sua volta de forma singular se comparada a outros indivíduos que receberam possivelmente as mesmas influências. Em outras palavras, indivíduos de classes sociais diferentes ou de uma mesma realidade estrutural, enfrentando contextos similares, tomam decisões distintas.

Se em parte a tradição marxista se refere aos homens como “suporte” de uma relação social ou como responsáveis por uma função dentro do processo de produção é porque eles são forçados a desempenhar este papel dentro das relações de produção capitalistas. Mas a base econômica não é a única a afetar o indivíduo.

Para alguns teóricos, como Louis Althusser, os “homens concretos” são necessariamente sujeitos na história, porque atuam dentro dela. Mas não haveria um sujeito singular da história. Ou seja, os seres humanos podem ser ativos dentro das práticas sociais do processo de produção e reprodução da história, mas não seriam agentes, sujeitos “livres e constituintes” no

2sentido filosófico do termo .

Por outro lado, E. P. Thompson em seu A miséria da teoria dizia que

O historiador examina vidas e escolhas individuais, e não apenas acontecimentos históricos (processos). E embora possamos não fazer atribuições de valor aos processos, as mesmas objeções não surgem com a mesma força quando examinamos as opções dos indivíduos, cujos atos e intenções podem certamente ser julgados (como foram julgados pelos seus contemporâneos) dentro do devido e

3relevante contexto histórico .

Ou seja, “ao reconstituir esse processo... devemos, à medida que nossa disciplina o permita, controlar nossos próprios valores. Uma vez, porém,

2Louis Althusser, Filosofia y marxismo, México, Siglo Veintiuno Editores, 1988, pág. 86. 3Ver E. P. Thompson, A miséria da teoria, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1981, pág. 52.

reconstituída essa história, temos a liberdade de 4oferecer nosso julgamento sobre ela” .

Nas palavras de Pierre Bourdieu, “os agentes sociais, nas sociedades arcaicas e nas nossas, não são meros autômatos regulados como relógios de acordo

5com leis que não entendem” . Por isso, a importância da investigação empírica de distintas áreas do campo social, que seriam concebidas como “construções históricas”, relativamente autônomas, de espaços

6sociais .

Já o escritor norte-americano Mark Twain afirmava, sem nenhum academicismo, que haveria uma interação entre o que chamava de “circunstância”

7e o “temperamento” do indivíduo . Nesse caso, o “indivíduo” teria um papel maior, considerando que estaria imbuído de capacidades concretas de mudar o ambiente ao redor sem necessariamente ter de ser apenas uma peça na engrenagem nem somente movido pelas vagas da história. Teria voz ativa dentro de circunstâncias especiais. Esta interpretação tem ressonância em estudiosos de distintas áreas do conhecimento, desde o inglês Isaiah Berlin até o historiador “liberal” mexicano Enrique Krauze. Em um texto conhecido, publicado em 1954, Berlin dizia:

Assustar os seres humanos sugerindo-lhes que estão nos braços de forças impessoais sobre as quais têm pouco ou nenhum controle, é alimentar mitos... equivale a propagar a fé de que existem formas inalteráveis de desenvolvimento nos acontecimentos. Liberando os indivíduos do peso da responsabilidade pessoal, estas doutrinas alimentam a passividade irracional em alguns e uma atividade fanática, não menos irracional,

8em outros .

Isto significa, então, que supostamente haveria um equilíbrio entre a “liberdade individual” e a “responsabilidade moral”. Esta tendência ao indeterminismo histórico relativo, portanto, não só admite a existência dos “grandes homens” como acredita que estes são fundamentais para marcar a vida dos povos. Seria uma reação às idéias de intelectuais de posições distintas, desde o ceticismo de Tolstói até o determinismo de Plekanov, que acreditava na marcha autônoma do relógio da história, numa leitura em

4Ibid. 5Pierre Bourdieu, in Genaro Zalpa, “El concepto de campo y el campo religioso”, in Miguel J. Hernández Madrid e Elizabeth Juárez Cerdi (orgs. ), Religión y cultura, Zamora, El Colegio de Michoacán/Consejo Nacional de Ciencia y Tecnología, 2003, pág. 34. 6De acordo com Genaro Zalpa, Ibid, pág. 35. 7Mark Twain, “The Turning-Point of my Life”, in Mark Twain, The Favorite Works of Mark Twain, Nova Iorque, Garden City Publishing Co. , 1939, pág. 1134. 8Isaiah Berlin, citado in Enrique Krauze, “Plutarco entre nosotros”, in Enrique Krauze, Mexicanos eminentes, México, Tusquets Editores, 1999, pág. 17.

22 - Breves considerações sobre o método historiográfico História & Luta de Classes, Nº 9 - Junho de 2010 (22-27) - 23

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Q

Breves considerações sobre o método historiográfico

1Luiz Bernardo Pericás

ualquer trabalho de caráter historiográfico deve partir de determinadas premissas metodológicas que indiquem os caminhos tomados pelo estudioso, assim como os objetivos e organização de sua obra. Para se analisar um período específico da história é necessário discutir tanto os fatores conjunturais intrínsecos do momento em questão e os diferentes papéis desempenhados pelas superestruturas jurídica, política e ideológica dentro da sociedade como também os movimentos mais amplos de sincronias e diacronias ligadas à base econômica. Mas, se dentro do marco do capitalismo monopolista, a variável dominante de todo o século XX, algumas modalidades de relações sociais aparentemente permaneceram intactas, como que petrificadas dentro de um continuum linear, em múltiplos rincões do planeta, poder-se-ia indagar se, na prática, estas manifestações não seriam apenas resquícios de épocas passadas, mas t a m b é m c a r a c t e r í s t i c a s i n e q u í v o c a s d e comportamentos contemporâneos, que certamente não apareceriam sem um legado cultural anterior, mas que nunca poderiam ter surgido em outro momento histórico nem tampouco num ambiente geográfico que não aqueles nos quais se originaram. Seriam, portanto, adaptações modernas de modalidades teoricamente já ultrapassadas, ou pelo menos, “antigas”. Não constituiriam “tempos históricos” distintos, independentes, mas o mesmo tempo histórico, mutável e heterogêneo, moldando as relações sociais a partir de suas influências internas e externas.

Para alguns, a história “inconsciente” se situaria dentro da “longa duração”, na qual se interpenetrariam elementos complementares do sistema, que seguiriam um curso em “camadas lentas”, em estado de “semimobilidade”, ou seja, numa trajetória de “inércias”. Assim, se acentuaria prioritariamente a resistência de modalidades e sua sobrevivência no tempo, em contraposição às forças dinâmicas da mudança. O que se pode questionar é até onde iria a falta de consciência num processo de larga duração, vista a partir de uma ótica contemplativa, e quando começaria a ação consciente, ativa, dos indivíduos, classes e “vanguardas”.

A história conjuntural, imediata, por si só, não poderia representar a única resposta para isso, mesmo que sobreposta a outros “tempos”. Já dentro da historiografia econômica, com cortes distintivos, fatias cronológicas e “ciclos”, tanto curtos como longos, identificáveis especialmente a partir de métodos quantitativos e estatísticos, haveria o intuito de compreender “tendências”, utilizando-se de vetores como flutuações de preços, ocupação, produção, população, salários e crescimento industrial, por exemplo. Mesmo assim, ela poderia deixar de lado algumas sutilezas e especificidades no que se refere aos padrões culturais locais e relações entre os indivíduos.

As diferentes linhas citadas anteriormente têm méritos ao apresentar a modulação histórica em ciclos de crises, interciclos e movimentos longos e perenes que permaneceriam incrustados nas sociedades ao longo do tempo. Mais importante do que apenas identificar os “ritmos” diacrônicos ou “cortes” de tempos históricos, porém, talvez seja encontrar as articulações e entrelaçamentos dos diferentes “níveis” da superestrutura e da infra-estrutura dentro de um espaço físico onde ocorre a ação dos homens. Alguns resquícios, em geral importantes, das estruturas mentais e econômicas, por exemplo, sobrevivem ao longo dos anos, mas nunca permanecem estáticos e seguem em constante mutação, mesmo em períodos relativamente breves da história. Somente “lendo” as entrelinhas, interpretando as singularidades de uma época, e em seguida, construindo uma organização lógica para colocar as peças no lugar, dando sentido ao esforço de interpretação, é que se pode ser bem sucedido na elaboração coerente de um trabalho historiográfico. Não haveria, portanto, uma justaposição de histórias “autônomas”, mas um painel muito mais rico e complexo construído a partir de uma totalidade heterogênea, o que exigiria explorações em outros campos das ciências humanas.

Essas afirmações, que parecem óbvias, nem sempre são levadas em conta pelos historiadores, muitas vezes preocupados com discussões “academicistas” em torno de posicionamentos teóricos distintos. Em outras palavras, não se negaria a validade de outros métodos historiográficos, mas se colocaria ênfase distinta no foco e no trabalho de análise histórica, que certamente não prescindiria dos estudos

1Doutor em História pela USP, pós-doutorado pela FLACSO (México) e Universidade do Texas (Austin), professor-pesquisador da FLACSO, Brasil.

realizados anteriormente. Seria talvez a tentativa de construção de uma “conjunção” dos tempos.

A História é constituída de fatos, sem dúvida, mas deve, não obstante, ter um nítido substrato teórico, caso contrário será apenas “narrativa”. Mas a história é também realizada por homens concretos. Isso nos leva a tentar compreender o papel do indivíduo na história. É claro que se pode discutir as distintas existências históricas da individualidade. O que é inequívoco, contudo, é que há uma relação de reciprocidade entre o ambiente que influencia o homem e as particularidades do indivíduo, com traços e idiossincrasias que não correspondem àqueles dos seus concidadãos. O homem é formado dentro do seu meio e age de acordo com sua época. Isso não impede que as peculiaridades de seu caráter e de seu background venham a afetar o ambiente à sua volta de forma singular se comparada a outros indivíduos que receberam possivelmente as mesmas influências. Em outras palavras, indivíduos de classes sociais diferentes ou de uma mesma realidade estrutural, enfrentando contextos similares, tomam decisões distintas.

Se em parte a tradição marxista se refere aos homens como “suporte” de uma relação social ou como responsáveis por uma função dentro do processo de produção é porque eles são forçados a desempenhar este papel dentro das relações de produção capitalistas. Mas a base econômica não é a única a afetar o indivíduo.

Para alguns teóricos, como Louis Althusser, os “homens concretos” são necessariamente sujeitos na história, porque atuam dentro dela. Mas não haveria um sujeito singular da história. Ou seja, os seres humanos podem ser ativos dentro das práticas sociais do processo de produção e reprodução da história, mas não seriam agentes, sujeitos “livres e constituintes” no

2sentido filosófico do termo .

Por outro lado, E. P. Thompson em seu A miséria da teoria dizia que

O historiador examina vidas e escolhas individuais, e não apenas acontecimentos históricos (processos). E embora possamos não fazer atribuições de valor aos processos, as mesmas objeções não surgem com a mesma força quando examinamos as opções dos indivíduos, cujos atos e intenções podem certamente ser julgados (como foram julgados pelos seus contemporâneos) dentro do devido e

3relevante contexto histórico .

Ou seja, “ao reconstituir esse processo... devemos, à medida que nossa disciplina o permita, controlar nossos próprios valores. Uma vez, porém,

2Louis Althusser, Filosofia y marxismo, México, Siglo Veintiuno Editores, 1988, pág. 86. 3Ver E. P. Thompson, A miséria da teoria, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1981, pág. 52.

reconstituída essa história, temos a liberdade de 4oferecer nosso julgamento sobre ela” .

Nas palavras de Pierre Bourdieu, “os agentes sociais, nas sociedades arcaicas e nas nossas, não são meros autômatos regulados como relógios de acordo

5com leis que não entendem” . Por isso, a importância da investigação empírica de distintas áreas do campo social, que seriam concebidas como “construções históricas”, relativamente autônomas, de espaços

6sociais .

Já o escritor norte-americano Mark Twain afirmava, sem nenhum academicismo, que haveria uma interação entre o que chamava de “circunstância”

7e o “temperamento” do indivíduo . Nesse caso, o “indivíduo” teria um papel maior, considerando que estaria imbuído de capacidades concretas de mudar o ambiente ao redor sem necessariamente ter de ser apenas uma peça na engrenagem nem somente movido pelas vagas da história. Teria voz ativa dentro de circunstâncias especiais. Esta interpretação tem ressonância em estudiosos de distintas áreas do conhecimento, desde o inglês Isaiah Berlin até o historiador “liberal” mexicano Enrique Krauze. Em um texto conhecido, publicado em 1954, Berlin dizia:

Assustar os seres humanos sugerindo-lhes que estão nos braços de forças impessoais sobre as quais têm pouco ou nenhum controle, é alimentar mitos... equivale a propagar a fé de que existem formas inalteráveis de desenvolvimento nos acontecimentos. Liberando os indivíduos do peso da responsabilidade pessoal, estas doutrinas alimentam a passividade irracional em alguns e uma atividade fanática, não menos irracional,

8em outros .

Isto significa, então, que supostamente haveria um equilíbrio entre a “liberdade individual” e a “responsabilidade moral”. Esta tendência ao indeterminismo histórico relativo, portanto, não só admite a existência dos “grandes homens” como acredita que estes são fundamentais para marcar a vida dos povos. Seria uma reação às idéias de intelectuais de posições distintas, desde o ceticismo de Tolstói até o determinismo de Plekanov, que acreditava na marcha autônoma do relógio da história, numa leitura em

4Ibid. 5Pierre Bourdieu, in Genaro Zalpa, “El concepto de campo y el campo religioso”, in Miguel J. Hernández Madrid e Elizabeth Juárez Cerdi (orgs. ), Religión y cultura, Zamora, El Colegio de Michoacán/Consejo Nacional de Ciencia y Tecnología, 2003, pág. 34. 6De acordo com Genaro Zalpa, Ibid, pág. 35. 7Mark Twain, “The Turning-Point of my Life”, in Mark Twain, The Favorite Works of Mark Twain, Nova Iorque, Garden City Publishing Co. , 1939, pág. 1134. 8Isaiah Berlin, citado in Enrique Krauze, “Plutarco entre nosotros”, in Enrique Krauze, Mexicanos eminentes, México, Tusquets Editores, 1999, pág. 17.

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grande medida simplista do marxismo. É importante recordar que Engels defendia, neste caso específico e de forma questionável, que

Os homens fazem sua própria história, mas, até agora, não com uma vontade conjunta, segundo um plano conjunto, nem mesmo numa sociedade dada, determinada, delimitada. Os seus esforços entrecruzam-se e, precisamente por isso, em todas essas sociedades, domina a necessidade, cujo complemento e forma de manifestação é a casualidade. A necessidade, que vem ao de cima através de toda a casualidade, é de novo finalmente a econômica. Vêm então aqui à colação dos chamados grandes homens. Que um desses e precisamente esse se erga neste tempo determinado, neste dado país –é naturalmente puro acaso. Mas, se o riscarmos, haverá procura de substituto, e esse substituto encontrar-se-á, tant bien que mal, mas com o tempo encontrar-se-á. (... ) Quanto mais o domínio que nós, precisamente, investigamos se afasta do econômico e se aproxima do ideológico puramente abstrato tanto mais encontraremos que ele exibe casualidades no seu desenvolvimento, tanto mais a sua curva decorre em ziguezague. Mas, se você desenhar o eixo médio da curva, verificará que, quanto mais longo for o período considerado e maior for o domínio assim tratado, esse eixo corre tanto mais aproximadamente de modo paralelo

9ao eixo do desenvolvimento econômico .

É bom lembrar que a linha histórica que dá atenção especial ao papel dos indivíduos vem desde o próprio Tucídides e sua História da guerra do

10Peloponeso, na qual, sem se deter especialmente na vida pessoal dos líderes gregos e enfatizando os movimentos dos povos e Estados, não podia prescindir de mencionar os dirigentes políticos, que, dentro do quadro apresentado por ele, ganhavam uma dimensão ampliada. Ao ponderar as ações de algumas personalidades, mostrando suas intenções originais, as circunstâncias reais e resultados do processo, o historiador acabava por colocar o “indivíduo” no centro da narrativa. Este foco maior nos homens singulares, que é acentuado em Plutarco e que se torna difuso durante a Idade Média, retorna na Renascença, chega posteriormente até o culto à personalidade de Thomas Carlyle e mais tarde a Ralph Waldo Emerson, no Novo Mundo, muito depois, ganhando tonalidades distintas e continuando até o século XX, com representantes importantes, como, por exemplo, o mexicano Daniel Cosío Villegas, para quem os atos dos governantes políticos seriam o motor e a principal causa do porvir histórico, ou Lawrence Stone, que

9Friedrich Engels, carta a W. Borgius, Londres, 25 de janeiro de 1894, in Karl Marx e Friedrich Engels, Obras escolhidas, tomo III, Lisboa e Moscou, Edições Avante e Edições Progresso, 1985, págs. 566 e 567. 10Ver R. G. Collingwood, A idéia de história, Lisboa, Editorial Presença, 1981, págs. 41 a 47.

afirmava que

Muitos historiadores crêem hoje em dia que a cultura do grupo e, inclusive, a vontade individual são agentes causais tão importantes – pelo menos potencialmente-, como as forças impessoais responsáveis pela produção material e crescimento demográfico. Não existe nenhuma razão teórica para que os segundos fatores determinem aos primeiros, mas sim vice-versa, e de fato há informação abundante em relação a exemplos que

11indiquem o contrário .

É bom lembrar aqui também a escola de falsificação da História da era stalinista e as numerosas obras publicadas pela Academia de Ciências da União Soviética, em grande parte baseadas no culto à personalidade e à exaltação dos “grandes” líderes comunistas.

De qualquer forma, o que se pode dizer é que o chamado de Ranke para que os historiadores reproduzissem o passado “tal e como foi”, o seu wie es eigentlich gewesen, soa hoje em dia como um enunciado ingênuo e impraticável. Como demonstra a tradição marxista, o passado e o presente são etapas dentro de uma unidade indivisível, um explicando o outro, dentro de marcos teóricos e ideológicos. Em outras palavras, há a necessidade de ser objetivo, sem ser “objetivista”, completamente imparcial.

A historiografia, assim, nas palavras de Pierre Vilar, deve “ser coerente graças a um esquema teórico e sólido comum; total, ou seja, capaz de não deixar fora de sua jurisdição nenhum terreno de análise útil; e, por último, dinâmica, pois não sendo eterna nenhuma estabilidade, nada é mais útil que descobrir os

12princípios da mudança” .

Charles Seignobos já dizia que “a história não é 13uma ciência; é um método” . Esta ênfase, talvez

exagerada, de um autor até certo ponto datado e em geral mais preocupado com o papel dos dirigentes e instituições do que com a análise das “estruturas” históricas, demonstra, contudo, que o estudo da história, se não completamente, é constituído em grande medida pela importância da metodologia, mesmo entendendo a ciência como uma abordagem teórica baseada na distinção entre o mundo “real” do fato “objetivo” e as noções subjetivas utilizadas por indivíduos sobre a realidade que os confronta.

11Lawrence Stone, citado in Edelberto Leyva Lajara, “Mentalidades colectivas: reflexiones sobre una propuesta”, in Vários, La historia y el oficio de historiador, Havana, Editorial Ciencias Sociales/Imagen Contemporánea, 1996, pág. 182. 1 2Pierre Vilar, citado in Enrique Semo, Historia mexicana/Economía y lucha de clases, México, Serie Popular Era, 1984, pág. 20. 1 3Charles Seignobos, citado in Louis Gottschalk, Understanding history, Nova Iorque, Alfred A. Knopf, 1950, pág. 29.

A importância do “método” também pode ser encontrada em outro intelectual, Georg Lukács (neste caso, de caráter e de procedência ideológica muito distintos), que colocava como principal marca historiográfica no marxismo o “método” e os princípios da teoria como valor metodológico. O próprio Engels chegava a dizer que “toda a concepção de Marx não é uma doutrina, mas um método. Não oferece dogmas feitos, senão pontos de partida para a ulterior investigação e o método para dita

14investigação” .

De qualquer forma, a história como ciência ideográfica, única em seu gênero, ou aquela mais preocupada com a identificação de estruturas perenes e lentas, ainda são modalidades defensáveis, o que não se pode dizer com a mesma energia do historicismo narrativo factual, tão antigo e aparentemente voltando à moda, mostrando, em sua forma contemporânea, uma fragmentação em “estórias” múltiplas e em momentos, centrado especialmente nos indivíduos comuns dentro da vida cotidiana ou em biografias de “grandes” personalidades. Ou seja, esboços biográficos, “jornalismo histórico” e trabalhos de antropologia social e cultural. É bom lembrar, como indicava Vilar, que Marx e Engels já propunham, no século XIX, para os estudos históricos sobre o século anterior, uma “teoria geral das sociedades em movimento”, que estaria composta de uma análise econômica, uma análise sociológica e uma análise das formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas e filosóficas, ou seja, um método de análise totalizante e abrangente. Assim, Marx já tinha uma concepção unitária das ciências sociais, relacionando a ciência com a consciência social e a dinâmica histórica, mostrando que estava longe propor algum tipo de “especialização” e “compartimentalização” do

15conhecimento . Em uma carta famosa para Ernst Bloch, de 21 de setembro de 1890, Engels dizia:

Segundo a concepção materialista da história, o momento em última instância determinante, na história, é a produção e reprodução da vida real. Nem Marx nem eu alguma vez afirmamos mais. Se agora alguém torce isso, afirmando que o momento econômico é o único determinante, transforma aquela proposição numa frase que não diz nada, abstrata, absurda. A situação econômica é a base, mas os diversos momentos da superestrutura –formas políticas da luta de classes e seus resultados: constituições estabelecidas pela classe vitoriosa uma vez ganha a batalha, etc. , formas jurídicas, e mesmo os reflexos de todas estas lutas reais nos cérebros dos participantes, teorias políticas, jurídicas, filosóficas, visões religiosas e o seu ulterior desenvolvimento em

14Ver Friedrich Engels, carta a Werner Sombart, de 11 de março de 1895, citado in Raimundo Prado Redondez, Ibid, pág. 73. 15Ver Jack Lindsay, Marxism and Contemporary Science, Londres, Dennis Dobson Ltd. , 1948.

sistemas de dogmas -, exercem também a sua influência sobre o curso das lutas históricas e d e t e r m i n a m e m m u i t o s c a s o s preponderantemente a forma delas. Há uma ação recíproca de todos estes momentos, em que, finalmente, através de todo o conjunto infinito de casualidades (isto é, de coisas e eventos cuja conexão interna é entre eles tão remota ou tão indemonstrável que nós a podemos considerar como não-existente, a podemos negligenciar), o movimento econômico vem ao de c ima como necessário. (... )

Em segundo lugar, porém, a história faz-se de tal modo que o resultado final provém sempre de conflitos de muitas vontades individuais, em que cada uma delas, por sua vez, é feita aquilo que é por um conjunto de condições de vida particulares; há, portanto, inúmeras forças que se entrecruzam, um número infinito de paralelogramas de forças, de que provém uma resultante –o resultado histórico-, que pode ele próprio, por sua vez, ser encarado como o produto de um poder que, como todo, atua sem consciência e sem vontade. Pois, aquilo que cada indivíduo quer é impedido por aquele outro e aquilo que daí sai é algo que ninguém quis. Assim, a história até aqui decorreu à maneira de um processo natural e está também essencialmente submetida às mesmas leis de

16movimento .

A relação entre o movimento da superestrutura e da infra-estrutura num determinado ambiente histórico chega a um ponto intermediário no qual conflui a interação dialética entre forças produtivas, as atividades políticas, jurídicas e econômicas, e entre os diversos atores sociais, que se expressará numa lógica interna particular da ação dos homens. É neste momento que o desenvolvimento das relações materiais e ideológicas irá imprimir sua marca na vida cotidiana. O trabalho historiográfico, portanto, sem realizar cortes verticais, rígidos, tentará transitar nesses campos e compreender a realidade a partir das variáveis disponíveis.

A periodização, assim, serve principalmente como marco de referência para a compreensão de processos históricos singulares. Neste caso, tanto a microhistória quanto a macrohistória constituem dois aspectos complementares do conhecimento. Mesmo que os povos e as nações se desenvolvam de forma desigual, ainda assim seguem um movimento contínuo e, mesmo com suas sutilezas, identificável. É possível, e até recomendável, portanto, um trabalho moldado em observações quantitativas, desconstrução temática e análise das estruturas separadamente, para então, a partir dos diferentes fragmentos que compõem o painel histórico mais amplo, juntar as peças e lhes dar

16Friedrich Engels, carta a Joseph Bloch, Londres, 21 de setembro de 1890, in Marx e Engels, Obras escolhidas, tomo III, págs. 547 e 548.

24 - Breves considerações sobre o método historiográfico História & Luta de Classes, Nº 9 - Junho de 2010 (22-27) - 25

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grande medida simplista do marxismo. É importante recordar que Engels defendia, neste caso específico e de forma questionável, que

Os homens fazem sua própria história, mas, até agora, não com uma vontade conjunta, segundo um plano conjunto, nem mesmo numa sociedade dada, determinada, delimitada. Os seus esforços entrecruzam-se e, precisamente por isso, em todas essas sociedades, domina a necessidade, cujo complemento e forma de manifestação é a casualidade. A necessidade, que vem ao de cima através de toda a casualidade, é de novo finalmente a econômica. Vêm então aqui à colação dos chamados grandes homens. Que um desses e precisamente esse se erga neste tempo determinado, neste dado país –é naturalmente puro acaso. Mas, se o riscarmos, haverá procura de substituto, e esse substituto encontrar-se-á, tant bien que mal, mas com o tempo encontrar-se-á. (... ) Quanto mais o domínio que nós, precisamente, investigamos se afasta do econômico e se aproxima do ideológico puramente abstrato tanto mais encontraremos que ele exibe casualidades no seu desenvolvimento, tanto mais a sua curva decorre em ziguezague. Mas, se você desenhar o eixo médio da curva, verificará que, quanto mais longo for o período considerado e maior for o domínio assim tratado, esse eixo corre tanto mais aproximadamente de modo paralelo

9ao eixo do desenvolvimento econômico .

É bom lembrar que a linha histórica que dá atenção especial ao papel dos indivíduos vem desde o próprio Tucídides e sua História da guerra do

10Peloponeso, na qual, sem se deter especialmente na vida pessoal dos líderes gregos e enfatizando os movimentos dos povos e Estados, não podia prescindir de mencionar os dirigentes políticos, que, dentro do quadro apresentado por ele, ganhavam uma dimensão ampliada. Ao ponderar as ações de algumas personalidades, mostrando suas intenções originais, as circunstâncias reais e resultados do processo, o historiador acabava por colocar o “indivíduo” no centro da narrativa. Este foco maior nos homens singulares, que é acentuado em Plutarco e que se torna difuso durante a Idade Média, retorna na Renascença, chega posteriormente até o culto à personalidade de Thomas Carlyle e mais tarde a Ralph Waldo Emerson, no Novo Mundo, muito depois, ganhando tonalidades distintas e continuando até o século XX, com representantes importantes, como, por exemplo, o mexicano Daniel Cosío Villegas, para quem os atos dos governantes políticos seriam o motor e a principal causa do porvir histórico, ou Lawrence Stone, que

9Friedrich Engels, carta a W. Borgius, Londres, 25 de janeiro de 1894, in Karl Marx e Friedrich Engels, Obras escolhidas, tomo III, Lisboa e Moscou, Edições Avante e Edições Progresso, 1985, págs. 566 e 567. 10Ver R. G. Collingwood, A idéia de história, Lisboa, Editorial Presença, 1981, págs. 41 a 47.

afirmava que

Muitos historiadores crêem hoje em dia que a cultura do grupo e, inclusive, a vontade individual são agentes causais tão importantes – pelo menos potencialmente-, como as forças impessoais responsáveis pela produção material e crescimento demográfico. Não existe nenhuma razão teórica para que os segundos fatores determinem aos primeiros, mas sim vice-versa, e de fato há informação abundante em relação a exemplos que

11indiquem o contrário .

É bom lembrar aqui também a escola de falsificação da História da era stalinista e as numerosas obras publicadas pela Academia de Ciências da União Soviética, em grande parte baseadas no culto à personalidade e à exaltação dos “grandes” líderes comunistas.

De qualquer forma, o que se pode dizer é que o chamado de Ranke para que os historiadores reproduzissem o passado “tal e como foi”, o seu wie es eigentlich gewesen, soa hoje em dia como um enunciado ingênuo e impraticável. Como demonstra a tradição marxista, o passado e o presente são etapas dentro de uma unidade indivisível, um explicando o outro, dentro de marcos teóricos e ideológicos. Em outras palavras, há a necessidade de ser objetivo, sem ser “objetivista”, completamente imparcial.

A historiografia, assim, nas palavras de Pierre Vilar, deve “ser coerente graças a um esquema teórico e sólido comum; total, ou seja, capaz de não deixar fora de sua jurisdição nenhum terreno de análise útil; e, por último, dinâmica, pois não sendo eterna nenhuma estabilidade, nada é mais útil que descobrir os

12princípios da mudança” .

Charles Seignobos já dizia que “a história não é 13uma ciência; é um método” . Esta ênfase, talvez

exagerada, de um autor até certo ponto datado e em geral mais preocupado com o papel dos dirigentes e instituições do que com a análise das “estruturas” históricas, demonstra, contudo, que o estudo da história, se não completamente, é constituído em grande medida pela importância da metodologia, mesmo entendendo a ciência como uma abordagem teórica baseada na distinção entre o mundo “real” do fato “objetivo” e as noções subjetivas utilizadas por indivíduos sobre a realidade que os confronta.

11Lawrence Stone, citado in Edelberto Leyva Lajara, “Mentalidades colectivas: reflexiones sobre una propuesta”, in Vários, La historia y el oficio de historiador, Havana, Editorial Ciencias Sociales/Imagen Contemporánea, 1996, pág. 182. 1 2Pierre Vilar, citado in Enrique Semo, Historia mexicana/Economía y lucha de clases, México, Serie Popular Era, 1984, pág. 20. 1 3Charles Seignobos, citado in Louis Gottschalk, Understanding history, Nova Iorque, Alfred A. Knopf, 1950, pág. 29.

A importância do “método” também pode ser encontrada em outro intelectual, Georg Lukács (neste caso, de caráter e de procedência ideológica muito distintos), que colocava como principal marca historiográfica no marxismo o “método” e os princípios da teoria como valor metodológico. O próprio Engels chegava a dizer que “toda a concepção de Marx não é uma doutrina, mas um método. Não oferece dogmas feitos, senão pontos de partida para a ulterior investigação e o método para dita

14investigação” .

De qualquer forma, a história como ciência ideográfica, única em seu gênero, ou aquela mais preocupada com a identificação de estruturas perenes e lentas, ainda são modalidades defensáveis, o que não se pode dizer com a mesma energia do historicismo narrativo factual, tão antigo e aparentemente voltando à moda, mostrando, em sua forma contemporânea, uma fragmentação em “estórias” múltiplas e em momentos, centrado especialmente nos indivíduos comuns dentro da vida cotidiana ou em biografias de “grandes” personalidades. Ou seja, esboços biográficos, “jornalismo histórico” e trabalhos de antropologia social e cultural. É bom lembrar, como indicava Vilar, que Marx e Engels já propunham, no século XIX, para os estudos históricos sobre o século anterior, uma “teoria geral das sociedades em movimento”, que estaria composta de uma análise econômica, uma análise sociológica e uma análise das formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas e filosóficas, ou seja, um método de análise totalizante e abrangente. Assim, Marx já tinha uma concepção unitária das ciências sociais, relacionando a ciência com a consciência social e a dinâmica histórica, mostrando que estava longe propor algum tipo de “especialização” e “compartimentalização” do

15conhecimento . Em uma carta famosa para Ernst Bloch, de 21 de setembro de 1890, Engels dizia:

Segundo a concepção materialista da história, o momento em última instância determinante, na história, é a produção e reprodução da vida real. Nem Marx nem eu alguma vez afirmamos mais. Se agora alguém torce isso, afirmando que o momento econômico é o único determinante, transforma aquela proposição numa frase que não diz nada, abstrata, absurda. A situação econômica é a base, mas os diversos momentos da superestrutura –formas políticas da luta de classes e seus resultados: constituições estabelecidas pela classe vitoriosa uma vez ganha a batalha, etc. , formas jurídicas, e mesmo os reflexos de todas estas lutas reais nos cérebros dos participantes, teorias políticas, jurídicas, filosóficas, visões religiosas e o seu ulterior desenvolvimento em

14Ver Friedrich Engels, carta a Werner Sombart, de 11 de março de 1895, citado in Raimundo Prado Redondez, Ibid, pág. 73. 15Ver Jack Lindsay, Marxism and Contemporary Science, Londres, Dennis Dobson Ltd. , 1948.

sistemas de dogmas -, exercem também a sua influência sobre o curso das lutas históricas e d e t e r m i n a m e m m u i t o s c a s o s preponderantemente a forma delas. Há uma ação recíproca de todos estes momentos, em que, finalmente, através de todo o conjunto infinito de casualidades (isto é, de coisas e eventos cuja conexão interna é entre eles tão remota ou tão indemonstrável que nós a podemos considerar como não-existente, a podemos negligenciar), o movimento econômico vem ao de c ima como necessário. (... )

Em segundo lugar, porém, a história faz-se de tal modo que o resultado final provém sempre de conflitos de muitas vontades individuais, em que cada uma delas, por sua vez, é feita aquilo que é por um conjunto de condições de vida particulares; há, portanto, inúmeras forças que se entrecruzam, um número infinito de paralelogramas de forças, de que provém uma resultante –o resultado histórico-, que pode ele próprio, por sua vez, ser encarado como o produto de um poder que, como todo, atua sem consciência e sem vontade. Pois, aquilo que cada indivíduo quer é impedido por aquele outro e aquilo que daí sai é algo que ninguém quis. Assim, a história até aqui decorreu à maneira de um processo natural e está também essencialmente submetida às mesmas leis de

16movimento .

A relação entre o movimento da superestrutura e da infra-estrutura num determinado ambiente histórico chega a um ponto intermediário no qual conflui a interação dialética entre forças produtivas, as atividades políticas, jurídicas e econômicas, e entre os diversos atores sociais, que se expressará numa lógica interna particular da ação dos homens. É neste momento que o desenvolvimento das relações materiais e ideológicas irá imprimir sua marca na vida cotidiana. O trabalho historiográfico, portanto, sem realizar cortes verticais, rígidos, tentará transitar nesses campos e compreender a realidade a partir das variáveis disponíveis.

A periodização, assim, serve principalmente como marco de referência para a compreensão de processos históricos singulares. Neste caso, tanto a microhistória quanto a macrohistória constituem dois aspectos complementares do conhecimento. Mesmo que os povos e as nações se desenvolvam de forma desigual, ainda assim seguem um movimento contínuo e, mesmo com suas sutilezas, identificável. É possível, e até recomendável, portanto, um trabalho moldado em observações quantitativas, desconstrução temática e análise das estruturas separadamente, para então, a partir dos diferentes fragmentos que compõem o painel histórico mais amplo, juntar as peças e lhes dar

16Friedrich Engels, carta a Joseph Bloch, Londres, 21 de setembro de 1890, in Marx e Engels, Obras escolhidas, tomo III, págs. 547 e 548.

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coerência, sempre dando prioridade ao estudo da sociedade “concreta”, e não em modelos “abstratos”, se utilizando, para isso, de todos os instrumentos necessários para o desenvolvimento pleno de sua obra.

É fundamental, portanto, que não se coloque nenhum tipo de “camisa de força” teórica dentro das realidades estudadas que sirvam para respaldar posições políticas. E sempre manter as diferentes técnicas como auxiliares do trabalho científico, assim como uma visão integradora das diferentes ciências sociais.

A periodização, então, pode ser diferenciável e flexível, e não seguir necessariamente fórmulas pré-estabelecidas anteriormente, desde que o historiador consiga demonstrar a validade e lógica de sua escolha. São nas “etapas” ou “fases” que os homens têm de enfrentar problemas específicos, dentro de períodos mais longos. Essas “etapas” são cortes comumente importantes para o estudo de algumas particularidades históricas. Isso ocorre também nos estudos de caso.

José Carlos Mariátegui, nesse sentido, avança nos estudos históricos de sua época. Utilizando o referencial marxista, ele possibilita que o foco central da consideração histórica se translade aos processos básicos econômico-sociais, assim como ao estudo aprofundado dos modos de produção, das condições das forças produtivas e da cultura. Ao mesmo tempo, ele dá significativa importância ao papel da personalidade, ainda que esta esteja inserida no

17processo e tenha limitações de atuação .

Aqui se trata, portanto, das possibilidades de ação do homem, que percebe o sentido e a direção do “acontecer” histórico. Isso significa dizer, também, que vários fatores se conjugam para “criar” indivíduos determinados, fatores estes cujo peso e a importância específica variam, como as características pessoais inatas, a tradição, a ordem familiar, a sociedade e a cultura locais, o desenvolvimento da macrosociedade e as forças externas que atuam na transformação e dinâmica de uma época. Outros traços importantes são a infância dos personagens, a religiosidade popular e o nível educacional e cultural das pessoas em seu ambiente.

De acordo com Manfred Kossok:

Uma nova interpretação revolucionária da história nacional e continental significa para Mariátegui, portanto, a compreensão equilibrada a respeito da continuidade da tradição histórica. A dialética objetiva de continuidade e descontinuidade enlaça, por conseguinte, a função histórica de tradição e revolução. Em oposição ao tradicionalismo da

17Ver, por exemplo, José Carlos Mariátegui, La escena contemporánea, Lima, Biblioteca Amauta, 1987; e José Carlos Mariátegui, El alma matinal y otras estaciones del hombre de hoy, Lima, Biblioteca Amauta, 1987; entre vários outros.

18Ibid, pág. 19. 19Ibid. 20Ver Gustavo Gutiérrez, “Pensar y hacer la historia: la aventura de Mariátegui”, in Gonzalo Portocarrero, Eduardo Caceres e Rafael Tapia (orgs. ), La aventura de Mariátegui: nuevas perspectivas, Lima, Pontifica Universidad Catolica del Peru/Fondo Editorial/Desco/IEP, 1995, pág. 166. 21Ibid, pág. 167. 22Ver Raimundo Prado Redondez, “Mariátegui y el desarrollo del pensamiento marxista em el Perú”, in Vários, Mariátegui y las Ciencias Sociales, págs. 72 e 73; e George Lichtheim, Lukács, Londres, Fontana/Collins, 1970.

burguesia e dos latifundiários semifeudais, Mariátegui acentua o diferente conteúdo de classe de cada tradição e sua dependência

18classista .

Assim, para ele, o termo “revolução” não significaria a negação de tudo o que se consideraria “história” até então, uma “ruptura” histórica, mas uma

19anulação dialética da ação sucessiva .

O desejo de captar a totalidade da realidade levará o teórico peruano a trabalhar, inicialmente, os temas separadamente, tentando ver até onde iam seus alcances, para em seguida “refiná-los” e “apurá-los” até que, finalmente, os próprios objetos de estudo exigiriam a interação entre si. Isso mostra um enriquecimento mútuo, mantendo uma espécie de relação, em que cada aspecto analisado ganha um sentido pleno e em seguida é conectando com uma

20análise mais ampla .

Para Gustavo Gutiérrez:

O que faz Mariátegui é entrar fina e perspicazmente em cada aspecto, ressaltar seus valores e aportes, descartar interpretações estreitas, e renovar as noções com as quais tentamos apreender a realidade. O produto será conseqüência de uma grande capacidade de análise e de uma inteligência flexível, que deixa sem piso enfoques parciais ou sectários. Não estamos diante de uma acomodação de noções, mas sim, ante uma síntese –que leva a marca, naturalmente, de seu tempo-, que perfila nosso conhecimento e nos impulsiona à

21ação transformadora .

A concepção mariateguiana lembra em vários aspectos a interpretação lukacsiana da história. Para o marxista húngaro, os traços essenciais desta seriam a dialética como uma concepção unitária e totalizadora; uma concepção da possibilidade “objetiva” da realidade, ou seja, um método que exige não se deter nunca diante de uma facticidade imediata, mas descobrir as potencialidades históricas objetivas do movimento real através de suas complexas “mediações”; e a teoria como um momento específico

22da prática, e esta, como uma mutação da teoria . Como afirmava E. P. Thompson, “a história é uma disciplina de contexto e de processo: cada significado é um significado-em-contexto e as estruturas mudam, enquanto velhas formas podem expressar novas

funções, ou velhas funções podem encontrar expressão 23em novas formas” .

Ainda que considerasse as motivações econômicas como as mais importantes na análise histórica, Mariátegui não queria que esta equivalesse a um reducionismo econômico e fazia questão de esclarecer isso. Para ele, “o conceito de economia em Marx é tão amplo e profundo como em Freud é o de libido; o princípio dialético em que se baseia toda a concepção marxista exclui a redução do processo

24histórico a uma pura mecânica econômica” . A historiografia, portanto, deve ser abrangente e tentar, na medida do possível, conectar e analisar, com o máximo de rigor e sofisticação, as diferentes variáveis políticas, econômicas e culturais de uma determinada época.

Com estas considerações mariateguianas, assim, concluímos este breve texto. Estas são apenas algumas questões e proposições que acreditamos pertinentes e úteis para os historiadores, especialmente os marxistas, na realização de sua obra na atualidade.

23Ver E. P. Thompson, “History and Anthropology”, in E. P. Thompson, Making History, Writings on History and Culture, Nova Iorque, The New Press, 1995, pág. 211. 24Ver José Carlos Mariátegui, citado in Prado Redondez, “Mariátegui y el desarrollo del pensamiento marxista en Perú”, in Vários, Mariátegui y las ciencias sociales, pág. 79.

26 - Breves considerações sobre o método historiográfico História & Luta de Classes, Nº 9 - Junho de 2010 (22-27) - 27

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coerência, sempre dando prioridade ao estudo da sociedade “concreta”, e não em modelos “abstratos”, se utilizando, para isso, de todos os instrumentos necessários para o desenvolvimento pleno de sua obra.

É fundamental, portanto, que não se coloque nenhum tipo de “camisa de força” teórica dentro das realidades estudadas que sirvam para respaldar posições políticas. E sempre manter as diferentes técnicas como auxiliares do trabalho científico, assim como uma visão integradora das diferentes ciências sociais.

A periodização, então, pode ser diferenciável e flexível, e não seguir necessariamente fórmulas pré-estabelecidas anteriormente, desde que o historiador consiga demonstrar a validade e lógica de sua escolha. São nas “etapas” ou “fases” que os homens têm de enfrentar problemas específicos, dentro de períodos mais longos. Essas “etapas” são cortes comumente importantes para o estudo de algumas particularidades históricas. Isso ocorre também nos estudos de caso.

José Carlos Mariátegui, nesse sentido, avança nos estudos históricos de sua época. Utilizando o referencial marxista, ele possibilita que o foco central da consideração histórica se translade aos processos básicos econômico-sociais, assim como ao estudo aprofundado dos modos de produção, das condições das forças produtivas e da cultura. Ao mesmo tempo, ele dá significativa importância ao papel da personalidade, ainda que esta esteja inserida no

17processo e tenha limitações de atuação .

Aqui se trata, portanto, das possibilidades de ação do homem, que percebe o sentido e a direção do “acontecer” histórico. Isso significa dizer, também, que vários fatores se conjugam para “criar” indivíduos determinados, fatores estes cujo peso e a importância específica variam, como as características pessoais inatas, a tradição, a ordem familiar, a sociedade e a cultura locais, o desenvolvimento da macrosociedade e as forças externas que atuam na transformação e dinâmica de uma época. Outros traços importantes são a infância dos personagens, a religiosidade popular e o nível educacional e cultural das pessoas em seu ambiente.

De acordo com Manfred Kossok:

Uma nova interpretação revolucionária da história nacional e continental significa para Mariátegui, portanto, a compreensão equilibrada a respeito da continuidade da tradição histórica. A dialética objetiva de continuidade e descontinuidade enlaça, por conseguinte, a função histórica de tradição e revolução. Em oposição ao tradicionalismo da

17Ver, por exemplo, José Carlos Mariátegui, La escena contemporánea, Lima, Biblioteca Amauta, 1987; e José Carlos Mariátegui, El alma matinal y otras estaciones del hombre de hoy, Lima, Biblioteca Amauta, 1987; entre vários outros.

18Ibid, pág. 19. 19Ibid. 20Ver Gustavo Gutiérrez, “Pensar y hacer la historia: la aventura de Mariátegui”, in Gonzalo Portocarrero, Eduardo Caceres e Rafael Tapia (orgs. ), La aventura de Mariátegui: nuevas perspectivas, Lima, Pontifica Universidad Catolica del Peru/Fondo Editorial/Desco/IEP, 1995, pág. 166. 21Ibid, pág. 167. 22Ver Raimundo Prado Redondez, “Mariátegui y el desarrollo del pensamiento marxista em el Perú”, in Vários, Mariátegui y las Ciencias Sociales, págs. 72 e 73; e George Lichtheim, Lukács, Londres, Fontana/Collins, 1970.

burguesia e dos latifundiários semifeudais, Mariátegui acentua o diferente conteúdo de classe de cada tradição e sua dependência

18classista .

Assim, para ele, o termo “revolução” não significaria a negação de tudo o que se consideraria “história” até então, uma “ruptura” histórica, mas uma

19anulação dialética da ação sucessiva .

O desejo de captar a totalidade da realidade levará o teórico peruano a trabalhar, inicialmente, os temas separadamente, tentando ver até onde iam seus alcances, para em seguida “refiná-los” e “apurá-los” até que, finalmente, os próprios objetos de estudo exigiriam a interação entre si. Isso mostra um enriquecimento mútuo, mantendo uma espécie de relação, em que cada aspecto analisado ganha um sentido pleno e em seguida é conectando com uma

20análise mais ampla .

Para Gustavo Gutiérrez:

O que faz Mariátegui é entrar fina e perspicazmente em cada aspecto, ressaltar seus valores e aportes, descartar interpretações estreitas, e renovar as noções com as quais tentamos apreender a realidade. O produto será conseqüência de uma grande capacidade de análise e de uma inteligência flexível, que deixa sem piso enfoques parciais ou sectários. Não estamos diante de uma acomodação de noções, mas sim, ante uma síntese –que leva a marca, naturalmente, de seu tempo-, que perfila nosso conhecimento e nos impulsiona à

21ação transformadora .

A concepção mariateguiana lembra em vários aspectos a interpretação lukacsiana da história. Para o marxista húngaro, os traços essenciais desta seriam a dialética como uma concepção unitária e totalizadora; uma concepção da possibilidade “objetiva” da realidade, ou seja, um método que exige não se deter nunca diante de uma facticidade imediata, mas descobrir as potencialidades históricas objetivas do movimento real através de suas complexas “mediações”; e a teoria como um momento específico

22da prática, e esta, como uma mutação da teoria . Como afirmava E. P. Thompson, “a história é uma disciplina de contexto e de processo: cada significado é um significado-em-contexto e as estruturas mudam, enquanto velhas formas podem expressar novas

funções, ou velhas funções podem encontrar expressão 23em novas formas” .

Ainda que considerasse as motivações econômicas como as mais importantes na análise histórica, Mariátegui não queria que esta equivalesse a um reducionismo econômico e fazia questão de esclarecer isso. Para ele, “o conceito de economia em Marx é tão amplo e profundo como em Freud é o de libido; o princípio dialético em que se baseia toda a concepção marxista exclui a redução do processo

24histórico a uma pura mecânica econômica” . A historiografia, portanto, deve ser abrangente e tentar, na medida do possível, conectar e analisar, com o máximo de rigor e sofisticação, as diferentes variáveis políticas, econômicas e culturais de uma determinada época.

Com estas considerações mariateguianas, assim, concluímos este breve texto. Estas são apenas algumas questões e proposições que acreditamos pertinentes e úteis para os historiadores, especialmente os marxistas, na realização de sua obra na atualidade.

23Ver E. P. Thompson, “History and Anthropology”, in E. P. Thompson, Making History, Writings on History and Culture, Nova Iorque, The New Press, 1995, pág. 211. 24Ver José Carlos Mariátegui, citado in Prado Redondez, “Mariátegui y el desarrollo del pensamiento marxista en Perú”, in Vários, Mariátegui y las ciencias sociales, pág. 79.

26 - Breves considerações sobre o método historiográfico História & Luta de Classes, Nº 9 - Junho de 2010 (22-27) - 27

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E

A “eficiência real”: apontamentos de Gramscipara uma história/concepção dos partidos políticos

1Igor Gomes Santos

Este texto se propõe a debater alguns apontamentos de Gramsci sobre a possibilidade de reconstituição da história de partidos políticos. No

2caderno 13 , ao fazer uma crítica a certos modelos de reconstituição da história de partidos políticos, Gramsci sugere uma proposta metodológica para realizar tal feito. Os apontamentos são valiosos para os historiadores desempenharem um outro tipo de história social dos partidos políticos e, com efeito, da política. Ao invés das tão freqüentes histórias de partidos políticos que perseguem resoluções, teses, textos de polêmicas, etc., que mais configuram uma história das idéias, devido ao caráter hipotético de cenários, projeções, além de debates teóricos, o italiano sugeria que a reconstituição histórica devia ser feita na tentativa de realçar a relação entre partido e sua base, entre partido e outros partidos e entre os partidos e os movimentos sociais. Essa sugestão aparece na sua proposição de análise da “eficiência real” do partido. Dessa maneira, a nosso ver, a luta de classes é alçada ao seu papel principal e permite a aparição de novos sujeitos na história dos partidos políticos que, na maioria das vezes, ficam restritos apenas ao “estado maior” partidário ou às guinadas e debates teórico-políticos.

A eficiência Real3Ao comentar o livro de Robert Michels ,

cientista político que no início do século XX teorizou a respeito da formação e do caráter dos grandes partidos de massa, Gramsci anotou em um dos seus cadernos alguns comentários preciosos e deu a ele o caráter de metodologia de estudo e pesquisa para historiadores dos partidos políticos.

Michels desenvolveu a tese de que os partidos de massa, principalmente, os social-democratas,

1Professor do IFBA e Mestre em História (UFF). [email protected], Antonio. Caderno dos Cárcere. Maquiavel. Notas sobre Estado e Política. vol. 03. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 2000, p. 87-88.3Um dos livros que Gramsci teve acesso no cárcere e que comenta com maior oposição é MICHELS, Robert. Il partito político Le tendenze oligarchiche della democrazia moderna. Turim, 1924. Pode se ver uma citação importante do texto em: GRAMSCI, Antônio. Op. cit. p. 389.

oligarquizavam a sua direção, criavam chefes políticos, ao passo que cresciam suas estruturas internas, sua profissionalização e sua inserção no sistema partidário eleitoral. Postos de comando se erigiam e deixavam as massas como expectadores das disputas internas. Formava-se assim uma espiral crescente, onde seus integrantes, para se manterem com relativa força dentro da estrutura partidária, tenderiam a unir-se a algum chefe partidário.

Para Gramsci, esse relato de Michels era realmente um grande problema na vida partidária, ainda mais se somadas às preocupações com o destino

4da Revolução Russa . Em Nota Gramsci escreveu:

A burocracia é a força mais perigosa, é a força consuetudinária e conservadora mais perigosa: se ela chega a se constituir como um corpo solidário voltado para si mesmo e independente da massa e do partido, o partido termina por se tornar anacrônico e, nos momentos de crise aguda, é esvaziado de seu

5conteúdo social e resta como que solto no ar .

Nota-se que o mesmo processo ganha outro nome: o que para Michels era oligarquização, chefiamento, para Gramsci, este tipo de acontecimento histórico era o burocratismo. Ainda que detectando aspectos parecidos, a mudança de nome tem um significado grande no que diz respeito à natureza do processo histórico que o gera, e suas conseqüências futuras.

A natureza da burocratização é social e determinada por acontecimentos que não estão atados apenas à vida partidária. Dessa postura deriva a crítica a Michels que, segundo Gramsci, leva em conta apenas aspectos internos e não avança na compreensão das contradições históricas impostas aos partidos.

O que é a história de um partido político? Será a mera narração da vida interna de uma organização política, de como ela nasce, dos primeiros grupos que a constituem, das polêmicas ideológicas das quais se forma o seu

4São conhecidas as polêmicas sobre as posições de Gramsci, cheias de guinadas, quanto à relação com a Internacional Comunista, Stalin e Trotsky, mas as teses sobre a burocracia parecem convergir com as de Trotsky, ao menos teoricamente. ver: BIANCHI, Álvaro. O Laboratório de Gramsci. filosofia, história e política. Alameda: São Paulo. 2008, p. 216-252.5GRAMSCI, Antonio. Op. cit. p. 61-62.

programa e sua concepção de mundo e vida? Tratar-se-ia, neste caso, da história de grupos intelectuais restritos, e em alguns casos da biografia política de uma individualidade

6singular .

A resposta negativa antecede a proposição do que seria a história de um partido político: 1) deveria ser uma “história geral do país de um ponto de vista monográfico”, dessa forma, Gramsci nos indica o caminho clássico da historiografia marxista: trilhar a história dos partidos políticos é captar as classes sociais em movimento e em suas lutas constantes. O que nos leva ao ponto 2): a história de constituição e desenvolvimento de um partido não se analisa apenas pelos seus estatutos, pelas suas disputas internas, pelos seus chefes, etc. Se se quer, verdadeiramente, trilhar a história de um partido político, deve se observar a sua “eficiência real”. No dizer de Gramsci, aquilo que foi capaz de construir ou aquilo que não foi capaz de

7destruir . Essa interpretação alerta o historiador para a questão da luta de classes, e da relação do partido com a classe à qual está vinculado, já que, para Gramsci, todo partido é composto e organizado por classes sociais em disputa pela condução do poder político.

A sugestão implícita é de que a forma para se captar o real concreto e não somente o aparente – a representação imediata do concreto –, seria a de investigar as atuações dos partidos junto às organizações das classes sociais; quem combateu? com que classe colaborou? o que se organizou à sua volta? em que medida seu programa foi efetivado ou teve alcance entre os grupos sociais pretendidos? qual o poder criativo deste partido?

Para a análise do partido político de um ponto de vista interno, Gramsci deixou isso a cargo do sectário “que se exaltará com os pequenos fatos internos, que terão para ele um significado esotérico e

” 8o encherão de entusiasmo e mística .

Se a questão da “eficiência real” fosse encarada de maneira pragmática ou linear, poderia conduzir a uma perspectiva analítica limitada, reduzida a uma forma de analisar qual partido foi útil historicamente e qual não foi, qual partido foi bem sucedido e qual não foi. Não é assim que entendemos o pensamento de Gramsci. Essa proposição tenta localizar a história de um partido vinculado diretamente à vida social. Tenta propor uma baliza metodológica para o historiador averiguar o alcance e veracidade real da “fantasia” pensada e do seu real efeito, isto é, a capacidade de transpor um programa, uma utopia friamente pensada no papel para “uma ideologia política que se apresenta não como fria utopia, nem como raciocínio doutrinário, mas como

6Idem. p. 87.7Idem.8Idem. p.88.

9Idem. p. 13 e 14.10A história social como metodologia particular de prática historiográfica, assume, principalmente nos dias de hoje, múltiplas dimensões de objeto, temporalidade, escalas de análise. Mas seu surgimento, segundo Hobsbawm. , é fruto de historiadores, alguns não acadêmicos, que se interessaram pela história dos subalternos (grupos de bandidos, grupos socialistas e anarquistas, trabalhadores pobres, etc.). Depois, reconheceu uma fase, principalmente na Alemanha, e um pouco no mundo anglo-saxônico, de ênfase nas culturas de grupos e sujeitos coletivos, mas bastante desvinculada da política. Ainda existia uma terceira corrente, que assumia uma vinculação direta da economia com a história. HOBSBAWM, Eric. Da história social à história da sociedade. São paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 84-88)A meu ver a proposição de Ciro Cardoso, define bem a História Social: uma história de síntese entre as múltiplas práticas historiográficas (cultural, demográfica, política, etc.) com ênfase, sobretudo, nas classes sociais, levando em conta as determinações das relações sociais entre os sujeitos. CARDOSO, C. F. BRIGNOLI, H. P. Os métodos da História. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983, p. 350)11GRAMSCI, Antonio. Op.cit. p. 87.

uma criação da fantasia concreta que atua sobre um povo disperso e pulverizado para despertar e

9organizar sua vontade coletiva” .

Documentos de proposições partidárias não necessariamente condizem com a realidade real das suas práticas. Principalmente em tempos de políticas de massas, de sufrágio universal, onde a hegemonia para ser exercida deve contar com demandas político-econômicas de classes que o partido pode não representar realmente.

Acontece, nessa operação, a substituição da prática historiográfica centralizada nas idéias políticas de uma dada instituição, ou dos intelectuais e políticos dessa mesma instituição (partido político), por uma outra, centrada nos grupos sociais, na economia, nas instituições, como elementos construtores que desempenham papéis ativos na sociedade. A história da sociedade, a partir da escala de interesse do historiador, seja uma cidade, um bairro, um país, etc., é colocada como eixo circunstancial no fazer do historiador dos partidos políticos. Aquilo que se convencionou chamar

10de História Social assume o lugar do tradicionalismo dos estudos da História Política e mesmo da História das Idéias.

Essa proposta está intimamente vinculada à concepção de partido em Gramsci. Ele mesmo nos afirma: “Desse modo, é a partir do modo de escrever a história de um partido que resulta o conceito que se tem sobre o que é um partido ou sobre o que ele deva

”11ser .

E já que um partido em Gramsci é sempre uma preparação de militantes para o exercício de uma vida estatal (escola de Estado), ou seja, o partido sempre entendido como formulador de resoluções políticas para o conjunto de uma dada sociedade, tendo como eixo de seu ativismo, a intenção de penetrar suas idéias

História & Luta de Classes, Nº 9 - Junho de 2010 (28-32) - 29 28 - A “eficiência real”: apontamentos de Gramsci para uma história/concepção dos partidos políticos

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E

A “eficiência real”: apontamentos de Gramscipara uma história/concepção dos partidos políticos

1Igor Gomes Santos

Este texto se propõe a debater alguns apontamentos de Gramsci sobre a possibilidade de reconstituição da história de partidos políticos. No

2caderno 13 , ao fazer uma crítica a certos modelos de reconstituição da história de partidos políticos, Gramsci sugere uma proposta metodológica para realizar tal feito. Os apontamentos são valiosos para os historiadores desempenharem um outro tipo de história social dos partidos políticos e, com efeito, da política. Ao invés das tão freqüentes histórias de partidos políticos que perseguem resoluções, teses, textos de polêmicas, etc., que mais configuram uma história das idéias, devido ao caráter hipotético de cenários, projeções, além de debates teóricos, o italiano sugeria que a reconstituição histórica devia ser feita na tentativa de realçar a relação entre partido e sua base, entre partido e outros partidos e entre os partidos e os movimentos sociais. Essa sugestão aparece na sua proposição de análise da “eficiência real” do partido. Dessa maneira, a nosso ver, a luta de classes é alçada ao seu papel principal e permite a aparição de novos sujeitos na história dos partidos políticos que, na maioria das vezes, ficam restritos apenas ao “estado maior” partidário ou às guinadas e debates teórico-políticos.

A eficiência Real3Ao comentar o livro de Robert Michels ,

cientista político que no início do século XX teorizou a respeito da formação e do caráter dos grandes partidos de massa, Gramsci anotou em um dos seus cadernos alguns comentários preciosos e deu a ele o caráter de metodologia de estudo e pesquisa para historiadores dos partidos políticos.

Michels desenvolveu a tese de que os partidos de massa, principalmente, os social-democratas,

1Professor do IFBA e Mestre em História (UFF). [email protected], Antonio. Caderno dos Cárcere. Maquiavel. Notas sobre Estado e Política. vol. 03. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 2000, p. 87-88.3Um dos livros que Gramsci teve acesso no cárcere e que comenta com maior oposição é MICHELS, Robert. Il partito político Le tendenze oligarchiche della democrazia moderna. Turim, 1924. Pode se ver uma citação importante do texto em: GRAMSCI, Antônio. Op. cit. p. 389.

oligarquizavam a sua direção, criavam chefes políticos, ao passo que cresciam suas estruturas internas, sua profissionalização e sua inserção no sistema partidário eleitoral. Postos de comando se erigiam e deixavam as massas como expectadores das disputas internas. Formava-se assim uma espiral crescente, onde seus integrantes, para se manterem com relativa força dentro da estrutura partidária, tenderiam a unir-se a algum chefe partidário.

