tempo mythos e praxis - o dialogo entre ricoeur agostinho e aristoteles

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Martinho Tomé Martins Soares TEMPO, MYTHOS e PRAXIS O diálogo entre Ricoeur, Agostinho e Aristóteles Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra 2006

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  • Martinho Tom Martins Soares

    TEMPO, MYTHOS e PRAXIS

    O dilogo entre Ricoeur, Agostinho e Aristteles

    Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra

    2006

  • ii

    Dissertao de Mestrado na rea de Potica e Hermenutica, especialidade de Potica e Hermenutica, apresentada Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, sob a orientao da Doutora Maria do Cu Fialho e da Doutora Maria Lusa Portocarrero.

  • iii

    Confesso que procuro contar-me entre o nmero dos que escrevem progredindo e que progridem escrevendo. Portanto, se afirmei, por imprudncia ou ignorncia, uma opinio que merece ser corrigida, no apenas por outros que se possam aperceber dela, mas por mim prprio, na medida em que progrido, isso no h-de causar nem admirao nem pena. Antes preciso perdoar e alegrar-se, no porque houve erro, mas porque houve correco.

    (AGOSTINHO DE HIPONA, Epstola 143)

    Tese realizada com o apoio financeiro da FCT (Fundao para a Cincia e Tecnologia) e do FSE no mbito do III Quadro Comunitrio de Apoio.

  • 1

    INTRODUO

    O que o tempo? Se ningum me perguntar eu sei o que , mas se algum me perguntar eu j no sei. Esta clebre proposio de Agostinho reflecte ainda hoje um dos maiores embaraos para a inteligncia humana: dar-se conta de uma realidade que a intuio, a experincia e at linguagem atestam como certa e o pensamento especulativo em vo tenta entender ou argumentar com clareza e solidez. esta discrepncia paradoxal entre intuio e razo, entre experincia e fenomenologia, entre cincia e filosofia, entre a fsica e a metafsica, que coloca a essncia humana no limite do absurdo, do inefvel, e, logo, s portas do transcendente. Como no pensar o Ser sem paradoxos, sem contradies, onde os contrrios se compatibilizam, o Ser absolutamente conhecedor e consciente de Si? Ademais, o Ser que no falhe, que no passe, que seja s imutavelmente Amor - Amor sem atributos, tal como deve ser? Perguntar pelo tempo , pois, perguntar pelo homem e vice-versa; perguntar pelo tempo perguntar pelo outro do tempo ou eternidade e da por Deus. nesta lgica que se inscreve a meditao do Bispo de Hipona, uma das mais frteis e recorridas em todos os tempos. Por isso, no estranhamos que, quase dezasseis sculos depois, Ricoeur volte ao texto agostiniano, tal como antes dele fizeram Kant, Husserl e Heidegger, entre outros. A releitura atenta e sagaz do filsofo francs revolve o texto agostiniano, descobrindo nele novas aporias e pondo em relevo cambiantes at agora pouco exploradas. Veremos, a seu tempo, como o exemplo agostiniano da recitao de um salmo, que pe em evidncia, simultaneamente, o paradoxo do tempo e o germe da soluo do mesmo, fornece ao filsofo francs uma base de inspirao para o seu trabalho em torno da relao tempo e narrativa, servindo para relanar a velha questo do tempo.

    Efectivamente, veremos neste estudo que Agostinho no foi o primeiro a debruar-se sobre a questo do tempo; desde o dealbar do pensamento ocidental, na Antiga Grcia, que esta uma inquietao permanente, desafiando, desde logo, a curiosidade dos filsofos pr-socrticos; depois Plato, Aristteles, Plotino e, hoje, muitos dos nossos contemporneos. Em cada poca, o tempo foi pensado de forma diferente, consoante a cultura, o progresso trazido pelas descobertas da astronomia e pelos novos instrumentos cientficos. At Plato a explicao do tempo aparece sob o signo do mito, devido influncia que as narrativas mticas exerciam no entendimento e justificao dos fenmenos. Aristteles o primeiro filsofo a apresentar uma explicao desprovida do carcter mtico, uma viso cosmolgica do tempo, onde prevalece como fundamental a sua ligao ao movimento. Plotino o primeiro a fazer depender o tempo da alma, no da alma humana, novidade que ser introduzida por Agostinho, mas da alma do mundo. Ricoeur apercebe-se do fosso que estes filsofos vo cavando entre um tempo visto da perspectiva da cosmologia, relacionado com o movimento dos astros, e um tempo interno, psicolgico, que est relacionado, de uma forma que no sabemos explicar, com o anterior, mas ainda assim bem diferente, desde logo porque no unidireccional nem irreversvel, sendo a conscincia humana capaz de o percorrer nos dois sentidos, e nessa funo sofrer a extenso do prprio tempo. A sua preocupao vai, pois, centrar-se na resoluo desta aporia maior da temporalidade, ao mesmo tempo que pretende superar a discordncia levantada pela distentio animi

  • 2

    agostiniana com a capacidade que a narrativa histrica e ficcional tm em conjunto de superar essa bifurcao.

    Com os avanos da astronomia, a instituio do calendrio, a definio do dia, da hora, do minuto como unidades fixas de tempo e a preciso dos relgios, podemos dizer que o tempo s um problema para ns quando olhado do ponto de vista psicolgico, isto , na relao dialctica enigmtica entre passado, presente e futuro. Doutro modo, considerado como sucesso linear, descrito do ponto de vista cronolgico e quantitativo, como uma sequncia de instantes abstractos, no levanta problemas de maior ou, pelo menos, dificuldades que os astrnomos no se empenhem em explicar e resolver. De facto, a nossa natureza temporal, no mbito da conscincia, escapa a todo o tipo de raciocnio especulativo ou positivista. No se trata, efectivamente, de separar tempo vivido e tempo do mundo, porque veremos que os dois so interdependentes e inextricveis. A preocupao de Ricoeur nem sequer passa por encontrar uma definio positiva de tempo, uma vez que a inescrutabilidade do mesmo contraria toda a tentativa de conceptualizao, o seu desejo o de encontrar algo concreto e objectivo que possa manifestar de uma forma concordante, ainda que no imediata, antes indirecta, a experincia temporal que Agostinho afirma como discordante.

    Nas Confisses, analisaremos uma das mais famosas meditaes acerca deste fenmeno confuso e estranho que atormenta os nossos espritos inquiridores, uma meditao de pendor claramente argumentativo e fenomenolgico que desemboca numa viso marcada e excessivamente psicolgica do tempo. Veremos como a reflexo agostiniana exprime um tempo marcado pela deficincia ontolgica, pelo facto de ser pensado em contraste com a eternidade divina, um tempo que comea por ser entendido como criatura objectiva e fsica, enredado nos relatos gensicos, e chega ao extremo de se ver fechado dentro da alma humana que, simultaneamente, o produz e se dispersa nele, dando origem a um conjunto de paradoxos incompreensveis e irresolveis. So estas aporias que movem Ricoeur a procurar uma forma mais segura de dizer o tempo. Do lado da narrativa, ele buscar uma representao concordante dessa realidade aportica que, por um lado, nos parece envolver e subjugar e, por outro, se oculta como realidade invisvel que faz parte de ns e que julgamos ser uma produo do prprio esprito que recorda, vive e projecta, qual no podemos aceder de forma directa. Todavia, o projecto de Ricoeur s vivel com a entrada em cena do segundo texto que relanou a pesquisa do filsofo francs. Uma releitura da Potica de Aristteles permite-lhe explorar outras potencialidades deste filo inesgotvel que at agora a permaneciam dissimuladas. Ser, pois, no entrecruzamento original e fecundo destas duas obras maiores do nosso patrimnio cultural humanstico que ele edificar uma soluo potica ou narrativa para a experincia aportica do tempo.

    Os motivos que impelem Ricoeur a pensar a questo temporal so os mesmos que o levam a reflectir acerca do mal, da justia, ou seja, no so razes meramente especulativas ou tericas, mas axiolgicas e sociais. A preocupao que move o filsofo francs a procurar uma soluo para o enigma do tempo e da condio humana de natureza no s antropolgica, mas tambm tica. Inquietam Ricoeur a dimenso social e muitas vezes trgica da aco humana.1 Estamos a falar de um homem marcado pela experincia trgica das duas Guerras mundiais, que pe no centro da sua actividade filosfica j no o sujeito ideal ou a razo, mas o homem concreto e real, na sua dimenso temporal, interrelacional, afectiva e lingustica.2 A experincia que nutre

    1 M. L. PORTOCARRERO, 2005, 59.

    2 no contexto de uma reflexo sobre a vontade, via de acesso pessoa concreta, simultaneamente

    agente e paciente, que surge a necessidade ricoeuriana de uma meditao deste tipo. Pretendo, justamente, afirmar que a recepo ricoeuriana da Potica, enquanto soluo para o seu problema do tempo, parte ela

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    toda a filosofia de Ricoeur, ensina-nos Baptista Pereira, a opacidade da identidade humana, sempre ameaada pelo trgico do mal e pela distentio do tempo, experincia dolorosa a que Sto Agostinho procurara j responder no seu livro XI das Confisses.3 Ao ligar a experincia humana do tempo e a estrutura da praxis ou da aco humana, o filsofo remete de forma muito clara para esta opacidade. De molde a abrir-se ao problema essencial do tempo vivido, Ricoeur teve de abandonar o modelo idealista da compreenso do sujeito e voltar-se para a anlise do campo prtico, porque na experincia da aco humana que se pode encontrar o tempo em acto ou a experincia do tempo tripartido que Agostinho situou na alma, isto , a do presente do passado, do presente do presente e do presente do futuro. isto que nos permite afirmar, com segurana, que a problemtica da pessoa humana e o fio condutor da sua identidade, o ncleo fundamental da meditao ricoeuriana sobre Tempo e narrativa.4 Todavia, Paul Ricoeur no fundador de uma corrente ou escola filosfica, antes um livre pensador atento s questes do seu tempo - algumas intemporais - particularmente, das instituies, da cultura e dos problemas inerentes realidade complexa do ser humano.

