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5574 ISSN: 2175-8875 www.enanpege.ggf.br/2017 TEORIA ATOR-REDE: CONVERGÊNCIAS E POSSIBILIDADES À ANÁLISE GEOGRÁFICA GUSTAVO ARAUJO 1 CARLOS LOBO 2 Resumo: Este artigo tem como objetivo principal refletir sobre a possível aproximação entre os pressupostos teóricos e conceituais da Teoria Ator-rede (ANT) e a análise espacial na Geografia. A partir de uma reconsideração da noção de rede, discorremos sobre os conceitos de tradução, ator- rede, agnosticismo, simetria generalizada e associação livre. O estudo busca ainda identificar alguns exemplos de análises geográficas que reafirmam as convergências e possibilidades entre ANT e Geografia. Palavras-chave: Rede; Teoria Ator-rede; Análise geográfica. Abstract: The main objective of this article is to reflect on the possible approximation between the theoretical and conceptual assumptions of the Network-Actor Theory (ANT) and the spatial analysis in Geography. From a reconsideration of the notion of network, it discusses the concepts of translation, actor-network, agnosticism, generalized symmetry and free association. The study also seeks to identify some examples of geographic analysis that reaffirm the convergences and possibilities between ANT and Geography. Key-words: Network; Actor-network theory; Geographical analysis. 1- Introdução Apresentada como uma concepção alternativa de rede, a chamada Teoria Ator-rede (ANT) tem foco voltado às espacialidades específicas e movimentos que produzem as relações entres os pontos da estrutura e as razões que os faz agir, bem como aquelas que permitem circular e transportam por intermédio de entidades de natureza diversa, que caracterizam a “tradução” (CALLÓN, 1986; 2008; LAW, 1992; 1999; LATOUR, 2012). Neste caso, as redes compreendem estruturas heterogêneas, geradas pelo resultado do entrelaçamento de seus componentes em torno de associações que se estabelecem dinamicamente. Nessa abordagem, as análises buscam não apenas identificar os elementos que alimentam os diversos 1 -Acadêmico do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail de contato: [email protected] 2 -Professor do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail de contato: [email protected]

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ISSN: 2175-8875 www.enanpege.ggf.br/2017

TEORIA ATOR-REDE: CONVERGÊNCIAS E POSSIBILIDADES À ANÁLISE GEOGRÁFICA

GUSTAVO ARAUJO1

CARLOS LOBO2

Resumo: Este artigo tem como objetivo principal refletir sobre a possível aproximação entre os

pressupostos teóricos e conceituais da Teoria Ator-rede (ANT) e a análise espacial na Geografia. A partir de uma reconsideração da noção de rede, discorremos sobre os conceitos de tradução, ator-rede, agnosticismo, simetria generalizada e associação livre. O estudo busca ainda identificar alguns exemplos de análises geográficas que reafirmam as convergências e possibilidades entre ANT e Geografia.

Palavras-chave: Rede; Teoria Ator-rede; Análise geográfica.

Abstract: The main objective of this article is to reflect on the possible approximation between the

theoretical and conceptual assumptions of the Network-Actor Theory (ANT) and the spatial analysis in Geography. From a reconsideration of the notion of network, it discusses the concepts of translation, actor-network, agnosticism, generalized symmetry and free association. The study also seeks to identify some examples of geographic analysis that reaffirm the convergences and possibilities between ANT and Geography. Key-words: Network; Actor-network theory; Geographical analysis.

1- Introdução

Apresentada como uma concepção alternativa de rede, a chamada Teoria

Ator-rede (ANT) tem foco voltado às espacialidades específicas e movimentos que

produzem as relações entres os pontos da estrutura e as razões que os faz agir,

bem como aquelas que permitem circular e transportam por intermédio de entidades

de natureza diversa, que caracterizam a “tradução” (CALLÓN, 1986; 2008; LAW,

1992; 1999; LATOUR, 2012). Neste caso, as redes compreendem estruturas

heterogêneas, geradas pelo resultado do entrelaçamento de seus componentes em

torno de associações que se estabelecem dinamicamente. Nessa abordagem, as

análises buscam não apenas identificar os elementos que alimentam os diversos

1 -Acadêmico do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail de contato: [email protected]

2 -Professor do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail de contato: [email protected]

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fluxos que compõem sua estrutura, causas e efeitos. Preocupa-se, sobretudo, com a

essência e a própria razão de existência das redes. Busca-se um novo significado

de rede ao analisar o comportamento dos atores sistematizados, descrevendo suas

origens, formas de ação e reação com relação as associações e dissociações

estabelecidas com as demais entidades.