Para Gramsci, esse relato de Michels era realmente um grande problema na vida partidária, ainda mais se somadas às preocupações com o destino

4da Revolução Russa . Em Nota Gramsci escreveu:

A burocracia é a força mais perigosa, é a força consuetudinária e conservadora mais perigosa: se ela chega a se constituir como um corpo solidário voltado para si mesmo e independente da massa e do partido, o partido termina por se tornar anacrônico e, nos momentos de crise aguda, é esvaziado de seu

5conteúdo social e resta como que solto no ar .

Nota-se que o mesmo processo ganha outro nome: o que para Michels era oligarquização, chefiamento, para Gramsci, este tipo de acontecimento histórico era o burocratismo. Ainda que detectando aspectos parecidos, a mudança de nome tem um significado grande no que diz respeito à natureza do processo histórico que o gera, e suas conseqüências futuras.

A natureza da burocratização é social e determinada por acontecimentos que não estão atados apenas à vida partidária. Dessa postura deriva a crítica a Michels que, segundo Gramsci, leva em conta apenas aspectos internos e não avança na compreensão das contradições históricas impostas aos partidos.

O que é a história de um partido político? Será a mera narração da vida interna de uma organização política, de como ela nasce, dos primeiros grupos que a constituem, das polêmicas ideológicas das quais se forma o seu

4São conhecidas as polêmicas sobre as posições de Gramsci, cheias de guinadas, quanto à relação com a Internacional Comunista, Stalin e Trotsky, mas as teses sobre a burocracia parecem convergir com as de Trotsky, ao menos teoricamente. ver: BIANCHI, Álvaro. O Laboratório de Gramsci. filosofia, história e política. Alameda: São Paulo. 2008, p. 216-252.5GRAMSCI, Antonio. Op. cit. p. 61-62.

programa e sua concepção de mundo e vida? Tratar-se-ia, neste caso, da história de grupos intelectuais restritos, e em alguns casos da biografia política de uma individualidade

6singular .

A resposta negativa antecede a proposição do que seria a história de um partido político: 1) deveria ser uma “história geral do país de um ponto de vista monográfico”, dessa forma, Gramsci nos indica o caminho clássico da historiografia marxista: trilhar a história dos partidos políticos é captar as classes sociais em movimento e em suas lutas constantes. O que nos leva ao ponto 2): a história de constituição e desenvolvimento de um partido não se analisa apenas pelos seus estatutos, pelas suas disputas internas, pelos seus chefes, etc. Se se quer, verdadeiramente, trilhar a história de um partido político, deve se observar a sua “eficiência real”. No dizer de Gramsci, aquilo que foi capaz de construir ou aquilo que não foi capaz de

7destruir . Essa interpretação alerta o historiador para a questão da luta de classes, e da relação do partido com a classe à qual está vinculado, já que, para Gramsci, todo partido é composto e organizado por classes sociais em disputa pela condução do poder político.

A sugestão implícita é de que a forma para se captar o real concreto e não somente o aparente – a representação imediata do concreto –, seria a de investigar as atuações dos partidos junto às organizações das classes sociais; quem combateu? com que classe colaborou? o que se organizou à sua volta? em que medida seu programa foi efetivado ou teve alcance entre os grupos sociais pretendidos? qual o poder criativo deste partido?

Para a análise do partido político de um ponto de vista interno, Gramsci deixou isso a cargo do sectário “que se exaltará com os pequenos fatos internos, que terão para ele um significado esotérico e

” 8o encherão de entusiasmo e mística .

Se a questão da “eficiência real” fosse encarada de maneira pragmática ou linear, poderia conduzir a uma perspectiva analítica limitada, reduzida a uma forma de analisar qual partido foi útil historicamente e qual não foi, qual partido foi bem sucedido e qual não foi. Não é assim que entendemos o pensamento de Gramsci. Essa proposição tenta localizar a história de um partido vinculado diretamente à vida social. Tenta propor uma baliza metodológica para o historiador averiguar o alcance e veracidade real da “fantasia” pensada e do seu real efeito, isto é, a capacidade de transpor um programa, uma utopia friamente pensada no papel para “uma ideologia política que se apresenta não como fria utopia, nem como raciocínio doutrinário, mas como

6Idem. p. 87.7Idem.8Idem. p.88.

9Idem. p. 13 e 14.10A história social como metodologia particular de prática historiográfica, assume, principalmente nos dias de hoje, múltiplas dimensões de objeto, temporalidade, escalas de análise. Mas seu surgimento, segundo Hobsbawm. , é fruto de historiadores, alguns não acadêmicos, que se interessaram pela história dos subalternos (grupos de bandidos, grupos socialistas e anarquistas, trabalhadores pobres, etc.). Depois, reconheceu uma fase, principalmente na Alemanha, e um pouco no mundo anglo-saxônico, de ênfase nas culturas de grupos e sujeitos coletivos, mas bastante desvinculada da política. Ainda existia uma terceira corrente, que assumia uma vinculação direta da economia com a história. HOBSBAWM, Eric. Da história social à história da sociedade. São paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 84-88)A meu ver a proposição de Ciro Cardoso, define bem a História Social: uma história de síntese entre as múltiplas práticas historiográficas (cultural, demográfica, política, etc.) com ênfase, sobretudo, nas classes sociais, levando em conta as determinações das relações sociais entre os sujeitos. CARDOSO, C. F. BRIGNOLI, H. P. Os métodos da História. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983, p. 350)11GRAMSCI, Antonio. Op.cit. p. 87.

uma criação da fantasia concreta que atua sobre um povo disperso e pulverizado para despertar e

9organizar sua vontade coletiva” .

Documentos de proposições partidárias não necessariamente condizem com a realidade real das suas práticas. Principalmente em tempos de políticas de massas, de sufrágio universal, onde a hegemonia para ser exercida deve contar com demandas político-econômicas de classes que o partido pode não representar realmente.

Acontece, nessa operação, a substituição da prática historiográfica centralizada nas idéias políticas de uma dada instituição, ou dos intelectuais e políticos dessa mesma instituição (partido político), por uma outra, centrada nos grupos sociais, na economia, nas instituições, como elementos construtores que desempenham papéis ativos na sociedade. A história da sociedade, a partir da escala de interesse do historiador, seja uma cidade, um bairro, um país, etc., é colocada como eixo circunstancial no fazer do historiador dos partidos políticos. Aquilo que se convencionou chamar

10de História Social assume o lugar do tradicionalismo dos estudos da História Política e mesmo da História das Idéias.

Essa proposta está intimamente vinculada à concepção de partido em Gramsci. Ele mesmo nos afirma: “Desse modo, é a partir do modo de escrever a história de um partido que resulta o conceito que se tem sobre o que é um partido ou sobre o que ele deva

”11ser .

E já que um partido em Gramsci é sempre uma preparação de militantes para o exercício de uma vida estatal (escola de Estado), ou seja, o partido sempre entendido como formulador de resoluções políticas para o conjunto de uma dada sociedade, tendo como eixo de seu ativismo, a intenção de penetrar suas idéias

História & Luta de Classes, Nº 9 - Junho de 2010 (28-32) - 29 28 - A “eficiência real”: apontamentos de Gramsci para uma história/concepção dos partidos políticos

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entre as classes sociais realmente existentes, para colocar-se como alternativa real de poder, é que os estudos das histórias dos partidos políticos devem ultrapassar as resoluções partidárias e investigar a eficácia real das contradições as quais se metem os partidos políticos nas lutas de classes que, mesmo quando simbólicas, conformam a realidade da totalidade social.

Gramsci eleva para o historiador – novamente implicitamente – a categoria da “práxis”, aquela em que a relação prática-teoria/teoria-prática é dotada de um sentido de condutor da reflexão e da atuação no mundo. Esta categoria tem o mérito de possibilitar uma analise única de dois momentos que são didaticamente

distintos, pois, se operacionalizada como momentos separados deixa automaticamente de ser uma práxis: o da elaboração; das discussões ideológicas internas; da concepção política de atuação e o da prática, aquela que converte o programa em “vontade coletiva”. A linha tênue dessa noção de práxis possibilita captar o momento de real eficiência daquilo que o partido programou criar ou destruir, sua capacidade de trilhar os meios táticos elaborados e a real eficiência dessa ação.

Essa noção tem o mérito, como já foi dito, de municiar o historiador para encontrar na reconstituição da história do partido político os movimentos das classes sociais, pois os partidos se constituemestreitamente relacionados com as classes sociais. Os partidos políticos são expressões das classes sociais, por isso, para contrariar Michels, deve-se, se quisermos, percorrer a história de um partido político,

escrever a história de uma determinada massa de homens que seguiu os iniciadores, sustentou-os com sua confiança, com sua lealdade, com sua disciplina, ou os que criticou “realisticamente”, dispersando-se ou permanecendo passiva diante de algumas

12iniciativas .

O caminho é socialmente inverso; das classes para o partido político e não, como apontava Michels, de que um dado formato partidário, automaticamente, produzia um efeito de produção/aceitação dos chefes nas massas.

Esta questão é muito importante para Gramsci tanto quanto para Marx, ao ponto deles balizarem uma dupla concepção de partido político. Uma das concepções busca dar visibilidade ideológica e prática a formas não necessariamente institucionalizadas de organização das classes sociais. A outra busca abordar os formatos que os partidos adquiriram por obrigação das legislações burguesas, ou seja, o partido que conhecemos como tais, com direções, cargos, diretórios, etc.

Vale destacar, novamente, que em Gramsci, e

13MARX, Karl. O dezoito Brumário de Luiz Bonaparte. In: GIANNOTTI, J. A. (org). Coleção Os Pensadores. Marx. São Paulo: Abril Cultural, 1978.14Idem. p. 335.15O National era um Jornal de idéias republicanas que circulava na França no período do Golpe de Bonaparte.16Idem. p. 337.12Idem.

em Marx, todo partido político remete-se a uma classe social. Isso não significa dizer que um partido político ao organizar uma expressão da vontade política da classe, não permita a absorção do seu discurso por elementos de outra classe. Ao contrário, esta deve ser a sua função, realizar um trabalho político que, ao se desvelar como embrião de alternativa de poder, expresse, mesmo que arbitrariamente, uma resolução para os grupos sociais envolvidos nas disputas de projetos políticos.

Desta forma, podemos ver, no Dezoito 13Brumário de Luiz Bonaparte , que Marx para

demonstrar a organização política desenvolvida ao longo do processo que desencadeou o Coup d'Etat de Luís Bonaparte em 1851, reconheceu uma organização política coesa e coerente que se moveu no sentido de aniquilar a força do proletariado: o “partido da ordem”. “Durante as jornadas de junho todas as classes e partidos se haviam congregado no partido da ordem, contra a classe proletária, considerada como o partido

”14da Anarquia, do socialismo, do comunismo .

Do lado oposto, unificado no partido do proletariado daquele momento, figurava o partido blanquista. Sabe-se que existiram diversas lideranças e projetos distintos na luta política do proletariado, mas Marx reconhece nos blanquistas a força maior de organização do proletariado parisiense, um maior “espírito de cisão” – para usar um termo que Gramsci toma emprestado de Sorel – por isso lhe atribui a denominação de partido político, mesmo que não adotasse o formato que conhecemos de partido político.

Um partido era entendido como parte da classe, isto é, da organização da Classe (aparelho privado de hegemonia). Assim, tanto para Marx quanto para Gramsci, um tipo qualquer de associação que tomasse parte de alguma ação política consciente, de organização de “vontades coletivas”, dotada de um princípio político invocador de um projeto de sociedade, pode ser encarado como partido político. No Dezoito Brumário, Marx, ao discutir as forças republicanas burguesas identifica “o Partido do

15National” , como uma força política que lutou de uma 16maneira republicana nos conflitos .

Gramsci também afirmava esta possibilidade de um Jornal, ou outra forma de associação, ser encarado como partido político, principalmente na Itália, onde intelectuais se organizavam em torno de jornais e revistas para refletirem sobre a política

nacional Italiana, como foi o caso do seu grande 17interlocutor, Benedeto Croce . Assim, ele expressou

em 1921, ainda em liberdade:

Uma associação pode ser chamada de “partido político” somente quando possui sua própria doutrina constitucional, quando consegue concretizar e divulgar sua própria noção da idéia de Estado, quando consegue concretizar e divulgar entre as massas um programa de governo, capaz de organizar praticamente – ou seja, condições determinadas, com homens reais e não com fantasmas abstratos de

18humanidade – um Estado .

Por outro lado, um partido formalmente existente pode não exercer nenhuma atividade de organização de “vontades coletivas” e não se constituir como parte ativa de certa classe, isto é, pode não se constituir como partido político para as classes. Os caminhos destes partidos podem vir a ser o transformismo ou o burocratismo, essências da concepção de partido político que tinha Michels.

O transformismo e o burocratismo mudam a concepção de classe, a visão de mundo dos partidos, portanto, a forma de um partido se relacionar com sua base partidária e não partidária, sua dependência dela; financeira, política, ideológica, etc. A sugestão de Gramsci nos parece muito mais eficiente na compreensão da história e da concepção de um partido político.

A “eficiência real” e a vida interna do partido

Tínhamos dito acima que Gramsci deixaria ao encargo dos sectários a análise dos fatos internos da vida partidária, mas a forma como militantes e dirigentes partidários se relacionam com o movimento real também faz parte dessa “eficiência real”. Ela determina e colabora naquilo que o partido se propõe a construir ou destruir. Desta maneira, ressalta-se também ao historiador, uma outra forma para praticar a pesquisa e desenvolver uma metodologia mais profícua. Nesta seção destacamos as análises que Gramsci fez de múltiplas formas de relacionamento entre direção e base, principalmente o movimento dialético entre intelectuais e massas (dialética

17A vida política da Itália segundo revela Gramsci, principalmente, no livro 5 dos seus Cadernos do Cárcere, aponta para uma fragilidade da sociedade civil e uma dificuldade na organização de fortes aparelhos privados de hegemonia o que caracterizou a Itália como uma nação apta a revoluções pelo alto, ou a consorteria. Criou-se um ambiente político onde associações, revistas, jornais desenvolviam papel de verdadeiros partidos. Sobre a vida política na Itália e a inserção de Gramsci ver: DIAS, E. F. Gramsci em Turim. A construção do Conceito de Hegemonia. São Paulo: Xamã, 2000.18GRAMSCI, Antonio. Escritos Políticos. vol 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004, p. 25.

intelectual-massa), isto é, a relação entre dirigentes e militantes partidários com os trabalhadores e o processo de fazer-se destes em dirigentes/militantes.

É importante relatar que a dialética intelectual-massa, não acontece dentro do partido apenas, para não repetir o erro de Michels. Ela acontece fora do partido e dentro dele ao mesmo tempo, ou seja, ela acontece de acordo com a capacidade que o partido político tem de estabelecer uma “linguagem comum” com as pessoas as quais o partido se propõe a dotar de uma visão de mundo. Isto se aplica ao formato da relação política entre base e partido, na consolidação de uma cultura política comum que, se socializada, passa a ser encarnada por ambos os setores, base e partido ou base partidária e direção partidária, numa relação em que todos se vêem como partes importantes do mesmo processo. Este seria o momento de fundação de uma organicidade do partido entre as massas e vice-versa.

Os partidos políticos aparecem em Gramsci como o local onde as relações entre militantes do estado-maior do partido (dirigentes/intelectuais), deveriam atender continuamente um processo de formação política de indivíduos das classes sociais. Assim, evitar-se-ia um processo de burocratização e de sacralização das posições tomadas pelos dirigentes, o que não contribuiria para a vida política dos partidos e muito menos para uma nova sociedade.

Se, para Gramsci, o partido era uma escola de Estado e se “o espírito de partido, que é o elemento fundamental do espírito estatal, é uma das mais

19significativas teses a ser sustentada” , o partido deveria realizar em suas ações iniciativas que visassem fortalecer um mesmo terreno cultural comum,

Uma linguagem comum, modos comuns de raciocínio entre pessoas que não são intelectuais profissionais, que ainda não adquiriram o hábito e a disciplina mental necessária para relacionar rapidamente conceitos aparentemente díspares, assim como, inversamente , para ana l i sa r rapidamente, decompor, intuir, descobrir diferenças essenciais entre conceitos

20aparentemente semelhantes .

Não nos parece ser a intenção de Gramsci atribuir o mérito da direção somente àqueles que são intelectuais, como numa república de filósofos, mas de reconhecer que o sucesso de um novo bloco histórico (socialista) dependeria da capacidade da classe trabalhadora questionar e obter respostas no desenvolvimento de suas necessidades, evitando que o partido e, com efeito, o próprio Estado se enrijeçam na burocracia, ou em uma cúpula dirigente de quem o proletariado deveria esperar sua condução, como uma espécie de guia.

19Idem.2000, p. 328.20Idem. vol. 04, 2000, p. 337.

História & Luta de Classes, Nº 9 - Junho de 2010 (28-32) - 31 30 - A “eficiência real”: apontamentos de Gramsci para uma história/concepção dos partidos políticos

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entre as classes sociais realmente existentes, para colocar-se como alternativa real de poder, é que os estudos das histórias dos partidos políticos devem ultrapassar as resoluções partidárias e investigar a eficácia real das contradições as quais se metem os partidos políticos nas lutas de classes que, mesmo quando simbólicas, conformam a realidade da totalidade social.

Gramsci eleva para o historiador – novamente implicitamente – a categoria da “práxis”, aquela em que a relação prática-teoria/teoria-prática é dotada de um sentido de condutor da reflexão e da atuação no mundo. Esta categoria tem o mérito de possibilitar uma analise única de dois momentos que são didaticamente

distintos, pois, se operacionalizada como momentos separados deixa automaticamente de ser uma práxis: o da elaboração; das discussões ideológicas internas; da concepção política de atuação e o da prática, aquela que converte o programa em “vontade coletiva”. A linha tênue dessa noção de práxis possibilita captar o momento de real eficiência daquilo que o partido programou criar ou destruir, sua capacidade de trilhar os meios táticos elaborados e a real eficiência dessa ação.

Essa noção tem o mérito, como já foi dito, de municiar o historiador para encontrar na reconstituição da história do partido político os movimentos das classes sociais, pois os partidos se constituemestreitamente relacionados com as classes sociais. Os partidos políticos são expressões das classes sociais, por isso, para contrariar Michels, deve-se, se quisermos, percorrer a história de um partido político,

escrever a história de uma determinada massa de homens que seguiu os iniciadores, sustentou-os com sua confiança, com sua lealdade, com sua disciplina, ou os que criticou “realisticamente”, dispersando-se ou permanecendo passiva diante de algumas

12iniciativas .

O caminho é socialmente inverso; das classes para o partido político e não, como apontava Michels, de que um dado formato partidário, automaticamente, produzia um efeito de produção/aceitação dos chefes nas massas.

Esta questão é muito importante para Gramsci tanto quanto para Marx, ao ponto deles balizarem uma dupla concepção de partido político. Uma das concepções busca dar visibilidade ideológica e prática a formas não necessariamente institucionalizadas de organização das classes sociais. A outra busca abordar os formatos que os partidos adquiriram por obrigação das legislações burguesas, ou seja, o partido que conhecemos como tais, com direções, cargos, diretórios, etc.

Vale destacar, novamente, que em Gramsci, e

13MARX, Karl. O dezoito Brumário de Luiz Bonaparte. In: GIANNOTTI, J. A. (org). Coleção Os Pensadores. Marx. São Paulo: Abril Cultural, 1978.14Idem. p. 335.15O National era um Jornal de idéias republicanas que circulava na França no período do Golpe de Bonaparte.16Idem. p. 337.12Idem.

em Marx, todo partido político remete-se a uma classe social. Isso não significa dizer que um partido político ao organizar uma expressão da vontade política da classe, não permita a absorção do seu discurso por elementos de outra classe. Ao contrário, esta deve ser a sua função, realizar um trabalho político que, ao se desvelar como embrião de alternativa de poder, expresse, mesmo que arbitrariamente, uma resolução para os grupos sociais envolvidos nas disputas de projetos políticos.

Desta forma, podemos ver, no Dezoito 13Brumário de Luiz Bonaparte , que Marx para

demonstrar a organização política desenvolvida ao longo do processo que desencadeou o Coup d'Etat de Luís Bonaparte em 1851, reconheceu uma organização política coesa e coerente que se moveu no sentido de aniquilar a força do proletariado: o “partido da ordem”. “Durante as jornadas de junho todas as classes e partidos se haviam congregado no partido da ordem, contra a classe proletária, considerada como o partido

”14da Anarquia, do socialismo, do comunismo .

Do lado oposto, unificado no partido do proletariado daquele momento, figurava o partido blanquista. Sabe-se que existiram diversas lideranças e projetos distintos na luta política do proletariado, mas Marx reconhece nos blanquistas a força maior de organização do proletariado parisiense, um maior “espírito de cisão” – para usar um termo que Gramsci toma emprestado de Sorel – por isso lhe atribui a denominação de partido político, mesmo que não adotasse o formato que conhecemos de partido político.

Um partido era entendido como parte da classe, isto é, da organização da Classe (aparelho privado de hegemonia). Assim, tanto para Marx quanto para Gramsci, um tipo qualquer de associação que tomasse parte de alguma ação política consciente, de organização de “vontades coletivas”, dotada de um princípio político invocador de um projeto de sociedade, pode ser encarado como partido político. No Dezoito Brumário, Marx, ao discutir as forças republicanas burguesas identifica “o Partido do

15National” , como uma força política que lutou de uma 16maneira republicana nos conflitos .

Gramsci também afirmava esta possibilidade de um Jornal, ou outra forma de associação, ser encarado como partido político, principalmente na Itália, onde intelectuais se organizavam em torno de jornais e revistas para refletirem sobre a política

nacional Italiana, como foi o caso do seu grande 17interlocutor, Benedeto Croce . Assim, ele expressou

em 1921, ainda em liberdade:

Uma associação pode ser chamada de “partido político” somente quando possui sua própria doutrina constitucional, quando consegue concretizar e divulgar sua própria noção da idéia de Estado, quando consegue concretizar e divulgar entre as massas um programa de governo, capaz de organizar praticamente – ou seja, condições determinadas, com homens reais e não com fantasmas abstratos de

18humanidade – um Estado .

Por outro lado, um partido formalmente existente pode não exercer nenhuma atividade de organização de “vontades coletivas” e não se constituir como parte ativa de certa classe, isto é, pode não se constituir como partido político para as classes. Os caminhos destes partidos podem vir a ser o transformismo ou o burocratismo, essências da concepção de partido político que tinha Michels.

O transformismo e o burocratismo mudam a concepção de classe, a visão de mundo dos partidos, portanto, a forma de um partido se relacionar com sua base partidária e não partidária, sua dependência dela; financeira, política, ideológica, etc. A sugestão de Gramsci nos parece muito mais eficiente na compreensão da história e da concepção de um partido político.

A “eficiência real” e a vida interna do partido

Tínhamos dito acima que Gramsci deixaria ao encargo dos sectários a análise dos fatos internos da vida partidária, mas a forma como militantes e dirigentes partidários se relacionam com o movimento real também faz parte dessa “eficiência real”. Ela determina e colabora naquilo que o partido se propõe a construir ou destruir. Desta maneira, ressalta-se também ao historiador, uma outra forma para praticar a pesquisa e desenvolver uma metodologia mais profícua. Nesta seção destacamos as análises que Gramsci fez de múltiplas formas de relacionamento entre direção e base, principalmente o movimento dialético entre intelectuais e massas (dialética

17A vida política da Itália segundo revela Gramsci, principalmente, no livro 5 dos seus Cadernos do Cárcere, aponta para uma fragilidade da sociedade civil e uma dificuldade na organização de fortes aparelhos privados de hegemonia o que caracterizou a Itália como uma nação apta a revoluções pelo alto, ou a consorteria. Criou-se um ambiente político onde associações, revistas, jornais desenvolviam papel de verdadeiros partidos. Sobre a vida política na Itália e a inserção de Gramsci ver: DIAS, E. F. Gramsci em Turim. A construção do Conceito de Hegemonia. São Paulo: Xamã, 2000.18GRAMSCI, Antonio. Escritos Políticos. vol 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004, p. 25.

intelectual-massa), isto é, a relação entre dirigentes e militantes partidários com os trabalhadores e o processo de fazer-se destes em dirigentes/militantes.

É importante relatar que a dialética intelectual-massa, não acontece dentro do partido apenas, para não repetir o erro de Michels. Ela acontece fora do partido e dentro dele ao mesmo tempo, ou seja, ela acontece de acordo com a capacidade que o partido político tem de estabelecer uma “linguagem comum” com as pessoas as quais o partido se propõe a dotar de uma visão de mundo. Isto se aplica ao formato da relação política entre base e partido, na consolidação de uma cultura política comum que, se socializada, passa a ser encarnada por ambos os setores, base e partido ou base partidária e direção partidária, numa relação em que todos se vêem como partes importantes do mesmo processo. Este seria o momento de fundação de uma organicidade do partido entre as massas e vice-versa.

Os partidos políticos aparecem em Gramsci como o local onde as relações entre militantes do estado-maior do partido (dirigentes/intelectuais), deveriam atender continuamente um processo de formação política de indivíduos das classes sociais. Assim, evitar-se-ia um processo de burocratização e de sacralização das posições tomadas pelos dirigentes, o que não contribuiria para a vida política dos partidos e muito menos para uma nova sociedade.

Se, para Gramsci, o partido era uma escola de Estado e se “o espírito de partido, que é o elemento fundamental do espírito estatal, é uma das mais

19significativas teses a ser sustentada” , o partido deveria realizar em suas ações iniciativas que visassem fortalecer um mesmo terreno cultural comum,

Uma linguagem comum, modos comuns de raciocínio entre pessoas que não são intelectuais profissionais, que ainda não adquiriram o hábito e a disciplina mental necessária para relacionar rapidamente conceitos aparentemente díspares, assim como, inversamente , para ana l i sa r rapidamente, decompor, intuir, descobrir diferenças essenciais entre conceitos

20aparentemente semelhantes .

Não nos parece ser a intenção de Gramsci atribuir o mérito da direção somente àqueles que são intelectuais, como numa república de filósofos, mas de reconhecer que o sucesso de um novo bloco histórico (socialista) dependeria da capacidade da classe trabalhadora questionar e obter respostas no desenvolvimento de suas necessidades, evitando que o partido e, com efeito, o próprio Estado se enrijeçam na burocracia, ou em uma cúpula dirigente de quem o proletariado deveria esperar sua condução, como uma espécie de guia.

19Idem.2000, p. 328.20Idem. vol. 04, 2000, p. 337.

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Dessa forma, para um Partido ter uma vida durável, mesmo em condições adversas, seria necessário a relação entre três elementos da vida partidária:

1) Um elemento difuso comum, de homens comuns, médios, cuja participação é dada pela disciplina e pela fidelidade, não pelo espírito criativo e altamente organizativo. [Que] sem eles o partido não existiria, é verdade, mas também é verdade que o partido não existiria 'somente' com eles(...). 2) O elemento de coesão principal, que centraliza no campo nacional, (...) este elemento é dotado de força al tamente coesiva, central izadora e disciplinadora e também (ou melhor, talvez por isso mesmo) inventiva (...). Também é verdade que, por si só, este elemento não formaria o partido, mas poderia servir para formulá-lo mais do que o primeiro(...) 3) um elemento médio, que articule o primeiro com o segundo elemento que os ponha não só em contato

21físico, mas moral e intelectual .

A diferenciação de elementos no partido não deve ser concebida como estrutural, nem como uma espécie de funcionalismo hierárquico das posições, de funções, ou de prestígio. O elemento médio (3) teria, no partido pensado por Gramsci, a principal função na manutenção da vida do partido. Além de ser o elemento que, em processo contínuo de exercício da política, da prática militante, adquire representatividade e maturidade intelectual para fazer-se dirigente (elemento 2). Este também é o elemento que põe em contato as atividades formuladas teoricamente no partido com as “paixões” das massas, elevando a sua consciência e proporcionando uma expansão do elemento médio entre as massas. Este é o principio básico da vida – interna e externa ao mesmo tempo – de

22um partido para Gramsci .

A teoria gramsciana permite aos historiadores analisar como se estabelece a relação entre o partido e a classe, seus intelectuais e a massa da população. A dinâmica do partido é sempre pensada como organização em sentido amplo e não, simplesmente, como entidade administrativa. No caso de um partido de trabalhadores, socialista ou revolucionário, trata-se de verificar que tipo de organicidade interna predomina, como o partido formula e difunde seus componentes programáticos, como age no sentido da reprodução tanto de suas modalidades organizativas quanto de sua ideologia entre seus integrantes, assim como na sua difusão mais ampla, com o objetivo de expandir-se (aglutinar em torno de si mais setores populares) e de constituir uma efetiva visão de mundo comum aos diversos setores populares. Caso tal aglutinação não ocorra, a vida partidária se internaliza e a “eficiência real” fica comprometida.

21Idem. vol. 03. 2000. p. 316-317.22Idem.

Conclusão

Podemos perceber que a forma de narrar a vida de um partido político, para o intelectual italiano, está diretamente vinculada a sua concepção de partido: democrático, de massa, mas sem se recusar a formar seus quadros de vanguarda, aliás, vindos da massa da população, não burocrático nem autoritário e com um papel de destaque nas lutas dos subalternizados. Esse era o partido que ele queria para dirigir as lutas do proletariado, e a sua metodologia de estudo avassala qualquer tipo de falsa pretensão formal de colocar-se, historicamente, no lugar dessa necessidade real. Gramsci, falecido há mais de 70 anos, tem muitos a nos dizer. A “eficiência real” de sua teoria parece-nos um desafio que se coloca de forma urgente para a “eficiência real” das lutas de classes no Brasil.

32 - A “eficiência real”: apontamentos de Gramsci para uma história/concepção dos partidos políticos

W

Walter Benjamin contra a história progressiva

1Carlos Prado

alter Benjamin é dos mais destacados autores da chamada Teoria Crítica da escola frankfurtiana. Durante as décadas de 1920 e 1930, desenvolveu diversos trabalhos importantes sobre a literatura romântica alemã, arte, cultura, política, história, etc. Sua obra não pode ser compreendida se afastada do período histórico em que foi produzida, pois reflete a busca de explicações para as angústias de um tempo alarmante. Na Alemanha, Benjamin viu de perto a catástrofe da guerra e do pós-guerra, o fracasso da República de Weimar, a imobilidade do movimento comunista alemão, a ascensão de Hitler ao poder e o início da segunda guerra. Não obstante, não se pode afirmar que sua obra esteja desatualizada, pois, é no alvorecer do século XXI que se torna a cada dia mais necessário e urgente, a análise e compreensão dos estudos de Benjamin. Mais precisamente seus estudos sobre história.

As teses Sobre o conceito de história de Benjamin, escritas em 1940, durante o exílio e meses antes do seu suicídio, representam uma das mais importantes críticas à história do progresso. O pensamento de Benjamin se distancia das correntes predominantes em seu tempo. Critica as doutrinas progressistas da burguesia e a imobilidade da socialdemocracia alemã, bem como do movimento comunista internacional orientado pela burocracia stalinista. Benjamin destaca que o progresso não levará a nenhuma revolução ou a paz social, mas pelo contrário, a marcha do progresso, ou a locomotiva da história, se não for interceptada, seguirá em direção ao abismo. A barbárie e o fascismo do século XX representam claramente o abismo para o qual caminha o progresso.

2Segundo Löwy , a filosofia de Benjamin se apóia em três fontes fundamentais e muito diferentes, até contraditórias. Em primeiro lugar, existe uma forte influência do romantismo alemão que aparece como uma crítica à civilização moderna, buscando resgatar valores pré-modernos. Em segundo lugar, aparece a influência latente do messianismo judaico. Conceitos teológicos como o de redenção (Erlösung), estão muito presentes e aparecem no centro da filosofia da história

1Mestre em Filosofia pela UNIOESTE campus de Toledo.2Ver LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 17.

3“É necessário precisar que esse documento não se destinava à publicação. Benjamin o deu ou enviou a alguns amigos muito próximos – Hannah Arendt, Theodor W. Adorno – mas insistia, na carta a Gretel Adorno, que não era o caso de publicá-lo, porque isso “abriria as portas para a incompreensão entusiasta”. LÖWY, Michael. Op. cit., p. 34.

de Benjamin. Por fim, surge a referência ao marxismo e ao materialismo histórico. Trata-se aqui, não de um marxismo oficial, dogmático, vinculado ao stalinismo ou à socialdemocracia, mas de um marxismo inclassificável e original.

Benjamin entrou em contato com o marxismo apenas a partir de 1924, mediante a leitura da obra de Lukács, Consciência e luta de classe. Desde então, sua produção tornou-se fortemente influenciada pelo materialismo histórico. Encontramos na obra de Benjamin múltiplas referências a Marx. Citações de textos como O Capital, O Manifesto Comunista e Crítica ao Programa de Gotha são freqüentes. Do pensamento marxista do século XX, Benjamin também terá influências da obra de Karl Korsch e Trotsky. Não obstante, Benjamin não pode ser considerado um marxista “puro”. Sua obra é repleta de outras referências e rotulá-lo simplesmente como marxista seria um reducionismo que não corresponderia verdadeiramente ao conteúdo de sua produção.

As teses sobre o conceito de história surgiram em um momento particular, durante o auge do totalitarismo na Europa, logo após a eclosão da segunda grande guerra. Não foram escritas para serem

3publicadas, não se trata de um trabalho acadêmico . Suas teses se parecem muito mais com um grande desabafo e um alerta desesperado contra o progresso da história. Ao criticar a filosofia do progresso, Benjamin não ataca apenas a filosofia hegeliana, o positivismo e o historicismo que são diretamente vinculados ao pensamento conservador e tradicional. Suas teses também atacam de frente o marxismo vulgar, naturalista e evolucionista da socialdemocracia e do stalinismo.

Repleta de metáforas, analogias, e com passagens de difícil compreensão, as teses soam como uma grande crítica a história progressista e seus ideólogos. O recente livro de Michael Löwy, Walter Benjamin: aviso de incêndio, é um dos principais

História & Luta de Classes, Nº 9 - Junho de 2010 (33-39) - 33

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Dessa forma, para um Partido ter uma vida durável, mesmo em condições adversas, seria necessário a relação entre três elementos da vida partidária:

1) Um elemento difuso comum, de homens comuns, médios, cuja participação é dada pela disciplina e pela fidelidade, não pelo espírito criativo e altamente organizativo. [Que] sem eles o partido não existiria, é verdade, mas também é verdade que o partido não existiria 'somente' com eles(...). 2) O elemento de coesão principal, que centraliza no campo nacional, (...) este elemento é dotado de força al tamente coesiva, central izadora e disciplinadora e também (ou melhor, talvez por isso mesmo) inventiva (...). Também é verdade que, por si só, este elemento não formaria o partido, mas poderia servir para formulá-lo mais do que o primeiro(...) 3) um elemento médio, que articule o primeiro com o segundo elemento que os ponha não só em contato

21físico, mas moral e intelectual .

A diferenciação de elementos no partido não deve ser concebida como estrutural, nem como uma espécie de funcionalismo hierárquico das posições, de funções, ou de prestígio. O elemento médio (3) teria, no partido pensado por Gramsci, a principal função na manutenção da vida do partido. Além de ser o elemento que, em processo contínuo de exercício da política, da prática militante, adquire representatividade e maturidade intelectual para fazer-se dirigente (elemento 2). Este também é o elemento que põe em contato as atividades formuladas teoricamente no partido com as “paixões” das massas, elevando a sua consciência e proporcionando uma expansão do elemento médio entre as massas. Este é o principio básico da vida – interna e externa ao mesmo tempo – de

22um partido para Gramsci .

A teoria gramsciana permite aos historiadores analisar como se estabelece a relação entre o partido e a classe, seus intelectuais e a massa da população. A dinâmica do partido é sempre pensada como organização em sentido amplo e não, simplesmente, como entidade administrativa. No caso de um partido de trabalhadores, socialista ou revolucionário, trata-se de verificar que tipo de organicidade interna predomina, como o partido formula e difunde seus componentes programáticos, como age no sentido da reprodução tanto de suas modalidades organizativas quanto de sua ideologia entre seus integrantes, assim como na sua difusão mais ampla, com o objetivo de expandir-se (aglutinar em torno de si mais setores populares) e de constituir uma efetiva visão de mundo comum aos diversos setores populares. Caso tal aglutinação não ocorra, a vida partidária se internaliza e a “eficiência real” fica comprometida.

21Idem. vol. 03. 2000. p. 316-317.22Idem.

Conclusão

Podemos perceber que a forma de narrar a vida de um partido político, para o intelectual italiano, está diretamente vinculada a sua concepção de partido: democrático, de massa, mas sem se recusar a formar seus quadros de vanguarda, aliás, vindos da massa da população, não burocrático nem autoritário e com um papel de destaque nas lutas dos subalternizados. Esse era o partido que ele queria para dirigir as lutas do proletariado, e a sua metodologia de estudo avassala qualquer tipo de falsa pretensão formal de colocar-se, historicamente, no lugar dessa necessidade real. Gramsci, falecido há mais de 70 anos, tem muitos a nos dizer. A “eficiência real” de sua teoria parece-nos um desafio que se coloca de forma urgente para a “eficiência real” das lutas de classes no Brasil.

32 - A “eficiência real”: apontamentos de Gramsci para uma história/concepção dos partidos políticos

W

Walter Benjamin contra a história progressiva

1Carlos Prado

alter Benjamin é dos mais destacados autores da chamada Teoria Crítica da escola frankfurtiana. Durante as décadas de 1920 e 1930, desenvolveu diversos trabalhos importantes sobre a literatura romântica alemã, arte, cultura, política, história, etc. Sua obra não pode ser compreendida se afastada do período histórico em que foi produzida, pois reflete a busca de explicações para as angústias de um tempo alarmante. Na Alemanha, Benjamin viu de perto a catástrofe da guerra e do pós-guerra, o fracasso da República de Weimar, a imobilidade do movimento comunista alemão, a ascensão de Hitler ao poder e o início da segunda guerra. Não obstante, não se pode afirmar que sua obra esteja desatualizada, pois, é no alvorecer do século XXI que se torna a cada dia mais necessário e urgente, a análise e compreensão dos estudos de Benjamin. Mais precisamente seus estudos sobre história.

As teses Sobre o conceito de história de Benjamin, escritas em 1940, durante o exílio e meses antes do seu suicídio, representam uma das mais importantes críticas à história do progresso. O pensamento de Benjamin se distancia das correntes predominantes em seu tempo. Critica as doutrinas progressistas da burguesia e a imobilidade da socialdemocracia alemã, bem como do movimento comunista internacional orientado pela burocracia stalinista. Benjamin destaca que o progresso não levará a nenhuma revolução ou a paz social, mas pelo contrário, a marcha do progresso, ou a locomotiva da história, se não for interceptada, seguirá em direção ao abismo. A barbárie e o fascismo do século XX representam claramente o abismo para o qual caminha o progresso.

2Segundo Löwy , a filosofia de Benjamin se apóia em três fontes fundamentais e muito diferentes, até contraditórias. Em primeiro lugar, existe uma forte influência do romantismo alemão que aparece como uma crítica à civilização moderna, buscando resgatar valores pré-modernos. Em segundo lugar, aparece a influência latente do messianismo judaico. Conceitos teológicos como o de redenção (Erlösung), estão muito presentes e aparecem no centro da filosofia da história

1Mestre em Filosofia pela UNIOESTE campus de Toledo.2Ver LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 17.

3“É necessário precisar que esse documento não se destinava à publicação. Benjamin o deu ou enviou a alguns amigos muito próximos – Hannah Arendt, Theodor W. Adorno – mas insistia, na carta a Gretel Adorno, que não era o caso de publicá-lo, porque isso “abriria as portas para a incompreensão entusiasta”. LÖWY, Michael. Op. cit., p. 34.

de Benjamin. Por fim, surge a referência ao marxismo e ao materialismo histórico. Trata-se aqui, não de um marxismo oficial, dogmático, vinculado ao stalinismo ou à socialdemocracia, mas de um marxismo inclassificável e original.

Benjamin entrou em contato com o marxismo apenas a partir de 1924, mediante a leitura da obra de Lukács, Consciência e luta de classe. Desde então, sua produção tornou-se fortemente influenciada pelo materialismo histórico. Encontramos na obra de Benjamin múltiplas referências a Marx. Citações de textos como O Capital, O Manifesto Comunista e Crítica ao Programa de Gotha são freqüentes. Do pensamento marxista do século XX, Benjamin também terá influências da obra de Karl Korsch e Trotsky. Não obstante, Benjamin não pode ser considerado um marxista “puro”. Sua obra é repleta de outras referências e rotulá-lo simplesmente como marxista seria um reducionismo que não corresponderia verdadeiramente ao conteúdo de sua produção.

As teses sobre o conceito de história surgiram em um momento particular, durante o auge do totalitarismo na Europa, logo após a eclosão da segunda grande guerra. Não foram escritas para serem

3publicadas, não se trata de um trabalho acadêmico . Suas teses se parecem muito mais com um grande desabafo e um alerta desesperado contra o progresso da história. Ao criticar a filosofia do progresso, Benjamin não ataca apenas a filosofia hegeliana, o positivismo e o historicismo que são diretamente vinculados ao pensamento conservador e tradicional. Suas teses também atacam de frente o marxismo vulgar, naturalista e evolucionista da socialdemocracia e do stalinismo.

Repleta de metáforas, analogias, e com passagens de difícil compreensão, as teses soam como uma grande crítica a história progressista e seus ideólogos. O recente livro de Michael Löwy, Walter Benjamin: aviso de incêndio, é um dos principais

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trabalhos sobre as teses publicados em português, e constitui uma importante referência para se alcançar uma melhor compreensão das “difíceis” teses sobre o conceito de história de Benjamin.

O objetivo do presente artigo é demonstrar a crítica que Benjamin desenvolve à história progressista e determinista. Para tanto, destacaremos as teses de Benjamin como uma ruptura com as teorias do progresso, enfatizando sua importante crítica às teorias da socialdemocracia e do stalinismo. Por fim, evidenciaremos como a história aparece aberta para Benjamin, sem rastros de inevitabilidade.

Teses contra o progresso

As teses Sobre o conceito de história de Benjamin, expressam a opinião de um filósofo que em 1940 nadava contra a corrente, via seus pesadelos tornando realidade e buscava então, lançar um último alerta contra uma catástrofe iminente. Entre as XVIII teses, várias vertentes historiográficas são criticadas e repudiadas por Benjamin, que busca elaborar um novo conceito de história, a partir das classes oprimidas e derrotadas, numa crítica direta à história linear e progressiva.

Na tese I, Benjamin lança a metáfora do autômato jogador de xadrez. Segundo a história de Edgard Allan Poe, havia um boneco vestido em trajes turcos que jogava xadrez e vencia qualquer adversário. Mas, embaixo do tabuleiro que estava em frente à marionete, estava um anão, mestre na arte de jogar xadrez. Era o anão que conduzia o boneco e despertava a ilusão de que a marionete era conduzida por um espírito superior e que, portanto, era invencível.

O objetivo de Benjamin ao lançar essa metáfora é claramente criticar a socialdemocracia e o stalinismo que teriam transformado o marxismo em um autômato, ou seja, em algo mecanizado, programado para realizar o que foi pré-estabelecido. Benjamin diz: “O boneco 'materialismo histórico' deve

4ganhar sempre” . O marxismo vulgar havia transformado o socialismo em vencedor, antes mesmo da partida. Sua vitória aparecia como inevitável e era em direção a ela que a história caminhava. Está era a concepção predominante entre a esquerda no período

5entre guerras .

4BENJAMIN, apud Löwy. Op. cit., p. 41.5“Os principais porta-vozes do marxismo de sua época, isto é, os ideólogos da II e da III Internacional. Aos olhos de Benjamin, o materialismo histórico torna-se efetivamente, nas mãos desses porta-vozes, um método quer percebe a história como um tipo de máquina que conduz 'automaticamente' ao triunfo do socialismo. Para esse materialismo mecânico, o desenvolvimento das forças produtivas, o progresso econômico e as 'leis da história' levam necessariamente à crise final do capitalismo e à vitória do proletariado (versão comunista) ou às reformas que transformarão gradualmente a

sociedade (versão socialdemocrata)” BENJAMIN, apud Löwy. Op. cit., p. 41.6Afirma Bernstein que “a luta sindical e a luta política pelas reformas trarão um controle social cada vez mais vasto das condições de produção” e, “por meio da legislação, rebaixarão cada vez mais o proprietário do capital, com a diminuição de seus direitos, ao papel de simples administrador”, até que finalmente, um belo dia, “a direção e administração da exploração sejam tiradas das mãos do capitalista, domesticado ao ver sua propriedade ir perdendo cada vez mais qualquer valor pra ele próprio”. BERNSTEIN, apud LUXEMBURGO, Rosa. Reforma ou revolução? 3 ed. São Paulo: Expressão Popular, 2003, p.41.7“Os revisionistas pediam à Internacional socialista que abandonasse os slogans revolucionários vazios e que se colocasse no terreno das realidades factuais, que buscasse resultados práticos no terreno da democracia burguesa. [...] Acreditavam na possibilidade de um progresso lento e pacífico.” ROSENBERG, Arthur. Democracia e socialismo. São Paulo: Global, 1986, p. 286 – 287.

Vejamos brevemente, as características fundamentais das concepções históricas desenvolvidas pela socialdemocracia e pelo stalinismo, pois é justamente contra essas concepções que Benjamin desenvolve algumas de suas teses.

Já no século XX, a socialdemocracia alemã foi fortemente influenciada por uma concepção evolucionista da história. Um dos principais teóricos dessa concepção foi Bernstein que acreditava na necessidade de uma revisão em importantes concepções do marxismo. O teórico alemão dizia que o a socialdemocracia devia deixar de ser o partido da revolução social, para tornar-se o partido da reforma social. Tal concepção reformista foi bem expostas no livro As premissas para o socialismo e as tarefas da socialdemocracia.

Bernstein forjou uma estratégia reformista que partia do princípio de que o capitalismo havia se tornado um sistema cada vez mais organizado e capaz de se adaptar as suas próprias contradições. Esse “capitalismo organizado” se tornou capaz de regular o mercado e evitar as crises mediante o sistema de crédito, o desenvolvimento dos meios de comunicação e as organizações patronais. Por conseguinte, o capitalismo poderia se desenvolver e ser capaz de absolver as demandas dos trabalhadores, elevando suas condições de vida até a socialização da produção e instauração do socialismo.

Nessa perspectiva a tarefa do partido e dos sindicatos seria a de mobilizar suas forças para questões práticas e de necessidade imediata, tais como a elevação do nível de vida dos trabalhadores,

6melhores condições de trabalho e aumentos salariais . Esse “realismo político” buscava integrar o movimento operário à ordem capitalista, buscando a ascensão dos trabalhadores no interior do próprio

7capitalismo .

Rosa Luxemburgo sistematizou as concepções

de Bernstein na seguinte passagem:

Para a sua luta prática, decorre, a conclusão geral de que não deve a socialdemocracia dirigir a sua atividade no sentido da conquista do poder político, mas da melhoria da situação da classe operária, e da instituição do socialismo, não como consequência de uma crise social e política, mas por meio da extensão progressiva do controle social e

8aplicação gradual do princípio da cooperação .

Para Bernstein o desenvolvimento do próprio capitalismo é a condição necessária para o socialismo. Rosa acrescenta que tais concepções revisionistas “transformaram o socialismo, de 'ideal' sonhado pela humanidade há milhares de anos, em necessidade

9histórica.”

As teorias de Bernstein foram expostas em 1899 e a princípio foram duramente criticadas e derrotadas dentro do partido, mas a partir de 1914, quando a socialdemocracia votou a favor da alocação de recursos, pelo Estado alemão para deflagração da Primeira Guerra Mundial, a política reformista acabou ganhando força e se consolidou após 1919, quando Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht foram assassinados.

O stalinismo, por sua vez, também desenvolveu uma teoria progressista da história. Stalin forjou um esquema dogmático do desenvolvimento unilinear dos modos de produção na história. Segundo esse esquema os modos de produção; comunidade primitiva, escravagista, feudal, capitalista, socialista e comunista, aparecem na história de maneira encadeada. Trata-se de uma forma seqüencial, ou seja, da evolução necessária de um para outro.

No livro Sobre o materialismo histórico e o materialismo dialético, Stalin expõe claramente esse esquema: “A história”, diz ele “reconhece cinco tipos fundamentais de relações de produção: o comunismo primitivo, a escravidão, o feudalismo, o capitalismo e

10o socialismo” . Na sequência do texto Stalin expõe brevemente as características desses cinco modos de produção e a idéia de necessidade na passagem de um para outro fica bem clara no seguinte trecho: “o regime do comunismo primitivo foi substituído precisamente pelo regime da escravidão, o regime escravista pelo regime feudal e este pelo burguês e não por qualquer

11outro” .

Stalin além de suprimir o modo de produção asiático, apresenta uma noção progressiva e evolucionista da história mediante a ligação

8LUXEMBURGO, Op. cit., p. 22.9Idem. p. 69.10STALIN, apud Benoit, H. A luta de classes como fundamento da história. In: TOLEDO, Caio Navarro de, (Org.). Ensaios sobre o manifesto comunista. São Paulo: Xamã, 1998, p. 50. 11Idem. p. 51).

sequencial-evolutiva entre estes cinco modos de produção apresentados. Da mesma forma que Hegel, o stalinismo compreende o desenvolvimento histórico como progressivo e evolucionista, que supera etapas

12necessárias gradualmente . Para o stalinismo a história aparece como uma continuidade linear progressiva, uma justaposição estática.

A orientação política do stalinismo se baseava no pressuposto de que não se poderiam pular etapas do desenvolvimento histórico e que o socialismo inevitavelmente superaria o capitalismo. Assim surgiu a teoria da revolução em etapas, na qual o socialismo só poderia triunfar após o desenvolvimento máximo do capitalismo, ou seja, das forças produtivas. A teoria da revolução por etapas afirmava que antes de se lutar pelo socialismo, a tarefa do partido era a de lutar ao lado da burguesia e dos setores ditos progressistas contra os resquícios feudais e pelo desenvolvimento capitalista.

É fundamentalmente contra essas duas correntes que Benjamin lança as suas teses sobre o conceito de história. É sob esse cenário, no qual predominava a fé na razão e no progresso da história, que Benjamin busca combater a ideologia do progresso e convocando os homens oprimidos para lutarem. A luta seria travada contra o próprio progresso, pois, ao contrário dessas teses progressistas, Benjamin afirma que o resultado do progresso não é o socialismo, nem a revolução, mas a barbárie, a catástrofe e o fascismo.

Ainda na primeira tese, Benjamin lança a relação paradoxal entre o marxismo e a teologia: “Ele [materialismo histórico] pode medir-se, sem mais, com qualquer adversário, desde que tome a seu serviço a

13teologia” . Para Benjamin o materialismo só poderia vencer se unisse forças com a teologia. O socialismo só poderia triunfar se tomar a seu serviço o espírito messiânico da teologia que aparece aqui na forma dos conceitos de redenção (Erlösung) e de rememoração (Eingedenken). Essa tese de Benjamin surge como uma percussora da Teologia da Libertação que foi muito difundida na América Latina desde a década de 1970, tendo como seus teóricos Henrique Dussel, Leonardo

12Hegel determina que a conscientização e objetivação da liberdade é o nexo racional que governa a história universal. O progresso na consciência da liberdade é fio condutor das transformações históricas, das ações e acontecimentos que pareciam estar desconexos. Segundo Hegel: “há muito que as mudanças que ocorrem na história são caracterizadas igualmente como um progresso para o melhor, o mais perfeito”. HEGEL, G. W. F. Filosofia da história. Brasília: UNB, 1995. p. 53. As grandes civilizações representam estágios necessários que o espírito precisou ultrapassar para o homem adquirir a consciência de que é livre e transformar essa consciência, ainda subjetiva em realidade. Analisando o devir histórico, Hegel percebeu que o curso da história universal é fundamentalmente progressivo, ou seja, o espírito racional que governa e se revela na história traz em si, a noção de progresso. 13BENJAMIN, apud Löwy. Op. cit., p. 41.

34 - Walter Benjamin contra a história progressiva História & Luta de Classes, Nº 9 - Junho de 2010 (33-39) - 35

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trabalhos sobre as teses publicados em português, e constitui uma importante referência para se alcançar uma melhor compreensão das “difíceis” teses sobre o conceito de história de Benjamin.

O objetivo do presente artigo é demonstrar a crítica que Benjamin desenvolve à história progressista e determinista. Para tanto, destacaremos as teses de Benjamin como uma ruptura com as teorias do progresso, enfatizando sua importante crítica às teorias da socialdemocracia e do stalinismo. Por fim, evidenciaremos como a história aparece aberta para Benjamin, sem rastros de inevitabilidade.

Teses contra o progresso

As teses Sobre o conceito de história de Benjamin, expressam a opinião de um filósofo que em 1940 nadava contra a corrente, via seus pesadelos tornando realidade e buscava então, lançar um último alerta contra uma catástrofe iminente. Entre as XVIII teses, várias vertentes historiográficas são criticadas e repudiadas por Benjamin, que busca elaborar um novo conceito de história, a partir das classes oprimidas e derrotadas, numa crítica direta à história linear e progressiva.

Na tese I, Benjamin lança a metáfora do autômato jogador de xadrez. Segundo a história de Edgard Allan Poe, havia um boneco vestido em trajes turcos que jogava xadrez e vencia qualquer adversário. Mas, embaixo do tabuleiro que estava em frente à marionete, estava um anão, mestre na arte de jogar xadrez. Era o anão que conduzia o boneco e despertava a ilusão de que a marionete era conduzida por um espírito superior e que, portanto, era invencível.

O objetivo de Benjamin ao lançar essa metáfora é claramente criticar a socialdemocracia e o stalinismo que teriam transformado o marxismo em um autômato, ou seja, em algo mecanizado, programado para realizar o que foi pré-estabelecido. Benjamin diz: “O boneco 'materialismo histórico' deve

4ganhar sempre” . O marxismo vulgar havia transformado o socialismo em vencedor, antes mesmo da partida. Sua vitória aparecia como inevitável e era em direção a ela que a história caminhava. Está era a concepção predominante entre a esquerda no período

5entre guerras .

4BENJAMIN, apud Löwy. Op. cit., p. 41.5“Os principais porta-vozes do marxismo de sua época, isto é, os ideólogos da II e da III Internacional. Aos olhos de Benjamin, o materialismo histórico torna-se efetivamente, nas mãos desses porta-vozes, um método quer percebe a história como um tipo de máquina que conduz 'automaticamente' ao triunfo do socialismo. Para esse materialismo mecânico, o desenvolvimento das forças produtivas, o progresso econômico e as 'leis da história' levam necessariamente à crise final do capitalismo e à vitória do proletariado (versão comunista) ou às reformas que transformarão gradualmente a

sociedade (versão socialdemocrata)” BENJAMIN, apud Löwy. Op. cit., p. 41.6Afirma Bernstein que “a luta sindical e a luta política pelas reformas trarão um controle social cada vez mais vasto das condições de produção” e, “por meio da legislação, rebaixarão cada vez mais o proprietário do capital, com a diminuição de seus direitos, ao papel de simples administrador”, até que finalmente, um belo dia, “a direção e administração da exploração sejam tiradas das mãos do capitalista, domesticado ao ver sua propriedade ir perdendo cada vez mais qualquer valor pra ele próprio”. BERNSTEIN, apud LUXEMBURGO, Rosa. Reforma ou revolução? 3 ed. São Paulo: Expressão Popular, 2003, p.41.7“Os revisionistas pediam à Internacional socialista que abandonasse os slogans revolucionários vazios e que se colocasse no terreno das realidades factuais, que buscasse resultados práticos no terreno da democracia burguesa. [...] Acreditavam na possibilidade de um progresso lento e pacífico.” ROSENBERG, Arthur. Democracia e socialismo. São Paulo: Global, 1986, p. 286 – 287.

Vejamos brevemente, as características fundamentais das concepções históricas desenvolvidas pela socialdemocracia e pelo stalinismo, pois é justamente contra essas concepções que Benjamin desenvolve algumas de suas teses.

Já no século XX, a socialdemocracia alemã foi fortemente influenciada por uma concepção evolucionista da história. Um dos principais teóricos dessa concepção foi Bernstein que acreditava na necessidade de uma revisão em importantes concepções do marxismo. O teórico alemão dizia que o a socialdemocracia devia deixar de ser o partido da revolução social, para tornar-se o partido da reforma social. Tal concepção reformista foi bem expostas no livro As premissas para o socialismo e as tarefas da socialdemocracia.

Bernstein forjou uma estratégia reformista que partia do princípio de que o capitalismo havia se tornado um sistema cada vez mais organizado e capaz de se adaptar as suas próprias contradições. Esse “capitalismo organizado” se tornou capaz de regular o mercado e evitar as crises mediante o sistema de crédito, o desenvolvimento dos meios de comunicação e as organizações patronais. Por conseguinte, o capitalismo poderia se desenvolver e ser capaz de absolver as demandas dos trabalhadores, elevando suas condições de vida até a socialização da produção e instauração do socialismo.

Nessa perspectiva a tarefa do partido e dos sindicatos seria a de mobilizar suas forças para questões práticas e de necessidade imediata, tais como a elevação do nível de vida dos trabalhadores,

6melhores condições de trabalho e aumentos salariais . Esse “realismo político” buscava integrar o movimento operário à ordem capitalista, buscando a ascensão dos trabalhadores no interior do próprio

7capitalismo .

Rosa Luxemburgo sistematizou as concepções

de Bernstein na seguinte passagem:

Para a sua luta prática, decorre, a conclusão geral de que não deve a socialdemocracia dirigir a sua atividade no sentido da conquista do poder político, mas da melhoria da situação da classe operária, e da instituição do socialismo, não como consequência de uma crise social e política, mas por meio da extensão progressiva do controle social e

8aplicação gradual do princípio da cooperação .

Para Bernstein o desenvolvimento do próprio capitalismo é a condição necessária para o socialismo. Rosa acrescenta que tais concepções revisionistas “transformaram o socialismo, de 'ideal' sonhado pela humanidade há milhares de anos, em necessidade

9histórica.”

As teorias de Bernstein foram expostas em 1899 e a princípio foram duramente criticadas e derrotadas dentro do partido, mas a partir de 1914, quando a socialdemocracia votou a favor da alocação de recursos, pelo Estado alemão para deflagração da Primeira Guerra Mundial, a política reformista acabou ganhando força e se consolidou após 1919, quando Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht foram assassinados.

O stalinismo, por sua vez, também desenvolveu uma teoria progressista da história. Stalin forjou um esquema dogmático do desenvolvimento unilinear dos modos de produção na história. Segundo esse esquema os modos de produção; comunidade primitiva, escravagista, feudal, capitalista, socialista e comunista, aparecem na história de maneira encadeada. Trata-se de uma forma seqüencial, ou seja, da evolução necessária de um para outro.

No livro Sobre o materialismo histórico e o materialismo dialético, Stalin expõe claramente esse esquema: “A história”, diz ele “reconhece cinco tipos fundamentais de relações de produção: o comunismo primitivo, a escravidão, o feudalismo, o capitalismo e

10o socialismo” . Na sequência do texto Stalin expõe brevemente as características desses cinco modos de produção e a idéia de necessidade na passagem de um para outro fica bem clara no seguinte trecho: “o regime do comunismo primitivo foi substituído precisamente pelo regime da escravidão, o regime escravista pelo regime feudal e este pelo burguês e não por qualquer

11outro” .

Stalin além de suprimir o modo de produção asiático, apresenta uma noção progressiva e evolucionista da história mediante a ligação

8LUXEMBURGO, Op. cit., p. 22.9Idem. p. 69.10STALIN, apud Benoit, H. A luta de classes como fundamento da história. In: TOLEDO, Caio Navarro de, (Org.). Ensaios sobre o manifesto comunista. São Paulo: Xamã, 1998, p. 50. 11Idem. p. 51).

sequencial-evolutiva entre estes cinco modos de produção apresentados. Da mesma forma que Hegel, o stalinismo compreende o desenvolvimento histórico como progressivo e evolucionista, que supera etapas

12necessárias gradualmente . Para o stalinismo a história aparece como uma continuidade linear progressiva, uma justaposição estática.

A orientação política do stalinismo se baseava no pressuposto de que não se poderiam pular etapas do desenvolvimento histórico e que o socialismo inevitavelmente superaria o capitalismo. Assim surgiu a teoria da revolução em etapas, na qual o socialismo só poderia triunfar após o desenvolvimento máximo do capitalismo, ou seja, das forças produtivas. A teoria da revolução por etapas afirmava que antes de se lutar pelo socialismo, a tarefa do partido era a de lutar ao lado da burguesia e dos setores ditos progressistas contra os resquícios feudais e pelo desenvolvimento capitalista.