    Torna-se, assim, evidente que uma das peculiaridades do filsofo francs a valorizao da linguagem. A relao da problemtica do tempo com a narrativa um exemplo bem claro da importncia que o filsofo atribui linguagem na meditao filosfica acerca do ser humano. De facto, na sua filosofia, qual podemos atribuir o predicativo de hermenutica, entre outros, a palavra ocupa um lugar cimeiro. A palavra tem o poder fantstico de ajudar o ser humano a ultrapassar a sua dimenso meramente biolgica, tornando-o capaz, responsvel e comprometido na construo de uma nova ordem tica, enquanto ser possvel que se reconstri no confronto com o texto. pela aco e pela palavra (pelo testemunho e pela narrativa) que o existir ultrapassa a sua dimenso meramente biolgica e se faz capacidade, nomeao da convico tica de uma nova ordem, transformando-se num ser possvel. Logo, s por meio da estrutura simblica e narrativa da palavra humana podemos aceder ao homem capaz na sua dimenso histrica, tica e institucional.5

    Quanto estrutura interna desta nossa investigao, ela compreende trs seces bem distintas, que correspondem aos trs filsofos, s trs obras e aos trs blocos de pensamento deste dilogo triangular. Assim, na primeira seco falaremos sobre a questo do tempo. Salientaremos as quatro teorias mais relevantes da filosofia antiga: Plato, Aristteles, Plotino e Agostinho. As vises de Plato e Plotino sero apresentadas de forma sinttica, j a de Aristteles merecer algum desenvolvimento, pois ser-nos- bastante til aquando da confrontao com a teoria agostiniana, uma vez que ambas so paradigmticas da bifurcao entre tempo fsico e tempo psicolgico. A meditao de Agostinho no livro XI das Confisses ocupar a maior parte desta seco, merecendo uma anlise cursiva detalhada das dificuldades, dos avanos e dos recuos, mas tambm a salincia de aporias implicadas e comentrios crticos de diversos autores, com prioridade para Ricoeur. Porm, antes da questo central da essncia do

    prpria de uma determinada concepo do filosofar, tocada pela ateno dimenso social e muitas vezes trgica da aco humana, aquela que marcou o incio do sc. XX, com a experincia das duas Grandes Guerras mundiais e nomeadamente com o fenmeno do holocausto nazi. Quer isto dizer que o homem tempo, real pano de fundo de toda a filosofia de Ricoeur, no o homem maravilhoso, o homem do Cogito da Modernidade, nem o homem das filosofias da interioridade. , pelo contrrio, o homem afectivo, constitudo por uma textura de voluntrio e involuntrio, um sujeito relacional, que vive num universo de interaco, j sempre linguageiramente mediado e que recusa, pela desproporo ontolgica que o constitui, o registo meramente epistmico em que a filosofia se moveu durante sculos (ID., Ibid.). 3 M. BAPTISTA PEREIRA, 1991, 237.

    4 M. L. PORTOCARRERO, 2005, 55.

    5 ID., Ibid., 60

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    tempo, anteporemos uma exposio do contraste tempo eternidade, seguindo o prprio percurso do autor nas Confisses e o comentrio esclarecido e esclarecedor de Jean J. Guitton. Na verdade, a explicao agostiniana do tempo torna-se mais inteligvel se inserida na problemtica maior que a antecede, suscitada pelo relato gensico da criao, do tempo humano e da eternidade divina. Depois do confronto entre o tempo psicolgico de Agostinho e o tempo cosmolgico defendido por Aristteles, com a denncia das aporias e insuficincias de cada uma das perspectivas, selaremos esta seco com o parecer da Cincia relativamente ao problema do tempo.

    A seco II ser inteiramente dedicada ao mythos. A obra em causa ser a Potica de Aristteles e o assunto a apropriao feita por Ricoeur do ternrio aristotlico mythos-mimesis-katharsis. Aqui os comentrios principais ficaro a cargo do prprio Ricoeur, uma vez que pertence a ele a iniciativa de releitura do tratado literrio aristotlico em funo de uma teoria nova do tempo; porm, ter um peso substancial o comentrio crtico de Sophie Klimis que, no obstante contrariar, por vezes, a leitura de Ricoeur, completar e acrescentar novos matizes sua. Daremos conta, nesta seco, de questes como a relao mythos e mimesis, o prazer especfico da poesia, as restries impostas por Aristteles ao mythos e o privilgio do modelo trgico, a sobreposio, no mythos, da concordncia sobre a discordncia, a transposio metafrica do mundo da praxis para o mundo da potica, com a ruptura e a continuidade que tal operao provoca, e, por fim, o tema espinhoso da katharsis, que abre portas mimesis III e a uma esttica da recepo.

    A terceira e ltima seco ser por inteiro dedicada dialctica tempo-narrativa. A obra em destaque ser, obviamente, Temps et rcit I e III, o que nos permite desde j antever que o pensamento de Ricoeur merecer quase por completo toda a nossa ateno. Para comentar e esclarecer o pensamento do autor, tomaremos como referncia principal alguns estudos dos professores M. Baptista Pereira e M. L. Portocarrero. Neste captulo, abordaremos a proposta original dos trs processos mimticos, que constituem o trabalho completo da mimesis desde o campo real da praxis at recepo do texto, tendo como eixo central o mythos ou a composio da narrativa. A propsito de mimesis I, destacaremos os traos estruturais, simblicos e temporais que compem o mundo pr-narrativo da aco, pano de fundo da mimesis; a referncia mimesis II implica falarmos da forma especfica como a narrativa configura o tempo, seguindo uma ordem no linear; ainda dentro do mbito da mimesis de nvel II, referiremos a interveno da imaginao produtiva, do esquematismo e da tradio, que envolvem aspectos como os paradigmas e a inovao; a mimesis III suscitar questes to relevantes como a importncia vital da leitura e a referencialidade da obra literria; daqui partiremos para um dos temas cimeiros desta terceira seco: o entrecruzamento da histria e da fico. Esta temtica requerer o cotejo dos dois modos narrativos, dando especial relevo s caractersticas que os opem e os aproximam; a referncia separada ao tempo histrico, resultante da prtica do historiador e ao tempo ficcional, construdo pelo autor de fices. Por fim, reflectiremos acerca dos limites da soluo potica de Ricoeur, a partir da anlise e comentrio crtico do prprio autor sua obra. A este propsito, reafirmaremos a inescrutabilidade do tempo, introduziremos o tema fundamental na filosofia de Ricoeur da identidade narrativa e tentaremos encontrar o lugar da poesia lrica numa soluo potica que parece conceder primazia quase exclusiva ao mythos narrativo. J em gnero de concluso e reviso de matria, verificaremos at que ponto o autor conseguiu concretizar um dos grandes objectivos que presidiu apropriao do ternrio aristotlico: a elevao do mythos a um metagnero que possa incluir vrias formas narrativas distintas e distantes do modelo trgico, privilegiado por Aristteles, e as condies necessrias para que tal seja admissvel.

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    CAPTULO I

    TEMPO

    1. A EXPLICAO DO TEMPO EM PLATO, ARISTTELES E PLOTINO

    O problema do tempo tem provocado a reflexo do esprito humano ao longo de toda a histria do pensamento ocidental, reflexo da busca contnua de sentido e de fundamento que norteia, desde sempre, a imaginao e a razo dos curiosos. A questo foi abordada por diversos filsofos, em diferentes pocas e de diferentes modos; no entanto, sobressaiem quatro vises do tempo na filosofia antiga: a de Plato, a de Aristteles, a de Plotino e a de Agostinho. Cada um deles abordou o tema de um ponto de vista consideravelmente diferente e trouxe um importante contributo ao pensamento ocidental, que se reflectiu em toda a filosofia e cultura posteriores at aos nossos dias.6 As diferenas concernentes ao tratamento do assunto provm, antes de tudo, do facto de cada filsofo olhar o problema de uma forma singular, em sintonia com a sua cosmoviso e mundividncia. O mtodo de abordagem das questes filosficas, prprio de cada um deles, condicionou, igualmente, os resultados.

    Expomos, a seguir, os traos essenciais da reflexo dos trs primeiros filsofos supramencionados. Esta sinopse, devido ao seu carcter lacunar e qui redutor, no dispensa, claro, a consulta das obras dos autores ou dos estudos referidos na bibliografia. Efectivamente, cada uma destas respostas problemtica do tempo s poder ser bem esclarecida com o conhecimento da tradio e da matriz filosficas onde se inscrevem e que, devido a restries impostas pelos objectivos deste estudo, aqui omitimos.

