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Apostila de Soteriologia Apostila de Soteriologia Regina Fernandes Sanches e Sidney Sanches

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Apostila de Soteriologia

Apostila de SoteriologiaRegina Fernandes Sanches e Sidney Sanches

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Apostila de SoteriologiaRegina Fernandes Sanches

Sumário

Sumário

Introdução...................................................................................................................................................2

Lição 1 – O Contexto da Salvação ..............................................................................................................2

A TEOLOGIA BÍBLICA DA SALVAÇÃO............................................................................................4

A Salvação no Antigo Testamento...........................................................................................................5....................................................................................................................................................................

A Salvação no Novo Testamento...........................................................................................................12....................................................................................................................................................................

A SALVAÇÃO NA HISTÓRIA DA TEOLOGIA.................................................................................19

No Período Antigo..................................................................................................................................19....................................................................................................................................................................

A Teologia da Salvação da Reforma Protestante...................................................................................25

A Soteriologia Contemporânea...............................................................................................................27

A SOTERIOLOGIA LATINO-AMERICANA.....................................................................................32

A Teologia da Salvação nos Textos da FTL...........................................................................................32

Jesus Cristo, Salvação e Evangelização..................................................................................................38....................................................................................................................................................................

ANÁLISES TEMÁTICAS.......................................................................................................................41

Salvação e Reino de Deus.......................................................................................................................41

Escatologia e Salvação...........................................................................................................................44....................................................................................................................................................................

ANEXOS....................................................................................................................................................53

Calvino e Armínio (Textos)....................................................................................................................53

O Pecado e suas consequências..............................................................................................................00

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INTRODUÇÃO

Aula 1 – O Contexto da Salvação

Introdução

A Salvação providenciada por Jesus Cristo se concretiza no mundo. Embora ela realize a integração do ser humano na história da salvação que o antecede e o sucederá, sua visibilidade se dá no tempo histórico e na realidade concreta de vida no mundo. Certamente possuímos uma esperança gerada pela salvação por uma situação perfeita por vir, mas esta esperança também se manifesta na realidade concreta e em relação à ela. Com isso, devemos afirmar que não há como tratar da salvação sem considerarmos o contexto mais amplo em que ela se dá.

1) O Contexto Brasileiro – nosso contexto de salvação

Ao tratarmos de contexto brasileiro devemos visualizar tudo aquilo que é importante para dimensionarmos o alcance e as implicações da salvação providenciada por Jesus Cristo. Neste caso, alguns dos aspectos desse contexto valem ser mencionados, como:

a) Diversidade Cultural – Quanto mais enculturada a salvação, melhor ela será compreendida. Para isso, faz-se necessário que conheçamos nossa cultura e seus desafios específicos. Nossa cultura é diversa e criativa, fruto da formação histórica do povo brasileiro. No entanto, em tempos de globalização toda cultura necessita reencontrar seu lugar na vida e organização do povo que a tem construído, devido à sua importância para conferir idêntica e sentimento de pertença.

b) Desigualdade Sócio-econômica –Esta situação transparece na organização urbana, nas divisões de classes, no acesso à educação, saúde e lazer, etc. As mudanças políticas pelas quais o país tem passado ainda não tem sido suficientes para mudar nosso quadro social, não na medida que é necessário.

c) Diversidade Religiosa – Nosso país é caracterizado por diversidades, tanto populacional, cultural, como religiosa. Este último aspecto muito nos interessa para um estudo da salvação. A necessidade religiosa é uma necessidade por salvação e orientação da vida.

A salvação deve acontecer na linguagem cultural de

cada povo e lugar.

O Brasil ainda é caracterizado por desigualdades.

Nosso país é caracterizado por diversidades.

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Diante desse quadro devemos verificar o que às Escrituras Sagradas nos ensinam acerca da salvação, pois esse é um conceito teológico, portanto, revelacional. Nesse caso, é a Bíblia quem melhor esclarece à respeito.

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MÓDULO I: A Teologia Bíblica da Salvação

Aula 2: A Salvação no Antigo Testamento

Humanidade e Criação

Somos seres humanos, Adam, humanidade formada por Deus para habitar a terra que Ele criou, conforme relata o Dêutero- Isaías: Porque assim diz o Senhor, que criou os céus, o Deus que formou a terra, que a fez e a estabeleceu, não a criando para ser um caos, mas para ser habitada... (Isaías 45. 18).

Nossa proposta é fazer uma leitura de Gênesis 2.4b- 24, e buscar perceber no relato da criação da humanidade os propósitos divinos para a criação de um modo geral. Também serão abordadas as implicações advindas desses propósitos que, neste caso, se limitará às questões do trabalho, da terra e da mulher. Estes temas, a nosso ver, aparecem de forma latente nesse texto da criação e tem a ver com problemas atuais da América Latina e de povos com graves problemas políticos- sócio- econômicos merecendo, portanto, fazer parte da nossa discussão teológica.

A abordagem é feita a partir da consciência de que a Teologia da Missão, como toda Teologia Contextual, deve considerar as questões que são relevantes em seu ambiente de surgimento, a fim de que possa respondê-las e apontar caminhos para o anúncio e a vivência da vontade de Deus neste mundo.

A Vida como dom constante de Deus

O texto de Gên. 2.4b-25, apresenta a criação dos seres humanos. No início ele explica a ausência de vida na terra logo após Deus "fazer" os céus e a terra, o que é atribuído à falta da chuva porque o Senhor Deus não tinha feito chover sobre a terra, (2.5) e à ausência de alguém que trabalhasse a terra para que ela produzisse as plantas e ervas, no caso "o homem". No entanto, o relato não apresenta uma situação de completa aridez, pois afirma que a face da terra era "regada" por um manancial que subia da própria terra. Isto nos mostra que antes do ser humano é Deus quem cuida da terra e a sustenta com seus cuidados. Os seres humanos são criados e chamados para a participação neste “serviço de Deus”.

O texto lido também afirma que o homem somente recebeu vida porque Deus lhe deu a vida, soprou-lhe nas narinas o fôlego de vida(2. 7). O redator de Jó amplia tal compreensão na fala de Eliú quando afirma que a vida é um dom constante de Deus O Espírito de Deus me fez, e o sopro do Todo- Poderoso me dá vida (Jó 33.4), revelando que o dom da vida é um ato contínuo de Deus. Em sua obra de sustentação das coisas criadas está a de vivificar esta criação constantemente. Tal verdade, no Novo Testamento, é apresentada de maneira efetiva em Jesus Cristo, conforme afirma o apóstolo João, em Jesus está a vida Assim como o Pai tem a vida em

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si mesmo, também concedeu ao Filho ter a vida em Si mesmo (João 2.15a), e continua ele, relatando esta revelação feita por Jesus ...Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida (João 14.06). Assim, é correto afirmar que tanto a vida como seu sustento é um dom de Deus em Cristo.

Com base nas afirmações acima, é necessário admitir que o princípio teológico que deve permear toda a compreensão da Missão e sua tarefa reflexiva e proclamadora, é que Deus é o Senhor constante da vida. Esta verdade é evidenciada a todo o momento nos textos que formam o Antigo Testamento, seja nas profecias, nos cânticos, na história como nos conselhos dos sábios.

O Trabalho e o Propósito Criador de Deus

Conforme o relato da criação, Deus faz os céus e a terra, forma o homem e depois planta o jardim e o coloca sob os seus cuidados e, da mesma terra, forma os animais e também os coloca sob os cuidados do homem. O texto também aponta a necessidade do homem ter alguém com ele para cumprir sua tarefa de cuidar da criação, o termo utilizado é "auxiliadora". É relevante ressaltar a importância que o redator dá para a tarefa do ser humano Adam, homem e mulher (humanidade), que está expressa nos verbos que ele escolhe desde o início de seu texto, ou seja: lavrar a terra, lavrar e guardar, ajudar e nomear. Todos indicando serviço, responsabilidade e compromisso com as coisas criadas.

O trabalho é o propósito inicial para os seres humanos e o trabalho voltado para a terra de onde ele mesmo foi formado. Numa relação de amizade, ele cuida da terra e esta lhe dá o alimento, revelando um cuidado recíproco. O redator bíblico afirma que os seres humanos foram criados para o trabalho de cuidar da criação, mas em nenhum momento dá a idéia de substituição de Deus em alguma atividade. O texto é claro ao apresentar a criação do ser humano numa situação de cooperação com Deus, numa convivência harmoniosa com Ele e a criação que estava sob a sua responsabilidade. O próprio jardim, afirma o texto de Gên. 2.8, foi plantado pelo Senhor para ali colocar o ser humano. Mas este homem não faria o trabalho sozinho, teria uma auxiliadora que lhe fosse idônea, tão capaz quanto ele. Johannes B. Bauer faz a seguinte afirmação ao comentar sobre a compreensão desse homem diante do outro ser humano, expresso na frase: ... essa é agora osso dos meus ossos, e carne da minha carne... (v. 23):

A expressão não deveria, portanto, ser entendida como 'cântico de núpcias' ou como 'declaração de amor'. Pondo a fórmula na boca do homem, o autor quer, ao contrário, sublinhar a igualdade da mulher com o homem. É seu desejo também ressaltar a posição de domínio que compete a ambos sobre o reino animal1.

O texto bíblico analisado é claro ao apontar o ser humano, como cooperador de Deus na manutenção e desenvolvimento de Sua criação. Ele em nenhum momento é apresentado como sujeito passivo que fora criado simplesmente para gozar ociosamente das benesses de um ambiente ecológico e socialmente saudável. Sua participação é inteiramente ativa, ele é "formado" por Deus para ser seu ajudante, como lembra Núñez Haviam sido criados para

1 Johannes B. BAUER, Israel Contempla a Pré- História in Palavra e Mensagem, 1978, p. 131.

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trabalhar pelo Deus que trabalha2. É bom lembrar que ele não somente cuidaria da terra mas a faria produzir. E que essa tarefa ele não cumpriria sozinho, mas Deus o faria com Ele, porque embora o ser humano é chamado para cuidar da criação, somente Deus pode dar a vida.

O relato sobre a queda (Gên. 3) aponta a "maldição" (Gên. 3.14-19) sobre a serpente, a mulher e o homem. Conforme o texto, juntamente com o homem a terra é amaldiçoada. O trabalho que ele foi designado fazer quando de sua criação vai se dar agora com dificuldades e sofrimentos. Uma terra que antes, através do seu trabalho, produziria fertilmente boas plantas para o sustento do homem e da sua familia, agora, produziria também espinhos e abrolhos. A terra também passou a sofrer com o pecado humano. Diz o apóstolo Paulo que esta criação aguarda sua libertação Porquanto a criação ficou sujeita à vaidade, não por sua vontade, mas por causa daquele que a sujeitou ( Rom. 8.20). A Bíblia de Jerusalém traz o seguinte comentário sobre este assunto:

O pecado transtorna a ordem querida por Deus: em vez de ser a associada do homem e sua igual (2.18-24), a mulher se tornará a sedutora do homem, que a sujeitará para ter filhos; em vez de ser o jardineiro de Deus no Éden, o homem lutará contra um solo hostil.3

Várias inferências podem ser extraídas da análise deste relato na elaboração de uma Teologia da Missão que considere a vida humana, suas relações com Deus e Sua vontade. Como afirmamos no início do estudo, no contexto da América Latina, tratar das questões do trabalho, da mulher e da terra e ouvir o que a Bíblia diz a respeito é tarefa urgente da Missão Integral da Igreja.

Conclusão

Se a Missão é obra de Deus é porque a criação é obra de Deus, obra exclusiva de Deus, idealizada e formada por Ele. O homem é parte desta criação. Foi trazido da inexistência para a existência a fim de cuidar dela e fazê- la desenvolver. O primeiro mandato bíblico é um chamado para o serviço a Deus na Sua criação. Não existe outro lugar para o ser humano a não ser aquele designado pelo próprio Deus, ou seja, cuidando e fazendo desenvolver tudo quanto Ele criou. Não existe outro meio para o auto- entendimento desta criação de Deus, como humanidade, se não no papel que lhe foi outorgado pelo próprio Deus. Pierre Gilbert e Etiene Charpentier tratam com muita propriedade desse assunto em seu texto A Criação como Libertação4. Comentam eles:

O homem deve viver livre, feliz por dominar o mundo, por trabalhar com outros, mas na gratidão... para com Deus, de quem ele recebeu o mundo como presente magnífico. O 'serviço a Deus' aparece, assim, na Bíblia, como o modo certo para o homem cumprir sua tarefa de dominação.

2 Emílio NUNEZ, op. Cit., pág. 51.3 Bíblia de Jerusalém, p. 35. No comentário sobre o julgamento de Deus sobre o homem, a mulher e a serpente.4 Gilbert e Etiene Charpentier, op. Cit., p. 17- 22.

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O trabalho, nesse caso, é fruto de uma relação harmoniosa entre Deus o ser humano e o restante da criação. Não visa escravizar o homem em função de interesses de uma minoria, mas dignificar os seres humanos em sua responsabilidade de cuidar da criação de Deus. Trabalhar, conforme o relato da Criação, não é conseqüência do pecado, mas é benção de Deus. No entanto, não se pode deixar de mencionar que o texto não se refere ao trabalho ganancioso que visa, em detrimento de outras ordenanças aos seres humanos, o enriquecimento e a busca de poder. O texto menciona o trabalho harmonioso que surge como resultado de uma compreensão por parte do ser humano de sua humanidade e de sua responsabilidade como criação de Deus.

Se o trabalho é dado por Deus como forma de significação humana, certamente a ausência do trabalho afeta a dignidade humana. Todo aquele que, por circunstâncias sociais, políticas ou outras quaisquer, é privado de "lavrar a terra e tirar dela seu sustento", é ferido em seu sentimento de humanidade. Faz parte, assim, da Missão da Igreja denunciar todo processo de desumanização das pessoas que é manifesto pelo desemprego, desajustes sociais e ou paternalismo social, presentes em nossa sociedade.

A TERRA NA CRIAÇÃO ... E também não havia homem para lavrar o solo (2.5b)

Sobre este assunto preferimos partir de um caso particular: "Sou filha, neta e bisneta de lavradores do norte do Paraná. Se houvesse alguma coisa que viesse a herdar com base em minha tradição familiar seria uma bela e desgastada enxada, nada mais. Meu pai, tios e avós eram gente marcada pelo trabalho, com mãos grossas e calejadas, nucas avermelhadas do sol e cabelos queimados em suas pontas como boa parte dos trabalhadores do interior deste tão grande país. Possuíam um sonho, ter um pedacinho de terra para plantar, algo que fosse deles. Com certeza, cuidar da terra e plantar eles saberiam fazer muito bem depois de tantos e tantos longos anos de labuta para grandes fazendeiros. Muitas vezes sentei com meu avô em sua pequena varanda e o ouvi seus suspiros sobre seu sonho frustrado de ter um pedacinho de chão. Não pensava em grandes produções para exportação, tecnologias avançadas, nem mesmo em ser um grande empresário da agricultura. Seu sonho era meio de índio, certamente herança de seus avós. Ele queria uma pedaço de terra para plantar algum arroz, feijão e fazer um bom chiqueiro para criar alguns porcos para o Natal. Morreu meu avô, e, o máximo que ele conseguiu se aproximar de seu sonho foi com uns dois pés de café plantados no quintal de sua casa que ele cuidava, com sua pequena aposentadoria, como se fosse uma grande lavoura. Era o sonho da terra, compartilhado por milhares de pessoas em nosso país".

O escritor do texto que estamos estudando não conhecia o Brasil, muito menos a realidade da maioria da população brasileira que, da mesma forma que meu pai, avô e bisavô sonha em ter um pedacinho de terra para plantar feijão e arroz, ou macaxeira e alguns pés de açai, quem sabe algum cacau e uns inhames para o café das manhã. Mas, gente que não pode realizar seu sonho tão humano, porque em um país com 8. 511. 996 km2 de extensão territorial não há terra suficiente. Talvez seja porque também uns dez por cento de nossa população acha que precisa de muito mais espaço neste mundo que os demais, e acumula para si quase toda a terra cultivável, que nem sempre é cultivada, mantendo ociosos hectares e hectares dessa terra.

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No entanto, certamente, o escritor do nosso texto conhecia outra história de um outro povo que sabia o que era este "sonho humano". Um povo que morou em terra alheia para quem também teve que trabalhar na agricultura. Povo que sabia da importância da terra para a própria dignidade humana. Este redator deixou o seguinte registro depois de seu relato da queda: o Senhor Deus, pois, o lançou fora do jardim do Éden, para lavrar a terra de que fora tomado (Gên. 3. 23). O homem continuava vinculado à dãmãh, da qual afinal ele fora formado. Mesmo depois da queda a terra era do homem, porque o homem também era da terra. Ainda que a relação entre homem e terra já não fosse tão amistosa, um dependeria do outro e estavam completamente ligados. Disse o Senhor sobre isso a Israel ao falar sobre o ano do jubileu A terra não será vendida perpetuamente, porque a terra é minha, e vós estais comigo como estrangeiros e peregrinos... (Lev. 25.23). Donald B. Kraybill faz o seguinte comentário sobre este texto:

A terra e as pessoas são do Senhor... Nós que gerenciamos terras e pessoas, não somos proprietários... Não ousemos usar terras e pessoas de forma egoística para erigirmos pirâmides econômicas, criar dinastias sociais ou alimentar egos ávidos de dinheiro5.

Paul Freston também comenta o texto em sua análise do livro de Neemias:

Antes de introduzí- los na terra prometida, Deus lhes dera leis que, no contexto de uma sociedade agrícola, permitiriam que as relações sociais refletissem o caráter de Deus. No campo econômico, um princípio fundamental dessas leis era que cada família possuísse terra ... e nunca perdesse sua terra... Assim as desigualdades não seriam perpetuadas de geração em geração6

Conclusão

O Senhor "cedeu" a terra para alimentar os seres humanos e os animais. Se os recursos naturais disponíveis neste mundo fossem bem utilizados e distribuídos não haveria fome. No entanto, estes recursos são limitados e, para que um tenha demais é necessário que outro tenha “de menos”. Os que fazem da terra sua grande empresa nem sempre estão preocupados em alimentar. Geralmente seu interesse é produzir o que é mais lucrativo e que possa gerar exportações. Para alcançar seus intuitos empresariais, na maioria das vezes, a terra é altamente explorada e agredida como uma escrava de pessoas gananciosas que não se importam em esgotar seus recursos para obter seus lucros.

Faz parte da Missão da Igreja atuar profeticamente contra as injustiças deste mundo e faz parte da Missão da Igreja Brasileira atuar profeticamente contra as injustiças neste país e não dar braços aos grandes latifundiários simplesmente para obter alguns tijolos para seus templos. Não podemos mais aceitar essa tão latente disparidade social e agressão ecológica. Há crianças no norte do país desmaiando por causa de fome, outros vivendo unicamente de farinha de mandioca e cabeça de peixe. Há famílias inteiras no sertão do Nordeste fazendo de seu almoço e jantar plantas da caatinga utilizadas para alimentar gado. Há muito cortador de cana, catador de 5 Donald B. KRAYBILL. O Reino de Ponta- Cabeça. 1993, P. 926 Paul, FRESTON. Um Profissional a Serviço do Reino, 1993, p. 58.

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algodão, quebrador de milho, derriçador de café que trabalha o dia todo e se alimenta somente com um arroz e feijão frio. Muitas pessoas trabalhando e vivendo em condições desumanas e contrárias à proposta bíblica. Mas, e a terra que foi dada aos seres humanos para lavrar e alimentar a nós e a nossos filhos? Será necessário talvez inverter o texto que foi mencionado como subtítulo neste capítulo, para: ... e também não havia solo para o homem lavrar, por ser mais fácil mudar o texto do que mudar a situação que hoje se vive no país?

Uma Teologia Bíblica da Missão, que parte de olhos latino- americanos para o texto bíblico, não pode desconsiderar o que a Bíblia diz sobre o tratamento da terra e da natureza. A salvação que foi concedida em Jesus Cristo é integral. Se o pecado afetou toda a realidade humana, a salvação não pode alcançar menos do que isto, a Missão é envolvida numa tarefa de restauração integral.