Para Latour (1990), o estudo das redes não significa analisar o fluxo de

informação em si, senão as transformações nele existentes. Interessa analisar a

construção das estruturas, sujeitos e objetos resultantes das mais diversas

interações. O objetivo é conhecer os efeitos do que se está construindo e como é

distribuído pelos diversos componentes da estrutura. De acordo com Latour (2012,

p. 192, grifo nosso), "rede é conceito e não coisa. É uma ferramenta que nos ajuda a

descrever algo, não algo que esteja sendo descrito". A ANT promove uma matriz

ontológica alternativa ao considerar que a sociedade e o social devem ser vistos

como o resultado do entrelaçamento de redes compostas de elementos

heterogêneos. Para Law (1992, p.01), “não existiria sociedade e nem organização se

essas fossem simplesmente sociais” e quase todas as relações que ocorrem entre

seres humanos são mediadas por algum tipo de material, configurando uma trama

de redes de relações de caráter simultaneamente social e material ou técnico

(sociotécnico) para formar o que chamamos comumente de sociedade ou social.

A perspectiva de análise da ANT oferece novas possibilidades teóricas e

metodológicas para a Geografia e áreas afins, sobretudo pela associação ao

conceito de rede dos elementos no espaço, considerando-os não como meras

representações de caráteres físicos, mas sim como objetos de reflexão

epistemológica. Como consequência, a rede torna-se uma ferramenta útil a análise

dos fenômenos socioespaciais, entendidos como um emaranhado de relações entre

pessoas e os artefatos que elas produzem (LAW, 1992). Nessa visão de rede é

possível reconsiderar dicotomias tradicionais, como natureza e sociedade, micro e

macrossocial, global e local, agência e estrutura (MURDOCH, 1998).

Neste ensaio, apresentado de forma sintética nesse trabalho, é

apresentado uma breve reflexão sobre a noção de rede tendo como base a proposta

oferecida pela ANT. Busca-se, apresentar algumas possibilidades de utilização

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desta metodologia de análise espacial geográfica. Inicialmente são apresentados

determinados aspectos teóricos e conceituais fundamentais, tais como tradução,

ator-rede, simetria generalizada e associação livre. Em seguida, são apresentados

alguns exemplos de estudos geográficos, os quais reafirmam as convergências e

possibilidades da ANT na Geografia.

2 - Pressupostos teórico-conceituais da ANT: tradução, ator-rede,

agnosticismo, simetria generalizada e associação livre

A compreensão dos fenômenos como resultado de interações entre redes

heterogêneas (LAW, 1992), que conectam seres humanos a objetos e artefatos, não

requer uma análise restrita às relações humanas. Para Latour (2012, p. 160) […]

“não existe sociedade, não existe domínio social, não existem vínculos sociais, mas

existem traduções entre mediadores que podem gerar associações rastreáveis” [...].

Isso envolve uma ferramenta que permite ultrapassar barreiras comumente

estabelecidas entre tecnologias ou artefatos e os seres humanos, ao proporcionar

uma abordagem de forma simétrica que permite afirmar que um aspecto técnico

pode ser visto como social e vice-versa (LATOUR, 2013).

Uma primeira aproximação teórica remete ao conceito de tradução, utilizado

na ANT com base na interpretação de Serres (1974) em filosofia da ciência. De

acordo com esse autor, o mundo se constrói e desconstrói, se estabiliza e se

desestabiliza em função dos esforços constantes de atores individuais e coletivos,

em traduzir sua linguagem própria, suas representações e seus objetivos em relação

aos demais. Além da função linguística, a palavra “tradução” também significa

transposição ou traslado de um lugar a outro. Vale ressaltar que no idioma inglês o

termo translation tem duplo significado e pode ser empregado tanto para designar

tradução como translação. Contudo, Latour (2011) considera que trasladar

interesses significa, ao mesmo tempo, oferecer novas interpretações de interesses e

canalizar as pessoas para direções diferentes. Desta forma, a ideia de “tradução” é

tratada como processo de estabelecer a comunicação ou produzir conexões

(SERRES, 1974).