É fundamentalmente contra essas duas correntes que Benjamin lança as suas teses sobre o conceito de história. É sob esse cenário, no qual predominava a fé na razão e no progresso da história, que Benjamin busca combater a ideologia do progresso e convocando os homens oprimidos para lutarem. A luta seria travada contra o próprio progresso, pois, ao contrário dessas teses progressistas, Benjamin afirma que o resultado do progresso não é o socialismo, nem a revolução, mas a barbárie, a catástrofe e o fascismo.

Ainda na primeira tese, Benjamin lança a relação paradoxal entre o marxismo e a teologia: “Ele [materialismo histórico] pode medir-se, sem mais, com qualquer adversário, desde que tome a seu serviço a

13teologia” . Para Benjamin o materialismo só poderia vencer se unisse forças com a teologia. O socialismo só poderia triunfar se tomar a seu serviço o espírito messiânico da teologia que aparece aqui na forma dos conceitos de redenção (Erlösung) e de rememoração (Eingedenken). Essa tese de Benjamin surge como uma percussora da Teologia da Libertação que foi muito difundida na América Latina desde a década de 1970, tendo como seus teóricos Henrique Dussel, Leonardo

12Hegel determina que a conscientização e objetivação da liberdade é o nexo racional que governa a história universal. O progresso na consciência da liberdade é fio condutor das transformações históricas, das ações e acontecimentos que pareciam estar desconexos. Segundo Hegel: “há muito que as mudanças que ocorrem na história são caracterizadas igualmente como um progresso para o melhor, o mais perfeito”. HEGEL, G. W. F. Filosofia da história. Brasília: UNB, 1995. p. 53. As grandes civilizações representam estágios necessários que o espírito precisou ultrapassar para o homem adquirir a consciência de que é livre e transformar essa consciência, ainda subjetiva em realidade. Analisando o devir histórico, Hegel percebeu que o curso da história universal é fundamentalmente progressivo, ou seja, o espírito racional que governa e se revela na história traz em si, a noção de progresso. 13BENJAMIN, apud Löwy. Op. cit., p. 41.

34 - Walter Benjamin contra a história progressiva História & Luta de Classes, Nº 9 - Junho de 2010 (33-39) - 35

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Boff, entre outros. Mas não nos prenderemos à análise dessa relação complexa entre o marxismo e a teologia. Nosso objetivo é a crítica que Benjamin lança à teoria da história progressista.

Nas teses II e III, o centro da argumentação de Benjamin são os conceitos teológicos da redenção e da

14rememoração . Já na tese IV entra em pauta a luta de classes e a interpretação histórica dessas lutas. Benjamin afirma que é “A luta de classes, que um historiador escolado em Marx tem sempre diante dos olhos” e acrescenta que a classe oprimida se vencedora, colocará “em questão cada vitória que

15couber aos dominantes” . Para Hegel a história é um percurso pré-determinado, em que a liberdade vai aflorando e se tornando cada vez mais completa. Seguindo essa mesma lógica, o marxismo vulgar, concebe que a história vem avançando em direção ao socialismo mediante uma série de vitórias das classes oprimidas, que cada vez mais, conseguem ampliar sua liberdade. Contra essa teoria evolucionista, Benjamin não encontra na história uma acumulação de vitórias ou de conquistas das classes oprimidas, mas apenas uma seqüência ininterrupta de vitórias das classes dominantes.

Löwy afirma que para Benjamin: “a história parece uma sucessão de vitórias dos poderosos. [...] Contra visão evolucionista da história como acumulação de 'conquistas', como 'progresso' para cada vez mais liberdade, racionalidade ou civilização, ele a percebe de 'baixo', do lado dos vencidos, como

16uma série de vitórias das classes reinantes” . Para Benjamin, a história traz consigo um acúmulo de derrotas das classes subordinadas. A exploração e repressão tem sido a tônica da história. A última frase da tese VI, exclama claramente: “E esse inimigo não

17tem cessado de vencer” .

Da escravidão, passando pelo sistema servil, e alcançando as relações capitalistas de produção, apenas se transformou a forma sob a qual uma classe é subjugada e explorada. Em todos esses momentos as classes oprimidas foram derrotadas e dominadas. As possíveis vitórias ou conquistas das classes oprimidas, não passam de migalhas ou concessões que as classes dominantes oferecem para que possam manter sua

14“Benjamin não se deixa seduzir nem por um futuro utópico, como o da visão progressiva do marxismo, nem pela idéia de um paraíso perdido, como na visão religiosa, mas apresenta o presente como momento-chave em que seria possível romper a linearidade do fluxo contínuo e recuperar o passado detectando afinidades entre o presente e esse passado distante. [...] Trata-se de mostrar que o passado não passou, ou melhor: não se perdeu e que ele está à espera de sua 'redenção'.” OTTE, G. VOLPE, M. L. Um olhar constelar sobre o pensamento de Walter Benjamin. Fragmentos. n. 18, jan./jun. 2000, p. 42.15BENJAMIN, apud Löwy. Op. cit., p. 58.16LÖWY, Michael. Op. cit., p. 60.17BENJAMIN, apud Löwy. Op. cit., p. 62.

dominação. Dessa forma, se compreende que para Benjamin, a lógica da dominação nunca foi alterada em sua essência. Contrariando a visão progressista e otimista, surge aqui uma visão pessimista da história.

Nas teses V e VI e VII, a crítica se direciona contra o historicismo e o positivismo que adotam uma atitude contemplativa da história. Benjamin questiona a chamada história “neutra” e afirma que tal concepção apenas reproduz a história dos grandes reis e imperadores, forjando uma visão histórica a partir dos vencedores. “Com quem, afinal, propriamente o historiador do Historicismo se identif ica afetivamente? A resposta é, inegavelmente: com o

18vencedor” , afirma Benjamin. Tal historiografia apenas confirma e reproduz a visão progressista da história, realçando grandes eventos, grandes feitos e

19conquistas . Contra essa história servil, a proposta é a “história a contrapelo”, oposta a visão dos vencedores. Trata-se de escrever a história no sentido contrário, uma história a partir de baixo, dos oprimidos e

20vencidos .

A tese VIII é uma das mais importantes. Nessas poucas linhas, Benjamin expõe de maneira ainda mais concreta sua crítica ao progresso, revelando a associação deste à barbárie e ao fascismo. Segundo Benjamin: “A tradição dos oprimidos nos ensina que o

21'estado de exceção' no qual vivemos é a regra” . Essa abertura da teses é muito clara, ao afirmar que o estado de exceção não é propriamente uma exceção, mas ao contrário, esta seria a regra para os oprimidos. Se a história a partir dos vencedores coloca a liberdade e o progresso como regra e norma histórica. Uma visão da história a partir de baixo, partindo da visão dos oprimidos, revela que a violência, a opressão, a dominação não são exceções, mas a regra.

Mais adiante, Benjamin crítica as concepções evolucionistas, pois essas teorias que tratam o

18Idem. p. 70.19“A defesa de Benjamin do método do materialismo histórico, na sétima tese de “Sobre o conceito de história”, faz parte de um combate mais amplo contra os influxos melancólicos como causadores de resignação e paralisação do agir, atributos típicos do método do historiador tradicional, que estabelece uma relação de empatia com os vencedores da história”. LAGES, S. K. Walter Benjamin: Tradução e melancolia. São Paulo: Edusp, 2002, p. 131.20“Portanto, coloca-se como uma tarefa para o historiador, segundo Benjamin, 'pentear a história a contrapelo' (tese 7), trazer à tona novas identidades, fazer uma outra leitura dos documentos, colocar possibilidades novas de diálogos entre presente e passado, romper não apenas com a historiografia burguesa, como também com a historiografia 'progressista' da social-democracia, o que, em última análise, significaria romper com a concepção mecanicista e linear da história”. TURINI, L. A. A crítica da história linear e da idéia de progresso: um diálogo com Walter Benjamin e Edward Thompson. Educação e Filosofia. V. 18. n. 35/36 – jan./dez. 2004, p. 110.21BENJAMIN, apud Löwy. Op. cit., p. 83.

22“progresso como se este fosse norma histórica” , não conseguem explicar o fascismo. Ora, se a história como concebeu Hegel, avança sempre em direção ao progresso e a realização de uma maior liberdade, como se pode explicar o surgimento dos Estados totalitários na Itália e na Alemanha em pleno século XX? Essa é uma tarefa que os crentes no progresso só poderiam explicam como sendo um acidente, um desvio, uma exceção, uma regressão inexplicável.

Inspirados pelas concepções progressistas, a esquerda não conseguia explicar a ascensão do fascismo em países como a Itália e Alemanha. Para a socialdemocracia o fascismo era anacrônico e representava um vestígio do passado, era pré-moderno e não cabia na sociedade capitalista desenvolvida. Da mesma forma o stalinismo, afirmava que o fascismo alemão seria um fenômeno passageiro e não conseguiria sobreviver na moderna sociedade alemã. As concepções progressistas não conseguiam explicar a ascensão do fascismo, pois este não cabia na moderna sociedade capitalista do século XX. Entre esses teóricos, o Espanto com a ascensão e crescimento do fascismo foi geral.

Benjamin observa que: “O espanto em constatar que os acontecimentos que vivemos ainda sejam possíveis no século XX não é nenhum espanto filosófico. Ele não está no início de um conhecimento, a menos que seja o de mostrar que a representação histórica donde provém aquele espanto é

23insustentável” . Para Benjamin o fascismo não proporcionava nenhum espanto. Apenas os teóricos presos numa ideologia progressista poderiam ficar surpresos e perplexos diante do totalitarismo fascista. Para Benjamin que compreende a história como um estado de exceção permanente, repleto de exploração e violência, o fascismo não era nada contraditório ou incompreensível, pois significava apenas a mais nova forma de manifestação da violência da luta de classes, sua expressão mais recente e brutal.

Segundo Löwy, “Benjamin compreendeu perfeitamente a modernidade do fascismo, sua relação íntima com a sociedade industrial/capitalista contemporânea”, e acrescenta que “Somente uma concepção sem ilusões progressistas pode dar conta de um fenômeno como o fascismo, profundamente enraizado no 'progresso' industrial e técnico moderno que, em última análise, não era possível senão no

24século XX ” .

Para Benjamin o progresso tecnológico não era estranho ou contraditório ao totalitarismo fascista, pelo contrário, aquela sociedade violenta e intolerante era o próprio resultado do progresso industrial moderno.

22Idem.23Idem.24LÖWY. Op. cit., p. 85.

Essa concepção expressa nas teses Sobre o conceito de história é uma das mais importantes contribuições de Benjamin. Ao contrário dos filósofos da Aufklärung progressistas e evolucionistas, Benjamin foi capaz de perceber que o progresso técnico não é acompanhado por progressos ou transformações essenciais nas relações sociais. A tecnologia não fará desaparecer a violência, a exploração e a dominação, mas apenas lhe dará novas expressões, novas formas. Nessa perspectiva, o fascismo é apenas mais uma forma de dominação, ainda mais brutal, mas que não traz nada de novo

25fundamentalmente .

A socialdemocracia e o stalinismo, crentes no progresso acreditavam que apenas em seu aspecto positivo. Presos a essa concepção mecânica e determinista não foram capazes de perceber o aspecto negativo do desenvolvimento tecnológico. O marxismo vulgar ignorou e foi incapaz de compreender a força destruidora da técnica.

Benjamin, pelo contrário, foi capaz de distinguir o progresso da técnica e o progresso da própria humanidade, ou seja, das próprias relações sociais de produção. Os avanços no setor do c o n h e c i m e n t o n ã o e r a m a c o m p a n h a d o s simultaneamente por avanços nas relações sociais. Para Benjamin, era evidente que o desenvolvimento das forças produtivas por si só, não produzia mais liberdade, mais racionalidade. Se a socialdemocracia e o stalinismo percebiam o avanço da técnica e das relações sociais como homogêneas, Benjamin destacava que esse desenvolvimento poderia ser heterogêneo. Quer dizer que avanços científicos poderiam sim, ser acompanhadas e produzir regressões no interior das relações sociais, econômicas e

26políticas . O desenvolvimento das forças produtivas anda de mãos dadas como capitalismo e a potência destruidora dessa técnica, aparece claramente na exploração da natureza e nas armas de destruição da indústria militar. Esse aspecto negativo impulsiona a

25“Trata-se de uma nova forma de ler a história. O totalitarismo e a barbárie não mais são vistos como adversários da Aufklärung, mas seus legítimos herdeiros. [...] O conceito de Razão, que só poderia ser posto em questão pela tradição do irracionalismo, é agora questionado de uma forma dialética por autores que se pretendem partidários de uma Aufklärung auto-reflexiva”. PERIUS, O. Esclarecimento e Dialética Negativa: sobre a negatividade do conceito em Theodor W.Adorno. Passo Fundo: Editora Ifibe, 2008, p. 50.26“A grande questão que se colocava, então, é que o desenvolvimento considerável das forças produtivas, a racionalização do trabalho, a introdução de novas técnicas na economia, a industrialização, não signif icaram automaticamente o alívio do fardo do trabalhador. Ao contrário, a exploração intensificou-se e o caráter mecânico, uniforme, vazio, repetitivo do trabalho disseminou-se para outras esferas do social. E isto que o marxismo vulgar, segundo Benjamin, seduzido pelo progresso técnico, não conseguiu enxergar”. TURINI, L. A. Op. cit., p. 113.

36 - Walter Benjamin contra a história progressiva História & Luta de Classes, Nº 9 - Junho de 2010 (33-39) - 37

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Boff, entre outros. Mas não nos prenderemos à análise dessa relação complexa entre o marxismo e a teologia. Nosso objetivo é a crítica que Benjamin lança à teoria da história progressista.

Nas teses II e III, o centro da argumentação de Benjamin são os conceitos teológicos da redenção e da

14rememoração . Já na tese IV entra em pauta a luta de classes e a interpretação histórica dessas lutas. Benjamin afirma que é “A luta de classes, que um historiador escolado em Marx tem sempre diante dos olhos” e acrescenta que a classe oprimida se vencedora, colocará “em questão cada vitória que

15couber aos dominantes” . Para Hegel a história é um percurso pré-determinado, em que a liberdade vai aflorando e se tornando cada vez mais completa. Seguindo essa mesma lógica, o marxismo vulgar, concebe que a história vem avançando em direção ao socialismo mediante uma série de vitórias das classes oprimidas, que cada vez mais, conseguem ampliar sua liberdade. Contra essa teoria evolucionista, Benjamin não encontra na história uma acumulação de vitórias ou de conquistas das classes oprimidas, mas apenas uma seqüência ininterrupta de vitórias das classes dominantes.

Löwy afirma que para Benjamin: “a história parece uma sucessão de vitórias dos poderosos. [...] Contra visão evolucionista da história como acumulação de 'conquistas', como 'progresso' para cada vez mais liberdade, racionalidade ou civilização, ele a percebe de 'baixo', do lado dos vencidos, como

16uma série de vitórias das classes reinantes” . Para Benjamin, a história traz consigo um acúmulo de derrotas das classes subordinadas. A exploração e repressão tem sido a tônica da história. A última frase da tese VI, exclama claramente: “E esse inimigo não

17tem cessado de vencer” .

Da escravidão, passando pelo sistema servil, e alcançando as relações capitalistas de produção, apenas se transformou a forma sob a qual uma classe é subjugada e explorada. Em todos esses momentos as classes oprimidas foram derrotadas e dominadas. As possíveis vitórias ou conquistas das classes oprimidas, não passam de migalhas ou concessões que as classes dominantes oferecem para que possam manter sua

14“Benjamin não se deixa seduzir nem por um futuro utópico, como o da visão progressiva do marxismo, nem pela idéia de um paraíso perdido, como na visão religiosa, mas apresenta o presente como momento-chave em que seria possível romper a linearidade do fluxo contínuo e recuperar o passado detectando afinidades entre o presente e esse passado distante. [...] Trata-se de mostrar que o passado não passou, ou melhor: não se perdeu e que ele está à espera de sua 'redenção'.” OTTE, G. VOLPE, M. L. Um olhar constelar sobre o pensamento de Walter Benjamin. Fragmentos. n. 18, jan./jun. 2000, p. 42.15BENJAMIN, apud Löwy. Op. cit., p. 58.16LÖWY, Michael. Op. cit., p. 60.17BENJAMIN, apud Löwy. Op. cit., p. 62.

dominação. Dessa forma, se compreende que para Benjamin, a lógica da dominação nunca foi alterada em sua essência. Contrariando a visão progressista e otimista, surge aqui uma visão pessimista da história.

Nas teses V e VI e VII, a crítica se direciona contra o historicismo e o positivismo que adotam uma atitude contemplativa da história. Benjamin questiona a chamada história “neutra” e afirma que tal concepção apenas reproduz a história dos grandes reis e imperadores, forjando uma visão histórica a partir dos vencedores. “Com quem, afinal, propriamente o historiador do Historicismo se identif ica afetivamente? A resposta é, inegavelmente: com o

18vencedor” , afirma Benjamin. Tal historiografia apenas confirma e reproduz a visão progressista da história, realçando grandes eventos, grandes feitos e

19conquistas . Contra essa história servil, a proposta é a “história a contrapelo”, oposta a visão dos vencedores. Trata-se de escrever a história no sentido contrário, uma história a partir de baixo, dos oprimidos e

20vencidos .

A tese VIII é uma das mais importantes. Nessas poucas linhas, Benjamin expõe de maneira ainda mais concreta sua crítica ao progresso, revelando a associação deste à barbárie e ao fascismo. Segundo Benjamin: “A tradição dos oprimidos nos ensina que o

21'estado de exceção' no qual vivemos é a regra” . Essa abertura da teses é muito clara, ao afirmar que o estado de exceção não é propriamente uma exceção, mas ao contrário, esta seria a regra para os oprimidos. Se a história a partir dos vencedores coloca a liberdade e o progresso como regra e norma histórica. Uma visão da história a partir de baixo, partindo da visão dos oprimidos, revela que a violência, a opressão, a dominação não são exceções, mas a regra.

Mais adiante, Benjamin crítica as concepções evolucionistas, pois essas teorias que tratam o

18Idem. p. 70.19“A defesa de Benjamin do método do materialismo histórico, na sétima tese de “Sobre o conceito de história”, faz parte de um combate mais amplo contra os influxos melancólicos como causadores de resignação e paralisação do agir, atributos típicos do método do historiador tradicional, que estabelece uma relação de empatia com os vencedores da história”. LAGES, S. K. Walter Benjamin: Tradução e melancolia. São Paulo: Edusp, 2002, p. 131.20“Portanto, coloca-se como uma tarefa para o historiador, segundo Benjamin, 'pentear a história a contrapelo' (tese 7), trazer à tona novas identidades, fazer uma outra leitura dos documentos, colocar possibilidades novas de diálogos entre presente e passado, romper não apenas com a historiografia burguesa, como também com a historiografia 'progressista' da social-democracia, o que, em última análise, significaria romper com a concepção mecanicista e linear da história”. TURINI, L. A. A crítica da história linear e da idéia de progresso: um diálogo com Walter Benjamin e Edward Thompson. Educação e Filosofia. V. 18. n. 35/36 – jan./dez. 2004, p. 110.21BENJAMIN, apud Löwy. Op. cit., p. 83.

22“progresso como se este fosse norma histórica” , não conseguem explicar o fascismo. Ora, se a história como concebeu Hegel, avança sempre em direção ao progresso e a realização de uma maior liberdade, como se pode explicar o surgimento dos Estados totalitários na Itália e na Alemanha em pleno século XX? Essa é uma tarefa que os crentes no progresso só poderiam explicam como sendo um acidente, um desvio, uma exceção, uma regressão inexplicável.

Inspirados pelas concepções progressistas, a esquerda não conseguia explicar a ascensão do fascismo em países como a Itália e Alemanha. Para a socialdemocracia o fascismo era anacrônico e representava um vestígio do passado, era pré-moderno e não cabia na sociedade capitalista desenvolvida. Da mesma forma o stalinismo, afirmava que o fascismo alemão seria um fenômeno passageiro e não conseguiria sobreviver na moderna sociedade alemã. As concepções progressistas não conseguiam explicar a ascensão do fascismo, pois este não cabia na moderna sociedade capitalista do século XX. Entre esses teóricos, o Espanto com a ascensão e crescimento do fascismo foi geral.

Benjamin observa que: “O espanto em constatar que os acontecimentos que vivemos ainda sejam possíveis no século XX não é nenhum espanto filosófico. Ele não está no início de um conhecimento, a menos que seja o de mostrar que a representação histórica donde provém aquele espanto é

23insustentável” . Para Benjamin o fascismo não proporcionava nenhum espanto. Apenas os teóricos presos numa ideologia progressista poderiam ficar surpresos e perplexos diante do totalitarismo fascista. Para Benjamin que compreende a história como um estado de exceção permanente, repleto de exploração e violência, o fascismo não era nada contraditório ou incompreensível, pois significava apenas a mais nova forma de manifestação da violência da luta de classes, sua expressão mais recente e brutal.

Segundo Löwy, “Benjamin compreendeu perfeitamente a modernidade do fascismo, sua relação íntima com a sociedade industrial/capitalista contemporânea”, e acrescenta que “Somente uma concepção sem ilusões progressistas pode dar conta de um fenômeno como o fascismo, profundamente enraizado no 'progresso' industrial e técnico moderno que, em última análise, não era possível senão no

24século XX ” .

Para Benjamin o progresso tecnológico não era estranho ou contraditório ao totalitarismo fascista, pelo contrário, aquela sociedade violenta e intolerante era o próprio resultado do progresso industrial moderno.

22Idem.23Idem.24LÖWY. Op. cit., p. 85.

Essa concepção expressa nas teses Sobre o conceito de história é uma das mais importantes contribuições de Benjamin. Ao contrário dos filósofos da Aufklärung progressistas e evolucionistas, Benjamin foi capaz de perceber que o progresso técnico não é acompanhado por progressos ou transformações essenciais nas relações sociais. A tecnologia não fará desaparecer a violência, a exploração e a dominação, mas apenas lhe dará novas expressões, novas formas. Nessa perspectiva, o fascismo é apenas mais uma forma de dominação, ainda mais brutal, mas que não traz nada de novo

25fundamentalmente .

A socialdemocracia e o stalinismo, crentes no progresso acreditavam que apenas em seu aspecto positivo. Presos a essa concepção mecânica e determinista não foram capazes de perceber o aspecto negativo do desenvolvimento tecnológico. O marxismo vulgar ignorou e foi incapaz de compreender a força destruidora da técnica.

Benjamin, pelo contrário, foi capaz de distinguir o progresso da técnica e o progresso da própria humanidade, ou seja, das próprias relações sociais de produção. Os avanços no setor do c o n h e c i m e n t o n ã o e r a m a c o m p a n h a d o s simultaneamente por avanços nas relações sociais. Para Benjamin, era evidente que o desenvolvimento das forças produtivas por si só, não produzia mais liberdade, mais racionalidade. Se a socialdemocracia e o stalinismo percebiam o avanço da técnica e das relações sociais como homogêneas, Benjamin destacava que esse desenvolvimento poderia ser heterogêneo. Quer dizer que avanços científicos poderiam sim, ser acompanhadas e produzir regressões no interior das relações sociais, econômicas e

26políticas . O desenvolvimento das forças produtivas anda de mãos dadas como capitalismo e a potência destruidora dessa técnica, aparece claramente na exploração da natureza e nas armas de destruição da indústria militar. Esse aspecto negativo impulsiona a

25“Trata-se de uma nova forma de ler a história. O totalitarismo e a barbárie não mais são vistos como adversários da Aufklärung, mas seus legítimos herdeiros. [...] O conceito de Razão, que só poderia ser posto em questão pela tradição do irracionalismo, é agora questionado de uma forma dialética por autores que se pretendem partidários de uma Aufklärung auto-reflexiva”. PERIUS, O. Esclarecimento e Dialética Negativa: sobre a negatividade do conceito em Theodor W.Adorno. Passo Fundo: Editora Ifibe, 2008, p. 50.26“A grande questão que se colocava, então, é que o desenvolvimento considerável das forças produtivas, a racionalização do trabalho, a introdução de novas técnicas na economia, a industrialização, não signif icaram automaticamente o alívio do fardo do trabalhador. Ao contrário, a exploração intensificou-se e o caráter mecânico, uniforme, vazio, repetitivo do trabalho disseminou-se para outras esferas do social. E isto que o marxismo vulgar, segundo Benjamin, seduzido pelo progresso técnico, não conseguiu enxergar”. TURINI, L. A. Op. cit., p. 113.

36 - Walter Benjamin contra a história progressiva História & Luta de Classes, Nº 9 - Junho de 2010 (33-39) - 37

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sociedade não para o socialismo, mas para a barbárie e a catástrofe.

A tese número IX é complementar a sua precedente, desenvolvendo a mesma temática. Negando qualquer perspectiva de progresso, Benjamin afirma que o “Anjo” da história “tem seu rosto voltado para o passado. Onde uma cadeia de eventos aparece diante de nós, ele enxerga uma única catástrofe, que sem cessar amontoa escombros sobre escombros e os

27arremessa a seus pés” . Essa passagem deixa claro que para Benjamin, a história tem sido a eterna repetição do mesmo, ou seja, um acúmulo de opressão e derrotas sobre as classes oprimidas. Não há progresso para as classes derrotadas, mas apenas diferentes formas de

28serem exploradas e dominadas .

A história é um amontoado de escombros, uma única catástrofe. É dessa forma, que Benjamin manifesta o seu pessimismo histórico. O progresso não está vinculado à noção de maior liberdade ou de racionalidade, mas a catástrofe. É nesse sentido que Benjamin afirma: “O que nós chamamos de progresso é essa tempestade”, e acrescenta: “Essa tempestade o impele [o anjo da história] irresistivelmente para o futuro”. Aqui o conceito de progresso está baseado na idéia de catástrofe. Portanto, Benjamin não é otimista como os evolucionistas progressistas, mas pessimista e compreende que a história seguindo o seu curso “natural” não desembocará na revolução ou no socialismo, mas sim, na barbárie, ou seja, em novas formas de catástrofes, das quais o fascismo é uma expressão.

O pessimismo de Benjamin é revolucionário no sentido em que cumpre o papel de orientar as classes oprimidas em direção à revolução. Ao afirmar que o progresso da história não trará o socialismo, mas sim, a catástrofe, o pessimismo de Benjamin convoca as classes oprimidas para a ação revolucionária. Löwy afirma que se trata de “um pessimismo ativo, 'organizado', prático, voltado inteiramente para o objetivo de impedir, por todos os meios possíveis, o

29advento do pior” .

Por isso, o tema central das teses XIV e XV é a descontinuidade ou interrupção da história. Benjamin afirma que: “A consciência de fazer explodir o contínuo da história é própria das classes

30revolucionárias no instante de sua ação” . Não se trata de esperar que um curso pré-determinado se complete,

27BENJAMIN, apud Löwy. Op. cit., p. 87.28“[...] segundo a descrição de Benjamin na nona tese: os despojos dos vencidos correspondem às ruínas e aos mortos que se acumulam diante do olhar aterrorizado do anjo da história. A morte é o fio condutor de toda a história construída a partir do triunfo dos poderosos”. LAGES, S. K. Op. cit., p. 132. 29LÖWY, Michael. Op. cit., p. 24.30BENJAMIN, apud Löwy. Op. cit., p. 123.

mas pelo contrário, se trata de interromper o curso da história, de impedir a continuidade das catástrofes e realizar o socialismo. Nesse sentido, não se trata de acelerar o trem da história, mas de obstruir o seu curso e impedir que ele viaje até cair no abismo. A revolução aparece como uma descontinuidade do tempo

31histórico . Trata-se de quebrar o contínuo da opressão.

Essa concepção que Benjamin forja sobre a revolução como uma interrupção, ruptura do tempo histórico é fundamental, pois estabelece mais um grande rompimento com as teorias progressistas, evolucionistas e naturalistas da história. Benjamin está nadando contra a corrente e bate de frente com as concepções ditas marxistas da época. Isso até explica em parte por que suas teses só passaram a despertar interesse na década de 1960.

A revolução aparece na tese XV como o resultado de uma “ação” das classes revolucionárias e não como a simples continuidade do processo histórico. Benjamin parte do pressuposto de que o capitalismo não morrerá de morte natural, ele precisará ser morto. Dessa forma, a revolução e a luta revolucionária são colocadas na ordem do dia. Não se trata de esperar por ela, mas de realizá-la com suas próprias mãos. É preciso interromper pela ação a continuidade dos triunfos da classe dominante. É preciso interromper a locomotiva histórica que avança

32em direção ao abismo .

C o m p l e m e n t a n d o e s s a c o n c e p ç ã o revolucionária, a tese XVIIa afirma que: “Na realidade, não há um só instante que não carregue

33consigo a sua chance revolucionária” . Essa passagem é clara ao afirmar que a revolução pode ser dada a qualquer instante. Para o marxismo vulgar, trata-se de esperar que as condições estejam maduras suficientes para que o socialismo desponte no horizonte como resultado de um processo inevitável e natural. Essa postura da socialdemocracia e do stalinismo semeou o comodismo e o conformismo dentro do movimento operário, que vivia numa eterna espera pelo amadurecimento das condições objetivas.

As teses de Benjamin aparecem diretamente

31“Nesta nova compreensão de história os elos conceituais responsáveis por dar sentido à história são eliminados. Os próprios tempos históricos se interconectam. Trata-se de um empírico interconectado. Elimina-se, assim, a teleologia hegeliana”. PERIUS, O. Op. cit., p. 51–5232“Dessa forma, a tarefa é pensar a história como descontinuidade. A força messiânica que habita a história é a força dos próprios agentes históricos, dos homens concretos. Não há mais uma teleologia no sentido hegeliano, pois a história não transcorre racionalmente. Isto é um engano da historiografia quando conta a história a partir dos vencedores. Benjamin, ao contrário, resgata uma história dos vencidos, das esperanças, dos sonhos, dos sofrimentos daqueles que foram derrotados”. PERIUS, O. Op. cit., p. 53.33BENJAMIN, apud Löwy. Op. cit., p. 134.

para criticar o comodismo dessas teses progressista, ele afirma que a revolução é resultado da ação revolucionária e essa ação é uma tarefa para o agora, para todo o instante. Não se trata de esperar que o progresso produza por si só, a situação revolucionária e o socialismo, mas pelo contrário, trata-se de aproveitar cada momento histórico, pois cada instante carrega potencialidades revolucionárias. Essa tese estabelece mais uma importante ruptura com a postura da III Internacional burocratizada, que vivia da paciência, da calma e do imobilismo, numa eterna espera pela situação revolucionária, pelo amadurecimento das condições. Se o marxismo stalinista havia se tornado um bloqueio para a revolução, as teses de Benjamin significavam uma nova faísca que poderia fazer explodir a continuidade histórica, revolucionando-a.

A história aberta

As teses Sobre o conceito de história de Benjamin constituem um texto de difícil compreensão, repleto de alegorias e metáforas, mas que traz em seu interior um conteúdo revolucionário. Revolucionário no sentido em que estabeleceu um importante rompimento com as teses da esquerda stalinista. A compreensão histórica de Benjamin apareceu como uma alternativa e um alerta contra o imobilismo e conformismo da esquerda mundial no período entre guerras.

Estabelecendo uma ruptura com as teorias progressistas e naturalistas da história, que pareciam mais influenciadas por Hegel do que por Marx, Benjamin colocou a luta de classes no centro do processo histórico novamente. Para Benjamin a história está aberta, não existe nada pré-determinado. A história não aparece como uma teodicéia, na qual a revolução e o socialismo são concebidos como o resultado inevitável. Pelo contrário, a revolução aparece como a ruptura de um processo histórico que acumula apenas derrotas para as classes oprimidas.

Nessa perspectiva, o pensamento de Benjamin parece retomar as teorias de Marx, justamente onde a socialdemocracia e o stalinismo o teriam abandonado, ou seja, retomando a luta de classes e a colocando no centro do desenvolvimento histórico. Segundo a nossa interpretação, tanto em Marx, como em Benjamin, a revolução não aparece como resultado de um processo determinado e naturalista, mas como resultado da luta de classes, da ação revolucionária, da práxis, da intervenção na história.

O chamado socialismo vulgar buscou criar leis progressistas para o desenvolvimento histórico e acabou por aproximar o marxismo das teorias de Hegel, afastando-se das teses do próprio Marx. Benjamin, recuperando as teses de um Marx que foi esquecido e abandonado pela social-democracia e pelo stalinismo coloca a luta de classes, como o alfa e o

Omega do processo histórico. Assim, a história aparece como resultado da ação de homens, ação das classes organizadas e em luta. A história aparece aberta e será produzida pelos homens que se enfrentaram no tempo histórico em uma luta que não podemos prever antecipadamente seus resultados. A história em Benjamin não se encontra fechada e determinada, mas aberta e à espera da ação revolucionária para transformá-la e impedir que ela siga um curso em direção a catástrofe e ao aniquilamento.

38 - Walter Benjamin contra a história progressiva História & Luta de Classes, Nº 9 - Junho de 2010 (33-39) - 39

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sociedade não para o socialismo, mas para a barbárie e a catástrofe.

A tese número IX é complementar a sua precedente, desenvolvendo a mesma temática. Negando qualquer perspectiva de progresso, Benjamin afirma que o “Anjo” da história “tem seu rosto voltado para o passado. Onde uma cadeia de eventos aparece diante de nós, ele enxerga uma única catástrofe, que sem cessar amontoa escombros sobre escombros e os

27arremessa a seus pés” . Essa passagem deixa claro que para Benjamin, a história tem sido a eterna repetição do mesmo, ou seja, um acúmulo de opressão e derrotas sobre as classes oprimidas. Não há progresso para as classes derrotadas, mas apenas diferentes formas de

28serem exploradas e dominadas .

A história é um amontoado de escombros, uma única catástrofe. É dessa forma, que Benjamin manifesta o seu pessimismo histórico. O progresso não está vinculado à noção de maior liberdade ou de racionalidade, mas a catástrofe. É nesse sentido que Benjamin afirma: “O que nós chamamos de progresso é essa tempestade”, e acrescenta: “Essa tempestade o impele [o anjo da história] irresistivelmente para o futuro”. Aqui o conceito de progresso está baseado na idéia de catástrofe. Portanto, Benjamin não é otimista como os evolucionistas progressistas, mas pessimista e compreende que a história seguindo o seu curso “natural” não desembocará na revolução ou no socialismo, mas sim, na barbárie, ou seja, em novas formas de catástrofes, das quais o fascismo é uma expressão.

O pessimismo de Benjamin é revolucionário no sentido em que cumpre o papel de orientar as classes oprimidas em direção à revolução. Ao afirmar que o progresso da história não trará o socialismo, mas sim, a catástrofe, o pessimismo de Benjamin convoca as classes oprimidas para a ação revolucionária. Löwy afirma que se trata de “um pessimismo ativo, 'organizado', prático, voltado inteiramente para o objetivo de impedir, por todos os meios possíveis, o

29advento do pior” .

Por isso, o tema central das teses XIV e XV é a descontinuidade ou interrupção da história. Benjamin afirma que: “A consciência de fazer explodir o contínuo da história é própria das classes

30revolucionárias no instante de sua ação” . Não se trata de esperar que um curso pré-determinado se complete,

27BENJAMIN, apud Löwy. Op. cit., p. 87.28“[...] segundo a descrição de Benjamin na nona tese: os despojos dos vencidos correspondem às ruínas e aos mortos que se acumulam diante do olhar aterrorizado do anjo da história. A morte é o fio condutor de toda a história construída a partir do triunfo dos poderosos”. LAGES, S. K. Op. cit., p. 132. 29LÖWY, Michael. Op. cit., p. 24.30BENJAMIN, apud Löwy. Op. cit., p. 123.

mas pelo contrário, se trata de interromper o curso da história, de impedir a continuidade das catástrofes e realizar o socialismo. Nesse sentido, não se trata de acelerar o trem da história, mas de obstruir o seu curso e impedir que ele viaje até cair no abismo. A revolução aparece como uma descontinuidade do tempo

31histórico . Trata-se de quebrar o contínuo da opressão.

Essa concepção que Benjamin forja sobre a revolução como uma interrupção, ruptura do tempo histórico é fundamental, pois estabelece mais um grande rompimento com as teorias progressistas, evolucionistas e naturalistas da história. Benjamin está nadando contra a corrente e bate de frente com as concepções ditas marxistas da época. Isso até explica em parte por que suas teses só passaram a despertar interesse na década de 1960.

A revolução aparece na tese XV como o resultado de uma “ação” das classes revolucionárias e não como a simples continuidade do processo histórico. Benjamin parte do pressuposto de que o capitalismo não morrerá de morte natural, ele precisará ser morto. Dessa forma, a revolução e a luta revolucionária são colocadas na ordem do dia. Não se trata de esperar por ela, mas de realizá-la com suas próprias mãos. É preciso interromper pela ação a continuidade dos triunfos da classe dominante. É preciso interromper a locomotiva histórica que avança

32em direção ao abismo .

C o m p l e m e n t a n d o e s s a c o n c e p ç ã o revolucionária, a tese XVIIa afirma que: “Na realidade, não há um só instante que não carregue

33consigo a sua chance revolucionária” . Essa passagem é clara ao afirmar que a revolução pode ser dada a qualquer instante. Para o marxismo vulgar, trata-se de esperar que as condições estejam maduras suficientes para que o socialismo desponte no horizonte como resultado de um processo inevitável e natural. Essa postura da socialdemocracia e do stalinismo semeou o comodismo e o conformismo dentro do movimento operário, que vivia numa eterna espera pelo amadurecimento das condições objetivas.

As teses de Benjamin aparecem diretamente

31“Nesta nova compreensão de história os elos conceituais responsáveis por dar sentido à história são eliminados. Os próprios tempos históricos se interconectam. Trata-se de um empírico interconectado. Elimina-se, assim, a teleologia hegeliana”. PERIUS, O. Op. cit., p. 51–5232“Dessa forma, a tarefa é pensar a história como descontinuidade. A força messiânica que habita a história é a força dos próprios agentes históricos, dos homens concretos. Não há mais uma teleologia no sentido hegeliano, pois a história não transcorre racionalmente. Isto é um engano da historiografia quando conta a história a partir dos vencedores. Benjamin, ao contrário, resgata uma história dos vencidos, das esperanças, dos sonhos, dos sofrimentos daqueles que foram derrotados”. PERIUS, O. Op. cit., p. 53.33BENJAMIN, apud Löwy. Op. cit., p. 134.

para criticar o comodismo dessas teses progressista, ele afirma que a revolução é resultado da ação revolucionária e essa ação é uma tarefa para o agora, para todo o instante. Não se trata de esperar que o progresso produza por si só, a situação revolucionária e o socialismo, mas pelo contrário, trata-se de aproveitar cada momento histórico, pois cada instante carrega potencialidades revolucionárias. Essa tese estabelece mais uma importante ruptura com a postura da III Internacional burocratizada, que vivia da paciência, da calma e do imobilismo, numa eterna espera pela situação revolucionária, pelo amadurecimento das condições. Se o marxismo stalinista havia se tornado um bloqueio para a revolução, as teses de Benjamin significavam uma nova faísca que poderia fazer explodir a continuidade histórica, revolucionando-a.

A história aberta

As teses Sobre o conceito de história de Benjamin constituem um texto de difícil compreensão, repleto de alegorias e metáforas, mas que traz em seu interior um conteúdo revolucionário. Revolucionário no sentido em que estabeleceu um importante rompimento com as teses da esquerda stalinista. A compreensão histórica de Benjamin apareceu como uma alternativa e um alerta contra o imobilismo e conformismo da esquerda mundial no período entre guerras.

Estabelecendo uma ruptura com as teorias progressistas e naturalistas da história, que pareciam mais influenciadas por Hegel do que por Marx, Benjamin colocou a luta de classes no centro do processo histórico novamente. Para Benjamin a história está aberta, não existe nada pré-determinado. A história não aparece como uma teodicéia, na qual a revolução e o socialismo são concebidos como o resultado inevitável. Pelo contrário, a revolução aparece como a ruptura de um processo histórico que acumula apenas derrotas para as classes oprimidas.

Nessa perspectiva, o pensamento de Benjamin parece retomar as teorias de Marx, justamente onde a socialdemocracia e o stalinismo o teriam abandonado, ou seja, retomando a luta de classes e a colocando no centro do desenvolvimento histórico. Segundo a nossa interpretação, tanto em Marx, como em Benjamin, a revolução não aparece como resultado de um processo determinado e naturalista, mas como resultado da luta de classes, da ação revolucionária, da práxis, da intervenção na história.

O chamado socialismo vulgar buscou criar leis progressistas para o desenvolvimento histórico e acabou por aproximar o marxismo das teorias de Hegel, afastando-se das teses do próprio Marx. Benjamin, recuperando as teses de um Marx que foi esquecido e abandonado pela social-democracia e pelo stalinismo coloca a luta de classes, como o alfa e o

Omega do processo histórico. Assim, a história aparece como resultado da ação de homens, ação das classes organizadas e em luta. A história aparece aberta e será produzida pelos homens que se enfrentaram no tempo histórico em uma luta que não podemos prever antecipadamente seus resultados. A história em Benjamin não se encontra fechada e determinada, mas aberta e à espera da ação revolucionária para transformá-la e impedir que ela siga um curso em direção a catástrofe e ao aniquilamento.

38 - Walter Benjamin contra a história progressiva História & Luta de Classes, Nº 9 - Junho de 2010 (33-39) - 39

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A

POLÊMICALöwy-Callinicos: um debate importante

troca de opiniões entre Michael Lowy e Alex Callinicos teve como ponto de partida uma 1resenha de Löwy sobre o livro Theories and narratives: reflections on the philosophy of history . Os

dois textos foram publicados originalmente na revista Critique Communiste (França) número 149, verão (europeu) de 1997. Embora o livro de Alex Callinicos não tenha sido publicado no Brasil, consideramos ser este um debate de grande importância. A tradução foi feita por Rui Kureda, a partir

2da versão em espanhol publicada na revista Herramienta número 6 . Rui Kureda gentilmente disponibilizou a tradução e a revista Herramienta autorizou a publicação em nossa História & Luta de Classes.

Para além da pertinência óbvia do debate para o tema desta edição de História & Luta de Classes, nosso intuito é ressaltar algumas características deixadas à sombra e que destoam de uma vida universitária dominada por pressões oportunistas, carreiristas e pragmáticas. O campo do marxismo, longe de uma formulação unívoca, é área de intensos debates teóricos. Debates rigorosos e severos, mas realizados entre companheiros: o que se busca não é o prêmio institucional ou um trunfo para uma carreira, mas burilar os elementos teóricos para a melhor compreensão dos complexos processos históricos, desafio fundamental dos historiadores. Compreender a história sob a qual vivemos não se resume a uma tarefa profissional e burocrática, mas pode envolver a abertura de questões sutis, em torno de temas teóricos e que envolvem a plena compreensão dos elementos empíricos. Essa vivacidade, presente no debate que apresentamos, responde a um atributo fundamental do marxismo para pensarmos os eixos teóricos e históricos contemporâneos.

1CALLINICOS, Alex. Theories and narratives: Reflections on the philosophy of history, Cambridge, Polity Press, 1995, 252 p.2 Löwy-Call inicos: un debate importante. Revista Herramienta n.6.Marzo de 1998. Disponível em http://www.herramienta.com.ar/revista-herramienta-n-6/loewy-callinicos-un-debate-importante

T

Compreender (os horrores de) a história

1Por Michael Löwy

40 - Löwy-Callinicos: um debate importante História & Luta de Classes, Nº 9 - Junho de 2010 (41-43) - 41

emos aqui um notável trabalho de erudição, impressionante por sua amplitude, seu rigor, a clareza de exposição e a coerência do pensamento. Não se trata de uma exposição sistemática, mas antes de um conjunto de ensaios finamente cinzelados, que abordam diferentes dimensões do debate contemporâneo sobre a teoria da história. Seu objetivo unificador constitui uma vigorosa defesa do materialismo histórico, frente a seus principais adversários ou concorrentes.

O mais conhecido deles - o que não quer dizer o mais sério - é, certamente, o célebre Fukuyama. A resposta evidente a esta estranha mescla de pseudo-hegelianismo(segundo a (des)interpretação de Kojeve), de pessimismo spengeleniano ("o fim da luta e do idealismo") e de triunfalismo reaganiano, é mostrar a realidade política do pós-guerra fria: o retorno dos ódios nacionais fratricidas e o ascenso do fascismo; uma realidade que faz aparecer não uma visão do fim da história, mas da história como repetição sem fim de desastres, "uma catástrofe única que acumula derrota após derrota", segundo as palavras de Walter Benjamin.

Ao contrário da maioria dos críticos de esquerda de Fukuyama, Callinicos não cai na armadilha de aceitar como um fato estabelecido o suposto "fracasso do socialismo" em 1990-1991. A recusa a considerar a URSS e a Europa do leste como "socialistas" (ele se inclina pelo conceito de "capitalismo burocrático de Estado" de Tony Cliff) lhe permite desafiar essa pseudo-evidência.

Próxima à de Fukuyama, a concepção da história mais conhecida na universidade anglo-saxônica atualmente é a do pós-estruturalismo.

1Michael Löwy é um intelectual marxista residente na França e pertence ao Secretariado Unificado da Quarta Internacional. Nasceu no Brasil em 1938. Foi professor universitário em diversas cidades como Jerusalém, Manchester, México, Havana, São Paulo e Paris, onde vive desde 1969. Entre suas obras podem ser mencionadas: A teoria da revolução no jovem Marx, Dialética e Revolução, O pensamento de Che Guevara, Para uma sociologia dos intelectuais revolucionários: a evolução política de Lukács (todas editadas em castelhano por Siglo XXI). Recentemente foi publicado na Argentina Redenção e Uttopia. El judaísmo libertario en Europa central. Un estudio de afinidad Electiva. (Buenos Aires: El Cielo por Asalto, 1997).

Callinicos nos propõe uma desconstrução radical do "relativismo irônico" pós-estruturalista representado por Lyotard e Hayden White, utilizando como ácido de prova o Holocausto. Fiel à sua filosofia da linguagem "pluralista" (quer dizer relativista), Lyotard proclama que não é possível demonstrar que os historiadores "revisionistas" que negam o genocídio (Faurisson e companhia) não respeitem "as regras cognitivas do estabelecimento da realidade histórica":

É impossível subsumir discursos irredutíveis em um mesmo grande relato explicativo. O conflito entre Faurisson e os historiadores anti-revisionistas é um exemplo de "discrepância" entre diferentes "regimes lingüísticos" que não pode ser superado posto que "(...) já não existe mais um tipo de discurso universal que os regule".

O comentário de Callinicos é duro, mas justo: talvez Lyotard queira que tomemos a sério seu argumento, "(...) mas é difícil imaginar como poderíamos fazê-lo."

Como pode fazer concessões aos revisionistas sobre esta questão histórica? O fato de que ignore o vasto esforço de compreensão do Holocausto (de autores como Primo Lévi, Raul Hilberg, Zigmunt Baumann, Arno Meyer) é "(...) um sintoma de engolosinamento pelas palavras e de amor por paradoxos superficiais, uma degeneração demasiado freqüente nestes dias de pós-estruturalismo."

Contra este tipo de "confusão desesperante", as teorias históricas marxistas e weberianas representam tentativas sérias de responder os problemas da compreensão da realidade histórica, analisando as estruturas e mecanismos de sua transformação e suas orientações. Algumas formulações de Callinicos sugerem uma afinidade com o "marxismo estruturalista" (Althusser, G.A. Cohen) e sua ênfase sufocante na "contradição entre as forças produtivas e as relações de produção".

Mas, felizmente, se distancia desta versão empobrecida do materialismo histórico rechaçando as teses deterministas (G.A.Cohen) - na realidade, um velho lugar comum da Segunda Internacional (Plekhanov e Kautsky) -, segundo as quais "as relações de produção se explicam pelo nível das forças produtivas". Abandonando este enfoque é possível

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POLÊMICALöwy-Callinicos: um debate importante

troca de opiniões entre Michael Lowy e Alex Callinicos teve como ponto de partida uma 1resenha de Löwy sobre o livro Theories and narratives: reflections on the philosophy of history . Os

dois textos foram publicados originalmente na revista Critique Communiste (França) número 149, verão (europeu) de 1997. Embora o livro de Alex Callinicos não tenha sido publicado no Brasil, consideramos ser este um debate de grande importância. A tradução foi feita por Rui Kureda, a partir

2da versão em espanhol publicada na revista Herramienta número 6 . Rui Kureda gentilmente disponibilizou a tradução e a revista Herramienta autorizou a publicação em nossa História & Luta de Classes.

Para além da pertinência óbvia do debate para o tema desta edição de História & Luta de Classes, nosso intuito é ressaltar algumas características deixadas à sombra e que destoam de uma vida universitária dominada por pressões oportunistas, carreiristas e pragmáticas. O campo do marxismo, longe de uma formulação unívoca, é área de intensos debates teóricos. Debates rigorosos e severos, mas realizados entre companheiros: o que se busca não é o prêmio institucional ou um trunfo para uma carreira, mas burilar os elementos teóricos para a melhor compreensão dos complexos processos históricos, desafio fundamental dos historiadores. Compreender a história sob a qual vivemos não se resume a uma tarefa profissional e burocrática, mas pode envolver a abertura de questões sutis, em torno de temas teóricos e que envolvem a plena compreensão dos elementos empíricos. Essa vivacidade, presente no debate que apresentamos, responde a um atributo fundamental do marxismo para pensarmos os eixos teóricos e históricos contemporâneos.

1CALLINICOS, Alex. Theories and narratives: Reflections on the philosophy of history, Cambridge, Polity Press, 1995, 252 p.2 Löwy-Call inicos: un debate importante. Revista Herramienta n.6.Marzo de 1998. Disponível em http://www.herramienta.com.ar/revista-herramienta-n-6/loewy-callinicos-un-debate-importante

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Compreender (os horrores de) a história

1Por Michael Löwy

40 - Löwy-Callinicos: um debate importante História & Luta de Classes, Nº 9 - Junho de 2010 (41-43) - 41

emos aqui um notável trabalho de erudição, impressionante por sua amplitude, seu rigor, a clareza de exposição e a coerência do pensamento. Não se trata de uma exposição sistemática, mas antes de um conjunto de ensaios finamente cinzelados, que abordam diferentes dimensões do debate contemporâneo sobre a teoria da história. Seu objetivo unificador constitui uma vigorosa defesa do materialismo histórico, frente a seus principais adversários ou concorrentes.

O mais conhecido deles - o que não quer dizer o mais sério - é, certamente, o célebre Fukuyama. A resposta evidente a esta estranha mescla de pseudo-hegelianismo(segundo a (des)interpretação de Kojeve), de pessimismo spengeleniano ("o fim da luta e do idealismo") e de triunfalismo reaganiano, é mostrar a realidade política do pós-guerra fria: o retorno dos ódios nacionais fratricidas e o ascenso do fascismo; uma realidade que faz aparecer não uma visão do fim da história, mas da história como repetição sem fim de desastres, "uma catástrofe única que acumula derrota após derrota", segundo as palavras de Walter Benjamin.

Ao contrário da maioria dos críticos de esquerda de Fukuyama, Callinicos não cai na armadilha de aceitar como um fato estabelecido o suposto "fracasso do socialismo" em 1990-1991. A recusa a considerar a URSS e a Europa do leste como "socialistas" (ele se inclina pelo conceito de "capitalismo burocrático de Estado" de Tony Cliff) lhe permite desafiar essa pseudo-evidência.

Próxima à de Fukuyama, a concepção da história mais conhecida na universidade anglo-saxônica atualmente é a do pós-estruturalismo.

1Michael Löwy é um intelectual marxista residente na França e pertence ao Secretariado Unificado da Quarta Internacional. Nasceu no Brasil em 1938. Foi professor universitário em diversas cidades como Jerusalém, Manchester, México, Havana, São Paulo e Paris, onde vive desde 1969. Entre suas obras podem ser mencionadas: A teoria da revolução no jovem Marx, Dialética e Revolução, O pensamento de Che Guevara, Para uma sociologia dos intelectuais revolucionários: a evolução política de Lukács (todas editadas em castelhano por Siglo XXI). Recentemente foi publicado na Argentina Redenção e Uttopia. El judaísmo libertario en Europa central. Un estudio de afinidad Electiva. (Buenos Aires: El Cielo por Asalto, 1997).

Callinicos nos propõe uma desconstrução radical do "relativismo irônico" pós-estruturalista representado por Lyotard e Hayden White, utilizando como ácido de prova o Holocausto. Fiel à sua filosofia da linguagem "pluralista" (quer dizer relativista), Lyotard proclama que não é possível demonstrar que os historiadores "revisionistas" que negam o genocídio (Faurisson e companhia) não respeitem "as regras cognitivas do estabelecimento da realidade histórica":

É impossível subsumir discursos irredutíveis em um mesmo grande relato explicativo. O conflito entre Faurisson e os historiadores anti-revisionistas é um exemplo de "discrepância" entre diferentes "regimes lingüísticos" que não pode ser superado posto que "(...) já não existe mais um tipo de discurso universal que os regule".

O comentário de Callinicos é duro, mas justo: talvez Lyotard queira que tomemos a sério seu argumento, "(...) mas é difícil imaginar como poderíamos fazê-lo."

Como pode fazer concessões aos revisionistas sobre esta questão histórica? O fato de que ignore o vasto esforço de compreensão do Holocausto (de autores como Primo Lévi, Raul Hilberg, Zigmunt Baumann, Arno Meyer) é "(...) um sintoma de engolosinamento pelas palavras e de amor por paradoxos superficiais, uma degeneração demasiado freqüente nestes dias de pós-estruturalismo."

Contra este tipo de "confusão desesperante", as teorias históricas marxistas e weberianas representam tentativas sérias de responder os problemas da compreensão da realidade histórica, analisando as estruturas e mecanismos de sua transformação e suas orientações. Algumas formulações de Callinicos sugerem uma afinidade com o "marxismo estruturalista" (Althusser, G.A. Cohen) e sua ênfase sufocante na "contradição entre as forças produtivas e as relações de produção".

Mas, felizmente, se distancia desta versão empobrecida do materialismo histórico rechaçando as teses deterministas (G.A.Cohen) - na realidade, um velho lugar comum da Segunda Internacional (Plekhanov e Kautsky) -, segundo as quais "as relações de produção se explicam pelo nível das forças produtivas". Abandonando este enfoque é possível

Page 42: Teoria da História - História e Análise Midiáticaprojetoham.com.br/arquivos/revistas/hlc9.pdf · Teoria da História REVISTA Ano 6 - Edição Nº 9 Junho 2010 - R$ 15,00 Eurelino

introduzir "um elemento de contingência irredutível" no materialismo histórico: dado que o surgimento da crise do modo de produção já não está predeterminado, sobra espaço para o projeto político marxista que põe a ênfase na auto-emancipação da classe operária e na subjetividade revolucionária.

Tanto a teoria marxista quanto a weberiana discernem um sentido progressivo da história que, respectivamente, são o desenvolvimento das forças produtivas e o incremento da dominação (poder social). Este ponto de vista não implica necessariamente uma aprovação ética: para Weber a modernidade conduzia a humanidade a uma espécie de "jaula de ferro". As principais diferenças entre Marx e Weber se s i tuam no terreno pol í t ico (o internacionalismo socialista frente ao imperialismo alemão) e na antropologia filosófica: humanismo emancipador versus pessimismo nietzscheano (a dominação como dado insuperável da natureza humana).

Callinicos propõe uma crítica sólida das teorias weberianas contemporâneas da história, que centram seus esforços na apresentação do poder ideológico ou militar como forma irredutível de dominação. Mas reconhece, modestamente, que "nada do que se diga aqui pode igualar a qualidade dos textos de Mann e Runciman, em particular o nível de conhecimento histórico de ambos". É muito interessante a sua critica central à teoria de Mann de que o cristianismo medieval teria constituído o "quadro normativo" da ascensão do capitalismo, o que atribui a um enfoque durkheimiano - mais que weberiano - que privilegia a integração e o consenso ao conflito e a diferença, crítica que estende ao marxismo althusseriano, o qual amiúde apresenta "uma marcada familiaridade" com a sociologia durkheimiana.

A seção seguinte, consagrada à história como progresso, é interessante, mas não tão convincente. Callinicos faz uma formulação do problema que é muito perspicaz, mas a resposta que formula é ambígua. Seu ponto de partida é que a concepção marxista do progresso, em contraste com outras visões da história - Condorcet, por exemplo - é também capaz "de incluir a compreensão do horror da história". Justamente por isto diz que o intento de Walter Benjamin de inserir na tradição marxista "uma critica do próprio conceito de progresso", sublinhando a continuidade catastrófica da história, deve ser tomada a sério. Em todo o caso, o marxismo é uma teoria capaz de pensar a história simultaneamente como progresso e como catástrofe: segundo os termos de Frederic Jameson, Marx no Manifesto Comunista havia compreendido que "(...) o capitalismo é ao mesmo tempo a melhor coisa que ocorrera à espécie humana, e a pior".

Mas poderia dizer-se o mesmo do artigo sobre o governo britânico na Índia (1853) na qual Marx dizia que "(...) quaisquer que tenham sido os crimes cometidos pela Inglaterra, ela foi o instrumento inconsciente da história", por introduzir uma revolução no estado social da Ásia? A resposta de Callinicos é prudente: frente ao fato de haver tensões no pensamento de Marx, diz que algumas de suas formulações (tais como as de 1853) podem ser apresentadas como uma legitimação apologética da expansão do capitalismo ocidental enquanto vetor do progresso (como na bastante conhecida celebração "marxista" do imperialismo de Bill Warren). O momento teleológico de alguns escritos de Marx constituiu a principal base do chamado "materialismo histórico ortodoxo" da Segunda Internacional (e logo, do stalinismo), com sua convicção de que o desenvolvimento das forças produtivas - a qualquer preço - é em si positivo, porque conduz inelutavelmente ao socialismo. Uma visão da história vilipendiada com razão por E.P. Thompson: "Posto que o imperador (a história científica, que toma nota da contradição) afirma que as forças produtivas crescem...”.

Contudo, Callinicos sublinha que o marxismo dispõe de uma forte teoria do progresso, quer dizer, uma teoria que não se conforma em discernir o crescimento (o desenvolvimento das forças produtivas) na história, mas que afirma também que esse crescimento pode contribuir positivamente ao bem-estar. Em conseqüência, tenta salvar os artigos de Marx sobre a Índia, sublinhando que os mesmos não escondem os crimes da burguesia, mas que apenas insistem no fato de que o progresso, quer dizer, o crescimento das forças produtivas, deve ser saudado como fator potencial de melhora do bem-estar humano, uma potencialidade que só será plenamente realizada em um mundo socialista. Mas isto não é concluir perigosamente numa espécie de teleologia e de teodicéia hegelianas para as quais a finalidade (inelutável) explica e justifica o curso da história? Se acreditamos, com Rosa Luxemburgo, que o socialismo não é inelutável e que a crise do capitalismo pode conduzir à barbárie, se tomamos a sério (como o faz Callinicos) as advertências de Walter Benjamin de que a terminal do progresso pode ser a catástrofe, como é possível pretender que o progresso capitalista seja, em qualquer dos casos, bem vindo? A partir da idéia de que o "desenvolvimento das forças produtivas" capitalistas contém, potencialmente, tanto o "melhor" - o socialismo, a plena expansão das capacidades humanas - quanto o pior - a barbárie, o extermínio nuclear, a destruição ecológica -, Callinicos afirma que o marxismo clássico "... herda de Hegel uma concepção dialética da história como movimento do espírito, no qual cada avanço compreende em sim mesmo um elemento de regressão".

Mas semelhante concepção - que implica um inevitável movimento ascendente (o "espiral")- não representa um exemplo típico de teleologia-teodicéia hegeliana, que justifica cada "regressão" como momento do "progresso" final?

A última parte do livro, "Identidade e emancipação", apresenta uma brilhante argumentação em defesa do universalismo emancipador contra as "políticas identitárias". A moda intelectual contemporânea - de Rorty a Laclau- denuncia qualquer universalismo (incluindo o marxismo, é claro) como um particularismo encoberto, ao tempo que o suposto radicalismo pós-moderno festeja as "políticas identitárias" - a luta separada de cada grupo oprimido - como a única e verdadeira alternativa. O problema, como Callinicos o mostra claramente, é que o particularismo dificilmente é coerente, posto que a resistência à opressão implica uma espécie de ética universal. Na ausência de um critério comum - quer dizer, universal - como distinguir os grupos realmente oprimidos dos falsos (de fato, opressores)?