O PAPEL DA MULHER NA CRIAÇÃO

...uma adjutora que lhe corresponda (2.18)... esta é agora osso dos meus ossos e carne da minha carne (2. 23)

Muito se tem falado sobre a situação da mulher na Igreja e na sociedade, mas as mudanças são lentas e, no meio eclesiástico, formado por pessoas que se dizem nova criação em Cristo, o problema ainda é mais acentuado. A fé cristã é para todos porque a salvação é universal, isto todos concordamos. Paulo fala a respeito em Gál. 4.28 ... não há macho nem fêmea, pois todos vós sois um em Cristo Jesus. Infelizmente, a religião cristã ainda pode ser chamada de "masculina". Da mesma forma como por muito tempo o cristianismo foi considerado e ainda o é, em muitos lugares uma religião étnica, ou seja, religião de brancos é considerado também, até hoje, religião dominada por homens. Emilio Núñez, faz o seguinte comentário sobre o reconhecimento do papel da mulher por parte da Igreja:

A Igreja não está isenta de tão grave responsabilidade. Ela deveria ser sempre a primeira a demandar que se dê a mulher o lugar que merece na família e na sociedade... A Igreja evangélica deve ser sempre defensora dos direitos da mulher, não tanto por razões ideológicas ou políticas, como por obediência à revelação escrita de Deus... 7

Pregamos que em Jesus todas as coisas são restauradas. Em Colossenses isto é declarado maravilhosamente em um hino cristológico ... e que, havendo por ele feito a paz pelo sangue da sua cruz, por meio dele reconciliasse consigo mesmo todas as coisas... (1. 20). Neste caso, Paulo está fazendo referências direta à criação, pois fala da atuação de Cristo nela ...nele foram criadas todas as coisas que há nos céus e na terra... tudo foi criado por ele e para ele (Col. 1. 16).

O texto do Gênesis sobre a criação mostra que a mulher foi criada em situação de igualdade com o homem, mesma composição ... ossos dos meus ossos e carne de minha carne..., a isso Bauer comenta: É certo que esta ação simbólica de Deus exprime a profunda semelhança dos dois seres8; mesma capacidade de julgar e dominar uma auxiliadora que lhe corresponda,

7 Emílio NÚNEZ, op. Cit., p. 328 Op. Cit., p. 130

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mesma origem e mesmo criador ...formou a mulher...., mesma responsabilidade diante do pecado expressa em Gên. 3. 24 Ele baniu o homem...., ou seja, “ser humano”. Isto significa que os dois foram criados por Deus com uma missão neste mundo, mesma condição de domínio sobre a criação, mesma responsabilidade social e familiar implícitos na ordem de procriação e enchimento da terra. Com isto, a mesma responsabilidade diante de Deus pela rebeldia humana, que foi uma ação conjunta. Adham representada pelas figuras do homem e da mulher, rebelou-se contra o domínio do Criador sendo os dois expulsos do Jardim do Éden e punidos por Deus pelo seu pecado.

Paulo lembra aos seus leitores em Corinto que Deus formou a mulher a partir do corpo do homem, da mesma forma, designou que os homens fossem formados à partir e no corpo da mulher Pois, se a mulher foi tirada do homem, o homem nasce da mulher, e tudo vem de Deus (I Cor. 11.12). Com base nessa leitura percebemos uma interdependência entre mulher e homem. Nos textos sobre a criação não há evidência de hierarquia, há sim uma parceria estabelecida pelo próprio Deus. A hierarquização nas relações humanas é muito mais resultante da incapacidade de viverem em parceria do que em mandatos bíblicos.

Conclusão

Por mais reprimida que tenha sido histórica e socialmente a capacidade de liderança e de ampla atuação da mulher, isto faz parte dela desde o princípio de todas as coisas e foi dado a ela pelo próprio Deus em seu ato criador. Esta repressão somente resulta em frustração e sofrimento por não poder cumprir como deveria o papel que lhe foi designado em relação ao mundo e à criação, a quem também foi delegada a responsabilidade de cuidar e administrar as coisas existentes. Esta atitude em relação à mulher é também desumanizadora.

Os textos sobre a criação falam acerca da parceria entre homem e mulher, o homem como homem e a mulher como mulher, juntos cumprindo o papel dado por Deus em relação ao mundo e a vida, sendo juntos, Adam – humanidade formada por Deus. O homem não responde sozinho pela Missão junto à Criação.

Falta também na Teologia o "olhar de mulher", sua participação hermenêutica em relação ao texto bíblico, ao mundo, a vida e as relações com Deus. Falta na liderança da Igreja o toque, a observação e a sapiência feminina. Falta ao homem entender, que a mulher não é seu cinquenta por cento (50%), pois Deus não fez duas metades mas de um fez dois seres completos, que se completam em termos de humanidade, e que os dois deverão dar contas a Deus no cumprimento de sua missão. Nem que a mulher é aquela que está por trás fazendo dele um grande homem, pois a humanidade não precisa de grandes homens nem de grandes mulheres, mas de seres humanos que cumpram sua vocação como humanidade criada por Deus, homem e mulher, lado a lado cumprindo os desígnios do Criador.

CONSIDERAÇÕES FINAIS:

Uma teologia bíblica da criação é imprescindível para uma verdadeira Teologia da Missão. Com base nos textos da criação entendemos que faz parte da missão da Igreja nesse mundo, visando a restauração da própria condição humana que é a grande proposta do evangelho de Jesus Cristo:

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a) Ensinar o valor do trabalho entre os homens e do serviço a Deus, saudável e não com propósitos gananciosos e gerenciamento desumanizador, como ordenança divina para o ser humano, como meio de significação, realização e de encontro com a própria criação que foi feita por Deus para ser trabalhada pelos seres humanos e que sempre responderá aos bons cuidados que lhe forem destinados, cumprindo seu papel enquanto natureza responsável pela sobrevivência humana.

b) Denunciar os maus tratos para com a terra e a criação de uma forma geral e a injustiça manifesta na má distribuição de terras, como consequência do pecado e do distanciamento de Deus. Não comungar, em momento algum, com projetos que acentuem tal situação e atuar profeticamente contra esse sistema de desumanização vivido abertamente em nosso país e que traz danos em grandes escalas para, principalmente, as camadas mais pobres de nossa sociedade.

c) Dignificar a mulher, primeiramente em seu meio, permitindo-lhe ocupar o espaço designado por Deus, e desenvolver seus dons e potenciais. Reconhecer esses dons e realizações na Igreja e na sociedade em geral, como testemunho de um novo povo que em Cristo vê restaurado seus valores sociais e coloca todo ser humano em pés diante de Deus.

Responder à Missão da Igreja é muito mais do que fazer grandes e belos discursos sobre o ide de Jesus e o clamor do mundo infiel. É também atuar diretamente na transformação de estruturas desumanizantes, dominadas por uma situação de pecado individual e social, na qual a igreja está muitas vezes envolvida seja pela participação direta, omissão, movida por idealismos pseudo- teológicos, ausência bíblica ou por pura troca de benefícios e favores.

Em nenhum momento a Igreja será isenta de sua responsabilidade de pensar a fé, e pensar acerca dos propósitos de Deus tendo em vistas os reclames do mundo em sua volta. Se a nossa Teologia, em sua tarefa de reflexão, não pode parar para ver essa realidade e ouvir estas vozes, ela não serve para este mundo e também não serve para a Igreja, sendo assim, não é Teologia. Porque a Teologia legítima, em sua tarefa, ouve a Deus, ouve a história, ouve a Igreja e ouve ao mundo.

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Aulas 3 e 4 - A Salvação no Novo Testamento

Dr. Sidney Sanches

Introdução

Nesta abordagem inicial à Soteriologia, ou estudo da salvação, colocaremos um pouco de ordem na forma difusa como o Novo Testamento trata a questão da salvação por meio de Jesus Cristo. Apresentaremos as metáforas nas quais se concentra o entendimento neo-testamentário acerca da morte de Jesus Cristo, as formas de entendê-las e sobre como elas introduzem a compreensão dos benefícios da morte de Jesus Cristo por nós. Para esse estudo, usaremos um texto de Stanley B. Marrow, chamado: “The New Testament Soteriological Terms”,9 outro de Michael Slusser, chamado: “Primitive Christian Soteriological Themes”,10 e, sobretudo, nos basearemos na obra de J.N.D. KELLY: “Doutrinas Centrais da Fé Cristã”.11

a) Análise dos termos

O termo grego “sotêr” faz parte de um conjunto de palavras gregas que rudemente traduzimos por salvação: “soter”, “soteria”, “sozein”. Elas remetem a outra realidade histórica: um mundo no qual a língua Grega ditava o que se pensava, o que se sentia e o que se falava antes e depois do século I. Às vezes, isso atrapalha bastante, pois a nossa realidade vai longe daquele tempo. É assim que, quando somamos “soteria” à palavra “logia”, podemos traduzir como: soteriologia.

É comum que os estudiosos da salvação no Novo Testamento comecem imediatamente pelo uso da palavra “soteria”, como se ela, por si mesma, já nos abrisse o caminho para certo entendimento da salvação. Nada está mais longe da verdade quando iniciamos por esse tratamento sistemático do assunto.

Isto porque o Novo Testamento não traz uma definição ou conceito de salvação por trás da palavra “soteria”. Quando fala de salvação, o Novo Testamento se refere à morte de Jesus Cristo na cruz e seu significado para aqueles que o confessam como Cristo de Deus. Acontecem duas coisas importantes:

Primeiro, faz depender a soteriologia da cristologia, o Verbo que se encarna para nossa salvação;

Segundo, faz depender a compreensão de salvação da realidade histórica e humana de Jesus Cristo: Jesus que vive e morre para nossa salvação.

9 MARROW Stanley B. “The New Testament Soteriological Terms”. New Testament Studies 36/2 (1990) 268-280.10 SLUSSER Michael. “Primitive Christian Soteriological Themes”. Theological Studies 44 (1983) 555-569.11 KELLY J.N.D. Doutrinas Centrais da Fé Cristã. São Paulo: Vida Nova, 1994.

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Estas duas afirmações nos levam a perceber que a forma neo-testamentária de expressar esta compreensão de salvação se liga estreitamente à vida e missão de Jesus Cristo. É importante que as longas unidades narrativas da paixão de Jesus Cristo encontrem seu nexo e, portanto, significado na referência à sua vida e obra, enfim, sua missão.12 É necessário e possível que encontremos nele mesmo, em sua vida, feita de obras e palavras, a compreensão de salvação que será anunciada como Evangelho logo depois, por seus discípulos e suas igrejas.

A partir desta constatação, pode-se falar da atividade salvadora de Jesus.13 Conforme Goppelt, os Evangelhos trazem relatos da atividade salvadora de Jesus que pode ser expressa como: a oferta de perdão aos pecadores, e o apelo ao arrependimento aos justos.

Contudo, é mesmo depois da ressurreição e a partir do anúncio do Evangelho de Cristo que a salvação por meio dele, ou da sua morte, encontrará um firme lugar entre seus discípulos e suas igrejas. As razões para isso podem ser várias:

A morte de Jesus Cristo recebeu significado soteriológico devido à vida que ele viveu, sem pecado (Hebreus 4:15; Mateus 3:15). A inocência da vítima foi deduzida da vida que ele viveu (Atos 2:24; 3:15; Romanos 10:9; 4:24,25; 1 Coríntios 6:14; 15:15; Gálatas 1:1; Coríntios 2:12; 1 Pedro 1:21). A declaração “por todos” (2 Coríntios 5:14,15) ou “pelos pecados de todo mundo” (1 João 2:2) é inerente à própria natureza do evento. O caráter definitivo do evento (Romanos 6:10; He 9:26; 1 Pe 3:18) é uma qualidade essencial do ato soteriológico.

A afirmação prevalente no Novo Testamento pode ser resumida em uma ou duas frases de Paulo: “Cristo morreu por nossos pecados” (1 Coríntios 15:3), ou: “Cristo morreu por nós” (Romanos 5:8). Ambas as afirmações revelam uma faceta fundamental da cristologia paulina com repercussões em sua soteriologia: o caminho de Cristo vai até a morte na cruz (1 Coríntios 2:2; Filipenses 2:8; Romanos 5:9).

Esta morte na cruz é significada soteriologicamente pelo uso do termo hyper, com as seguintes conotações:14 o “morrer” ou “sofrer” de Jesus até a morte por, ou como a entrega que Jesus fez de sua vida por todos (Marcos 9:31 com Romanos 4:25), ambos se referindo à sua morte como morte expiatória vicária.

A expressão “por nossos pecados” acrescenta ao significado anterior à noção de que a morte ou entrega de Jesus Cristo à morte foi um ritual sacrificial expiatório semelhante aos realizados no Antigo Testamento ou em resposta a determinada concepção da justiça divina.

12 Há ótima discussão atualizada sobre esse assunto em: “The Gospels and the Death of Jesus in Recent Study”. In: CARROLL John T, GREEN Joel B. The Death of Jesus in Early Christianity. Massachussets: Hendrickson, 1995, p 3-22. Também Roger Haight entende que há “uma íntima ligação entre soteriologia e cristologia. Uma específica visão de como Jesus salvou acarreta uma cristologia, e uma dada cristologia também implica uma soteriologia de maneira mais ou menos explícita”. HAIGHT Roger. Jesus, Símbolo de Deus. São Paulo: Paulus, 2003, p. 188. Embora Haight assuma essa posição e se esforce por apresentar a soteriologia implícita e subjacente a cada cristologia neo-testamentária que enumera, a meu ver, o tratamento é insuficiente e pouco esclarecedor no que diz respeito à soteriologia.13 Goppelt sub-intitula um capítulo como: A Nova Ordem Salvífica. In: GOPPELT Leonhard. Teologia do Novo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, v. I, p. 146-160.14 Ver o estudo de Goppelt sobre a “fórmula ‘hyper’ e o seu desenvolvimento, em: GOPPELT, Idem, p. 364-369.

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Quanto ao primeiro, há clara referência sacrificial à morte de Cristo como a do cordeiro pascal e a re-constituição da antiga aliança (1 Coríntios 5:6-8 com Êxodo 24:8). De fato, a morte de Cristo foi um hilasterion, a tampa da arca da aliança que identificava a presença de Deus e o sangue sobre ela derramado que indicava a propiciação pelos pecados do povo e o seu conseqüente perdão (Romanos 3:25 com Levítico 16).

Quanto à segunda, há clara referência vicária à morte de Cristo quando se a vincula à maldição da Lei para todo aquele que não a obedece, vindicando a justiça de Deus (Gálatas 3:13 com Deuteronômio 21:23). Fica clara a linguagem da substituição, portanto, pois Cristo tomou a maldição da Lei sobre si em lugar daqueles sobre os quais ela deveria recair. Como a maldição da Lei implicava a sua transgressão, todo o que estava sob a sua maldição era um transgressor da Lei. Quando Cristo toma a maldição da Lei sobre si, também toma as transgressões contra a Lei como sendo suas, igualmente. Sua ação produziu o resgate ou libertação daqueles que, sob a maldição da Lei por suas transgressões, estavam sujeitos à condenação.

É possível notar que o vocabulário da salvação no Novo Testamento vai, portanto, além da reflexão sobre a morte de Jesus Cristo, para incluir os benefícios da morte de Cristo na cruz para a raça humana e toda a criação. É necessário entender as palavras que afirmam esses benefícios. Ao invés de analisar cada texto em particular onde as palavras constam, elas devem ser agrupadas ao redor das tres principais metáforas que organizam o conteúdo e significado dos benefícios da afirmação: “Jesus Cristo morreu por nós/nossos pecados”: resgate, redenção e sacrifício.

A esse respeito, Stanley B. Marrow oferece os seguintes princípios de interpretação:15

1. não se deve tratar literalmente termos como “resgate”, “redenção” e “sacrifício”, mas metaforicamente;

2. sendo a metáfora o uso de um termo comparativo para expressar uma realidade que de outro modo não seria possível, deve-se procurar pela experiência humana resultante. Ex.: no caso da linguagem do resgate, não é possível comparar o prisioneiro (termo real) com o prisioneiro ao pecado (termo de comparação), mas com a libertação por meio de um resgate (situação que a metáfora esclarece);

3. a partir do conhecimento resultante da comparação pode-se caminhar para a solução que a metáfora propõe. Ex.: se é o perdão, trata-se da recuperação de uma amizade e confiança anterior.

Stanley B. Marrow conclui com a seguinte advertência:

Ninguém gostaria de negar que o vocabulário soteriológico no Novo Testamento reflete os mercados, as cortes, as instituições da guerra e da escravidão. Mas, no contexto da morte de Cristo por nós, estes elementos não

15 MARROW, Idem, p.278,279.

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são e não podem ser dominantes na interpretação. O que é dominante, que tem reivindicação primária sobre a atenção do crente, do exegeta e do teólogo é o resultado final obtido pela morte de Cristo na cruz, o resultado de sua paixão e ressurreição.16

Outra coisa importante acerca do vocabulário da salvação no Novo Testamento é saber diferenciar entre as metáforas e os efeitos que decorrem do seu uso. Por exemplo: da metáfora da redenção é possível pensar nos efeitos de liberdade. Neste sentido, o vocabulário tende a ser bastante variado, como: perdão, reconciliação, justificação, santificação, purificação. Veja que essas palavras-associadas não têm a ver com o processo de salvação, mas com seus resultados em termos de benefícios para a vida humana. A ordem seria a seguinte:

benefício processo relação causal com Deus

Isto pode ser exemplificado assim: o perdão é o resultado de um sacrifício expiatório requerido por uma ofensa à santidade de Deus que impede o acesso do ser humano a ele.

Vamos, então, estudar as três metáforas da salvação mais empregadas no Novo Testamento.

b) Salvação

Esta é a metáfora, de longe, mais usada no Novo Testamento (Mateus 1:21; Lucas 1:69; 2:11). Ela explica a morte de Jesus Cristo por nós como salvação. Esta palavra tinha vários usos entre os Gregos e não se referia necessariamente à morte de alguém por outra pessoa. Nem no Novo Testamento a palavra “salvação” é destinada exclusivamente para isto. Ela também é usada para designar a cura realizada por Jesus (Marcos 5:34). Ela é usada, também, para afirmar o seu contrário: perecer, morrer (Mateus 8:25). Paulo somente usa o verbo em sentido estritamente técnico, para referir-se ao relacionamento entre Deus e o ser humano. Ser salvo, para ele, ocorre quando Cristo livra o ser humano da ira de Deus (Romanos 5:9); assim, há os que morrem e os que são salvos (2 Coríntios 2:15; 1 Coríntios 1:18). Para Paulo, a salvação do ser humano é a finalidade para a qual Jesus Cristo morreu. E, para ele, isto significa: ser livre do perigo, da ameaça, de uma situação difícil, contrastando a salvação com a morte (2 Coríntios 7:10).

c) Redenção pelo resgate

Redenção é outra metáfora fundamental para falar da morte de Jesus Cristo “por nós” (Romanos 3:24). Em termos de importância histórica, ela terá mais repercussões que a própria palavra “salvação”. A ela está associada uma aguda experiência humana: o resgate (Marcos 10:45; Mateus 20:28).

16 MARROW, Ibidem, p. 280.

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O uso que se faz da palavra “redenção” associada a “resgate” traz variados sentidos no Novo Testamento:

1. a redenção como a libertação de prisioneiros de guerra;

2. a redenção como a libertação de escravos;

3. a redenção como a libertação da condenação à morte.

Quanto àquele a quem foi pago o resgate, há grande dificuldade em determinar de quem se trata. Há duas possibilidades que se sustentam lado a lado:

1. a redenção em termos de uma transação conforme uma justiça comutativa. Os primeiros bispos da igreja entenderam a morte de Jesus Cristo como um resgate/preço pago a Satanás pela libertação das vidas humanas em seu poder.

2. um serviço e oferenda que o próprio Jesus Cristo faz a Deus pela vida dos seres humanos.

Outra maneira, menos comum, de se referir à morte de Jesus Cristo como redenção é associar seu sentido à palavra “compra”. Esta palavra se refere à aquisição de um escravo pela administração do templo. Assim, pertencendo agora ao deus do templo, ele estava livre da escravidão (1 Coríntios 6:19,20; 7:22,23).

