tensao superficial nos pulmoes

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  • 3QUMICA NOVA NA ESCOLA N 16, NOVEMBRO 2002

    QUMICA E SOCIEDADE

    A seo Qumica e sociedade apresenta artigos que focalizam diferentes inter-relaes entre Cincia e sociedade,procurando analisar o potencial e as limitaes da Cincia na tentativa de compreender e solucionar problemas sociais.Neste nmero a seo apresenta dois artigos.

    A qumica do corpo humano

    Analisando cuidadosamente ofuncionamento do corpohumano, vemos que h tantasreaes qumicas ocorrendo ao mes-mo tempo que ele poderia ser compa-rado a uma indstria qumica! Omecanismo de ao de alguns rgosdo nosso corpo pode ser relacionadocom procedimentos bastante comunsaos qumicos. Por exemplo, os rins fun-cionam como filtros, limpando nossosangue, o que um exemplo de umprocesso de separao. Alm deoutras funes, o fgado responsvelpela sntese de acar, uria, e outrassubstncias, o que nos lembra a sn-tese orgnica.

    Mas algo realmente interessanteocorre nos pulmes. Esses rgospossuem o papel fundamental de ex-trair oxignio (O2) do ar para que pos-samos respirar. Eles so feitos de umtecido esponjoso, com pequenossacos em seu interior, chamados dealvolos pulmonares (Figura 1). Aparede externa dos alvolos cir-cundada por vasos sangneos muito

    Marcos Gugliotti

    Dentro dos nossos pulmes, nos alvolos pulmonares, as clulas alveolares tipo II produzem uma mistura de vital importnciapara o ser humano, conhecida como surfactante pulmonar. Composta em sua maioria por fosfolipdios, essa mistura nosauxilia durante o processo de respirao, facilitando a absoro de oxignio pelos pulmes por meio da diminuio da tensosuperficial das paredes dos alvolos e evitando seu colapso durante o ciclo respiratrio. Este trabalho utiliza o mecanismo deao do surfactante pulmonar como um interessante exemplo para a introduo dos conceitos de tenso superficial esurfactantes.

    surfactante pulmonar, tenso superficial, surfactantes

    Recebido em 13/11/01, aceito em 17/06/02

    finos, os vasos capilares. Quandorespiramos, o oxignio contido no ardifunde atravs das paredes dosalvolos, atingindo os vasos capilarese sendo ento transportado pelosangue para todas as partes do corpo.De forma semelhante, porm emsentido oposto, o gs carbnico (CO2) expelido dos nossos pulmes. Parafacilitar o processo de absoro de O2,as clulas alveolares tipo II, localizadasno interior dos alvolos, sintetizamuma mistura de protenas (~10%) efosfolipdios (~90%) conhecida comosurfactante pulmonar (Biochimica etBiophysica Acta). A palavra sur-factante a contrao da expressoem ingls surface active agents(agentes de atividade superficial) e empregada devido capacidade dasmolculas de fosfolipdios de reduzira tenso interfacial das paredes dosalvolos para valores baixos, faci-litando a difuso de O2. Esta a prin-cipal funo do surfactante pulmonar,e para entendermos seu mecanismode ao devemos estudar o fenmeno

    fsco-qumico da tenso superficial.

    Tenso superficialVamos tomar como exemplo a in-

    terface ar-gua. As molculas de gua(H2O) so fortemente atradas umaspelas outras, e aquelas localizadas nasuperfcie esto sujeitas a uma distri-

    Figura 1: Representao artstica de con-juntos de alvolos pulmonares na extremi-dade de uma ramificao das vias respira-trias (bronquolo). O oxignio atravessa asparedes dos alvolos e segue pelos capi-lares em vermelho, enquanto o gs carb-nico chega aos alvolos pelos capilares emazul, de onde expelido (adaptado de:FISHBEIN, M. Enciclopdia familiar de me-dicina e sade. Edio exclusiva para a En-ciclopdia Barsa, 1967. v. 2, p. 653.)