Nem é necessário falar dos conflitos étnicos fratricidas em nome de "identidades" nacionais rivais. A única via para superar a falsa universalidade passa por uma autêntica universalidade, emancipadora e igualitária.

42 - Compreender (os horrores de) a história História & Luta de Classes, Nº 9 - Junho de 2010 (41-43) - 43

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introduzir "um elemento de contingência irredutível" no materialismo histórico: dado que o surgimento da crise do modo de produção já não está predeterminado, sobra espaço para o projeto político marxista que põe a ênfase na auto-emancipação da classe operária e na subjetividade revolucionária.

Tanto a teoria marxista quanto a weberiana discernem um sentido progressivo da história que, respectivamente, são o desenvolvimento das forças produtivas e o incremento da dominação (poder social). Este ponto de vista não implica necessariamente uma aprovação ética: para Weber a modernidade conduzia a humanidade a uma espécie de "jaula de ferro". As principais diferenças entre Marx e Weber se s i tuam no terreno pol í t ico (o internacionalismo socialista frente ao imperialismo alemão) e na antropologia filosófica: humanismo emancipador versus pessimismo nietzscheano (a dominação como dado insuperável da natureza humana).

Callinicos propõe uma crítica sólida das teorias weberianas contemporâneas da história, que centram seus esforços na apresentação do poder ideológico ou militar como forma irredutível de dominação. Mas reconhece, modestamente, que "nada do que se diga aqui pode igualar a qualidade dos textos de Mann e Runciman, em particular o nível de conhecimento histórico de ambos". É muito interessante a sua critica central à teoria de Mann de que o cristianismo medieval teria constituído o "quadro normativo" da ascensão do capitalismo, o que atribui a um enfoque durkheimiano - mais que weberiano - que privilegia a integração e o consenso ao conflito e a diferença, crítica que estende ao marxismo althusseriano, o qual amiúde apresenta "uma marcada familiaridade" com a sociologia durkheimiana.

A seção seguinte, consagrada à história como progresso, é interessante, mas não tão convincente. Callinicos faz uma formulação do problema que é muito perspicaz, mas a resposta que formula é ambígua. Seu ponto de partida é que a concepção marxista do progresso, em contraste com outras visões da história - Condorcet, por exemplo - é também capaz "de incluir a compreensão do horror da história". Justamente por isto diz que o intento de Walter Benjamin de inserir na tradição marxista "uma critica do próprio conceito de progresso", sublinhando a continuidade catastrófica da história, deve ser tomada a sério. Em todo o caso, o marxismo é uma teoria capaz de pensar a história simultaneamente como progresso e como catástrofe: segundo os termos de Frederic Jameson, Marx no Manifesto Comunista havia compreendido que "(...) o capitalismo é ao mesmo tempo a melhor coisa que ocorrera à espécie humana, e a pior".

Mas poderia dizer-se o mesmo do artigo sobre o governo britânico na Índia (1853) na qual Marx dizia que "(...) quaisquer que tenham sido os crimes cometidos pela Inglaterra, ela foi o instrumento inconsciente da história", por introduzir uma revolução no estado social da Ásia? A resposta de Callinicos é prudente: frente ao fato de haver tensões no pensamento de Marx, diz que algumas de suas formulações (tais como as de 1853) podem ser apresentadas como uma legitimação apologética da expansão do capitalismo ocidental enquanto vetor do progresso (como na bastante conhecida celebração "marxista" do imperialismo de Bill Warren). O momento teleológico de alguns escritos de Marx constituiu a principal base do chamado "materialismo histórico ortodoxo" da Segunda Internacional (e logo, do stalinismo), com sua convicção de que o desenvolvimento das forças produtivas - a qualquer preço - é em si positivo, porque conduz inelutavelmente ao socialismo. Uma visão da história vilipendiada com razão por E.P. Thompson: "Posto que o imperador (a história científica, que toma nota da contradição) afirma que as forças produtivas crescem...”.

Contudo, Callinicos sublinha que o marxismo dispõe de uma forte teoria do progresso, quer dizer, uma teoria que não se conforma em discernir o crescimento (o desenvolvimento das forças produtivas) na história, mas que afirma também que esse crescimento pode contribuir positivamente ao bem-estar. Em conseqüência, tenta salvar os artigos de Marx sobre a Índia, sublinhando que os mesmos não escondem os crimes da burguesia, mas que apenas insistem no fato de que o progresso, quer dizer, o crescimento das forças produtivas, deve ser saudado como fator potencial de melhora do bem-estar humano, uma potencialidade que só será plenamente realizada em um mundo socialista. Mas isto não é concluir perigosamente numa espécie de teleologia e de teodicéia hegelianas para as quais a finalidade (inelutável) explica e justifica o curso da história? Se acreditamos, com Rosa Luxemburgo, que o socialismo não é inelutável e que a crise do capitalismo pode conduzir à barbárie, se tomamos a sério (como o faz Callinicos) as advertências de Walter Benjamin de que a terminal do progresso pode ser a catástrofe, como é possível pretender que o progresso capitalista seja, em qualquer dos casos, bem vindo? A partir da idéia de que o "desenvolvimento das forças produtivas" capitalistas contém, potencialmente, tanto o "melhor" - o socialismo, a plena expansão das capacidades humanas - quanto o pior - a barbárie, o extermínio nuclear, a destruição ecológica -, Callinicos afirma que o marxismo clássico "... herda de Hegel uma concepção dialética da história como movimento do espírito, no qual cada avanço compreende em sim mesmo um elemento de regressão".

Mas semelhante concepção - que implica um inevitável movimento ascendente (o "espiral")- não representa um exemplo típico de teleologia-teodicéia hegeliana, que justifica cada "regressão" como momento do "progresso" final?

A última parte do livro, "Identidade e emancipação", apresenta uma brilhante argumentação em defesa do universalismo emancipador contra as "políticas identitárias". A moda intelectual contemporânea - de Rorty a Laclau- denuncia qualquer universalismo (incluindo o marxismo, é claro) como um particularismo encoberto, ao tempo que o suposto radicalismo pós-moderno festeja as "políticas identitárias" - a luta separada de cada grupo oprimido - como a única e verdadeira alternativa. O problema, como Callinicos o mostra claramente, é que o particularismo dificilmente é coerente, posto que a resistência à opressão implica uma espécie de ética universal. Na ausência de um critério comum - quer dizer, universal - como distinguir os grupos realmente oprimidos dos falsos (de fato, opressores)?

Nem é necessário falar dos conflitos étnicos fratricidas em nome de "identidades" nacionais rivais. A única via para superar a falsa universalidade passa por uma autêntica universalidade, emancipadora e igualitária.

42 - Compreender (os horrores de) a história História & Luta de Classes, Nº 9 - Junho de 2010 (41-43) - 43

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Resposta a Michael Löwy

1Por Alex Callinicos

oderia parecer grosseiro responder a uma critica tão amável e mesmo fraternal como a de Michael Löwy sobre meu livro Teorias e Narrativas. A reação ideológica internacional contra o marxismo revolucionário, e inclusive contra toda forma de pensamento socialista, é demasiado poderosa para nos permitirmos polêmicas insignificantes, tão perigosas quanto improdutivas. Contudo, as observações críticas de Michael Löwy à minha defesa do conceito de progresso histórico tocam em questões essenciais que merecem esclarecimentos.

Walter Benjamin, em suas Teses sobre a Filosofia da História, nos deixou uma critica sem igual do fatalismo histórico e da confiança plácida na vitória, que contribuiu amplamente para deixar o movimento operário sem defesa diante do fascismo. Se se compartilha, como Michael Löwy e eu mesmo, o ponto de vista de Benjamin que não crê que a revolução socialista seja inevitável, podemos continuar falando de uma noção de progresso histórico? Em meu livro, escrevi:

A s c o n s e q u ê n c i a s n e f a s t a s d o desenvolvimento das forças produtivas não são negadas ou justificadas (pelo materialismo histórico); no melhor dos casos, elas poderão ser compensadas e reparadas, quando a revolução permita às vítimas do progresso, ou aos seus descendentes, tomarem o controle dessas forças. (pág. 163)

Pode parecer assim que o desenvolvimento das forças produtivas poderia ser just if icado retrospectivamente em caso de produzir-se a revolução proletária. O fato de um movimento histórico ter sido ou não progressista dependeria, então, de seu desenlace, algo que é em si mesmo contingente. Dito de outra maneira, como Löwy mesmo escreveu em um de seus textos: "(...)é impossível pronunciar-se, a

1Alex Callinicos é um destacado intelectual marxista, dirigente do Socialist Workers Party de Grã Bretanha, membro do Comitê Editor da revista International Socialism e correspondente britânico da revista Atuel Marx. Nasceu em Zimbabwe em 1950. Profesor na Universidad de York desde 1981. É autor de varios livros: Is There a Future for Marxism?, Marxism and Philosophy, The Revolutionary Ideas of Karl Marx, Making History, Against Postmodernism,a Marxist critique (1989), The Revenge of History (Marxism and the East European revolutions) (1991), Socialists in the trade unions (1995), entre outros.

2Michael Löwy, A dialética marxista do progresso e o desafio atual de os movimentos socia1es, em Congrés Marx International, pag. 201.3Idem, Dialetique du Progrès, pag. 199-201.

priori, sobre o caráter 'progressivo' ou 'regressivo' do 2desenvolvimento capitalista das forças produtivas."

Sem dúvida, estas considerações relativizam e debilitam o conceito do progresso histórico dos marxistas fatalistas da Segunda Internacional. Contudo, Löwy se equivoca quando supõe que a minha proposição de que o desenvolvimento capitalista das forças produtivas: "(...) é positivo enquanto permite potencialmente o 'bem-estar humano' estaria 'perigosamente próximo a uma forma de teleologia hegeliana na qual a meta (inelutável) explica e justifica o curso da história'."

Em primeiro lugar, a revolução socialista não é o objetivo da história, nem sequer o comunismo. Para Marx a superação do capitalismo marcaria o fim da "pré-história da sociedade humana". Em outros termos, tornaria possível o desenvolvimento de uma sociedade sem classes, na qual os seres humanos poderiam realizar livremente suas capacidades, abrindo então a porta a horizontes de mudanças ilimitados.

Em segundo lugar, posto que a revolução não é inelutável, tampouco o comunismo pode sê-lo.

E em terceiro lugar, se a vitória do socialismo viesse a justificar o processo histórico que a precede, seria uma justificação ética e não uma explicação causal. Os mecanismos responsáveis pela transformação social - as contradições estruturais entre as forças produtivas e as relações de produção, a luta de classes - não são assimiláveis aos resultados não positivos dessas contradições. Ainda que estejam relacionadas, a explicação causal e a valoração ética são noções distintas.

Löwy esquematizou a tradição marxista em duas posições: "(...) uma dialética hegeliana, teleológica e fechada, tendencialmente eurocêntrica (e) outra dialética do progresso crítica, não

3teleológica e fundamentalmente aberta."

Existe um perigo real de que semelhante apresentação das coisas só conduza a uma escolha

equivocada entre o fatalismo da Segunda Internacional, e uma concepção subjetivista de "revolução contra o progresso" (para retomar uma das formulações do próprio Löwy).

O efeito de semelhante problemática é pensar a história como uma catástrofe pontuada de revoluções heróicas ocasionais, em lugar de "(...) pensar a história simultaneamente enquanto progresso e catástrofe", como tentei fazer em Teorias e Narrativas. Não fazê-lo seria perder a força dialética do Manifesto Comunista, tão bem captada pelo marxista americano Frederic Jameson quando descreve "(...) uma forma de pensamento capaz de apreender ao mesmo tempo os traços evidentemente sinistros do capitalismo e seu dinamismo extraordinário e libertador, sem atenuar a

4força de cada um de seus juízos."

Alguns dos elementos libertadores do capitalismo não são apenas potencialidade, mas estão na verdade indissoluvelmente ligados aos "traços sinistros". Assim ocorre com a industrialização do terceiro mundo, um processo de imensa destruição nos terrenos ecológico e social, mas que ao mesmo tempo implica um crescimento enorme do tamanho e do peso sócio-econômico da classe operária em seu conjunto. É impossível compreender (com todos os seus limites e contradições) as transições democráticas que ocorreram, por exemplo, na África do Sul, no Brasil, ou na Coréia do Sul, sem integrar o desenvolvimento de movimentos operários novos e militantes que já não podiam ser contidos nas velhas estruturas políticas autoritárias. As recentes lutas dos trabalhadores sul-coreanos não são menos importantes para demonstrar a força objetiva desse proletariado mundial em expansão.

Em outros termos, o desenvolvimento capitalista cria forças efetivas capazes de progresso aqui e agora, e não apenas amplia o potencial de uma libertação futura. Este elemento é central no conjunto da teoria de Marx, para quem o capitalismo cria no proletariado uma classe que envilece e explora, mas que tem a capacidade, a curto prazo, de obter reformas e, a longo prazo, de ultrapassá-lo e construir o comunismo.

A tendência de Löwy a seguir a Benjamin em sua visão da história como sucessão de catástrofes o conduz a destacar, no texto já citado e em outros, movimentos como o dos zapatistas do México que se caracterizam hoje por sua incapacidade em vincular-se às lutas que se desenvolveram contra a enorme ofensiva capitalista que representou o colapso do peso.

Leon Trotsky escreveu em 1937, no umbral das horas mais sombrias do século: "A história deve ser tomada tal qual é; e quando ela se permite escândalos tão extraordinários e repugnantes, devemos combatê-la a socos."4Frederic Jameson, Postmodernism, pag. 47.

A visão geral do progresso de Löwy está em linha com este magnífico desafio. Mas a posição revolucionária diante da história deve ir mais além. Exige uma compreensão dos processos objetivos que tornam possível a vitória (possível e não inelutável).

Ademais, é muito fácil resvalar de uma posição que se limita a um desafio puramente subjetivo a um fatalismo, quer dizer, a crença em um desenvolvimento das forças produtivas que garantiria a vitória - Trotsky mesmo oscilou dessa maneira, em particular no Programa de Transição. Devemos, pois, como defendeu Jameson, combinar os elementos de rechaço subjetivo do capitalismo e de análise objetiva, sem perder de vista nenhum de os costados. É particularmente importante manter esta posição em um momento onde os pós-modernistas nos incitam a abandonar o grande "metadiscurso" revolucionário de emancipação e de libertação em troca de uma visão da história como um puro caos desprovido de sentido. A incapacidade de manter com firmeza esta posição nos conduziria muito facilmente a erros políticos.

44 - Resposta a Michael Löwy História & Luta de Classes, Nº 9 - Junho de 2010 (44-45) - 45

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Resposta a Michael Löwy

1Por Alex Callinicos

oderia parecer grosseiro responder a uma critica tão amável e mesmo fraternal como a de Michael Löwy sobre meu livro Teorias e Narrativas. A reação ideológica internacional contra o marxismo revolucionário, e inclusive contra toda forma de pensamento socialista, é demasiado poderosa para nos permitirmos polêmicas insignificantes, tão perigosas quanto improdutivas. Contudo, as observações críticas de Michael Löwy à minha defesa do conceito de progresso histórico tocam em questões essenciais que merecem esclarecimentos.

Walter Benjamin, em suas Teses sobre a Filosofia da História, nos deixou uma critica sem igual do fatalismo histórico e da confiança plácida na vitória, que contribuiu amplamente para deixar o movimento operário sem defesa diante do fascismo. Se se compartilha, como Michael Löwy e eu mesmo, o ponto de vista de Benjamin que não crê que a revolução socialista seja inevitável, podemos continuar falando de uma noção de progresso histórico? Em meu livro, escrevi:

A s c o n s e q u ê n c i a s n e f a s t a s d o desenvolvimento das forças produtivas não são negadas ou justificadas (pelo materialismo histórico); no melhor dos casos, elas poderão ser compensadas e reparadas, quando a revolução permita às vítimas do progresso, ou aos seus descendentes, tomarem o controle dessas forças. (pág. 163)

Pode parecer assim que o desenvolvimento das forças produtivas poderia ser just if icado retrospectivamente em caso de produzir-se a revolução proletária. O fato de um movimento histórico ter sido ou não progressista dependeria, então, de seu desenlace, algo que é em si mesmo contingente. Dito de outra maneira, como Löwy mesmo escreveu em um de seus textos: "(...)é impossível pronunciar-se, a

1Alex Callinicos é um destacado intelectual marxista, dirigente do Socialist Workers Party de Grã Bretanha, membro do Comitê Editor da revista International Socialism e correspondente britânico da revista Atuel Marx. Nasceu em Zimbabwe em 1950. Profesor na Universidad de York desde 1981. É autor de varios livros: Is There a Future for Marxism?, Marxism and Philosophy, The Revolutionary Ideas of Karl Marx, Making History, Against Postmodernism,a Marxist critique (1989), The Revenge of History (Marxism and the East European revolutions) (1991), Socialists in the trade unions (1995), entre outros.

2Michael Löwy, A dialética marxista do progresso e o desafio atual de os movimentos socia1es, em Congrés Marx International, pag. 201.3Idem, Dialetique du Progrès, pag. 199-201.

priori, sobre o caráter 'progressivo' ou 'regressivo' do 2desenvolvimento capitalista das forças produtivas."

Sem dúvida, estas considerações relativizam e debilitam o conceito do progresso histórico dos marxistas fatalistas da Segunda Internacional. Contudo, Löwy se equivoca quando supõe que a minha proposição de que o desenvolvimento capitalista das forças produtivas: "(...) é positivo enquanto permite potencialmente o 'bem-estar humano' estaria 'perigosamente próximo a uma forma de teleologia hegeliana na qual a meta (inelutável) explica e justifica o curso da história'."

Em primeiro lugar, a revolução socialista não é o objetivo da história, nem sequer o comunismo. Para Marx a superação do capitalismo marcaria o fim da "pré-história da sociedade humana". Em outros termos, tornaria possível o desenvolvimento de uma sociedade sem classes, na qual os seres humanos poderiam realizar livremente suas capacidades, abrindo então a porta a horizontes de mudanças ilimitados.

Em segundo lugar, posto que a revolução não é inelutável, tampouco o comunismo pode sê-lo.

E em terceiro lugar, se a vitória do socialismo viesse a justificar o processo histórico que a precede, seria uma justificação ética e não uma explicação causal. Os mecanismos responsáveis pela transformação social - as contradições estruturais entre as forças produtivas e as relações de produção, a luta de classes - não são assimiláveis aos resultados não positivos dessas contradições. Ainda que estejam relacionadas, a explicação causal e a valoração ética são noções distintas.

Löwy esquematizou a tradição marxista em duas posições: "(...) uma dialética hegeliana, teleológica e fechada, tendencialmente eurocêntrica (e) outra dialética do progresso crítica, não

3teleológica e fundamentalmente aberta."

Existe um perigo real de que semelhante apresentação das coisas só conduza a uma escolha

equivocada entre o fatalismo da Segunda Internacional, e uma concepção subjetivista de "revolução contra o progresso" (para retomar uma das formulações do próprio Löwy).

O efeito de semelhante problemática é pensar a história como uma catástrofe pontuada de revoluções heróicas ocasionais, em lugar de "(...) pensar a história simultaneamente enquanto progresso e catástrofe", como tentei fazer em Teorias e Narrativas. Não fazê-lo seria perder a força dialética do Manifesto Comunista, tão bem captada pelo marxista americano Frederic Jameson quando descreve "(...) uma forma de pensamento capaz de apreender ao mesmo tempo os traços evidentemente sinistros do capitalismo e seu dinamismo extraordinário e libertador, sem atenuar a

4força de cada um de seus juízos."

Alguns dos elementos libertadores do capitalismo não são apenas potencialidade, mas estão na verdade indissoluvelmente ligados aos "traços sinistros". Assim ocorre com a industrialização do terceiro mundo, um processo de imensa destruição nos terrenos ecológico e social, mas que ao mesmo tempo implica um crescimento enorme do tamanho e do peso sócio-econômico da classe operária em seu conjunto. É impossível compreender (com todos os seus limites e contradições) as transições democráticas que ocorreram, por exemplo, na África do Sul, no Brasil, ou na Coréia do Sul, sem integrar o desenvolvimento de movimentos operários novos e militantes que já não podiam ser contidos nas velhas estruturas políticas autoritárias. As recentes lutas dos trabalhadores sul-coreanos não são menos importantes para demonstrar a força objetiva desse proletariado mundial em expansão.

Em outros termos, o desenvolvimento capitalista cria forças efetivas capazes de progresso aqui e agora, e não apenas amplia o potencial de uma libertação futura. Este elemento é central no conjunto da teoria de Marx, para quem o capitalismo cria no proletariado uma classe que envilece e explora, mas que tem a capacidade, a curto prazo, de obter reformas e, a longo prazo, de ultrapassá-lo e construir o comunismo.

A tendência de Löwy a seguir a Benjamin em sua visão da história como sucessão de catástrofes o conduz a destacar, no texto já citado e em outros, movimentos como o dos zapatistas do México que se caracterizam hoje por sua incapacidade em vincular-se às lutas que se desenvolveram contra a enorme ofensiva capitalista que representou o colapso do peso.

Leon Trotsky escreveu em 1937, no umbral das horas mais sombrias do século: "A história deve ser tomada tal qual é; e quando ela se permite escândalos tão extraordinários e repugnantes, devemos combatê-la a socos."4Frederic Jameson, Postmodernism, pag. 47.

A visão geral do progresso de Löwy está em linha com este magnífico desafio. Mas a posição revolucionária diante da história deve ir mais além. Exige uma compreensão dos processos objetivos que tornam possível a vitória (possível e não inelutável).

Ademais, é muito fácil resvalar de uma posição que se limita a um desafio puramente subjetivo a um fatalismo, quer dizer, a crença em um desenvolvimento das forças produtivas que garantiria a vitória - Trotsky mesmo oscilou dessa maneira, em particular no Programa de Transição. Devemos, pois, como defendeu Jameson, combinar os elementos de rechaço subjetivo do capitalismo e de análise objetiva, sem perder de vista nenhum de os costados. É particularmente importante manter esta posição em um momento onde os pós-modernistas nos incitam a abandonar o grande "metadiscurso" revolucionário de emancipação e de libertação em troca de uma visão da história como um puro caos desprovido de sentido. A incapacidade de manter com firmeza esta posição nos conduziria muito facilmente a erros políticos.

44 - Resposta a Michael Löwy História & Luta de Classes, Nº 9 - Junho de 2010 (44-45) - 45

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A “queda do muro”1

e a morte do comunismo em Veja

2Carla Luciana Silva

m 2009 marcamos os vinte anos da chamada Queda do Muro de Berlim. Foi um ato simbólico que representou o fim de um momento histórico fundamental na história do século XX: a possibilidade concreta de um projeto social anticapitalista. A partir desse momento estava aberto o caminho para que a ideologia do pensamento único se colocasse como “única alternativa” ao andamento da história. Com isso os apologistas da “vitória do capitalismo” apregoaram mundo afora a falsa idéia de que a história havia acabado na medida em que o capitalismo teria triunfado e o comunismo estaria morto. Esse processo contribui sobremaneira para o transformismo de partes majoritárias da esquerda mundial. No entanto, não encerrou as possibilidades concretas de uma ação anticapitalista e comunista.

Vinte anos depois os mesmos apologistas do fim da história se vêem obrigados a fazer frente às necessidades de readequação históricas que o próprio capitalismo necessita para continuar existindo. O medo frente ao comunismo não é anunciado claramente, mas a ofensiva conservadora se coloca de várias formas, buscando sempre consolidar a falsa idéia da inevitabilidade de buscar soluções à crise do capitalismo dentro dele mesmo.

O texto busca abarcar as formas com que a revista Veja tratou a questão da Queda do Muro, a partir dessa reflexão anunciada. Buscamos perceber em que medida se coloca diante da falácia do “fim do comunismo” e de que forma isso aparece em relação à crise atual do capitalismo. O discurso do fim da história se mantém? De que forma se atualiza o anticomunismo? Buscamos apreender os dois aspectos constituintes da produção de hegemonia, ou seja, a construção discursiva e o apoio às medidas repressivas, que são estendidas à sociedade como um todo. A análise leva em conta a posição editorial e as matérias sobre a crise do capitalismo e sobre a Queda do Muro publicadas ao longo de 2009. Mas antes é necessário buscarmos a forma com que foram tratados os próprios acontecimentos de 1989 quando ocorreram a partir das fontes eleitas.

1Uma primeira versão desse texto foi enviada para os Anais das Jornadas Interescuelas, 2009, Bariloche.2Professora do Curso de História e do Programa de Pós G r a d u a ç ã o e m H i s t ó r i a d a U N I O E S T E . [email protected]

A partir da concepção da imprensa como aparelho privado de hegemonia (Gramsci) entendemos que a imprensa busca negar a noção de processo histórico, apresentando os acontecimentos como fatalismo atribuído a sujeitos obscuros. Os valores criados para consolidar a hegemonia capitalista são readequados, mas o fundamental é minar a possibilidade de que alternativas sejam construídas consolidando a hegemonia capitalista.

In i c i a lmen te , ap resen tamos a lguns referenciais teóricos acerca do anticomunismo, especialmente no discurso midiático. Em seguida, buscamos demonstrar as formas como a queda do muro serviu para envolucrar o mito do fim do comunismo. E como isso foi utilizado para reafirmar o acerto e invencibilidade do capitalismo. Por fim, buscamos ver como esse discurso se mantém em um contexto de crise do capitalismo.

O discurso anticomunista

O anticomunismo é uma prática ideológica que remonta à história do capitalismo. Assentado na contradição fundamental entre capital de trabalho, os defensores do capital precisam de mecanismos para impedir a consciência sobre a exploração dos trabalhadores. Se o comunismo é uma forma de ação concreta no sentido de subversão da exploração, os defensores do capitalismo se utilizam de todas as formas a seu dispor no combate ideológico em relação à alternativa comunista. Claro que, historicamente essa ação está em conjunto com a ação repressiva do Estado, que age em conjunto com os demais aparelhos privados de hegemonia a ele associados. Mas o que quero ressaltar é a especificidade e permanência de um discurso que remete a uma Formação Discursiva de longo alcance. Temos alguns estudos que apontam nesse sentido, mostrando uma longa permanência.

A partir da perspectiva da análise de discurso, Bethânia Mariani analisou discursos sobre os comunistas no que chama de imaginário dos jornais

3brasileiros no período de 1922 a 1989 . Ou seja, desde a criação do partido comunista no Brasil até o chamado fim do comunismo. Mudanças vão ocorrendo, e

3MARIANI, Bethânia. O PCB e a imprensa: os comunistas no imaginário dos jornais 1922-1989. São Paulo, Revan, 1998.

permitem visualizar a adaptação ao momento histórico específico em que o discurso é utilizado como instrumento de intervenção, tentat iva de convencimento, arma de ação. A trincheira da ação é o jornal, a revista, mas a disseminação fica num campo muito mais amplo, o do pensamento, da formação de uma visão de mundo, na mentalidade. Remete-se a um pensamento difuso, que não é fundado num conhecimento elaborado. São elementos sobre os quais há pouca reflexão mas muito sentimento. Nesse sentido, o medo é uma arma bastante eficaz, junto com outras fortes expressões como ameaça, perigo. Para fundamentar esse medo, há uma alusão permanente a fenômenos da natureza: o comunismo seria como uma “tormenta que procurava envolver todos os povos” (jornal de 1937, apud Mariani, p. 153). Como enfatiza a autora, “o discurso jornalístico, enquanto forma de manutenção do poder, atua na ordem do cotidiano, pois além de agendar campos de assuntos sobre os quais os leitores podem/devem pensar, organiza direções de leituras para tais assuntos”. E completa que “no dia-a-dia, o leitor comum nem sempre tem como perceber os processos de filiação dos sentidos, isto é, os deslocamentos e re-alocamentos de memória, reforçando a ilusão de unidade e transparência na relação das multiplicidades do presente e das

4indicações do que pode vir a ser” .

Ainda segundo Mariani, se nos anos 30 a formulação era dada por “como se sabe, o comunismo é...”; na década de 50 há uso do “discurso indireto buscando a instauração da ilusão de um consenso”; nos anos 1964/79 há rituais enunciativos de silenciamento, e impossibilidade de se dizerem outros sentidos, em que o bom senso se torna senso comum; os anos 1980 são marcados pela ironia e produção da decadência. Os anos 90 seriam um momento de

5produção de um novo consenso . É nesse campo que buscaremos assentar a análise.

Quando iniciamos essa pesquisa, analisando jornais brasileiros de 1930, percebemos uma quantidade infindável de artigos que tinham como objetivo o combate às idéias comunistas e por conseguinte, a qualquer ação concreta de oposição ao capitalismo. Em conjunto com uma grande quantidade de livros que circulavam no país (muitos deles traduzidos, ou seja, apontando para uma política mais ampliada), os artigos dos jornais e suas “campanhas anticomunistas” eram muito presentes. Naquele momento, um dos focos era o perigo que viria da URSS: lugar de flagelo, privações, uniformização,

6falsidade, absurdos, e assim por diante . Por outro lado, os mesmos jornais mostram o avanço da organização

4Idem, p. 224.5Idem, p. 231.6SILVA, Carla Luciana. Onda vermelha: imaginários anticomunistas brasileiros. (1931-1934). Porto Alegre, EDIPUCRS, 2001.

operária: inúmeras greves, o crescimento da consciência sobre a exploração própria da expansão da industrialização e urbanização. Queremos agora investigar como esse discurso se mantém no momento em que esse referente deixa de existir, pois sabemos que outras figuras retóricas são utilizadas, outros perigos são criados. Interessa-nos portanto investigar as formas com que esse discurso ideológico secular se mantém.

A memória no lugar da história

Essa análise estará centrada na revista Veja, a maior revista em circulação no Brasil, publicada há

7mais de 40 anos . Ao estudá-la busco uma prática que vai além da revista em si, apontando para a própria imprensa brasileira e suas relações políticas,da mesma

8forma que já foi demonstrado quanto aos anos 1990 .

Veja, em edição comemorativa de seus 40 anos, enuncia ter ressaltado os fatos mais relevantes dessas quatro décadas. Nessa edição, Margareth Thatcher e Ronald Reagan foram destacados e não poderiam deixar de ser considerados os “vencedores da Guerra Fria”: “ambos deixaram a casa em ordem em seus respectivos países – mas o seu maior legado é o sentido, hoje, fora dos Estados Unidos e da Inglaterra. Está na liberdade que se respira em Berlim, Praga ou

9Budapeste” . Assim, se funda a idéia de que o neoliberalismo teria servido para “por a casa em ordem”, e que além disso, a ação conservadora levou à liberdade, que aparece como um objetivo em si, sem qualificação, como se fosse um bem supremo. Na seqüência, temos outro destaque muito relevante. Sob duas páginas em que aparece uma fotografia do muro de Berlim com manifestantes, lemos:

DERRUBADO PELA HISTÓRIA. O muro de Berlim era a representação física da Cortina de Ferro (...) É natural, portanto, que sua queda tenha se tornado o marco simbólico do fim do comunismo. O muro infame que dividia a capital da Alemanha veio abaixo na noite de 9 de novembro de 1989, sem que um só tiro fosse disparado. Enquanto os berlinenses de ambos os lados comemoravam o fim de quatro décadas de opressão, Mikhail Gorbatchev, o último premiê soviético, dormia em Moscou. Com seu histórico de milhões de mortos, a União Soviética desmanchou-se no ar dois anos depois. Imaginava-se que o pesadelo

7A revista conseguiu juntamente como a Fundação Ford e Banco Bradesco, colocar em prática um projeto milionário através do qual todo o seu acervo foi digitalizado e está disponível para pesquisa. Para maiores informações, ver: www.vejaonline.com.br8SILVA, Carla. VEJA: o indispensável partido neoliberal. Edunioeste, Cascavel, 2009.9Veja 40 anos. Ano 41, ed. 2077, Setembro de 2008, p. 49.

46 - A “queda do muro” e a morte do comunismo em Veja História & Luta de Classes, Nº 9 - Junho de 2010 (46-54) - 47

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A “queda do muro”1

e a morte do comunismo em Veja

2Carla Luciana Silva

m 2009 marcamos os vinte anos da chamada Queda do Muro de Berlim. Foi um ato simbólico que representou o fim de um momento histórico fundamental na história do século XX: a possibilidade concreta de um projeto social anticapitalista. A partir desse momento estava aberto o caminho para que a ideologia do pensamento único se colocasse como “única alternativa” ao andamento da história. Com isso os apologistas da “vitória do capitalismo” apregoaram mundo afora a falsa idéia de que a história havia acabado na medida em que o capitalismo teria triunfado e o comunismo estaria morto. Esse processo contribui sobremaneira para o transformismo de partes majoritárias da esquerda mundial. No entanto, não encerrou as possibilidades concretas de uma ação anticapitalista e comunista.

Vinte anos depois os mesmos apologistas do fim da história se vêem obrigados a fazer frente às necessidades de readequação históricas que o próprio capitalismo necessita para continuar existindo. O medo frente ao comunismo não é anunciado claramente, mas a ofensiva conservadora se coloca de várias formas, buscando sempre consolidar a falsa idéia da inevitabilidade de buscar soluções à crise do capitalismo dentro dele mesmo.

O texto busca abarcar as formas com que a revista Veja tratou a questão da Queda do Muro, a partir dessa reflexão anunciada. Buscamos perceber em que medida se coloca diante da falácia do “fim do comunismo” e de que forma isso aparece em relação à crise atual do capitalismo. O discurso do fim da história se mantém? De que forma se atualiza o anticomunismo? Buscamos apreender os dois aspectos constituintes da produção de hegemonia, ou seja, a construção discursiva e o apoio às medidas repressivas, que são estendidas à sociedade como um todo. A análise leva em conta a posição editorial e as matérias sobre a crise do capitalismo e sobre a Queda do Muro publicadas ao longo de 2009. Mas antes é necessário buscarmos a forma com que foram tratados os próprios acontecimentos de 1989 quando ocorreram a partir das fontes eleitas.

1Uma primeira versão desse texto foi enviada para os Anais das Jornadas Interescuelas, 2009, Bariloche.2Professora do Curso de História e do Programa de Pós G r a d u a ç ã o e m H i s t ó r i a d a U N I O E S T E . [email protected]

A partir da concepção da imprensa como aparelho privado de hegemonia (Gramsci) entendemos que a imprensa busca negar a noção de processo histórico, apresentando os acontecimentos como fatalismo atribuído a sujeitos obscuros. Os valores criados para consolidar a hegemonia capitalista são readequados, mas o fundamental é minar a possibilidade de que alternativas sejam construídas consolidando a hegemonia capitalista.

In i c i a lmen te , ap resen tamos a lguns referenciais teóricos acerca do anticomunismo, especialmente no discurso midiático. Em seguida, buscamos demonstrar as formas como a queda do muro serviu para envolucrar o mito do fim do comunismo. E como isso foi utilizado para reafirmar o acerto e invencibilidade do capitalismo. Por fim, buscamos ver como esse discurso se mantém em um contexto de crise do capitalismo.

O discurso anticomunista

O anticomunismo é uma prática ideológica que remonta à história do capitalismo. Assentado na contradição fundamental entre capital de trabalho, os defensores do capital precisam de mecanismos para impedir a consciência sobre a exploração dos trabalhadores. Se o comunismo é uma forma de ação concreta no sentido de subversão da exploração, os defensores do capitalismo se utilizam de todas as formas a seu dispor no combate ideológico em relação à alternativa comunista. Claro que, historicamente essa ação está em conjunto com a ação repressiva do Estado, que age em conjunto com os demais aparelhos privados de hegemonia a ele associados. Mas o que quero ressaltar é a especificidade e permanência de um discurso que remete a uma Formação Discursiva de longo alcance. Temos alguns estudos que apontam nesse sentido, mostrando uma longa permanência.

A partir da perspectiva da análise de discurso, Bethânia Mariani analisou discursos sobre os comunistas no que chama de imaginário dos jornais

3brasileiros no período de 1922 a 1989 . Ou seja, desde a criação do partido comunista no Brasil até o chamado fim do comunismo. Mudanças vão ocorrendo, e

3MARIANI, Bethânia. O PCB e a imprensa: os comunistas no imaginário dos jornais 1922-1989. São Paulo, Revan, 1998.

permitem visualizar a adaptação ao momento histórico específico em que o discurso é utilizado como instrumento de intervenção, tentat iva de convencimento, arma de ação. A trincheira da ação é o jornal, a revista, mas a disseminação fica num campo muito mais amplo, o do pensamento, da formação de uma visão de mundo, na mentalidade. Remete-se a um pensamento difuso, que não é fundado num conhecimento elaborado. São elementos sobre os quais há pouca reflexão mas muito sentimento. Nesse sentido, o medo é uma arma bastante eficaz, junto com outras fortes expressões como ameaça, perigo. Para fundamentar esse medo, há uma alusão permanente a fenômenos da natureza: o comunismo seria como uma “tormenta que procurava envolver todos os povos” (jornal de 1937, apud Mariani, p. 153). Como enfatiza a autora, “o discurso jornalístico, enquanto forma de manutenção do poder, atua na ordem do cotidiano, pois além de agendar campos de assuntos sobre os quais os leitores podem/devem pensar, organiza direções de leituras para tais assuntos”. E completa que “no dia-a-dia, o leitor comum nem sempre tem como perceber os processos de filiação dos sentidos, isto é, os deslocamentos e re-alocamentos de memória, reforçando a ilusão de unidade e transparência na relação das multiplicidades do presente e das

4indicações do que pode vir a ser” .

Ainda segundo Mariani, se nos anos 30 a formulação era dada por “como se sabe, o comunismo é...”; na década de 50 há uso do “discurso indireto buscando a instauração da ilusão de um consenso”; nos anos 1964/79 há rituais enunciativos de silenciamento, e impossibilidade de se dizerem outros sentidos, em que o bom senso se torna senso comum; os anos 1980 são marcados pela ironia e produção da decadência. Os anos 90 seriam um momento de

5produção de um novo consenso . É nesse campo que buscaremos assentar a análise.

Quando iniciamos essa pesquisa, analisando jornais brasileiros de 1930, percebemos uma quantidade infindável de artigos que tinham como objetivo o combate às idéias comunistas e por conseguinte, a qualquer ação concreta de oposição ao capitalismo. Em conjunto com uma grande quantidade de livros que circulavam no país (muitos deles traduzidos, ou seja, apontando para uma política mais ampliada), os artigos dos jornais e suas “campanhas anticomunistas” eram muito presentes. Naquele momento, um dos focos era o perigo que viria da URSS: lugar de flagelo, privações, uniformização,

6falsidade, absurdos, e assim por diante . Por outro lado, os mesmos jornais mostram o avanço da organização

4Idem, p. 224.5Idem, p. 231.6SILVA, Carla Luciana. Onda vermelha: imaginários anticomunistas brasileiros. (1931-1934). Porto Alegre, EDIPUCRS, 2001.

operária: inúmeras greves, o crescimento da consciência sobre a exploração própria da expansão da industrialização e urbanização. Queremos agora investigar como esse discurso se mantém no momento em que esse referente deixa de existir, pois sabemos que outras figuras retóricas são utilizadas, outros perigos são criados. Interessa-nos portanto investigar as formas com que esse discurso ideológico secular se mantém.

A memória no lugar da história

Essa análise estará centrada na revista Veja, a maior revista em circulação no Brasil, publicada há

7mais de 40 anos . Ao estudá-la busco uma prática que vai além da revista em si, apontando para a própria imprensa brasileira e suas relações políticas,da mesma

8forma que já foi demonstrado quanto aos anos 1990 .

Veja, em edição comemorativa de seus 40 anos, enuncia ter ressaltado os fatos mais relevantes dessas quatro décadas. Nessa edição, Margareth Thatcher e Ronald Reagan foram destacados e não poderiam deixar de ser considerados os “vencedores da Guerra Fria”: “ambos deixaram a casa em ordem em seus respectivos países – mas o seu maior legado é o sentido, hoje, fora dos Estados Unidos e da Inglaterra. Está na liberdade que se respira em Berlim, Praga ou

9Budapeste” . Assim, se funda a idéia de que o neoliberalismo teria servido para “por a casa em ordem”, e que além disso, a ação conservadora levou à liberdade, que aparece como um objetivo em si, sem qualificação, como se fosse um bem supremo. Na seqüência, temos outro destaque muito relevante. Sob duas páginas em que aparece uma fotografia do muro de Berlim com manifestantes, lemos:

DERRUBADO PELA HISTÓRIA. O muro de Berlim era a representação física da Cortina de Ferro (...) É natural, portanto, que sua queda tenha se tornado o marco simbólico do fim do comunismo. O muro infame que dividia a capital da Alemanha veio abaixo na noite de 9 de novembro de 1989, sem que um só tiro fosse disparado. Enquanto os berlinenses de ambos os lados comemoravam o fim de quatro décadas de opressão, Mikhail Gorbatchev, o último premiê soviético, dormia em Moscou. Com seu histórico de milhões de mortos, a União Soviética desmanchou-se no ar dois anos depois. Imaginava-se que o pesadelo

7A revista conseguiu juntamente como a Fundação Ford e Banco Bradesco, colocar em prática um projeto milionário através do qual todo o seu acervo foi digitalizado e está disponível para pesquisa. Para maiores informações, ver: www.vejaonline.com.br8SILVA, Carla. VEJA: o indispensável partido neoliberal. Edunioeste, Cascavel, 2009.9Veja 40 anos. Ano 41, ed. 2077, Setembro de 2008, p. 49.

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comunista es tar ia def ini t ivamente encerrado, mas ele resiste em grotões como Coréia do Norte e Cuba, além de contar com uma sobrevida exclusivamente política no autoritarismo chinês. Como não poderia deixar de ser, o velho monstro ainda mostra sua renitência no cemitério de idéias chamado América Latina, em especial no 'socialismo bolivariano' que Hugo Chavez quer implantar na Venezuela. Parafraseando o pai besta, Karl Marx, é a história repetindo-

10se como farsa .

A longa citação se divide em algumas idéias, todas elas repetindo a suposta morte do comunismo. Primeiramente, se explica que o muro foi um símbolo infame, e que ele veio abaixo sem “um tiro sequer”, ou seja, como que se desmoronou sozinho. E mesmo sendo um fato de tamanha grandeza, traz um dado importante: o líder soviético estava dormindo. Se em outros momentos há elogios ao russo, aqui é a ironia que lhe serve de alento: dorme enquanto a história acontece. Vinte anos depois a revista se utiliza dessa prédica para dizer que imaginava que o “pesadelo comunista” havia acabado, mas resiste em grotões, que no “dicionário de Veja” significa lugares insignificantes, sem importância, atrasados. A revista então apresenta seus inimigos onipresentes, Cuba e Coréia do Norte, e chega no centro de suas preocupações: a América Latina, lugar em que “o velho monstro ainda mostra sua renitência no cemitério de idéias”. Assim, todos os movimentos indígenas, todas as organizações sociais que se remetem a alguma idéia de socialismo, ou apenas de combate ao capitalismo, todos são vítimas de um monstro que já estaria morto (até já estava no cemitério). Perceba-se que é como idéia ultrapassada que esse espectro é tratado, jamais como práxis revolucionária.

Conclui lapidarmente, chamando Marx de “pai besta”. Besta é uma expressão que na língua portuguesa tem vários sentidos. Em um deles remete direto ao demônio, ao diabo (figura muito usual no imaginário cristão anticomunista). Mas besta é também popularmente alguém abobado, desprovido de sentido, ignorante, estúpido. Mais uma vez percebemos que o discurso anticomunista não acabou, e que ele se adapta sempre à realidade presente em que está sendo produzido. Não há análise histórica concreta do que foi o comunismo, e se constrói uma memória difusa a esse respeito. Por outro lado, ataca frontalmente aqueles que seriam ameaça concreta ao projeto capitalista. Como hegemonia consolidada, o capitalismo aparece sempre como algo transhistórico, o “vencedor”, indiscutível, não seria ele próprio um projeto, e sim o “curso natural da história”. Por isso uma experiência como a de Chavez não pode ser nomeada sem que a ela sejam associadas todas as expressões negativas do anticomunismo. O texto que

10Idem, p. 59.

objetiva comemorar, fazer história, segue o embate na história que ainda virá (por isso a remissão ao presente), mas deixando claro o caminho que não pode ser seguido.

Com um sentido muito parecido podemos analisar a cobertura de Veja com relação à queda do muro propriamente dita. Temos dois momentos: o período que precede à queda, e o período em que, imediatamente após, se busca construir memória sobre o fato. É importante lembrar que o ano de 1989 foi um ano marcante na história brasileira, em virtude de ser o ano das primeiras eleições presidenciais diretas para a presidência da República após a ditadura civil-militar. Nesse sentido, toda a cobertura estava centrada nessa questão: como podia o comunismo estar “desmanchando no ar” nos países do Leste e mesmo assim ser difusamente uma ameaça no Brasil? Essa era a tônica da grande imprensa brasileira, sobretudo da Veja. Foi com uma imensa alegria que a revista divulgou a queda do muro, especialmente por ter ocorrido antes das eleições.

Ao analisarmos um exemplar da revista de abril de 1989 percebemos que a desinformação era grande, o que havia eram apenas algumas elucubrações, apontando para o poderia vir a ocorrer. É por isso que a imagem da capa da revista era marcante: a imagem da “foice e martelo” rachados, acompanhados da legenda “O TERREMOTO DA REFORMA SACODE O COMUNISMO: o vento da

11liberdade que varre a Europa do Leste” . O velho elemento “climático – natural” aparece ameaçador, mas seria suplantado pela liberdade que existiria no mundo ocidental.

No editorial, alguns dos preceitos que indicariam a “vitória do comunismo”, mas também por onde ele deveria ser afirmado como alternativa, começam a ser explicitados. A revista enviou dois repórteres para os “países do comunismo em crise”. O ponto alto seria a realização de eleições, elemento que se afirma como diferencial da propalada democracia (como se ela viesse sem o seu acompanhamento

12obrigatório – liberal) . Essas mudanças aparecem como fenômenos naturais: “Esse vento de reforma na União Soviética, impensável até pouco tempo, também sopra com vigor em praticamente todos os países comunistas da Europa”. O repórter agrega o valor da “liberdade” dizendo que “fiquei impressionado com o grau de liberdade que encontrei na Hungria, digno de uma democracia ocidental”. E emenda com outra máxima: “mas o que mais me surpreendeu foi não ter encontrado uma pessoa sequer que defendesse a ortodoxia marxista ou se contrapusesse às reformas econômicas e políticas”. Portanto, é como verdade

11Veja. 5/4/1989.12Ver discussão de WOOD, Ellen. Democracia contra capitalismo. São Paulo, Boitempo, 2003.

13Veja. 5/4/1989, p. 29.14Idem, p. 42.

absoluta que precisariam ser impostas as “reformas”, o que em breve se transformaria em face totalitária do discurso da globalização.

Na matéria “comunistas à beira de um ataque de nervos” de novo a natureza é aludida: “Os soviéticos consagram nas urnas Boris Yeltsin, o apologista da reforma radical, e aceleram o furor do furacão que varre o mundo comunista, desde a Hungria até a Polônia e a Iugoslávia, espalhando em seu rastro mudanças políticas e a abertura para experiências

13capitalistas” . O caráter natural e contra o qual nada se pode fazer é exaltado. A manchete é ainda mais alarmista: “TERREMOTO NO LESTE: os soviéticos infligem nas urnas uma derrota fragorosa à cúpula dirigente e avançam um passo histórico nas mudanças

14que sacodem o comunismo” . A imagem que acompanha o conjunto das matérias é uma ilustração de uma foice e martelo derretendo em vermelho, como se fosse sangue, embora seja gelo, sempre relembra a imagem sanguinária do comunismo. Isso é reforçado pelo tópico “Sangue sob a ponte: muito sangue correu debaixo da ponte do comunismo soviético antes que ele se instalasse na Europa”. Interessante é observar que o “sangue” jamais aparece quando se trata de afirmar a justeza do capitalismo, que aparece sem história, como algo natural.

Foi importante naquele contexto mostrar o impacto econômico das reformas, na medida em que permitiriam a ampliação da expansão do capital: “a Europa comunista é formada hoje por nove países com mais de 150 milhões de habitantes. Junto com a URSS são mais de 430 milhões de pessoas vivendo numa região imensa, de amplos recursos materiais, e instalados bem no meio de um terremoto político e econômico”. Ressalta-se aqui o fato de que se trata de “países comunistas ricos”, e que lá “tudo o que é sólido desmancha no ar e tudo se transforma no seu contrário”. A paráfrase do Manifesto Comunista seria utilizada inúmeras vezes como profética do fim do comunismo, inclusive como forma de pressão aos “comunistas pobres”, africanos, asiáticos e especialmente cubanos.

O que estava em questão fica bem claro na informação trazida na matéria: “Na Hungria a maré reformista chegou ao ponto de o governo permitir a existência de uma Bolsa de Valores, de aprovar o pluripartidarismo e incentivar cadeias ocidentais como Mc´Donalds, Beneton e Adidas a abrir suas lojas em Budapeste”. Ou seja, o capital expandindo-se finalmente para esses lugares “atrasados”.

Ao falar do processo eleitoral na URSS há ainda uma analogia do processo com eleições em 1974 no Brasil, em plena Ditadura. O problema que se colocaria na sociedade pós 84 no Brasil nas eleições

indiretas seria o mesmíssimo: “aquele que diz respeito à democracia, à capacidade da sociedade de estabelecer, nas urnas, quais os limites que se tem para

15a liberdade.” Assim, a associação com as eleições no Brasil ficam ainda como ameaça: a volta da “autoridade”, a manutenção do poder das armas, e os limites da liberdade fossem suplantados. Isso se remete à URSS mas também ao Brasil que precisaria saber como exercer a sua liberdade de voto para não fazer bobagem. Isso vai ficando mais claro na sequência:

Enquanto o comunismo vai degelando na URSS e na Europa, o Brasil, com suas instituições muito mais democráticas, corre o risco de caminhar no sentido das soluções que foram testadas e fracassaram. A julgar por muitas das idéias e programas que são defendidos por políticos brasileiros, de esquerda e de direita, o país pode até ser o último do mundo a querer ser ortodoxamente comunista. Estatização, monopólio de setores inteiros da economia na mão do Estado e proteção de funcionários públicos ineficientes, com base no nepotismo ou no favorecimento, são coisas que o comunismo rico vem combatendo, enquanto no Brasil encontram defensores intransigentes. O Brasil, último pais da América a abolir a escravidão e proclamar a República, um dos últimos a pegar o bonde da industrialização, pode ser também um dos últimos a adotar o comunismo. O comunismo antes das

16reformas que vêm mudando sua face .

Sob o símbolo do atraso, o risco seria grande no Brasil. Essa analogia entre o estado centralizador soviético e o estado centralizador da ditadura no Brasil perseguiria sendo relembrada nos próximos anos. Os motivos dessa centralização e forma do estado não são colocados em questão, são associados ao comunismo, e não, no caso brasileiro, a uma política necessária à expansão do capitalismo subordinado.

A matéria traz um quadro em que “quatro aprendizes vão a luta por lucro e liberdade”, seriam pessoas empreendedoras, que estariam aprendendo a ser capitalistas e poderiam servir de exemplo. Entre suas falas, destaco: “algum desemprego é até saudável, porque as pessoas têm de se mexer e produzir melhor”

17(Zsusanna Ranki, economista) . O exército de reserva de mão-de-obra é legitimado, ao mesmo tempo em que se deve aprender a “empreender” para ser um indivíduo “que deu certo”.

Há também uma tentativa de mostrar que de dentro dos países do leste havia uma busca desenfreada pelas reformas, um desejo capitalístico que aparece tanto no campo das idéias (e da política), como do consumo, bem simbólico de desejo. Vejamos como se

15Idem, p. 45.16Idem.17Idem, p. 48.

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comunista es tar ia def ini t ivamente encerrado, mas ele resiste em grotões como Coréia do Norte e Cuba, além de contar com uma sobrevida exclusivamente política no autoritarismo chinês. Como não poderia deixar de ser, o velho monstro ainda mostra sua renitência no cemitério de idéias chamado América Latina, em especial no 'socialismo bolivariano' que Hugo Chavez quer implantar na Venezuela. Parafraseando o pai besta, Karl Marx, é a história repetindo-

10se como farsa .

A longa citação se divide em algumas idéias, todas elas repetindo a suposta morte do comunismo. Primeiramente, se explica que o muro foi um símbolo infame, e que ele veio abaixo sem “um tiro sequer”, ou seja, como que se desmoronou sozinho. E mesmo sendo um fato de tamanha grandeza, traz um dado importante: o líder soviético estava dormindo. Se em outros momentos há elogios ao russo, aqui é a ironia que lhe serve de alento: dorme enquanto a história acontece. Vinte anos depois a revista se utiliza dessa prédica para dizer que imaginava que o “pesadelo comunista” havia acabado, mas resiste em grotões, que no “dicionário de Veja” significa lugares insignificantes, sem importância, atrasados. A revista então apresenta seus inimigos onipresentes, Cuba e Coréia do Norte, e chega no centro de suas preocupações: a América Latina, lugar em que “o velho monstro ainda mostra sua renitência no cemitério de idéias”. Assim, todos os movimentos indígenas, todas as organizações sociais que se remetem a alguma idéia de socialismo, ou apenas de combate ao capitalismo, todos são vítimas de um monstro que já estaria morto (até já estava no cemitério). Perceba-se que é como idéia ultrapassada que esse espectro é tratado, jamais como práxis revolucionária.

Conclui lapidarmente, chamando Marx de “pai besta”. Besta é uma expressão que na língua portuguesa tem vários sentidos. Em um deles remete direto ao demônio, ao diabo (figura muito usual no imaginário cristão anticomunista). Mas besta é também popularmente alguém abobado, desprovido de sentido, ignorante, estúpido. Mais uma vez percebemos que o discurso anticomunista não acabou, e que ele se adapta sempre à realidade presente em que está sendo produzido. Não há análise histórica concreta do que foi o comunismo, e se constrói uma memória difusa a esse respeito. Por outro lado, ataca frontalmente aqueles que seriam ameaça concreta ao projeto capitalista. Como hegemonia consolidada, o capitalismo aparece sempre como algo transhistórico, o “vencedor”, indiscutível, não seria ele próprio um projeto, e sim o “curso natural da história”. Por isso uma experiência como a de Chavez não pode ser nomeada sem que a ela sejam associadas todas as expressões negativas do anticomunismo. O texto que

10Idem, p. 59.

objetiva comemorar, fazer história, segue o embate na história que ainda virá (por isso a remissão ao presente), mas deixando claro o caminho que não pode ser seguido.

Com um sentido muito parecido podemos analisar a cobertura de Veja com relação à queda do muro propriamente dita. Temos dois momentos: o período que precede à queda, e o período em que, imediatamente após, se busca construir memória sobre o fato. É importante lembrar que o ano de 1989 foi um ano marcante na história brasileira, em virtude de ser o ano das primeiras eleições presidenciais diretas para a presidência da República após a ditadura civil-militar. Nesse sentido, toda a cobertura estava centrada nessa questão: como podia o comunismo estar “desmanchando no ar” nos países do Leste e mesmo assim ser difusamente uma ameaça no Brasil? Essa era a tônica da grande imprensa brasileira, sobretudo da Veja. Foi com uma imensa alegria que a revista divulgou a queda do muro, especialmente por ter ocorrido antes das eleições.

Ao analisarmos um exemplar da revista de abril de 1989 percebemos que a desinformação era grande, o que havia eram apenas algumas elucubrações, apontando para o poderia vir a ocorrer. É por isso que a imagem da capa da revista era marcante: a imagem da “foice e martelo” rachados, acompanhados da legenda “O TERREMOTO DA REFORMA SACODE O COMUNISMO: o vento da

11liberdade que varre a Europa do Leste” . O velho elemento “climático – natural” aparece ameaçador, mas seria suplantado pela liberdade que existiria no mundo ocidental.

No editorial, alguns dos preceitos que indicariam a “vitória do comunismo”, mas também por onde ele deveria ser afirmado como alternativa, começam a ser explicitados. A revista enviou dois repórteres para os “países do comunismo em crise”. O ponto alto seria a realização de eleições, elemento que se afirma como diferencial da propalada democracia (como se ela viesse sem o seu acompanhamento

12obrigatório – liberal) . Essas mudanças aparecem como fenômenos naturais: “Esse vento de reforma na União Soviética, impensável até pouco tempo, também sopra com vigor em praticamente todos os países comunistas da Europa”. O repórter agrega o valor da “liberdade” dizendo que “fiquei impressionado com o grau de liberdade que encontrei na Hungria, digno de uma democracia ocidental”. E emenda com outra máxima: “mas o que mais me surpreendeu foi não ter encontrado uma pessoa sequer que defendesse a ortodoxia marxista ou se contrapusesse às reformas econômicas e políticas”. Portanto, é como verdade

11Veja. 5/4/1989.12Ver discussão de WOOD, Ellen. Democracia contra capitalismo. São Paulo, Boitempo, 2003.

13Veja. 5/4/1989, p. 29.14Idem, p. 42.

absoluta que precisariam ser impostas as “reformas”, o que em breve se transformaria em face totalitária do discurso da globalização.

Na matéria “comunistas à beira de um ataque de nervos” de novo a natureza é aludida: “Os soviéticos consagram nas urnas Boris Yeltsin, o apologista da reforma radical, e aceleram o furor do furacão que varre o mundo comunista, desde a Hungria até a Polônia e a Iugoslávia, espalhando em seu rastro mudanças políticas e a abertura para experiências

13capitalistas” . O caráter natural e contra o qual nada se pode fazer é exaltado. A manchete é ainda mais alarmista: “TERREMOTO NO LESTE: os soviéticos infligem nas urnas uma derrota fragorosa à cúpula dirigente e avançam um passo histórico nas mudanças

14que sacodem o comunismo” . A imagem que acompanha o conjunto das matérias é uma ilustração de uma foice e martelo derretendo em vermelho, como se fosse sangue, embora seja gelo, sempre relembra a imagem sanguinária do comunismo. Isso é reforçado pelo tópico “Sangue sob a ponte: muito sangue correu debaixo da ponte do comunismo soviético antes que ele se instalasse na Europa”. Interessante é observar que o “sangue” jamais aparece quando se trata de afirmar a justeza do capitalismo, que aparece sem história, como algo natural.

Foi importante naquele contexto mostrar o impacto econômico das reformas, na medida em que permitiriam a ampliação da expansão do capital: “a Europa comunista é formada hoje por nove países com mais de 150 milhões de habitantes. Junto com a URSS são mais de 430 milhões de pessoas vivendo numa região imensa, de amplos recursos materiais, e instalados bem no meio de um terremoto político e econômico”. Ressalta-se aqui o fato de que se trata de “países comunistas ricos”, e que lá “tudo o que é sólido desmancha no ar e tudo se transforma no seu contrário”. A paráfrase do Manifesto Comunista seria utilizada inúmeras vezes como profética do fim do comunismo, inclusive como forma de pressão aos “comunistas pobres”, africanos, asiáticos e especialmente cubanos.

O que estava em questão fica bem claro na informação trazida na matéria: “Na Hungria a maré reformista chegou ao ponto de o governo permitir a existência de uma Bolsa de Valores, de aprovar o pluripartidarismo e incentivar cadeias ocidentais como Mc´Donalds, Beneton e Adidas a abrir suas lojas em Budapeste”. Ou seja, o capital expandindo-se finalmente para esses lugares “atrasados”.

Ao falar do processo eleitoral na URSS há ainda uma analogia do processo com eleições em 1974 no Brasil, em plena Ditadura. O problema que se colocaria na sociedade pós 84 no Brasil nas eleições

indiretas seria o mesmíssimo: “aquele que diz respeito à democracia, à capacidade da sociedade de estabelecer, nas urnas, quais os limites que se tem para

15a liberdade.” Assim, a associação com as eleições no Brasil ficam ainda como ameaça: a volta da “autoridade”, a manutenção do poder das armas, e os limites da liberdade fossem suplantados. Isso se remete à URSS mas também ao Brasil que precisaria saber como exercer a sua liberdade de voto para não fazer bobagem. Isso vai ficando mais claro na sequência:

Enquanto o comunismo vai degelando na URSS e na Europa, o Brasil, com suas instituições muito mais democráticas, corre o risco de caminhar no sentido das soluções que foram testadas e fracassaram. A julgar por muitas das idéias e programas que são defendidos por políticos brasileiros, de esquerda e de direita, o país pode até ser o último do mundo a querer ser ortodoxamente comunista. Estatização, monopólio de setores inteiros da economia na mão do Estado e proteção de funcionários públicos ineficientes, com base no nepotismo ou no favorecimento, são coisas que o comunismo rico vem combatendo, enquanto no Brasil encontram defensores intransigentes. O Brasil, último pais da América a abolir a escravidão e proclamar a República, um dos últimos a pegar o bonde da industrialização, pode ser também um dos últimos a adotar o comunismo. O comunismo antes das

16reformas que vêm mudando sua face .