É certo que o Novo Testamento fala de “nossa redenção em Cristo Jesus” (Romanos 3:24) “pelo seu sangue” (Efésios 1:7; Colossenses 1:14); diz de que o Filho do Homem veio “dar a sua vida em resgate por muitos” (Marcos 10:45); que Deus veio visitar e redimir seu povo (Lucas 1:68; He 9:2). É certo, ainda, que as noções de resgate e compra são ligadas intimamente à metáfora da redenção. Por isso, por mais que os estudiosos da salvação tentem purificar esse uso de modo a obter o significado estritamente religioso, este significado insiste transbordar esses limites para dizer coisas que o ser humano historicamente experimenta como salvação.

d) Vitória pela ressurreição

A vitória é uma variação do tema da redenção por meio do resgate. Diferentemente de uma redenção obtida por meio do resgate, a vitória se trata de uma afirmação do poder de Deus que operou em Jesus Cristo sobre os demais poderes que lhe são contrários e que se manifestaram durante a vida de Jesus.

Conforme esta compreensão, o mundo ou a realidade humana é admitidamente uma luta entre as forças do bem, que lutam com e por Deus, e as forças do mal, que lutam contra Deus, reunidas sob um líder, o Diabo ou Satanás, e manifestas nas experiências humanas como a doença, a fraqueza, o medo, os demônios e a morte.

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Essas forças maléficas estiveram presentes em toda a vida de Jesus, e este lhes opôs resistência e as venceu continuamente. Sua maior vitória, e final, porém, se deu em sua morte na cruz. Nela, o conflito foi declarado e a luta de Deus contra o mal foi levada às últimas conseqüências. O que pareceu, inicialmente, a grandiosa vitória final da morte e seus manipuladores maléficos, se tornou, com a ressurreição de Jesus, a sua derrota fragorosa e total.

Nesta configuração, é razoável entender que a descida de Cristo aos infernos, se, por um lado, aponta para a vitória da morte que conseguiu conduzi-lo até lá, por outro lado, indica a vitória de Cristo que conseguiu vencer a morte em seus próprios domínios, mas, também, assegurou o fim do domínio da morte sobre a existência humana. Desse modo, todos aqueles que, por medo da morte, estavam sujeitos à escravidão aos seus poderes, poderiam ser libertos pela vitória assegurada por Jesus Cristo na ressurreição dos mortos.

e) Expiação pelo sacrifício propiciatório17

A metáfora da “expiação” talvez seja a mais conhecida dos cristãos quando afirmam sua salvação pela morte de Jesus Cristo. Ela é configurada desde o sentimento de culpa que subsiste em um relacionamento com Deus, considerado incorreto ou pecaminoso. Naturalmente, e de novo, ela não está sozinha. A ela se associam as palavras: propiciação, sacrifício, sangue e aliança.

É comum falar, então, da morte de Jesus Cristo como um sacrifício expiatório ou propiciatório. A esta palavra ainda se pode associar outra: reconciliação. Portanto, a principal função do sacrifício é a mediação, pois o sacrifício oferece a possibilidade de aproximação e reconciliação com Deus por seu intermédio.

A eficácia expiatória da morte de Jesus Cristo se relaciona com a vida que ele viveu, de duas maneiras: ele agradou inteiramente a Deus por sua fidelidade a ele; e ele solidarizou-se com todos os que eram mantidos à margem do relacionamento com Deus pela culpa que lhes era atribuída: publicanos e pecadores. Neste caso, a morte de Jesus na cruz, foi uma demonstração extrema do quanto agradou a Deus a ponto de dar a sua vida para realizar a sua vontade, e o quanto se identificou com os pecadores a ponto de dar a vida por eles. A ressurreição foi a prova definitiva de que Deus se agradou da conduta obediente de Jesus Cristo e, ao aceitá-lo, também aceitou com ele aqueles pecadores com os quais ele se identificou, pois por eles morreu. Assim, o perdão que Jesus assegurou aos pecadores em vida, é garantido para sempre como o perdão de Deus, pela sua ressurreição. Esta é a estrutura fundamental da expiação. Assim, ele poderia realizar a mediação entre Deus e os pecadores.

Desta estrutura fundamental, baseada na Cristologia, evoluem as diversas imagens que apresentam a expiação em termos sacrificiais: o servo de Deus, o cordeiro pascal e a propiciação. Todas elas derivam da necessidade dos cristãos em lidarem com uma idéia comum 17 Ver o texto de Emil Brunner. BRUNNER Emil. Os Ofícios de Cristo. In: FERREIRA Júlio A. (Org.). Antologia Teológica. São Paulo: Novo Século, 2003, p. 376-380.

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em seu tempo na qual o relacionamento com Deus se dava por meio de um culto sacrificial, de que este culto sacrificial implicava o derramamento de sangue e de que este derramamento de sangue repercutia como uma propiciação ou satisfação da justiça de Deus.

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MÓDULO II – A Teologia da Salvação na História da Teologia

Aula 5 e 6 – No período Antigo

Dr. Sidney Sanches

A metáfora da “iluminação” analisa a condição humana como pecadora, ignorante e carente de conhecimento. Isto se deve ao fato de a humanidade ter-se virado para ídolos, ficções e mentiras resultantes da adoração a forças que se opõem a Deus, havendo perdido o contato com Deus.

O conhecimento de Deus envolve uma abertura e comunhão com ele, certo compartilhar da sua realidade e pessoa. Isto aconteceu, principalmente, com Moisés e os profetas. Também a Sabedoria encarnou esse conhecimento de Deus e desejou partilhá-lo com os seres humanos, que a rejeitaram.

Coube a Jesus Cristo, exercer o papel de mediador, por meio de sua humanidade, do conhecimento de Deus aos seres humanos. Sobretudo, é em sua morte na cruz que a ignorância humana é desfeita, pois todos os poderes que cegavam a humanidade foram vencidos. Por meio do conhecimento obtido pela morte de Jesus, o ser humano não apenas é conduzido à comunhão com Deus, mas ao conhecimento da vida, da fé e da imortalidade.

Outras idéias cristãs da salvação

a) O pecado como resultado da queda

No período cristão mais antigo,18 a pergunta inicial pela salvação requeria uma definição da natureza humana ou a pergunta: quem é o ser humano carente de salvação? A resposta foi dada em termos da antropologia grega, como um ser composto de sôma e psichê/pneûma. Dotado de razão, o livre arbítrio era a marca característica da sua autonomia e emancipação. Assim, ele era capaz de escolher entre o bem e o mal, o que o tornava responsável pelas conseqüências boas e ruins de seus atos. A consciência moral se tornava um tribunal no qual Deus se assentava para julgar a partir destas conseqüências e deliberar sobre sua recompensa ou punição.

É assim que a noção de pecado decorre desta concepção antropológica. Pecado é a opção livre e deliberada pela prática do mal cujas conseqüências requerem um juízo condenatório da parte de Deus. Essa opção humana intrigou os teólogos da época, que apresentaram as seguintes respostas:

18 Esta discussão pode ser apreciada na obra de: KELLY. Doutrinas..., páginas 121-141,259-303.

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Conforme Justino, os seres humanos foram infectados pelos demônios com maldade e corrupção que se estenderam ao ambiente que os treina para esse fim.

De acordo com Taciano e Teófilo, o ser humano foi criado com a inclinação para o bem. O ser humano cedeu às instigações malignas, tornando-se desobediente a Deus, e atraindo para si todas as desgraças que lhe sucedem.

Para Tertuliano, Adão transferiu à raça humana não apenas o corpo, mas também a alma. Portanto, o ser humano carrega consigo além da corrupção do corpo também a corrupção da alma, ambas transmitidas de uns para os outros. A experiência do pecado não é uma questão apenas do ambiente ou dos poderes demoníacos, mas também da inclinação pecaminosa da alma. Cabe a cada ser humano acumular mérito diante de Deus por suas boas ações, e oferecer reparação ou satisfação a Deus por suas más ações.

Conforme Clemente de Alexandria, homem e mulher foram criados imperfeitos e com livre-arbítrio. Porém, o usaram mal ao se entregarem ao sexo antes da permissão divina. Isto os sujeitou à perda da imortalidade, ao enfraquecimento racional e moral e a todo tipo de conduta passional pecaminosa. De Adão e Eva os seres humanos herdaram tais coisas, mas não sua culpa individual. Sua condição é de morte.

Orígenes prossegue as idéias de seu mestre Clemente, avançando para uma queda física antecedida por outra queda pré-cósmica ou transcendental, que afetou todas as almas inteligentes, dentre as quais aquelas que se unem ao corpo humano a cada nascimento. À semelhança de Adão e Eva o ser humano é dotado de livre arbítrio, mas manipulado pelas boas e más inteligências encarnadas ou não (anjos e demônios), o ser humano trava uma luta desigual e inglória contra seus próprios desejos sensuais.

No quinto século, a queda do ser humano se torna uma idéia consolidada. Ela é comparada a uma situação anterior como oposta à queda no pecado, um estado de graça. Surge a necessidade de relacionar a graça de Deus como motor da salvação, que envia a Jesus Cristo e recupera o ser humano para seu estado original.

Atanásio assume a idéia de um estado original do ser humano de retidão e perfeição, um estado de graça, que deveriam ser continuados pela contemplação de Deus, o que o faria compartilhar a presença de Deus. No entanto, homem e mulher foram distraídos pelo mundo à sua volta, caíram do estado de graça e foram submetidos à corrupção da matéria, retendo, todavia o livre-arbítrio. Toda a raça humana é solidária com Adão em sua queda, porém não em sua culpa. O ser humano pode contar com o auxílio divino nas dificuldades provocadas pela queda, mas a responsabilidade humana permanece.

b) A encarnação como necessidade da salvação

Alterando a regra neo-testamentária, que fez a soteriologia depender da cristologia, a reflexão soteriológica grega cristã fez a soteriologia depender da antropologia. O tema da

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encarnação ganha proeminência, a partir da seguinte pergunta levantada por Justino: O que Jesus Cristo fez pelo ser humano caído em sua encarnação? Ele mesmo respondeu que por sua encarnação, Jesus Cristo trouxe iluminação ao ser humano, de modo que, ao libertar este dos encantamentos dos demônios, permitiu que ele recordasse e voltasse ao modo de viver que Deus preparou para ele.

Tempos depois, Irineu de Lião elaborou uma doutrina da salvação completa chamada “teoria da recapitulação”, onde reuniu cristologia e antropologia em único plano redentor, idealizado pelo Pai e executado pelo Filho e pelo Espírito Santo. Segundo ele, o ser humano foi criado à imagem (razão e livre-arbítrio) e semelhança (a dádiva do Espírito) de Deus, e a caminho de uma retidão definitiva. Adão rejeitou tudo isso por influência maligna e, sob o seu domínio, interrompeu o processo de retidão. Solidária em Adão, sua desobediência a Deus afetou toda a raça humana quando ela se multiplicou a partir de Adão. Por sua encarnação, Jesus Cristo possibilitou a retomada do projeto adâmico iniciado por Deus, permitindo recuperar em Cristo o que se perdeu em Adão (anakefalaiôsis), tornando-se o iniciador de uma nova humanidade redimida da condição adâmica e vivendo agora sob o impulso do Espírito Santo.

Para Clemente, Jesus Cristo se encarnou como o Logos Paidagôgos, o instrutor da humanidade em sua busca de retorno a Deus. Enquanto divino, perdoa seus pecados. Enquanto humano, serve de modelo para uma vida sem pecados.

Para Orígenes, a inteligência (nous) de Jesus Cristo se encarnou para guiar à restauração todas as demais inteligências que decaíram. No entanto, para que isso acontecesse era necessário vencer o poder que as inteligências perversas (diabo e demônios) exercem sobre as demais. Jesus Cristo os derrotou na cruz possibilitando a redenção dos demais da escravidão ao diabo.

Conforme Atanásio, a encarnação tem por objetivo maior a recuperação da imagem divina no ser humano conduzindo-o à comunhão com Deus e possibilitando a sua redenção. A morte na cruz é o pagamento a Deus da dívida acumulada pelos seres humanos. A morte e corrupção conseqüentes são removidas pela ressurreição.

Hilário de Poitiers tem a seguinte opinião sobre a necessidade da encarnação para a redenção da humanidade: na encarnação, corpo e alma humanos são assumidos e conduzidos à cruz, onde são resgatadas. O sangue de Jesus Cristo foi oferecido a Deus para remissão da maldição da morte, a expiação dos pecados e a reconciliação com Deus.

c) A graça como solução ao pecado

O ápice das idéias soteriológicas no Cristianismo antigo acontecerá entre o monge bretão Pelágio e o bispo africano Agostinho.

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Para Pelágio, o ser humano foi criado por Deus para, livremente, escolher fazer o bem ou o mal e colher as conseqüências de suas escolhas. A Deus deve responsabilidade contínua por suas ações.

Para Agostinho, o ser humano foi criado por Deus em total felicidade e liberdade. Por sua opção, escolheu desobedecer a Deus, e esta desobediência se incorporou à sua natureza que foi propagada para sua descendência. Assim, toda a humanidade participa da desobediência de Adão e é co-responsável com ele. Como conseqüência, a natureza humana foi marcada e contaminada irremediavelmente. Ainda que o ser humano queira, ele não tem o poder para fazer o bem.

Naturalmente, eles terão visões diferentes do propósito da encarnação tendo em vista a redenção do ser humano.

Para Pelágio, Jesus Cristo dá um exemplo de como o ser humano pode viver para Deus ao submeter-lhe racionalmente a sua própria vontade. Sua morte na cruz é o clímax desta demonstração, ao mesmo tempo em que liberta o ser humano para realizar o propósito da sua vida: viver para Deus.

Para Agostinho, em sua humanidade, Jesus Cristo se torna o mediador entre Deus e o ser humano. Em seu papel mediador e para reconciliar Deus e os seres humanos, Jesus Cristo se ofereceu como sacrifício: expiatório, pois expurgou a culpa humana e o castigo divino, aplacando a ira de Deus; propiciatório, pois ofereceu sua retidão em favor do ser humano; substitutivo, pois ofereceu sua retidão em lugar da injustiça humana. A forma como Jesus Cristo viveu e se ofereceu a Deus se torna um modelo pelo qual todo ser humano deve passar a viver ao ser por essa oferta reconciliado com Deus.

d) O regime meritório nas idéias cristãs da salvação19

Vimos, acima, como Tertuliano, por sinal advogado, compreendeu o pecado e a necessidade de expiação como uma compensação meritória que o ser humano oferecia a Deus, uma espécie de reparação a Deus por suas más ações, por meio do mérito acumulado em função de suas boas obras. Isto equivalia a dizer que o ser humano, em déficit quanto à lei de Deus, deveria executar certo número de boas ações legitimadas à luz da lei divina, para cobrir esse déficit e, se possível, guardar algo entesourado que lhe fosse útil em caso do déficit retornar devido a más ações posteriores. Uma palavra surgirá que definirá a concepção de salvação doravante: penitência, ou pagar o preço devido pelo perdão esperado.

Aulén afirma que Cipriano retoma as idéias de Tertuliano e a conduz ao pensamento de que, caso um ser humano acumule mérito superavitário perante Deus, pode muito bem transferir esse mérito a outros seres humanos. Este é o critério para Cipriano afirmar a expiação como a

19 Acompanhamos as idéias de Gustaf Aulén. AULÉN Gustaf. Teorias da Expiação. In: FERREIRA Júlio A. (Org.). Antologia Teológica. São Paulo: Novo Século, 2003, p. 367-372.

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aplicação do mérito adquirido por Jesus Cristo a todos os seres humanos, interpretando sua ação como satisfação. Comenta Aulén,

Esse ponto de vista, de uma relação legal entre duas partes, é agora usada para interpretar a obra de Cristo; por sua paixão e morte Ele ganha um excesso de mérito, e isto é pago a Deus como satisfação e compensação.20

Já Ambrósio acentuará o caráter meritório da oferta do sangue de Jesus Cristo a Deus, como uma satisfação à sua justiça pelos pecados do seres humanos em substituição aos seres humanos que deveriam ser punidos por seus pecados.

O término desse processo ocorreu com a virada meritória que o bispo Anselmo de Cantuária realizará nas idéias soteriológicas. Sua obra: Cur Deus Homo (Por que Deus-homem?)21 pode ser entendida como um tratado sobre a soteriologia desde a afirmação da necessidade da encarnação como meio de a raça humana obter mérito para seu perdão divino, por meio de Jesus Cristo.

O próprio Anselmo não imaginava que seu estudo sobre o assunto trouxesse qualquer contribuição definitiva, pois, para ele, o assunto: por que Deus se fez carne? Estava longe do entendimento humano e qualquer explicação correria o risco de desfigurar a ação divina (Livro I,II). Todavia, Anselmo vê a necessidade de uma explicação racional para a encarnação partindo da noção de que apenas uma pessoa divina poderia prover a redenção da humanidade perdida (I,IV).

O contra-argumento dos infiéis criticava a necessidade da encarnação e o conseqüente sofrimento de Deus para a redenção humana (I,VI). Anselmo não responde diretamente a essa questão, no entanto, combate a idéia vigente desde a Antigüidade cristã de que a encarnação e morte de Jesus Cristo fora um resgate pago ao demônio (I,VII). Ao contrário, afirma Anselmo que Deus possuía uma razão perfeita, cuja lógica pode ser apreendida a fim de justificar a necessidade da morte de seu Filho, o justo. E esta razão para a encarnação é que foi o próprio Cristo quem se doou e em obediência à vontade do Pai (I,VIII).

Conforme o raciocínio de Anselmo, o ser humano foi criado justo por Deus, mas pecou contra a justiça divina, o que exigiu dele que fizesse uma reparação pela injustiça cometida. É pela justiça que Cristo morre, não pelo pecado (I,IX). A injustiça humana produz a sua própria infelicidade, e o perdão poderia restabelecer a felicidade humana. É em função disso que Cristo morre (I,X).

Para entender o perdão, é preciso entender o pecado. Este se trata de uma dívida assumida para com Deus, uma dívida de honra (I,XI). Esta dívida deve ser paga devido à necessidade de manter a ordem e justiça divina no mundo; caso Deus seja simplesmente misericordioso, a injustiça prevalecerá (I,XII). Quanto à criatura humana, é justo igualmente que

20 AULÉN, Idem, p.370.21 SANTO ANSELMO. Por que Deus se fez Homem? São Paulo: Novo Século, 2003.

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ela pague sua dívida de honra ao Criador, e se ela não o fizer, Deus a cobrará de todo modo (I,XIII). O pagamento da dívida de honra tem mais a ver com a própria necessidade humana do que com a honra divina, pois esta não pode ser manchada; é a condição humana de criatura obediente a Deus que está em questão (I,XV).

Breve digressão: nesse momento, Anselmo faz uma digressão. Ao tratar da redenção da criatura, também discute o lugar da redenção dos anjos que igualmente desobedeceram. A toda criatura estava destinada a felicidade eterna na contemplação divina, mas, como os anjos caíram, e foram confirmados nessa queda, é necessário que os seres humanos também preencham o número dos que caíram na ordem da criação. A questão se trata de Deus manter o projeto original da sua criação (I,XVI-XVIII).

Anselmo retorna ao seu tema fundamental justificado agora do seguinte modo: exatamente porque os seres humanos devem ocupar o lugar dos anjos que caíram, inclusive, é necessário que seus pecados sejam resolvidos para que estejam à altura desse destino (I,XIX). Nada o ser humano pode dar a Deus, pois tudo lhe pertence; apenas a fé, movida pelo amor, pode salvá-lo (I,XX). Desde que ele tem uma dívida de honra para com Deus, deverá oferecer o preço de reparação desta dívida no exato valor correspondente (I,XXI). Mesmo impossibilitado de prevalecer contra o pecado no qual nasceu, e estimulado pelo demônio, que se aproveita do pecado para subjugá-lo (I,XXII), o que o leva à constatação da impossibilidade de seu pagamento, ainda assim, o ser humano deve devolver a Deus a dívida de honra, (I,XXIII). Desde que não pecar está fora das suas possibilidades, o ser humano se caracteriza pela injustiça e, portanto, pela infelicidade (I,XIV).