    6 O Cristianismo, o maior difusor e promotor destas teorias, ainda hoje profundamente marcado, na sua

    escatologia, por estas vises antigas do tempo. Os pensadores cristos, entre os quais se destaca Agostinho, associaram a cultura bblica judaica, pouco desenvolvida em termos filosficos, s teorias filosficas gregas, para tentar fundamentar teoricamente muitas das crenas do povo judeu e cristo. Por exemplo, o par antinmico tempo/eternidade uma herana bblica e helnica (platnica), e resulta do cruzamento que Agostinho fez das teorias de Plato e de Plotino com as Escrituras Sagradas, visando a fundamentao filosfico-teolgica das noes bblicas de Cu, de Reino de Deus, de vida eterna, que opem a eternidade de Deus ao carcter transitrio da vida humana. No obstante, Agostinho, em particular, e o Cristianismo, em geral, no se limitaram a decalcar ou a parafrasear - a doutrina escatolgica crist no uma cpia servil do mito timaico, a oposio crist tempo/eternidade no exactamente uma rplica da associao platnica chronos-aion (sendo esta muito menos antagnica) na verdade, os pensadores do cristianismo adaptaram estas concepes helnicas e imprimiram-lhes um cunho original, inequivocamente judaico-cristo.

  • 6

    A meditao sobre a fora e a natureza do tempo um dos temas centrais da literatura arcaica grega.7 No entanto, a primeira formulao filosfica sistematizada que chegou at ns da autoria de Plato. Foi tambm ele, na opinio de alguns autores, o primeiro a fazer uma distino explcita entre o tempo do ser e o tempo do devir,8 distino esta que acabou por ser muito profcua aos filsofos antigos e medievais. Apesar disso, o Acadmico no apresenta uma definio de tempo, fala dele de forma breve e por meio de metforas e analogias de um mito cosmognico. Obviamente, no podemos entender a formulao platnica de tempo desligada da sua concepo filosfica do cosmos, que tem como alicerce a teoria dos dois mundos.9 A tese defendida pelo prprio num dos seus vrios dilogos, o Timeu, a de que o tempo uma imagem em movimento da eternidade, o denominado aion.10 O aion traduz a vida imutvel do plano inteligvel em oposio com o tempo como lugar de nascimento e dissoluo, no plano do sensvel ou corpreo. De acordo com o mito, o tempo descobre-se nos movimentos regulares cclicos do cosmos, por sua vez estes esto directamente correlacionados. Os movimentos celestes do sol, da lua, dos planetas fornecem a tal imagem em movimento da eternidade que identificada com o tempo. Este imita, assim, a unidade perfeita da eternidade atravs de uma progresso numrica, decorrente da correlao existente entre os movimentos. Isto porque o prprio nmero uma imagem da unidade, que a principal caracterstica da eternidade. Somente o verdadeiro ser pode possuir unidade perfeita, porque s o verdadeiro ser perfeito e imutvel. Cada um dos movimentos celestes pode ser chamado tempo; assim, a globalidade do tempo compreende vrios tempos individuais. Quando estes tempos individuais completam um ciclo e os corpos celestes regressam sua posio original relativa, o nmero perfeito do tempo est completo. Este nmero perfeito compreende os nmeros dos diversos tempos individuais; nele, os diversos nmeros do tempo conseguem a mxima harmonia e unidade, aproximando-se por semelhana da unidade da eternidade. Por conseguinte, o tempo consiste em ciclos ou em unidades csmicas e infindvel. A integrao dos tempos astrais, mutuamente relacionados e comensurveis, num tempo periechn que a

    7 O tempo (chronos) era entendido negativamente, relacionado com a caducidade da vida humana e

    prefigurado no envelhecimento a que est sujeito todo o ser humano. Inconformado, o grego arcaico manifestava um desejo constante de vida sem morte nem velhice (condio prpria dos deuses). Sobre a concepo de tempo na poca arcaica grega Vide EGGERS LAN. 8 Cest le premier texte explicite que la philosophie grecque nous ait livr sur le sujet du temps distingu

    du devenir et de ltre (DE LA HARPE, 130). 9 Atestam a presena fundamental desta teoria na concepo platnica de tempo os estudos de Maula de

    De La Harpe: The basic distinction of Timaeus account of the universe, is between the paradigm and its copy. The paradigm is, but does not become, remaining always the same, and is intelligible but not sensible. The copy is always involved in becoming, and never really is, changing perpetually, and is sensible but not intelligible (MAULA, 6). Or survint Platon qui seffora de concilier les deux tendances opposes, en faisant de chacune dentre elles un ple dialectique de la pense. Il oppose ainsi le sensible, soumis lincohrence du devenir, plein de contradictions, o rvent lopinion et limagination, lintelligible, lieu mtaphysique des essences et des formes immuables (DE LA HARPE, 129). 10

    difcil apontar um significado preciso ou unvoco para o termo aion, pois ele foi sofrendo mutaes a esse nvel, ao longo dos tempos, sobretudo, entre o tempo que decorre de Homero a Aristteles. Em Homero e Pndaro, aion comeou por significar fora de vida ou impulso vital; nos trgicos, assumiu o trao semntico de tempo de existncia de um indivduo, ou seja, o tempo que durava a vida de cada ser humano. Empdocles quem primeiro emprega o termo com o valor de eternidade, sentido que foi adoptado pelos filsofos, em oposio a chronos. No Timeu, Plato utiliza o conceito com o sentido de eternidade, mas ainda mantm com algo do seu significado primordial: aion significa [] a eternidade como a forma de presente ilimitado e estvel, indivisvel, de um Periechn que ao tempo profano, divisvel, numervel e fludo se ope, consistindo a capacidade icnica do tempo no eterno retorno do seu movimento circular (M. C. FIALHO, 1990, 71). Degani relaciona o aion platnico com o Ser uno, imvel e permanente definido por Parmnides (Vide captulo VI, p.81). Acerca da evoluo semntica do termo aion, Vide os estudos de DEGANI; FESTUGIRE, 172-189 e EGGERS LAN, 27-33, 160-170.

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    todos possa envolver e unificar atinge a sua expresso mxima no grande ano, o makros eniautos, crculo composto de todos os crculos, onde tomar sentido a interrogao acerca do paradigma deste tempo envolvente o aion, que o nmero torna apreensvel.11

    Atentemos no que nos diz o texto. Conta Timeu que quando o demiurgo criou o nosso mundo de sensaes, cpia do mundo perfeito e eterno dos deuses, fabricou uma representao (eikon) mvel da eternidade (aion) imvel, uma espcie de imitao da mesma, que identificada com o tempo. Esta imagem tem a particularidade de se mover circularmente e de acordo com o nmero. Citemos o prprio Plato.

    Concebeu a criao de uma imitao mvel da eternidade (eijkw; d''~ ejpenovei kinhtovn tijna aijw'no") e, ao mesmo tempo que organiza o cu, cria, da eternidade que permanece una, uma

    imagem eterna que progride segundo uma ordem numrica. ela que designamos por tempo.12

    O tempo teria sido criado em conjunto com o cu e correria o risco de desaparecer tambm com ele. Os dias, as noites, os meses e os anos no existiam antes da criao do universo, s comearam a existir quando este foi fabricado. Logo, sendo o chronos um gennetos, est sujeito ao movimento e alterao, expressas pelo termo kinesis.13 O passado e o futuro so formas criadas do tempo, formas que no se podem aplicar eternidade, porque essa simplesmente , s conhece o estado presente e imutvel. No entanto, apesar da oposio entre chronos e aion, que se prende, fundamentalmente, com a mutabilidade do primeiro, sugere-se que esta oposio ultrapassada, porque o movimento do tempo processa-se segundo o nmero, cuja referncia o Uno do modelo. Este facto torna o universo mais parecido com o seu paradigma eterno e imvel. Assim, apesar da distncia que separa a representao (eikon) do seu modelo, uma vez que cabe ao tempo dar do aion apenas uma ideia parcial e imperfeita - pois impossvel uma adaptao perfeita do paradigma da criao ao mundo criado - a ordem e a coeso que ao tempo conferida pelo nmero e pelo movimento regular aproxima-o da unidade suprema da eternidade. A lei do nmero torna-se operante com a criao, ou melhor, ordenao do cu pelo demiurgo [] de modo que chronos e ouranos so indissociveis (38b, 6 sqq.) e o movimento ordenado daquele se torna percepcionvel no cu na sua forma mais perfeita, o crculo.14

    O ser humano, tal como os outros entes do universo, deve deixar-se conduzir pela ordem harmoniosa da natureza. O indivduo recebe instrues morais e intelectuais contemplando a estrutura do universo, por isso, a vida moral de cada pessoa deve imitar o curso ordenado dos corpos celestes. A natureza cclica do tempo a realizao da ordem do Cosmos, de que o Homem um elemento. Tais movimentos representam para a alma, ao imit-los, a sua preparao para poder participar do permanente, liberta das perturbaes a que a sua morada corprea a condena.15 O corpo, porque tem um percurso rectilneo, com princpio e fim, irreversvel e nico, no pode aceder harmonia do tempo, mas a alma pode participar e integrar-se na harmonia dos

    11 M. C. FIALHO, 1990, 70.

    12 PLATO, Timeu; Apud M. C. FIALHO, 1990, 66.

    13 Por esse motivo, ao tempo pertence o ter sido ou o vir a ser (37e, 4 sqq.), e ao que nele nasce a

    alterao e a mudana, (cf. 38 a, 3-4), por oposio vida do paradigma notico, que aorstica e imutavelmente akintos sem velhice nem juventude. [] A instabilidade e a mudana, momentos fundamentais da experincia arcaica de tempo, assim como da vivncia trgica, parece traduzi-las Plato por kinsis, componente essencial de chronos enquanto diverso de ain, e pertencente ao sensvel (M. C. FIALHO, 1990, 67). 14

    ID., Ibid., 68. 15

    ID., Ibid., 75.