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Segundo Callón (1991), tradução é uma operação triangular que envolve o

tradutor, algo que é traduzido e um meio no qual tal tradução está inserida. Callón

(1986) descreve os quatro momentos da tradução: (I) problematização: consiste

num duplo movimento de autodefinição dos atores e a definição dos pontos de

passagem obrigatórios (PPO), que determinarão a configuração do entrelaçamento

dos atores inter-relacionados através de alianças que são forjadas; (II) Despertar do

interesse: envolve o conjunto de ações realizadas pelas entidades com objetivos de

influenciar a performance dos demais atores. O despertar do interesse é a

reafirmação das alianças construídas na problematização, e consiste na

interpretação das associações estabelecidas entre as entidades; (III) Engajamento: é

o alistamento e coordenação das funções que assumem os atores através de um

jogo de papéis, resultado das negociações multilaterais e dinâmicas a que se

submetem os atores. Trata-se, portanto, do êxito das alianças estabelecidas entre os

atores. (IV) Mobilização: representa a mobilidade das entidades, que se deslocam,

agrupam e reagrupam em espaços e tempos específicos por intermédio de porta-

vozes que representam seus interesses de engajamento. Este último momento do

processo de tradução, a mobilização, é a essência da translação/tradução que pode

ser expressa também pelo termo “mediação de interesses”. A tradução é, portanto,

um processo central das e nas redes heterogêneas.

O entendimento das diferenças entre elementos intermediadores e

mediadores é igualmente fundamental na ANT e consiste nas relações de interesse,

poder e domínio. Simplificadamente, pode-se afirmar que um intermediário é aquele

que transfere ou transporta algo de forma neutra, sem causar interferência naquilo

que é deslocado, diferentemente dos mediadores, que por sua vez agem de forma a

transformar ou modificar significados e contextos (LATOUR, 2012). A mediação é,

portanto, o atributo mais observado e de maior interesse neste tipo de análise. De

acordo com Latour (2011; 2012), um intermediário pode ser considerado como uma

“caixa-preta” que pode ser aberta por seres humanos, na tentativa de estabilizar a

dinâmica da rede por meio de interferências nos seus ordenamentos. A partir do

momento em que deixa de ser um intermediário e passa a ter papel de mediador de

uma relação a mediação amplia seu poder de ação quando “traduz” algo (LATOUR,

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2012). No movimento das relações produzidas, na perspectiva relacional de

sociedade (EMIRBAYER, 1997), designa-se que um ator entre muitos não é uma

coisa em si e nem uma força por trás de todos os atores transportados por meio de

um deles, mas uma associação que promove transformações, denominada de

tradução, [...] “uma conexão que transporta” […] e a complicada palavra rede sendo

definida como aquilo que é traçado pelas traduções nas explicações dos

pesquisadores” [...] (LATOUR, 2012, p. 59).

Na ANT o termo ator-rede designa simultaneamente o agente e a estrutura,

como partes do mesmo todo, ao passo em que o termo tradução assume um papel

específico que implica em transporte, [...] “mas não transporta causalidade, mas

induz dois mediadores a coexistência” [...] (LATOUR, 2012, p. 59). Ou seja, os

conceitos de ator e de rede estão concatenados e um não pode ser definido sem o

outro. A ação será o resultado do processo de construção da rede, que se dá por

meio da tradução. Ator e rede tem portanto a mesma essência. Qualquer elemento

inserido no espaço, a partir de suas relações com outros elementos, cria

interdependência e traduz as ações de outros elementos para uma linguagem

comum. “Um ‘ator’ define espaços e suas organizações, tamanhos e suas medidas,

valores e padrões, que define as regras do jogo” (CALLÓN e LATOUR, 1981, p.

286). Todo “ator” é, portanto, uma rede de pedaços e peças (LAW, 1994). Ator e

rede são partes da mesma estrutura, considerados simultaneamente [o que explica

o próprio uso do hífen] e expressa a eliminação da dicotomia ação-estrutura na ótica

da ANT (LATOUR, 2012).