Outro argumento de Anselmo se encontra na criação do ser humano. Sua natureza racional foi criada santa para gozar de Deus, sem conhecer a morte. No entanto, o pecado o conduziu a essa experiência. Daí ser necessário que Deus complete no ser humano a sua obra iniciada (II,I-V). Por fim, Anselmo completa seu raciocínio, afirmando que, diante da necessidade humana e da vontade Deus, prevaleceu a disposição divina em oferecer a si mesmo uma reparação pela dívida de honra da humanidade: Jesus Cristo, o Deus-homem (II,VI-IX). Ele também reconhece um lugar para a vontade de Jesus Cristo, que se vê como auto-oferenda a Deus em satisfação pela dívida humana para com a honra divina (II,X). Em suma, conclui Anselmo

e para que isto o torne Deus-homem, é necessário que aquele que tem de cumprir esta satisfação seja perfeito Deus e perfeito homem, pois não poderá cumpri-la se não for verdadeiro Deus, e nem estará obrigado a ela, se não for verdadeiro homem.22

22 SANTO ANSELMO. Idem, p. 107.

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Apostila de SoteriologiaRegina Fernandes Sanches

Aulas 7 e 8: A Teologia da Salvação da Reforma Protestante

Dr. Sidney Sanches

As idéias de Anselmo prevaleceram quase incólumes, apesar da intervenção de Abelardo, até mesmo e durante o período da Reforma luterana. Isto equivale a dizer que a noção de mérito ainda pervade o ensino reformado sobre a salvação.23

a) Lutero

Em Lutero, toda a discussão da salvação passa pela questão da justificação. Lutero afirma que Deus aceitou a justiça de Cristo, que é dele e não a nossa, realizando uma troca entre Cristo e o pecador. Os pecados humanos não são removidos, mas não são mais denunciados. O ser humano é declarado justo, ainda que não se torne justo. A justificação aconteceu devido à morte vitoriosa de Jesus Cristo na cruz. Ao ser humano cabe se apropriar da graça de Deus a fim de ser declarado justo pela fé apenas, isto é, por apegar-se exclusivamente a Jesus Cristo. A fé, nesse caso, não é fim em si mesma, mas meio pelo qual a graça alcança o ser humano e o justifica. E o fruto da justificação é a fé ativa no amor.

b) Calvino

Em Calvino, a salvação começa pela análise da condição humana pecaminosa. O pecado começa na queda de Adão e arrastou toda a raça humana solidária nele; o pecado passou de Adão para todos por um decreto divino; assim, toda a vida humana, e não apenas uma parte do ser humano, está contaminada pelo pecado, sendo o pecado “a direção e a inclinação da própria natureza humana em sua condição decaída”.24 É em função da redenção do pecado que Jesus Cristo aparece no mundo, cujas naturezas em uma só pessoa o qualifica como Mediador entre ser humano e Deus. Em seu tríplice ofício: profeta, rei, sacerdote, é no sacerdócio que se desenvolve o tema da redenção humana pela mediação de Jesus Cristo. Nesta condição ele apaziguou a ira de Deus fazendo uma compensação perfeita pelos pecados humanos, em quem Deus se reconciliou com os seres humanos. Embora a noção de compensação se pareça com a de reparação em Anselmo, George nomeia cinco distinções entre ambas. Para Calvino: na expiação, Deus se adapta à condição fraca e pecaminosa humana; nela, Deus visava reconciliar o ser humano consigo mesmo, tornando-o de inimigo em amigo; toda a existência humana de Jesus Cristo, do nascimento à morte, incluída sua intercessão sacerdotal celestial, faz parte da expiação; Calvino mescla a linguagem da satisfação e da substituição com a do Cristo

23 Seguiremos o texto de: GEORGE Timothy. Teologia dos Reformadores. São Paulo: Vida Nova, 1994.24 GEORGE. Idem, p. 214.

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Apostila de SoteriologiaRegina Fernandes Sanches

Vencedor, pois na cruz, ele venceu o Diabo; a obra objetiva de Jesus Cristo na cruz produz conseqüências que se reproduzem na vida do cristão, na vida da graça.

Os demais movimentos reformadores compartilharam idéias semelhantes quanto à salvação. Todos foram unânimes em afirmar a vontade divina em salvar e fazendo-o na vinda, vida e morte de Jesus Cristo. A vontade divina em salvar serviu para afirmar a soberania divina. A presença desta é explicada por George do seguinte modo:

Eles [os reformadores] viam os seres humanos tão profundamente escravizados pelo pecado que somente a graça soberana de Deus poderia verdadeiramente libertá-los... A doutrina da justificação pela fé pressupõe a apropriação subjetiva do dom divino da salvação, mas também reconhece que mesmo aquela fé pela qual somos justificados é, em si mesma, semelhantemente um dom.25

25 GEORGE. Ibidem, p. 308.

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Apostila de SoteriologiaRegina Fernandes Sanches

Aula 9 - A Soteriologia Contemporânea

Dr. Sidney Sanches

Nestas aulas você será introduzido à discussão contemporânea sobre a salvação dentro dos círculos protestantes, reunidos ao redor de dois organismos principais: O Concílio Mundial de Igrejas (CMI) e a Fraternidade ou Aliança Evangélica Mundial (WEF). A partir daí, discutiremos sobre essas influências na compreensão de salvação entre os teólogos evangélicos latino-americanos, com ênfase especial em um texto de Orlando Costas. Veremos, por fim, a contribuição da Teologia da Libertação, a partir de um de seus sistematizadores, o teólogo Carlos Palácio.

A discussão da salvação entre os Evangélicos na América Latina recebe a influência de dois importantes organismos mundiais dentro do Protestantismo: o movimento ecumênico protestante (CMI) e a reunião dos evangélicos na Fraternidade Evangélica Mundial (WEF).

Dentro do CMI, há um importante documento elaborado sob o patrocínio da Comissão de Evangelismo e Missão Mundial, reunida em Bangkok, Tailândia, entre 29/12/72 e 09/01/73, discutindo o tema: Salvação Hoje. Este foi dividido nos seguintes subtemas: Cultura e identidade, Salvação e justiça social, As igrejas renovadas em missão. O bispo metodista boliviano Mortimer Arias escreveu um livro adaptando a temática à América Latina, na pequena obra: Salvação Hoje.26 Editada pela Vozes, em 1973. Mais interessante é o título em castelhano: La Salvación Hoy.Entre la cautividad y la liberación. Para esta lição, usaremos as idéias a respeito da compreensão da salvação para o povo latino-americano expostas neste livro.

O primeiro capítulo se chama: A busca de salvação e a experiência contemporânea. Responde ao título do livro: Salvação hoje. Ambas as temáticas pressupõem que existe uma carência de salvação mesmo na modernidade atual. Ela apenas é colocada de maneiras diferentes e, por vezes, de maneiras que a visão tradicional de salvação que os protestantes herdamos não consegue nem detectar, nem atender. Nas palavras de Arias

A busca contemporânea, entretanto, está marcada por novas perspectivas e preocupações. O homem tomou consciência de sua dimensão histórica, saiu de sua província geográfica para o universo espacial. Descobriu seus direitos de homem e reclama sua plena vigência. Preocupa-se não somente com seu destino individual, mas também com o destino da própria humanidade. Descobriu suas potencialidades criadoras e inventou engenhosos e complicados instrumentos para dominar o mundo e colocá-lo a seu serviço. Por outro lado, começa também a tomar consciência de suas limitações, de seus impoderáveis, dos riscos da História. Deve fazer frente a sistemas brutalmente repressivos ou a preconceitos profundamente arraigados, que regem seu lugar a emergentes minorias e postergadas maiorias. Precisa adaptar-se a normas e valores da

26 ARIAS Mortimer. Salvação Hoje. Petrópolis: Vozes, 1973.

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Apostila de SoteriologiaRegina Fernandes Sanches

“grande sociedade” que escapam ao controle do indivíduo e permeiam toda sua existência, ameaçando a própria privaticidade do pensamento. A busca de salvação assume, então, novos e desorientadores acentos e reveste-se de cores novas de esperança.(12)

A conclusão de Arias é que estas questões colocam maneiras diferentes e desafiadoras à igreja na maneira como ela dará testemunho da salvação hoje. Trata-se de responder às perguntas: Qual é o conteúdo da salvação cristã hoje? Qual é o propósito de Deus para a vida humana? Que relação tem a prática histórica com esses propósitos de Deus e, portanto, com a salvação? Teremos entendido a mensagem bíblica da salvação em toda a sua integridade? Que agentes Deus usa na História além da Igreja? Que significado têm as lutas humanas de hoje pela dignidade, liberdade, identidade, libertação das opressões econômicas, políticas e sociais? É a salvação de Deus algo puramente individual ou escatológico ou é também social e histórica? Como se expressa a fé do cristão na prática histórica? Como se relacionam os cristãos com as aspirações, lutas, agonias e esperanças de nossos povos?(18).

Um resumo das respostas a essas perguntas pode ser: A salvação é a mensagem central da fé cristã. Para os cristãos, ela acontece por meio de Jesus Cristo. A salvação de Deus se realiza na História. As lutas históricas humanas podem ser interpretadas como salvação. Deus agiu e continua agindo para a salvação dos seres humanos.

Arias é conduzido pelo documento a falar, depois, sobre a totalidade da salvação. Esta se desdobra a partir de um centro ao redor de quatro dimensões. Este centro é a boa vontade de Deus em salvar o ser humano reconciliando-o consigo mesmo. Passagens bíblicas como: 1 Tim 2:4; Jo 3:16; Ro 3:23; At. 4:12; 1 Tm 2:5; Jo 14:6 mostram que Deus proveu o caminho para a salvação e que esta se realiza desde um diagnóstico da condição humana pecaminosa e de um único mediador da salvação: Jesus Cristo.

Uma salvação total será tanto material quanto espiritual. Material porque as Escrituras avisam que as necessidades básicas de uma vida humana rica e plena, como abundância material, segurança e paz, justiça social precisam ser satisfeitas como sinal de que houve salvação. Espiritual porque as Escrituras também afirmam que somente Deus pode intervir em favor das necessidades humanas e somente nele o ser humano pode encontrar sua verdadeira realização humana. Conforme Arias

Não há salvação material sem salvação espiritual, nem salvação cristã que ignore a realidade social e material. Assim o testemunha a Bíblia e nossa experiência contemporânea o exige.(29)

Arias continua dizendo que salvação é um termo rico de sentidos, não se reduzindo a uma ou outra experiência humana apenas. Portanto, é cabível falar em dimensões da salvação. Estas são:

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Apostila de SoteriologiaRegina Fernandes Sanches

1. a salvação que atua na luta pela justiça econômica contra a exploração do homem pelo homem;

2. a salvação que atua na luta pela dignidade humana contra a opressão política dos povos;

3. a salvação que atua na luta pela solidariedade contra a alienação de algumas pessoas de outras;

4. a salvação que atua na luta pela esperança contra o desespero na vida pessoal.

A partir do capítulo III, Mortimer Arias discute a situação latino-americana sob o binômio: cativeiro-libertação. Diferentemente da discussão soteriológica dentro do Catolicismo da Teologia da Libertação, para ele o cativeiro da igreja evangélica na América Latina é o cativeiro missionário que a impede de se dirigir a seu próprio povo em suas próprias palavras desde suas próprias necessidades. Nós vamos parar por aqui, pois já temos o que nos interessava para esta lição. Mas você deveria continuar o estudo desta importante obra para a compreensão ecumênica da salvação na América Latina hoje.

Falemos agora da compreensão de salvação em outro importantíssimo grupo de igrejas protestantes: os autodenominados “evangélicos”. As questões históricas serão deixadas de lado agora. Basta apenas dizer que tempos atrás eles também compunham o Conselho Mundial de Evangelismo e Missão, ajudando a fundá-lo inclusive. Foi um tempo no qual os agentes protestantes de missão em todo o mundo sentiram a necessidade de reunir esforços e re-discutir a missão nos novos tempos antes e após as duas guerras mundiais, quando o planeta passou por um duríssimo processo de reorganização com o fim da colonização européia. Quando esse Conselho se integrou definitivamente ao CMI recém-criado, muitos se retiraram por não concordarem com esse organismo mundial. Estes, agora autodenominados “evangélicos” resolveram formar seu próprio organismo que mantivesse a intenção original das missões protestantes: a proclamação do Evangelho aos povos do mundo. Seu organismo se chamou Fraternidade Evangélica Mundial. O grande evento que deu visibilidade e autoridade a este grupo foi o Congresso de Lausanne, em 1974, sobre a Evangelização Mundial.

Não é difícil descobrir a dificuldade dos evangélicos com os ecumênicos acerca da salvação. Veja essa declaração contida na obra de Mortimer Arias, citando o Dr. M.M. Thomas, diretor do Instituto Cristão para o Estudo da Sociedade, na Índia:

A missão da igreja neste contexto é de estar presente dentro dos movimentos criativos de libertação de nosso tempo, aos quais o próprio Evangelho contribuiu para dar forma, e, de tal maneira participar neles, que sejamos capazes de comunicar o genuíno Evangelho de libertação. (28)

A partir do Pacto de Lausanne, é possível situar melhor a compreensão evangélica sobre salvação. O bispo inglês anglicano John Stott é conhecido como uma das principais lideranças dos evangélicos hoje. Ele escreveu um livro chamado: John Stott comenta o Pacto de Lausanne (ABU/Visão Mundial). Ele comenta assim a seguinte afirmação inicial do Pacto:

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Apostila de SoteriologiaRegina Fernandes Sanches

Ele (o Deus trino) tem chamado do mundo um povo para si, enviando-o novamente ao mundo como seus servos e testemunhas, para estender o seu reino, edificar o corpo de Cristo, e também para a glória do seu nome.

Para Stott, o Pacto de Lausanne, quando se trata do povo de Deus, concentra-se na relação da igreja com o mundo, isto é, do povo cristão com o povo não-cristão, ou com a sociedade secular. A esse povo a igreja é enviada a evangelizar, mas não apenas isso, também servir. As duas atividades fazem parte da missão da igreja.

Em outro momento, ele comenta o lugar fundamental que Jesus Cristo ocupa na evangelização. Ele é o único conteúdo dela, é o único Salvador da humanidade pecadora. Ele também é o Salvador do mundo inteiro, o que quer dizer que ele deve ser proclamado a todo ser humano em todo o mundo, ele é o Salvador universal.

A união entre o propósito de Deus no chamamento de um povo para si e a centralidade de Jesus Cristo leva este povo a compreender sua natureza como evangelizadora. Desde que esta natureza se define por uma ação no mundo, esta se trata de “proclamar as boas novas de que Jesus Cristo morreu por nossos pecados e ressuscitou assegurando a nossa justificação” (24). O resultado da evangelização é a salvação do mundo. Esta é sempre atual porque Jesus Cristo está vivo, dando autoridade à proclamação do seu Evangelho, perdoando os pecados dos seres humanos e concedendo o dom do Espírito Santo. O que o ser humano precisa fazer para obter a salvação é arrepender-se e crer, confiando inteiramente em Jesus Cristo como único Salvador.

A evangelização é antecipada pela presença cristã no mundo, uma espécie de prelúdio à proclamação. A presença é uma espécie de diálogo com o mundo, no qual a igreja ouve o mundo com sensibilidade a fim de lhe anunciar o Evangelho. Esta é a grande novidade.

Outra novidade consta do artigo sobre a Responsabilidade Social Cristã. Uma parte diz o seguinte:

Porque a humanidade foi feita à imagem de Deus, toda pessoa, sem distinção de raça, religião, cor, cultura, classe social, sexo ou idade possui uma dignidade intrínseca em razão da qual deve ser respeitada e servida, e não explorada... Embora a reconciliação com o homem não seja reconciliação com Deus, nem a ação social evangelização, nem a libertação política salvação, afirmamos que a evangelização e o envolvimento sócio-político são ambos parte do nosso dever cristão. Pois ambos são necessárias expressões de nossas doutrinas acerca de Deus e do homem, de nosso amor por nosso próximo e de nossa obediência a Jesus Cristo. A mensagem de salvação implica também uma mensagem de juízo sobre toda forma de alienação, de opressão e de discriminação, e não devemos ter medo de denunciar o mal e a injustiça onde quer que existam... A salvação que alegamos possuir deve estar nos transformando

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Apostila de SoteriologiaRegina Fernandes Sanches

na totalidade de nossas responsabilidades pessoais e sociais. A fé sem obras é morta. (27,28).

Ao comentar este artigo, John Stott faz referência à compreensão de salvação elaborada pelo ecumenismo protestante um ano antes, em Bangkok. Para ele, eles agiram bem ao tentar interpretar a salvação cristã para o homem moderno. Mas erraram ao equacionar salvação com libertação político-econômica. O Pacto de Lausanne, conforme Stott, tenta manter o conceito tradicional e dogmático da salvação cristã, mas tenta atualizá-lo na inclusão da ação social e política como aspecto ou dimensão da salvação,

Salvação é libertação do mal e, implícito no desejo de Deus de salvar o seu povo do mal, acha-se o juízo sobre o mal de que ele os salva. Além disso, esse mal é tanto social como individual. (30)

Agora, temos condições de estudar a contribuição de um teólogo latino-americano importante, que tenta uma síntese entre a contribuição de salvação ecumênica e a evangélica para os evangélicos da América Latina e Central. Ele se chama Orlando Costas, e sua palestra no II CLADE (Congresso Latino-americano de Evangelização), realizado em 1969, registra essa contribuição.

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Apostila de SoteriologiaRegina Fernandes Sanches

MÓDULO III: A SOTERIOLOGIA LATINO-AMERICANA

Aulas 11 e 12 – A Salvação nos textos da FTL

Ms Regina Fernandes Sanches

Este estudo acerca da salvação conforme tratado na TMI, terá como base os textos dos

boletins teológicos, periódico publicado pela Fraternidade Teológica Latino-americana (FTL)

nas décadas de 80 e 90 (1983-1997).

Em correspondência ao método da TMI, o tema da salvação é tratado nos textos em

vista do contexto sócio-histórico da América Latina, em uma abordagem integral, na perspectiva

histórico-escatológica do Reino de Deus.

O primeiro Boletim abre a coletânea com o documento de constituição da FTL e

com a Declaração de Seoul (27 de agosto de 1982), documento final da Conferência dos

teólogos evangélicos dos países de Terceiro Mundo27, sob o tema “Rumo a uma teologia

Evangelical para o Terceiro Mundo”.

O Contexto da Salvação

O contexto inicial ao qual eles se referem é aquele descrito pelo CLADE II:

Temos levantado os olhos para o nosso continente e contemplado o drama e a tragédia em que vivem nossos povos nesta hora de inquietação espiritual, confusão religiosa, decadência moral e convulsões sociais e políticas. Temos ouvido o clamor dos que têm fome e sede de justiça, dos que se encontram desprovidos do que é básico para sua subsistência, dos grupos étnicos marginalizados, das mulheres despojadas do uso dos seus direitos, das crianças que sofrem fome, abandono, ignorância e exploração. Por outro lado, temos visto que muitos latino-americanos estão se entregando à idolatria do materialismo, submetendo os valores do espírito aos valores impostos pela sociedade de consumo, segundo a qual o ser humano vale, não pelo que é em si mesmo, mas pela abundância dos bens que possui. Há também os que, em seu desejo legítimo de reivindicar o direito à liberdade ou de manter o estado de coisas vigentes, seguem ideologias que oferecem uma análise parcial da realidade latino-americana e conduzem a formas diversas de totalitarismo. Existem ainda vastos setores escravizados pelos poderes

27 Embora o nome “Terceiro Mundo” não é mais utilizado atualmente, fazemos uso dele em referência à época e em correspondência aos textos e documentos em que era mencionado.

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Apostila de SoteriologiaRegina Fernandes Sanches

satânicos que se manifestam em formas variadas de ocultismo e religiosidade...Decidimos renovar nosso compromisso de lealdade ao Evangelho e de fidelidade à tarefa de evangelizar no contexto da nossa América Latina... (Carta do CLADE II).

Esta é a situação sócio-histórica no qual a salvação deve ser anunciada, e, muito

mais, realizada de forma integral.