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    movimentos celestes cclicos, tambm estes animados pelo nous. Assim, o tempo uma fonte de bem moral para o homem, tal como uma fonte de bem fsico para o cosmos. O tempo timaico, dado essencialmente na astronomia e na cosmologia, atingvel e compreensvel pelo clculo, eixo de articulao com o notico, apresenta-se, afinal, como possibilidade de fuga ao transitrio porquanto, ainda no transitrio, representa o uno e permanente.16 Ao introduzir inteligibilidade, bondade e beleza no domnio da mudana, a sua funo aperfeioar o cosmos, incluindo o homem. notria, nesta ligao do tempo ao nmero e ao movimento do cu, a influncia das teorias pitagricas.

    A filosofia do tempo de Aristteles representa um avano em relao do seu mestre. O facto de esta surgir exposta no conjunto dos livros dedicados s questes da physis, deixa supor j alguma inconciliabilidade com o mito cosmognico de Plato. O tema aparece desenvolvido do captulo dcimo ao dcimo quarto do livro quarto e tambm no livro oitavo da Fsica, sendo resultado de um mtodo de anlise caracterstico do esprito aristotlico. O estagirita, nesta obra, busca, sobretudo, os princpios e as causas naturais, bem como os atributos comuns a toda a physis. A natureza considerada um princpio de movimento e de mudana, e julga-se que o prprio tempo est envolvido pelo movimento. Assim sendo, seria preciso determinar a relao exacta entre tempo e movimento. O movimento pode ser estudado, pois um elemento determinvel e identificvel positivamente. Aristteles conclui, depois de um longo processo de raciocnio lgico, que o tempo no pode ser identificado com o movimento, mas tambm no independente dele, pois est-lhe intrinsecamente associado. Sem movimento exterior ou interior no temos percepo do tempo. Percebemos o tempo e o movimento simultaneamente. O movimento contnuo porque a extenso espacial que ele atravessa tambm contnua, logo, o tempo tambm contnuo de acordo com o movimento. Sendo assim, encontramos no movimento a distino entre o antes e o depois que h na extenso do espao e esta distino no movimento, enquanto numervel, o tempo. Reconhecemos o tempo quando distinguimos o antes e o depois no movimento. Aristteles no identifica o tempo com o movimento ou a extenso, porm define-o como o nmero do movimento segundo o antes e o depois. Diz ele que o tempo o aspecto numervel do movimento. Note-se que ele no fala de um nmero aritmtico, exterior aos objectos, mas sim de um nmero imanente ao prprio movimento, um seu atributo e que se explicita quando a alma discerne as suas fases.17

    Perante a evidncia de variados e irregulares movimentos em contradio com um s tempo uniforme, Aristteles passa para o domnio da astronomia para encontrar um movimento constante e regular que possa ser medido pelo tempo; encontra-o na deslocao circular e rigorosa dos astros. Por conseguinte, em primeiro lugar, o tempo mede o movimento circular e, tendo este como modelo, mede a partir dele os outros movimentos. Constata-se tambm que o movimento no existe com todas as partes em que se pode dividir em simultneo e que h uma ordem nas suas partes, esta ordem, enquanto numervel pelo instante, o tempo. O movimento composto por sucessivos instantes, inextensos como os nmeros, mas ordenados como eles. o instante que distingue o tempo como antes e depois. O instante nico porque todos os movimentos existentes tm como nmero o mesmo instante.

    Visto que o tempo numervel e, ainda que possa no ser numerado, ele s pode ser numerado pela alma, por isso, no poderia haver conscincia de tempo se no

    16 ID., Ibid., 73.

    17 J. GUITTON, 6.

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    houvesse uma alma para o contar. No entanto, o movimento, que o substrato do tempo, pode existir sem a alma. E, porque se trata de um estudo de Fsica, nada mais se refere acerca da alma. Mais adiante, voltaremos a esta concepo, para confrontarmos alguns aspectos que fazem sobressair determinadas lacunas da tese agostiniana e tambm da aristotlica.

    Meio milnio mais tarde (Aristteles faleceu em 322 a.C. e Plotino nasceu em 205 d.C.), o tema do tempo vai merecer a predileco do grego Plotino. O assunto surge longamente desenvolvido no stimo captulo da terceira Eneiada. A sua reflexo, embora seja herdeira das duas anteriores, diverge delas significativamente, assumindo, por vezes, uma posio bastante crtica em relao proposta de Aristteles Plotino critica a Aristteles o facto de o movimento manifestar o tempo mas no explicar a natureza do mesmo.18 Sobressaem, ainda assim, na sua tese, influncias da filosofia de Plato, o que no impede o neoplatnico de ter um mtodo e uma viso da realidade que diferem bastante da filosofia do seu mentor. A concepo plotiniana de tempo indelevelmente marcada pela sua teoria hierrquica das trs hipstases: Alma, Intelecto e Uno, por ordem crescente. Tudo descende do Uno e ocupa nessa escala descendente um nvel. Para Plotino, tal como para Plato, o tempo uma imagem mvel da eternidade imvel, ressalve-se, porm, o sentido divergente.19 O filsofo neoplatnico no reconhece a natureza matemtica do tempo, pois o nmero inconcilivel com a infinitude temporal. Para ele, o conceito mais importante o de vida, porque o tempo est de algum modo relacionado com o movimento do universo, movimento este que provm da vida da alma. Todavia, o tempo no essencialmente uma medida, s por acidente que nos revela a quantidade do movimento. O tempo no engendrado pela rotao do sol, simplesmente manifestado por essa deslocao regular.20 Contradiz-se a interdependncia essencial entre tempo e movimento, preconizada por Aristteles. Tal como este nosso universo sensvel imita o mundo inteligvel e produzido pela alma, o tempo, que a vida da alma no universo, imita a eternidade, que a vida do intelecto. Ou seja, o tempo a vida da alma como a eternidade a vida do intelecto. O conceito de vida ajuda Plotino a explicar como que a alma intermediria entre o movimento do universo e o intelecto, que a vida do pensamento. O pensamento est ao nvel da eternidade; o tempo, que a vida da alma, est num nvel mais baixo, mas acima do universo, que recebe o seu movimento desta vida produtiva da alma. Normalmente, Plotino distingue os nveis recorrendo a pares de contrrios. Assim, distingue tempo e eternidade, com oposies como mudana e permanncia, continuidade e indivisibilidade. Isto faz com que para Plotino o tempo esteja num nvel mais baixo da hierarquia, no podendo ser considerado, como para Plato, uma fora de harmonia e ordem que o homem devia seguir na sua vida moral. Para o neoplatnico, o homem s ascende eternidade ultrapassando o tempo.

    18 [] la conception dAristote trouve dans loeuvre du no-platonicien une critique dcide et lucide.

    Le centre de gravit se dplace du ple physique vers le ple psychique et spirituel, par un retour aux formules de Platon. Il ne sagit plus des conditions logiques que doit remplir la thorie mathmatique et physique, mais de la nature et de la cration du temps (DE LA PLACE, 131). 19

    Plotin exagere encore lontologie platonicienne en faisant du temps une authentique crature mtaphysique (ID., 131). 20

    Devemos ter sempre presente, ao longo deste estudo, que estamos ainda a sculos de distncia da revoluo copernicana e de Galileu; considera-se que o sol que gira em torno da terra e no o contrrio. assente neste dado, entretanto corrigido pela cincia, que se desenvolve a reflexo destes filsofos e tambm a de Agostinho. Contudo, para o estudo do tempo no um factor determinante que seja o sol ou a terra a movimentar-se, o que relevante o movimento e no quem o origina.

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    Plotino entende a existncia do tempo como resultado da separao da alma universal do intelecto, da autoconstituio da alma que, para obter a sua autonomia, distende-se num mundo objectivo de cpias dos inteligveis que ela contempla segundo a multiplicidade inerente sua natureza. Sendo assim, o tempo, tal como o espao, no outra coisa seno a distenso, simultaneamente, interior e exterior, subjectiva e objectiva da actividade da alma.21

    Estas reflexes de matriz neoplatnica influenciaram, de forma indelvel, o pensamento de Agostinho, que situar a percepo e a medida do tempo ao nvel da alma ou do esprito humano. Ressalve-se, contudo, uma diferena fundamental: o Hiponense no admite uma Alma universal e criadora do tempo, porque esse papel cabe a Deus.