  • 4QUMICA NOVA NA ESCOLA N 16, NOVEMBRO 2002A qumica do corpo humano

    buio de foras diferente daquelasem soluo. J que no h molculasde H2O acima (no ar), as molculas dasuperfcie so atradas por aquelaslocalizadas ao lado e abaixo, conformerepresentado na Figura 2. Assim, afora resultante que atua sobre as mo-lculas de H2O aponta para o interiordo lquido e recebe o nome de pres-so interna. As componentes tangen-ciais a essa fora fazem que a super-fcie da gua comporte-se como umamembrana elstica que tende a secontrair, ocupando a menor rea pos-svel. Para um mesmo volume, a es-fera o slido com a menor rea su-perficial, e por isso que as gotastendem a ser esfricas.

    A tenso superfi-cial um fenmenocoesivo e, como faza superfcie se con-trair, uma das formasde medir sua inten-sidade esticar asuperfcie, ou seja,aumentar sua rea.Podemos ento defi-nir tenso superficial(Castellan, 1986) co-mo sendo o trabalhonecessrio para au-mentar a rea da su-perfcie, ou tambma fora necessriapara cortar a super-

    fcie, usualmente expressa em mili-newtons por metro (mN/m), no SistemaInternacional de Unidades (SI). Atenso superficial varia com a tem-peratura e a composio e dependeda interao entre as molculas. Porexemplo, o valor da tenso superficialda gua pura a 50 C de 67,90 mN/m,e a 20 C de 72,75 mN/m. Esse valor considerado alto para os lquidos emgeral e, no caso da gua, ocorre devidos pontes de hidrognio entre as mol-culas. A tenso superficial do etanol a20 C de 22,55 mN/m, enquanto ado mercrio de 476 mN/m!

    Surfactantes e monocamadasMas, o que so os surfactantes, e

    como essas molculas diminuem atenso superficial dos lquidos? Amolcula de um surfactante (Castellan,1986), como no caso dos fosfolipdios,possui duas partes distintas: uma hi-drofbica, constituda de cadeiashidrocarbnicas (cauda), e outra hi-droflica (grupo polar) (Figura 3).Como os nomes sugerem, uma parteinterage com a gua, enquanto a outraa repele. Quando uma pequena quanti-dade de fosfolipdios misturada comgua, suas molculas se orientam nainterface forman-do uma monoca-mada (Figura 4),uma fina camadacom a espessurade apenas umamolcula (Shaw,1975). Devido aessa orientao,

    os fosfolipdios diminuem a atraoentre as molculas de H2O da super-fcie. Isto pode ser entendido como seelas estivessem causando defeitosna membrana elstica, diminuindo atenso superficial da gua (ou a tensointerfacial ar-gua).

    A funo do surfactante pulmonarDurante o ciclo respiratrio, os fos-

    folipdios adsorvem nas paredes inter-nas dos alvolos, formando umamonocamada. Alm de evitar que asparedes dos alvolos grudem, o queimpediria a passagem de ar, a mono-camada aumenta a permeabilidadedas molculas de O2. Entretanto, paraque esse processo seja eficiente, a ten-so superficial deve ser reduzida paraum valor muito baixo (

  • 5QUMICA NOVA NA ESCOLA N 16, NOVEMBRO 2002A qumica do corpo humano

    Abstract: The Chemistry of the Human Body: Surface Tension in the Lungs - Inside our lungs, in the pulmonary alveoli, type II alveolar cells produce a mixture of vital importance for human beings, knownas pulmonary surfactant. Mostly composed of phospholipids, this mixture help us during the respiration process, facilitating the absorption of oxygen by the lungs through a decrease in the surface tensionin the alveoli walls and avoiding their collapse during the respiratory cycle. This paper uses the action mechanism of the pulmonary surfactant as an interesting example for the introduction of the conceptsof surface tension and surfactants.Keywords: pulmonary surfactant, surface tension, surfactants

    Referncias BibliogrficasBiochimica et Biophysica Acta, edio

    especial: Pulmonary sulfactant, v.1408, n. 2-3, 1998.

    CASTELLAN, G. Fundamentos deFsico-Qumica. Trad. C.M. Pereira e R.B.Faria. So Paulo: Livros Tcnicos e Cien-tficos Editora Ltda, 1986.

    LANGMUIR, I. The constitution andfundamental properties of solids and liq-uids. II. Liquids. Journal of the AmericanChemical Society, v. 39, p. 1848-1906,1917.