A Integralidade da Salvação

No Boletim no. 2 Steuernagel esclarece que a salvação é redentora, e não somente da

criatura humana, mas de toda a criação. Deus Criador fez com que todas as coisas existissem e

delegou ao ser humano o cuidado dessas “todas as coisas”. Conforme ele, essa capacidade de

administrar e cuidar de tudo, identifica essa criatura humana com Deus, torna-a semelhante à

Ele. O pecado fez cair o mundo e o colocou em um estado de sofrimento e morte agonizante.

No entanto, Jesus Cristo é co-participante da criação e também o seu Redentor. Como afirma

Steuernagel “A morte e ressurreição de Jesus representam um sinal de esperança para este

mundo: ele é o Redentor de toda a criação, através do sangue da sua cruz (Col. 1.20)”. A

salvação por ele providenciada é redentora da criação. Para reafirmar isso ele cita um texto de

Domingos Barbé:

... se a Redenção não atinge a criação em todos os seus aspectos, mundo material, história e sociedade humana, e ela não abrange o cosmo inteiro, então Deus nada tem a ver com as lutas deste mundo. Ele se tornou o grande ausente da história e, por conseguinte, a política pertence unicamente ao domínio de César, que pode exercer o seu poder sem controle nenhum. Não é de estranhar, então, que os inimigos do Cordeiro gritem: ‘Não temos outro Rei senão César!’ Não podemos admirar que se usem as armas de Maquiavel para governar a cidade humana. Desde que os aspectos sociais e políticos da Redenção na são mais reconhecidos, a realeza de Jesus Cristo limitou-se ao mundo das almas e do sentimento individual”.

É certo que não é assim. Ao menos não é isso o que a Escritura afirma:

Pois a criação espera com impaciência a revelação dos filhos de Deus: entregue ao poder do nada – não por vontade própria, mas pela autoridade daquele que lha entregou – ela aguarda com esperança, pois também ela será libertada da escravidão da corrupção, para participar da liberdade e da glória dos filhos de Deus. – Rom. 8- 19-21.

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Apostila de SoteriologiaRegina Fernandes Sanches

Da mesma maneira como o pecado humano afetou toda a criação e a fez cair com ele, a

salvação humana e sua redenção deve resultar em redenção também da criação e sua plena

libertação.

A Temporalidade da Salvação

Guilherme Cook (Boletim 3) afirma que a salvação anunciada pelas Escrituras é de

implicações históricas e também escatológicas. Ela se realiza no Kairós de Deus, através da

obra redentora de Jesus Cristo e na expectativa da definitiva consumação do Reino:

Como evidência da centralidade da obra redentora de Cristo na história da Salvação, “kairós” ocupa um lugar importante na autocompreensão de Jesus Cristo acerca do significado do seu ministério... Porém “o ‘kairós’ decisivo para a história da salvação é a cruz e a ressurreição de Cristo” (11). Às vésperas de sua morte, quando encarrega os discípulos da preparação da última ceia, Jesus declara: “O meu ‘kairós’ está próximo” (Mt. 26.18). E diz também aos seus irmãos carnais que não crêem nele: “O meu ‘kairós’ ainda não chegou (minha cruz) mas o vosso ‘kairós’ sempre está sempre presente (Jo.7.6).

Conforme ele, este tempo de Deus em que a salvação se realiza, é marcado pela obra

redentora de Jesus Cristo, esse é o seu mistério. Uma obra que converge os tempos e o tempo.

Passado, presente e futuro se encontram nela em função da redenção da criação. Essa redenção

propicia uma salvação presente e uma salvação futura, que gera tanto uma transformação no

tempo atual, como uma esperança de que essa mesma transformação irá se consumar, pois ela

acontece no kairós de Deus.

... no Novo Testamento, onde a relação que se faz entre pleroma, chronos e kairós indica que até a plenitude dos tempos – o escathon – tem relação com o tempo. Como podemos ver pelos seguintes exemplos, a mesma expressão “cumprimento do tempo” é usada indistintamente para o passado, presente e futuro escatológico. “Vindo, porém, a plenitude do tempo (pleroma tou chronou), Deus enviou seu Filho” (Gl. 4.4). “E até que os tempos dos gentios se completem (pleróthosin kairoi), Jerusalém será pisada por eles” (Lc. 21.24). “Segundo o seu beneplácito que propusera em Cristo, de fazer convergir nele, na dispensação da plenitude dos tempos (pléromatos tõn kairõn), todas as cousas, tanto as do céu como as da terra” – (Ef. 1.9,10)

Com Cook compreendemos que a salvação acontece no tempo de Deus, através da obra

de Jesus Cristo, que antecede e ultrapassa a história humana, mas que também se realiza nela.

O Pecado humano e a salvação

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Apostila de SoteriologiaRegina Fernandes Sanches

Arzemiro Hoffmann (Boletim 4) trata da salvação em relação ao pecado que afetou a

vida no mundo e as relações do ser humano com Deus, com o outro e consigo mesmo. De

acordo com ele o pecado é a substituição do Criador pela criatura, a rejeição de ser criatura e

desejar ser Deus:

Assim tudo começou. Esta é a realidade da queda e do pecado: tendo eles conhecimento de Deus, não o glorificaram como Deus, antes deram ouvidos à criatura, colocando-a no lugar do criador.

No entanto ele adverte que o pecado é uma experiência humana, que afetou os

relacionamentos não somente entre pessoas, mas com a criação em geral. O ser humano se

corrompeu e a vida e o mundo é o local onde esta corrupção de manifesta.“Esta corrupção está

em nós e é parte integrante da humanidade”. O pecado não acontece nos ares, mas é rebelião

contra Deus que teve origem no mundo e na vida, afetou e afeta o mundo e a vida. É em vista

disso e em relação a esse pecado que a salvação também deve ser pensada:

Todo o evangelho nos recorda que a salvação, ainda é primordialmente uma experiência espiritual e pessoal, tem implicações culturais, sociais e políticas que vão muito mais além do indivíduo. O Pacto de Lausanne afirma: “A mensagem da salvação encerra também a mensagem de juízo de toda forma de alienação, opressão e discriminação, e não devemos temer em denunciar o mal e a injustiça onde quer que estes existam. Quando a gente recebe a Cristo, nasce de novo em seu Reino e deve tratar não somente de manifestar sim de difundir a justiça do mesmo em meio a um mundo injusto. Se a salvação que dizemos ter não nos transforma na totalidade de nossas responsabilidades pessoais e sociais, não é salvação de Deus. A fé sem obras é morta” (KUZMIC, Peter. Evangelio y salvación: Qué debemos hacer? – Buenos Aires: Revista Iglesia e Mision.

Para Hoffmann o pecado implicou em queda espiritual, intelectual, moral e

social. Mas em relação à isso ele evoca o anúncio de Jesus Cristo em Lc. 4.18,19:

O Espírito do Senhor está sobre mim, pelo que me ungiu para evangelizar aos pobres ; enviou-me para proclamar a libertação aos cativos e restauração da vista aos cegos, para pôr em liberdade os oprimidos, e apregoar o ano aceitável do Senhor.

A Salvação pneumatológica e trinitária

Orlando Costas (Boletim no. 10) já apresenta a salvação em sua dinâmica

trinitária, pois afirma que o Espírito Santo participa da obra redentora, “O Espírito Santo é o

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Apostila de SoteriologiaRegina Fernandes Sanches

poder redentor de Deus”. É pelo Espírito que a salvação providenciada por Jesus Cristo se

processa na vida humana e no mundo.

Segundo o Novo Testamento, Jesus nasceu pelo poder do espírito (Mt. 1.18; Lc. 1.35). A encarnação é um feito direto do Espírito Santo. O Espírito esteve com ele desde a infância (Lc. 2.40) e desceu sobre ele em seu batismo (Mc. 1.10), levou-o ao deserto (Mc. 1.12) e o trouxe de volta à Galiléia com poder para pregar, curar e libertar (Lc. 4.14). De modo que Jesus foi ungido pelo Espírito para cumprir com a missão messiânica, para o que recebeu inspiração e direção. O Espírito é o poder por meio do qual ofereceu sua vida como sacrifício redentor (At. 9.13) e é também o elemento de sua ressurreição (Rm. 1.14).

O Espírito que potencializou a missão de Jesus no mundo é o mesmo que

potencializa a missão da Igreja. Costas, acrescenta que o Filho foi enviado ao mundo para salvá-

lo no poder do Espírito. Da mesma forma o Filho retorna ao Pai, mas envia o Espírito para que

efetive essa salvação no mundo, na dinâmica do seu poder. O Apocalipse afirma que a

consumação da salvação é uma obra que se realizará segundo a boa vontade do Pai, na

glorificação do Filho e pelo poder do Espírito Santo. Portanto, ela é uma ação trinitária desde

todos os tempos.

A Salvação e o Reino de Deus

Flávio Braga Faccio relaciona a salvação ao Reino de Deus e aos seus sinais

(Boletim no. 21). Ele alega que alguns entendem o Reino de Deus como manifestação histórica,

que ele se realiza na medida em que ocorrem as transformações sociais. Neste caso, a salvação é

também compreendida como um fato completamente histórico e relacionado às mudanças na

realidade concreta. Ele reconhece que a presença do Reino é também histórica e incide em

transformação da realidade sócio-histórica. Como poderia o Reino de Deus estar presente no

mundo e não afetá-lo de modo direto? Como pode a Igreja afirmar ser agente do Reino no

mundo e não participar da sua transformação? – Mas Flávio chama a atenção para o fato de que

o Reino é de Deus, portanto, ele está primeiramente relacionado à Deus. O pecado contra ele é

pecado contra Deus e vice-versa. Esta é uma situação que faz parte, mas também excede a

história humana. Ele lembra:

Os sinais do Reino de Deus, como vimos, são as manifestações da ação divina no mundo. Embora Deus sempre tenha manifestado sua soberania providencial na história, ele o faz de maneira especial em Jesus. Em Jesus o reino irrompeu na vida humana de forma definitiva. Cumpriu-se

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Apostila de SoteriologiaRegina Fernandes Sanches

o tempo determinado por Deus, inicia-se uma nova era, um tempo escatológico, que caminha para uma consumação final.

Em Jesus o Reino é inaugurado de forma derradeira na história. Nele se realiza o

que caracteriza o ano do Jubileu: tempo de libertação, tempo de salvação. Flávio acrescenta:

As atitudes de Jesus constituem sinais do Reino, pois através delas Deus restaura e promove a vida das pessoas. “Em Jesus a utopia do Reino começa a se concretizar historicamente. “ Deus se faz presente na cura dos enfermos, na ressurreição dos mortos, no anúncio do Evangelho aos pobres (Lc. 7:18-23).O perdão dos pecados é sinal do Reino porque também implica em restauração de vida. O perdão reintegra o indivíduo à comunhão com Deus e com o próximo, e produz nele a saúde psíquica que se expressa pela eliminação da culpa. A Bíblia nos mostra o anúncio do perdão tanto no ministério de Jesus (Lc. 5.20) como na vida da Igreja (At. 2.38).

Onde há promoção da justiça, restauração da vida; onde o amor prevalece ao

egoísmo; onde a libertação prevalece à dominação; onde o nome de Jesus prevalece ante a

qualquer outro, há presença do Reino de Deus e ali é lugar de esperança e de salvação.

Conclusão

Concluímos esta lição constatando que é tão rica e abrangente a compreensão de

salvação da TMI que precisaríamos de mais espaço para desenvolvê-la. No entanto sabemos que

salvação a partir dela não se refere a exclusivamente o alcance do espírito humano, mas deve

afetar diretamente o contexto problemático da América Latina. Ela também alcança a criação

como um todo e toda a realidade humana. Se realiza no tempo propício de Deus e visa resolver

primordialmente o problema do pecado da humanidade e suas implicações. Ela se realiza em

uma dinâmica trinitária e em função do Reino de Deus, em sua manifestação histórica e

escatológica.

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Aula 13 – Jesus Cristo, Salvação e Evangelização

Ms Regina F. Sanches

A Cristologia de Orlando Henrique Costas28, explicitada em sua Teologia Contextual da

Evangelização, parte de uma concepção protestante-evangelica, a partir de um contexto latino-

americano.

Em seus escritos ele aponta Jesus Cristo como a boa nova anunciada pela Igreja em

missão no mundo. Cristo também é o conteúdo do kerigma neotestamentário, o que faz com que

a cristologia resulte necessariamente em soteriologia, pois não há como pensar a Cristo sem

considerar a salvação por ele providenciada. Sua obra salvadora, realizada através da

encarnação, morte, ressurreição e ascensão é que possibilita aos homens e mulheres a verdadeira

libertação, entendida não somente na perspectiva sócio-política, mas integral, a partir da

compreensão do homem como um todo e que está no mundo fazendo parte de uma rede de

relações que o afetam e são afetadas por ele. Para Costas a libertação se dá principalmente em

relação ao pecado humano, que é também abrangente. Sobre isto ele afirmou: “o pecado... não

só é violência contra o próximo, mas é violência contra si mesmo. Traz a conseqüência da

alienação total do homem de seu próximo, da criação, do Criador e de si mesmo”, o que torna

necessário uma salvação integral, amplamente libertadora.

Para que isto seja possível, é preciso pensar em uma cristologia também integradora, que

considere a pessoa de Jesus Cristo em conjunto com sua obra. Para Costas “Uma dicotomia

entre a obra e a pessoa de Cristo compromete a autoridade e efetividade evangelizadora do feito

de Cristo” 29. É preciso considerar a Cristo também de forma integral e que sua obra alcança a

todos em todos os aspectos e a tudo neste mundo.

Uma cristologia integral terá como ponto de partida a encarnação de Cristo em sua

presença e obra histórica no mundo. Conceberá o fato “de que Deus se fez carne e habitou entre

28 Orlando Henrique Costas, pastor Batista, nascido em Porto Rico, naturalizado norte-americano, atuou na América Latina como pastor e missiólogo e produziu vários textos sobre a Evangelização Contextual, numa perspectiva evangélica e em diálogo com a Teologia da Libertação. Faleceu aos 45 anos vítima de câncer, mas sua teologia da evangelização tem sido objeto de estudos, dissertações e teses nos dias de hoje.29 Orlando H. COSTAS, Hacia uma Teologia de la Evangelización, p. 115.

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Apostila de SoteriologiaRegina Fernandes Sanches

os homens (Jn. 1.14)” 30, muito mais que isto, incorporou-se a esta humanidade “A encarnação

de Jesus aponta, pois, para sua necessária incorporação à humanidade pecadora”31, mas o faz

para salvar esta humanidade. Ele esclarece sobre isto:

Jesus se situa culturalmente, condicionado pelo tempo e o espaço. Não

leva a cabo sua missão evangelizadora em primeira instância como o

todo poderoso Filho de Deus, sim como pessoa enviada por Deus um

um momento particular da história e em uma situação cultural

específica. Se identifica com um povo concreto, fala sua língua e vê a

realidade desde sua situação sócio-cultural”32

A encarnação não possui um fim nela própria, mas encontra seu sentido em toda a obra

de Cristo.

A morte de Jesus dá sentido à sua encarnação. Conforme Orlando Costas ela significa

Redenção, ou seja, libertação humana de forma integral, envolvendo todos os aspectos da vida

humana afetados de alguma maneira pelo pecado. A morte de Jesus significa também Oferta

Substitutiva, onde o próprio Cristo é oferecido como propiciação pelo pecado da humanidade, à

luz da tradição sacrificial do Antigo Testamento. Conforme Costas “O sangue vertido, símbolo

de uma vida santa e imaculada, fez possível a saúde da humanidade,e por tanto, sua regeneração

e transformação”33. Mas, a cruz também é Reconciliação, onde todas as coisas são restauradas

em Jesus Cristo, possibilitando a nós um relacionamento amoroso com Deus, conosco, com o

próximo e com toda a criação.

Outro ponto a que remete a cristologia evangélica de Orlando Costas é a ressurreição

como cumprimento e selo da cruz. É da ressurreição que conforme ele se desprende o poder

reconciliador e redentor da cruz, tornando-se o ápice do kerigma cristológico. É por meio da

ressurreição que a liberdade e a vida são restituídas aos homens, que delas já podem usufruir em

sua vida no mundo, como antecipação da própria parousia.

A ascensão de Cristo aponta para a sua entronização, ministério intercessório, e ao

mesmo tempo em que Jesus Cristo é o Deus encarnado, que se fez homem, é também o Cristo

30 Idem, p. 116.31 Idem, p. 117.32 Orlando H. COSTAS, Evangelización Contextual, p. 45.33 Orlando H. COSTAS, Hacia uma Teologia de la Evangelización, p. 118.

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40

Apostila de SoteriologiaRegina Fernandes Sanches

cósmico, que sustenta tudo e no qual tudo subsiste. Neste sentido, a mensagem evangelizadora é

também a mensagem do senhorio de Jesus sobre todas as forças dominantes no mundo.

Mas, a cristologia da evangelização também remete para a escatologia. O Cristo que veio

ao mundo inaugurando o tempo escatológico, do reino que já se faz presente, é também o Cristo

que virá em cumprimento às suas próprias promessas. Nesta perspectiva, a evangelização além

de confrontar o homem com o seu presente e a libertação que Cristo oferece em sua realidade

histórica, confronta-o também com seu futuro e a necessidade da salvação numa perspectiva que

vai além do seu tempo histórico.

A evangelização que surge desta cristologia é um convite à fé e a esperança em Jesus

Cristo, bem como a perceber na vida os sinais concretos da presença e os efeitos da obra

salvadora de Cristo, que terão na parousia a sua plenitude.

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Apostila de SoteriologiaRegina Fernandes Sanches

MÓDULO IV – ANÁLISES TEMÁTICAS

Aula 14 – Salvação e Reino de Deus

O Reino de Deus: um conceito teológico

A teologia da missão assumiu o Reino de Deus como chave hermenêutica para o seu fazer

teológico. Ele perpassa toda dinâmica teológica, seja na tarefa hermenêutica em relação à

Palavra de Deus, na compreensão da natureza missionária da igreja como comunidade do reino,

como para o julgamento dos problemas que afetam o mundo e a realidade concreta da América

Latina.

A Palavra interpretada remeterá para a comunidade do Reino, que também se constitui,

por isso, como comunidade da Palavra no mundo. O mundo é o lugar do acontecimento da vida,

é realidade histórica, cultural, social, política e ecológica, do qual a igreja faz parte, mas como

comunidade do Reino e da Palavra. No Reino de Deus há justiça e liberdade diante Dele. A

Igreja como comunidade do Reino é, portanto, comunidade humana de justiça e de liberdade. A

vida da Igreja no mundo é vida em missão em torno da Palavra e em função do Reino de Deus.

O Reino de Deus se refere ao amplo e justo governo de Deus sobre toda a criação e, de

forma restrita, refere-se à organização de vida e de mundo que se realiza diante de Dele e em

correspondência à sua vontade, que é sempre boa e perfeita para toda a criação. Padilla explica o

reino como um “que não é deste mundo (Jo 18.36), e que portanto não ajusta sua política à dos

reinos da terra”. Para ele, Deus instalou seu próprio reino baseado no amor e na justiça, que está

presente na realidade humana, mais vai além “do transitório cenário da vida humana (Jo.

8.23)”34. Costas define como uma ordem de vida de natureza escatológica, em realização na

história: “Há que se admitir que essa ordem de vida é algo todavia futuro, pertencente ao

eschaton. Sem dúvida, sua vinda se vislumbra já, na vida e missão da Igreja”35. O Reino de

Deus deve, portanto, também ser compreendido na perspectiva escatológica que ele representa e

na perspectiva histórica da sua manifestação em Jesus Cristo.

34 PADILLA, Missão Integral, p. 95.35 COSTAS, Orlando. Hacia una Teología de la Evangelización. Buenos Aires: La Aurora, 1973. p. 14.

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Apostila de SoteriologiaRegina Fernandes Sanches

O Reino de Deus se fez presente no mundo através de Jesus Cristo, conforme Costas “uma

nova época caracterizada pelo reinado soberano de Deus em seu Filho”36. Esta presença é

sempre interpeladora, da igreja para corresponder a ele e assumir nela as suas características; do

mundo em favor da justiça, do arrependimento e da orientação da vida diante de Deus em

função do bem estar da criação.