    2. A MEDITAO DE AGOSTINHO SOBRE A EXPERINCIA DO TEMPO

    Agostinho, no foi, como j vimos, o primeiro pensador ocidental a meditar acerca da problemtica do tempo. A sua reflexo no parte ex nihilo, ergue-se do cruzamento e da reformulao de ideias e conceitos de Plotino e de Aristteles, mas, como veremos no decorrer deste estudo, o seu contributo distancia-se das teses anteriores pela singularidade e pela inovao. Com muita ousadia e acuidade, Agostinho percorre as emaranhadas vias do labirinto intelectual que o aporema temporal suscita, aduzindo-lhe novos contornos gnoseolgicos, mas tambm novas aporias que no cessam de relanar a pesquisa. Explica Ricoeur que no h em Agostinho fenomenologia pura do tempo, a reflexo acerca do tempo inseparvel da operao argumentativa, o que justifica o carcter aportico em que desemboca a tentativa de entendimento e explicao da experincia temporal.22 Acrescenta ainda o filsofo francs que este mtodo de anlise coloca Agostinho entre os cpticos e os gnsticos.23

    De facto, esta operao argumentativa, desenvolvida em dilogo com Deus e, por vezes, com a prpria alma, que vamos encontrar exposta, principalmente, no livro XI da sua famosa obra Confisses, aparecida por volta do ano 400. Todo o texto um dilogo do pecador arrependido e convertido com o seu Senhor. A primeira parte, correspondente aos primeiros nove livros, tem como epicentro o momento fulcral da converso; Agostinho de Hipona, com os olhos voltados para o passado, relembra as errncias da sua existncia pecadora e convertida para, simultaneamente, pedir perdo e louvar a Deus, o Salvador da sua vida. Os ltimos trs livros so sobretudo consagrados a questes de apologtica crist, tendo como mote as palavras iniciais do livro do

    21 Vide SOLIGNAC, Note complmentaire n 18, 588.

    22 Dabord, il faut avouer quil ny a pas, chez Augustin, de phnomnologie pure du temps. Peut-tre

    ny en aurat-il jamais aprs lui. Ainsi, la thorie augustinienne du temps est-elle insparable de lopration argumentative [...] (TR I, 23). Mais adiante, o mesmo autor explica o que entende por fenomenologia pura, definio essa que demonstra a sua opinio da ausncia de fenomenologia pura no mtodo agostiniano : Par phnomnologie pure, jentends une aprhension intuitive de la structure du temps, qui, non seulement puisse tre isole des procdures dargumentation par lesquelles la phnomnologie semploie rsoudre les apories reues dune tradition antrieure, mais ne paie pas ses dcouvertes par de nouvelles apories dun prix plus lev. Ma thse est que les authentiques trouvaillhes de la phnomnologie du temps ne peuvent tre dfinitivement soustraites au rgime aportique qui caractrise si fortement la thorie augustinienne du temps (Ibid., 156). Portanto, a ambio da fenomenologia pura de fazer aparecer o tempo tal como ou em si mesmo esbarra sempre com as aporias resultantes do prprio mtodo. 23

    Ce style, qui fait que toute avance de pense suscite un nouvel embarras, place Augustin tour tour au voisinage des sceptiques, qui ne savent pas, et des platoniciens et no-platoniciens, qui savent (ID., Ibid., 22).

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    Gnesis.24 O livro X desempenha a funo de charneira entre a primeira e a segunda parte, a conclui o relato biogrfico em analepse e inicia a reflexo mais centrada em questes teolgico-filosficas. A partir do livro XI, com o discurso retrospectivo definitivamente abandonado, d-se lugar ao presente do seu mnus episcopal, a que se alude j no final do livro precedente. No livro XI, apresenta ele desenvolvida a sua tese acerca da experincia e da essncia do tempo, originada por uma questo muito em voga na poca, na boca de determinadas correntes filosficas e teolgicas: que fazia Deus antes de criar o cu e a terra?.

    O jovem Agostinho, ainda fascinado pelo dualismo maniquesta e pelo racionalismo platnico, desde cedo se preocupou com questes metafsicas, como a presena de Deus infinito no mundo e a participao do tempo na eternidade, mas a questo do tempo nas primeiras obras do autor no passa de esquissos imprecisos e difusos: um tempo formal, musical, matemtico, esttico que, tal como o espao, a extenso de um nmero eterno. No De Musica, o autor fala do tempo, apenas, como ordem e proporo, mas nunca com a acutilncia e a grandeza com que o far mais tarde. S com a converso definitiva e apaixonada ao cristianismo que se viu verdadeiramente confrontado com a necessidade de credere ut intellegeret et intellegere ut crederet. Ento, problemas como a origem do tempo, a relao entre simultaneidade e sucesso, eternidade e tempo vo merecer uma extremosa abordagem, como se verifica nas Confisses, na Cidade de Deus, e noutras obras que citaremos oportunamente.

    O seu dever de Bispo e de defensor da f movem-no a responder s objeces dos pagos, dos herticos, dos esticos, cpticos e epicuristas. No podemos esquecer que o autor viveu numa poca crucial da histria intelectual do ocidente, aquela em que o mundo intelectual se converte religio monotesta dos seguidores de Cristo. Esta converso, naturalmente, provocou revoltas e oposies intelectuais ao cristianismo, algumas filosficas outras teolgicas. Os seus antigos condiscpulos maniquestas escarneciam da religio crist com questes como: que fazia Deus antes de criar o cu e a terra e o que que diferenciava a sua imobilidade do nada? Se Deus a causa da existncia, donde vem o mal? Compreende-se que o tema do mal seja a preocupao central e dramtica de Agostinho, como se pode aferir, por exemplo, no Livro VII das Confisses. O convertido debate-se para tentar saber o que separa o tempo da queda - o tempo existencial do homem pecador - do tempo da criao. O Bispo via o maniquesmo como um cristianismo racional e crtico, um sistema gnstico que buscava respostas fceis para os problemas mais complexos, sobretudo, o do mal.25 Por sua vez, os platnicos no aceitavam um cosmos temporal ou a religio histrica. J. Guitton sintetiza assim as principais escolas e respectivas doutrinas hostis ao pensamento cristo que cercavam o Bispo de Hipona: o racionalismo helenista, o dualismo maniquesta, o naturalismo pelagianista e o nacionalismo donatista.26 Assim, conclui o mesmo autor, se explica o carcter polmico e didctico dos seus escritos, com o objectivo de formar e de convencer.27

    24 Os livros XI-XIII podem bem ser considerados a posta em prtica do clebre crede ut intelligas. A

    verdade recebida da f e a verdade descoberta pela inteligncia elucidam sua maneira os princpios da Escritura, reenviam uma e a outra mesma verdade superior, a de Deus (SOLIGNAC, Note complmentaire n 17, 573). 25

    Cf. CHAIX-RUY, 3. A teologia da religio fundada por Mani inspirou-se na concepo dualista do gnosticismo. Essencialmente, o maniquesmo supunha a existncia de dois princpios ou substncias, co-eternas e diametralmente opostas: o Bem, que Deus, esprito e luz; e o Mal, que o Diabo, a matria, as trevas (Vide ainda A. ESPRITO SANTO, nota 30, p. 95; nota 36, p. 97; nota 45, p. 99, 101; nota 66, p. 113). 26

    98. 27

    97.

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    Miranda Barbosa acrescenta que a no ser os Apstolos, ningum, na Histria da Igreja, gozou de uma autoridade pessoal to indiscutvel. Por isso se pde dizer que na sede de Hipona, em poca to agitada por controvrsias e descaminhos, ele era o guardio da f catlica. [] Alicerou em bases firmes o edifcio da Teologia, da asctica e da exegese bblica e delineou os quadros perenes da filosofia crist.28 Agostinho teve o mrito de operar a sntese da filosofia helnica com a cultura crist, aportando mundividncia medieval novos valores e ideias como a caridade, a ideia de Deus no apenas como demiurgo e providncia, mas como Pai e Amor, o sentido tico da liberdade, a noo de progresso e de Histria, em oposio viso cclica dos gregos, o significado dramtico e agnico da vida, que enriqueceram e suplantaram muitas das solues do esprito helnico em decadncia.29

    2.1 CONTRASTE TEMPO/ETERNIDADE

    Toda a reflexo agostiniana acerca do tempo, nas Confisses, inscreve-se na meditao mais ampla sobre a eternidade, por isso, antes de entrarmos na questo central deste captulo, a essncia do tempo, parece-nos fundamental determo-nos no assunto para um apontamento introdutrio.