O pesquisador deve atentar-se a alguns princípios básicos nesse tipo de

investigação, os quais orientarão sua postura e metodologia utilizada diante do

objeto em análise. De acordo com Callón (1986), os princípios básicos da ANT são

três: (I) agnosticismo, que denota a imparcialidade entre os atores envolvidos no

entrelaçamento da rede. Não se define, em princípio, quem são os atores a serem

analisados. Nenhum ponto de vista é privilegiado e nenhuma interpretação é

censurada; (II) simetria generalizada, que implica em explicar equitativamente

diferentes posicionamentos dos atores com relação a um determinado tema. Todos

carregam igual relevância na realização da descrição e análise de determinada rede;

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(III) associação livre, que requer a desconsideração de qualquer diferença, a priori,

entre o natural e o social. Todos os elementos são simultaneamente sociais e

materiais.

A ANT demonstra como as redes dobram e redobram espaço-tempo pelas

mobilizações, acumulações e recombinações que ligam sujeitos, objetos, domínios e

locais (LATOUR, 2011). Também demonstra como as redes são formadas, tendo

como base as relações entre os seus elementos ao reunir diversos lugares e tempos

dentro de um quadro de referência e cálculo comuns. Este processo de ajuntamento

resulta na conexão de pontos muito distantes, enquanto outros que aparentemente

estariam juntos estão desconexos (LATOUR, 2012). Em ANT, espaço torna-se uma

questão de elementos de rede e a forma em que se juntam (MOL e LAW, 1994).

Lugares com uma série de elementos e relações similares entre si, em geral, estão

perto uns dos outros. Aqueles com elementos diferentes ou relações diferentes

normalmente estão longe.

Law (2002) sugere que a concepção de objetos é também de condições

espaciais de possibilidades e impossibilidades, que têm poder de ação em rede na

medida em que se incorporam os materiais duráveis (artefatos) que contribuem com

a durabilidade das redes. Essa ideia acirra o debate sobre o conceito de estruturas

reticulares e, sobretudo, sobre sua composição e formas empíricas de análises, dos

quais emergem, por exemplo, as categorias espaço, território e tempo. A ANT

consiste em ferramentas metodológicas capazes de captar e traduzir movimentos de

associação de elementos materialmente heterogêneos que se estabilizam

temporariamente e constituem a essência de toda sociedade ou organização (LAW,

1992). Assim, uma determinada entidade permanece estável na rede enquanto as

relações que a produzem não alteram sua forma (LAW, 2002), o que implica

também nas noções de objeto e espaço.

A ANT define objetos como um efeito de matrizes estáveis ou redes de

relações (LAW, 2002), e “existem no interior de diferentes sistemas espaciais”

(Ibidem, p.96). Nesta concepção de objeto os espaços são produzidos

simultaneamente: “quando um objeto (rede) é constituído, um mundo (rede) é criado

com sua própria espacialidade e suas próprias versões de homomorfismo e ruptura”

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(Ibidem, p. 97). A mesma forma, uma vez mantida, ainda que temporalmente

estável, é sempre resultado de um movimento de resistência diante das pressões

positivas e negativas determinadas por diferentes graus de resiliência dos materiais

que compõem os objetos (LAW, 2002). Quando a cadeia de relações se torna

desfavorável e frágil, ela se quebra gerando nova configuração. “Quando uma rede

se estabiliza, fica claro quais atores fazem parta da construção da mesma por meio

de relações de poder. Poder de agir em função de outros atores da rede, ser seu

porta-voz e definir seus papéis” (Ibidem, p. 139). Dessa forma, uma rede é

consistente desde que as relações que ocorrem entre todas as suas partes também

sejam.

3 - ANT e a análise geográfica: convergências e possibilidades

Murdoch (1998) afirma que a ANT dá origem a um novo tipo de Geografia, ou

talvez, uma nova forma de análise geográfica, caracterizada por basicamente dois

tipos de espaços implicados nas configurações de redes heterogêneas e

sociotécnicas: espaços de prescrição e de negociação. Ainda segundo esse autor,

nesse mesmo trabalho, o primeiro refere-se a um estágio mais incipiente da

integração dos atores e o segundo constitui um momento mais avançado de

relações entre os atores. Esses dois tipos espaciais diferem conforme os respectivos

graus de controle remoto e autonomia encontrado nas redes. Assim, observa-se a

estreita relação com as possibilidades de organização espacial baseada em ANT,

uma vez que analisa e descreve relações de ação e poder transformadoras do

espaço.