Sob o símbolo do atraso, o risco seria grande no Brasil. Essa analogia entre o estado centralizador soviético e o estado centralizador da ditadura no Brasil perseguiria sendo relembrada nos próximos anos. Os motivos dessa centralização e forma do estado não são colocados em questão, são associados ao comunismo, e não, no caso brasileiro, a uma política necessária à expansão do capitalismo subordinado.

A matéria traz um quadro em que “quatro aprendizes vão a luta por lucro e liberdade”, seriam pessoas empreendedoras, que estariam aprendendo a ser capitalistas e poderiam servir de exemplo. Entre suas falas, destaco: “algum desemprego é até saudável, porque as pessoas têm de se mexer e produzir melhor”

17(Zsusanna Ranki, economista) . O exército de reserva de mão-de-obra é legitimado, ao mesmo tempo em que se deve aprender a “empreender” para ser um indivíduo “que deu certo”.

Há também uma tentativa de mostrar que de dentro dos países do leste havia uma busca desenfreada pelas reformas, um desejo capitalístico que aparece tanto no campo das idéias (e da política), como do consumo, bem simbólico de desejo. Vejamos como se

15Idem, p. 45.16Idem.17Idem, p. 48.

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refere à Polônia, um lugar “onde a popularidade de Reagan só rivaliza com a do papa, onde o filme Rocky IV foi o filme mais alugado nas locadoras de vídeo no ano passado – para deliciar o público com a surra que Sylvester Stallone aplica ao desafiante soviético”, e reterá a “falência de idéias”: “onde se declarar comunista, diante de um cidadão comum, é um caminho mais fácil para conquistar um inimigo (...) É lá que o regime deverá assinar uma espécie de concordata”.

Com mais calma, passado o sufoco das eleições, eleito Fernando Collor, o candidato declaradamente capitalista neoliberal, Veja dedicou espaço em sua edição “especial de final de ano”, e mais ainda, final de década, para o tema. Na matéria dedicada ao tema, a manchete ironiza: “Comunismo,

18adeus” : “o fenômeno Gorbachev, o anseio de liberdade dos povos oprimidos e a falência de um modelo econômico emperrado mudam os rumos do século XX. Regimes caquéticos são varridos do mapa, e o socialismo real caminha para a lata de lixo da História”. Por isso, a saudação é inequívoca: adeus se diz para quem vai embora. A partir daí se busca desconstruir qualquer fundamentação histórica para as idéias comunistas. Elas são como que obrigadas a morrerem junto das experiências do socialismo real. Outro elemento que se busca afirmar é que as idéias estariam quase que morrendo “por inanição”, ou seja, porque teria havido uma desistência, uma desilusão, uma descrença sobre elas generalizada, o que encontra um lugar adequado na “lata de lixo da história”.

O que se ressalta sobre o comunismo é a sua idéia, pois é certamente o que pode permanecer para além da experiência do socialismo real. É por isso que a revista se esforça em dizer que essa “idéia” não teria mais defensores:

Os anos 80 viram o fim de uma idéia e das realidades que essa idéia colocou de pé ao longo do século. A idéia do comunismo entrou na sua crise final nesta década. Ela nasceu no século XIX, resultado do casamento entre o trabalho de dois filósofos alemães – Marx e Engels – da economia política inglesa e do socialismo utópico francês, mas só começou a ser implantada num país mais voltado para a Ásia do que para a Europa – a Rússia camponesa e atrasada, cheia de 'ícones e baratas', segundo a definição de Leon Trotsky. A idéia comunista, que despertou enormes esperanças, a idéia pela qual tantas pessoas morreram heroicamente chegou ao fim

19praticamente sem defensores.

Após decretar o “fim da idéia”, segue sempre como porta-voz do que teria sido o comunismo, tanto

18Veja. 31/12/1989, p. 10419Idem, p. 105.

20Idem.21Para discutir a questão, ver, por exemplo: MEYER, Victor. Determinações históricas da crise da economia soviética. Salvador, EDUFBA, 1995.22Idem.23Cf. ABRAMO, Perseu. Padrões de manipulação na grande imprensa. São Paulo, Fundação Perseu Abramo.

no campo concreto como no campo das idéias. A revista se coloca como tradutora, explicadora:

O comunismo que pretendeu conquistar o mundo, transformando-o num paraíso de igualdade, eficiência e plena realização do potencial humano, acabou produzindo novas castas de poderosos mais iguais que os outros, economias falidas e povos escravizados. Assim que os povos submetidos ao comunismo perceberam que havia alguma chance de se rebelarem com sucesso, quando o fracasso econômico chegou a tal ponto que na União Soviética, a segunda maior potência do mundo, a expectativa de vida diminuiu ao contrário de aumentar, a realidade do comunismo veio

20abaixo.

Sem discutir a fundo a questão e as formas do 21crescimento da URSS , Veja complementa, sempre

associando a experiência do Leste com o próprio comunismo: “o comunismo terminou com toda uma série de lutas que os comunistas adoram: greves, passeatas, manifestações enormes e, no caso da Romênia, com o povo pegando em armas para fazer justiça com as próprias mãos.” Um certo sarcasmo se faz presente na afirmação, dando a entender que foi usado contra os comunistas... suas próprias armas. E mais que isso, dissociando em dois campos absolutamente distintos: os comunistas e o povo. Esses dois elementos devem doravante ser separados sempre que forem referidos, como enuncia também a legenda: “o povo faz História sem intermediários e derruba a

22ditadura” .

A partir daí segue o oficialismo, prática comum de dar a outrem a voz para que diga aquilo que não quer ou não pode dizer abertamente, formando um discurso uníssono. Quanto mais “poderosos”, mais oficiais, mais credibilidade para a fala “entre aspas”. É o caso da citação: “na troca de sinais, a economia de mercado foi celebrada, nas palavras do primeiro-ministro iugoslavo Ante Markovic, como 'uma conquista da civilização e instrumento para um desenvolvimento

23mais rápido e eficiente'”. Oficialismo e frasismo serviram aqui para explicar a idéia, que aparece como absoluta, de que a “civilização” vencera. O senso comum sabe que civilização indica uma vaga noção de progresso e superioridade, e estaria em sintonia com o mundo ocidental, que passa a ser consolidado como o grande vencedor.

Com o mesmo sentido teremos várias falas destacadas: “o comunismo não funciona, precisamos começar tudo de novo” (Imre Pozgay, líder húngaro) e

para comprovar essa tese a matéria reiterava zombateiramente: “Se faltava ainda um símbolo definitivo do esboroamento do comunismo, ele foi fornecido na noite de 9 de novembro, pela mais celebrada queda de um muro desde que Josué pôs abaixo as muralhas de Jericó ao som de trombetas dos sacerdotes de Israel 1500 anos antes do nascimento de

24Cristo, segundo a Bíblia” .

Considerando o clima quente relativo às 25eleições no Brasil , e o sentido de utilização do

paradigma democrático como forma de combater qualquer alternativa socialista que viria a se construir ao longo dos anos 1990, é sintomático que na véspera das eleições o entrevistado da revista tenha sido Claude Leffort um intelectual que passou por um processo de transformismo político nos anos 1990, tornando-se assim porta-voz de políticas liberais. O título enunciava: “O fim do totalitarismo: o filósofo francês traça um retrato do maior acontecimento do final do século: a desintegração acelerada dos regimes

26comunistas da Europa” . Há uma associação direta entre comunismo e totalitarismo, que se torna ontológica. Mais que isso, a afirmação de que “O que Lenin e os comunistas não suportavam era a democracia, não apenas a sociedade ocidental”, e de forma destacada pela revista: “as conquistas sociais da Europa Ocidental são fruto da democracia, e não do capitalismo”. Segundo o filósofo, a democracia não permitiria o capitalismo selvagem, através da possibilidade de “exigência” de direitos sociais. O que queremos ressaltar é que essa idéia falaciosa serve também para ocultar o caráter conceitual-histórico da expressão capitalismo. Ele acaba naturalizado, deixando de ser um sistema centrado na contradição fundamental entre capital e trabalho e portanto, fundado na exploração de classes. Essa noção seria apagada, como se nunca isso pudesse ser dito, como se fosse “invencionice” do passado dos dinossáuricos marxistas. Em muitas outras situações essa idéia, associada àquela de que “não há alternativa” seria utilizada para consolidar uma política econômica.

Para Veja, o capitalismo “está no sangue da humanidade”. A partir disso, construiu justificação para suas intervenções em defesa do capital, das empresas, do lucro, da reestruturação produtiva. A ideologia do fim da guerra fria ajudou a legitimar o papel dos Estados Unidos como gendarme mundial, contribuindo para a consolidação ou modificação de sentido dos novos agentes de dominação: a OTAN, a ONU, o FMI, o Banco Mundial. Para Veja, o fim da Guerra Fria teria levado ao fim das ideologias, consolidando o fato de que não há alternativas.

24Veja. 31/12/1989, p. 107.25Analisamos esse contexto eleitoral detidamente em: SILVA, Op. Cit.26Veja. Entrevista. 22/11/1989. p. 6.

Corolário disso seria o fim das esquerdas, que teriam sido enterradas junto com o comunismo. A revista arroga-se então o direito de dizer o que é a esquerda, o seu projeto, e os seus limites, insistindo sempre para sua falência. Há um embaralhamento que visa confundir, constituindo um amálgama confuso em torno de idéias centrais para ação política, especialmente no campo da esquerda: o socialismo, o comunismo, o marxismo. Não contentes em expor sua visão como a única possível, os editores de Veja buscam no campo do inimigo os elementos para legitimar seu programa neoliberal.

A construção de um projeto de hegemonia necessita fundar uma interpretação da História. Com esse intuito se constroem versões sobre o que representaria o “fim da Guerra Fria”, enunciando o próprio “fim da História”. Talvez o nome mais conhecido nesse aspecto tenha sido o de Francis Fukuyama, e a sua entrevista às páginas amarelas

27contribuiu para a disseminação de sua propaganda . Na apresentação da revista, ele: “Virou assunto de coquetéis, e vários litros de tinta foram gastos em jornais e revistas do mundo inteiro para reproduzir, aplaudir e, principalmente, criticar o intelectual.” Ele não foi porém o único, sendo sistemática a presença de formuladores desse projeto, o que permitiu à Veja costurar uma unidade ideológica a ser servida a seus leitores.

É interessante observarmos a relação da revista com esse intelectual. No auge da apologia neoliberal a revista publicou outra entrevista nas páginas amarelas para relembrar que “a história acabou, sim!”. A biografia apresentada pela revista diz que ele

é autor da teoria do fim da história, da qual todo mundo ouviu falar, mas poucos entenderam. Primeiro num artigo publicado quinze anos atrás e depois em livro, ele sustentou que a evolução política da humanidade foi concluída com a morte do comunismo e a vitória da democracia liberal como modelo de governo. Como não há paz nem estabilidade no mundo atual, os críticos concluem que Fukuyama errou. Sua resposta é que o fim da história não é automático, mas um processo que só estará completo com o aprimoramento dos regimes ao redor do globo. Seu último livro, Construção de Estados – Governo e Ordem Mundial no Século XXI, lançado neste ano nos Estados Unidos, trata da importância de criar instituições fortes em nações falidas. Professor de economia política na Universidade Johns Hopkins e membro do conselho que assessora o presidente dos EUA em questões de bioética, Fukuyama, 52 anos, é casado e tem três filhos.

27Rumo à nova ordem. Veja. 27/2/1991. Francis Fukuyama, entrevistado por Flavia Sekles.

50 - A “queda do muro” e a morte do comunismo em Veja História & Luta de Classes, Nº 9 - Junho de 2010 (46-54) - 51

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refere à Polônia, um lugar “onde a popularidade de Reagan só rivaliza com a do papa, onde o filme Rocky IV foi o filme mais alugado nas locadoras de vídeo no ano passado – para deliciar o público com a surra que Sylvester Stallone aplica ao desafiante soviético”, e reterá a “falência de idéias”: “onde se declarar comunista, diante de um cidadão comum, é um caminho mais fácil para conquistar um inimigo (...) É lá que o regime deverá assinar uma espécie de concordata”.

Com mais calma, passado o sufoco das eleições, eleito Fernando Collor, o candidato declaradamente capitalista neoliberal, Veja dedicou espaço em sua edição “especial de final de ano”, e mais ainda, final de década, para o tema. Na matéria dedicada ao tema, a manchete ironiza: “Comunismo,

18adeus” : “o fenômeno Gorbachev, o anseio de liberdade dos povos oprimidos e a falência de um modelo econômico emperrado mudam os rumos do século XX. Regimes caquéticos são varridos do mapa, e o socialismo real caminha para a lata de lixo da História”. Por isso, a saudação é inequívoca: adeus se diz para quem vai embora. A partir daí se busca desconstruir qualquer fundamentação histórica para as idéias comunistas. Elas são como que obrigadas a morrerem junto das experiências do socialismo real. Outro elemento que se busca afirmar é que as idéias estariam quase que morrendo “por inanição”, ou seja, porque teria havido uma desistência, uma desilusão, uma descrença sobre elas generalizada, o que encontra um lugar adequado na “lata de lixo da história”.

O que se ressalta sobre o comunismo é a sua idéia, pois é certamente o que pode permanecer para além da experiência do socialismo real. É por isso que a revista se esforça em dizer que essa “idéia” não teria mais defensores:

Os anos 80 viram o fim de uma idéia e das realidades que essa idéia colocou de pé ao longo do século. A idéia do comunismo entrou na sua crise final nesta década. Ela nasceu no século XIX, resultado do casamento entre o trabalho de dois filósofos alemães – Marx e Engels – da economia política inglesa e do socialismo utópico francês, mas só começou a ser implantada num país mais voltado para a Ásia do que para a Europa – a Rússia camponesa e atrasada, cheia de 'ícones e baratas', segundo a definição de Leon Trotsky. A idéia comunista, que despertou enormes esperanças, a idéia pela qual tantas pessoas morreram heroicamente chegou ao fim

19praticamente sem defensores.

Após decretar o “fim da idéia”, segue sempre como porta-voz do que teria sido o comunismo, tanto

18Veja. 31/12/1989, p. 10419Idem, p. 105.

20Idem.21Para discutir a questão, ver, por exemplo: MEYER, Victor. Determinações históricas da crise da economia soviética. Salvador, EDUFBA, 1995.22Idem.23Cf. ABRAMO, Perseu. Padrões de manipulação na grande imprensa. São Paulo, Fundação Perseu Abramo.

no campo concreto como no campo das idéias. A revista se coloca como tradutora, explicadora:

O comunismo que pretendeu conquistar o mundo, transformando-o num paraíso de igualdade, eficiência e plena realização do potencial humano, acabou produzindo novas castas de poderosos mais iguais que os outros, economias falidas e povos escravizados. Assim que os povos submetidos ao comunismo perceberam que havia alguma chance de se rebelarem com sucesso, quando o fracasso econômico chegou a tal ponto que na União Soviética, a segunda maior potência do mundo, a expectativa de vida diminuiu ao contrário de aumentar, a realidade do comunismo veio

20abaixo.

Sem discutir a fundo a questão e as formas do 21crescimento da URSS , Veja complementa, sempre

associando a experiência do Leste com o próprio comunismo: “o comunismo terminou com toda uma série de lutas que os comunistas adoram: greves, passeatas, manifestações enormes e, no caso da Romênia, com o povo pegando em armas para fazer justiça com as próprias mãos.” Um certo sarcasmo se faz presente na afirmação, dando a entender que foi usado contra os comunistas... suas próprias armas. E mais que isso, dissociando em dois campos absolutamente distintos: os comunistas e o povo. Esses dois elementos devem doravante ser separados sempre que forem referidos, como enuncia também a legenda: “o povo faz História sem intermediários e derruba a

22ditadura” .

A partir daí segue o oficialismo, prática comum de dar a outrem a voz para que diga aquilo que não quer ou não pode dizer abertamente, formando um discurso uníssono. Quanto mais “poderosos”, mais oficiais, mais credibilidade para a fala “entre aspas”. É o caso da citação: “na troca de sinais, a economia de mercado foi celebrada, nas palavras do primeiro-ministro iugoslavo Ante Markovic, como 'uma conquista da civilização e instrumento para um desenvolvimento

23mais rápido e eficiente'”. Oficialismo e frasismo serviram aqui para explicar a idéia, que aparece como absoluta, de que a “civilização” vencera. O senso comum sabe que civilização indica uma vaga noção de progresso e superioridade, e estaria em sintonia com o mundo ocidental, que passa a ser consolidado como o grande vencedor.

Com o mesmo sentido teremos várias falas destacadas: “o comunismo não funciona, precisamos começar tudo de novo” (Imre Pozgay, líder húngaro) e

para comprovar essa tese a matéria reiterava zombateiramente: “Se faltava ainda um símbolo definitivo do esboroamento do comunismo, ele foi fornecido na noite de 9 de novembro, pela mais celebrada queda de um muro desde que Josué pôs abaixo as muralhas de Jericó ao som de trombetas dos sacerdotes de Israel 1500 anos antes do nascimento de

24Cristo, segundo a Bíblia” .

Considerando o clima quente relativo às 25eleições no Brasil , e o sentido de utilização do

paradigma democrático como forma de combater qualquer alternativa socialista que viria a se construir ao longo dos anos 1990, é sintomático que na véspera das eleições o entrevistado da revista tenha sido Claude Leffort um intelectual que passou por um processo de transformismo político nos anos 1990, tornando-se assim porta-voz de políticas liberais. O título enunciava: “O fim do totalitarismo: o filósofo francês traça um retrato do maior acontecimento do final do século: a desintegração acelerada dos regimes

26comunistas da Europa” . Há uma associação direta entre comunismo e totalitarismo, que se torna ontológica. Mais que isso, a afirmação de que “O que Lenin e os comunistas não suportavam era a democracia, não apenas a sociedade ocidental”, e de forma destacada pela revista: “as conquistas sociais da Europa Ocidental são fruto da democracia, e não do capitalismo”. Segundo o filósofo, a democracia não permitiria o capitalismo selvagem, através da possibilidade de “exigência” de direitos sociais. O que queremos ressaltar é que essa idéia falaciosa serve também para ocultar o caráter conceitual-histórico da expressão capitalismo. Ele acaba naturalizado, deixando de ser um sistema centrado na contradição fundamental entre capital e trabalho e portanto, fundado na exploração de classes. Essa noção seria apagada, como se nunca isso pudesse ser dito, como se fosse “invencionice” do passado dos dinossáuricos marxistas. Em muitas outras situações essa idéia, associada àquela de que “não há alternativa” seria utilizada para consolidar uma política econômica.

Para Veja, o capitalismo “está no sangue da humanidade”. A partir disso, construiu justificação para suas intervenções em defesa do capital, das empresas, do lucro, da reestruturação produtiva. A ideologia do fim da guerra fria ajudou a legitimar o papel dos Estados Unidos como gendarme mundial, contribuindo para a consolidação ou modificação de sentido dos novos agentes de dominação: a OTAN, a ONU, o FMI, o Banco Mundial. Para Veja, o fim da Guerra Fria teria levado ao fim das ideologias, consolidando o fato de que não há alternativas.

24Veja. 31/12/1989, p. 107.25Analisamos esse contexto eleitoral detidamente em: SILVA, Op. Cit.26Veja. Entrevista. 22/11/1989. p. 6.

Corolário disso seria o fim das esquerdas, que teriam sido enterradas junto com o comunismo. A revista arroga-se então o direito de dizer o que é a esquerda, o seu projeto, e os seus limites, insistindo sempre para sua falência. Há um embaralhamento que visa confundir, constituindo um amálgama confuso em torno de idéias centrais para ação política, especialmente no campo da esquerda: o socialismo, o comunismo, o marxismo. Não contentes em expor sua visão como a única possível, os editores de Veja buscam no campo do inimigo os elementos para legitimar seu programa neoliberal.

A construção de um projeto de hegemonia necessita fundar uma interpretação da História. Com esse intuito se constroem versões sobre o que representaria o “fim da Guerra Fria”, enunciando o próprio “fim da História”. Talvez o nome mais conhecido nesse aspecto tenha sido o de Francis Fukuyama, e a sua entrevista às páginas amarelas

27contribuiu para a disseminação de sua propaganda . Na apresentação da revista, ele: “Virou assunto de coquetéis, e vários litros de tinta foram gastos em jornais e revistas do mundo inteiro para reproduzir, aplaudir e, principalmente, criticar o intelectual.” Ele não foi porém o único, sendo sistemática a presença de formuladores desse projeto, o que permitiu à Veja costurar uma unidade ideológica a ser servida a seus leitores.

É interessante observarmos a relação da revista com esse intelectual. No auge da apologia neoliberal a revista publicou outra entrevista nas páginas amarelas para relembrar que “a história acabou, sim!”. A biografia apresentada pela revista diz que ele

é autor da teoria do fim da história, da qual todo mundo ouviu falar, mas poucos entenderam. Primeiro num artigo publicado quinze anos atrás e depois em livro, ele sustentou que a evolução política da humanidade foi concluída com a morte do comunismo e a vitória da democracia liberal como modelo de governo. Como não há paz nem estabilidade no mundo atual, os críticos concluem que Fukuyama errou. Sua resposta é que o fim da história não é automático, mas um processo que só estará completo com o aprimoramento dos regimes ao redor do globo. Seu último livro, Construção de Estados – Governo e Ordem Mundial no Século XXI, lançado neste ano nos Estados Unidos, trata da importância de criar instituições fortes em nações falidas. Professor de economia política na Universidade Johns Hopkins e membro do conselho que assessora o presidente dos EUA em questões de bioética, Fukuyama, 52 anos, é casado e tem três filhos.

27Rumo à nova ordem. Veja. 27/2/1991. Francis Fukuyama, entrevistado por Flavia Sekles.

50 - A “queda do muro” e a morte do comunismo em Veja História & Luta de Classes, Nº 9 - Junho de 2010 (46-54) - 51

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Naquele momento sua entrevista servia aparentemente para legi t imar as guerras estadunidenses, indicando que para sua “profecia” se concretizar, as nações “falidas” deveriam se ajustar às regras do jogo, afinal essas regras reafirmariam a evolução política da humanidade com a democracia liberal. Interessante observarmos ainda que pouco tempo depois, (tempos de crise), o intelectual comprometido com o governo dos EUA mais uma vez aparece nas páginas amarelas para dizer que “o liberalismo é o caminho” (23/4/2009). E mesmo em momento de crise do próprio sistema, a apresentação busca inverter essa ordem dizendo que: “Francis Fukuyama ficou famoso com o livro O Fim da História e o Último Homem (1992) ao defender a ideia de que os sistemas políticos encontraram na democracia liberal sua expressão evolutiva final, provocando a ira dos acadêmicos esquerdistas, para quem o pináculo só seria atingido pelo comunismo”. Ou seja, o que importa é manter o discurso apologista da vitória final do capitalismo, e junto com isso apresentar sua receita das adaptações necessárias.

Os anos 1990 deram lugar a manifestações na grande imprensa mundial, repetindo incansavelmente que “não há alternativa”. Essa mesma idéia é expressa por João Paulo dos Reis Velloso: “há um certo equívoco de algumas forças de oposição ao ficarem atrás de um modelo alternativo. Não existe um modelo

28alternativo” . Ao mesmo tempo, amarra isso com um compromisso político, ao discutir o problema do desemprego: “a melhor forma de reduzir o impacto da reestruturação sobre o emprego é flexibilizando as relações de trabalho”, apresentando portanto o desemprego como “uma conquista dos trabalhadores”. Para fundir isso, avalia: “É uma situação que lembra a emergência da primeira Revolução Industrial, quando Marx dizia que tudo que era sólido se dissolvia no ar. Tudo está sendo transformado. Precisamos ter

29alternativas para enfrentar essas mudanças”.

Ao mesmo tempo em que afirma que “não há alternativas”, diz que deve “haver alternativas”, mas essas são muito específicas e se referem exatamente a criar condições para que a globalização seja finalizada, pois ela “é um fato da vida. Nós é que temos de torná-la positiva”. Naturalizando as “desigualdades”, aponta para que se deve “dar prioridade ao ensino fundamental”, pois esta seria a forma privilegiada de “responder aos desafios do mundo globalizado”. Caberia às universidades, portanto, “fazer convênios com a iniciativa privada”, pois “o Estado, sozinho, não t e m m a i s c o n d i ç õ e s d e a l a v a n c a r o

30desenvolvimento” . E assim acaba a entrevista, fechando o cerco em torno da lógica neoliberal,

28Não há via alternativa. João Paulo dos Reis Veloso. Veja. Entrevistado por Consuelo Dieguez. 13/5/1998, p. 14. Grifei.29Idem. Grifei.30Idem, p. 15. Grifei.

fazendo uma alusão a Marx, mais uma vez na forma de chavões, totalmente ideologizados e sem argumentação.

A descaracterização da esquerda prevalece. Na entrevista sob título “a voz da direita”, destaca: “Sem medo de ser feliz, o historiador Paul Johnson cutuca ainda mais as feridas da esquerda, que perdeu o rumo

31da História” . Dois aspectos se destacam. O primeiro, o uso do jargão “sem medo de ser feliz”, sabidamente um slogan de campanha do Partido dos Trabalhadores. Assim, o editor da entrevista fez questão de trazer para a direita o que seria a “verdadeira coragem”. A esquerda é (des)qualificada como quem “perdeu o rumo da história”. Ao lado da fotografia sorridente, lê-se a frase: “é bom que os EUA se interessem pelo mundo. Eles devem ser uma espécie de polícia

32global” , o que está plenamente de acordo com a lógica do fim da Guerra Fria que já foi discutida. Mas, além da atribuição de descarrilamento à esquerda, o olho da segunda página destaca:

Marx foi um embusteiro que distorcia fatos. Seu legado foi conduzir um país rico como a Rússia à pobreza. Derivou todas as teorias de Hegel, assim como os nazistas. Todos os sistemas totalitários do século XX foram de esquerda, embora alguns na

33superfície parecessem de direita .

A conclusão exibe a razão pela qual essa entrevista foi publicada, taxativamente: “Johnson

34adora fustigar a esquerda” . Também por isso, Veja traça o perfil de outras personalidades que contribuam para enfatizar o abandono de qualquer ideário de esquerda. Com esse sentido, a entrevista de Adam Przeworski foi sintomaticamente intitulada “o futuro será melhor”. Ele é apresentado como: “um acadêmico de esquerda que vê o futuro com otimismo. Afirma que o comunismo está morto, a globalização financeira matou a social-democracia e ceifou o poder do movimento sindical, e o desemprego industrial veio

35para ficar” . Como contraponto, para “explicar a globalização”, Veja destacou uma figura muito representativa, George Soros, midiático empresário e especulador financeiro, muito badalado pela grande imprensa mundial, sempre servindo de intelectual da especulação e da caridade. Foram duas entrevistas nas

36páginas amarelas ; reportagem de divulgação de sua 37“obra filantrópica” ; e até texto seu, onde ele “explica

31A voz da direita. Paul Johnson. Veja. Entrevista por Carlos Graieb. 11/3/1998, p. 9. Grifei.32Idem. Grifei.33Idem, p. 10. Grifei.34Idem, p. 9. 35O futuro será melhor. Adam Przeworski. Veja. 18/10/95, p. 7. Grifei.361/5/1996. George Soros. A riqueza não dura para sempre. Entrevistado por Eurípedes Alcântara. Assim vai quebrar. George Soros. Veja. 6/1/1999, Entrevistado por Lauro Jardim.

37O profeta bilionário da agitação. Veja. Dinheiro. Jaime Klintowitz. 29/10/1997, p. 52 a 55.38Por uma sociedade global aberta. George Soros. Veja. Idéias. 24/12/1997, p. 88 a 92.39Homem dos mil anos. Veja. Milênio. 10/1/1996, p. 33. Grifei.40A partir de uma leitura de GRAMSCI, p. 96, vl. 2.41http://www.marxismo.com.br/modules.php?op=modload&name=News&file=article&sid=32. Consulta em 17/5/2010.42Revista Nova Escola. Editora Abril. Julho/2008,

o que é a sociedade aberta e por que a considera tão 38importante” . Soros ocupou um papel de destaque

entre os intelectuais orgânicos que esteve afinado com o projeto delineado e patrulhado por Veja.

Em outro momento, ao apresentar “as primeiras avaliações dos dez séculos em que vivemos perigosamente”, são destacados personagens como Michelangelo, Einstein e até o coelho Pernalonga. A figura de destaque, no entanto, é Gen Gis Khan, que é convenientemente ajustado “à nova ordem”, em oposição aos que “perderam”:

Além do império globalizado e de uma invasão tão traumatizante na China que a mergulhou no horror ao estrangeiro e no i so lac ionismo, os mongóis a inda incentivaram indiretamente o capitalismo. Como? A peste negra, vinda do Oriente, dizimou um terço da população européia. A mortandade foi tanta que aumentou o valor da mão-de-obra e sacudiu as bases do feudalismo. Um argumento no qual nem Karl Marx pensaria – mas esse, coitado, perdeu definitivamente a chance de

39entrar na lista do milênio .

Essa insistência em acabar com as alternativas induz a pensar de maneira única a realidade presente, o que é necessário para fundar o consenso e manter a

40dominação, que é ocultada por essa falsa unidade . Ao buscarmos informações em outros meios de comunicação, descobrimos uma realidade bem diversa dessa de Veja: “em recente enquete da BBC para apurar quem foi o maior filósofo de todos os tempos, Karl Marx ganhou a eleição com o dobro dos votos do segundo colocado, David Hume, candidato da revista The Economist, que fez forte campanha a favor do

41filósofo escocês” . A própria editora Abril, quando soube dessa informação, permitiu a divulgação de uma matéria na revista Nova Escola: “Karl Marx - O filósofo da revolução: O pensador alemão, um dos mais influentes de todos os tempos, investigou a mecânica do capitalismo e previu que o sistema seria

42superado pela emancipação dos trabalhadores” .

O que aparece em Veja é uma busca permanente em desqualificar a “esquerda”, sua história e seu projeto, colocando a si mesma como portadora do projeto vencedor. E o que pode parecer mais estranho, apresentar em alguns momentos o seu projeto como sendo de “esquerda”, como forma de se colocar como

agente principal da história. Isso permite à revista se apresentar como isenta junto a um público difuso. Veja procura capturar as simpatias com a esquerda que, nesse contexto, ela própria tantas vezes apresenta como “sem alternativas”, travestindo-se de “esquerda possível”.

O “problema do comunismo” e as práticas anticomunistas estão presentes na revista a todo o tempo, sempre negando a existência da possibilidade de um projeto de sociedade diferente do seu próprio. Por isso ampliamos a pesquisa para compreender melhor o projeto de Veja, sua amplitude, implicações e contradições. A exemplo do que já observamos ao estudar a imprensa no início do século XX, o anticomunismo se estende a todos os movimentos sociais, a organizações de trabalhadores, a partidos políticos, enfim, a qualquer organização que questione a ordem liberal burguesa. Esse discurso se enfraquece no momento em que, ao menos em tese o “comunismo acabou”. A ausência do inimigo construído é intolerável e, assim, ele não deixa de existir, apenas se reconfigura na idéia de que “não há alternativas”.

Decretar a morte do comunismo foi um objetivo fixo, a revista propôs “muitas mortes do comunismo”. Por exemplo, anuncia “o último prego no caixão: no derradeiro lance da Guerra Fria, Rússia aceita expansão da Otan em troca de ajuda

43econômica” . Nesse sentido também, a literatura anticomunista foi acompanhada pela revista, trazendo resenhas de livros que “dão nova interpretação ao

44bolchevismo” . Segundo a revista, a obra Uma história concisa da Revolução Russa, do “historiador americano” Richard Pipes “para os admiradores do

45falecido regime, é um verdadeiro presente de grego” . Traz daí uma idéia central, a de que o comunismo real sempre seria um regime de manipulação, (o que é transposto para a ação política da esquerda):

Em realidades adversas que cresce a importância de grupelhos de profissionais da atividade revolucionária, que usam a população como massa de manobra e pregam a idéia de que a política é uma atividade moral, na qual não existe espaço para compromissos. [a população faminta tinha] uma visão política incipiente e mais baseada no bolso do que na consciência – e, por essa razão, uma massa ideal para servir de bucha de

46canhão para os revolucionários .

A caracterização do que seria o regime dada pelo autor diz o que faziam os revolucionários, o povo, a política, se colocando como seus intérpretes, tidos como “massa de manobra”. A revista traz a antecipação da “notícia” da publicação do Livro Negro do

43O último prego no caixão. Veja. Izalco Sardenberg. 4/6/1997, p. 34.44Golpe trágico. Veja. Manoel Francisco Brito. 29/10/1997, p. 131.45Idem.46Idem. Grifei.

52 - A “queda do muro” e a morte do comunismo em Veja História & Luta de Classes, Nº 9 - Junho de 2010 (46-54) - 53

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Naquele momento sua entrevista servia aparentemente para legi t imar as guerras estadunidenses, indicando que para sua “profecia” se concretizar, as nações “falidas” deveriam se ajustar às regras do jogo, afinal essas regras reafirmariam a evolução política da humanidade com a democracia liberal. Interessante observarmos ainda que pouco tempo depois, (tempos de crise), o intelectual comprometido com o governo dos EUA mais uma vez aparece nas páginas amarelas para dizer que “o liberalismo é o caminho” (23/4/2009). E mesmo em momento de crise do próprio sistema, a apresentação busca inverter essa ordem dizendo que: “Francis Fukuyama ficou famoso com o livro O Fim da História e o Último Homem (1992) ao defender a ideia de que os sistemas políticos encontraram na democracia liberal sua expressão evolutiva final, provocando a ira dos acadêmicos esquerdistas, para quem o pináculo só seria atingido pelo comunismo”. Ou seja, o que importa é manter o discurso apologista da vitória final do capitalismo, e junto com isso apresentar sua receita das adaptações necessárias.

Os anos 1990 deram lugar a manifestações na grande imprensa mundial, repetindo incansavelmente que “não há alternativa”. Essa mesma idéia é expressa por João Paulo dos Reis Velloso: “há um certo equívoco de algumas forças de oposição ao ficarem atrás de um modelo alternativo. Não existe um modelo

28alternativo” . Ao mesmo tempo, amarra isso com um compromisso político, ao discutir o problema do desemprego: “a melhor forma de reduzir o impacto da reestruturação sobre o emprego é flexibilizando as relações de trabalho”, apresentando portanto o desemprego como “uma conquista dos trabalhadores”. Para fundir isso, avalia: “É uma situação que lembra a emergência da primeira Revolução Industrial, quando Marx dizia que tudo que era sólido se dissolvia no ar. Tudo está sendo transformado. Precisamos ter

29alternativas para enfrentar essas mudanças”.

Ao mesmo tempo em que afirma que “não há alternativas”, diz que deve “haver alternativas”, mas essas são muito específicas e se referem exatamente a criar condições para que a globalização seja finalizada, pois ela “é um fato da vida. Nós é que temos de torná-la positiva”. Naturalizando as “desigualdades”, aponta para que se deve “dar prioridade ao ensino fundamental”, pois esta seria a forma privilegiada de “responder aos desafios do mundo globalizado”. Caberia às universidades, portanto, “fazer convênios com a iniciativa privada”, pois “o Estado, sozinho, não t e m m a i s c o n d i ç õ e s d e a l a v a n c a r o

30desenvolvimento” . E assim acaba a entrevista, fechando o cerco em torno da lógica neoliberal,

28Não há via alternativa. João Paulo dos Reis Veloso. Veja. Entrevistado por Consuelo Dieguez. 13/5/1998, p. 14. Grifei.29Idem. Grifei.30Idem, p. 15. Grifei.

fazendo uma alusão a Marx, mais uma vez na forma de chavões, totalmente ideologizados e sem argumentação.

A descaracterização da esquerda prevalece. Na entrevista sob título “a voz da direita”, destaca: “Sem medo de ser feliz, o historiador Paul Johnson cutuca ainda mais as feridas da esquerda, que perdeu o rumo

31da História” . Dois aspectos se destacam. O primeiro, o uso do jargão “sem medo de ser feliz”, sabidamente um slogan de campanha do Partido dos Trabalhadores. Assim, o editor da entrevista fez questão de trazer para a direita o que seria a “verdadeira coragem”. A esquerda é (des)qualificada como quem “perdeu o rumo da história”. Ao lado da fotografia sorridente, lê-se a frase: “é bom que os EUA se interessem pelo mundo. Eles devem ser uma espécie de polícia

32global” , o que está plenamente de acordo com a lógica do fim da Guerra Fria que já foi discutida. Mas, além da atribuição de descarrilamento à esquerda, o olho da segunda página destaca:

Marx foi um embusteiro que distorcia fatos. Seu legado foi conduzir um país rico como a Rússia à pobreza. Derivou todas as teorias de Hegel, assim como os nazistas. Todos os sistemas totalitários do século XX foram de esquerda, embora alguns na

33superfície parecessem de direita .

A conclusão exibe a razão pela qual essa entrevista foi publicada, taxativamente: “Johnson

34adora fustigar a esquerda” . Também por isso, Veja traça o perfil de outras personalidades que contribuam para enfatizar o abandono de qualquer ideário de esquerda. Com esse sentido, a entrevista de Adam Przeworski foi sintomaticamente intitulada “o futuro será melhor”. Ele é apresentado como: “um acadêmico de esquerda que vê o futuro com otimismo. Afirma que o comunismo está morto, a globalização financeira matou a social-democracia e ceifou o poder do movimento sindical, e o desemprego industrial veio

35para ficar” . Como contraponto, para “explicar a globalização”, Veja destacou uma figura muito representativa, George Soros, midiático empresário e especulador financeiro, muito badalado pela grande imprensa mundial, sempre servindo de intelectual da especulação e da caridade. Foram duas entrevistas nas

36páginas amarelas ; reportagem de divulgação de sua 37“obra filantrópica” ; e até texto seu, onde ele “explica

31A voz da direita. Paul Johnson. Veja. Entrevista por Carlos Graieb. 11/3/1998, p. 9. Grifei.32Idem. Grifei.33Idem, p. 10. Grifei.34Idem, p. 9. 35O futuro será melhor. Adam Przeworski. Veja. 18/10/95, p. 7. Grifei.361/5/1996. George Soros. A riqueza não dura para sempre. Entrevistado por Eurípedes Alcântara. Assim vai quebrar. George Soros. Veja. 6/1/1999, Entrevistado por Lauro Jardim.

37O profeta bilionário da agitação. Veja. Dinheiro. Jaime Klintowitz. 29/10/1997, p. 52 a 55.38Por uma sociedade global aberta. George Soros. Veja. Idéias. 24/12/1997, p. 88 a 92.39Homem dos mil anos. Veja. Milênio. 10/1/1996, p. 33. Grifei.40A partir de uma leitura de GRAMSCI, p. 96, vl. 2.41http://www.marxismo.com.br/modules.php?op=modload&name=News&file=article&sid=32. Consulta em 17/5/2010.42Revista Nova Escola. Editora Abril. Julho/2008,

o que é a sociedade aberta e por que a considera tão 38importante” . Soros ocupou um papel de destaque

entre os intelectuais orgânicos que esteve afinado com o projeto delineado e patrulhado por Veja.

Em outro momento, ao apresentar “as primeiras avaliações dos dez séculos em que vivemos perigosamente”, são destacados personagens como Michelangelo, Einstein e até o coelho Pernalonga. A figura de destaque, no entanto, é Gen Gis Khan, que é convenientemente ajustado “à nova ordem”, em oposição aos que “perderam”:

Além do império globalizado e de uma invasão tão traumatizante na China que a mergulhou no horror ao estrangeiro e no i so lac ionismo, os mongóis a inda incentivaram indiretamente o capitalismo. Como? A peste negra, vinda do Oriente, dizimou um terço da população européia. A mortandade foi tanta que aumentou o valor da mão-de-obra e sacudiu as bases do feudalismo. Um argumento no qual nem Karl Marx pensaria – mas esse, coitado, perdeu definitivamente a chance de

39entrar na lista do milênio .

Essa insistência em acabar com as alternativas induz a pensar de maneira única a realidade presente, o que é necessário para fundar o consenso e manter a

40dominação, que é ocultada por essa falsa unidade . Ao buscarmos informações em outros meios de comunicação, descobrimos uma realidade bem diversa dessa de Veja: “em recente enquete da BBC para apurar quem foi o maior filósofo de todos os tempos, Karl Marx ganhou a eleição com o dobro dos votos do segundo colocado, David Hume, candidato da revista The Economist, que fez forte campanha a favor do

41filósofo escocês” . A própria editora Abril, quando soube dessa informação, permitiu a divulgação de uma matéria na revista Nova Escola: “Karl Marx - O filósofo da revolução: O pensador alemão, um dos mais influentes de todos os tempos, investigou a mecânica do capitalismo e previu que o sistema seria

42superado pela emancipação dos trabalhadores” .

O que aparece em Veja é uma busca permanente em desqualificar a “esquerda”, sua história e seu projeto, colocando a si mesma como portadora do projeto vencedor. E o que pode parecer mais estranho, apresentar em alguns momentos o seu projeto como sendo de “esquerda”, como forma de se colocar como

agente principal da história. Isso permite à revista se apresentar como isenta junto a um público difuso. Veja procura capturar as simpatias com a esquerda que, nesse contexto, ela própria tantas vezes apresenta como “sem alternativas”, travestindo-se de “esquerda possível”.

O “problema do comunismo” e as práticas anticomunistas estão presentes na revista a todo o tempo, sempre negando a existência da possibilidade de um projeto de sociedade diferente do seu próprio. Por isso ampliamos a pesquisa para compreender melhor o projeto de Veja, sua amplitude, implicações e contradições. A exemplo do que já observamos ao estudar a imprensa no início do século XX, o anticomunismo se estende a todos os movimentos sociais, a organizações de trabalhadores, a partidos políticos, enfim, a qualquer organização que questione a ordem liberal burguesa. Esse discurso se enfraquece no momento em que, ao menos em tese o “comunismo acabou”. A ausência do inimigo construído é intolerável e, assim, ele não deixa de existir, apenas se reconfigura na idéia de que “não há alternativas”.

Decretar a morte do comunismo foi um objetivo fixo, a revista propôs “muitas mortes do comunismo”. Por exemplo, anuncia “o último prego no caixão: no derradeiro lance da Guerra Fria, Rússia aceita expansão da Otan em troca de ajuda

43econômica” . Nesse sentido também, a literatura anticomunista foi acompanhada pela revista, trazendo resenhas de livros que “dão nova interpretação ao

44bolchevismo” . Segundo a revista, a obra Uma história concisa da Revolução Russa, do “historiador americano” Richard Pipes “para os admiradores do

45falecido regime, é um verdadeiro presente de grego” . Traz daí uma idéia central, a de que o comunismo real sempre seria um regime de manipulação, (o que é transposto para a ação política da esquerda):

Em realidades adversas que cresce a importância de grupelhos de profissionais da atividade revolucionária, que usam a população como massa de manobra e pregam a idéia de que a política é uma atividade moral, na qual não existe espaço para compromissos. [a população faminta tinha] uma visão política incipiente e mais baseada no bolso do que na consciência – e, por essa razão, uma massa ideal para servir de bucha de

46canhão para os revolucionários .

A caracterização do que seria o regime dada pelo autor diz o que faziam os revolucionários, o povo, a política, se colocando como seus intérpretes, tidos como “massa de manobra”. A revista traz a antecipação da “notícia” da publicação do Livro Negro do

43O último prego no caixão. Veja. Izalco Sardenberg. 4/6/1997, p. 34.44Golpe trágico. Veja. Manoel Francisco Brito. 29/10/1997, p. 131.45Idem.46Idem. Grifei.

52 - A “queda do muro” e a morte do comunismo em Veja História & Luta de Classes, Nº 9 - Junho de 2010 (46-54) - 53

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Comunismo, divulgado antes mesmo de sua publicação no Brasil. O objetivo dessa “reportagem / resenha” é trazer elementos que contribuam para criminalizar a esquerda, os movimentos sociais, a luta de classes, o que é feito através de expressões tais como: “o objetivo era erradicar classes sociais inteiras, os dirigentes comunistas escolheram a maioria das ví t imas entre seus próprios

47compatriotas” . A tônica do livro, que busca servir de referência, é a criminalização: “o crime é intrínseco ao comunismo e não apenas um instrumento de Estado ou um desvio stalinista de uma ideologia de princípios

48humanitários” . Essa idéia central passa a ser repisada em qualquer cobertura de mobilizações sociais e de países identificados com o comunismo ou socialismo.

Será apenas quando o capitalismo entra em crise, a partir de 2009 (a crise começa antes, mas não em Veja) é que o capitalismo começa a ser nomeado novamente, ainda que de forma defensiva, tema esse que seguimos pesquisando. Em todo caso, já conhecemos a prática mais ampla da revista ao longo dos anos 1990, de defensora indelével de que “não há alternativas” e que o comunismo estaria morto. A luta de classes sempre foi escamoteada enquanto tal, e sempre a sua realidade colocada como “idéias fora do lugar”.

Veja se coloca como detentora da noção de “liberdade”, nos termos mais liberais possíveis, ou seja, profundamente individualistas. Sabemos que o comunismo foi “morto” e muitas vezes enterrado ao longo dos anos 1990 na revista em que pesem as insistências latino-americanas tantas vezes criticadas também em Veja. Seguiremos investigando como o mesmo aparece no contexto em que o capitalismo até então indubitável “vencedor” enfrenta a crise de 2008, e como esse discurso anticomunista aparece em Veja.

47Terror vermelho. Veja. 4/2/1998. Izalco Sardenberg. P. 58.48Idem, p. 59. Grifei.

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L

Ernesto Che Guevara: el antiimperialismo y la1

construccíon del socialismo en Cuba

2Inés Nercesian

a propuesta de este artículo es analizar algunas de las ideas de Ernesto Che Guevara en torno al imperialismo y las posibilidades de construcción del socialismo, inscribiéndolas dentro del mapa del pensamiento Latinoamericano de los años 1960. En este trabajo se rescata su figura en tanto economista, político, revolucionario y – ¿por qué no? – pensador Latinoamericano. Ricardo Piglia agrega una mirada más sobre Guevara, que es la figura del lector. Lo compara con Antonio Gramsci como ejemplo antagónico y a la vez simétrico. Gramsci fue un lector extraordinario – dice Piglia – “el político separado de la vida social por la cárcel, que se convierte en el mayor lector de su época. Un lector único (…) desde

3ese lugar sedentario, inmóvil, encerrado” . Guevara, por el contrario, fue un lector que fue formando sus ideas en la movilidad, en la guerra de guerrillas, en la vida política, en su pasaje por los distintos cargos hasta llegar al Ministerio de Industrias en 1961 y nuevamente en la movilidad volcado a la guerra de guerrillas tras la renuncia al Ministerio en 1965.

Guevara, es cierto, fue un hombre de acción y algunos de sus trabajos han dado prueba de ello, como el conocido Guerra de guerrillas (1961), escrito y publicado inmediatamente luego del triunfo de la Revolución Cubana. Por esos años, Guevara sostuvo respecto de la experiencia de Cuba: “esta Revolución es la más genuina creación de la improvisación. En la

1Este texto expone resultados derivados del proyecto colectivo S057, Condiciones sociohistóricas de la democracia y la dictadura en América Latina, 1954-2010, (2008-2010) subsidiado por la SeCyT de la UBA, dirigido por el Dr. Waldo Ansaldi y co-dirigido por la Dra. Patricia Funes. Esta es una versión ampliada del trabajo presentado en el XXVII Congreso ALAS de 2009. Agradezco los comentarios de Patricia Funes en oportunidad del Congreso. 2Magíster en Ciencias Sociales (UBA) y candidata a Doctora en Ciencias Sociales (UBA). Becaria del CONICET y Profesora de Historia Social Latinoamericana en la carrera de Sociología, UBA. 3PIGLIA, Ricardo. Ernesto Guevara, el último lector. Políticas de la Memoria, CEDINCI, Buenos Aires, n. 4, 2003/2004, p. 19. En ese texto Piglia nos recuerda que inclusive en Bolivia cuando Guevara fue detenido tenía en su portafolio de cuero, además de su diario de campaña, sus libros: “Todos se desprenden de aquello que dificulta la marcha y la fuga, pero Guevara sigue todavía conservando (yo creo que es lo único que conserva) los libros que pesan, claro, y son lo contrario a la ligereza que exige la marcha”, p. 19.

4GUEVARA, Ernesto. Carta al escritor Ernesto Sábato, 12 de abril de 1960. En: Selección de escritos. Homenaje a 40 años de su muerte, Buenos Aires, Ediciones Manuel Guerra, 2007, p. 158. 5GUEVARA, Ernesto. Soberanía política, independencia económica, 20 de marzo de 1960. En: Obras Completas, Buenos Aires, Legasa, 1996, p. 23.6Ídem, p.16.7Esta medida alcanzaba propiedades de muchas empresas entre las cuales estaban la United Fruit Sugar Company, la Guantámano Sugar Comapny, entre otras.

Sierra Maestra, un dirigente comunista que nos visitara, admirado de tanta improvisación y de cómo se ajustaban los resortes que funcionaban por su cuenta a una organización central, decía que era el

4caos más perfectamente organizado del universo” .

Sin embargo, Guevara tenía claro que la acción era sólo una parte de la guerra. Con el triunfo de la Revolución, el 1º de enero de 1959, se había dado inicio a una nueva guerra planificada y estratégica, la guerra económica: “…esta batalla del frente económico es diferente a aquellas otras que libráramos en la sierra, éstas son batallas de posiciones, son batallas en donde lo inesperado casi no ocurre, donde se concentran tropas y se preparan cuidadosamente los ataques. Las victorias son el

5producto del trabajo y de la planificación” . Así, se daba inicio a los debates por la construcción del socialismo en Cuba.

“La palabra de orden en este momento es la 6de la planificación”

Con el triunfo de la Revolución, el gobierno cubano comenzó a preocuparse por una posible intervención de los Estados Unidos, por ese entonces bajo el gobierno republicano de Dwight D. Eisenhower. La segunda Ley de Reforma agraria del 17 de mayo que abolió el latifundio limitando la propiedad de la tierra y habilitó la creación del Instituto Nacional de Reforma Agraria (INRA), cuya función era la de administrar todas las cuestiones vinculadas a la tierra, había afectado directamente a los intereses

7norteamericanos . A partir de allí, la tensión con los Estados Unidos se hizo más fuerte y evidente. Durante los primeros años hasta que la Revolución asumió públicamente el carácter marxista, la dirigencia cubana

História & Luta de Classes, Nº 9 - Junho de 2010 (55-60) - 55

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Comunismo, divulgado antes mesmo de sua publicação no Brasil. O objetivo dessa “reportagem / resenha” é trazer elementos que contribuam para criminalizar a esquerda, os movimentos sociais, a luta de classes, o que é feito através de expressões tais como: “o objetivo era erradicar classes sociais inteiras, os dirigentes comunistas escolheram a maioria das ví t imas entre seus próprios

47compatriotas” . A tônica do livro, que busca servir de referência, é a criminalização: “o crime é intrínseco ao comunismo e não apenas um instrumento de Estado ou um desvio stalinista de uma ideologia de princípios

48humanitários” . Essa idéia central passa a ser repisada em qualquer cobertura de mobilizações sociais e de países identificados com o comunismo ou socialismo.

Será apenas quando o capitalismo entra em crise, a partir de 2009 (a crise começa antes, mas não em Veja) é que o capitalismo começa a ser nomeado novamente, ainda que de forma defensiva, tema esse que seguimos pesquisando. Em todo caso, já conhecemos a prática mais ampla da revista ao longo dos anos 1990, de defensora indelével de que “não há alternativas” e que o comunismo estaria morto. A luta de classes sempre foi escamoteada enquanto tal, e sempre a sua realidade colocada como “idéias fora do lugar”.

Veja se coloca como detentora da noção de “liberdade”, nos termos mais liberais possíveis, ou seja, profundamente individualistas. Sabemos que o comunismo foi “morto” e muitas vezes enterrado ao longo dos anos 1990 na revista em que pesem as insistências latino-americanas tantas vezes criticadas também em Veja. Seguiremos investigando como o mesmo aparece no contexto em que o capitalismo até então indubitável “vencedor” enfrenta a crise de 2008, e como esse discurso anticomunista aparece em Veja.

47Terror vermelho. Veja. 4/2/1998. Izalco Sardenberg. P. 58.48Idem, p. 59. Grifei.

54 - A “queda do muro” e a morte do comunismo em Veja

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Ernesto Che Guevara: el antiimperialismo y la1

construccíon del socialismo en Cuba

2Inés Nercesian

a propuesta de este artículo es analizar algunas de las ideas de Ernesto Che Guevara en torno al imperialismo y las posibilidades de construcción del socialismo, inscribiéndolas dentro del mapa del pensamiento Latinoamericano de los años 1960. En este trabajo se rescata su figura en tanto economista, político, revolucionario y – ¿por qué no? – pensador Latinoamericano. Ricardo Piglia agrega una mirada más sobre Guevara, que es la figura del lector. Lo compara con Antonio Gramsci como ejemplo antagónico y a la vez simétrico. Gramsci fue un lector extraordinario – dice Piglia – “el político separado de la vida social por la cárcel, que se convierte en el mayor lector de su época. Un lector único (…) desde

3ese lugar sedentario, inmóvil, encerrado” . Guevara, por el contrario, fue un lector que fue formando sus ideas en la movilidad, en la guerra de guerrillas, en la vida política, en su pasaje por los distintos cargos hasta llegar al Ministerio de Industrias en 1961 y nuevamente en la movilidad volcado a la guerra de guerrillas tras la renuncia al Ministerio en 1965.

Guevara, es cierto, fue un hombre de acción y algunos de sus trabajos han dado prueba de ello, como el conocido Guerra de guerrillas (1961), escrito y publicado inmediatamente luego del triunfo de la Revolución Cubana. Por esos años, Guevara sostuvo respecto de la experiencia de Cuba: “esta Revolución es la más genuina creación de la improvisación. En la

1Este texto expone resultados derivados del proyecto colectivo S057, Condiciones sociohistóricas de la democracia y la dictadura en América Latina, 1954-2010, (2008-2010) subsidiado por la SeCyT de la UBA, dirigido por el Dr. Waldo Ansaldi y co-dirigido por la Dra. Patricia Funes. Esta es una versión ampliada del trabajo presentado en el XXVII Congreso ALAS de 2009. Agradezco los comentarios de Patricia Funes en oportunidad del Congreso. 2Magíster en Ciencias Sociales (UBA) y candidata a Doctora en Ciencias Sociales (UBA). Becaria del CONICET y Profesora de Historia Social Latinoamericana en la carrera de Sociología, UBA. 3PIGLIA, Ricardo. Ernesto Guevara, el último lector. Políticas de la Memoria, CEDINCI, Buenos Aires, n. 4, 2003/2004, p. 19. En ese texto Piglia nos recuerda que inclusive en Bolivia cuando Guevara fue detenido tenía en su portafolio de cuero, además de su diario de campaña, sus libros: “Todos se desprenden de aquello que dificulta la marcha y la fuga, pero Guevara sigue todavía conservando (yo creo que es lo único que conserva) los libros que pesan, claro, y son lo contrario a la ligereza que exige la marcha”, p. 19.

4GUEVARA, Ernesto. Carta al escritor Ernesto Sábato, 12 de abril de 1960. En: Selección de escritos. Homenaje a 40 años de su muerte, Buenos Aires, Ediciones Manuel Guerra, 2007, p. 158. 5GUEVARA, Ernesto. Soberanía política, independencia económica, 20 de marzo de 1960. En: Obras Completas, Buenos Aires, Legasa, 1996, p. 23.6Ídem, p.16.7Esta medida alcanzaba propiedades de muchas empresas entre las cuales estaban la United Fruit Sugar Company, la Guantámano Sugar Comapny, entre otras.

Sierra Maestra, un dirigente comunista que nos visitara, admirado de tanta improvisación y de cómo se ajustaban los resortes que funcionaban por su cuenta a una organización central, decía que era el

4caos más perfectamente organizado del universo” .

Sin embargo, Guevara tenía claro que la acción era sólo una parte de la guerra. Con el triunfo de la Revolución, el 1º de enero de 1959, se había dado inicio a una nueva guerra planificada y estratégica, la guerra económica: “…esta batalla del frente económico es diferente a aquellas otras que libráramos en la sierra, éstas son batallas de posiciones, son batallas en donde lo inesperado casi no ocurre, donde se concentran tropas y se preparan cuidadosamente los ataques. Las victorias son el

5producto del trabajo y de la planificación” . Así, se daba inicio a los debates por la construcción del socialismo en Cuba.

“La palabra de orden en este momento es la 6de la planificación”

Con el triunfo de la Revolución, el gobierno cubano comenzó a preocuparse por una posible intervención de los Estados Unidos, por ese entonces bajo el gobierno republicano de Dwight D. Eisenhower. La segunda Ley de Reforma agraria del 17 de mayo que abolió el latifundio limitando la propiedad de la tierra y habilitó la creación del Instituto Nacional de Reforma Agraria (INRA), cuya función era la de administrar todas las cuestiones vinculadas a la tierra, había afectado directamente a los intereses

7norteamericanos . A partir de allí, la tensión con los Estados Unidos se hizo más fuerte y evidente. Durante los primeros años hasta que la Revolución asumió públicamente el carácter marxista, la dirigencia cubana

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reconocía que la suya era una revolución nacional. “La ideología de nuestra Revolución es bien clara; no sólo ofrecemos a los hombres libertades sino que les ofrecemos pan. No sólo les ofrecemos pan, sino que les ofrecemos también libertades. (…) tenemos la concepción también de que la democracia no admite

8inflexión” . En ese discurso Fidel Castro también negó cualquier filiación ideológica y reiteró que “nuestra revolución no es comunista (…) es una revolución propia, tiene una ideología propia, tiene razones cubanas, es enteramente cubana y enteramente

9americana” . Probablemente, la dirigencia cubana esperaba alejarse de la bipolaridad de la Guerra Fría colocándose más allá de la tensión derecha izquierda y asumiendo una posición cubana y fundamentalmente

10americana .

La preocupación del Che Guevara por el desarrollo y la industrialización cubana estuvo tempranamente desde la victoria de la Revolución. Según sus tesis, era necesario llevar adelante un proceso de industrialización nacional basado en la justicia social (incluida la redistribución de tierras) pero también en la creación de un mercado interno extenso y en la diversificación de los cultivos. “Tenemos que incrementar la industrialización del país sin ignorar los muchos problemas que su proceso

11lleva aparejados” , “(…) debemos abrir nuevos caminos que converjan a la identificación de intereses

12 comunes de nuestros países subdesarrollados” .

Esta insistencia en la necesidad de alentar un proceso de industrialización planificado lo llevó a realizar su primer viaje, a instancias del gobierno cubano, hacia otros países de los llamados subdesarrollados, los cuales, además, ensayaban proyectos colectivos de trabajo. Así recorrió durante tres meses (entre junio y septiembre de 1959) algunos

13países de Asia y África . Luego de este viaje Guevara

8CASTRO, Fidel. El mundo, La Habana 9/5/1959. En: MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. De Martí a Fidel. La Revolución cubana y América Latina, Buenos Aires, Grupo Editorial Norma, 2008, p.184-185.9Ídem. 10En 1960 visitaron la isla Jean Paul Sartre y Simone de Beauvoir. En esa oportunidad Sartre escribió: “En París (…) interrogué a muchos cubanos pero no podía comprender por qué rehusaban decirme si el objetivo de la Revolución Cubana era establecer el socialismo o no. Ahora comprendo por qué no podían decírmelo. Esto es, que la originalidad de esta Revolución consiste precisamente en hacer lo que hace falta, sin tratar de definirlo por medio de una ideología previa”. En: GAMBINI, Hugo. El Che Guevara, Buenos Aires, Paidos, 1968, p. 286.11GUEVARA, Ernesto. Proyecciones sociales del ejército rebelde, enero de 1959. En: Obras…ob. cit., p.12.12Ídem p. 14.13En ese viaje Guevara visitó Egipto, India, Japón, Indonesia, Ceilán (Sri Lanka), Pakistán y Yugoslavia, el país comunista independizado de la Unión Soviética bajo el mando de Joseph Boroz Tito.

tuvo aún más claro que la soberanía política y la soberanía nacional eran inescindibles de la independencia económica y que para lograr esto era fundamental fomentar un proceso de industrialización

14y el desarrollo de una economía planificada . Por ese entonces, Fidel Castro creó un departamento de industrias dentro del Instituto Nacional de Reforma Agraria (INRA) y lo puso a Guevara a su mando. Este cargo fue ocupado por un breve lapso hasta que fue designado presidente del Banco Nacional de Cuba en noviembre de 1959.