    A oportunidade de reflectir acerca da relao tempo-eternidade surge na passagem da viso retrospectiva para o presente, do trabalho de recordao pessoal para a universalidade do olhar escatolgico para a frente.30 Ricoeur admite que isolar a anlise do tempo desse fundo que a eternidade fazer ao texto alguma violncia, mas tambm reconhece que a questo da eternidade convocada para esta reflexo para realar o dfice ontolgico caracterstico do tempo humano.31 Para o filsofo francs, a meditao acerca do tempo em contraste com a eternidade aporta reflexo trs funes principais, que para j nos limitamos a mencionar, guardando para outra seco a sua exposio mais detalhada: em primeiro lugar, contribui para colocar a especulao sobre o tempo no horizonte de uma ideia-limite, que obriga a pensar, simultaneamente, o tempo e o diferente do tempo; em segundo, intensifica a prpria experincia da distentio no plano existencial; por fim, apela esta experincia a superar-se em direco eternidade, e, logo, a hierarquizar-se interiormente, contra o fascnio pela representao de um tempo rectilneo.32

    Numquid, domine, cum tua sit aeternitas, ignoras, quae tibi dico, aut ad tempus uides quod fit in tempore? (XI, i, 1).33 Esta questo, emergente nas primeiras linhas do livro XI das Confisses, desencadeia o problema capital deste livro: o dualismo tempo eternidade. Como que Deus, sendo eterno, conhece o que se passa no tempo? O que

    28 2,4.

    29 Cf. ID., 2.

    30 HAEFFNER, 83.

    31 TR I, 22.

    32 Je discerne trois incidences majeures de la mditation de lternit sur la spculation concernant le

    temps. Sa premire fonction est de placer toute la spculation sur le temps sous lhorizon dune ide-limite qui contraint penser la fois le temps et lautre du temps. Sa seconde fonction est dintensifier lexprience mme de la distentio au plan existentiel. Sa troisime fonction est dappeler cette exprience mme se surpasser en direction de lternit, et donc se hirarchiser intrieurement, lencontre de la fascination par la reprsentation dun temps rectilinaire (RICOEUR, TR I, 50-51). 33

    O texto latino e a respectiva traduo em portugus usados nesta investigao so retirados de Agostinho, Confisses, trad. e notas de A. Esprito Santo et alii, Lisboa, IN-CM, 2000. Apoiamo-nos tambm na edio bilingue de Les Confessions de Saint Augustin, livres VIII-XIII ; texte de ldition de M. Skutella, introd. et notes par A. Solignac, trad. de E. Trhorel et G. Bouissou, Bibliothque Augustinienne, n 14, Descle de Brouwer, 1962, pp. 572-591.

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    so o tempo e a eternidade e que relao existe entre eles? Numquid introduz uma interrogao da qual se espera uma resposta negativa; depreende-se que Agostinho, com este advrbio interrogativo, pretende afirmar a supremacia de Deus e da eternidade sobre o tempo e o mundo. Deus, porque eterno e vive na eternidade, conhece bem tudo quanto o seu servo lhe conta e v a cada momento tudo o que se passa no tempo.34 No entanto, esta ainda uma frase solta que s vai encontrar continuidade depois da meditao acerca da criao. Em Agostinho, a questo do tempo e da eternidade surge directamente implicada na problemtica da origem do universo. A criao o substrato que engloba e enriquece a reflexo agostiniana acerca do tempo,35 por isso, no impertinente apresentarmos, em traos gerais, e baseando-nos no estudo de J. Guitton, as tentativas de explicao e fundamentao filosficas da criao, tal como nos aparece descrita na Bblia.

    2.1.1 A criao ex nihilo atravs do Verbo eterno

    O livro XI das Confisses abre com o desejo ardente de entendimento das Escrituras, mais propriamente a sede de compreenso de como Deus fez o cu e a terra, por isso o seu fiel servo interpela-O nesse sentido: audiam et intellegam, quomodo in principio fecisti caelum et terram (XI, iii, 5). Ele sabe que s Deus, a prpria Verdade, pode conceder o entendimento de to profunda cincia, como a criao do mundo, pois nenhuma cincia humana conseguir s por si aclarar estes mistrios insondveis sem a luz da f.

    Com esta preocupao constante de entender como que Deus, que no est sujeito lei do tempo, conseguiu criar o mundo temporal onde estamos inseridos, vivemos e agimos, Agostinho, seguindo, fielmente, a perspectiva bblica, que contm uma concepo original da causalidade divina e da contingncia do mundo, enquanto superao da causalidade grega, reafirma a creatio ex nihilo e a relao unilateral entre Criador e a criatura. O mundo depende total e necessariamente de Deus, mas Deus no depende em nada do mundo, que lhe est submetido. O mundo um efeito contingente. Nesta concepo, ele diverge significativamente da filosofia plotiniana. Para Plotino, o mundo era um acto segundo, uma emanao de Deus, visto que entre Este e o mundo havia uma relao de dependncia recproca, j que a Divindade no se podia impedir de produzir o mundo.36

    34 Propomos uma traduo da pergunta diferente da de A. Esprito Santo, mais livre, para reforarmos a

    resposta negativa que se espera: porventura, Senhor, pois que a eternidade te pertence, poders tu ignorar estas coisas que te digo ou poders tu voltado para o tempo no ver o que fao no tempo?. Agostinho no tem dvidas de que Deus, na sua eternidade, conhece tudo o que se passa no tempo, a sua questo retrica. Admite que o objectivo destas narraes despertar o seu afecto para com Deus e para que os que lem estas confisses possam com ele louvar a Deus. Transcrevo, em seguida, as tradues de A. Esprito Santo e de E. Trhorel/G. Bouissou: porventura, Senhor, sendo tua a eternidade, ignoras o que te digo ou vs a cada momento o que se passa no tempo?; Se peut-il aucunement, Seigneur, puisque lternit tappartient, se peutil que tu ignores ce que je dis, ou que tu voies selon le temps ce qui se passe dans le temps?. Cf. SOLIGNAC, nota 1, 270-271. 35

    Se se comea pela eternidade, esta estudada por sua vez a partir da criao ex nihilo. Como seria de esperar, porque ns estamos no tempo e dele que vemos a eternidade, e por outro lado o tempo no s deriva dela, mas de algum modo a ela h-de retornar, o estudo faz-se sempre em contraste entre ambos, ressaltando no conjunto a eternidade como concentrao e o tempo como distenso (J. REIS, 313-314). 36

    J. Guitton refere que a questo da eternidade do mundo muda de sentido, consoante se aceite ou se rejeite a existncia de uma relao unilateral entre o mundo e Deus. Se aceitarmos a teoria de Plotino, de que o mundo um efeito necessrio, isso implica que seja coeterno a Deus, pois Deus eterno. Neste

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    Existem, pois, o cu e a terra e proclamam que foram feitos; pois esto sujeitos a mudanas e a alteraes (XI, iv, 6). o carcter mutvel dos seres que atesta a sua condio de criaturas. O ser criado, mutvel e incompleto no um verdadeiro ser, ele recebe o ser do seu criador de quem est dependente. Se tudo o que existe foi criado e se tudo o que existe no se pode criar a si mesmo, tem de haver uma pr-existncia criadora, que Deus. Agostinho parte do mundo imperfeito e contingente, sujeito lei do tempo, e eleva-se da por degraus de menos para mais at chegar ao Ser Supremo, Absolutamente Perfeito e Imutvel. Parte da natureza sensvel, passa pela natureza espiritual do pensamento e atinge o auge na natureza divina de Deus.37

    Mas de que modo (quomodo) fez Deus o cu e a terra? interroga-se ele. No foi no universo que fez o universo, porque no era enquanto lugar onde pudesse ser feito.38 Ele acredita que Deus no fez a partir de uma matria-prima, como o arteso, Deus criou a partir do nada, ex nihilo, Ele o autor da forma e da matria a partir da qual um artfice inventa uma pea. Nada h de formal ou material fora de Deus. Ento,

    caso, seria absurdo pensar um comeo ou um fim para o universo, tal como no se poderia submeter ao tempo a causa eterna que o sustm. Se admitirmos, por outro lado, uma dependncia unilateral do mundo em relao a Deus, a questo da eternidade assume outro significado. possvel entend-la sob duas perspectivas: ou um mundo tirado eternamente do nada pela vontade omnipotente de Deus, isto , um universo eternamente contingente, como defendem os platnicos; ou podemos tambm supor, concordando com Agostinho, que Deus quis desde toda a eternidade criar o universo, mas essa vontade s passou a acto com o tempo. Teramos uma criao eterna no seu princpio, mas temporal nos seus efeitos, uma criao que teria sucedido ao nada. Contudo, o mais importante que esta tenha sido ex nihilo. Que la cration se soit produite ab aeterno ou post nihilum, elle nen demeure pas moins une cration ex nihilo (156). A criao ab aeterno levanta-nos um problema de alcance intelectual: como que se pode conceber um mundo criado desde sempre por Deus. que apesar de J. Guitton dizer que le concept de cration ninclut donc pas en toute rigueur celui de commencement (157), a verdade que nos extremamente difcil (devido analogia com o modo de criar humano) imaginar uma criao sem um comeo, mas com um obreiro. Como que a criao poderia existir dependente de um autor, sem que a vontade do autor a precedesse. O prprio J. Guitton admite que si lon veut mettre en lumire la souverainet totale et lindpendance de Dieu par rapport son ouvrage, on est tent de la symboliser par une antriorit (Ibid.). Todavia, o mesmo afirma que para um filsofo no nada difcil conceber uma criao coeterna e dependente de Deus, sem pr em causa a transcendncia do criador: Sans doute demeure-t-il vrai que, pour un philosophe, lexistence ternelle de lunivers ct de Dieu ne fait pas chec sa transcendance (Ibid.). O problema aqui no tanto pr em causa a transcendncia do criador, a dvida reside na impossibilidade de se compreender um universo coeterno ao seu criador, que existe ao mesmo tempo que Ele e foi criado por Ele. De facto, para estar sujeito lei do tempo, calculamos que o mundo no pode ser consubstancial a Deus, nesse caso, comungaria da imutabilidade e da simultaneidade divina. No entanto, a nossa razo limitada e falaciosa, tende para a afirmao de que esse mundo no pode existir desde sempre e ser criado, porque, mentalmente, -nos mais fcil aceitar um comeo e muito mais difcil imaginar um desenrolar infinito e eterno do tempo, por isso mais cmodo aderir explicao de Agostinho, de que o universo foi feito post nihilo. No fundo, tudo no passa de uma falcia, pois estamos a falar de eternidade por analogia com tempo, ou seja, estamos a aplicar eternidade as categorias temporais s quais a nossa experincia e a nossa razo esto limitadas. Este problema do comeo do mundo no se pode resolver sem dados concretos ou cientficos, mas esses, para j, so insuficientes e inseguros. 37