As relações intrínsecas entre redes, territórios e escalas são abordadas por

Dicken et al. (2001) em uma análise da economia global, fundamentada pelas redes.

Os autores propõem uma visão relacional das redes como metodologia de análise

da economia global. Trazem uma compreensão das cadeias globais de commodities

baseadas em uma visão de redes que considera simultaneamente o caráter

estrutural e relacional das mesmas. Defendem uma forma alternativa para elucidar

variações obscuras da interconexão em diferentes escalas geográficas. O

entendimento da economia global, ainda de acordo com os mesmos autores,

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somente é alcançado ao incorporarem-se as múltiplas escalas das relações

econômicas, bem como seus reflexos políticos, culturais e sociais.

Para Dicken et al. (2001) as redes são, em sua essência, processos

relacionais que ocorrem empiricamente em contextos específicos de tempo-espaço

e produzem padrões no âmbito da economia global. A análise dessas redes requer

transcendência das “descrições atomísticas” das atividades de atores individuais

(por exemplo empresas) ou imaginações “meta-individuais” de estruturas profundas

(Ibidem). Dicken et al. (2001) identificaram os atores em rede, suas relações em

curso, bem como os efeitos estruturais dessas relações nas cadeias globais de

commodities. Em vez de concentrar foco em indivíduos, empresas e estados

nacionais, o estudo concebe as redes heterogêneas como unidade fundamental de

análise e compreensão da economia global, e enaltece a sensibilidade necessária

para compreensão da multiescalaridade presente nas questões econômicas. Em

suma, os autores ressaltam a necessidade de incorporar a análise de múltiplos loci

para compreender as relações econômicas globais, tanto do entendimento estrutural

das relações de poder, como da abordagem relacional da agência humana. Isso

fornece as bases para uma análise mais matizada da complexidade inerente à

economia global contemporânea (DICKEN et al., 2001).

Na Geografia alguns trabalhos têm discutido possibilidades de se pensar as

intervenções nos territórios por meio das ferramentas da ANT. Blanco (2009), por

exemplo, discute o papel das redes em relação aos territórios, suas articulações e

tensões, e propõe que as redes técnicas sejam analisadas na ótica relacional com

os objetos, [...] “porque as redes condensam iniciativas, projetos e políticas dos

atores e tecnologia, fixando materialidade no território” (BLANCO, 2009, p.03). O

autor observa, muito acertadamente, a articulação de objetos e ações, materialidade

e determinações sociais proposta por Santos (2014) em sua análise da natureza do

espaço. De forma similar às análises de Dicken et al. (2001), Blanco (2009) fornece

uma visão tanto estrutural como relacional das redes em função do conjunto de

objetos técnicos que se fixam nos territórios, bem como do conjunto de práticas e

estratégias desempenhadas pelos atores sobre o território.

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Outro exemplo de aplicação prática da metodologia ANT na Geografia é a

análise do planejamento e desenvolvimento de empreendimentos residenciais no

entorno da cidade de Sydnei, Austrália, realizada por Ruming (2009). O autor

descreve detalhadamente como foi a experiência empírica de “seguir” os “atores” em

questão e as implicações encontradas com objetivo de explicar a parcialidade

inerente a todos os pesquisadores desse ramo de estudo, uma vez que os mesmos

são “produtos de suas associações” (Ibidem, p. 451). Com intuito de seguir atores,

Ruming (2009) realizou inicialmente entrevistas em profundidade com partes

interessadas no projeto imobiliário, o que lhe proporcionou identificar as associações

em rede existentes, muitas delas traduzidas por mediadores localizados fora do

escopo inicial do projeto, tais como representantes de entidades ligadas à proteção

ambiental, ativistas comunitários e estudos científicos relacionados com a tradução

de áreas de desenvolvimento urbano. Faz-se pertinente observar que o autor

fornece um quadro de rastreamento de ator não-humano. Trata-se do esquilo Glider

(Petaurus norfolcensis), uma espécie de marsupial endêmica da Austrália, a qual, de

acordo com os estudos realizados pelo mesmo autor, é um ator (rede) central no

caso, uma vez que atua como mediador do desenvolvimento do empreendimento e

tem influenciado no desenvolvimento do projeto imobiliário.