La preocupación por el corte de la cuota de azúcar que compraba los Estados Unidos estaba en la cabeza de los líderes cubanos, que veían en el gobierno norteamericano una postura cada vez más hostil. Por ello, desde la visita a Cuba del canciller ruso Anastas Mikoyan, en febrero de 1960, comenzaron a delinearse acuerdos comerciales con la potencia soviética. Un recorte en la cuota de compra de azúcar significaba una

15pérdida importantísima para la isla .

Los acuerdos librados con la Unión Soviética consistían en la venta de azúcar y la compra de petróleo a la URSS a precios convenientes. En ese momento, Guevara sostuvo que parte de la soberanía nacional consistía, precisamente, en poder librar con libertad los distintos acuerdos comerciales. Y además agregó: “Hay quienes pretenden que estas ventas de la Unión Soviética son ventas políticas. (…). Nosotros podemos admitir que eso sea cierto. A la Unión Soviética en uso de su soberanía si le da la gana molestar a los Estados Unidos pero nos vende petróleo y nos compra el azúcar a nosotros para molestar a los Estados Unidos, y a

16nosotros qué, eso es aparte…” . Ciertamente, todo pareciera indicar que el acuerdo librado con la URSS, en materia de compra de azúcar, era más político que económico, dado que la potencia comunista había tenido un gran crecimiento en el volumen de

17producción de azúcar en los últimos años .

El 6 de julio de 1960, tal como previeron los cubanos, Eisenhower determinó el corte de la compra de azúcar lo cual significó el cese de prácticamente todas sus exportaciones a los Estados Unidos. Según Guevara, la cuota de azúcar y el monocultivo cubano significaban una “esclavización económica” por cuanto no permitía a Cuba diversificar su producción y, de esa manera, evitar depender de mercados cautivos, particularmente de los Estados Unidos.

14GUEVARA, Ernesto. Soberanía política, independencia económica, 20 de marzo. En: Obras… ob. cit., p. 15-32. 15De las exportaciones totales de Cuba, dentro de las cuales el azúcar contribuía en un 80%, el mercado norteamericano absorbía antes de la victoria de la revolución el 65,6% en 1955, el 62 % en 1956, el 54,4% en 1957, el 63,3% en 1958. En: MONIZ BANDEIRA. De Martí…, ob. cit., p. 181. 16GUEVARA, Ernesto. Soberanía política, independencia económica, 20 de marzo de 1960. En: Obras… ob. cit., p. 26.17La producción de azúcar de la Unión Soviética había saltado de 3,7 millones de toneladas en 1955 a 5,4 millones en 1958.

En octubre de 1960 se produjo el embargo del comercio cubano con Estados Unidos lo que obligó a definir acuerdos comerciales. En ese momento, el Che viajó personalmente a Checoslovaquia, Unión Soviética y China. En su regreso, en el “Informe de un viaje a los países socialistas” y luego de haber constatado las economías planificadas de la URSS, China y Checoslovaquia reconoció que en Cuba todavía faltaba un gran recorrido en torno la planificación y a la formación de técnicos especializados. Según Guevara deberían ser los mismos obreros y campesinos quienes, en la práctica, debían aprender cuáles son los mecanismos para que su máquina o su tractor rindan más en el proceso

18productivo .

Durante ese viaje por los países socialistas, se produjeron las elecciones nacionales en los Estados Unidos que se dirimían entre el demócrata John F. Kennedy, quien salió ganador, y el republicano Richard Nixon. Esto les convenía a Nikita Kruschev y los soviéticos, dado que interactuar en Washington con un gobierno demócrata era preferible que hacerlo con un republicano en el marco de la política de coexistencia pacífica.

“Se debe ser “marxista” con la misma 19naturalidad con que se es newtoniano” en física”

El 9 de abril de 1961 Guevara escribió Cuba: ¿caso excepcional o vanguardia en la lucha contra el colonialismo? en donde desarrolló sus tesis sobre la cuestión del imperialismo y cuestionó la denominación de los “economistas del régimen imperial” quienes llamaban a los pueblos de América “subdesarrollados”.

Eso es lo que en verdad somos nosotros, los suavemente llamados 'subdesarrollados', en verdad países coloniales, semicoloniales o dependientes. Somos países de economía distorsionada por la acción imperial.

Nosotros los “subdesarrollados” somos también los del monocultivo, los del monoproducto, los del monomercado.

El latifundio, pues, a través de sus conexiones con el imperialismo plasma completamente el llamado “subdesarrollo”, que da por resultado

20los bajos salarios y el desempleo .

Dos cuestiones fundamentales seguían preocupando a Guevara: el problema del imperialismo

18GUEVARA, Ernesto. Informe de un viaje a los países socialistas, 31 de diciembre de 1960. En: Obras… ob. cit., p. 43.19GUEVARA, Ernesto. Notas para el estudio de la ideología de la Revolución Cubana, 8 de Octubre de 1960. En: Obras… ob. cit., p.156. Publicado originalmente en Revista Verde Olivo. 20GUEVARA, Ernesto. Cuba: ¿caso excepcional o vanguardia en la lucha contra el colonialismo?, 9 de abril de 1961. En: Obras… ob. cit. p. 208. Publicado originalmente en Revista Verde Olivo.

y la necesidad de salir de una economía basada en el monocultivo del azúcar.

Contemporáneamente a la publicación de este texto, Estados Unidos estaba pergeñando la invasión a Cuba. La invasión a playa Girón se produjo en abril de 1961 y se encontró con la férrea resistencia del ejército y el pueblo cubano que logró frustrar las expectativas norteamericanas. De inmediato, el gobierno de Kennedy debió asumir públicamente el fracaso de la operación. Fue en ese momento que Castro proclamó el carácter socialista de la Revolución.

En rigor, la primera manifestación pública en ese sentido fue de Guevara en agosto de 1960. Allí sostuvo:

… Esta revolución (…), en caso de ser marxista – y escúchese bien que digo marxista – sería porque descubrió también, por sus métodos los caminos que señalara Marx.

Recientemente una de las altas personalidades de la Unión Soviética, el Viceprimer Ministro Mikoyan, al brindar por la felicidad de la Revolución Cubana, reconocía él – marxista de siempre – que esto era un fenómeno que Marx no había previsto. (…) Y esta Revolución Cubana, sin preocuparse por sus motes, sin averiguar qué se decía de ella, pero oteando constantemente qué quería el pueblo de Cuba

21de ella, fue hacia adelante…” .

La postura de Guevara era que se podía hacer una revolución interpretando correctamente la realidad histórica y utilizando correctamente las fuerzas que intervienen en ella aun sin conocer la teoría. Es decir, si Cuba demostraba en la práctica las leyes del marxismo, se debía a que la Revolución, atendiendo a las contradicciones del propio proceso cubano, había arribado al marxismo y no al revés: “Las leyes del marxismo están presentes en los acontecimientos de la Revolución Cubana, independientemente de que sus líderes profesen o conozcan cabalmente, desde un

22punto de vista teórico, esas leyes” .

En 1961 el diagnóstico de los Estados Unidos fue que las condiciones de subdesarrollo existentes en todos los países de América Latina exigían cambios profundos o de lo contrario se propagarían tendencias nacionalistas o socialistas en la región siguiendo como ejemplo o inspiración el modelo cubano. Después de un repaso por los distintos países de la región, la dirigencia de los Estados Unidos llegó a la siguiente conclusión: “el proceso de modernización del subcontinente demandaba 'drastic revision of the semi-feudal agrarian structure of society' y que esta necesidad se configuraba tan opresiva que, si las

21GUEVARA, Ernesto. Al primer Congreso Latinoamericano de Juventudes, Agosto de 1960. En: Obras… ob. cit., p.34 -35. 22GUEVARA, Ernesto. Notas para el estudio de la ideología de la Revolución Cubana, 8 de Octubre de 1960. En: Obras… ob. cit., p.157. Publicado originalmente en Revista Verde Olivo.

História & Luta de Classes, Nº 9 - Junho de 2010 (55-60) - 57 56 - Ernesto Che Guevara: el antiimperialismo y la construccíon del socialismo en Cuba

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reconocía que la suya era una revolución nacional. “La ideología de nuestra Revolución es bien clara; no sólo ofrecemos a los hombres libertades sino que les ofrecemos pan. No sólo les ofrecemos pan, sino que les ofrecemos también libertades. (…) tenemos la concepción también de que la democracia no admite

8inflexión” . En ese discurso Fidel Castro también negó cualquier filiación ideológica y reiteró que “nuestra revolución no es comunista (…) es una revolución propia, tiene una ideología propia, tiene razones cubanas, es enteramente cubana y enteramente

9americana” . Probablemente, la dirigencia cubana esperaba alejarse de la bipolaridad de la Guerra Fría colocándose más allá de la tensión derecha izquierda y asumiendo una posición cubana y fundamentalmente

10americana .

La preocupación del Che Guevara por el desarrollo y la industrialización cubana estuvo tempranamente desde la victoria de la Revolución. Según sus tesis, era necesario llevar adelante un proceso de industrialización nacional basado en la justicia social (incluida la redistribución de tierras) pero también en la creación de un mercado interno extenso y en la diversificación de los cultivos. “Tenemos que incrementar la industrialización del país sin ignorar los muchos problemas que su proceso

11lleva aparejados” , “(…) debemos abrir nuevos caminos que converjan a la identificación de intereses

12 comunes de nuestros países subdesarrollados” .

Esta insistencia en la necesidad de alentar un proceso de industrialización planificado lo llevó a realizar su primer viaje, a instancias del gobierno cubano, hacia otros países de los llamados subdesarrollados, los cuales, además, ensayaban proyectos colectivos de trabajo. Así recorrió durante tres meses (entre junio y septiembre de 1959) algunos

13países de Asia y África . Luego de este viaje Guevara

8CASTRO, Fidel. El mundo, La Habana 9/5/1959. En: MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. De Martí a Fidel. La Revolución cubana y América Latina, Buenos Aires, Grupo Editorial Norma, 2008, p.184-185.9Ídem. 10En 1960 visitaron la isla Jean Paul Sartre y Simone de Beauvoir. En esa oportunidad Sartre escribió: “En París (…) interrogué a muchos cubanos pero no podía comprender por qué rehusaban decirme si el objetivo de la Revolución Cubana era establecer el socialismo o no. Ahora comprendo por qué no podían decírmelo. Esto es, que la originalidad de esta Revolución consiste precisamente en hacer lo que hace falta, sin tratar de definirlo por medio de una ideología previa”. En: GAMBINI, Hugo. El Che Guevara, Buenos Aires, Paidos, 1968, p. 286.11GUEVARA, Ernesto. Proyecciones sociales del ejército rebelde, enero de 1959. En: Obras…ob. cit., p.12.12Ídem p. 14.13En ese viaje Guevara visitó Egipto, India, Japón, Indonesia, Ceilán (Sri Lanka), Pakistán y Yugoslavia, el país comunista independizado de la Unión Soviética bajo el mando de Joseph Boroz Tito.

tuvo aún más claro que la soberanía política y la soberanía nacional eran inescindibles de la independencia económica y que para lograr esto era fundamental fomentar un proceso de industrialización

14y el desarrollo de una economía planificada . Por ese entonces, Fidel Castro creó un departamento de industrias dentro del Instituto Nacional de Reforma Agraria (INRA) y lo puso a Guevara a su mando. Este cargo fue ocupado por un breve lapso hasta que fue designado presidente del Banco Nacional de Cuba en noviembre de 1959.

La preocupación por el corte de la cuota de azúcar que compraba los Estados Unidos estaba en la cabeza de los líderes cubanos, que veían en el gobierno norteamericano una postura cada vez más hostil. Por ello, desde la visita a Cuba del canciller ruso Anastas Mikoyan, en febrero de 1960, comenzaron a delinearse acuerdos comerciales con la potencia soviética. Un recorte en la cuota de compra de azúcar significaba una

15pérdida importantísima para la isla .

Los acuerdos librados con la Unión Soviética consistían en la venta de azúcar y la compra de petróleo a la URSS a precios convenientes. En ese momento, Guevara sostuvo que parte de la soberanía nacional consistía, precisamente, en poder librar con libertad los distintos acuerdos comerciales. Y además agregó: “Hay quienes pretenden que estas ventas de la Unión Soviética son ventas políticas. (…). Nosotros podemos admitir que eso sea cierto. A la Unión Soviética en uso de su soberanía si le da la gana molestar a los Estados Unidos pero nos vende petróleo y nos compra el azúcar a nosotros para molestar a los Estados Unidos, y a

16nosotros qué, eso es aparte…” . Ciertamente, todo pareciera indicar que el acuerdo librado con la URSS, en materia de compra de azúcar, era más político que económico, dado que la potencia comunista había tenido un gran crecimiento en el volumen de

17producción de azúcar en los últimos años .

El 6 de julio de 1960, tal como previeron los cubanos, Eisenhower determinó el corte de la compra de azúcar lo cual significó el cese de prácticamente todas sus exportaciones a los Estados Unidos. Según Guevara, la cuota de azúcar y el monocultivo cubano significaban una “esclavización económica” por cuanto no permitía a Cuba diversificar su producción y, de esa manera, evitar depender de mercados cautivos, particularmente de los Estados Unidos.

14GUEVARA, Ernesto. Soberanía política, independencia económica, 20 de marzo. En: Obras… ob. cit., p. 15-32. 15De las exportaciones totales de Cuba, dentro de las cuales el azúcar contribuía en un 80%, el mercado norteamericano absorbía antes de la victoria de la revolución el 65,6% en 1955, el 62 % en 1956, el 54,4% en 1957, el 63,3% en 1958. En: MONIZ BANDEIRA. De Martí…, ob. cit., p. 181. 16GUEVARA, Ernesto. Soberanía política, independencia económica, 20 de marzo de 1960. En: Obras… ob. cit., p. 26.17La producción de azúcar de la Unión Soviética había saltado de 3,7 millones de toneladas en 1955 a 5,4 millones en 1958.

En octubre de 1960 se produjo el embargo del comercio cubano con Estados Unidos lo que obligó a definir acuerdos comerciales. En ese momento, el Che viajó personalmente a Checoslovaquia, Unión Soviética y China. En su regreso, en el “Informe de un viaje a los países socialistas” y luego de haber constatado las economías planificadas de la URSS, China y Checoslovaquia reconoció que en Cuba todavía faltaba un gran recorrido en torno la planificación y a la formación de técnicos especializados. Según Guevara deberían ser los mismos obreros y campesinos quienes, en la práctica, debían aprender cuáles son los mecanismos para que su máquina o su tractor rindan más en el proceso

18productivo .

Durante ese viaje por los países socialistas, se produjeron las elecciones nacionales en los Estados Unidos que se dirimían entre el demócrata John F. Kennedy, quien salió ganador, y el republicano Richard Nixon. Esto les convenía a Nikita Kruschev y los soviéticos, dado que interactuar en Washington con un gobierno demócrata era preferible que hacerlo con un republicano en el marco de la política de coexistencia pacífica.

“Se debe ser “marxista” con la misma 19naturalidad con que se es newtoniano” en física”

El 9 de abril de 1961 Guevara escribió Cuba: ¿caso excepcional o vanguardia en la lucha contra el colonialismo? en donde desarrolló sus tesis sobre la cuestión del imperialismo y cuestionó la denominación de los “economistas del régimen imperial” quienes llamaban a los pueblos de América “subdesarrollados”.

Eso es lo que en verdad somos nosotros, los suavemente llamados 'subdesarrollados', en verdad países coloniales, semicoloniales o dependientes. Somos países de economía distorsionada por la acción imperial.

Nosotros los “subdesarrollados” somos también los del monocultivo, los del monoproducto, los del monomercado.

El latifundio, pues, a través de sus conexiones con el imperialismo plasma completamente el llamado “subdesarrollo”, que da por resultado

20los bajos salarios y el desempleo .

Dos cuestiones fundamentales seguían preocupando a Guevara: el problema del imperialismo

18GUEVARA, Ernesto. Informe de un viaje a los países socialistas, 31 de diciembre de 1960. En: Obras… ob. cit., p. 43.19GUEVARA, Ernesto. Notas para el estudio de la ideología de la Revolución Cubana, 8 de Octubre de 1960. En: Obras… ob. cit., p.156. Publicado originalmente en Revista Verde Olivo. 20GUEVARA, Ernesto. Cuba: ¿caso excepcional o vanguardia en la lucha contra el colonialismo?, 9 de abril de 1961. En: Obras… ob. cit. p. 208. Publicado originalmente en Revista Verde Olivo.

y la necesidad de salir de una economía basada en el monocultivo del azúcar.

Contemporáneamente a la publicación de este texto, Estados Unidos estaba pergeñando la invasión a Cuba. La invasión a playa Girón se produjo en abril de 1961 y se encontró con la férrea resistencia del ejército y el pueblo cubano que logró frustrar las expectativas norteamericanas. De inmediato, el gobierno de Kennedy debió asumir públicamente el fracaso de la operación. Fue en ese momento que Castro proclamó el carácter socialista de la Revolución.

En rigor, la primera manifestación pública en ese sentido fue de Guevara en agosto de 1960. Allí sostuvo:

… Esta revolución (…), en caso de ser marxista – y escúchese bien que digo marxista – sería porque descubrió también, por sus métodos los caminos que señalara Marx.

Recientemente una de las altas personalidades de la Unión Soviética, el Viceprimer Ministro Mikoyan, al brindar por la felicidad de la Revolución Cubana, reconocía él – marxista de siempre – que esto era un fenómeno que Marx no había previsto. (…) Y esta Revolución Cubana, sin preocuparse por sus motes, sin averiguar qué se decía de ella, pero oteando constantemente qué quería el pueblo de Cuba

21de ella, fue hacia adelante…” .

La postura de Guevara era que se podía hacer una revolución interpretando correctamente la realidad histórica y utilizando correctamente las fuerzas que intervienen en ella aun sin conocer la teoría. Es decir, si Cuba demostraba en la práctica las leyes del marxismo, se debía a que la Revolución, atendiendo a las contradicciones del propio proceso cubano, había arribado al marxismo y no al revés: “Las leyes del marxismo están presentes en los acontecimientos de la Revolución Cubana, independientemente de que sus líderes profesen o conozcan cabalmente, desde un

22punto de vista teórico, esas leyes” .

En 1961 el diagnóstico de los Estados Unidos fue que las condiciones de subdesarrollo existentes en todos los países de América Latina exigían cambios profundos o de lo contrario se propagarían tendencias nacionalistas o socialistas en la región siguiendo como ejemplo o inspiración el modelo cubano. Después de un repaso por los distintos países de la región, la dirigencia de los Estados Unidos llegó a la siguiente conclusión: “el proceso de modernización del subcontinente demandaba 'drastic revision of the semi-feudal agrarian structure of society' y que esta necesidad se configuraba tan opresiva que, si las

21GUEVARA, Ernesto. Al primer Congreso Latinoamericano de Juventudes, Agosto de 1960. En: Obras… ob. cit., p.34 -35. 22GUEVARA, Ernesto. Notas para el estudio de la ideología de la Revolución Cubana, 8 de Octubre de 1960. En: Obras… ob. cit., p.157. Publicado originalmente en Revista Verde Olivo.

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clases poseedoras impedían la revolución de las clases medias, la revolución obrera y campesina se tornaría

23inevitable” . Estas fueron las premisas con las que Estados Unidos elaboró la política hacia América

24Latina conocida como Alianza para el Progreso .

El lanzamiento de esta política se desarrolló en Uruguay a partir del 5 de agosto de 1961. En el discurso del Che, quien entonces ya era Ministro de Industrias desde febrero de 1961, hubo una fuerte crítica a la política norteamericana. El delegado de los Estados Unidos que estaba encargado de abrir la sesión comenzó su discurso citando a José Martí con la siguiente frase: “Los americanos somos uno en el origen, en la esperanza y en el peligro”, en franca alusión al “peligro” de una segunda revolución en América Latina. Cuando le llegó su turno, Guevara respondió también con palabras de Martí: “El pueblo que compra manda, el pueblo que vende sirve; hay que equilibrar el comercio para asegurar la libertad; el pueblo que quiere morir, vende a un solo pueblo, y el

25que quiere salvarse vende a más de uno” . Guevara advirtió, además, que en la elaboración de la Alianza para el Progreso el tema de la industrialización no figuraba como problema cuando, en rigor, era precisamente ése el problema de las economías latinoamericanas, lo cual las obligaba a perpetuar su dependencia.

En febrero de 1962 se produjo la Segunda Declaración de La Habana en donde Cuba reafirmó que había comenzado el proceso de construcción del socialismo. En esa declaración Fidel Castro sostuvo que el deber de todo revolucionario es hacer la revolución y que no es propio de revolucionarios sentarse para ver el cadáver del imperialismo sino que

26había que pasar a la acción . En octubre de 1962 se produjo la crisis de los misiles a partir de la cual se tensaron las relaciones entre Cuba y la URSS. Durante el conflicto, la URSS, en acuerdo con los EEUU y sin consultar al gobierno cubano, decidió la retirada de los misiles y los bombarderos, disgustando a la dirigencia

23En MONIZ BANDEIRA. De Martí…, ob. cit., p. 273.24La Alianza para el Progreso suponía que los EEUU contribuirían con apoyo económico e inclusive político para que Latinoamérica avanzara hacia un proceso de reformas moderadas y redistributivas que implicaran salir del subdesarrollo, evitando así la emergencia de procesos radicales tipo Cuba.25GUEVARA, Ernesto. Discurso pronunciado el 8 de agosto de 1961, en la reunión del CIES celebrada en Punta del Este, Uruguay. En: Obras…ob. cit., p. 221. 26Mikoyan, el ministro soviético, manifestó la disconformidad del gobierno de la URSS con la Declaración de La Habana. Según éste, la Declaración se mostraba contraria a la política de coexistencia pacífica y no sólo privaba a Cuba del apoyo de otros países latinoamericanos sino que perjudicaba, en el continente, a los propios partidos comunistas, cuyas quejas llegaban a Moscú. En: MONIZ BANDEIRA. De Martí…, ob. cit., p. 409.

cubana. Luego de esto, se produjo una tensión entre Cuba y la potencia comunista, que permaneció hasta 1963.

A inicios de 1962 fue nombrado presidente del INRA Carlos Rafael Rodríguez, uno de los principales dirigentes del Partido Socialista Popular (PSP). A partir de allí se inició un fuerte debate entre este viejo

27líder del PSP y el Che Guevara . La propuesta de los primeros era el aumento de los incentivos de trabajo, la liberación de precios y una mayor descentralización de la economía lo cual significaba una suerte de restauración de las leyes del mercado.

Por el contrario, según Guevara, la socialización de los medios de producción modificaba el funcionamiento de la ley del valor. El libre juego del mercado debía ir restringiéndose a través de una planificación centralizada eliminando el intercambio mercantil entre empresas estatales. A su vez, proponía que, sin despreciar los estímulos materiales se

28jerarquizaran los estímulos morales . Según Guevara, debía crearse “la idea general de cooperación entre todos, la idea de pertenecer a un gran conjunto que es el de la población del país”, e impulsar “el desarrollo

29de su conciencia del deber social” . Asimismo, para la construcción del socialismo, es decir una nueva sociedad, era necesario crear un hombre nuevo con relaciones basadas en la conciencia y en la ética de la

30solidaridad .

27Vale recordar que en 1962 se formó el Partido Unido de la Revolución Socialista (PURSC), que vinculaba a la vieja guardia del Partido Socialista Popular con el Movimiento 26 de julio. 28Al respecto sostenía Guevara: “Consideramos que debemos luchar con toda nuestra fuerza para que el estímulo moral supla al estímulo material dentro de lo posible durante el mayor tiempo posible, es decir, estamos fijando un proceso relativo, no estamos fijando la exclusión del estímulo material, simplemente estamos fijando que debemos luchar porque el estímulo moral en el mayor tiempo posible sea el factor determinante en la actuación de los obreros. Proponemos hacer una fórmula mixta. No obstruir el estímulo material, pero no hacer el estímulo material cuantitativo sino cualitativo”, GUEVARA, Ernesto. Actas del Ministerio de Industrias, reunión bimestral, 20 de enero de 1962. En: Apuntes críticos a la Economía Política, Bogotá, Ocean Sur, 2007, p. 254. Estos debates también se encuentran desarrollados en NASSIF, Rosa. El Che y la construcción del socialismo. Política y Teoría, Año XXIV, n. 63, Buenos Aires, Agosto / Octubre 2007. 29GUEVARA, Ernesto, citado por MONIZ BANDEIRA: De Martí... ob. cit., p. 435. 30La tesis del hombre nuevo fue desarrollada ampliamente en “El socialismo y el Hombre en Cuba”, Marcha 12 de marzo de 1965. Allí sostuvo: “para construir el comunismo, simultáneamente con la base material hay que hacer al hombre nuevo. De allí que sea tan importante elegir correctamente el instrumento de movilización de las masas. Ese instrumento debe ser de índole moral, fundamentalmente sin olvidar una correcta utilización del estímulo material, sobre todo de naturaleza social”. En: Obras…ob. cit., p.188.

El trabajo voluntario es la expresión genuina de la actitud comunista ante el trabajo, en una sociedad donde los medios fundamentales de producción son de propiedad social; es el ejemplo de los hombres que aman la causa de los proletarios y que subordinan a esa causa sus momentos de recreo y de descanso para cumplir abnegadamente con las tareas de la

31Revolución .

Además, con relación al partido, Guevara sostuvo: “…la acción del partido de vanguardia es la de levantar al máximo la bandera (…) del interés moral, la del estímulo moral, la de los hombres que luchan y se

32sacrifican…” .

En 1962 se aprobó el Plan Cuatrianual (1962-1965) que impulsaba la diversificación de la agricultura y un desarrollo industrial que perseguía el interés de lograr independencia económica. Por esos años, comenzaba a conocerse la polémica Chino-Soviética. Las diferencias de China con la URSS venían desde 1956, con la aprobación de las Tesis del

33XX Congreso del PCUS , pero se tornaron públicas en 1963, cuando China cuestionó globalmente a la línea de la URSS.

En esos años, Guevara libró una serie de discusiones con los técnicos Ernest Mandel y Charles Bettelheim, en torno a las teorías del valor y la construcción del socialismo en Cuba. Bettelheim

31GUEVARA, Ernesto. Una actitud nueva frente al trabajo, agosto de 1964. En: Obras…ob. cit., p. 147. El trabajo voluntario es el que se realiza fuera las horas normales de trabajo sin percibir remuneración económica adicional. Guevara practicó él mismo el trabajo voluntario en los cañaverales de Cuba. 32GUEVARA, Ernesto. Sobre la construcción del Partido, marzo de 1963. En: Obras… ob. cit., p. 104. 33En el Congreso Nº XX del Partido Comunista Unión Soviética (PCUS) hubo dos documentos clave. Uno fue el Informe secreto en donde se cuestionó la política staliniana y el otro fue el informe del Comité Central acerca de la política exterior e interior. En este último, se proclamó la vía pacífica, bajo el supuesto de que la correlación de fuerzas en el mundo había cambiado a favor del socialismo. Así, se cuestionaba la “in-evitabilidad de las guerras”. Con relación a la política exterior, se asumía una política de coexistencia pacífica con el capitalismo, bajo el supuesto de que la superioridad económica del comunismo superaría al desarrollo del capitalismo y, de ese modo, este último sería enterrado. Para el Partido Comunista de China estas tesis tenían un carácter revisionista que se fundamentaba en la sustracción de la noción de imperialismo. El PC de China sostenía que “la existencia de un país socialista está totalmente en contra de la voluntad de los imperialistas”, de modo que no cabía posibilidad de que países socialistas y comunistas pudieran coexistir pacíficamente, la hostilidad se haría presente en las relaciones tanto políticas como comerciales. Con estas tesis, el PCUS abría paso a la eliminación de la dictadura del proletariado como fase necesaria para la transición al socialismo, en reemplazo de una propuesta que consideraba como posibilidad a la vía pacífica. En: ECHAGÜE, Carlos. Revolución, Restauración y crisis en la Unión Soviética, Buenos Aires, Agora, 1995.

desconfiaba de que pudiera llevarse a cabo la transición al socialismo y, a su juicio, algunos elementos inherentes al capitalismo (la mercancía y la moneda) eran necesarios en la fase de transición. Guevara cuestionó fuertemente estas tesis. Según él, no sólo era posible la construcción del socialismo, sino que Cuba tenía condiciones objetivas que permitían la socialización del trabajo, quemando etapas y emprendiendo la construcción del socialismo.

Hacia 1964, el proyecto de industrialización acelerada que había impulsado y alentado Guevara comenzó a mostrar algunos problemas. A partir de allí, todo pareciera indicar que el gobierno cubano, particularmente Fidel Castro, fue instado por los soviéticos a abandonar el proyecto de industrialización acelerada que defendía Guevara y reorientarse a la producción de la caña de azúcar. Esto significaba la asignación de Cuba dentro del mapa del mundo comunista en la cual la isla debería producir azúcar y exportarla de un modo similar a lo que había realizado con los Estados Unidos, pero ahora dentro del bloque comunista.

Este acuerdo significaba la pérdida de peso de la línea impulsada por Guevara para quien la industrialización y la planificación de la economía basadas en criterios morales de solidaridad y en la creación del hombre nuevo eran fundamentales. El alineamiento con la URSS quedó plasmado en 1964 cuando se firmó el Tratado Comercial por 5 años que incluía la “división internacional del trabajo” por la cual Cuba debía proveer azúcar a la URSS y demás países del bloque. Con ese tratado, se subordinaba la diversificación agrícola y el desarrollo industrial a la producción de azúcar y, en línea con esto, se creó en 1964 el “Ministerio del Azúcar” que salía del de Industrias.

En diciembre de 1964 el Che Guevara viajó hacia Nueva York y luego siguió un recorrido que duró tres meses por Asia y África. Con ese viaje, Guevara tenía claro que para que prosperara la revolución cubana era necesario tener un aliado importante en América Latina para poder fortalecerse. En febrero de 1965 dio un discurso en Argel en donde cuestionó a la URSS sosteniendo que no era posible hablar de “comercio de beneficio mutuo” cuando éste se basaba en los precios que la ley del valor y las relaciones de intercambio desigual imponían a los países atrasados. Y agregó: “Si establecemos este tipo de relación entre los dos grupos de naciones, debemos convenir en que los países socialistas son, en cierta manera, cómplices de la explotación imperialista. (…) Los países socialistas tienen el deber moral de liquidar su complicidad tácita con los países explotadores del

34Occidente” . Guevara discrepaba con reducir a Cuba a

34GUEVARA, Ernesto. En: Cuadernos de Marcha, Nº 7, noviembre de 1967.

História & Luta de Classes, Nº 9 - Junho de 2010 (55-60) - 59 58 - Ernesto Che Guevara: el antiimperialismo y la construccíon del socialismo en Cuba

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clases poseedoras impedían la revolución de las clases medias, la revolución obrera y campesina se tornaría

23inevitable” . Estas fueron las premisas con las que Estados Unidos elaboró la política hacia América

24Latina conocida como Alianza para el Progreso .

El lanzamiento de esta política se desarrolló en Uruguay a partir del 5 de agosto de 1961. En el discurso del Che, quien entonces ya era Ministro de Industrias desde febrero de 1961, hubo una fuerte crítica a la política norteamericana. El delegado de los Estados Unidos que estaba encargado de abrir la sesión comenzó su discurso citando a José Martí con la siguiente frase: “Los americanos somos uno en el origen, en la esperanza y en el peligro”, en franca alusión al “peligro” de una segunda revolución en América Latina. Cuando le llegó su turno, Guevara respondió también con palabras de Martí: “El pueblo que compra manda, el pueblo que vende sirve; hay que equilibrar el comercio para asegurar la libertad; el pueblo que quiere morir, vende a un solo pueblo, y el

25que quiere salvarse vende a más de uno” . Guevara advirtió, además, que en la elaboración de la Alianza para el Progreso el tema de la industrialización no figuraba como problema cuando, en rigor, era precisamente ése el problema de las economías latinoamericanas, lo cual las obligaba a perpetuar su dependencia.

En febrero de 1962 se produjo la Segunda Declaración de La Habana en donde Cuba reafirmó que había comenzado el proceso de construcción del socialismo. En esa declaración Fidel Castro sostuvo que el deber de todo revolucionario es hacer la revolución y que no es propio de revolucionarios sentarse para ver el cadáver del imperialismo sino que

26había que pasar a la acción . En octubre de 1962 se produjo la crisis de los misiles a partir de la cual se tensaron las relaciones entre Cuba y la URSS. Durante el conflicto, la URSS, en acuerdo con los EEUU y sin consultar al gobierno cubano, decidió la retirada de los misiles y los bombarderos, disgustando a la dirigencia

23En MONIZ BANDEIRA. De Martí…, ob. cit., p. 273.24La Alianza para el Progreso suponía que los EEUU contribuirían con apoyo económico e inclusive político para que Latinoamérica avanzara hacia un proceso de reformas moderadas y redistributivas que implicaran salir del subdesarrollo, evitando así la emergencia de procesos radicales tipo Cuba.25GUEVARA, Ernesto. Discurso pronunciado el 8 de agosto de 1961, en la reunión del CIES celebrada en Punta del Este, Uruguay. En: Obras…ob. cit., p. 221. 26Mikoyan, el ministro soviético, manifestó la disconformidad del gobierno de la URSS con la Declaración de La Habana. Según éste, la Declaración se mostraba contraria a la política de coexistencia pacífica y no sólo privaba a Cuba del apoyo de otros países latinoamericanos sino que perjudicaba, en el continente, a los propios partidos comunistas, cuyas quejas llegaban a Moscú. En: MONIZ BANDEIRA. De Martí…, ob. cit., p. 409.

cubana. Luego de esto, se produjo una tensión entre Cuba y la potencia comunista, que permaneció hasta 1963.

A inicios de 1962 fue nombrado presidente del INRA Carlos Rafael Rodríguez, uno de los principales dirigentes del Partido Socialista Popular (PSP). A partir de allí se inició un fuerte debate entre este viejo

27líder del PSP y el Che Guevara . La propuesta de los primeros era el aumento de los incentivos de trabajo, la liberación de precios y una mayor descentralización de la economía lo cual significaba una suerte de restauración de las leyes del mercado.

Por el contrario, según Guevara, la socialización de los medios de producción modificaba el funcionamiento de la ley del valor. El libre juego del mercado debía ir restringiéndose a través de una planificación centralizada eliminando el intercambio mercantil entre empresas estatales. A su vez, proponía que, sin despreciar los estímulos materiales se

28jerarquizaran los estímulos morales . Según Guevara, debía crearse “la idea general de cooperación entre todos, la idea de pertenecer a un gran conjunto que es el de la población del país”, e impulsar “el desarrollo

29de su conciencia del deber social” . Asimismo, para la construcción del socialismo, es decir una nueva sociedad, era necesario crear un hombre nuevo con relaciones basadas en la conciencia y en la ética de la

30solidaridad .

27Vale recordar que en 1962 se formó el Partido Unido de la Revolución Socialista (PURSC), que vinculaba a la vieja guardia del Partido Socialista Popular con el Movimiento 26 de julio. 28Al respecto sostenía Guevara: “Consideramos que debemos luchar con toda nuestra fuerza para que el estímulo moral supla al estímulo material dentro de lo posible durante el mayor tiempo posible, es decir, estamos fijando un proceso relativo, no estamos fijando la exclusión del estímulo material, simplemente estamos fijando que debemos luchar porque el estímulo moral en el mayor tiempo posible sea el factor determinante en la actuación de los obreros. Proponemos hacer una fórmula mixta. No obstruir el estímulo material, pero no hacer el estímulo material cuantitativo sino cualitativo”, GUEVARA, Ernesto. Actas del Ministerio de Industrias, reunión bimestral, 20 de enero de 1962. En: Apuntes críticos a la Economía Política, Bogotá, Ocean Sur, 2007, p. 254. Estos debates también se encuentran desarrollados en NASSIF, Rosa. El Che y la construcción del socialismo. Política y Teoría, Año XXIV, n. 63, Buenos Aires, Agosto / Octubre 2007. 29GUEVARA, Ernesto, citado por MONIZ BANDEIRA: De Martí... ob. cit., p. 435. 30La tesis del hombre nuevo fue desarrollada ampliamente en “El socialismo y el Hombre en Cuba”, Marcha 12 de marzo de 1965. Allí sostuvo: “para construir el comunismo, simultáneamente con la base material hay que hacer al hombre nuevo. De allí que sea tan importante elegir correctamente el instrumento de movilización de las masas. Ese instrumento debe ser de índole moral, fundamentalmente sin olvidar una correcta utilización del estímulo material, sobre todo de naturaleza social”. En: Obras…ob. cit., p.188.

El trabajo voluntario es la expresión genuina de la actitud comunista ante el trabajo, en una sociedad donde los medios fundamentales de producción son de propiedad social; es el ejemplo de los hombres que aman la causa de los proletarios y que subordinan a esa causa sus momentos de recreo y de descanso para cumplir abnegadamente con las tareas de la

31Revolución .

Además, con relación al partido, Guevara sostuvo: “…la acción del partido de vanguardia es la de levantar al máximo la bandera (…) del interés moral, la del estímulo moral, la de los hombres que luchan y se

32sacrifican…” .

En 1962 se aprobó el Plan Cuatrianual (1962-1965) que impulsaba la diversificación de la agricultura y un desarrollo industrial que perseguía el interés de lograr independencia económica. Por esos años, comenzaba a conocerse la polémica Chino-Soviética. Las diferencias de China con la URSS venían desde 1956, con la aprobación de las Tesis del

33XX Congreso del PCUS , pero se tornaron públicas en 1963, cuando China cuestionó globalmente a la línea de la URSS.

En esos años, Guevara libró una serie de discusiones con los técnicos Ernest Mandel y Charles Bettelheim, en torno a las teorías del valor y la construcción del socialismo en Cuba. Bettelheim

31GUEVARA, Ernesto. Una actitud nueva frente al trabajo, agosto de 1964. En: Obras…ob. cit., p. 147. El trabajo voluntario es el que se realiza fuera las horas normales de trabajo sin percibir remuneración económica adicional. Guevara practicó él mismo el trabajo voluntario en los cañaverales de Cuba. 32GUEVARA, Ernesto. Sobre la construcción del Partido, marzo de 1963. En: Obras… ob. cit., p. 104. 33En el Congreso Nº XX del Partido Comunista Unión Soviética (PCUS) hubo dos documentos clave. Uno fue el Informe secreto en donde se cuestionó la política staliniana y el otro fue el informe del Comité Central acerca de la política exterior e interior. En este último, se proclamó la vía pacífica, bajo el supuesto de que la correlación de fuerzas en el mundo había cambiado a favor del socialismo. Así, se cuestionaba la “in-evitabilidad de las guerras”. Con relación a la política exterior, se asumía una política de coexistencia pacífica con el capitalismo, bajo el supuesto de que la superioridad económica del comunismo superaría al desarrollo del capitalismo y, de ese modo, este último sería enterrado. Para el Partido Comunista de China estas tesis tenían un carácter revisionista que se fundamentaba en la sustracción de la noción de imperialismo. El PC de China sostenía que “la existencia de un país socialista está totalmente en contra de la voluntad de los imperialistas”, de modo que no cabía posibilidad de que países socialistas y comunistas pudieran coexistir pacíficamente, la hostilidad se haría presente en las relaciones tanto políticas como comerciales. Con estas tesis, el PCUS abría paso a la eliminación de la dictadura del proletariado como fase necesaria para la transición al socialismo, en reemplazo de una propuesta que consideraba como posibilidad a la vía pacífica. En: ECHAGÜE, Carlos. Revolución, Restauración y crisis en la Unión Soviética, Buenos Aires, Agora, 1995.

desconfiaba de que pudiera llevarse a cabo la transición al socialismo y, a su juicio, algunos elementos inherentes al capitalismo (la mercancía y la moneda) eran necesarios en la fase de transición. Guevara cuestionó fuertemente estas tesis. Según él, no sólo era posible la construcción del socialismo, sino que Cuba tenía condiciones objetivas que permitían la socialización del trabajo, quemando etapas y emprendiendo la construcción del socialismo.

Hacia 1964, el proyecto de industrialización acelerada que había impulsado y alentado Guevara comenzó a mostrar algunos problemas. A partir de allí, todo pareciera indicar que el gobierno cubano, particularmente Fidel Castro, fue instado por los soviéticos a abandonar el proyecto de industrialización acelerada que defendía Guevara y reorientarse a la producción de la caña de azúcar. Esto significaba la asignación de Cuba dentro del mapa del mundo comunista en la cual la isla debería producir azúcar y exportarla de un modo similar a lo que había realizado con los Estados Unidos, pero ahora dentro del bloque comunista.

Este acuerdo significaba la pérdida de peso de la línea impulsada por Guevara para quien la industrialización y la planificación de la economía basadas en criterios morales de solidaridad y en la creación del hombre nuevo eran fundamentales. El alineamiento con la URSS quedó plasmado en 1964 cuando se firmó el Tratado Comercial por 5 años que incluía la “división internacional del trabajo” por la cual Cuba debía proveer azúcar a la URSS y demás países del bloque. Con ese tratado, se subordinaba la diversificación agrícola y el desarrollo industrial a la producción de azúcar y, en línea con esto, se creó en 1964 el “Ministerio del Azúcar” que salía del de Industrias.

En diciembre de 1964 el Che Guevara viajó hacia Nueva York y luego siguió un recorrido que duró tres meses por Asia y África. Con ese viaje, Guevara tenía claro que para que prosperara la revolución cubana era necesario tener un aliado importante en América Latina para poder fortalecerse. En febrero de 1965 dio un discurso en Argel en donde cuestionó a la URSS sosteniendo que no era posible hablar de “comercio de beneficio mutuo” cuando éste se basaba en los precios que la ley del valor y las relaciones de intercambio desigual imponían a los países atrasados. Y agregó: “Si establecemos este tipo de relación entre los dos grupos de naciones, debemos convenir en que los países socialistas son, en cierta manera, cómplices de la explotación imperialista. (…) Los países socialistas tienen el deber moral de liquidar su complicidad tácita con los países explotadores del

34Occidente” . Guevara discrepaba con reducir a Cuba a

34GUEVARA, Ernesto. En: Cuadernos de Marcha, Nº 7, noviembre de 1967.

História & Luta de Classes, Nº 9 - Junho de 2010 (55-60) - 59 58 - Ernesto Che Guevara: el antiimperialismo y la construccíon del socialismo en Cuba

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un país productor de azúcar, sin poder salir del monocultivo.

En el marco del descontento con la URSS, tornado público luego del discurso en Argel, Guevara fortaleció su convicción sobre la necesidad de llevar a otros países la lucha antiimperialista. Guevara tenía

35simpatías por procesos como el de China , con el cual veía ciertas similitudes con la isla. Así, durante estos años, tanto este país como otros dentro de los llamados “subdesarrollados” se tornaron en un modelo a seguir en la lucha contra el imperialismo.

En 1965 Guevara renunció al Ministerio de Industrias. Ese mismo año, el PURSC pasaba a denominarse Partido Comunista de Cuba, en claro alineamiento con la Unión Soviética. El hecho simbólico fue que en el mismo acto del 3 de octubre de 1965 en el cual Fidel Castro anunció la creación del Partido Comunista de Cuba, fue leída la carta de renuncia y despedida de Guevara.

Entre 1965-1966, en línea con los planteos del discurso de Argel, Guevara efectuó varias críticas al Manual de Economía Política, publicado en español en

361963 por la Academia de Ciencias de la URSS . Uno de los principales cuestionamientos estuvo vinculado a las tesis del Manual, en donde se sostenía que la colaboración de los países del campo socialista hacía que no se den ni puedan darse fenómenos de expansión de cambio no equivalente, de la lucha de competencia, de explotación y sojuzgamiento de los Estados débiles por los fuertes. Al respecto sostuvo Guevara: “La última parte del párrafo es un metódico compendio de inexactitudes. Se dan fenómenos de expansión, de cambio no equivalente, de competencia, hasta cierto punto de explotación y ciertamente de sojuzgamiento

37de los estados débiles por los fuertes” .

Es decir que, según Guevara, incluso dentro del bloque socialista era necesario atender a las condiciones de intercambio entre los países. Por ello no veía en el intercambio comercial con la URSS y la ayuda que la potencia comunista ofrecía a la isla la salida de la dependencia económica, dado que se basaba en la “división internacional del trabajo” mediante la cual Cuba seguía sin poder dar el salto a una economía industrializada. Según planteaba la URSS en el Manual, a diferencia de lo que ocurre bajo

35“Es bueno puntualizar el extraordinario grado de desarrollo que ha alcanzado China, que es increíble para todos los que conocen la historia de los países atrasados del mundo…”, “… China es uno de esos países donde uno encuentra que la Revolución Cubana no es un hecho único y que es un hecho normal en la historia de los pueblos encontrar esa efervescencia que uno encuentra en Cuba. China está viviendo esa parte de su historia revolucionaria similar a la cubana”, GUEVARA, Ernesto. Informe de un viaje a los países socialistas, 31 de diciembre de 1960, En: Obras…, ob. cit., p. 52-53. 36El material de Guevara al que nos referimos, son apuntes que realizó durante los años 1965-1966 al mencionado Manual de la URSS. Este material se dio a conocer tardíamente en 2006. 37GUEVARA, Ernesto. Apuntes críticos…, ob. cit., p. 209

el capitalismo, la división del trabajo entre los Estados del campo socialista no se establece por medio de la coacción y la violencia, mediante una dura lucha competencia, sino por la vía de la fraternal colaboración y la mutua ayuda socialista entre Estados iguales de derechos. Al respecto Guevara sostenía que si bien esa división podía ser posible “se están refiriendo a un ideal que sólo puede establecerse mediante el verdadero ejercicio del internacionalismo

38proletario pero que lamentablemente falta hoy día” .

Asimismo, en el Manual se sostenía, en el informe presentado por el CC al XX Congreso del PC de la US se subrayó con toda fuerza que en la etapa actual de la construcción del comunismo se destaca en primer plano el aspecto económico de la teoría marxista. Guevara apuntó al respecto:

Sería bueno precisar más el punto y sobre todo cómo interpretan los dirigentes soviéticos el paso del comunismo en un solo país y los problemas de relaciones internacionales, concretamente, el carácter cada vez más agresivo del imperialismo norteamericano. Cómo influye en el presupuesto de defensa para la URSS y otros países que dependen de su ayuda en el desarrollo de la sociedad. Carácter

39del intercambio .

Tras la renuncia al Ministerio, Guevara se dirigió hacia el Congo a participar de la experiencia guerrillera. El triunfo político de aquella participación fue la creación de un organismo intercontinental con sede en La Habana. Durante los primeros días de 1966 se reunió la Primera Conferencia de Solidaridad de los Pueblos de Asia, África y América Latina

40(Tricontinental) . Luego de ello y después de un breve paso por Argentina, Guevara ingresó a Bolivia, en septiembre de 1966, con el objetivo de desarrollar una

41guerrilla y extender la revolución en América Latina .

Epílogo

En este trabajo hemos analizado algunos de los planteos de Guevara en torno al imperialismo y las posibilidades de construcción del socialismo, articulándolos con el proceso histórico de Cuba, durante los primeros años posteriores a la Revolución. El propósito del artículo ha sido discutir sus principales ideas para poder instalarlas dentro del mapa del pensamiento Latinoamericano de los años 1960.

38Ídem, p. 209-210.39Ídem, p. 61-62. 40Guevara envió un mensaje que recorrió América Latina: “Crear dos, tres… muchos Vietnam es la consigna”. Un segundo encuentro en este sentido fue la Organización Latinoamericana de Solidaridad (OLAS) celebrada entre julio y agosto de 1967. Para ampliar sobre estas experiencias, se puede consultar BATISTA PRADO, Carlos. Cuba, Che Guevara e a “exportação da Revolução pela America Latina”. Revista História & Luta de Classes, Año 3, n. 4, Julio 2007.41El ingreso a Bolivia fue desde Uruguay bajo la identidad de Adolfo Mena. Guevara ingresó acreditado como un enviado especial de la Organización de los Estados Americanos (OEA).

60 - Ernesto Che Guevara: el antiimperialismo y la construccíon del socialismo en Cuba História & Luta de Classes, Nº 9 - Junho de 2010 (61-65) - 61

O

Haiti: holocaustos coloniais e o capitalismo da piedade

1Nazira Correia Camely

cupação militar e “terremoto de classe”

Haiti, a nação mais próspera da América Central no século XVII, na época conhecida como “Pérola do Caribe”, foi o primeiro país latino-americano a tornar-se independente, em 1804. Hoje, o país mais pobre da América Latina possui um PIB de US$ 7 bilhões, uma população de 10 milhões de pessoas, e uma renda média de menos de US$ 2 por dia, uma das piores do mundo. O terremoto de 12 de janeiro

2de 2010, um “terremoto de classe” , acarretou a morte de 300 mil haitianos, mais de uma centena de milhares de feridos e um milhão de desabrigados. Entretanto, o aspecto principal do terremoto é que esta tragédia levou os EUA a ocupar militarmente o país sob o véu da “ajuda humanitária” e não mais indiretamente via ONU.

O Haiti foi ocupado pelas tropas da ONU, 3desde 2004 , depois do golpe de Estado patrocinado

pelo EUA, na denominada missão Minustah (Missão 4de Estabilização das Nações Unidas no Haiti) .

1Professora do Centro de Ciências Jurídicas e Sociais Aplicadas da Universidade Federal do Acre (CCJSA / UFAC). Contato: [email protected] 2Expressão do inglês, classquake, denominação do geógrafo norteamericano Kenneth Hewitt, a partir de estudo que ele realizou sobre o terremoto na Guatemala em 1976. Termo que expressa muito bem o caráter de serem os pobres maiores atingidos por este fenômeno da natureza, cabe- nos perguntar por que um terremoto em um país imperialista como o Japão não tem a proporção do que ocorreu com a população pobre do Haiti.3O presidente Aristides, deposto em 2004 pelo imperialismo francês e estadunidense, tinha sido reeleito em 2001, ocasião em que reclamou da França o pagamento da indenização que o Haiti tinha pago àquele país por sua independência, valores estimados em US$ 16 bilhões. Aristides tinha sido o primeiro presidente eleito do Haiti, em 1991, quando tentou aumentar o salário mínimo de US$ 1,76 por dia para US$ 2,99 diários, medida duramente reprimida pelo imperialismo por ir contra os interesses econômicos das multinacionais instaladas no Haiti.4Criada em 30/04/2004 pelo Conselho de Segurança da ONU, sob o pretexto de combater a proliferação de bandos armados, realizou verdadeiros massacres em Cité Soleil, bairro mais pobre de Puerto Príncipe e principal local dos adeptos do presidente Aristides. TEITELBAUM, Alejandro. Ocupación militar, varios siglos de pillaje y superexplotación y algunas semanas de migajas humanitárias. Disponível em:http://www.vientosur.info/articulosweb/noticia/?x=2739 (01/02/20010).

O governo brasileiro cumpre um papel central na ocupação do Haiti a serviço e mando dos interesses imperialistas estadunidenses. O Brasil enviou 1.600 soldados e chegou a comandar no Haiti mais de 7.000 soldados. Atualmente o total de soldados e policiais pertencentes à Minustah alcança o número de 12.000.

Após o terremoto de janeiro os EUA, sob o pretexto da ajuda humanitária, enviaram ao Haiti mais de 16.000 soldados. Sobre este processo o jornalista

5Alberto Cruz explica o que denomina da simbiose existente entre a ajuda humanitária e a ocupação militar em vários países, tendo à frente as Organizações Não-Governamentais (ONGS), as quais ele denomina de Cavalo de Tróia do imperialismo.

A ocupação do Haiti pelas tropas militares estadunidenses é o expoente mais recente da estratégia traçada pelo imperialismo de ligar a “ajuda humanitária”, o “apoio ao desenvolvimento” e a 'cooperação' para fins de ocupação militar em vários países. Esta estratégia foi iniciada pela Organização das Nações Unidas (ONU) ao redesenhar o “direito à ingerência” que, na realidade, é uma forma de legitimar a ocupação que foi concebida por Mario Bedatti (professor de Direito Internacional Público da Universidade de Paris II) e por Bernard Koucher, fundador dos Médicos Sem-Fronteira e atualmente Ministro de Assuntos Exteriores do governo do

6direitista francês Nicolás Sarkozy . Em nome deste “direito de ingerência”, Cruz (op.cit.) elenca as estratégias traçadas pelo imperialismo na invasão a diversos países: 1) Em 1991, a Guerra contra o Iraque sob a desculpa de proteger os Curdos, aplicação pelo imperial ismo do modelo de “intervenção humanitária”; 2) Em 1992, invasão da Somália com a desculpa de “por fim à anarquia” e “restabelecer condições mínimas de existência”; 3) Após o fracasso da invasão da Somália o imperialismo começa a usar a estratégia de “combate ao genocídio” para justificar sua invasão em diversos países com as tropas da ONU. Foi com esta desculpa que interveio em Ruanda, em

5Alberto Cruz é analista do Centro de Estudos Políticos Para as Relações Internacionais e o Desenvolvimento (CEPRID): http://www.nodo50.org/ceprid/.6CRUZ, Alberto. Haiti como el expoente de la simbiosis militares-cooperantes. Rebelion, 15/02/2010, disponível em: http://www.rebelion.org/noticia.php?id=100486.

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un país productor de azúcar, sin poder salir del monocultivo.

En el marco del descontento con la URSS, tornado público luego del discurso en Argel, Guevara fortaleció su convicción sobre la necesidad de llevar a otros países la lucha antiimperialista. Guevara tenía

35simpatías por procesos como el de China , con el cual veía ciertas similitudes con la isla. Así, durante estos años, tanto este país como otros dentro de los llamados “subdesarrollados” se tornaron en un modelo a seguir en la lucha contra el imperialismo.

En 1965 Guevara renunció al Ministerio de Industrias. Ese mismo año, el PURSC pasaba a denominarse Partido Comunista de Cuba, en claro alineamiento con la Unión Soviética. El hecho simbólico fue que en el mismo acto del 3 de octubre de 1965 en el cual Fidel Castro anunció la creación del Partido Comunista de Cuba, fue leída la carta de renuncia y despedida de Guevara.

Entre 1965-1966, en línea con los planteos del discurso de Argel, Guevara efectuó varias críticas al Manual de Economía Política, publicado en español en

361963 por la Academia de Ciencias de la URSS . Uno de los principales cuestionamientos estuvo vinculado a las tesis del Manual, en donde se sostenía que la colaboración de los países del campo socialista hacía que no se den ni puedan darse fenómenos de expansión de cambio no equivalente, de la lucha de competencia, de explotación y sojuzgamiento de los Estados débiles por los fuertes. Al respecto sostuvo Guevara: “La última parte del párrafo es un metódico compendio de inexactitudes. Se dan fenómenos de expansión, de cambio no equivalente, de competencia, hasta cierto punto de explotación y ciertamente de sojuzgamiento

37de los estados débiles por los fuertes” .

Es decir que, según Guevara, incluso dentro del bloque socialista era necesario atender a las condiciones de intercambio entre los países. Por ello no veía en el intercambio comercial con la URSS y la ayuda que la potencia comunista ofrecía a la isla la salida de la dependencia económica, dado que se basaba en la “división internacional del trabajo” mediante la cual Cuba seguía sin poder dar el salto a una economía industrializada. Según planteaba la URSS en el Manual, a diferencia de lo que ocurre bajo

35“Es bueno puntualizar el extraordinario grado de desarrollo que ha alcanzado China, que es increíble para todos los que conocen la historia de los países atrasados del mundo…”, “… China es uno de esos países donde uno encuentra que la Revolución Cubana no es un hecho único y que es un hecho normal en la historia de los pueblos encontrar esa efervescencia que uno encuentra en Cuba. China está viviendo esa parte de su historia revolucionaria similar a la cubana”, GUEVARA, Ernesto. Informe de un viaje a los países socialistas, 31 de diciembre de 1960, En: Obras…, ob. cit., p. 52-53. 36El material de Guevara al que nos referimos, son apuntes que realizó durante los años 1965-1966 al mencionado Manual de la URSS. Este material se dio a conocer tardíamente en 2006. 37GUEVARA, Ernesto. Apuntes críticos…, ob. cit., p. 209

el capitalismo, la división del trabajo entre los Estados del campo socialista no se establece por medio de la coacción y la violencia, mediante una dura lucha competencia, sino por la vía de la fraternal colaboración y la mutua ayuda socialista entre Estados iguales de derechos. Al respecto Guevara sostenía que si bien esa división podía ser posible “se están refiriendo a un ideal que sólo puede establecerse mediante el verdadero ejercicio del internacionalismo

38proletario pero que lamentablemente falta hoy día” .

Asimismo, en el Manual se sostenía, en el informe presentado por el CC al XX Congreso del PC de la US se subrayó con toda fuerza que en la etapa actual de la construcción del comunismo se destaca en primer plano el aspecto económico de la teoría marxista. Guevara apuntó al respecto:

Sería bueno precisar más el punto y sobre todo cómo interpretan los dirigentes soviéticos el paso del comunismo en un solo país y los problemas de relaciones internacionales, concretamente, el carácter cada vez más agresivo del imperialismo norteamericano. Cómo influye en el presupuesto de defensa para la URSS y otros países que dependen de su ayuda en el desarrollo de la sociedad. Carácter

39del intercambio .

Tras la renuncia al Ministerio, Guevara se dirigió hacia el Congo a participar de la experiencia guerrillera. El triunfo político de aquella participación fue la creación de un organismo intercontinental con sede en La Habana. Durante los primeros días de 1966 se reunió la Primera Conferencia de Solidaridad de los Pueblos de Asia, África y América Latina

40(Tricontinental) . Luego de ello y después de un breve paso por Argentina, Guevara ingresó a Bolivia, en septiembre de 1966, con el objetivo de desarrollar una

41guerrilla y extender la revolución en América Latina .

Epílogo

En este trabajo hemos analizado algunos de los planteos de Guevara en torno al imperialismo y las posibilidades de construcción del socialismo, articulándolos con el proceso histórico de Cuba, durante los primeros años posteriores a la Revolución. El propósito del artículo ha sido discutir sus principales ideas para poder instalarlas dentro del mapa del pensamiento Latinoamericano de los años 1960.

38Ídem, p. 209-210.39Ídem, p. 61-62. 40Guevara envió un mensaje que recorrió América Latina: “Crear dos, tres… muchos Vietnam es la consigna”. Un segundo encuentro en este sentido fue la Organización Latinoamericana de Solidaridad (OLAS) celebrada entre julio y agosto de 1967. Para ampliar sobre estas experiencias, se puede consultar BATISTA PRADO, Carlos. Cuba, Che Guevara e a “exportação da Revolução pela America Latina”. Revista História & Luta de Classes, Año 3, n. 4, Julio 2007.41El ingreso a Bolivia fue desde Uruguay bajo la identidad de Adolfo Mena. Guevara ingresó acreditado como un enviado especial de la Organización de los Estados Americanos (OEA).

60 - Ernesto Che Guevara: el antiimperialismo y la construccíon del socialismo en Cuba História & Luta de Classes, Nº 9 - Junho de 2010 (61-65) - 61

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Haiti: holocaustos coloniais e o capitalismo da piedade

1Nazira Correia Camely

cupação militar e “terremoto de classe”

Haiti, a nação mais próspera da América Central no século XVII, na época conhecida como “Pérola do Caribe”, foi o primeiro país latino-americano a tornar-se independente, em 1804. Hoje, o país mais pobre da América Latina possui um PIB de US$ 7 bilhões, uma população de 10 milhões de pessoas, e uma renda média de menos de US$ 2 por dia, uma das piores do mundo. O terremoto de 12 de janeiro

2de 2010, um “terremoto de classe” , acarretou a morte de 300 mil haitianos, mais de uma centena de milhares de feridos e um milhão de desabrigados. Entretanto, o aspecto principal do terremoto é que esta tragédia levou os EUA a ocupar militarmente o país sob o véu da “ajuda humanitária” e não mais indiretamente via ONU.