A teologia do Reino de Deus se origina da tradição judaica e vétero-testamentária das

eras: era presente e era vindoura. A era presente era o tempo histórico vivido por Israel e a era

vindoura seria inaugurada pelo Dia de Yavé. Ricardo Foulkes explica tal expectativa da seguinte

forma: “uma intervenção catastrófica em que Deus traria o fim absoluto da história humana (Dn.

12.13); desde tal momento estabeleceria seu reino eterno em Jerusalém”37. Os teólogos do Novo

Testamento reinterpretam esta tradição judaica à luz da novidade de Jesus Cristo. Conforme eles

(Mc. 1.15) o dia de Yavé se realizou em Jesus Cristo, tanto quanto a inauguração do Reino de

Deus. Uma nova ordem foi iniciada por Jesus Cristo, que não nega a ordem vindoura e será de

consumação deste reino que Ele inaugurou. No entanto, como Jesus já introduziu na história

humana esta ordem futura, nela se manifesta os benefícios que lhe são característicos: salvação,

restauração da criação, justiça, paz e tudo o mais que a identifica e que encontrará a

plenificação na parusia.

O Reino de Deus vai além dos limites da Igreja, está atuante na história humana e na

criação em geral, mas a Igreja também o manifesta em sua vida. Costas argumenta que o tempo

do Reino é o tempo especial da ação de Deus no mundo: “É um momento decisivo, o kairós

(tempo apropriado) de Deus, no qual se faz presente em uma forma concreta e pessoal sua

soberana vontade entre os homens”38.

A principal descrição do Reino de Deus em sua presença no mundo é da restauração da

vida e da criação. Esta é a característica da nova ordem estabelecida por Deus em Jesus Cristo.

Onde Deus reina a vida se harmoniza. Mas a mensagem do reino é também de juízo, onde todos

são chamados a participar dele por meio de Jesus Cristo. A rejeição ao Reino é a rejeição à nova

ordem que ele estabelece. Onde não há sujeição ao Reino de Deus, impera a injustiça que é

36 COSTAS, Qué Significa Evangelizar Hoy? p. 17.37 FOULKES, Ricardo. Escatología y Misión. In.: COSTAS, Orlando. Hacia Una Teología de la Evangelización, op. cit., p. 76.38 COSTAS, op. cit., p. 17.

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Apostila de SoteriologiaRegina Fernandes Sanches

contrária à justiça, o egoísmo que é contrário ao amor e a morte que contrapõe a vida que ele

oferece. O Reino é anunciado pela palavra de Deus e tanto quanto a palavra, ele é acolhido pela

fé.

A Igreja não é o Reino, mas ela o expressa em sua vida no mundo. Afirmou Costas:

“como primícias de uma nova humanidade, a Igreja antecipa a vinda dessa nova ordem de vida

que terá como princípio a reconciliação de todas as coisas sob o reinado soberano de Deus39. O

Reino de Deus e sua justiça é que abrirão para o entendimento das Escrituras, na leitura

contextual. É na ótica do Reino de Deus e a sua justiça que se realiza o julgamento do contexto

histórico sócio-cultural e se faz a denúncia teológica das suas injustiças. A Igreja é naturalmente

a comunidade do Reino. Ela vive este Reino e o testemunha no mundo. Para participar dessa

nova ordem de vida e se incorporar à nova humanidade o caminho a ser trilhado é o da fé em

Jesus Cristo e em sua obra salvadora

Padilla esclarece que um dos problemas em relação ao papel da Igreja como comunidade

do reino é a própria compreensão de Igreja.

Daí também um conceito errado de igreja: muitos crentes vêem a igreja como um grupo privilegiado mas não um grupo com uma missão: missão de ser sal na terra e luz do mundo—uma presença comprometida e comprometedora. Qual é a missão da igreja? Salvar almas; mas é mais que isso. Tem a ver com o propósito de Deus de criar uma nova humanidade: pelo que a igreja é, faz, e diz, Deus comunica suas boas novas.::: Projeto Timóteo :: Incentivando Amizades Apoiando Ministérios :::

O resultado desta tarefa se constituirá no quarto ponto do círculo hermenêutico: a

formulação de uma nova teologia da missão. A missão da Igreja passa a ser compreendida na

perspectiva do Reino de Deus, em relação ao contexto e, como se verificará, para uma ação

integral.

39 Ibidem, p. 14.

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Apostila de SoteriologiaRegina Fernandes Sanches

Aula 15 – Escatologia e Salvação

Um dos temas da fé mais apropriados para a América Latina é o da Escatologia. Falar

de escatologia é falar de esperança e da restauração da criação como nos ensina Juan Stam; do

Reino de Deus como adverte Padilla e Carlos Del Pino. É falar da celebração apocalíptica que já

manifesta seus sinais em cada culto realizado nas mais diversas línguas, cores, jeitos e

representações humanas, onde a liberdade e a criatividade humana refletem a criatividade divina

e a biodiversa beleza do mundo. De fato, pensar em Escatologia é também fechar os olhos e

visualizar-se no centro da floresta amazônica ao final da tarde ouvindo a sinfonia dos animais

como se fosse o salmo 104 em pleno acontecimento.

Escatologia não é exclusivamente para onde caminhamos e o que aguardamos, mas o

que vivemos hoje. Vivemos o tempo escatológico de Deus, as últimas coisas, que se iniciaram

em Jesus Cristo com a inauguração do seu Reino e caminham para sua plena realização.

Escatologia e Esperança

Muitos teólogos tem se esforçado ao longo da história por enquadrar os planos de Deus

dentro de esquemas interpretativos acerca das últimas coisas. Estes esforços têm resultado em

linhas escatológicas divergentes, como: prémilenismo (histórico e dispensacionalista),

pósmilenismo, amilenismo e seus desdobramentos. No entanto, sabemos que não aprisionamos

os planos de Deus em nossas teorias, por mais que elas apresentem uma bela arquitetura. Não

passam de esforços muito humanos de compreensão e pré-visão do que possa acontecer. É em

vista disso e da exaustão desse modelo de teologia escatológica, que não nos ocuparemos dela.

Partimos do pressuposto que essa história aguarda seu desfecho em um momento que vai além

dela mesma. Onde a criação encontrará seu sentido final e sua realização plena na conformidade

do Reino de Deus, e se concretize o que foi anunciado em I Cor. 15.28: “E, quando todas as

coisas lhe estiverem sujeitas, então o próprio Filho se sujeitará àquele que todas as coisas lhe

sujeitou, para que Deus seja tudo em todos”.

Page 46: Teologia Da Salvacao - Apostila de Soteriologia

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Apostila de SoteriologiaRegina Fernandes Sanches

Juan Stam adverte sobre o perigo de se tratar da escatologia à parte da teologia em geral,

e o comprometimento do seu sentido histórico e missionário:

Quando a Escatologia (a “profecia”) se separa do resto da teologia, da história da salvação e da missão da Igreja, de fato perde seu sentido ou assume um sentido errado. Em vez de serem a conseqüente culminância de um longo processo de fé e missão, os “eventos do futuro” se reduzem a espetáculos sensacionalistas, sem o sentido profundo de que se revestem na Palavra de Deus40.

Ele ainda chama a atenção para as tendências de espetacularização do conteúdo escatológico e como isso não corresponde ao conteúdo bíblico.

... os grandes acontecimentos do futuro, que a Bíblia anuncia, não são meros fenômenos espetaculares nem ocorrências exóticas e inoportunas à lógica do processo histórico. Ao contrário, são a mais profunda revelação do sentido da história e da lógica da salvação41.

Caso não compreendamos isso nossa escatologia pode orientar erroneamente toda nossa

teologia, com base em um fatalismo histórico e na negação tanto dessa realidade e sua

importância para Deus, como de tudo aquilo que Ele criou e preza.

A satisfação de Deus não está na destruição, mortes, pragas e sofrimento, não que isto

não vá acontecer nos últimos tempos, mas faz parte do pesar de Deus. O que de fato deve nos

impressionar escatologicamente, é a salvação humana levada às suas últimas conseqüências, a

redenção da criação e vitória final de Jesus Cristo sobre todos os poderes e forças que

contrariavam a vontade libertadora de Deus. Essa é nossa esperança, que não é completamente

utópica pois já se realiza de certo modo na história.

De acordo com Timóteo Carriker a literatura apocalíptica realmente anuncia os

sofrimentos dos finais dos tempos:

... sofrimento agudo e transformação cataclísmica no caminho para o fim (Mateus 24.13; Marcos 13.13; 2ª. Timóteo 2.12; Tiago 5.11), pois as calamidades se agravarão cada vez mais. Contudo, o fim será, sem dúvida, salvífico, pois Deus terá a palavra final42.

A esperança escatológica, portanto, tem a ver com a vida e a liberdade de sua realização

plena, não com vingança e morte. Isso é tão verdadeiro que Paulo afirma que a morte será o

último inimigo a ser destruído, até mesmo porque ela já foi vencida na ressurreição de Jesus

40 STAM, Juan. Profecia Bíblica e Missão da Igreja, p. 09.41 Ibidem, p. 1442 CARRIKER, Timóteo. Missão Integral, p. 259.

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Apostila de SoteriologiaRegina Fernandes Sanches

Cristo (I Cor. 15.26). Isto torna a mensagem do evangelho uma mensagem também de

esperança, não de morte ou medo. É o anuncio da vida em Jesus Cristo.

Mas, a própria escatologia em realização na história nos convoca a também viver

esperança na história e em nossa vida no mundo. O fatalismo é contra a esperança e é sua mais

veemente negação.

A esperança nos leva a verificar (tornar verídico) em nosso contexto que em Cristo todos

somos vivificados (I Cor. 15.22) e em sua ressurreição a morte foi vencida, portanto, não

domina mais. Em sua missão no mundo, a Igreja é aquela que denuncia a morte onde quer que

aconteça nas suas mais diversas formas. Tudo o que é sinal de morte é contra Jesus Cristo e sua

obra vivificadora no mundo. Em relação a isso, mas destacado por Paulo, está a destruição de

todo domínio, autoridade e poder (15.24). Diz respeito à todas aquelas forças (espirituais e não

espirituais), à parte de Deus, que imperam no mundo e promovem a morte. As forças e poderes

que promovem a vida verdadeira, não o fazem por si próprias, mas por causa de Deus e da ação

do Espírito Santo no mundo, portanto, não possuem razão em si próprias (a não ser que se creia

que possa existir bem e vida verdadeira no mundo à parte de Deus).

Paulo encerra essa reflexão em I Cor. 15, mostrando que se não há esperança não há

sentido para o sofrimento da exposição a perigos, na luta pelo evangelho e pelos irmãos. Se a

ressurreição e a vida eterna não são verdadeiras, resta-nos viver de qualquer forma a vida e, ao

final, nos entregar nos braços da morte eterna. Mas, ele admoesta “voltem à sobriedade”, pois as

coisas não são assim e, então, nos chama à esperança: “Portanto, meus amados irmãos, sede

firmes e constantes, sempre atuantes na obra do Senhor, sabendo que nele o vosso trabalho não

é inútil”.. (I Cor. 15.58).

Escatologia e a restauração da criação

Para iniciarmos essa discussão destacamos um texto do Rev . Emilio A. Núñez:

A mensagem da providência de Deus é bíblica, teológica e missiológica. Nos ensina que o Deus da criação é também o Deus da providência; que Ele é transcendente e imanente em relação com o que foi criado; que Ele se interessa pelos pequenos e grandes detalhes de nossa existência pessoal; que Ele pode guiar-nos no caminho de sua vontade agradável e perfeita; que Ele tem

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Apostila de SoteriologiaRegina Fernandes Sanches

um propósito para nossa própria vida, para todos os seres humanos, e para toda a criação sem excluir o mundo físico. Este propósito se cumprirá plenamente na renovação que está por vir. Todavia, Ele segue trabalhando em seu mundo (Jo. 5.17) e convidando-nos a colaborar com Ele na realização de seu plano soberano43.

Para Núñez o tratamento acerca das coisas que hão de vir passa por um bom

entendimento da providência divina. Ele ainda afirma “... a providência divina dirige nosso

olhar para a criação dos céus e da terra, e a constante atividade de Javé Elohim, no devir de

séculos e milênios, para preservar o que Ele mesmo tem criado” (Núñez, p. 129.).

Juan Stam também observa que não há como entender a salvação, principalmente seu

conteúdo escatológico, sem uma clara compreensão da criação:

De fato, sem a criação é impossível entender corretamente a salvação nem a missão; por isso urge uma teologia da criação. O propósito redentor de Deus não é somente “salvar almas” tampouco redimir pessoas. A meta de todo o plano de salvação é restaurar, amplamente e em versão melhorada, o que a primeira criação não cumpriu nas intenções divinas. O grande propósito de Deus é “fazer convergir nele, na dispensação da plenitude dos tempos, todas as coisas (Ef. 1.10). Toda a criação vai em direção a essa “glória vindoura”, que é a meta final da história da salvação44.

A redenção visa à restauração da criação. Restauração, no exemplo da arte, não é um

simples concerto de algo quebrado ou desgastado pelo tempo, mas tem a ver com a tarefa de

torná-la como o modelo original. Para isso, os restauradores utilizam o mesmo material ou outro

de melhor qualidade da peça original e buscam corresponder à inspiração do primeiro artista. O

mesmo acontece com a criação. Não há bases bíblicas para se afirmar que Deus desistiu dela ou

a abandonou à própria sorte e a conduzirá à destruição, ao contrário, percebemos todos os dias o

cuidado redentor de Deus sobre aquilo que Ele criou. Essa restauração é percebida na ação

missionária da Igreja. A restauração da vida, que faz reerguer a cana quebrada e reacender o

pavio que fumega, ou seja, faz a vida ressurgir onde parecia que já havia esvaído. De fato, o

amor missionário da Igreja em cooperação com a ação vivificadora do Espírito Santo,

desencadeia a capacidade de resiliência da criação dada pelo próprio Deus.

A restauração como conseqüência da ação redentora de Deus, já se efetiva na história

por meio da missão da Igreja, mas terá na parusia sua manifestação final e perfeita.

43 NÚÑEZ. Emilio A. Hacia uma Misionología evangélica latino-americana, p. 132.44 STAM. Profecia Bíblica e Missão da Igreja, p. 95.

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Apostila de SoteriologiaRegina Fernandes Sanches

Escatologia e Reino de Deus

Carlos Del Pino (Pastor e teólogo presbiteriano brasileiro) esclarece que a idéia de Reino

de Deus é compreendida no Antigo Testamento no uso do termo malkuth, que possui o sentido

de “rei”, “reino”, “domínio”, conforme suas variações. O termo foi utilizado em vários textos

para se referir ao reinado de Deus e seu amplo domínio, como é o caso de Salmo 5.3, 47.3,

18.51, Dt. 33.5. No Novo Testamento o termo utilizado é basiléia, que também se refere à reino,

autoridade e domínio. Ele aparece nos sinóticos em referência à Jesus Cristo e seu poder na

condição de Messias. Conforme Del Pino:

Jesus empregou a frase Reino de Deus ou Reino dos Céus para indicar aquela ordem perfeita das coisas, às quais ele estava para estabelecer, onde as pessoas de todas as nações que cressem nele, seriam reunidas numa sociedade dedicada a Deus e intimamente unidas a Ele, feitos participantes da salvação eterna. É descrito como um reino que começou agora, que sua fundação já fora estabelecida por Cristo e seus benefícios realizados entre os homens que crêem nele (Mt. 11.12; 12.28)45.

A presença do Reino de Deus na terra e na história humana é a escatologia em

acontecimento. Tanto quanto não dá para dissociar criação de salvação e missão, não há como

separar a escatologia da idéia de Reino de Deus. Pois este se refere tanto à dinâmica da ação de

Deus no mundo, como ao seu pleno domínio no final dos tempos.

O conceito de Reino é apropriado pois tem a ver com governo, nesse caso, governo de

Deus. A Palavra de Deus afirma que Deus é justo, no sentido amplo e perfeito do termo.

Concluímos então que o Reino de Deus se caracteriza pela justiça e, por conseguinte, se

contrapõe à toda forma de injustiça que há no mundo. Se a Igreja é a comunidade do Reino, ela

é necessariamente a comunidade da justiça, tanto em sua vivência interna como na realização da

missão.

Padilla esclarece que tratar de Reino de Deus é também tratar da redenção da criação e

da própria missão da Igreja no mundo, que se dá em relação à ele.

Falar de Reino de Deus é falar do propósito redentor de Deus para toda a criação e da vocação histórica que a Igreja tem com respeito a este propósito aqui e agora, “entre os tempos”. É também falar de uma realidade escatológica que constitui simultaneamente o ponto de partida e a meta da igreja. A missão

45 PADILLA, René; DEL PINO, Carlos. Reino Igreja e Missão, p. 13.

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da igreja, conseqüentemente, só pode ser entendida à luz do Reino de Deus46.

Ele ainda descreve como características da presença desse Reino no mundo:

... o Reino é o poder dinâmico de Deus que se torna visível por meio de sinais concretos que mostram que Jesus é o Messias. É uma nova realidade que entrou no centro da história e que afeta a vida humana não somente moral e espiritualmente, mas também física e psicologicamente, material e socialmente. Em antecipação da consumação escatológica do final dos tempos, ele foi inaugurado na pessoa e obra de Cristo... A consumação do propósito de Deus se realizará no futuro, mas aqui e agora é possível vislumbrar a realidade presente do Reino47.

Ainda de acordo com Padilla o Reino de Deus atua no mundo através do Espírito Santo,

o mesmo Espírito que faz existir a Igreja e que impulsiona sua missão no mundo. No entanto,

como sinal concreto do Reino ela deve demonstrar os sinais desse reino. Isto significa a

denúncia do mal, onde quer que ele se manifeste; a prática da justiça não como opção, mas

como aspecto da sua própria natureza; a manifestação no mundo como comunidade

querigmática, adoradora e terapêutica, enfim, a comunidade da missão integral.

Quanto à celebração da nova criação como desfecho da história da salvação, é muito

bem comentada por Juan Stam, com o qual encerramos este estudo:

... especialmente na adoração vivemos a esperança da nova criação. O tema da criação é central em todo o Apocalipse e é expresso de forma suprema no culto celestial de Ap. 4-5... O trono de Deus está sob o signo do arco-íris (Gn 12-17). Os quatro “seres viventes” são os mais próximos do trono divino, e os 24 anciãos (dignitários) louvam aquele que está sentado por ter criado todas as coisas (Ap. 4.10). O culto culmina com a adoração a Deus e ao Cordeiro por toda a criação no céu, sobre a terra e debaixo da terra (Ap. 5.13). Em nossa adoração, nós unimos nossas vozes ao coro celestial. No culto, adoramos a Deus doxologicamente pela primeira criação e antecipadamente pela nova criação. Antecipamos e celebramos as realidades prometidas e nos comprometemos a viver de acordo com elas (Ap. 5.14)48.