No âmbito das análises de paisagem, os estudos de Allen (2011) demonstram

que o conceito tradicional de escala torna-se irrelevante. Allen aborda, de forma não

dialética, conceitos de paisagem criada pela natureza e paisagem criada pelo

homem, tendo como base a ideia de interações heterogêneas. Conclui que a ANT

representa uma ferramenta poderosa para os estudos de paisagem ao permitir

consciência e compreensão da paisagem de forma totalizante, livre de escalas como

“humana e não-humana, consciente e não-consciente, individual ou grupo” (ALLEN,

2011, p. 278).

Outra proposta de análise geográfica com base na ANT foi apresentada por

Bittencourt e Luz (2015), que realizaram uma reflexão aprofundada sobre como a

gestão dos territórios pode ser favorecida pelos pressupostos teóricos e

metodológicos que a ANT fornece à análise social, que chamam de “gestão do

comum”. Os autores consideram as redes heterogêneas como importantes

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instrumentos de análise territorial e concebem a gestão territorial como uma “força

criativa do território” e “produtora dele próprio” (BITTENCOURT e LUZ, p. 18),

formada por atores humanos e não-humanos, envolvidos em processos de inscrição,

mediação e tradução de interesses, em [...] “complexas redes que se estabilizam e

desestabilizam em torno de fatos, verdades, territórios” [...]. Esse entendimento lhes

permitiu compreender a gestão dos territórios como possibilidades não

institucionalizadas e desenvolver uma perspectiva de ação reflexiva e crítica sobre

os direcionamentos dos territórios e os diversos fatores que influenciam suas

transformações. No entanto, os autores apontam para a necessidade de se realizar

mais testes com tais ferramentas, incluindo evidências essencialmente empíricas,

com intuito de “refiná-las, refutá-las e ou complementá-las” (Ibidem, p. 01).

4 - Considerações finais

A ANT, enquanto proposta metodológica, apresenta-se como ferramenta

potencialmente útil à Geografia, na medida em que oferece uma abordagem

relacional e amplia as possibilidades de aplicação para além das tradicionais

análises de redes. Ao permitir o aprofundar na compreensão dos aspectos

qualitativos das relações entre os atores, a ANT oferece novos caminhos, ainda

pouco trilhados na análise geográfica. Nesse sentido, esta nova perspectiva de

análise traz, pelo menos em um primeiro momento, alguns desconfortos à

Geografia, especialmente quando se considera apenas o espaço como fixo e

absoluto. Por outro lado, ao refutar antigas dicotomias e enfatizar seu foco nas

topologias das redes, a ANT apresenta-se como uma forma alternativa de lidar com

os velhos dualismos, como na escala de análise, por exemplo.

Ao investir na compreensão das dimensões geográficas da ANT é possível

considerar o espaço como algo “embrulhado” por uma série de associações formais

e informais (MURDOCH, 1998), que podem ser rastreadas pelas indicações que

fornecem os próprios elementos constituintes das redes heterogêneas. Contudo, a

premissa metodológica deste tipo de abordagem reconhece a natureza empírica da

pesquisa, que requer o espaço visto como um conjunto de processos, interações e

eventos orientados por diferentes lógicas estabelecidas pelos próprios elementos

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que o produzem e por ele são produzidos. Assim, não se prioriza o local ou global, a

agência ou a estrutura, a sociedade ou a natureza e tampouco os humanos ou os

não humanos. Todos são levados em consideração com a mesma relevância, em

um mesmo nível.

A ANT pode, inclusive, contribuir no debate em torno de conceitos como rede,

região, território-rede e fronteira, tão tradicionais na Geografia. A ANT pode, ainda,

favorecer as abordagens multiescalares, sem que haja a necessidade de delimitação

de fronteiras claras. Os estudos de redes heterogêneas na Geografia também são

exemplos de aplicações desse tipo de abordagem e reafirmam as possibilidades da

ANT como ferramenta essencialmente metodológica. No entanto, o estágio de

maturidade da ANT na Geografia indica um longo caminho não percorrido. As

abordagens com base na ANT, nos países latino americanos, estão em um estágio

inicial, não obstante as particularidades regionais que ofereçam um campo fértil e

promissor de utilização.

Referências

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