O Haiti foi ocupado pelas tropas da ONU, 3desde 2004 , depois do golpe de Estado patrocinado

pelo EUA, na denominada missão Minustah (Missão 4de Estabilização das Nações Unidas no Haiti) .

1Professora do Centro de Ciências Jurídicas e Sociais Aplicadas da Universidade Federal do Acre (CCJSA / UFAC). Contato: [email protected] 2Expressão do inglês, classquake, denominação do geógrafo norteamericano Kenneth Hewitt, a partir de estudo que ele realizou sobre o terremoto na Guatemala em 1976. Termo que expressa muito bem o caráter de serem os pobres maiores atingidos por este fenômeno da natureza, cabe- nos perguntar por que um terremoto em um país imperialista como o Japão não tem a proporção do que ocorreu com a população pobre do Haiti.3O presidente Aristides, deposto em 2004 pelo imperialismo francês e estadunidense, tinha sido reeleito em 2001, ocasião em que reclamou da França o pagamento da indenização que o Haiti tinha pago àquele país por sua independência, valores estimados em US$ 16 bilhões. Aristides tinha sido o primeiro presidente eleito do Haiti, em 1991, quando tentou aumentar o salário mínimo de US$ 1,76 por dia para US$ 2,99 diários, medida duramente reprimida pelo imperialismo por ir contra os interesses econômicos das multinacionais instaladas no Haiti.4Criada em 30/04/2004 pelo Conselho de Segurança da ONU, sob o pretexto de combater a proliferação de bandos armados, realizou verdadeiros massacres em Cité Soleil, bairro mais pobre de Puerto Príncipe e principal local dos adeptos do presidente Aristides. TEITELBAUM, Alejandro. Ocupación militar, varios siglos de pillaje y superexplotación y algunas semanas de migajas humanitárias. Disponível em:http://www.vientosur.info/articulosweb/noticia/?x=2739 (01/02/20010).

O governo brasileiro cumpre um papel central na ocupação do Haiti a serviço e mando dos interesses imperialistas estadunidenses. O Brasil enviou 1.600 soldados e chegou a comandar no Haiti mais de 7.000 soldados. Atualmente o total de soldados e policiais pertencentes à Minustah alcança o número de 12.000.

Após o terremoto de janeiro os EUA, sob o pretexto da ajuda humanitária, enviaram ao Haiti mais de 16.000 soldados. Sobre este processo o jornalista

5Alberto Cruz explica o que denomina da simbiose existente entre a ajuda humanitária e a ocupação militar em vários países, tendo à frente as Organizações Não-Governamentais (ONGS), as quais ele denomina de Cavalo de Tróia do imperialismo.

A ocupação do Haiti pelas tropas militares estadunidenses é o expoente mais recente da estratégia traçada pelo imperialismo de ligar a “ajuda humanitária”, o “apoio ao desenvolvimento” e a 'cooperação' para fins de ocupação militar em vários países. Esta estratégia foi iniciada pela Organização das Nações Unidas (ONU) ao redesenhar o “direito à ingerência” que, na realidade, é uma forma de legitimar a ocupação que foi concebida por Mario Bedatti (professor de Direito Internacional Público da Universidade de Paris II) e por Bernard Koucher, fundador dos Médicos Sem-Fronteira e atualmente Ministro de Assuntos Exteriores do governo do

6direitista francês Nicolás Sarkozy . Em nome deste “direito de ingerência”, Cruz (op.cit.) elenca as estratégias traçadas pelo imperialismo na invasão a diversos países: 1) Em 1991, a Guerra contra o Iraque sob a desculpa de proteger os Curdos, aplicação pelo imperial ismo do modelo de “intervenção humanitária”; 2) Em 1992, invasão da Somália com a desculpa de “por fim à anarquia” e “restabelecer condições mínimas de existência”; 3) Após o fracasso da invasão da Somália o imperialismo começa a usar a estratégia de “combate ao genocídio” para justificar sua invasão em diversos países com as tropas da ONU. Foi com esta desculpa que interveio em Ruanda, em

5Alberto Cruz é analista do Centro de Estudos Políticos Para as Relações Internacionais e o Desenvolvimento (CEPRID): http://www.nodo50.org/ceprid/.6CRUZ, Alberto. Haiti como el expoente de la simbiosis militares-cooperantes. Rebelion, 15/02/2010, disponível em: http://www.rebelion.org/noticia.php?id=100486.

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1994, executou operações militares no Haiti, em1995, na Bósnia e Herzegovina em 1994-1995, na Albânia, em 1997 e em Kosovo, em 1999. Sob a estratégia de “guerra preventiva” e a desculpa de combate ao terrorismo, os EUA lideram a invasão do Afeganistão em 2001, e do Iraque em 2003, sob a desculpa de que este país detinha armas de destruição em massa. Em todos os exemplos citados aparece o discurso da

7necessidade de “intervenção humanitária”.

Os EUA têm hoje no Haiti mais de 16 mil soldados, alegando ajuda humanitária após os acontecimentos de 12 de janeiro. Como alerta Alberto

8Cruz , um soldado com um rifle ou com 1 kg de alimentos é sempre um soldado. Para isto o autor os denomina de “soldados diplomáticos”, esclarecendo que esta é uma categoria que esconde os reais interesses econômicos dos países imperialistas que ocupam países em guerra, declarada ou não. Esta modalidade de ocupação está encoberta pelo véu da ajuda humanitária que nada tem de humano, porque assassina o povo, estupra suas mulheres, mata crianças, prende e tortura sob a jocosa desculpa de combate ao terrorismo. Assim ocorre no Iraque, no Afeganistão, na Palestina e em outros países. A guerra do Iraque e do Afeganistão custa ao imperialismo, até

92010, a quantia de US$ 1 trilhão .

O fotógrafo e documentarista haitiano, Jean 10Lavalasse , denomina de IFAC (Imperialismo

Francês, Norte-Americano e Canadense) os enormes interesses geopolíticos sobre o território haitiano. Entre estes se destacam a grande quantidade de petróleo existente no Haiti, os interesses de utilização da ampla e barata força de trabalho no emprego de empresas maquiladoras, privilegiadas com baixíssimos custos do trabalho e de transporte ao EUA, pois o Haiti está apenas a 30 minutos da Flórida. De acordo com um relatório da U.S. Geological Survey, de 2000, as Grandes Antilhas, que incluem Cuba, Haiti, República Dominicana, Jamaica e Porto Rico, têm pelo menos 142 milhões de barris de petróleo e 159 bilhões

11de pés cúbicos de gás .

7Stuart Bowen (inspetor geral para a reconstrução do Iraque) tinha claro que “a ajuda de emergência e a reconstrução são uma extensão das estratégias políticas, econômicas e militares”. CRUZ, op. cit., p. 2-3.8Alberto Cruz denomina de “soldado diplomático” como a estratégia política e militar dos EUA para o Haiti e outros países ocupados. Entrevista disponível em :http://www.masvoces.org/El-soldado-diplomatico-la. 9Fonte: http://www.nationalpriorities.org/costofwar_home , acesso em 17/02/2010.10Entrevista disponível em:http://michelcollon.info/index.php?option=com_content&view=article&id=2517:lel-papel-de-las-ong-en-haiti-plantea-muchas -cues t iones r&ca t id=1 :a r t i c l e s&I temid=2 , acesso 01/02/2010.11Jornal O Estado de São Paulo, 31/01/2010.

12Um estudo sobre a geopolítica das ONGs como agentes do imperialismo na Amazônia, ver: CAMELY, Nazira Correia. A geopolítica do ambientalismo ongueiro na Amazônia brasileira: um estudo sobre o estado do Acre. Tese de Doutorado em Geografia, (Programa de Pós Graduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense / PPGEO / UFF), Niterói, 2009. Disponível em: http://www.scribd.com/doc/26582934/Tese-da-Profª-Nazira-Camely-UFAC-A-geopolitica-do-ambientalismo-ongueiro-na-Amazonia-um-estudo-brasileira-um-estudo-sobre-o-estado-do-Acre.13HANCOCK, Graham. Les nababs de la pauvreté. Paris: Éditions Robert Leffont, 1991. 14DAVIS, Mike. Holocaustos coloniais. Clima, fome e imperialismo na formação do Terceiro Mundo. Rio de Janeiro: Record, 2002.15Segundo Jean Lavalasse o Haiti possui um dos maiores índices de ONG por habitante no mundo, em entrevista disponível em:http://michelcollon.info/index.php?option=com_content&view=article&id=2517:lel-papel-de-las-ong-en-haiti-plantea-muchas -cues t iones r&ca t id=1 :a r t i c l e s&I temid=2 , acesso 01/02/2010.

Estes dados comprovam os interesses imperialistas sobre o território caribenho e demonstram os reais interesses do EUA sobre o Haiti, e, portanto a invasão do país sob o pretexto da ajuda humanitária. Nesta estratégia têm atuação destacada as

12ONGs que funcionam realizando a abertura do terreno para a ocupação militar imperialista sob a consigna da ajuda humanitária, da cooperação e da ajuda ao desenvolvimento. Estes três aspectos são

13analisados por Hancock (1991) no que este autor denomina de “capitalismo da piedade”, demonstrando em seu estudo o que está por trás da ajuda humanitária dos países imperialistas aos países dominados.

As situações de catástrofes ambientais como secas, inundações, terremotos são analisados por

14Davis na perspectiva do entendimento de que estes problemas não podem ser analisados como eventos climáticos isolados e revelam as diferenças de classe nos países atingidos por catástrofes e entre as nações, a partir do advento do imperialismo, analisando a capacidade dos países atingidos de protegerem sua população dos “holocaustos coloniais”. Sobre o aspecto do “capitalismo da piedade” e dos “holocaustos coloniais”, nos baseamos, para a compreensão da atual situação que assola o Haiti, na perspectiva de entendermos que a invasão militar sobre

15o país, a ajuda humanitária das ONGs e os efeitos nefastos do terremoto de janeiro sobre a população haitiana são reflexo do saque, espoliação e pilhagem que secularmente o imperialismo tem exercido sobre este país.

O capitalismo da piedade e os holocaustos coloniais

Os países imperialistas, principalmente desde o pós II Guerra, desenvolveram uma verdadeira

16“indústria da piedade” e da “cooperação” . Nos países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE, quase todas as administrações possuem ministérios, secretarias ou escritórios de “Solidariedade e Cooperação Internacional”. Hancock demonstra que nos países onde ocorrem seca, inundação, terremotos e toda sorte de catástrofes estão sempre aqueles da ajuda humanitária. Em diversos exemplos, o desperdício, a corrupção, a ineficácia e burocracia, a espionagem e contra-insurgência estão presentes no que Hancock denomina da “indústria da piedade” do capitalismo.

Hancock (1991) descreve os casos de inoperância, desperdícios e descaso em países em situação de catástrofes em que a ajuda humanitária coloca em risco a vida de milhares de pessoas muito pobres. Para a Somália foram enviadas grandes quantidades de remédios que as autoridades sanitárias desse país consideraram lixo. O Sudão, um dos países mais quentes do mundo, recebeu doações inúteis como cremes para rachaduras nos pés e cobertores elétricos. Países que têm na fome seu principal problema recebem sopas e chocolates dietéticos em grandes quantidades (HANCOCK, op.cit. p. 37-38). A Comunidade Econômica Européia (CEE) enviou toneladas de trigo radioativo, (idem p.39). A Food for Hungry (norte-americana) enviou ao Camboja dezenove toneladas de alimentos que, por estarem tão velhos, tinham sido recusados pelo jardim zoológico de São Francisco, e os remédios enviados estavam vencidos há mais de quinze anos (idem, p.39). Os laxantes e remédios para indigestão estão entre os produtos favoritos das listas de doações.

Em algumas situações a caridade coloca em risco a vida dos pobres. A Map International Inc. (Illinois) recebeu de doação estimuladores cardíacos no valor de US$ 17 milhões do American Hospital Supply Corporation (AHS). Com essa doação o AHS teria um substancial abatimento fiscal para um setor que de qualquer forma ele havia decidido suprimir. Esses equipamentos chegaram aos países pobres e constatou-se que seus marca-passos e estimuladores possuíam graves problemas que colocariam em risco a vida dos pacientes (HANCOCK, op.cit, p. 43).

O exemplo dos desperdícios do “capitalismo da piedade” envolve também fortes emoções. No fim de 1984 um canal de TV francesa organizou a “caravana da esperança”, que faria uma espécie de rali para levar aos países pobres do oeste africano medicamentos, alimentação e equipamentos. Foi gasto na aquisição destas doações quase o mesmo montante do que custou a comunicação por satélite com a França durante a viagem. Devido à alta velocidade da caravana a maioria da doação foi perdida no caminho (HANCOCK, op.cit, p. 43-44).

Hancock (1991) compara os fluxos de ajuda pública realizados por dezoito países industrializados que alcançou o montante de 45 a 60 bilhões de dólares por ano na década de 1980. O autor relativiza esta cifra ao compará-la com outros dados: a) os EUA e a então URSS gastavam US$ 1,5 bilhões por dia com gastos militares para suas defesas, ou seja, o total da ajuda mundial equivalia a um mês dos gastos dos países com despesas militares; b) cinqüenta mísseis “Peacekeeper MX” custavam US$ 4,5 bilhões, mais que a APD da Alemanha; c) o custo de um ano da “Guerra nas estrelas” foi de US$ 3,9 bilhões, mais do que a APD do Reino Unido e do Canadá; d) em 1962 os EUA gastaram quase US$ 300 milhões para treinamento de golfinhos com fins militares, mais do que o orçamento de ajuda anual da Áustria e Nova Zelândia juntos; e) em 1988 a Grã Bretanha gastou quatorze vezes mais com sua defesa do que com doações (US$ 1,8 bilhão). As mulheres britânicas gastaram US$ 480 milhões em perfumes e cosméticos, mais do que toda a ajuda da Suíça de US$ 429 milhões; f) os free shops faturaram mais de US$ 5,5 bilhões, mais do que a França despendeu em ajuda; g) os norte-americanos gastaram US$ 22 bilhões com cigarros, mais do que as doações dos três maiores doadores juntos (EUA, Japão e França); h) Michael David Weill, da sociedade americana Lazaid Frères, ganhou anualmente como salário o equivalente aos orçamentos de ajuda da Nova Zelânia e Irlanda (US$ 128 milhões), i) os dez bilhões de dólares que os EUA destinavam à ajuda estrangeira representaram menos da metade da fortuna de Yoshiaki Tsutsumi, dono do Grupo SEIBU e um dos homens mais ricos do mundo (HANCOCK, idem, p.82-84).

No ramo do “capitalismo da piedade” Hancock aponta para uma estreita vinculação entre o aumento da arrecadação das receitas dos organismos da caridade e a ocorrência das catástrofes da fome, seca e inundações nos países pobres. A World Vision britânica doou US$ 25 mil ao documentarista que realizou um curta em 1984 chamado “Calvário Africano” sobre a fome na Etiópia. No final do documetário há um apelo aos telespectadores para doarem recursos a World Vision para amenizar a fome africana. O montante de recursos da organização era de tal vulto que eles possuíam uma frota de cinco aviões. Outras organizações como Cristian AID, Oxfam, Save The Children organizaram

62 - Haiti: holocaustos coloniais e o capitalismo da piedade História & Luta de Classes, Nº 9 - Junho de 2010 (61-65) - 63

16Sobre este tema nos baseamos inteiramente na pesquisa de Hancock (1991). O autor é jornalista e realizou extensa e corajosa pesquisa sobre o significado da ajuda e cooperação internacional, e atinge seus objetivos ao elucidar o significado em si da ajuda aos países pobres. Trabalho de fundamental importância já que a grande maioria dos estudos voltados a esse objetivo é fortemente desencorajada e os poucos que seguem, trabalham com os dados permitidos pelas agências de ajuda.

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1994, executou operações militares no Haiti, em1995, na Bósnia e Herzegovina em 1994-1995, na Albânia, em 1997 e em Kosovo, em 1999. Sob a estratégia de “guerra preventiva” e a desculpa de combate ao terrorismo, os EUA lideram a invasão do Afeganistão em 2001, e do Iraque em 2003, sob a desculpa de que este país detinha armas de destruição em massa. Em todos os exemplos citados aparece o discurso da

7necessidade de “intervenção humanitária”.

Os EUA têm hoje no Haiti mais de 16 mil soldados, alegando ajuda humanitária após os acontecimentos de 12 de janeiro. Como alerta Alberto

8Cruz , um soldado com um rifle ou com 1 kg de alimentos é sempre um soldado. Para isto o autor os denomina de “soldados diplomáticos”, esclarecendo que esta é uma categoria que esconde os reais interesses econômicos dos países imperialistas que ocupam países em guerra, declarada ou não. Esta modalidade de ocupação está encoberta pelo véu da ajuda humanitária que nada tem de humano, porque assassina o povo, estupra suas mulheres, mata crianças, prende e tortura sob a jocosa desculpa de combate ao terrorismo. Assim ocorre no Iraque, no Afeganistão, na Palestina e em outros países. A guerra do Iraque e do Afeganistão custa ao imperialismo, até

92010, a quantia de US$ 1 trilhão .

O fotógrafo e documentarista haitiano, Jean 10Lavalasse , denomina de IFAC (Imperialismo

Francês, Norte-Americano e Canadense) os enormes interesses geopolíticos sobre o território haitiano. Entre estes se destacam a grande quantidade de petróleo existente no Haiti, os interesses de utilização da ampla e barata força de trabalho no emprego de empresas maquiladoras, privilegiadas com baixíssimos custos do trabalho e de transporte ao EUA, pois o Haiti está apenas a 30 minutos da Flórida. De acordo com um relatório da U.S. Geological Survey, de 2000, as Grandes Antilhas, que incluem Cuba, Haiti, República Dominicana, Jamaica e Porto Rico, têm pelo menos 142 milhões de barris de petróleo e 159 bilhões

11de pés cúbicos de gás .

7Stuart Bowen (inspetor geral para a reconstrução do Iraque) tinha claro que “a ajuda de emergência e a reconstrução são uma extensão das estratégias políticas, econômicas e militares”. CRUZ, op. cit., p. 2-3.8Alberto Cruz denomina de “soldado diplomático” como a estratégia política e militar dos EUA para o Haiti e outros países ocupados. Entrevista disponível em :http://www.masvoces.org/El-soldado-diplomatico-la. 9Fonte: http://www.nationalpriorities.org/costofwar_home , acesso em 17/02/2010.10Entrevista disponível em:http://michelcollon.info/index.php?option=com_content&view=article&id=2517:lel-papel-de-las-ong-en-haiti-plantea-muchas -cues t iones r&ca t id=1 :a r t i c l e s&I temid=2 , acesso 01/02/2010.11Jornal O Estado de São Paulo, 31/01/2010.

12Um estudo sobre a geopolítica das ONGs como agentes do imperialismo na Amazônia, ver: CAMELY, Nazira Correia. A geopolítica do ambientalismo ongueiro na Amazônia brasileira: um estudo sobre o estado do Acre. Tese de Doutorado em Geografia, (Programa de Pós Graduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense / PPGEO / UFF), Niterói, 2009. Disponível em: http://www.scribd.com/doc/26582934/Tese-da-Profª-Nazira-Camely-UFAC-A-geopolitica-do-ambientalismo-ongueiro-na-Amazonia-um-estudo-brasileira-um-estudo-sobre-o-estado-do-Acre.13HANCOCK, Graham. Les nababs de la pauvreté. Paris: Éditions Robert Leffont, 1991. 14DAVIS, Mike. Holocaustos coloniais. Clima, fome e imperialismo na formação do Terceiro Mundo. Rio de Janeiro: Record, 2002.15Segundo Jean Lavalasse o Haiti possui um dos maiores índices de ONG por habitante no mundo, em entrevista disponível em:http://michelcollon.info/index.php?option=com_content&view=article&id=2517:lel-papel-de-las-ong-en-haiti-plantea-muchas -cues t iones r&ca t id=1 :a r t i c l e s&I temid=2 , acesso 01/02/2010.

Estes dados comprovam os interesses imperialistas sobre o território caribenho e demonstram os reais interesses do EUA sobre o Haiti, e, portanto a invasão do país sob o pretexto da ajuda humanitária. Nesta estratégia têm atuação destacada as

12ONGs que funcionam realizando a abertura do terreno para a ocupação militar imperialista sob a consigna da ajuda humanitária, da cooperação e da ajuda ao desenvolvimento. Estes três aspectos são

13analisados por Hancock (1991) no que este autor denomina de “capitalismo da piedade”, demonstrando em seu estudo o que está por trás da ajuda humanitária dos países imperialistas aos países dominados.

As situações de catástrofes ambientais como secas, inundações, terremotos são analisados por

14Davis na perspectiva do entendimento de que estes problemas não podem ser analisados como eventos climáticos isolados e revelam as diferenças de classe nos países atingidos por catástrofes e entre as nações, a partir do advento do imperialismo, analisando a capacidade dos países atingidos de protegerem sua população dos “holocaustos coloniais”. Sobre o aspecto do “capitalismo da piedade” e dos “holocaustos coloniais”, nos baseamos, para a compreensão da atual situação que assola o Haiti, na perspectiva de entendermos que a invasão militar sobre

15o país, a ajuda humanitária das ONGs e os efeitos nefastos do terremoto de janeiro sobre a população haitiana são reflexo do saque, espoliação e pilhagem que secularmente o imperialismo tem exercido sobre este país.

O capitalismo da piedade e os holocaustos coloniais

Os países imperialistas, principalmente desde o pós II Guerra, desenvolveram uma verdadeira

16“indústria da piedade” e da “cooperação” . Nos países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE, quase todas as administrações possuem ministérios, secretarias ou escritórios de “Solidariedade e Cooperação Internacional”. Hancock demonstra que nos países onde ocorrem seca, inundação, terremotos e toda sorte de catástrofes estão sempre aqueles da ajuda humanitária. Em diversos exemplos, o desperdício, a corrupção, a ineficácia e burocracia, a espionagem e contra-insurgência estão presentes no que Hancock denomina da “indústria da piedade” do capitalismo.

Hancock (1991) descreve os casos de inoperância, desperdícios e descaso em países em situação de catástrofes em que a ajuda humanitária coloca em risco a vida de milhares de pessoas muito pobres. Para a Somália foram enviadas grandes quantidades de remédios que as autoridades sanitárias desse país consideraram lixo. O Sudão, um dos países mais quentes do mundo, recebeu doações inúteis como cremes para rachaduras nos pés e cobertores elétricos. Países que têm na fome seu principal problema recebem sopas e chocolates dietéticos em grandes quantidades (HANCOCK, op.cit. p. 37-38). A Comunidade Econômica Européia (CEE) enviou toneladas de trigo radioativo, (idem p.39). A Food for Hungry (norte-americana) enviou ao Camboja dezenove toneladas de alimentos que, por estarem tão velhos, tinham sido recusados pelo jardim zoológico de São Francisco, e os remédios enviados estavam vencidos há mais de quinze anos (idem, p.39). Os laxantes e remédios para indigestão estão entre os produtos favoritos das listas de doações.

Em algumas situações a caridade coloca em risco a vida dos pobres. A Map International Inc. (Illinois) recebeu de doação estimuladores cardíacos no valor de US$ 17 milhões do American Hospital Supply Corporation (AHS). Com essa doação o AHS teria um substancial abatimento fiscal para um setor que de qualquer forma ele havia decidido suprimir. Esses equipamentos chegaram aos países pobres e constatou-se que seus marca-passos e estimuladores possuíam graves problemas que colocariam em risco a vida dos pacientes (HANCOCK, op.cit, p. 43).

O exemplo dos desperdícios do “capitalismo da piedade” envolve também fortes emoções. No fim de 1984 um canal de TV francesa organizou a “caravana da esperança”, que faria uma espécie de rali para levar aos países pobres do oeste africano medicamentos, alimentação e equipamentos. Foi gasto na aquisição destas doações quase o mesmo montante do que custou a comunicação por satélite com a França durante a viagem. Devido à alta velocidade da caravana a maioria da doação foi perdida no caminho (HANCOCK, op.cit, p. 43-44).

Hancock (1991) compara os fluxos de ajuda pública realizados por dezoito países industrializados que alcançou o montante de 45 a 60 bilhões de dólares por ano na década de 1980. O autor relativiza esta cifra ao compará-la com outros dados: a) os EUA e a então URSS gastavam US$ 1,5 bilhões por dia com gastos militares para suas defesas, ou seja, o total da ajuda mundial equivalia a um mês dos gastos dos países com despesas militares; b) cinqüenta mísseis “Peacekeeper MX” custavam US$ 4,5 bilhões, mais que a APD da Alemanha; c) o custo de um ano da “Guerra nas estrelas” foi de US$ 3,9 bilhões, mais do que a APD do Reino Unido e do Canadá; d) em 1962 os EUA gastaram quase US$ 300 milhões para treinamento de golfinhos com fins militares, mais do que o orçamento de ajuda anual da Áustria e Nova Zelândia juntos; e) em 1988 a Grã Bretanha gastou quatorze vezes mais com sua defesa do que com doações (US$ 1,8 bilhão). As mulheres britânicas gastaram US$ 480 milhões em perfumes e cosméticos, mais do que toda a ajuda da Suíça de US$ 429 milhões; f) os free shops faturaram mais de US$ 5,5 bilhões, mais do que a França despendeu em ajuda; g) os norte-americanos gastaram US$ 22 bilhões com cigarros, mais do que as doações dos três maiores doadores juntos (EUA, Japão e França); h) Michael David Weill, da sociedade americana Lazaid Frères, ganhou anualmente como salário o equivalente aos orçamentos de ajuda da Nova Zelânia e Irlanda (US$ 128 milhões), i) os dez bilhões de dólares que os EUA destinavam à ajuda estrangeira representaram menos da metade da fortuna de Yoshiaki Tsutsumi, dono do Grupo SEIBU e um dos homens mais ricos do mundo (HANCOCK, idem, p.82-84).

No ramo do “capitalismo da piedade” Hancock aponta para uma estreita vinculação entre o aumento da arrecadação das receitas dos organismos da caridade e a ocorrência das catástrofes da fome, seca e inundações nos países pobres. A World Vision britânica doou US$ 25 mil ao documentarista que realizou um curta em 1984 chamado “Calvário Africano” sobre a fome na Etiópia. No final do documetário há um apelo aos telespectadores para doarem recursos a World Vision para amenizar a fome africana. O montante de recursos da organização era de tal vulto que eles possuíam uma frota de cinco aviões. Outras organizações como Cristian AID, Oxfam, Save The Children organizaram

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16Sobre este tema nos baseamos inteiramente na pesquisa de Hancock (1991). O autor é jornalista e realizou extensa e corajosa pesquisa sobre o significado da ajuda e cooperação internacional, e atinge seus objetivos ao elucidar o significado em si da ajuda aos países pobres. Trabalho de fundamental importância já que a grande maioria dos estudos voltados a esse objetivo é fortemente desencorajada e os poucos que seguem, trabalham com os dados permitidos pelas agências de ajuda.

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um comitê de urgência das catástrofes para evitar que a World Vision recebesse todas as doações sozinha por ocasião da campanha contra a fome na Etiópia (HANCOCK, op.cit. p. 45-46). O autor cita alguns exemplos de como algumas organizações têm suas receitas aumentadas em épocas de calamidade; ele refere-se ao período da fome etíope de 1985: a) após anos de expansão lenta de suas receitas a Oxfam dobra suas arrecadações no período de 1978-1980. Isto foi resultado da forte pressão exercida para levantamento de fundos em favor das vítimas da fome e da guerra do Camboja. Depois as doações permaneceram estacionadas até 1985, quando os apelos em favor dos famintos etíopes multiplicaram de novo as receitas da Oxfam alcançando a cifra de 51,1 milhões de libras, embora elas fossem inferiores a 20 milhões de libras em 1983-84; b) também em 1985 a Band Aid coleta 76 milhões de libras para os famintos junto ao público britânico; c) os norte-americanos enviaram 1 bilhão de dólares às organizações benevolentes privadas engajadas no Terceiro Mundo; d) as organizações War on Want, Oxfam, International Cristian AId, Care Incorporated, Project Hope, Médicos Sem- fronteira e Médicos do Mundo receberam US$ 2,4 bilhões para financiarem seus projetos e programas nos países pobres. Em 1985 esta cifra chega a US$ 4 bilhões com a campanha de combate à fome etíope (idem, p. 24) .

Historicamente a perversa espoliação dos povos das Américas, África e Ásia foi acompanhada por missões religiosas que produziram os nefastos efeitos que a história já conhece. As ONGs e organizações humanitárias têm também trabalhado neste campo e são freqüentes as denúncias contra elas também na ação de contra-insurgência e espionagem. Hancock (op.cit.) cita a acusação contra a atuação da World Vision em Honduras no período em que de 1980-1981, seus funcionários se recusavam a dar alimentação aos refugiados que não participassem dos auxílios religiosos da missão dos protestantes. Os funcionários da Word Vision foram acusados de serem da polícia e de trabalharem para o serviço secreto para entregarem a localização e o nome de ativistas políticos que estavam nos campos de refugiados por eles assistidos. A denúncia mais grave foi sobre episódio ocorrido na noite de 22 de maio de 1981 quando dois refugiados salvadorenhos que estavam abrigados na cidade hondurenha de Colomoncagua foram recolhidos pela World Vision e colocados em um veículo onde lhes disseram que estavam sendo levados ao campo de refugiados de Limones. No lugar disto eles foram entregues às forças armadas. Alguns dias mais tarde foram encontrados mortos na fronteira. A World Vision negou veemente todas as acusações de envolvimento com o caso (HANCOCK, idem, p.33-34).

No aspecto da caridade estar associada ao missionarismo religioso é esclarecedora a fala do ex-presidente da World Vision, Ted Engstrom:”Nós analisamos cada projeto, cada programa que estamos envolvidos, para nos assegurar de que a evangelização é um componente significante. Nós não vamos alimentar os indivíduos para em seguida os enviar o inferno”, citado em Hancock (HANCOCK, op.cit, p. 33).

Análogo ao sentido dos “terremotos de classe” o geógrafo Mike Davis esclarece sobre o que denomina de “holocaustos coloniais” na análise que realiza sobre os impactos do fenômeno climático da seca, o El Niño e El Niña, como catástrofes às quais os países dominados não poderiam mais responder de forma adequada, a partir do advento do imperialismo. Davis (op.cit.) cita de Gonçalves Dias a definição de seca: “um elemento estratégico no processo de acumulação pelas grandes unidades de produção rural no Nordeste.” Sobre isto Davis (idem) acertadamente conclui que “cada seca global foi o sinal verde para uma corrida imperialista pela terra”, e cita vários exemplos. A seca sul-africana de 1877 foi a oportunidade de Carnarvon para atacar a independência zulu; a fome etíope de 1889-91 foi o aval de Crispi para construir um novo Império Romano no Chifre da África. A Alemanha guilhermina explorou as inundações e a seca que devastaram Shandong (China) no final da década de 1890; os EUA usaram a fome e a doença causadas pela seca como armas para esmagar a República das Filipinas de Aguinaldo.

Davis (op.cit.) analisa baseado também nos historiadores indianos a fome na Índia antes e depois da colonização britânica. Chega à conclusão de que havia poucos indícios de que a Índia rural passara por crises de subsistência na escala da catástrofe de Bengala de 1770, sob o domínio da Companhia da Índia Oriental, ou o longo cerco de doenças e fome entre 1875 e 1920 que diminuíram o ritmo do crescimento da população quase à paralisação. Davis cita um estudo de 1878 publicado no Journal of the Statistical Society onde computaram 31 fomes graves em 120 anos de governo britânico na Índia, contra apenas 17 fomes registradas nos dois milênios anteriores. Os historiadores indianos mostraram que os governantes, antes da colonização, contavam com políticas de combate à fome; como os embargos às exportações de alimentos, regulação de preços contra especulação, taxa de socorro e distribuição de alimentos gratuitos, e sem a exigência de trabalhos forçados.

A extrema disparidade entre ricos e pobres no mundo é o reflexo da política de dominação e saque efetuada pelos países imperialistas. Dados do relatório da ONU (2006) mostram que mais de metade da riqueza mundial está nas mãos de apenas 2% dos adultos do planeta, enquanto os 50% mais pobres têm

só 1%. A riqueza está distribuída de forma extremamente desigual e também sua distribuição geográfica: 90% do total da riqueza estão concentradas na América do Norte, na Europa e nos países de alta renda da Ásia e do Pacífico. A grande concentração da riqueza nas mãos de tão poucos, aumentou enormemente nos últimos cinqüenta anos. Para termos uma ideia o patrimônio per capita no Japão é de US$ 181 mil, nos EUA de US$ 144 mil, enquanto no Congo e na Etiópia é de menos de US$ 200.

Conclusão

Os meios de comunicação fizeram da tragédia no Haiti o espetáculo recorrente com que demonstram nos meios de desinformação de massas as tragédias que ocorrem com as populações dos países dominados. O jornalista espanhol Miguel Romero levanta os aspectos desta espetacularização da pobreza mostrando que as “imagens espetaculares” da tragédia no Haiti têm por objetivo vender notícias para as grandes redes de TV e meios de comunicação. Elas não possuem nenhum caráter de informação e sim de

17mercadoria, de “surpreender e não de informar” o público com imagens devastadoras. E para isto seu “espetáculo” consiste em submeter o povo haitiano a uma situação de vandalismo, de casos isolados de histórias individuais baseadas no período em que a pessoa sobreviveu em escombros, e em nada informam à população sobre a história social deste país, que mesmo antes deste terremoto encontrava-se em uma grave situação de pobreza e ocupação militar.

O terremoto de janeiro agravou a situação social do Haiti e deu ao imperialismo estadunidense uma desculpa de ocupação militar do país, agora não por seus prepostos da ONU onde o EUA já conta com 23 navios, aviões e 18.000 soldados. Esta ação de ocupação que visa interesses estratégicos nesta região, relacionados aos recursos naturais e a reconstrução do país com valores es t imados pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) em US$ 14

18bilhões .

A ajuda humanitária do imperialismo significa ocupação militar, ingerência, perda de soberania e estratégias de saque e pilhagem sobre o país. Neste momento trágico na vida do povo do Haiti toda a solidariedade é necessária para a reconstrução do país. Entretanto, a ajuda e cooperação dos países imperialistas não significam solidariedade porque ferem toda a autonomia do povo e da nação.

19A declaração da Batay Ouvriye , de 12 de fevereiro de 2010, analisa a dura situação do povo

haitiano e chama a todos para a dura tarefa de reconstrução do país sob o princípio de que a autonomia da nação não pode ser negociada com o imperialismo e convoca o povo do Haiti a erguer a cabeça e partir de suas próprias forças para a reconstrução da nação, conclamando a solidariedade internacional de todos os trabalhadores.

64 - Haiti: holocaustos coloniais e o capitalismo da piedade História & Luta de Classes, Nº 9 - Junho de 2010 (61-65) - 65

1 7Miguel Romero é editor da Revista Viento Sur (http://www.vientosur.info/# ), sua entrevista está disponível em: http://www.masvoces.org/Miguel-Romero-vision-critica-de.18Jornal Folha de São Paulo, 17/02/2010, A 11.

19Considerada a principal organização sindical do Haiti, a d e c l a r a ç ã o c o m p l e t a e s t á d i s p o n í v e l e m : http://www.lahaine.org/index.php?p=43225.

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um comitê de urgência das catástrofes para evitar que a World Vision recebesse todas as doações sozinha por ocasião da campanha contra a fome na Etiópia (HANCOCK, op.cit. p. 45-46). O autor cita alguns exemplos de como algumas organizações têm suas receitas aumentadas em épocas de calamidade; ele refere-se ao período da fome etíope de 1985: a) após anos de expansão lenta de suas receitas a Oxfam dobra suas arrecadações no período de 1978-1980. Isto foi resultado da forte pressão exercida para levantamento de fundos em favor das vítimas da fome e da guerra do Camboja. Depois as doações permaneceram estacionadas até 1985, quando os apelos em favor dos famintos etíopes multiplicaram de novo as receitas da Oxfam alcançando a cifra de 51,1 milhões de libras, embora elas fossem inferiores a 20 milhões de libras em 1983-84; b) também em 1985 a Band Aid coleta 76 milhões de libras para os famintos junto ao público britânico; c) os norte-americanos enviaram 1 bilhão de dólares às organizações benevolentes privadas engajadas no Terceiro Mundo; d) as organizações War on Want, Oxfam, International Cristian AId, Care Incorporated, Project Hope, Médicos Sem- fronteira e Médicos do Mundo receberam US$ 2,4 bilhões para financiarem seus projetos e programas nos países pobres. Em 1985 esta cifra chega a US$ 4 bilhões com a campanha de combate à fome etíope (idem, p. 24) .

Historicamente a perversa espoliação dos povos das Américas, África e Ásia foi acompanhada por missões religiosas que produziram os nefastos efeitos que a história já conhece. As ONGs e organizações humanitárias têm também trabalhado neste campo e são freqüentes as denúncias contra elas também na ação de contra-insurgência e espionagem. Hancock (op.cit.) cita a acusação contra a atuação da World Vision em Honduras no período em que de 1980-1981, seus funcionários se recusavam a dar alimentação aos refugiados que não participassem dos auxílios religiosos da missão dos protestantes. Os funcionários da Word Vision foram acusados de serem da polícia e de trabalharem para o serviço secreto para entregarem a localização e o nome de ativistas políticos que estavam nos campos de refugiados por eles assistidos. A denúncia mais grave foi sobre episódio ocorrido na noite de 22 de maio de 1981 quando dois refugiados salvadorenhos que estavam abrigados na cidade hondurenha de Colomoncagua foram recolhidos pela World Vision e colocados em um veículo onde lhes disseram que estavam sendo levados ao campo de refugiados de Limones. No lugar disto eles foram entregues às forças armadas. Alguns dias mais tarde foram encontrados mortos na fronteira. A World Vision negou veemente todas as acusações de envolvimento com o caso (HANCOCK, idem, p.33-34).

No aspecto da caridade estar associada ao missionarismo religioso é esclarecedora a fala do ex-presidente da World Vision, Ted Engstrom:”Nós analisamos cada projeto, cada programa que estamos envolvidos, para nos assegurar de que a evangelização é um componente significante. Nós não vamos alimentar os indivíduos para em seguida os enviar o inferno”, citado em Hancock (HANCOCK, op.cit, p. 33).

Análogo ao sentido dos “terremotos de classe” o geógrafo Mike Davis esclarece sobre o que denomina de “holocaustos coloniais” na análise que realiza sobre os impactos do fenômeno climático da seca, o El Niño e El Niña, como catástrofes às quais os países dominados não poderiam mais responder de forma adequada, a partir do advento do imperialismo. Davis (op.cit.) cita de Gonçalves Dias a definição de seca: “um elemento estratégico no processo de acumulação pelas grandes unidades de produção rural no Nordeste.” Sobre isto Davis (idem) acertadamente conclui que “cada seca global foi o sinal verde para uma corrida imperialista pela terra”, e cita vários exemplos. A seca sul-africana de 1877 foi a oportunidade de Carnarvon para atacar a independência zulu; a fome etíope de 1889-91 foi o aval de Crispi para construir um novo Império Romano no Chifre da África. A Alemanha guilhermina explorou as inundações e a seca que devastaram Shandong (China) no final da década de 1890; os EUA usaram a fome e a doença causadas pela seca como armas para esmagar a República das Filipinas de Aguinaldo.

Davis (op.cit.) analisa baseado também nos historiadores indianos a fome na Índia antes e depois da colonização britânica. Chega à conclusão de que havia poucos indícios de que a Índia rural passara por crises de subsistência na escala da catástrofe de Bengala de 1770, sob o domínio da Companhia da Índia Oriental, ou o longo cerco de doenças e fome entre 1875 e 1920 que diminuíram o ritmo do crescimento da população quase à paralisação. Davis cita um estudo de 1878 publicado no Journal of the Statistical Society onde computaram 31 fomes graves em 120 anos de governo britânico na Índia, contra apenas 17 fomes registradas nos dois milênios anteriores. Os historiadores indianos mostraram que os governantes, antes da colonização, contavam com políticas de combate à fome; como os embargos às exportações de alimentos, regulação de preços contra especulação, taxa de socorro e distribuição de alimentos gratuitos, e sem a exigência de trabalhos forçados.

A extrema disparidade entre ricos e pobres no mundo é o reflexo da política de dominação e saque efetuada pelos países imperialistas. Dados do relatório da ONU (2006) mostram que mais de metade da riqueza mundial está nas mãos de apenas 2% dos adultos do planeta, enquanto os 50% mais pobres têm

só 1%. A riqueza está distribuída de forma extremamente desigual e também sua distribuição geográfica: 90% do total da riqueza estão concentradas na América do Norte, na Europa e nos países de alta renda da Ásia e do Pacífico. A grande concentração da riqueza nas mãos de tão poucos, aumentou enormemente nos últimos cinqüenta anos. Para termos uma ideia o patrimônio per capita no Japão é de US$ 181 mil, nos EUA de US$ 144 mil, enquanto no Congo e na Etiópia é de menos de US$ 200.

Conclusão

Os meios de comunicação fizeram da tragédia no Haiti o espetáculo recorrente com que demonstram nos meios de desinformação de massas as tragédias que ocorrem com as populações dos países dominados. O jornalista espanhol Miguel Romero levanta os aspectos desta espetacularização da pobreza mostrando que as “imagens espetaculares” da tragédia no Haiti têm por objetivo vender notícias para as grandes redes de TV e meios de comunicação. Elas não possuem nenhum caráter de informação e sim de

17mercadoria, de “surpreender e não de informar” o público com imagens devastadoras. E para isto seu “espetáculo” consiste em submeter o povo haitiano a uma situação de vandalismo, de casos isolados de histórias individuais baseadas no período em que a pessoa sobreviveu em escombros, e em nada informam à população sobre a história social deste país, que mesmo antes deste terremoto encontrava-se em uma grave situação de pobreza e ocupação militar.

O terremoto de janeiro agravou a situação social do Haiti e deu ao imperialismo estadunidense uma desculpa de ocupação militar do país, agora não por seus prepostos da ONU onde o EUA já conta com 23 navios, aviões e 18.000 soldados. Esta ação de ocupação que visa interesses estratégicos nesta região, relacionados aos recursos naturais e a reconstrução do país com valores es t imados pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) em US$ 14

18bilhões .

A ajuda humanitária do imperialismo significa ocupação militar, ingerência, perda de soberania e estratégias de saque e pilhagem sobre o país. Neste momento trágico na vida do povo do Haiti toda a solidariedade é necessária para a reconstrução do país. Entretanto, a ajuda e cooperação dos países imperialistas não significam solidariedade porque ferem toda a autonomia do povo e da nação.

19A declaração da Batay Ouvriye , de 12 de fevereiro de 2010, analisa a dura situação do povo

haitiano e chama a todos para a dura tarefa de reconstrução do país sob o princípio de que a autonomia da nação não pode ser negociada com o imperialismo e convoca o povo do Haiti a erguer a cabeça e partir de suas próprias forças para a reconstrução da nação, conclamando a solidariedade internacional de todos os trabalhadores.

64 - Haiti: holocaustos coloniais e o capitalismo da piedade História & Luta de Classes, Nº 9 - Junho de 2010 (61-65) - 65

1 7Miguel Romero é editor da Revista Viento Sur (http://www.vientosur.info/# ), sua entrevista está disponível em: http://www.masvoces.org/Miguel-Romero-vision-critica-de.18Jornal Folha de São Paulo, 17/02/2010, A 11.

19Considerada a principal organização sindical do Haiti, a d e c l a r a ç ã o c o m p l e t a e s t á d i s p o n í v e l e m : http://www.lahaine.org/index.php?p=43225.

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66 - A multilateralidade da luta contra o capital: a formação da classe trabalhadora carioca do ponto de vista das associações recreativas - 1900-1920

I

2Marco M. Pestana

A multilateralidade da luta contra o capital:a formação da classe trabalhadora carioca do ponto

1de vista das associações recreativas – 1900-1920

ntrodução

No alvorecer do século XX, o Rio de Janeiro via a conclusão de um longo processo que alterava profundamente suas estruturas econômico-sociais. Desde meados do século anterior, a cidade e o país como um todo experimentavam uma longa transição, em que o predomínio da força de trabalho cativa ia sendo progressivamente substituído por relações

3capitalistas , com destaque para o assalariamento, como corolário da inserção definitiva do Brasil no

4circuito internacional de reprodução do capital . Para tal, era, entretanto, necessário que a força de trabalho nacional estivesse em condições de ser inserida nestas novas relações.

Numa síntese acurada desse processo, Sidney Chalhoub afirmou que

O processo de expropriação do homem livre e o esforço de enquadrá-lo na ordem social capitalista emergente (...) equivalem, historicamente, à formação da classe trabalhadora na cidade do Rio de Janeiro no m e i o s é c u l o c o m p r e e n d i d o aproximadamente entre 1870 – início do período terminante de crise do escravismo –

5e a conjuntura 1917-1920 .

Num processo multifacetado, as elites republicanas importaram juntamente com as mercadorias e os capitais europeus, a ideologia burguesa predominante na Europa. Urgia, portanto, modernizar, além da cidade, os homens. A formação de um novo trabalhador, adequado aos padrões de “civilidade”, por sua vez, não se restringia ao momento

1Este artigo constitui uma versão resumida do capítulo 2, intitulado “De bestializados a associados”, da monografia por mim apresentada ao Depto. de História da Universidade Federal Fluminense para a obtenção dos graus de bacharel e licenciado em História, em julho de 2009. PESTANA, Marco M. Trabalho, cidade e cultura: associações recreativas de trabalhadores cariocas, 1900-1920. Trabalho de Conclusão de Curso. Niterói: UFF, 2009.2Bacharel e licenciado em História pela UFF.3CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da Belle Époque. Campinas: UNICAMP, 2001. pp.42-54.4SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1983. pp.42-45.5CHALHOUB, Sidney. Op. Cit. pp.50-51.

do trabalho. Visando a este enquadramento, tivemos, por exemplo, as seguintes medidas: proibição das serenatas e dos demais elementos associados à conduta boêmia; fechamento dos quiosques, pequenas vendas de comes e bebes, além de tradicionais pontos de encontro da população trabalhadora; ataque ao jogo do bicho; perseguição às práticas religiosas de matriz

6africana, como o candomblé, etc .

O objetivo deste artigo é contribuir para a compreensão da etapa final do processo de formação da classe trabalhadora carioca a partir de um contingente heterogêneo de trabalhadores (ex-escravos, brancos, imigrantes, etc), que foi parte indispensável da consolidação do modo de produção capitalista no Brasil. Para isso, mostrarei de que forma o esforço do capital para moldar todas as esferas da sociedade carioca a sua feição foi acompanhado por um movimento oposto de constituição de uma consciência e de uma cultura comuns aos trabalhadores. Trata-se, sobretudo, de explicitar que o avanço do capital, que se dá expropriando os trabalhadores em diversos níveis (por exemplo, de suas formas tradicionais de trabalho, de seus lazeres, de

7certos locais de moradia, etc) , foi um processo que encontrou resistência. Sendo esta ofensiva do capital articulada em múltiplos níveis, a resposta dos trabalhadores teve que, igualmente, ser estruturada nas diversas frentes da batalha. Em função da limitação do espaço, concentrarei minha exposição em um aspecto do conflito capital X trabalho, aquele relativo às associações recreativas de caráter não-esportivo criadas, mantidas e/ou frequentadas por trabalhadores.

Se a afirmação de Foot Hardman de que “(...) os aspectos culturais não são apêndices nem complementos da história social das classes em luta mas, ao contrário, elementos inerentes ao processo de

8sua formação e de seu próprio movimento” ,estiver

6BENCHIMOL, Jaime L. Pereira Passos: um Haussmann tropical. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esportes, 1990. pp.282-285; SEVCENKO, Nicolau. Op. Cit. pp.32-33.7“A expropriação massiva é condição inicial, meio e resultado da exploração capitalista”. FONTES, Virgínia. Determinação, história e materialidade. Comunicação apresentada na XII Conferência Anual da Associação Internacional para o Realismo Crítico, realizada entre os dias 23 e 25/07/2009, na Universidade Federal Fluminense (Niterói). p.10.8FOOT HARDMAN, Francisco. Nem pátria, nem patrão!:

correta, este enfoque nos fornecerá uma profícua porta de entrada para o tema.

A afirmação das sociedades como modelo de lazer

Um campo privilegiado para a observação do impacto do projeto burguês de normatização das condutas sociais sobre as práticas dos subalternos é, sem dúvida, o carnaval. Até a década de 1850, o termo “carnaval” confundia-se com “entrudo”, sendo ambos definidos como “um conjunto de brincadeiras e folguedos realizados quarenta dias antes da Páscoa”, as

9quais eram praticadas por todas as classes sociais .

Nesta década, disseminou-se um novo tipo de folia, calcado nos desfiles das grandes sociedades à imagem do carnaval dos centros da “civilização”, como Veneza e Nice. Desde seu surgimento nas ruas do Rio de Janeiro, as sociedades deixaram claro seu propósito de erradicar as práticas “bárbaras” associadas à população local e, especialmente, à matriz cultural africana. A conexão da celebração nas sociedades com os anseios da burguesia da época fica flagrante em suas reivindicações para que o espaço urbano fosse remodelado para comportar os carros de seus desfiles, bem como no apoio à destruição dos

10quiosques no início do século XX .

Entretanto, foi apenas na transição para a República que este carnaval conheceu crescimento mais significativo, alcançando um público distinto da elite que estivera em suas origens e ainda dominava as chamadas “três grandes” (as sociedades dos Democráticos, Fenianos e Tenentes do Diabo), pela incorporação das elites suburbanas e mesmo de

11contingentes de trabalhadores . Se a adoção desse modelo por grupos subalternos marcava o triunfo sobre práticas anteriores, era igualmente uma forma desses manterem participação ativa no carnaval.

O triunfo desse padrão de festejo e sua adoção pela classe trabalhadora em formação foi acompanhado pela adesão também à forma de entidades de direito civil. Esta forma legal, por seu turno, apesar de implicar numa série de procedimentos e formalidades homogêneos – eleição de diretorias, aprovação de estatutos, realização de assembléias de sócios, consecução de licenças policiais, entre outros –, conferia abrigo a manifestações distintas daquelas impostas pelas classes dominantes. Estimulava também durabilidade no tempo em função de sua própria estrutura, mas, implicava, principalmente, na

memória operária, cultura e literatura no Brasil. São Paulo: UNESP, 2002. p.32.9CUNHA, Mª Clementina P. Ecos da folia: uma história social do carnaval carioca entre 1880 e 1920. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p.21-86.10IDEM. Ibidem. pp.105-106; 143.11IDEM. Ibidem. pp.118-119.

necessidade de angariar fundos para custear os desfiles, uma vez que os trabalhadores não dispunham dos mesmos recursos que comerciantes, industriais, etc, e as mensalidades cobradas eram baixas. Uma das soluções encontradas foi organizar outras atividades nas sedes, como bailes, pic-nics, jogos lícitos – e, muitas vezes, também os ilícitos –, ensaios abertos, entre outros, ao longo de todo o ano para levantar as somas necessárias, ultrapassando, portanto, sua

l2finalidade inicia .

No campo do associativismo com fins recreativos, portanto, a pressão dos dominantes acabou legando a oportunidade para que os dominados ressignificassem as práticas que lhes eram empurradas, através da utilização de espaços formalmente inseridos na ordem burguesa, mas plenos de oportunidades para a construção de uma sociabilidade alternativa, alicerçada nos valores e na consciência dos próprios trabalhadores. De acordo com Maria Clementina Cunha,

“É evidente que, à sua maneira, todos esses grupos tinham como referência o molde forjado pelas Grandes Sociedades. Em parte, faziam-no devido às imposições do próprio aparato policial republicano, cujas exigências se multiplicavam na concessão de autorização para sair às ruas. Mas não se deve deixar de lado a astúcia dos foliões no esforço de garantir um lugar autônomo na brincadeira, usando a seu favor os

13instrumentos criados para controlá-los” .

A ação dos trabalhadores no contexto de imposição da ordem capitalista

À cada obs t ácu lo i n t e rpos to pe l a modernização – um termo a cuja aparente neutralidade deve-se atentar – em seu percurso, a classe trabalhadora revidou com formas, nascidas do compartilhamento de experiências, de superá-los. Antes de chegarmos às sociedades recreativas, faremos uma rápida passagem por outros formas de resistência coletiva em diversas esferas. Cristiane Miyasaka assinala que os subúrbios, ao receberem amplos contingentes de trabalhadores na primeira década do século XX, em decorrência da perseguição às habitações coletivas do centro da cidade, presenciaram formas de enfrentamento do problema da moradia, como a difusão dos mutirões entre

14trabalhadores para a construção de moradas .

12PEREIRA, Leonardo A. de M. E o Rio dançou. Identidades e tensões nos clubes recreativos cariocas (1912-1922). In: CUNHA, Maria Clementina P. Carnavais e outras f(r)estas. Ensaios de História Social da Cultura. Campinas: UNICAMP, 2002. p.427.; CUNHA, Maria Clementina P. Op. Cit. p.198.13CUNHA, Mª Clementina P. Op. Cit. p.158.14

MIYASAKA, Cristiane R. Viver nos subúrbios: a experiência dos trabalhadores de Inhaúma (Rio de Janeiro, 1890-1910). Dissertação de Mestrado. Campinas: UNICAMP, 2008.pp.106-107.

História & Luta de Classes, Nº 9 - Junho de 2010 (66-72) - 67

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66 - A multilateralidade da luta contra o capital: a formação da classe trabalhadora carioca do ponto de vista das associações recreativas - 1900-1920

I

2Marco M. Pestana

A multilateralidade da luta contra o capital:a formação da classe trabalhadora carioca do ponto

1de vista das associações recreativas – 1900-1920

ntrodução

No alvorecer do século XX, o Rio de Janeiro via a conclusão de um longo processo que alterava profundamente suas estruturas econômico-sociais. Desde meados do século anterior, a cidade e o país como um todo experimentavam uma longa transição, em que o predomínio da força de trabalho cativa ia sendo progressivamente substituído por relações

3capitalistas , com destaque para o assalariamento, como corolário da inserção definitiva do Brasil no

4circuito internacional de reprodução do capital . Para tal, era, entretanto, necessário que a força de trabalho nacional estivesse em condições de ser inserida nestas novas relações.

Numa síntese acurada desse processo, Sidney Chalhoub afirmou que

O processo de expropriação do homem livre e o esforço de enquadrá-lo na ordem social capitalista emergente (...) equivalem, historicamente, à formação da classe trabalhadora na cidade do Rio de Janeiro no m e i o s é c u l o c o m p r e e n d i d o aproximadamente entre 1870 – início do período terminante de crise do escravismo –

5e a conjuntura 1917-1920 .

Num processo multifacetado, as elites republicanas importaram juntamente com as mercadorias e os capitais europeus, a ideologia burguesa predominante na Europa. Urgia, portanto, modernizar, além da cidade, os homens. A formação de um novo trabalhador, adequado aos padrões de “civilidade”, por sua vez, não se restringia ao momento

1Este artigo constitui uma versão resumida do capítulo 2, intitulado “De bestializados a associados”, da monografia por mim apresentada ao Depto. de História da Universidade Federal Fluminense para a obtenção dos graus de bacharel e licenciado em História, em julho de 2009. PESTANA, Marco M. Trabalho, cidade e cultura: associações recreativas de trabalhadores cariocas, 1900-1920. Trabalho de Conclusão de Curso. Niterói: UFF, 2009.2Bacharel e licenciado em História pela UFF.3CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da Belle Époque. Campinas: UNICAMP, 2001. pp.42-54.4SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1983. pp.42-45.5CHALHOUB, Sidney. Op. Cit. pp.50-51.

do trabalho. Visando a este enquadramento, tivemos, por exemplo, as seguintes medidas: proibição das serenatas e dos demais elementos associados à conduta boêmia; fechamento dos quiosques, pequenas vendas de comes e bebes, além de tradicionais pontos de encontro da população trabalhadora; ataque ao jogo do bicho; perseguição às práticas religiosas de matriz

6africana, como o candomblé, etc .

O objetivo deste artigo é contribuir para a compreensão da etapa final do processo de formação da classe trabalhadora carioca a partir de um contingente heterogêneo de trabalhadores (ex-escravos, brancos, imigrantes, etc), que foi parte indispensável da consolidação do modo de produção capitalista no Brasil. Para isso, mostrarei de que forma o esforço do capital para moldar todas as esferas da sociedade carioca a sua feição foi acompanhado por um movimento oposto de constituição de uma consciência e de uma cultura comuns aos trabalhadores. Trata-se, sobretudo, de explicitar que o avanço do capital, que se dá expropriando os trabalhadores em diversos níveis (por exemplo, de suas formas tradicionais de trabalho, de seus lazeres, de

7certos locais de moradia, etc) , foi um processo que encontrou resistência. Sendo esta ofensiva do capital articulada em múltiplos níveis, a resposta dos trabalhadores teve que, igualmente, ser estruturada nas diversas frentes da batalha. Em função da limitação do espaço, concentrarei minha exposição em um aspecto do conflito capital X trabalho, aquele relativo às associações recreativas de caráter não-esportivo criadas, mantidas e/ou frequentadas por trabalhadores.

Se a afirmação de Foot Hardman de que “(...) os aspectos culturais não são apêndices nem complementos da história social das classes em luta mas, ao contrário, elementos inerentes ao processo de

8sua formação e de seu próprio movimento” ,estiver

6BENCHIMOL, Jaime L. Pereira Passos: um Haussmann tropical. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esportes, 1990. pp.282-285; SEVCENKO, Nicolau. Op. Cit. pp.32-33.7“A expropriação massiva é condição inicial, meio e resultado da exploração capitalista”. FONTES, Virgínia. Determinação, história e materialidade. Comunicação apresentada na XII Conferência Anual da Associação Internacional para o Realismo Crítico, realizada entre os dias 23 e 25/07/2009, na Universidade Federal Fluminense (Niterói). p.10.8FOOT HARDMAN, Francisco. Nem pátria, nem patrão!:

correta, este enfoque nos fornecerá uma profícua porta de entrada para o tema.

A afirmação das sociedades como modelo de lazer

Um campo privilegiado para a observação do impacto do projeto burguês de normatização das condutas sociais sobre as práticas dos subalternos é, sem dúvida, o carnaval. Até a década de 1850, o termo “carnaval” confundia-se com “entrudo”, sendo ambos definidos como “um conjunto de brincadeiras e folguedos realizados quarenta dias antes da Páscoa”, as

9quais eram praticadas por todas as classes sociais .

Nesta década, disseminou-se um novo tipo de folia, calcado nos desfiles das grandes sociedades à imagem do carnaval dos centros da “civilização”, como Veneza e Nice. Desde seu surgimento nas ruas do Rio de Janeiro, as sociedades deixaram claro seu propósito de erradicar as práticas “bárbaras” associadas à população local e, especialmente, à matriz cultural africana. A conexão da celebração nas sociedades com os anseios da burguesia da época fica flagrante em suas reivindicações para que o espaço urbano fosse remodelado para comportar os carros de seus desfiles, bem como no apoio à destruição dos

10quiosques no início do século XX .

Entretanto, foi apenas na transição para a República que este carnaval conheceu crescimento mais significativo, alcançando um público distinto da elite que estivera em suas origens e ainda dominava as chamadas “três grandes” (as sociedades dos Democráticos, Fenianos e Tenentes do Diabo), pela incorporação das elites suburbanas e mesmo de

11contingentes de trabalhadores . Se a adoção desse modelo por grupos subalternos marcava o triunfo sobre práticas anteriores, era igualmente uma forma desses manterem participação ativa no carnaval.

O triunfo desse padrão de festejo e sua adoção pela classe trabalhadora em formação foi acompanhado pela adesão também à forma de entidades de direito civil. Esta forma legal, por seu turno, apesar de implicar numa série de procedimentos e formalidades homogêneos – eleição de diretorias, aprovação de estatutos, realização de assembléias de sócios, consecução de licenças policiais, entre outros –, conferia abrigo a manifestações distintas daquelas impostas pelas classes dominantes. Estimulava também durabilidade no tempo em função de sua própria estrutura, mas, implicava, principalmente, na

memória operária, cultura e literatura no Brasil. São Paulo: UNESP, 2002. p.32.9CUNHA, Mª Clementina P. Ecos da folia: uma história social do carnaval carioca entre 1880 e 1920. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p.21-86.10IDEM. Ibidem. pp.105-106; 143.11IDEM. Ibidem. pp.118-119.

necessidade de angariar fundos para custear os desfiles, uma vez que os trabalhadores não dispunham dos mesmos recursos que comerciantes, industriais, etc, e as mensalidades cobradas eram baixas. Uma das soluções encontradas foi organizar outras atividades nas sedes, como bailes, pic-nics, jogos lícitos – e, muitas vezes, também os ilícitos –, ensaios abertos, entre outros, ao longo de todo o ano para levantar as somas necessárias, ultrapassando, portanto, sua

l2finalidade inicia .