46 PADILLA, C. René. Missão Integral, p. 19847 PADILLA, p. 199.

48 STAM, Profecia Bíblica e Missão da Igreja, p. 98.

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ANEXO 1A TEOLOGIA DE JOÃO CALVINO

 Alderi Souza de Matos (http://www.mackenzie.br/15914.html)

       As concepções teológicas do reformador João Calvino (1509-1564) estão contidas na sua vasta obra, especialmente em seu opus magnum, a Instituição da Religião Cristã ou Institutas.        1. AS INSTITUTAS        No prefácio da 1ª Edição das Institutas (1536), Calvino afirmou o seguinte:        “Pretendi apenas fornecer algum ensino elementar através do qual qualquer pessoa que tenha sido tocada por um interesse na religião pudesse ser educada na verdadeira piedade. E fui especialmente diligente nessa obra por causa do nosso próprio povo da França. Vi muitos deles com fome e sede de Cristo, mas muito poucos imbuídos com até mesmo um pequeno conhecimento dele. Que é isto que propus, o próprio livro testifica através de sua forma de ensino simples e até mesmo rudimentar”.        Essa primeira edição tinha apenas seis capítulos, que tratavam dos seguintes temas: (1) A lei: exposição do Decálogo; (2) A fé: exposição do Credo dos Apóstolos; (3) A oração: exposição da Oração Dominical; (4) Os sacramentos; (5) Os cinco falsos sacramentos; (6) A liberdade cristã, o poder eclesiástico e a administração política.        Na 2ª edição das Institutas (1539), o reformador passou a ter outro objetivo em mente:        “Minha intenção nesta obra foi preparar e treinar de tal modo na leitura da Palavra Divina os aspirantes à teologia sagrada que eles possam ter fácil acesso à mesma e depois nela prossigam sem tropeçar. Pois penso que abrangi de tal maneira a suma da religião em todas as suas partes, dispondo-a em ordem, que todos os que a assimilarem corretamente não terão dificuldade em determinar tanto o que devemos buscar de modo especial nas Escrituras quanto para que objetivo devem direcionar tudo o que está contido nas Escrituras”.          2. CATEGORIAS DE ESCRITOS        As concepções teológicas de Calvino se encontram em seis categorias de escritos:        1. As Institutas: Calvino produziu ao todo oito edições do texto latino (1536-1559) e cinco traduções para o francês. A 1ª edição tinha apenas seis capítulos; a última totalizou oitenta. Equivale em tamanho ao Antigo Testamento mais os Evangelhos sinóticos e segue o padrão geral do Credo dos Apóstolos. Visava ser um guia para o estudo das Escrituras.        Livro I:    O Conhecimento de Deus, o Criador: o duplo conhecimento de Deus, as Escrituras, a Trindade, a criação e a providência.

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       Livro II:   O Conhecimento de Deus, o Redentor: a queda e a corrupção humana, a Lei, o Antigo e o Novo Testamento, Cristo o Mediador – sua pessoa (profeta, sacerdote, rei) e sua obra  (expiação).        Livro III: A Maneira Como Recebemos a Graça de Cristo, Seus Benefícios e Efeitos: fé e regeneração, arrependimento, vida cristã, justificação, predestinação, ressurreição final.        Livro IV: Os Meios Externos Pelos Quais Deus nos Convida Para a Sociedade de Cristo: a igreja, os sacramentos, o governo civil.        2. Comentários: são um complemento das Institutas. Calvino escreveu comentários de todos os livros do Novo Testamento, exceto 2 e 3 João e Apocalipse, e sobre o Pentateuco, Josué, Salmos e Isaías.        3. Sermões: Calvino expunha sistematicamente os livros da Bíblia. Ele costumava pregar sobre o Novo Testamento aos domingos e sobre o Velho Testamento durante a semana. Seus sermões eram anotados taquigraficamente por um grupo de leais refugiados franceses. A série Corpus Reformatorum contém 872 sermões de Calvino.        4. Folhetos e tratados: temas apologéticos (contra católicos e anabatistas) e gerais.        5. Cartas: escritas a outros reformadores, soberanos, igrejas perseguidas e protestantes encarcerados, pastores, colportores.        6. Escritos litúrgicos e catequéticos: confissão de fé, catecismo, saltério.          3. A PERSPECTIVA TEOLÓGICA DE CALVINO        3.1. O conhecimento de Deus       · A verdadeira sabedoria consiste de dois elementos: o conhecimento de Deus e o conhecimento de nós mesmos. Daí a importância da revelação. Não podemos conhecer a Deus em sua essência, mas somente na medida em que ele se dá a conhecer a nós.       · Existe um duplo conhecimento de Deus: como criador e como redentor. Todo ser humano é essencialmente uma criatura religiosa, tendo em si a “semente da religião”. Deus se revela não só através desse senso inato de si mesmo, mas também através das maravilhas da criação.       · Esse conhecimento de Deus revelado na natureza exige uma resposta humana, seja de piedade ou idolatria. O fim último da piedade não é a salvação individual, mas a glória de Deus.        3.2. A condição humana       · O pecado torna a revelação natural totalmente insuficiente para o correto conhecimento de Deus. Ela tem somente uma função negativa – deixar os seres humanos inescusáveis por sua idolatria. O ser humano encontra-se perdido como que em um labirinto. A imagem de Deus ainda permanece nele, mas foi totalmente distorcida e desfigurada.

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       3.3. O Deus que se revela       · Todo verdadeiro conhecimento de Deus decorre do fato de que Deus, em sua misericórdia, houve por bem revelar-se. Calvino usa aqui o conceito de “acomodação” ou adaptação. Deus desce ao nosso nível, adapta-se à nossa capacidade. Vemos isso na encarnação, nas Escrituras, nos sacramentos e na pregação.       · Nas Escrituras, Deus balbucia a nós, fala-nos como uma ama fala a um bebê. Outra figura: a Bíblia é como óculos divinos para os que são espiritualmente míopes. Assim, a verdadeira teologia é uma reverente reflexão sobre a revelação escrita de Deus; não deve, pois, perder-se em “vãs especulações”, mas ater-se às Escrituras.        3.4. A doutrina das Escrituras       · A Bíblia é a Palavra de Deus inspirada, revelada em linguagem humana e confirmada ao crente pelo testemunho interno do Espírito Santo. Calvino tratava o texto bíblico tanto reverentemente quanto criticamente (por exemplo, At 7.14 e Gn 46.27). A capacidade de reconhecer a Bíblia como a Palavra de Deus não depende de provas, mas é um dom gratuito do próprio Deus.       · Calvino afirma a unidade entre a Palavra e o Espírito contra dois erros opostos. Os católicos subestimavam o papel da iluminação ao subordinarem as Escrituras à igreja. Calvino, como Lutero, afirmou que as Escrituras foram o ventre do qual nasceu a igreja, e não vice-versa. Por outro lado, os “fanáticos” concentravam-se de tal modo no Espírito que subestimavam a Palavra escrita.       · Toda a teologia de Calvino foi elaborada dentro destes parâmetros: a objetividade da revelação divina nas Escrituras e o testemunho iluminador do Espírito Santo no crente. A verdadeira teologia deve manter-se dentro dos limites da revelação.       · A função principal das Escrituras é a nossa edificação, capacitando-nos a ver o que de outro modo seria impossível. Seu propósito é revelar o que precisamos saber sobre Deus e nós mesmos.          4. O DEUS QUE AGE        4.1. O Deus trino       · Calvino deu mais atenção à doutrina da trindade que Lutero ou Zuínglio. Ele basicamente sustentou a doutrina da igreja antiga de que Deus é uma única essência que subsiste em três pessoas distintas: Pai, Filho e Espírito Santo. Ele advertiu quanto a especulações sobre o mistério da essência divina e recusou-se a torcer a Escrituras para sustentar essa doutrina.       · Como no caso de Atanásio, no quarto século, a Trindade era fundamental por ser um testemunho da divindade de Jesus Cristo e, assim, da certeza da salvação realizada por ele. Somente alguém que era verdadeiramente Deus poderia redimir os que estavam totalmente perdidos.       · A fé na trindade é confessada na liturgia do batismo e na doxologia, não para definir plenamente o ser de Deus, mas somente para permanecer em silêncio diante do mistério da sua presença (Agostinho).        4.2. Criação

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      · A seguir, ainda no Livro I das Institutas, Calvino descreve a atividade de Deus em relação ao mundo na criação e na providência. O mundo criado é o “deslumbrante teatro” da glória de Deus. Depois que as pessoas são iluminadas pelo Espírito Santo e têm o auxílio dos “óculos” das Escrituras, a criação pode fornecer um conhecimento de Deus mais lúcido e edificante (teologia da natureza), fortalecendo a fé dos crentes.       · Deus criou o mundo a partir do nada (ex nihilo). O mundo foi criado para a glória de Deus, mas também para o benefício da humanidade. Os crentes devem contemplar a bondade de Deus em sua criação de tal modo que seus próprios corações sejam despertados para o louvor (Jonathan Edwards).        4.3. Providência       · Calvino reflete acerca do caráter precário e incerto da vida humana sobre a terra. Sua doutrina da providência não reflete um otimismo piedoso, mas resulta de uma avaliação realista das vicissitudes da vida e da ansiedade que elas produzem.      · Ele critica duas concepções errôneas: o fatalismo e o deísmo. A doutrina estóica do destino pressupõe que todos os eventos são governados pela necessidade da natureza. Calvino pondera que, na concepção cristã, o “regente e governador de todas as coisas” não é uma força impessoal, mas o Criador pessoal do universo, que em sua sabedoria decretou desde a eternidade o que iria fazer e agora em seu poder realiza o que decretou.       · Ele também combate a idéia de que Deus fez o mundo no princípio, mas depois o deixou entregue a si mesmo. Como mostram as Escrituras, Deus está contínua e eficazmente envolvido no governo da sua criação. Assim, a providência é uma espécie de continuação do processo criador, tanto nos grandes como nos pequenos eventos.       · Essa ênfase na atividade imediata e direta de Deus no mundo leva Calvino a rejeitar a teoria traducianista da origem da alma, a idéia de que a alma é transmitida de geração a geração pelo processo da procriação humana (Lutero). Calvino cria que, toda vez que uma criança é gerada, Deus cria uma nova alma ex nihilo.       · Apesar de sua interação direta com o mundo, Deus também pode usar causas secundárias para realizar a sua vontade. Ele pode até mesmo usar instrumentos maus (como Satanás e suas hostes), transformando o mal em bem.       · Se Deus decreta cada evento, onde fica a responsabilidade humana? Calvino responde que a providência de Deus não atua de modo a negar ou tornar desnecessário o esforço humano. As próprias ações humanas são um dos meios pelos quais Deus realiza os seus propósitos.       · O governo divino de todos os eventos não torna Deus o autor do pecado? Assim como Lutero, Calvino distingue entre a vontade revelada e a vontade oculta de Deus. Ao enviar Cristo para a cruz, a Bíblia diz que Herodes e Pilatos estavam cumprindo o que Deus havia determinado (Atos 4.27-28). Ao mesmo tempo, eles também estavam violando a vontade expressa de Deus revelada em sua lei.       · Vez após vez Calvino apela ao mistério e incompreensibilidade das ações de Deus. O problema do mal é tão difícil precisamente porque não podemos entender como as tragédias da vida contribuem para a maior glória de Deus.       · A fé verdadeira percebe que, por trás dos sofrimentos, que em si mesmos são maus, existe um Pai de justiça, sabedoria e amor que prometeu nunca abandonar-nos. Nessas questões, não se pode submeter Deus aos padrões humanos de julgamento.    

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      5. O CRISTO QUE SALVA        5.1. A doutrina do pecado       · A partir do Livro II das Institutas, Calvino trata de Deus, o Redentor. Calvino geralmente é visto como o autor de uma concepção totalmente pessimista do ser humano. Todavia, o reformador sempre mostrou profunda apreciação pelas realizações humanas na ciência, literatura, arte e outras áreas, atribuindo-as à graça comum de Deus. A imagem de Deus no ser humano está terrivelmente deformada, mas não inteiramente apagada.       · Todavia, as muitas virtudes e dons da natureza humana nada valem para alcançar a justificação. Para entender plenamente a natureza humana, é preciso olhar para Jesus Cristo, o verdadeiro ser humano.       · Calvino define o pecado original como “uma depravação e corrupção hereditária de nossa natureza, difundida em todas as partes da alma, que primeiramente nos torna sujeitos à ira de Deus e depois também produz em nós aquelas obras que a Escritura chama de ‘obras da carne’” (Inst., 2.1.8).       · Vale destacar dois aspectos: (a) não podemos simplesmente culpar Adão por nossa condição pecaminosa; o pecado de Adão é também o nosso pecado; (b) o pecado original não se limita a uma dimensão da pessoa humana, mas permeia toda a vida e a personalidade.       · Pecado não é somente o ato, mas a inclinação da própria natureza humana em sua condição decaída. Cometemos pecados porque somos pecadores. A essência do pecado de Adão, que se repete em diferentes graus nos seus descendentes, é orgulho, desobediência, incredulidade e ingratidão. Somente a consciência da nossa total pecaminosidade pode preparar-nos para ouvir as boas novas da libertação do pecado através de Jesus Cristo.        5.2. A pessoa de Cristo       · A teologia de Calvino é profundamente cristocêntrica e o tema que domina a sua cristologia não é o conhecimento de Cristo em sua essência, mas em seu papel salvífico como Mediador. A revelação de Deus em Cristo é o supremo exemplo da sua acomodação à capacidade humana. Precisamos de um Mediador tanto por sermos pecadores quanto por sermos criaturas.       · Cristo como Mediador é verdadeiro Deus e verdadeiro homem (1 Tm 3.16). Ele é o Verbo eterno de Deus gerado do Pai antes de todas as eras, que, em sua encarnação, ocultou a sua divindade sob o “véu” da sua carne.       · Uma formulação peculiar da cristologia de Calvino é o chamado extra Calvinisticum: a noção de que o Filho de Deus tinha uma existência “também fora da carne”. Ver Institutas 2.13.4.        5.3. A obra de Cristo       · Mais importante que conhecer a essência de Cristo é conhecer com que propósito ele foi enviado pelo Pai. Calvino explicou a obra de Cristo em conexão com o seu tríplice ofício de Profeta, Rei e Sacerdote, todos os quais eram ungidos no Antigo Testamento, prefigurando o Messias.       · Como Profeta, ele foi ungido pelo Espírito para ser arauto e testemunha da graça de Deus, fazendo-o através do seu ministério de ensino e pregação. Na qualidade de Rei, Cristo atua como o vice-regente do Pai no governo do mundo; um dia sua vitória e senhorio se manifestarão plenamente. Em seu ofício sacerdotal, ele foi um Mediador puro e imaculado que aplacou a ira de Deus e fez perfeita satisfação pelos pecados humanos.

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      · Calvino observa que Deus poderia resgatar os seres humanos de outra maneira, mas quis fazê-lo através do seu Filho. Ele dá ênfase não tanto à justiça de Deus, mas à sua ira e amor, ambas ilustradas na obra de Cristo. Não somente a morte de Cristo tem efeito redentor, mas toda a sua vida, ensinos, milagres e sua contínua intercessão nos céus, à destra do Pai. A obra expiatória de Cristo tem também um aspecto subjetivo, pelo qual somos chamados a uma vida de obediência.          6. A VIDA NO ESPÍRITO       · Toda a obra de Calvino pode ser interpretada como um esforço de formular uma espiritualidade autêntica, isto é, uma vida no Espírito, baseada na Palavra de Deus revelada, vivida no contexto da igreja e direcionada para o louvor e a glória de Deus. O Livro 3 das Institutas é um belo tratado sobre a vida cristã no qual Calvino elabora uma grande quantidade de tópicos como a obra do Espírito Santo, fé e regeneração, arrependimento, negação de si mesmo, justificação, santificação, oração, eleição e ressurreição. Três deles merecem destaque especial:        6.1. Fé       · Calvino começa por rejeitar certas noções equivocadas: “fé histórica” (mero assentimento intelectual), “fé implícita” (submissão ao juízo coletivo da igreja), “fé informe” (estágio preliminar da fé). O que é então a fé? “Um conhecimento firme e certo da benevolência de Deus para conosco, fundada na verdade da promessa dada gratuitamente em Cristo, revelada a nossas mentes e selada em nossos corações pelo Espírito Santo” (Institutas 3.2.7).       · Antes de ser uma capacidade inata do ser humano, é um dom sobrenatural do Espírito Santo. É também uma resposta humana genuína pela qual os eleitos ingressam na sua nova vida em Cristo. Entre os efeitos da fé estão a regeneração, o arrependimento e o perdão dos pecados.       · O arrependimento é “a verdadeira conversão de nossa vida a Deus, procedente de um sincero e real temor de Deus, que consiste da mortificação de nossa carne e do velho homem e da vivificação do espírito” (Inst. 3.3.5). É um processo contínuo que deve estender-se por toda a vida.       · Embora possa ser assaltada por dúvidas, a fé verdadeira por fim triunfará sobre todas as dificuldades. Os descrentes podem, quando muito, ter uma “fé temporária”. Já os crentes verdadeiros, ainda que cometam pecados, mesmo pecados graves, são sustentados pelo Espírito e finalmente não irão perder-se.        6.2. Oração       · O mais longo capítulo das Institutas é dedicado à oração, que Calvino chamou “o principal exercício da fé e o meio pelo qual recebemos diariamente os benefícios de Deus”. Porém, se toda a vida cristã, desde o primeiro passo até a perseverança final, é um dom de Deus, por que orar? A resposta é que os fiéis não oram para informar ou convencer Deus de alguma coisa, mas para expressarem sua fé, confiança e dependência dele.       · Calvino propôs quatro regras para a oração: (a) reverência: evitar toda ostentação ou arrogância; (b) contrição: deve proceder de um coração arrependido; (c) humildade: ter em mente a glória de Deus; (d) confiança: firme esperança de que a oração será respondida. Isso se aplica tanto à oração individual quanto às orações coletivas da igreja. A oração é a parte principal do culto a Deus (Is 56.7; Mt 21.13).

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       6.3. Predestinação       · Calvino usou a palavra “predestinação” pela primeira vez na edição de 1539 das Institutas. A sua doutrina nessa área não tem nada de original: nos pontos essenciais ele não difere de Lutero, Zuínglio ou Bucer, os quais recorreram todos a Agostinho. A inovação de Calvino consistiu no lugar em que colocou a doutrina em seu sistema teológico, não em conexão com a doutrina da providência (Livro I), mas no final do Livro III, que trata da aplicação da obra da redenção.       · Calvino não começou com a predestinação e depois foi para a expiação, regeneração, justificação e outras doutrinas. Ele a introduziu como um problema resultante da pregação do evangelho. Por que, quando o evangelho é proclamado, alguns respondem e outros não? Nessa diversidade, ele afirmou, torna-se manifesta a maravilhosa profundidade do juízo de Deus. Trata-se, pois, de uma preocupação pastoral.       · A doutrina de Calvino sobre a predestinação pode ser resumida em três termos: (a) absoluta: não é condicionada por quaisquer circunstâncias finitas, mas repousa exclusivamente na vontade imutável de Deus; (b) particular: aplica-se a indivíduos e não a grupos de pessoas; Cristo não morreu por todos indiscriminadamente, mas somente pelos eleitos; (c) dupla: Deus em sua misericórdia ordenou alguns indivíduos para a vida eterna e em sua justiça ordenou outros para a condenação eterna.       · Calvino cria que essa doutrina era claramente encontrada nas Escrituras e não queria dizer nada sobre a predestinação que não pudesse ser tomado da Bíblia. Ele também não permitiu que a doutrina fosse usada como desculpa para não proclamar o evangelho a todos. De fato, na história da igreja, alguns dos maiores evangelistas e missionários foram firmes defensores dessa doutrina (George Whitefield, Jonathan Edwards).          7. OS MEIOS EXTERNOS DE GRAÇA       · No Livro IV das Institutas, Calvino trata dos seguintes temas: a igreja verdadeira e seus oficiais, o desvios do romanismo, os sacramentos, o governo civil. Calvino também aborda essas questões nos seus comentários das Epístolas Pastorais.        7.1. Pressupostos       · Calvino, mais que os outros reformadores, preocupou-se com a relação entre a igreja invisível e a igreja como uma instituição que pode ser reconhecida como verdadeira através de certas marcas distintivas. As marcas que constituem a igreja visível são, acima de tudo, a correta pregação da Palavra e a fiel ministração dos sacramentos. Embora não tenha incluído a disciplina eclesiástica entre as marcas da igreja, ele certamente a valorizava.       · A preocupação de Calvino com a ordem e a forma da congregação resultou de sua ênfase na santificação como o processo e o alvo da vida cristã. Em contraste com a ênfase luterana unilateral na justificação, Calvino deu precedência à santificação. O contexto da santificação é a igreja visível, na qual os eleitos participam dos benefícios de Cristo não como indivíduos isolados, mas como membros de um corpo. Assim, a igreja visível torna-se uma “comunidade santa”.       · A eclesiologia de Calvino tem dois pólos em contínua tensão: a eleição divina (igreja invisível) e a congregação local (igreja visível). Por isso, a igreja ao mesmo tempo enfrenta perigos mortais e é preservada por Deus. A igreja visível é um corpo misto composto de trigo e