    On part du monde donn et on se rend attentif ses dficiences et ses vides. Tout ce qui existe reoit et perd, meurt et renat, est et nest pas. Limperfection mme du changement exige quil existe quelque part une realit qui ne perd ni ne reoive, car ltre vritable est pur de ce mlange quon appelle le temps et, dune manire gnrale, la mutabilit. [...] Saint Augustin slve ainsi par dgrs de la nature sensible la spirituelle et de celle-ci la nature divine. A chaque niveau, la mutabilit diminue. On atteint enfin, par rcurrence, limmuable. [...] Saint Augustin peut aller jusqu limmuable par deux mthodes parallles et solidaires, lune asctique qui a pour fin de purifier, lautre dialectique qui dmontre (J. GUITTON, 148). 38

    neque in uniuerso mundo fecisti uniuersum mundum, quia non erat, ubi fieret, antequam fieret, ut esset (XI, v, 7).

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    conclui o autor, se Deus no usou matria, s pode ter criado os entes dizendo-os atravs do seu eterno Verbo, Jesus Cristo. A criao fez-se atravs da palavra. Ergo dixisti et facta sunt atque in uerbo tuo fecisti ea (XI, v, 7). Nota P. Ricoeur que este nada da origem acusa a partir de agora o tempo de deficincia ontolgica.39

    No entanto, Deus no pode ter dito no tempo a sua palavra criadora, o que disse no teve durao, como quando falou aos homens no momento do baptismo ou da transfigurao de Jesus, atravs dos anjos ou de criaturas temporais que servem a sua eterna vontade. O Criador no podia falar por intermdio de nenhuma criatura material e temporal quando nada existia ainda, nem o tempo, logo, no poderia ter criado a primeira criatura com palavras que soam e passam [uerbis sonantibus et praeterentibus (XI, vi, 8)]. A primeira criao de Deus, tivesse sido ela qual fosse, no pode ter sido obra de uma voz transitria, cujas slabas se sucedessem umas aps as outras no tempo, porque essa, supe Agostinho, s pode ser dita depois de algo criado e por uma criatura. Assim, antes do tempo, o Autor divino s poder ter falado a partir da eternidade e na eternidade, logo, disse tudo simultanea e sempiternamente, atravs do Verbo que lhe co-eterno: simul et sempiterne dicis omnia (XI, vii, 9). No Verbo sempiternamente dito, sempiternamente so ditas todas as coisas. A palavra de Deus tem j sempre a totalidade e dura ad aeternum, logo, a voz criadora no tem de deixar a palavra ou a slaba anterior para passar seguinte. [] se assim no fosse, j existiria tempo e mudana e no verdadeira eternidade nem verdadeira imortalidade (XI, vii, 9).

    Note-se que este contraste entre o Verbum divino e eterno e as uerba humanas e efmeras acentuam novamente a negatividade ontolgica do tempo.40 Porm, a instruo interior de Deus transpe o abismo que se abre entre o Verbum eterno e a vox temporal. Ela eleva o tempo em direco eternidade, porque o Verbo, que o princpio e nos fala exteriormente no Evangelho, faz-se ouvir tambm dentro de ns; Ele o Mestre interior que nos instrui: a ouo a tua voz, Senhor, a voz de quem me diz que nos fala aquele que nos ensina, enquanto quem no nos ensina, ainda que nos fale, no nos fala. De resto, quem nos ensina, seno a verdade inaltervel? Porque, quando somos orientados, mesmo por uma criatura mutvel, somos levados verdade inaltervel, onde verdadeiramente aprendemos [] (XI, viii, 10). A nfase, aqui, colocada menos sobre a dissemelhana que sobre a semelhana entre a eternidade e o tempo. Essa semelhana deve-se ao facto de entre o Verbo eterno e a voz humana no haver somente diferena e distncia, mas instruo e comunicao: o Verbo o mestre interior, buscado e ouvido no interior (intus) (XI, viii, 10). A escuta interior est, por isso, antes da escuta exterior e toda a escuta precede a fala. Escutar a voz de Deus dentro de si retornar quele que permanece enquanto erramos. Retornamos porque reconhecemos o nosso erro, esse (re)conhecimento vem-nos da instruo do Princpio que nos fala. Os primeiros nove livros das Confisses so o testemunho deste mesmo regresso casa do Pai. Como observa P. Ricoeur, a atraco da experincia temporal pela eternidade do Verbo no to grande a ponto de abolir a narrao ainda temporal numa contemplao subtrada s coeres do tempo. A experincia da converso, relatada no livro VIII e o xtase de stia, narrado no livro IX, pem fim errncia, forma decada da distentio animi, mas no suprimem a condio temporal da alma.

    39 La cration ex nihilo est ici anticipe, et ce nant dorigine frappe ds maintenant le temps de

    dficience ontologique (TR I, 53). 40

    Le Verbum demeure ; les verba disparaissent. Avec ce contraste (et la comparaison qui laccompagne), le temps est nouveau frapp dun indice ngatif : Si le Verbum demeure, les verba ne sont pas, car ils fuient et passent (6, 8) (ID., Ibid., 53).

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    Atravs desta peregrinao ao passado, a alma relanada novamente sobre as vias do tempo.41

    Regressando novamente questo principal, verificamos que, embora as coisas sejam ditas simultanea e sempiternamente, no so feitas simultanea e sempiternamente. Como explicar que os efeitos da eternidade e da simultaneidade sejam a temporalidade e a sucesso? Dito de outro modo: como que uma criatura temporal pode ser feita pelo e no Verbo eterno? Como possvel que o tempo, com a sua irredutvel sucesso, com uma coisa antes e outra depois, seja criado num acto de simultaneidade, sem o mnimo de sucesso?.42 Como entender esta antinomia entre tempo e eternidade? Agostinho apresentar a soluo da matria informe e no sujeita ao tempo como intermediria entre eternidade e temporalidade no livro XII das Confisses. Para j, ele encontra uma outra explicao que ir, mais tarde, conciliar com a da matria informe, na teoria das razes seminais: tudo o que comea a existir e deixa de existir comea e deixa de existir no momento em que, na eterna razo, onde nada comea nem acaba, conhecido que devia ter comeado ou ter acabado (XI, viii, 10).43 Sendo assim, o tempo, com a sua sucesso, pode ser contido num nico acto de Deus sem sucesso, pois, como declara J. Guitton, se nos colocarmos no ponto de vista de Deus, as relaes de durao [] reduzem-se a relaes de ordem.44 Por outro lado, Ricoeur nota que esta soluo de Agostinho torna plausveis e respeitveis as objeces dos maniquestas e platnicos, concernentes ao antes da criao. Com efeito, se o Verbo conhece o momento quando (quando) uma coisa deve comear ou terminar (momento quando implica tempo, durao, um antes e um depois), deixa supor que houve um tempo vazio antes do tempo efectivo, logo, faz sentido perguntar que que fazia Deus antes da criao?.45 Podamos ainda perguntar: se h, para a criao poder ter comeado em determinado tempo, um tempo vazio infinito anterior, porque no foram as criaturas feitas antes?.46 J. Guitton defende que esse tempo anterior criao no seno um efeito da imaginao, que se no pode impedir de estender o tempo diante de Deus, como um ser eterno que lhe mediria os seus actos.47 Concordamos que a imaginao nos limita na procura de solues para questes que nos transcendem, porque por trs de cada palavra pomos uma imagem, mas, na realidade, a soluo agostiniana deixa o problema inclume: como que Deus, que se supe imutvel e no sujeito durao, pode conhecer o momento, sendo que esta categoria temporal, que se supe exclusiva da criatura, o diminuiria? A menos que o conhecimento de Deus seja separado da sua natureza, o que nos parece incompreensvel.48 Contudo, a Deus nada impossvel. Nem a contradio sinal de falsidade nem a falta de contradio sinal de verdade, diz Pascal nos seus Pensamentos. Dele dizemos que omnisciente, omnipotente e insondvel, e s assim poder ser verdadeiramente Deus. No duvidamos que Ele, se

    41 Prgrination et narration sont fondes dans une aproximation de lternit par le temps, laquelle, loin

    dabolir la diffrence, ne cesse de la creuser (ID., Ibid., 63). 42

    J. REIS, 315. 43

    La solution au problme du rapport du temps lternit est ainsi apporte sur le plan de la connaissance. Cette solution serait complte si elle stendait aussi au plan du vouloir, de la dcision cratrice (SOLIGNAC, Note complmentaire n 17, 577). 44172. 45

    TR I, 55. 46

    J. REIS, 319. 47

    166. 48

    No conseguimos entender como que no conhecimento de Deus pode haver momento, porque, mesmo transformado este numa relao de ordem, como defende J. Guitton, a ordem e o conhecimento, no caso do ser humano, que a nica realidade a que temos acesso directo, no deixam de implicar extenso temporal, ainda que possam ocorrer num instante fugaz, muito prximo da nossa imagem mental de eternidade, entendida como ausncia de extenso.