No campo do associativismo com fins recreativos, portanto, a pressão dos dominantes acabou legando a oportunidade para que os dominados ressignificassem as práticas que lhes eram empurradas, através da utilização de espaços formalmente inseridos na ordem burguesa, mas plenos de oportunidades para a construção de uma sociabilidade alternativa, alicerçada nos valores e na consciência dos próprios trabalhadores. De acordo com Maria Clementina Cunha,

“É evidente que, à sua maneira, todos esses grupos tinham como referência o molde forjado pelas Grandes Sociedades. Em parte, faziam-no devido às imposições do próprio aparato policial republicano, cujas exigências se multiplicavam na concessão de autorização para sair às ruas. Mas não se deve deixar de lado a astúcia dos foliões no esforço de garantir um lugar autônomo na brincadeira, usando a seu favor os

13instrumentos criados para controlá-los” .

A ação dos trabalhadores no contexto de imposição da ordem capitalista

À cada obs t ácu lo i n t e rpos to pe l a modernização – um termo a cuja aparente neutralidade deve-se atentar – em seu percurso, a classe trabalhadora revidou com formas, nascidas do compartilhamento de experiências, de superá-los. Antes de chegarmos às sociedades recreativas, faremos uma rápida passagem por outros formas de resistência coletiva em diversas esferas. Cristiane Miyasaka assinala que os subúrbios, ao receberem amplos contingentes de trabalhadores na primeira década do século XX, em decorrência da perseguição às habitações coletivas do centro da cidade, presenciaram formas de enfrentamento do problema da moradia, como a difusão dos mutirões entre

14trabalhadores para a construção de moradas .

12PEREIRA, Leonardo A. de M. E o Rio dançou. Identidades e tensões nos clubes recreativos cariocas (1912-1922). In: CUNHA, Maria Clementina P. Carnavais e outras f(r)estas. Ensaios de História Social da Cultura. Campinas: UNICAMP, 2002. p.427.; CUNHA, Maria Clementina P. Op. Cit. p.198.13CUNHA, Mª Clementina P. Op. Cit. p.158.14

MIYASAKA, Cristiane R. Viver nos subúrbios: a experiência dos trabalhadores de Inhaúma (Rio de Janeiro, 1890-1910). Dissertação de Mestrado. Campinas: UNICAMP, 2008.pp.106-107.

História & Luta de Classes, Nº 9 - Junho de 2010 (66-72) - 67

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Também nas relações com a polícia e o jurídiciário, a classe trabalhadora carioca engendrou táticas de auto-preservação baseadas em princípios de solidariedade. Nesta seara, Sidney Chalhoub desenvolveu uma extensa análise de processos criminais, através da qual descortinou procedimentos destinados não apenas a safar companheiros, como também a preservar valores, normas de conduta e relações construídos pelos trabalhadores, de uma interferência policial e jurídica que concebiam como

15externa, invasiva e autoritária . Não é insignificante ressaltar que o autor menciona desde o corriqueiro sumiço quando da convocação para depor, até a combinação de versões dos acontecimentos a serem apresentadas às autoridades, passando por

16linchamentos de policiais . Por outro lado, também onde o Estado evitava imiscuir-se fez-se necessária a cooperação, destacando-se aqui as associações mutuais, que se propunham a preencher a lacuna da proteção social aos trabalhadores, que se organizavam para garantir pensões por invalidez e falecimento, além de outros benefícios.

Outra forma de atuação coletiva acionada por trabalhadores foram os motins, ou quebra-quebras. Embora haja consenso na historiografia em torno do caráter policlassista desses movimentos, é certo que os trabalhadores se fizeram presentes, expressando descontentamento com elementos heterogêneos de sua vivência, como transportes coletivos, distribuição de água, preços da carne verde e autoritarismo da política

17de saúde pública dos governos . Sobre eles, Angela de Castro Gomes afirmou que “(...) não se deve esquecer a profunda convergência entre os objetivos últimos destas diversas revoltas: uma condição de vida considerada digna para aquelas camadas sociais

18relegadas e despossuídas” .

No que se refere às ações e organizações erigidas com referência ao trabalho, as dificuldades enfrentadas pelos operários fabris (longas jornadas de trabalho, regulamentos draconianos, ausência de descansos semanais e insalubridade, etc) já são por demais conhecidas, posto que já naquele contexto eram alvo de reclamações em jornais e associações operários, servindo de catalisadoras para o esforço organizativo empreendido por grande parte desse

19operariado , que se expressou em sindicatos, greves, etc.

Para além desse contingente tradicionalmente

15CHALHOUB, Sidney. Op. Cit. pp.50-51.16IDEM. Ibidem. pp.281; 283; 289-290.17MATTOS, Marcelo Badaró. Escravizados e livres: experiências comuns na formação da classe trabalhadora carioca. Rio de Janeiro: Bom Texto, 2008. pp.166-169; GOMES, Angela de C. A invenção do trabalhismo. Rio de Janeiro: FGV, 2005. p.79.18GOMES, Angela de C. Op. Cit. p.63.19MATTOS, Marcelo Badaró. Op. Cit. pp.56-61.

20MATTOS, Marcelo Badaró. Trabalhadores e sindicatos no Brasil. Rio de Janeiro: Vício de Leitura, 2002. p.15.21A Gazeta Operária é um bom exemplo desse esforço. Os exemplares de sua segunda fase – da qual localizei três edições entre novembro e dezembro de 1906 – deixam patente a proximidade com os carregadores e transportadores, cujas reivindicações o periódico buscava vocalizar.22MATTOS, Marcelo Badaró. Escravizados e livres...Op. Cit. pp.280-281.23A constituição de associações patronais não impediu que algumas interferências fossem feitas nas organizações sindicais dos trabalhadores. Em 1902, proprietários de padarias no Rio estimularam empregados de seus estabelecimentos a se organizar por fora da associação da categoria, que pregava a ação direta. Em dezembro de 1903, foi a vez de empreiteiros que tinham negócios no porto estimularem trabalhadores descontentes a formar uma associação sindical que rivalizasse com a existente. Os sapateiros cariocas, por sua vez, enfrentaram, no mesmo ano, expediente similar, quando alguns

privilegiado nas análises acerca dos trabalhadores, em 1906, cerca de 66% dos cariocas eram categorizadas profissionalmente como “diversos” (domésticos, sem

20profissão, improdutivos) . Tratando-se de um grupo tão heterogêneo e de mais difícil localização nas fontes, as generalizações ficam comprometidas. Ao menos sobre os trabalhadores que ganhavam a vida nas ruas, podemos afirmar que apesar de seus esforços para divulgarem os problemas a que estavam sujeitos e de sua organização para resolvê-los, principalmente

21através de suas associações e periódicos , sua situação parece ter recebido menos atenção da sociedade carioca, embora tenham sido alvo de grande normatização e repressão por parte dos governos

22municipais .

É no bojo deste universo de práticas de negociação e enfrentamento com as autoridades e o patronato que devemos resgatar o papel das associações recreativas. Se, como vimos, a confluência para estas associações se dá em meio a um esforço impos i t ivo das c l a s ses dominan tes , seu aproveitamento pelos trabalhadores não se limitou àquilo que lhes era imposto. Nesse sentido, as associações foram duplamente importantes: de um lado, constituíram-se em espaços de sociabilidade autônoma da classe trabalhadora e, portanto, em armas na disputa entre arcabouços culturais distintos e antagônicos; de outro, estabeleceram uma série de relações com os demais mecanismos gerados pela classe no enfrentamento da modernidade que a burguesia arquitetava, articulando-se com a totalidade de sua experiência social.

Apesar disso, o universo cultural dos trabalhadores foi igualmente povoado por associações “policlassistas”, que não aceitavam como membros unicamente pessoas que se enquadrassem na categoria de trabalhadores. Se em outros domínios, como o sindical, o patronato optou por se organizar em suas

23próprias instituições , no plano cultural a convivência entre classes era muito intensa.

Um emblemático exemplo é o do tradicional Club dos Fenianos que, fundado em 1869 por letrados,

24estudantes, jornalistas e comerciantes , alcançou o ano de 1913 com uma composição em que podiam ser encontrados “negociantes e empregados do comércio”, ainda que predominassem os primeiros, segundo

25documentos da polícia datados daquele ano . Tendo suas atividades propagandeadas em periódicos operários, como A Nação e Gazeta Operária, o club evidencia o nível de interpenetração dos dois universos culturais. Note-se que essa convivência entre membros de classes diversas tendia a assumir contornos particularmente daninhos à unidade dos trabalhadores nos casos de associações organizadas segundo uma nacionalidade, como as de portugueses, nas quais os laços com os patrões podiam ser mais resistentes, com estes tornando-se, muitas vezes, modelos de conduta a serem seguidos por aqueles, fazendo com que a

26identidade nacional se sobrepusesse àquela de classe .

Entretanto, os membros das classes proprietárias que participavam de associações também compostas por trabalhadores não eram o único empecilho à organização dos trabalhadores e à construção de sua cultura. No período enfocado, predominava uma matriz ideológica que enxergava os extratos mais pobres da população e seu modo de vida como fonte inesgotável dos mais diversos perigos para aquela sociedade que buscava se enquadrar em padrões europeus de civilidade.

No que se refere às associações recreativas, o diagnóstico oficial não diferia muito. Leonardo Pereira, em artigo já citado, identificou os encarregados da produção dessa imagem negativa do

27universo dos trabalhadores . De um lado, destacavam-se os jornais da “grande imprensa”, responsáveis pela divulgação para um público amplo dos perigos envolvidos na ida às sedes das sociedades. De outro, o Estado, através de seu braço policial, produzia informações para utilização interna, reproduzindo os observados nas reportagens veiculadas pela imprensa,

proprietários de fábricas patrocinaram a fundação de uma nova associação operária, para combater a União Auxiliadora dos Artistas Sapateiros, que apoiara greves. A ação dos donos de padarias é descrita em MATTOS, Marcelo Badaró. Escravizados e livres...Op. Cit. p.134. Para mais informações sobre os portuários, cf. ARANTES, Érika B. O porto negro: cultura e trabalho no Rio de Janeiro dos primeiros anos do século XX. Dissertação de Mestrado. Campinas: UNICAMP, 2005. Capítulo 2, especialmente as pp.94-96. Sobre os sapateiros, cf. GOMES, Angela de C. Op. Cit. pp.71-72.24CUNHA, Mª Clementina P. Op. Cit. pp.110-111.25Arquivo Nacional - Documentação de Polícia Pacote 459A. Caixa 5622 - GIFI 6C – 433.26BATALHA, Claudio H. de M. Cultura associativa no Rio de Janeiro da primeira República. In: ________; SILVA, Fernando Teixeira da; FORTES, Alexandre (orgs.). Culturas de classe. Identidade e diversidade na formação do operariado. Campinas: UNICAMP, 2004. p.98.27PEREIRA, Leonardo A. de M. Op. Cit. pp.419-444.

ao mesmo tempo em que encarregava-se da repressão direta às sociedades e seus membros.

Essa ação policial, tal como emerge dos registros que ela mesma legou, evidencia, como o próprio Leonardo Pereira percebeu, as discrepâncias entre duas visões de mundo absolutamente distintas,

28balizadas por arcabouços culturais conflitantes . Se os policiais e o establishment jornalístico não conseguiam enxergar nas associações operárias mais do que empecilhos para o funcionamento da maquinaria social, os sócios dos clubes e demais freqüentadores tinham nesses espaços um elemento central para a atribuição de um significado à sua experiência social.

Um exemplo desse conflito, pinçado dentre outros, é o do pedido de licença anual de funcionamento do Grêmio Recreativo Familiar Endiabrados Carnavalescos da Ilha do Governador, no qual o delegado Aníbal Machado acusa os Endiabrados de encobrirem, com atividades recreativas, a prática de

29jogos de azar . Indo além, o zeloso Aníbal afirma que tal sociedade, um verdadeiro “núcleo de vícios”, estaria incomodando a vizinhança, ao atentar contra seus “costumes pacatos e honestos”, sem, no entanto, mencionar qualquer tipo de conversa com moradores d a r e g i ã o q u e p u d e s s e m e x p r e s s a r t a l descontentamento. Não é difícil, porém, perceber que o delegado projetava sobre os moradores das cercanias da associação sua própria visão de mundo.

O exame das listas de associados desse tipo de agremiação nos revela que a imensa maioria destes residia em locais bastante próximos àqueles onde

30buscava se divertir , e as razões para tal parecem bastante óbvias. Destacam-se, não apenas questões de cunho prático, como a economia de tempo e dinheiro (ambos bens preciosos para aqueles que viviam de ceder boa parte daquele a terceiros, em troco de mirradas somas deste) que se fazia ao evitar a precária rede de transportes da cidade, mas, também, outras, relativas à propensão de se construir algum nível de identidade entre pessoas que passam por vivências cotidianas similares, como a experiência do local de moradia.

Não havendo motivo para supor que a situação dos Endiabrados Carnavalescos fosse diferente, não seria de estranhar se os freqüentadores da associação – e, portanto, os praticantes dos jogos ilícitos – fossem os próprios moradores da região que Aníbal presumia se incomodarem com a prática de jogos que sua moral – a do policial – condenava.

Em suma, para os trabalhadores, mais do que uma fonte potencialmente barata de lazer, o que estava

28IDEM. Ibidem. pp.422-423.29Arquivo Nacional – GIFI – Fundo Polícia. GIFI – 6C – 571.30PESTANA, Marco M. Op. Cit. Especialmente o capítulo 3, “Da Zona Sul ao Subúrbio: o mapa da festa”.

História & Luta de Classes, Nº 9 - Junho de 2010 (66-72) - 6968 - A multilateralidade da luta contra o capital: a formação da classe trabalhadora carioca do ponto de vista das associações recreativas - 1900-1920

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Também nas relações com a polícia e o jurídiciário, a classe trabalhadora carioca engendrou táticas de auto-preservação baseadas em princípios de solidariedade. Nesta seara, Sidney Chalhoub desenvolveu uma extensa análise de processos criminais, através da qual descortinou procedimentos destinados não apenas a safar companheiros, como também a preservar valores, normas de conduta e relações construídos pelos trabalhadores, de uma interferência policial e jurídica que concebiam como

15externa, invasiva e autoritária . Não é insignificante ressaltar que o autor menciona desde o corriqueiro sumiço quando da convocação para depor, até a combinação de versões dos acontecimentos a serem apresentadas às autoridades, passando por

16linchamentos de policiais . Por outro lado, também onde o Estado evitava imiscuir-se fez-se necessária a cooperação, destacando-se aqui as associações mutuais, que se propunham a preencher a lacuna da proteção social aos trabalhadores, que se organizavam para garantir pensões por invalidez e falecimento, além de outros benefícios.

Outra forma de atuação coletiva acionada por trabalhadores foram os motins, ou quebra-quebras. Embora haja consenso na historiografia em torno do caráter policlassista desses movimentos, é certo que os trabalhadores se fizeram presentes, expressando descontentamento com elementos heterogêneos de sua vivência, como transportes coletivos, distribuição de água, preços da carne verde e autoritarismo da política

17de saúde pública dos governos . Sobre eles, Angela de Castro Gomes afirmou que “(...) não se deve esquecer a profunda convergência entre os objetivos últimos destas diversas revoltas: uma condição de vida considerada digna para aquelas camadas sociais

18relegadas e despossuídas” .

No que se refere às ações e organizações erigidas com referência ao trabalho, as dificuldades enfrentadas pelos operários fabris (longas jornadas de trabalho, regulamentos draconianos, ausência de descansos semanais e insalubridade, etc) já são por demais conhecidas, posto que já naquele contexto eram alvo de reclamações em jornais e associações operários, servindo de catalisadoras para o esforço organizativo empreendido por grande parte desse

19operariado , que se expressou em sindicatos, greves, etc.

Para além desse contingente tradicionalmente

15CHALHOUB, Sidney. Op. Cit. pp.50-51.16IDEM. Ibidem. pp.281; 283; 289-290.17MATTOS, Marcelo Badaró. Escravizados e livres: experiências comuns na formação da classe trabalhadora carioca. Rio de Janeiro: Bom Texto, 2008. pp.166-169; GOMES, Angela de C. A invenção do trabalhismo. Rio de Janeiro: FGV, 2005. p.79.18GOMES, Angela de C. Op. Cit. p.63.19MATTOS, Marcelo Badaró. Op. Cit. pp.56-61.

20MATTOS, Marcelo Badaró. Trabalhadores e sindicatos no Brasil. Rio de Janeiro: Vício de Leitura, 2002. p.15.21A Gazeta Operária é um bom exemplo desse esforço. Os exemplares de sua segunda fase – da qual localizei três edições entre novembro e dezembro de 1906 – deixam patente a proximidade com os carregadores e transportadores, cujas reivindicações o periódico buscava vocalizar.22MATTOS, Marcelo Badaró. Escravizados e livres...Op. Cit. pp.280-281.23A constituição de associações patronais não impediu que algumas interferências fossem feitas nas organizações sindicais dos trabalhadores. Em 1902, proprietários de padarias no Rio estimularam empregados de seus estabelecimentos a se organizar por fora da associação da categoria, que pregava a ação direta. Em dezembro de 1903, foi a vez de empreiteiros que tinham negócios no porto estimularem trabalhadores descontentes a formar uma associação sindical que rivalizasse com a existente. Os sapateiros cariocas, por sua vez, enfrentaram, no mesmo ano, expediente similar, quando alguns

privilegiado nas análises acerca dos trabalhadores, em 1906, cerca de 66% dos cariocas eram categorizadas profissionalmente como “diversos” (domésticos, sem

20profissão, improdutivos) . Tratando-se de um grupo tão heterogêneo e de mais difícil localização nas fontes, as generalizações ficam comprometidas. Ao menos sobre os trabalhadores que ganhavam a vida nas ruas, podemos afirmar que apesar de seus esforços para divulgarem os problemas a que estavam sujeitos e de sua organização para resolvê-los, principalmente

21através de suas associações e periódicos , sua situação parece ter recebido menos atenção da sociedade carioca, embora tenham sido alvo de grande normatização e repressão por parte dos governos

22municipais .

É no bojo deste universo de práticas de negociação e enfrentamento com as autoridades e o patronato que devemos resgatar o papel das associações recreativas. Se, como vimos, a confluência para estas associações se dá em meio a um esforço impos i t ivo das c l a s ses dominan tes , seu aproveitamento pelos trabalhadores não se limitou àquilo que lhes era imposto. Nesse sentido, as associações foram duplamente importantes: de um lado, constituíram-se em espaços de sociabilidade autônoma da classe trabalhadora e, portanto, em armas na disputa entre arcabouços culturais distintos e antagônicos; de outro, estabeleceram uma série de relações com os demais mecanismos gerados pela classe no enfrentamento da modernidade que a burguesia arquitetava, articulando-se com a totalidade de sua experiência social.

Apesar disso, o universo cultural dos trabalhadores foi igualmente povoado por associações “policlassistas”, que não aceitavam como membros unicamente pessoas que se enquadrassem na categoria de trabalhadores. Se em outros domínios, como o sindical, o patronato optou por se organizar em suas

23próprias instituições , no plano cultural a convivência entre classes era muito intensa.

Um emblemático exemplo é o do tradicional Club dos Fenianos que, fundado em 1869 por letrados,

24estudantes, jornalistas e comerciantes , alcançou o ano de 1913 com uma composição em que podiam ser encontrados “negociantes e empregados do comércio”, ainda que predominassem os primeiros, segundo

25documentos da polícia datados daquele ano . Tendo suas atividades propagandeadas em periódicos operários, como A Nação e Gazeta Operária, o club evidencia o nível de interpenetração dos dois universos culturais. Note-se que essa convivência entre membros de classes diversas tendia a assumir contornos particularmente daninhos à unidade dos trabalhadores nos casos de associações organizadas segundo uma nacionalidade, como as de portugueses, nas quais os laços com os patrões podiam ser mais resistentes, com estes tornando-se, muitas vezes, modelos de conduta a serem seguidos por aqueles, fazendo com que a

26identidade nacional se sobrepusesse àquela de classe .

Entretanto, os membros das classes proprietárias que participavam de associações também compostas por trabalhadores não eram o único empecilho à organização dos trabalhadores e à construção de sua cultura. No período enfocado, predominava uma matriz ideológica que enxergava os extratos mais pobres da população e seu modo de vida como fonte inesgotável dos mais diversos perigos para aquela sociedade que buscava se enquadrar em padrões europeus de civilidade.

No que se refere às associações recreativas, o diagnóstico oficial não diferia muito. Leonardo Pereira, em artigo já citado, identificou os encarregados da produção dessa imagem negativa do

27universo dos trabalhadores . De um lado, destacavam-se os jornais da “grande imprensa”, responsáveis pela divulgação para um público amplo dos perigos envolvidos na ida às sedes das sociedades. De outro, o Estado, através de seu braço policial, produzia informações para utilização interna, reproduzindo os observados nas reportagens veiculadas pela imprensa,

proprietários de fábricas patrocinaram a fundação de uma nova associação operária, para combater a União Auxiliadora dos Artistas Sapateiros, que apoiara greves. A ação dos donos de padarias é descrita em MATTOS, Marcelo Badaró. Escravizados e livres...Op. Cit. p.134. Para mais informações sobre os portuários, cf. ARANTES, Érika B. O porto negro: cultura e trabalho no Rio de Janeiro dos primeiros anos do século XX. Dissertação de Mestrado. Campinas: UNICAMP, 2005. Capítulo 2, especialmente as pp.94-96. Sobre os sapateiros, cf. GOMES, Angela de C. Op. Cit. pp.71-72.24CUNHA, Mª Clementina P. Op. Cit. pp.110-111.25Arquivo Nacional - Documentação de Polícia Pacote 459A. Caixa 5622 - GIFI 6C – 433.26BATALHA, Claudio H. de M. Cultura associativa no Rio de Janeiro da primeira República. In: ________; SILVA, Fernando Teixeira da; FORTES, Alexandre (orgs.). Culturas de classe. Identidade e diversidade na formação do operariado. Campinas: UNICAMP, 2004. p.98.27PEREIRA, Leonardo A. de M. Op. Cit. pp.419-444.

ao mesmo tempo em que encarregava-se da repressão direta às sociedades e seus membros.

Essa ação policial, tal como emerge dos registros que ela mesma legou, evidencia, como o próprio Leonardo Pereira percebeu, as discrepâncias entre duas visões de mundo absolutamente distintas,

28balizadas por arcabouços culturais conflitantes . Se os policiais e o establishment jornalístico não conseguiam enxergar nas associações operárias mais do que empecilhos para o funcionamento da maquinaria social, os sócios dos clubes e demais freqüentadores tinham nesses espaços um elemento central para a atribuição de um significado à sua experiência social.

Um exemplo desse conflito, pinçado dentre outros, é o do pedido de licença anual de funcionamento do Grêmio Recreativo Familiar Endiabrados Carnavalescos da Ilha do Governador, no qual o delegado Aníbal Machado acusa os Endiabrados de encobrirem, com atividades recreativas, a prática de

29jogos de azar . Indo além, o zeloso Aníbal afirma que tal sociedade, um verdadeiro “núcleo de vícios”, estaria incomodando a vizinhança, ao atentar contra seus “costumes pacatos e honestos”, sem, no entanto, mencionar qualquer tipo de conversa com moradores d a r e g i ã o q u e p u d e s s e m e x p r e s s a r t a l descontentamento. Não é difícil, porém, perceber que o delegado projetava sobre os moradores das cercanias da associação sua própria visão de mundo.

O exame das listas de associados desse tipo de agremiação nos revela que a imensa maioria destes residia em locais bastante próximos àqueles onde

30buscava se divertir , e as razões para tal parecem bastante óbvias. Destacam-se, não apenas questões de cunho prático, como a economia de tempo e dinheiro (ambos bens preciosos para aqueles que viviam de ceder boa parte daquele a terceiros, em troco de mirradas somas deste) que se fazia ao evitar a precária rede de transportes da cidade, mas, também, outras, relativas à propensão de se construir algum nível de identidade entre pessoas que passam por vivências cotidianas similares, como a experiência do local de moradia.

Não havendo motivo para supor que a situação dos Endiabrados Carnavalescos fosse diferente, não seria de estranhar se os freqüentadores da associação – e, portanto, os praticantes dos jogos ilícitos – fossem os próprios moradores da região que Aníbal presumia se incomodarem com a prática de jogos que sua moral – a do policial – condenava.

Em suma, para os trabalhadores, mais do que uma fonte potencialmente barata de lazer, o que estava

28IDEM. Ibidem. pp.422-423.29Arquivo Nacional – GIFI – Fundo Polícia. GIFI – 6C – 571.30PESTANA, Marco M. Op. Cit. Especialmente o capítulo 3, “Da Zona Sul ao Subúrbio: o mapa da festa”.

História & Luta de Classes, Nº 9 - Junho de 2010 (66-72) - 6968 - A multilateralidade da luta contra o capital: a formação da classe trabalhadora carioca do ponto de vista das associações recreativas - 1900-1920

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em jogo era a defesa dessa experiência associativa como, nos dizeres de Leonardo Pereira, lócus propício à “afirmação de diferentes práticas e universos de

31valores”, os quais seriam próprios à classe .

À grande imprensa, por seu turno, cabia a construção e difusão pelo conjunto da sociedade desse discurso depreciativo em torno dos trabalhadores e suas associações. Não por acaso, grande parte das referências encontradas na imprensa não-operária às festas e bailes de trabalhadores localiza-se nas seções policiais, enfatizando conflitos ocorridos e buscando associar a pecha de “violentos” a seu público. Nesse ponto, podemos perceber uma clara intervenção de periódicos mantidos por militantes da classe trabalhadora, numa encarniçada batalha com a “imprensa burgueza”, segundo a expressão utilizada

32por um dos próprios periódicos , em torno da posição da opinião pública acerca das associações. Se, de um lado, um jornal como O Imparcial descrevia os freqüentadores de um clube como “sedentos de sangue”, de outro, A Gazeta Operária optava por descrevê-los como “amaveis”, ressaltava a “boa concurrencia” dos eventos, e a “ordem e cavalheirismo” neles verificada, e o Echo do Mar via-os como “bons elementos” e “moços cheios de vida e vontade”. Enquanto o Correio da Manhã via os salões dos clubes como espaços para a “fina flor da zona escura (...) a arrastar o passo”, A Nação se impressionava com o “chic” com que as freqüentadoras deles se apresentavam e com “a gentileza da directoria para com os seus convidados”.

Numa decorrência dessa disputa em torno do significado e da imagem desses bailes, alguns de seus elementos tornavam-se igualmente objeto de disputas periodísticas. Evidenciando, por exemplo, a capacidade de fruição estética dos trabalhadores, bem como seu esmero nos preparativos, o jornal operário Rio de Janeiro qualificou como “caprichosamente enfeitados e illuminados” os salões da Sociedade D. Carnavalesca Estrella da Concordia.

Um dos principais fronts dessa guerra foi erigido em torno da música que era tocada nos bailes e festejos, a qual também tornava-se foco de disputas entre os dois lados, evidenciando o abismo existente entre a cultura que se construía nos salões operários, daquela das imponentes salas de concertos e bailes da elite. Se O Paiz afirmava que “na hora das contra-danças, não só descasca o trombone como o bombo concorre heroicamente para a insônia da vizinhança” e utilizava termos como “barulho” e “inferno” para qualificar a música apresentada, a Gazeta Operária retrucava, afirmando que determinada banda se comportara “com a correcção e brilhantismo de sempre”. Indo além, o jornal, em outra ocasião,

33Para os jornais da grande imprensa, cf. PEREIRA, Leonardo A. de M. Op. Cit. pp.423-425. Para os jornais operários, cf. A Nação. Rio de Janeiro. Nº8 (p.2). 09/01/1904.; Gazeta Operária. Rio de Janeiro. Nos. 4 (p.4). 19/10/1902, e 9 (p.4). 23/11/1902; Echo do Mar. Rio de Janeiro. Nº 22 (p.3). 11/12/1909; Rio de Janeiro: jornal de combate. Rio de Janeiro. Nº 3 (p.3). 10/11/1910.34ARANTES, Érika B. Op. Cit. p.140.35CUNHA, Mª Clementina P. Op. Cit. p.200.

31PEREIRA, Leonardo A. de M. Op. Cit. p.441.32Gazeta Operária. Rio de Janeiro. Nº 1 (p.3). 28/09/1902.

demonstrava preocupação em realçar a habilidade dos trabalhadores também como produtores de boa música, e não apenas executores, ao louvar um companheiro como “compositor musical, muito

33habil” .

Esse vasto esforço dos periódicos militantes para produzir outra imagem dos trabalhadores, suas associações e festas, oposta àquela veiculada pela grande imprensa, deve, no entanto, ser enquadrado num contexto mais amplo de ação dos militantes, principalmente socialistas e anarquistas, no sentido de estimular a construção de uma ética de valorização do trabalho, bem como a consolidação de uma consciência de classe entre os trabalhadores. Nesse sentido, podemos identificar dois objetivos mais imediatos para a ação em prol das sociedades: de um lado, atrair trabalhadores para espaços de sociabilidade próprios à classe; de outro, facilitar a obtenção, pelas próprias associações, das licenças de funcionamento junto à polícia da Capital Federal, através do fomento de uma opinião pública favorável. Assim, buscava-se garantir a existência, tanto legal, quanto efetiva, de espaços nos quais os trabalhadores pudessem de maneira agradável e barata expandir a comunidade de experiências vivenciadas nos locais de trabalho, fomentando , ass im, uma maior un ião e companheirismo. A ação dos militantes, no entanto, não se limitou aos periódicos. Em muitos casos, tomaram participação ativa organizando associações e chegando inclusive a liderá-las.

Em disser tação de mestrado sobre trabalhadores do porto carioca, Érika Arantes percebeu, por exemplo, uma grande coincidência de nomes entre dirigentes sindicais e sócios de

34agremiações recreativas na zona portuária . Esta era a situação de Cypriano José de Oliveira, presidente, em 1915, da Sociedade Familiar Dançante e Carnavalesca Club dos Mangueiras, e registrado pela polícia como grevista. Cypriano tinha, ainda, a companhia de Caralampio Trille entre os Mangueiras, um “agitador” e “revolucionário perigoso”, de acordo com os

35policiais . Este tipo de dado nos ajuda a superar a perspectiva dicotômica que freqüentemente marca trabalhos de História Social, nos quais o exame da experiência da classe fora dos espaços de luta direta com o patronato acaba por construir um fosso intransponível entre os trabalhadores não organizados politicamente e os militantes.

Trata-se, evidentemente, de um diálogo que não se realizou unidirecionalmente, na medida em que as tradições arraigadas em meio aos trabalhadores conferiram certos limites, pelo menos às formas segundo as quais essa cultura da classe trabalhadora se constituía. Dizer isso, no entanto, não significa dizer que os militantes foram os únicos responsáveis pelo delineamento da cultura classista, a qual teriam “empurrado” para os demais trabalhadores. Embora a constituição de uma classe consciente tenha, inegavelmente, constituído um telos para estes militantes, um fenômeno social de tamanha envergadura só pode ocorrer a partir da participação ativa de muito mais do que uma reduzida parcela das pessoas com ele envolvido, num intenso processo de estabelecimento e deslocamento de limites envolvendo tanto a cultura da classe em formação, quanto tradições anteriores vivas entre os

36trabalhadores e os referenciais dos militantes .

A percepção da complexidade das relações entabuladas entre os militantes e os demais trabalhadores cariocas não deve, porém, nos impedir de reconhecer as trilhas comuns que foram tomadas. Se, de um lado, parece bastante difícil determinar quantitativamente um avanço na consciência e coesão da classe a partir da experiência compartilhada nas associações recreativas, de outro, algumas situações parecem indicar com clareza o avanço do processo neste rumo. Leonardo Pereira, uma vez mais, nos fornece um interessante exemplo, ao comentar o caso do Club Recreativo Pensando em Ti, o qual teria alugado sua sede para uma reunião de grevistas, incitando, assim, a ira dos policiais responsáveis por

37sua fiscalização . Mais do que isso, essas associações tomaram parte ativa em diversos outros aspectos da vida dos trabalhadores, atuando como importantes centros de referência para estes. Mesmo nos dias em que não havia bailes, mantinha-se aberta a possibilidade de se aproveitar daqueles espaços para reforçar os laços de solidariedade oriundas do compartilhamento das experiências cotidianas de trabalho, moradia, etc. Exemplo claro disso ocorreu“no final de setembro [de 1901], [quando] Nogueirol organizou uma reunião no salão da Sociedade Pingas Carnavalescos (...) com o intuito de

38montar uma tipografia para O Echo Suburbano” .

Apesar de sabermos que alguns proprietários de estabelecimentos da região compareceram à reunião, fica patente a possibilidade de trabalhadores, como Ernesto Nogueirol, funcionário demitido da

36Bom exemplo dessas diferenças localiza-se nos jogos de azar: enquanto a rígida moral anarquista condenava-os, as associações de trabalhadores organizavam animadas e lucrativas sessões de jogos. GOMES, Ângela de C. Op. Cit.p.100.37PEREIRA, Leonardo A. de M. Op. Cit. p.433.38MIYASAKA, Cristiane R. Op. Cit. p.56.

39IDEM. Ibidem. pp.54-55.40BATALHA, Claudio H. de M. Op. Cit.. p.105.41A Voz do Trabalhador. Rio de Janeiro. Nº 71 (p.2) 08/06/1915.

Estrada de Ferro Central do Brasil, recorrerem aos salões das sociedades com o fito de mobilizar a sua comunidade – no caso, a do Engenho de Dentro – em torno da publicação de um jornal que tinha como uma de suas principais bandeiras a diminuição das jornadas

39de trabalho dos ferroviários . Por fim, a construção de uma percepção de classe a partir da vivência nessas associações pode ser percebida em elementos bem mais prosaicos, como no fato de que o 1º de maio ocupava lugar de destaque no calendário festivo da

40maioria dessas associações . A significância da data pode, em última análise, ser atestada pela ampla mobilização em oposição ao intento do Club dos Fenianos – tradicionalmente ligado à elite carioca, como já mencionado – de promover uma festa comemorativa do 1º de maio, que A Voz do Trabalhador noticiou, em sua última edição. As festas dos trabalhadores deveriam ser obra dos próprios trabalhadores:

O Fracasso dos Fenianos – Mais uma vitoria dos operários que ajem por si próprios

A festança que o Club dos Fenianos preparava para o dia Primeiro de Maio, em homenajem ao operariado fracassou vergonhozamente, em virtude da grande ajitação que as classes trabalhadoras fizeram contra tal iniciativa com que os burguezes pretendiam desvirtuar a data.

Logo que foi conhecido o propozito do Club dos Fenianos, que vinha mistifcar a glorioza data de reivindicações operarias, as classes obreiras do Rio de Janeiro ajitaram-se afim de que tal bambochata não se realizasse.

(...)

O Sr. chefe de polícia dezejava saber quais os motivos porque os operários não queriam aceitar as 'homenajens' dos Fenianos, a comissão espoz claramente que o dia Primeiro de Maio era de protesto contra a esploração capitalista e contra o massacre do operariado de Chicago (...)

Depois de algum tempo de palestra a comissão retirou-se, trazendo do chefe de policia a promessa de não dar licença á pretendida adulteração da referida data,

41patrocinada pelo Club dos Fenianos. (...) .

Tamanha foi a imersão deste universo recreativo no processo mais geral de disputa social que a própria música produzida nas sociedades, para além de objeto de discordâncias quanto a seu valor estético, serviu de arma na luta dos trabalhadores por uma de

História & Luta de Classes, Nº 9 - Junho de 2010 (66-72) - 7170 - A multilateralidade da luta contra o capital: a formação da classe trabalhadora carioca do ponto de vista das associações recreativas - 1900-1920

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em jogo era a defesa dessa experiência associativa como, nos dizeres de Leonardo Pereira, lócus propício à “afirmação de diferentes práticas e universos de

31valores”, os quais seriam próprios à classe .

À grande imprensa, por seu turno, cabia a construção e difusão pelo conjunto da sociedade desse discurso depreciativo em torno dos trabalhadores e suas associações. Não por acaso, grande parte das referências encontradas na imprensa não-operária às festas e bailes de trabalhadores localiza-se nas seções policiais, enfatizando conflitos ocorridos e buscando associar a pecha de “violentos” a seu público. Nesse ponto, podemos perceber uma clara intervenção de periódicos mantidos por militantes da classe trabalhadora, numa encarniçada batalha com a “imprensa burgueza”, segundo a expressão utilizada

32por um dos próprios periódicos , em torno da posição da opinião pública acerca das associações. Se, de um lado, um jornal como O Imparcial descrevia os freqüentadores de um clube como “sedentos de sangue”, de outro, A Gazeta Operária optava por descrevê-los como “amaveis”, ressaltava a “boa concurrencia” dos eventos, e a “ordem e cavalheirismo” neles verificada, e o Echo do Mar via-os como “bons elementos” e “moços cheios de vida e vontade”. Enquanto o Correio da Manhã via os salões dos clubes como espaços para a “fina flor da zona escura (...) a arrastar o passo”, A Nação se impressionava com o “chic” com que as freqüentadoras deles se apresentavam e com “a gentileza da directoria para com os seus convidados”.

Numa decorrência dessa disputa em torno do significado e da imagem desses bailes, alguns de seus elementos tornavam-se igualmente objeto de disputas periodísticas. Evidenciando, por exemplo, a capacidade de fruição estética dos trabalhadores, bem como seu esmero nos preparativos, o jornal operário Rio de Janeiro qualificou como “caprichosamente enfeitados e illuminados” os salões da Sociedade D. Carnavalesca Estrella da Concordia.

Um dos principais fronts dessa guerra foi erigido em torno da música que era tocada nos bailes e festejos, a qual também tornava-se foco de disputas entre os dois lados, evidenciando o abismo existente entre a cultura que se construía nos salões operários, daquela das imponentes salas de concertos e bailes da elite. Se O Paiz afirmava que “na hora das contra-danças, não só descasca o trombone como o bombo concorre heroicamente para a insônia da vizinhança” e utilizava termos como “barulho” e “inferno” para qualificar a música apresentada, a Gazeta Operária retrucava, afirmando que determinada banda se comportara “com a correcção e brilhantismo de sempre”. Indo além, o jornal, em outra ocasião,

33Para os jornais da grande imprensa, cf. PEREIRA, Leonardo A. de M. Op. Cit. pp.423-425. Para os jornais operários, cf. A Nação. Rio de Janeiro. Nº8 (p.2). 09/01/1904.; Gazeta Operária. Rio de Janeiro. Nos. 4 (p.4). 19/10/1902, e 9 (p.4). 23/11/1902; Echo do Mar. Rio de Janeiro. Nº 22 (p.3). 11/12/1909; Rio de Janeiro: jornal de combate. Rio de Janeiro. Nº 3 (p.3). 10/11/1910.34ARANTES, Érika B. Op. Cit. p.140.35CUNHA, Mª Clementina P. Op. Cit. p.200.

31PEREIRA, Leonardo A. de M. Op. Cit. p.441.32Gazeta Operária. Rio de Janeiro. Nº 1 (p.3). 28/09/1902.

demonstrava preocupação em realçar a habilidade dos trabalhadores também como produtores de boa música, e não apenas executores, ao louvar um companheiro como “compositor musical, muito

33habil” .

Esse vasto esforço dos periódicos militantes para produzir outra imagem dos trabalhadores, suas associações e festas, oposta àquela veiculada pela grande imprensa, deve, no entanto, ser enquadrado num contexto mais amplo de ação dos militantes, principalmente socialistas e anarquistas, no sentido de estimular a construção de uma ética de valorização do trabalho, bem como a consolidação de uma consciência de classe entre os trabalhadores. Nesse sentido, podemos identificar dois objetivos mais imediatos para a ação em prol das sociedades: de um lado, atrair trabalhadores para espaços de sociabilidade próprios à classe; de outro, facilitar a obtenção, pelas próprias associações, das licenças de funcionamento junto à polícia da Capital Federal, através do fomento de uma opinião pública favorável. Assim, buscava-se garantir a existência, tanto legal, quanto efetiva, de espaços nos quais os trabalhadores pudessem de maneira agradável e barata expandir a comunidade de experiências vivenciadas nos locais de trabalho, fomentando , ass im, uma maior un ião e companheirismo. A ação dos militantes, no entanto, não se limitou aos periódicos. Em muitos casos, tomaram participação ativa organizando associações e chegando inclusive a liderá-las.

Em disser tação de mestrado sobre trabalhadores do porto carioca, Érika Arantes percebeu, por exemplo, uma grande coincidência de nomes entre dirigentes sindicais e sócios de

34agremiações recreativas na zona portuária . Esta era a situação de Cypriano José de Oliveira, presidente, em 1915, da Sociedade Familiar Dançante e Carnavalesca Club dos Mangueiras, e registrado pela polícia como grevista. Cypriano tinha, ainda, a companhia de Caralampio Trille entre os Mangueiras, um “agitador” e “revolucionário perigoso”, de acordo com os

35policiais . Este tipo de dado nos ajuda a superar a perspectiva dicotômica que freqüentemente marca trabalhos de História Social, nos quais o exame da experiência da classe fora dos espaços de luta direta com o patronato acaba por construir um fosso intransponível entre os trabalhadores não organizados politicamente e os militantes.

Trata-se, evidentemente, de um diálogo que não se realizou unidirecionalmente, na medida em que as tradições arraigadas em meio aos trabalhadores conferiram certos limites, pelo menos às formas segundo as quais essa cultura da classe trabalhadora se constituía. Dizer isso, no entanto, não significa dizer que os militantes foram os únicos responsáveis pelo delineamento da cultura classista, a qual teriam “empurrado” para os demais trabalhadores. Embora a constituição de uma classe consciente tenha, inegavelmente, constituído um telos para estes militantes, um fenômeno social de tamanha envergadura só pode ocorrer a partir da participação ativa de muito mais do que uma reduzida parcela das pessoas com ele envolvido, num intenso processo de estabelecimento e deslocamento de limites envolvendo tanto a cultura da classe em formação, quanto tradições anteriores vivas entre os

36trabalhadores e os referenciais dos militantes .

A percepção da complexidade das relações entabuladas entre os militantes e os demais trabalhadores cariocas não deve, porém, nos impedir de reconhecer as trilhas comuns que foram tomadas. Se, de um lado, parece bastante difícil determinar quantitativamente um avanço na consciência e coesão da classe a partir da experiência compartilhada nas associações recreativas, de outro, algumas situações parecem indicar com clareza o avanço do processo neste rumo. Leonardo Pereira, uma vez mais, nos fornece um interessante exemplo, ao comentar o caso do Club Recreativo Pensando em Ti, o qual teria alugado sua sede para uma reunião de grevistas, incitando, assim, a ira dos policiais responsáveis por

37sua fiscalização . Mais do que isso, essas associações tomaram parte ativa em diversos outros aspectos da vida dos trabalhadores, atuando como importantes centros de referência para estes. Mesmo nos dias em que não havia bailes, mantinha-se aberta a possibilidade de se aproveitar daqueles espaços para reforçar os laços de solidariedade oriundas do compartilhamento das experiências cotidianas de trabalho, moradia, etc. Exemplo claro disso ocorreu“no final de setembro [de 1901], [quando] Nogueirol organizou uma reunião no salão da Sociedade Pingas Carnavalescos (...) com o intuito de

38montar uma tipografia para O Echo Suburbano” .

Apesar de sabermos que alguns proprietários de estabelecimentos da região compareceram à reunião, fica patente a possibilidade de trabalhadores, como Ernesto Nogueirol, funcionário demitido da

36Bom exemplo dessas diferenças localiza-se nos jogos de azar: enquanto a rígida moral anarquista condenava-os, as associações de trabalhadores organizavam animadas e lucrativas sessões de jogos. GOMES, Ângela de C. Op. Cit.p.100.37PEREIRA, Leonardo A. de M. Op. Cit. p.433.38MIYASAKA, Cristiane R. Op. Cit. p.56.

39IDEM. Ibidem. pp.54-55.40BATALHA, Claudio H. de M. Op. Cit.. p.105.41A Voz do Trabalhador. Rio de Janeiro. Nº 71 (p.2) 08/06/1915.

Estrada de Ferro Central do Brasil, recorrerem aos salões das sociedades com o fito de mobilizar a sua comunidade – no caso, a do Engenho de Dentro – em torno da publicação de um jornal que tinha como uma de suas principais bandeiras a diminuição das jornadas

39de trabalho dos ferroviários . Por fim, a construção de uma percepção de classe a partir da vivência nessas associações pode ser percebida em elementos bem mais prosaicos, como no fato de que o 1º de maio ocupava lugar de destaque no calendário festivo da

40maioria dessas associações . A significância da data pode, em última análise, ser atestada pela ampla mobilização em oposição ao intento do Club dos Fenianos – tradicionalmente ligado à elite carioca, como já mencionado – de promover uma festa comemorativa do 1º de maio, que A Voz do Trabalhador noticiou, em sua última edição. As festas dos trabalhadores deveriam ser obra dos próprios trabalhadores:

O Fracasso dos Fenianos – Mais uma vitoria dos operários que ajem por si próprios

A festança que o Club dos Fenianos preparava para o dia Primeiro de Maio, em homenajem ao operariado fracassou vergonhozamente, em virtude da grande ajitação que as classes trabalhadoras fizeram contra tal iniciativa com que os burguezes pretendiam desvirtuar a data.

Logo que foi conhecido o propozito do Club dos Fenianos, que vinha mistifcar a glorioza data de reivindicações operarias, as classes obreiras do Rio de Janeiro ajitaram-se afim de que tal bambochata não se realizasse.

(...)

O Sr. chefe de polícia dezejava saber quais os motivos porque os operários não queriam aceitar as 'homenajens' dos Fenianos, a comissão espoz claramente que o dia Primeiro de Maio era de protesto contra a esploração capitalista e contra o massacre do operariado de Chicago (...)

Depois de algum tempo de palestra a comissão retirou-se, trazendo do chefe de policia a promessa de não dar licença á pretendida adulteração da referida data,

41patrocinada pelo Club dos Fenianos. (...) .

Tamanha foi a imersão deste universo recreativo no processo mais geral de disputa social que a própria música produzida nas sociedades, para além de objeto de discordâncias quanto a seu valor estético, serviu de arma na luta dos trabalhadores por uma de

História & Luta de Classes, Nº 9 - Junho de 2010 (66-72) - 7170 - A multilateralidade da luta contra o capital: a formação da classe trabalhadora carioca do ponto de vista das associações recreativas - 1900-1920

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suas reivindicações mais candentes das primeiras décadas do século XX, conforme exemplificado pelos versos produzidos pelo cordão Flor do Castelo, em 1907, plenamente envolvidos com:

“Avante, brasileiros!

O que diz ser operários

reclamar dos nossos mestres42oito horas de trabalho!”

Foram estes variados mecanismos que facultaram à classe trabalhadora a possibilidade de, paulatinamente, superar (mas não apagar) suas muitas diferenças – fossem elas relativas a origens nacionais, etnias, remuneração, etc – e caminhar no sentido de construir uma maior unidade de consciência e ação, sempre em oposição àqueles que identificava como seus an tagon i s t a s , pa ra r ecupera rmos a indissociabilidade de classe e luta de classes proposta

43por Thompson . Submetidos a diversas pressões – como o Estado, a ideologia dominante, as condições de vida, as experiências de outros países, etc –, os trabalhadores constituíram, nas associações, formas autônomas de sociabilidade em que todos esses fatores dialogavam com a totalidade de sua experiência como trabalhadores que viviam a imposição da ordem capitalista. Nesse contexto, as atividades ali desenvolvidas não adquirem sentidos meramente casuais. Ao contrário relacionam-se fortemente com todos esses outros aspectos referentes ao “lado de fora”, amalgamando os valores e hábitos impostos pelos dominantes, com suas próprias tradições anteriores. Como resultado desse cruzamento de múltiplas determinações, o que se verifica é um arcabouço cultural não pretensamente universal, mas justamente capaz de expressar e traduzir a percepção que os trabalhadores firmavam acerca de seu tempo, ao passo que era parte integrante da vivência deste tempo, o qual se exprimia, por exemplo, nos códigos não formalizados de conduta que vigoravam nestes

44espaços .

A importância das associações recreativas, como espaços de construção e preservação de uma cultura de classe, foi sintetizada por Leonardo Pereira, ao afirmar que

[seus] festejos se constituíam em ocasiões propícias para a definição de afinidades restritas – sejam as que separavam os habitantes da cidade a partir de suas posições sociais, evidenciando a separação classista dos espaços e das práticas recreativas, ou as

42Versos citados por CUNHA, Mª Clementina P. Op. Cit. p.184.43THOMPSON, Edward P. Algumas observações sobre classe e falsa consciência. In: . As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas: UNICAMP, 2001. pp.273-274.44PEREIRA, Leonardo A. de M. Op. Cit. pp.428-433.

que dividiam os próprios trabalhadores em 45'tribos' muitas vezes antagônicas .

Tais percepções, no entanto, só são possíveis caso adotemos uma perspectiva teórica que nos leve a perceber a articulação dialética entre os diversos níveis do real, a fim de analisar a experiência dos

46trabalhadores cariocas em sua dimensão holística , mesmo que um aspecto seja privilegiado enquanto objeto da observação.

45IDEM. Ibidem. pp.421;441.46THOMPSON, Edward P. Folclore, Antropologia e História social. In: . Op. Cit. pp.252-263.

Normas para Autores1. A revista História & Luta de Classes [[email protected]] nasce em tempos

de domínio social da barbárie neoliberal e de hegemonia conservadora no pensamento acadêmico, com destaque para a área da História e das Ciências Sociais. Ela procura servir como ferramenta de intervenção de historiadores e produtores de conhecimento que se recusam a aderir e se opõem ativamente a essa dominação.

2. Os objetivos da revista História & Luta de Classes estão expressos na "Apresentação" do seu primeiro número. Eles definem os marcos referenciais para os interessados em colaborar com a revista ou propor sua integração ao coletivo da revista.

3. A revista está aberta a propostas de colaborações, reservando-se o direito de exame dos textos enviados espontaneamente à redação. Sem exceção, todos os artigos serão submetidos a parecer.

4. A revista História & Luta de Classes dirige-se aos estudantes e professores de história e ciências sociais, em especial, e ao grande público interessado, em geral. Sem concessões de conteúdo, na forma e na linguagem, os autores procurarão que seus artigos alcancem o mais vasto público leitor.

5. Os artigos poderão ser enviados através de e-mail em arquivo anexado em formato Word para o endereço [email protected] ou para os organizadores de cada número. Os textos enviados deverão ser inéditos, no relativo à publicação impressa, e não excedendo os 35.000 caracteres, contando notas de rodapé e os espaços em branco. Os originais deverão conter título, nome do autor e filiação institucional (universidade, escola, sindicato, etc.).

6. Resenhas, com um máximo de 16.000 caracteres, seguirão as mesmas regras.7. Referências bibliográficas completas deverão constar em nota de rodapé (e não ao final do

texto), obedecendo à seguinte formatação:7.1. Livros: Nome Sobrenome. Título em itálico. Cidade: Editora, ano de publicação, página

citada. Ex.: CAPITANI, Avelino Biden. A rebelião dos marinheiros. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1997. p. 123.

7.2. Capítulo de livros: Sobrenome, nome. Título do capítulo. In: Sobrenome, nome (org.). Título do livro em itálico. Cidade: Editora, ano de publicação, página citada. Ex: BROUÉ, Pierre. O fim da Segunda Guerra e a contenção da revolução. In: COGGIOLA, Osvaldo (org.). Segunda Guerra Mundial: um balanço histórico. São Paulo: Xamã/FFLCH-USP, 1995. p. 22.

7.3. Artigo de periódico: Sobrenome, Nome. Título do artigo. Nome da revista em itálico, v. (volume), n. (número), mês e ano de publicação, página citada. Ex.: BARRETO, Teresa Cristófani; GIANERA, Pablo; SAMOILOVICH, Daniel; Piñera, VIRGILIO. Cronologia. Revista USP, n. 45, out. 2000. p. 149.

8. As citações de outros textos deverão estar entre aspas duplas no corpo principal do texto e a referência bibliográfica correspondente deve ser colocada em nota de rodapé.

Próximos Dossiês:Número 10 – Militares e Luta de Classes. Prazo para encaminhamento de contribuições:

encerrado;Número 11 - Violência e Criminalização. Prazo para encaminhamento de contribuições:

30.09.2010; Número 12 - Revolução e Contra-Revolução. Prazo para encaminhamento de contribuições:

30.03.2011.Também serão aceitas proposições de artigos e resenhas sobre temas livres, além da

temática estabelecida para cada dossiê.

72 - A multilateralidade da luta contra o capital: a formação da classe trabalhadora carioca do ponto de vista das associações recreativas - 1900-1920

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suas reivindicações mais candentes das primeiras décadas do século XX, conforme exemplificado pelos versos produzidos pelo cordão Flor do Castelo, em 1907, plenamente envolvidos com:

“Avante, brasileiros!

O que diz ser operários

reclamar dos nossos mestres42oito horas de trabalho!”

Foram estes variados mecanismos que facultaram à classe trabalhadora a possibilidade de, paulatinamente, superar (mas não apagar) suas muitas diferenças – fossem elas relativas a origens nacionais, etnias, remuneração, etc – e caminhar no sentido de construir uma maior unidade de consciência e ação, sempre em oposição àqueles que identificava como seus an tagon i s t a s , pa ra r ecupera rmos a indissociabilidade de classe e luta de classes proposta

43por Thompson . Submetidos a diversas pressões – como o Estado, a ideologia dominante, as condições de vida, as experiências de outros países, etc –, os trabalhadores constituíram, nas associações, formas autônomas de sociabilidade em que todos esses fatores dialogavam com a totalidade de sua experiência como trabalhadores que viviam a imposição da ordem capitalista. Nesse contexto, as atividades ali desenvolvidas não adquirem sentidos meramente casuais. Ao contrário relacionam-se fortemente com todos esses outros aspectos referentes ao “lado de fora”, amalgamando os valores e hábitos impostos pelos dominantes, com suas próprias tradições anteriores. Como resultado desse cruzamento de múltiplas determinações, o que se verifica é um arcabouço cultural não pretensamente universal, mas justamente capaz de expressar e traduzir a percepção que os trabalhadores firmavam acerca de seu tempo, ao passo que era parte integrante da vivência deste tempo, o qual se exprimia, por exemplo, nos códigos não formalizados de conduta que vigoravam nestes

44espaços .

A importância das associações recreativas, como espaços de construção e preservação de uma cultura de classe, foi sintetizada por Leonardo Pereira, ao afirmar que

[seus] festejos se constituíam em ocasiões propícias para a definição de afinidades restritas – sejam as que separavam os habitantes da cidade a partir de suas posições sociais, evidenciando a separação classista dos espaços e das práticas recreativas, ou as

42Versos citados por CUNHA, Mª Clementina P. Op. Cit. p.184.43THOMPSON, Edward P. Algumas observações sobre classe e falsa consciência. In: . As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas: UNICAMP, 2001. pp.273-274.44PEREIRA, Leonardo A. de M. Op. Cit. pp.428-433.

que dividiam os próprios trabalhadores em 45'tribos' muitas vezes antagônicas .

Tais percepções, no entanto, só são possíveis caso adotemos uma perspectiva teórica que nos leve a perceber a articulação dialética entre os diversos níveis do real, a fim de analisar a experiência dos

46trabalhadores cariocas em sua dimensão holística , mesmo que um aspecto seja privilegiado enquanto objeto da observação.

45IDEM. Ibidem. pp.421;441.46THOMPSON, Edward P. Folclore, Antropologia e História social. In: . Op. Cit. pp.252-263.

Normas para Autores1. A revista História & Luta de Classes [[email protected]] nasce em tempos

de domínio social da barbárie neoliberal e de hegemonia conservadora no pensamento acadêmico, com destaque para a área da História e das Ciências Sociais. Ela procura servir como ferramenta de intervenção de historiadores e produtores de conhecimento que se recusam a aderir e se opõem ativamente a essa dominação.

2. Os objetivos da revista História & Luta de Classes estão expressos na "Apresentação" do seu primeiro número. Eles definem os marcos referenciais para os interessados em colaborar com a revista ou propor sua integração ao coletivo da revista.

3. A revista está aberta a propostas de colaborações, reservando-se o direito de exame dos textos enviados espontaneamente à redação. Sem exceção, todos os artigos serão submetidos a parecer.

4. A revista História & Luta de Classes dirige-se aos estudantes e professores de história e ciências sociais, em especial, e ao grande público interessado, em geral. Sem concessões de conteúdo, na forma e na linguagem, os autores procurarão que seus artigos alcancem o mais vasto público leitor.

5. Os artigos poderão ser enviados através de e-mail em arquivo anexado em formato Word para o endereço [email protected] ou para os organizadores de cada número. Os textos enviados deverão ser inéditos, no relativo à publicação impressa, e não excedendo os 35.000 caracteres, contando notas de rodapé e os espaços em branco. Os originais deverão conter título, nome do autor e filiação institucional (universidade, escola, sindicato, etc.).

6. Resenhas, com um máximo de 16.000 caracteres, seguirão as mesmas regras.7. Referências bibliográficas completas deverão constar em nota de rodapé (e não ao final do

texto), obedecendo à seguinte formatação:7.1. Livros: Nome Sobrenome. Título em itálico. Cidade: Editora, ano de publicação, página

citada. Ex.: CAPITANI, Avelino Biden. A rebelião dos marinheiros. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1997. p. 123.

7.2. Capítulo de livros: Sobrenome, nome. Título do capítulo. In: Sobrenome, nome (org.). Título do livro em itálico. Cidade: Editora, ano de publicação, página citada. Ex: BROUÉ, Pierre. O fim da Segunda Guerra e a contenção da revolução. In: COGGIOLA, Osvaldo (org.). Segunda Guerra Mundial: um balanço histórico. São Paulo: Xamã/FFLCH-USP, 1995. p. 22.

7.3. Artigo de periódico: Sobrenome, Nome. Título do artigo. Nome da revista em itálico, v. (volume), n. (número), mês e ano de publicação, página citada. Ex.: BARRETO, Teresa Cristófani; GIANERA, Pablo; SAMOILOVICH, Daniel; Piñera, VIRGILIO. Cronologia. Revista USP, n. 45, out. 2000. p. 149.

8. As citações de outros textos deverão estar entre aspas duplas no corpo principal do texto e a referência bibliográfica correspondente deve ser colocada em nota de rodapé.

Próximos Dossiês:Número 10 – Militares e Luta de Classes. Prazo para encaminhamento de contribuições:

encerrado;Número 11 - Violência e Criminalização. Prazo para encaminhamento de contribuições:

30.09.2010; Número 12 - Revolução e Contra-Revolução. Prazo para encaminhamento de contribuições:

30.03.2011.Também serão aceitas proposições de artigos e resenhas sobre temas livres, além da

temática estabelecida para cada dossiê.

72 - A multilateralidade da luta contra o capital: a formação da classe trabalhadora carioca do ponto de vista das associações recreativas - 1900-1920

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ISSN 1808-09X

7 7 1 8 0 8 0 9 1 0 0 2

NESTA EDIÇÃO

DOSSIÊ TEORIA DA HISTÓRIA

A dialética na oficina do historiador: ideias arriscadas sobre algumas questões de método

Tempos históricos e ritmos políticos

Breves considerações sobre o método historiográfico

A “eficiência real”: apontamentos de Gramsci para uma história/concepção dos partidos políticos

Walter Benjamim contra a história progressiva

LÖWY-CALLINICOS: UM DEBATE IMPORTANTE

Compreender (os horrores de) a história

Resposta a Michael Löwy

A “queda do muro” e a morte do comunismo em Veja

ARTIGOS

Ernesto Che Guevara: el antiimperialismo y la construccíon del socialismo en Cuba

Eurelino Coelho

Daniel Bensaïd

Luiz Bernardo Pericás

Igor Gomes Santos

Carlos Prado

Michael Löwy

Alex Callinicos

Carla Luciana Silva

Nazira Correia Camely

Teoria da História

Inés Nercesian

Haiti: holocaustos coloniais e o capitalismo da piedade

A multilateralidade da luta contra o capital: a formação da classe trabalhadora carioca do ponto devista das associações recreativas - 1900-1920

Marco M. Pestana