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joio; já a igreja invisível compõe-se de todos os eleitos (inclusive anjos, fiéis do Velho Testamento e eleitos que se encontram fora da igreja verdadeira).        7.2. A igreja como mãe e escola       · A igreja é a mãe de todos os crentes porque os leva ao novo nascimento através da Palavra de Deus, bem como os educa e alimenta durante toda a sua vida. Esse caráter maternal da igreja é visto de modo especial na sua ministração dos sacramentos.       · O batismo é o ingresso do crente na igreja e o símbolo de sua união com Cristo. Ele visa confirmar a fé dos eleitos, mas deve ser aplicado a todos os que estão na igreja visível. Quanto à Santa Ceia, Calvino adotou uma posição intermediária entre Lutero e Zuínglio. Embora Cristo esteja nos céus à destra do Pai, a ceia não é mero símbolo, mas um meio de “verdadeira participação” em Cristo (Inst. 4.17.10-11).       · A igreja é também uma escola que instrui seus alunos no caminho da santidade. Essa instrução perdura por toda a vida e também se dirige aos alunos rebeldes, na esperança de que um dia sejam transformados.        7.3. Ordem e ofício       · Calvino encontrou nas Escrituras o quádruplo ofício de pastor, mestre, presbítero e diácono, que é a base da forma de governo incorporada nas Ordenanças Eclesiásticas.       · Ele cria que os ofícios de profeta, apóstolo e evangelista eram temporários e cessaram no final da era apostólica. Dentre os ofícios que permaneceram, o de pastor é o mais honroso e o mais necessário para a ordem e o bem-estar da igreja. Depois da aceitação de doutrinas puras, a nomeação de pastores é a coisa mais importante para a edificação espiritual da igreja.       · Para ser escolhido, o aspirante deve preparar-se e depois ser comissionado publicamente segundo a ordem prescrita pela igreja. Em Genebra, esse processo incluía a companhia de pastores, o conselho municipal e a igreja. A ordenação é um rito solene de instalação no ofício pastoral.       · As funções dos pastores são ensino, pregação, governo e disciplina. Os pastores devem ter um profundo conhecimento das Escrituras para que possam instruir corretamente as suas igrejas. Sua pregação deve revelar conhecimento e habilidade para ensinar. A pregação visa a edificação da igreja e deve ser prática e perspicaz. A função disciplinar do pastor requer que a sua própria conduta esteja acima de qualquer suspeita.        7.4. A igreja e o mundo       · Calvino rejeitou o conceito anabatista de que a igreja devia isolar-se da sociedade e cultura circundantes. A relação entre a igreja e o mundo inclui tanto tensão quanto interação. O seu entendimento do governo de Deus e da soberania de Cristo sobre toda a criação, e não somente sobre a igreja, levou-o a defender a participação na sociedade.       · O governo de Cristo deve manifestar-se idealmente através de governantes piedosos. Os magistrados deviam manter a ordem cívica e a uniformidade religiosa. Todavia, igreja e estado têm esferas separadas e autônomas de atuação. Os cristãos devem obedecer até mesmos os governantes que oprimem a igreja, orando por seu bem-estar, porque foram instituídos por Deus.        Fonte: George, Timothy. Teologia dos reformadores. São Paulo: Edições Vida Nova, 1994.

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Igreja Reformada Holandesa

Juliano Heyse (http://www.bomcaminho.com/jh001.htm)

Mas vamos à nossa história. Voltamos a nossa atenção para a Holanda, que na época era conhecida como Países Baixos (o território que hoje é ocupado por Bélgica, Holanda e Luxemburgo). É lá que toda a trama acontece. Na época da Reforma o Rei da Espanha, Filipe II, governava os países baixos. O crescimento do protestantismo foi severamente coibido com fortíssimas perseguições e mortes. Estima-se que dezenas de milhares de protestantes foram mortos pelos dirigentes católicos que governavam o país.

A revolta contra os espanhóis foi crescendo até que Guilherme de Orange conseguiu, depois de muitas tentativas, conquistar a tão sonhada independência, mais tarde consolidada por seu filho Maurício de Nassau. Surgia uma nova nação protestante já que o país era, naquela época, de maioria calvinista. Os novos líderes resolveram adotar a religião reformada como religião oficial, utilizando-a como elemento de integração e estabilidade do novo país. Todos os oficiais da igreja reformada holandesa tinham que jurar seguir a Confissão Belga e o Catecismo de Heidelberg.

É importante ter em mente a forte ligação entre o estado e a igreja, comum nos tempos da reforma. Só que na Holanda as igrejas tinham uma autonomia relativamente grande, podendo nomear seus oficiais e exercer disciplina sobre os membros. Isso perturbava alguns membros do Estado. Em 1591, uma comissão, presidida por Johannes van Oldenbarnevelt e James Arminius, propôs uma estrutura mais ao gosto do poder secular: a escolha de oficiais da igreja passaria a ser feita por um grupo de representantes (quatro do Estado e quatro da igreja). Isso permitiu uma ingerência muito maior do Estado nos assuntos da igreja. Esta situação - a história mostra - costuma causar problemas. Levando-se em conta que outras religiões eram meramente toleradas (mas não tinham nem o direito de ter seus próprios templos), muitas pessoas vieram para a igreja, cuja vinda não teria ocorrido caso a igreja não fosse oficial do Estado holandês. Repetia-se algo como nos tempos do imperador romano Constantino - a igreja passava a atrair pessoas não regeneradas, muitas vezes com segundas intenções.

A Controvérsia Arminiana

Nessas condições, favoráveis por um lado, mas perigosas por outro, é que surgiu a Controvérsia Arminiana. Duas questões foram levantadas na época - uma doutrinária e outra de política eclesiástica. Primeiro: O ensino de James Arminius era compatível com a Confissão Belga e com o Catecismo de Heidelberg? Afinal, todos os oficiais da igreja haviam se comprometido a

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permanecerem fiéis a ambos os credos. Segundo: Caso o ensino não estivesse de acordo, a igreja reformada teria poder para destituir aqueles que pregavam doutrinas que conflitavam com aqueles credos?

A questão da autoridade tornou-se problemática porque o governo insistia em manter nos ofícios eclesiásticos pessoas que a igreja considerava que deviam ser destituídas. Dessa forma, entre 1586 e 1618 aumentou muito o número de ministros que permaneciam nas igrejas contra a vontade da congregação e das assembléias eclesiásticas. As igrejas, intranqüilas, exigiam a convocação de um sínodo nacional para esclarecer a situação. Mas o governo central temia o crescente poder das igrejas reformadas e insistia em não permitir a convocação do sínodo.

Foi em meio a tudo isso que James Arminius surgiu - um personagem controverso. Era considerado até pelos seus opositores como sendo um pastor fiel, bom cristão, sóbrio, moderado, homem sincero e de raras habilidades intelectuais. Mas é difícil não concordar com a principal acusação que ele sempre carregou: era um homem que sofria de uma certa "duplicidade". Isso ficará claro quando analisarmos a sua história nos próximos parágrafos.

James Arminius

Armínio nasceu em 1560, no sul da Holanda. Estudou em Genebra com Beza, o sucessor de Calvino. Tornou-se ministro em Amsterdam em 1588. Não foram seus escritos, mas sim sua pregação que começou a chamar a atenção por não parecer muito ortodoxa. Ele decidiu fazer uma pregação expositiva no livro de Romanos. Sua interpretação de boa parte dos primeiros textos do livro surpreendeu seus ouvintes. Mas foi no capítulo 7 que ele trouxe sobre si uma avalanche de protestos. O texto de Romanos 7:14-15 diz: "Porque bem sabemos que a lei é espiritual; eu, todavia, sou carnal, vendido à escravidão do pecado. Porque nem mesmo compreendo o meu próprio modo de agir, pois não faço o que prefiro, e sim o que detesto.". Armínio propôs que esse texto se referia a uma pessoa não regenerada, contrariando o que os principais exegetas reformados sempre defenderam, ou seja, que Paulo falava sobre si mesmo, na condição de cristão. Ao pregar em Romanos de 8 a 11, ele enfatizou o tempo todo o livre arbítrio do homem e ao chegar a Romanos 13, afirmou que o Estado tinha a suprema autoridade em assuntos eclesiásticos e religiosos.

Por conta de tudo isso, um de seus colegas, Petrus Plancius, registrou denúncia contra ele para que ele fosse investigado pelo consistório. Havia rumores sobre o novo ensino em todo o país. Armínio, no entanto, confirmava pleno compromisso com a Confissão Belga e com o Catecismo de Heidelberg. No entanto, ficava cada vez mais evidente que ele tinha problemas com o artigo 16 da confissão, o qual afirmava a doutrina da eleição.

Em 1602 surgiu uma vaga na famosa Universidade de Leiden, para suceder um de seus principais professores de teologia, morto pela praga que assolava a Holanda naquele ano.

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Alguém indicou o nome de James Arminius para sucedê-lo. Havia uma preocupação quanto à ortodoxia de Armínio, e portanto a sua aceitação foi condicionada a uma entrevista com o Dr. Franciscus Gomarus sobre os pontos chaves da doutrina. Gomarus era um famoso Calvinista, profundo conhecedor da Palavra. Diante de diversos comissários, Armínio rejeitou publicamente diversas doutrinas pelagianas quanto a graça natural, livre arbítrio, pecado original e predestinação. Também prometeu jamais ensinar qualquer coisa em desacordo com a doutrina oficial das igrejas. Assim sendo, ele foi aceito como Professor de Teologia da Universidade de Leiden.

Em suas aulas públicas, Armínio permaneceu firme nas suas promessas. Mas em aulas particulares, a alunos selecionados, ele expressava francamente suas dúvidas e questionamentos. Esses alunos foram fortemente influenciados por ele e começaram a propagar alguns desses ensinamentos. Por onde iam, questionavam a doutrina reformada, atacando-a de diversas formas.

Armínio permanecia afirmando estar em pleno acordo com a doutrina reformada enquanto disseminava seus novos pontos de vista nos bastidores. Seus adversários o condenam fortemente por demonstrar absoluta falta de caráter fazendo um tipo de "jogo-duplo". Ao mesmo tempo, seus defensores o elogiam dizendo que tudo o que ele fez foi pensando sempre na unidade da universidade e das igrejas. O leitor pode decidir por si mesmo.

Arminius versus Gomarus

A intranqüilidade aumentava e em 1607 o sínodo da Holanda do Sul recebeu queixas contra os ensinamentos de Armínio. O sínodo convocou James Arminius e o colocou mais uma vez frente a frente com Franciscus Gomarus e os dois expuseram e compararam seus pontos de vista. Mais uma vez Armínio alegou total fidelidade à Confissão Belga e como os delegados não conseguiram perceber grandes diferenças entre o que foi exposto por Arminius e por Gomarus, recomendaram que houvesse tolerância mútua. Outra conferência foi convocada em 1609, também não redundando em avanços. Naquele mesmo ano Armínio morreu de tuberculose.

Os Cinco Artigos do Arminianismo

Com a morte de Armínio, sua causa passou a ser liderada por Johannes Uitenbogaard e Simon Episcopius. Em 1610, sob a liderança de Uitenbogaard, os arminianos se reuniram e elaboraram uma representação (remonstrance - por isso são conhecidos até hoje como os remonstrantes). Nela os arminianos atacavam algumas doutrinas calvinistas e estabeleceram 5 artigos com suas próprias posições:

1. A eleição está condicionada à previsão da fé.2. Expiação universal (Cristo morreu por todos os homens e por cada homem, de forma que ele

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conquistou reconciliação e perdão para todos por sua morte na cruz, mas só os que exercem a fé podem gozar desse benefício).3. Necessária a regeneração para que alguém seja salvo (aparentemente, uma visão perfeitamente ortodoxa, mas mais tarde ficou claro que a visão deles era tal que negava fortemente a depravação da natureza humana).4. A possibilidade de resistir à graça.5. A incerteza quanto à perseverança dos crentes (mais tarde eles deixaram claro que não criam de forma alguma na garantia da perseverança).

Os artigos foram assinados por 46 ministros.

Os calvinistas responderam com uma reafirmação da doutrina calvinista. Formou-se o grupo conhecido na história como os contra-remonstrantes. Isso ocorreu em 1611.

A convocação do Sínodo

O poder público não ficou indiferente à controvérsia que ganhava contornos cada vez mais perigosos. Havia pessoas que estavam utilizando a controvérsia religiosa para incitar rebeliões e outras formas de ação política. Assim, em 11 de novembro de 1617, Maurício de Nassau decidiu que um sínodo nacional deveria ser convocado em 1 de novembro de 1618. Estava criado o quadro para o surgimento do famoso Sínodo de Dort.

Encorajado pelo Rei Tiago I da Inglaterra, o governo central holandês enviou convites a diversos representantes de países reformados para que enviassem delegados para participarem do sínodo. O governo holandês requisitava a cada país que fossem enviados alguns de seus teólogos mais renomados, de proeminente erudição, santidade e sabedoria, que com seu conselho e juízo pudessem trabalhar diligentemente para apaziguar as diferenças que tinham surgido nas igrejas da Holanda, trazendo paz àquelas igrejas.

Outro motivo para convidar os teólogos estrangeiros, foi a tentativa de garantir a isenção que os remonstrantes alegavam que a igreja da Holanda não possuia. Uma terceira razão estava ligada ao fato dos remonstrantes alegarem continuamento ao povo que as demais igrejas protestantes compartilhavam da mesma visão que eles. A presença dos delegados estrangeiros poderia dirimir esta e outras dúvidas.

O Sínodo de Dort

Em 13 de novembro de 1618 o Sínodo Nacional de Dort foi estabelecido. Todas as despesas seriam pagas pelo governo holandês. O sínodo era composto de 84 membros e 18 comissários seculares. Dos 84 membros, 58 eram holandeses, oriundos dos sínodos das províncias, e os demais (26) eram estrangeiros. Todos tinham direito a voto.

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Após um culto de oração todos foram para o local das reuniões. O moderador era Johannes Bogerman. A primeira atividade foi o pronunciamento do juramento:

"Prometo, diante de Deus em quem creio e a quem adoro, que está presente neste lugar, e que é o Perscrutador de nossos corações, que durante o curso dos trabalhos deste Sínodo, que examinará não só os cinco pontos e as diferenças resultantes deles mas também qualquer outra doutrina, não utilizarei nenhum escrito humano, mas apenas e tão somente a Palavra de Deus, que é a infalível regra de fé. E durante todas estas discussões, buscarei apenas a glória de Deus, a paz da Igreja, e especialmente a preservação da pureza da doutrina. Assim, que me ajude Jesus Cristo, meu Salvador! Rogo para que ele me assista por meio do seu Espírito Santo!"

Os membros foram divididos em 18 comitês. A cada questão proposta ao sínodo, cada um dos comitês formulava sua própria resposta que era depois apresentada ao Sínodo como um todo. O material escrito era entregue aos moderadores que compilavam um texto único. Esse texto era aprovado pelos próprios moderadores ou ia a voto.

O tema principal do Sínodo era o arminianismo. Foram convocados para comparecer diversos teólogos arminianos. Estes se reuniram antes em Rotterdam e nomearam oficiais para representá-los. A estratégia deles era atacar os contra-remonstrantes como sendo fanáticos religiosos. A idéia era centrar forças contra o supralapsarianismo de Gomarus.

Simon Episcopius foi escolhido para ser o orador dos remonstrantes. Logo na segunda reunião, ele já se indispôs com todos e usou de uma artimanha típica dos arminianos. Fez críticas ao Sínodo, ao governo e ao príncipe Maurício. Quando instado a fornecer uma cópia do discurso, alegou que esta estava ilegível. Mais tarde concordou em fornecer uma cópia, mas esta não continha as críticas aos governantes.

A batalha era severa. Os remonstrantes alegavam que o sínodo não tinha competência para julgá-los. Bogerman, o moderador, retrucava dizendo que o sínodo havia sido legalmente constituído pelo poder público. Os remonstrantes deveriam ter aceitado esse argumento, já que sempre defenderam que o estado é a autoridade máxima nas questões religiosas e eclesiásticas. Ao serem convidados a colocar no papel suas divergências em relação à Confissão Belga, os remonstrantes negaram-se a obedecer. Quando Bogerman perguntou se eles reconheciam os artigos da representação de 1610, permaneceram calados.

Como os remonstrantes dificultavam demais os trabalhos, em 14 de janeiro de 1619 Bogerman perguntou a eles definitivamente se eles iriam comportar-se e submeter-se ao Sínodo. Eles responderam que não se submeteriam ao Sínodo. Irritado, Bogerman precipitou-se e mandou-os embora sem consultar os demais membros. As mesas e cadeiras dos arminianos foram retiradas e passou-se a analisar suas opiniões através de seus escritos. O principal documento analisado foi a representação de 1610 com seus 5 artigos.

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Os Cânones de Dort

O documento final, os Cânones de Dort, foi formulado em 93 artigos, separados em 5 pontos de doutrina. O documento foi assinado por todos os delegados em 23 de Abril de 1619. Foram ao todo 154 reuniões ao longo de sete meses. Prevaleceu a interpretação ortodoxa.

Muitos consideram injustas as medidas tomadas após o sínodo. Afinal, mais de 200 ministros remonstrantes foram depostos de seus cargos. Alguns se retrataram e retornaram às suas funções, mas boa parte foi definitivamente banida. Mas é bom lembrar que o que hoje seria considerado, talvez, indevida perseguição religiosa, era uma prática absolutamente comum a todas as religiões e países da época.

É importante entender também que os ministros remonstrantes eram muitas vezes mantidos em seus cargos apesar de estarem violando o juramento que fizeram de manterem-se fiéis à confissão belga e ao catecismo de Heidelberg. Isso era conseguido por meio do apoio de políticos poderosos. Enquanto isso, os mesmos políticos perseguiam os contra-remonstrantes chegando ao ponto, em algumas situações, de impedir-lhes o acesso ao local de culto. A religião e a controvérsia eram freqüentemente usadas para fins políticos.

Pode-se dizer que ocorreu com os arminianos o que já aconteceu centenas de vezes na história da igreja. Nas palavras de Johns R. de Witt:

"um homem raramente é honesto o suficiente para sair de sua igreja, se suas convicções são incompatíveis com as daquela igreja. Normalmente ele tenta, por meio de uma estranha linha de argumentação casuística, converter a igreja ao seu próprio entendimento da verdade".

Os arminianos, ao romperem suas promessas e no entanto permanecerem atuando na igreja, encaixaram-se perfeitamente nessa descrição.

É bom lembrar que outras religiões eram toleradas na Holanda naquele período, apesar de não poderem construir templos próprios. Entre estes haviam peregrinos, luteranos, anabatistas e até mesmo católicos romanos. Mas nenhum deles ameaçava a igreja "de dentro" como faziam os arminianos.

Conclusão

O Sínodo de Dort foi importante por ter mostrado a tentativa dos arminianos de diminuírem a soberania de Deus na salvação, engrandecendo o papel do homem na sua própria salvação.

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Mais tarde, os cinco pontos de divergência em relação aos artigos arminianos passaram a ser conhecidos como os "cinco pontos do calvinismo" e um acróstico foi criado para facilitar a lembrança de cada ponto. A esse acróstico deu-se o nome de TULIP:

T  otal depravaçãoU  ma eleição incondicionalL  imitada expiaçãoI  rresistível graçaP  erseverança dos santos

É importante frisar que os cinco pontos e os cânones de Dort não são uma exposição da doutrina reformada. Esta é muito mais abrangente. Longe de serem uma exposição do calvinismo, os cinco pontos servem muito mais para enfatizar diferenças entre o calvinismo e o arminianismo, principalmente na relação da soberania de Deus com a salvação. O ensino de Calvino é muito mais amplo e abrangente e, no que se refere aos cinco pontos, alguns deles ele nem sequer tratou em profundidade, como é o caso, por exemplo, da expiação limitada.

Acreditamos firmemente que é importante conhecer as origens daquilo em que cremos e perceber que, tal qual ocorreu com outras doutrinas como a Trindade e a dupla natureza de Cristo, a verdade de Deus esteve sempre sob ataque e homens corajosos sempre se levantaram para batalhar "diligentemente, pela fé que uma vez por todas foi entregue aos santos" (Jd 3). Graças a Deus.