    PATTLE, R. E. Properties, fuction, andorigin of the alveolar lining layer. Nature,v. 175, p. 1125-1126, 1955.

    SHAW, D.J. Introduo Qumica dosColides e de Superfcies. Trad. J.H.Maar. So Paulo: Editora da Universi-dade de So Paulo, 1975.

    Para saber maisGUGLIOTTI, M. Jornal da USP, n. 519,

    p. 5, 2000.Revista Pediatria Moderna, edio es-

    pecial: Asma aguda grave na criana,v. 36, n. 7, 2000.

    Figura 5: (A) Representao da compresso das molculas de fosfolipdios (pontosvermelhos) na parede dos alvolos durante o ciclo respiratrio; (B) Compresso dasmolculas de surfactante numa balana de Langmuir. (Maiores detalhes sobre aspropriedades das monocamadas e o funcionamento de uma balana de Langmuir podemser encontrados nos trabalhos de Castellan (1986), Shaw (1975) e Langmuir (1917).

    de oxignio para os vasos capilares.Em 1917, muito antes da descober-

    ta da real funo do surfactantepulmonar, em 1955 (Pattle), o enge-nheiro metalrgico chamado IrvingLangmuir, ganhador do prmio Nobelde Qumica em 1932, construiu uminstrumento conhecido atualmente porbalana de Langmuir (Castellan,1986; Shaw, 1975 e Langmuir, 1917).Esse instrumento usado para com-primir monocamadas na interface ar-gua e estudar suas interaes comprotenas e outrassubstncias. Devido semelhana com oprocesso que ocorredentro dos alvolos, abalana de Langmuir o instrumento maisutilizado para se es-tudar o mecanismo deao do surfactante pulmonar(Figura 5).

    Comentrios finaisSe nosso corpo no produzir a

    quantidade necessria de surfactantepulmonar, teremos problemas pararespirar. Essa doena conhecida porSndrome do Desconforto Respiratrio(SDR), que afeta principalmente bebsprematuros e, em muitos casos, fatal.

    Diversos grupos de pesquisa tmestudado o mecanismo de ao dosurfactante pulmonar, mas a funo decada componente da mistura ainda motivo de debates. Por exemplo, asprotenas, que constituem aproximada-mente 10% de toda a mistura, parecemacelerar a adsoro dos fosfolipdiosna parede alveolar, mas ainda no estclaro como esse processo ocorre. Poroutro lado, o surfactante pulmonarextrado de bois ou porcos possui umacomposio semelhante quela do sur-

    factante pulmonar hu-mano, e tais misturastm sido utilizadascom sucesso em tera-pias de reposio emdiversos pases, inclu-sive no Brasil, redu-zindo a taxa de mor-talidade de prema-

    turos em at 50%. Mais recentemente,misturas sintticas contendo os prin-cipais componentes do surfactantepulmonar natural tm sido desenvolvi-das e testadas, constituindo uma novaalternativa para a terapia de reposioem prematuros.

    Em todos esses casos, os estudossobre Qumica de Superfcies somuito importantes, na esperana deque qumicos e bioqumicos possamencontrar a chave para o mecanismo

    de ao do surfactante pulmonar. Issopermitir a identificao da melhormistura (sinttica ou extrada de outrosanimais) que poder ser utilizada parasubstituir o surfactante pulmonar hu-mano, o que vital no caso de prema-turos portadores de SDR.

    NotaO presente trabalho uma adap-

    tao do texto premiado em segundolugar na International Young Chemis-try Writer of the Year Competition2000, organizada pelo grupo Chem-web (chemweb.com) e pela Socie-dade Americana de Qumica. O artigooriginal, em ingls, est publicado narevista eletrnica The Alchemist, epode ser encontrado na Internet noendereo http://www.chemweb.com/alchem/articles/985883680339.html,sendo necessrio obter uma senha(gratuita) para acesso ao artigo.

    Marcos Gugliotti ([email protected]),engenheiro qumico pela Faculdade de EngenhariaIndustrial (FEI, So Bernardo do Campo SP) e doutorem Cincias (Fsico-Qumica) pela USP, docente doInstituto de Qumica da USP, em So Paulo.

    Diversos grupos depesquisa tm estudado omecanismo de ao do

    surfactante pulmonar, mas afuno de cada

    componente da misturaainda motivo de debates