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    existe, capaz de acompanhar as nossas vidas, permanecendo absolutamente transcendente e eterno, s no sabemos como. -nos mais fcil tentar dizer o que Ele pode ser do que o modo como (quomodo) pode ser.

    O Hiponense consegue assim, supostamente, fundamentar a criao temporal, tal como a frmula bblica levava a crer e refuta as teorias dos platnicos, neoplatnicos e peripatticos de uma criao co-eterna a Deus. Para ele inconcebvel que uma criatura seja co-eterna ao Criador, pois esta eternidade contradiz tanto a razo como a f revelada nas Escrituras.49 Os platnicos afirmavam que nada do que tivesse tido comeo poderia durar infinitamente, mas Agostinho acredita que a alma humana, ao contrrio do que julgavam os platnicos, pode ter incio e no ter fim, ou seja, pode ser imortal; contudo, imortalidade no eternidade e os platnicos confundiam os dois conceitos.

    2.1.2 A eternidade divina e o tempo da criatura

    Na linha da reflexo acerca da criao, do tempo e da eternidade, a partir do captulo X, 12 do livro XI das Confisses, o filsofo responde contra-argumentao dos seus opositores, que se pode resumir numa trplice questo: a) que fazia Deus antes de fazer o cu e a terra?; b) se estava ocioso e no fazia nada, porque que no se manteve nesse estado?; c) se Deus queria desde toda a eternidade criar o universo, porque que a criao no tambm eterna?

    Na resposta s objeces, o filsofo cristo visa no s os maniquestas, mas tambm os neoplatnicos e os platnicos, para quem o dogma da criao temporal, como j vimos, era impensvel, j que entendiam a eternidade como uma durao infinita e do mesmo modo o tempo, mas circular e repetitivo, uma imagem da eternidade sujeita ao eterno retorno.50 Para os helnicos, a eternidade do mundo era um

    49 J. Guitton opina que Agostinho foi demasiado severo com os platnicos ao recusar a eternidade do

    mundo, j que a doutrina platnica da eternidade da criao no tem nenhum erro racional, como acusava o Bispo. Ademais, partiu de um pressuposto errado ao julgar que os platnicos eram criacionistas como ele, mas isso seria muito duvidoso. Si saint Augustin avait pouss plus loin lanalyse des concepts dternit et de cration, il aurait pu, sur ce problme limit, saccorder avec ses adversaires platoniciens. Rien dessentiel ne let plus spar de ses anciens amis (161-163). 50

    Plato no leu a realidade temporal humana luz da lrica arcaica e da tragdia clssica, que versou sobre a efemeridade trgica do gnero humano, marcado na sua existncia pela durao limitada do dia. Diz-nos, a este propsito, M. C. Fialho que o tempo platnico no o tempo do acontecer humano onde ao Homem dada, no mundo, a experincia da sua natureza de ser histrico, marcada pela irreversibilidade e singularidade de cada momento, de indivduo com existncia prpria, nica e determinada pela certeza de um fim (M. C. FIALHO, 1990, 73). Trata-se de um tempo circular, evidenciado na revoluo do sol, pois esta natureza cclica do tempo que manifesta a ordem do Cosmos, da qual o ser humano apenas uma parcela. O acontecer humano no tem, no entanto, identidade prpria. cclico como o acontecer csmico. O que na histria humana ocorreu repetir-se-, sem que o Homem dela seja verdadeiramente o agente, mas apenas por integrao na ordem csmica [] (ID., Ibid., 74).

    Anselmo Borges sistematiza da seguinte forma as consequncias de tal concepo na mentalidade do grego antigo: O eterno retorno domina a mentalidade do homem arcaico. [] Mas evidente que com uma concepo do tempo como eterno retorno e repetio o que acaba por anular-se a prpria possibilidade de histria. Nesta concepo, no h a possibilidade de conceber a histria enquanto conjunto de acontecimentos que so contingentes, subjectivos, irreversveis, abertos a um futuro novo. A categoria decisiva da histria efectivamente o futuro, sempre imprevisvel. [] para o homem grego, propriamente no h histria. Para os filsofos gregos, havia a ideia de que s h cincia do universal e necessrio. [] Portanto, a histria no pode ser propriamente uma cincia. Por isso mesmo, impunha-se tambm a ideia de que o tempo s mediante o movimento circular pode ser reproduo do eterno e infinito. Plato e Aristteles concretamente no superaram uma concepo circular do tempo. O tempo deve ser algo de semelhante a um crculo. Porqu? Para eles, o tempo s pode ser imagem da eternidade,

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    dado adquirido. Como se poderia imaginar um tempo antes do tempo, um mundo temporal supunha, na sua concepo de eternidade, um tempo antes do tempo e um Deus mutvel. Da as duas objeces que acompanham a questo inicial: Se [Deus] estava ocioso, dizem eles, e nada fazia, porque que no esteve sempre assim tambm da em diante, da mesma forma que antes se absteve sempre de agir? Na verdade, se existiu em Deus algum movimento novo e uma nova vontade de criar um ser, que antes nunca fora criado, como que h uma verdadeira eternidade, quando nasce uma vontade que antes no existia? Pois a vontade de Deus no uma criatura, mas existe antes da criatura, porque nada seria criado, se a vontade do Criador no precedesse. Logo, a vontade de Deus pertence sua prpria substncia. Ora, se na substncia de Deus nasceu alguma coisa que antes no existia, no se diz, com verdade, que tal substncia eterna; mas se a vontade sempiterna de Deus era que existisse a criatura, por que razo tambm a criatura no sempiterna? (XI, x, 12).

    Antes de apresentar a sua refutao, Agostinho, no captulo xi, 13, refina uma ltima vez a sua noo de eternidade em contraste com o tempo, pois a sua argumentao vai ter como premissa, mais uma vez, a valorizao da eternidade e a consequente deficincia ontolgica do tempo. Aqueles que atribuem a Deus uma vontade nova no momento da criao no compreendem como so feitas as coisas por e em Deus, porque tm um corao que borboleteia (cor eorum uolitat) pelo passado e pelo futuro, em vez de um corao estvel que escute o Verbo. Esta estabilidade do corao evoca o contraste entre a fugacidade do tempo e a fixidez do presente eterno: Quem poder det-lo [o corao] e fix-lo, a fim de que ele pare (ut paululum stet) e por um momento capte o esplendor da eternidade sempre fixa (semper stantis), e a compare com os tempos nunca fixos (nunquam stantibus), e veja que ela incomparvel [] (XI, xi, 13). Assim, a eternidade sempre fixa (semper stans), em contraste com os tempos nunca fixos (nunquam stantes) porque no eterno nada passa, logo, no h passado nem futuro, mas tudo inteiramente presente (totum esse praesens). Mas esta mesma eternidade to distante da experincia temporal humana parece tornar-se prxima enquanto horizonte at ao qual se pode pensar o tempo: Quem poder deter o corao do homem, a ponto de ele parar e ver como a eternidade, que fixa, nem futura nem passada, determina os tempos futuros e passados? (ibidem).

    Agostinho responde ao primeiro ponto da objeco de forma clara e directa: antes de fazer o cu e a terra, [ou seja, antes de fazer qualquer criatura, Deus] no fazia coisa alguma [non faciebat aliquid]. Com efeito, se fazia alguma coisa, que coisa fazia seno a criatura? (XI, xii, 14). Apesar de a resposta no negar a suposio de um antes da criao, o fundamental que este antes marcado pelo nada, ou seja, o nada do no fazer nada o que antecede a criao. Tudo o que existe obra de Deus e antes de fazer a primeira criatura Deus no fazia nada. Il faut donc penser rien pour penser le temps comme commenant et finissant. Ainsi le temps est-il comme entour de nant.51 Como conclui J. Reis, na anlise da refutao das objeces, este nada que confere ao tempo a sua extenso prpria. O tempo, ao contrrio da eternidade, inclui na sua essncia o nada antes e depois de cada presente de ser, j que o hoje era nada no ontem, enquanto o ontem passou a nada no hoje, o amanh nada no hoje e o hoje nada no amanh.52

    se o seu decurso for circular. No finito, s o crculo pode ser a imagem do infinito e da eternidade. De facto, no crculo, a sua rbita no tem fim, e, por outro lado, na rbita do crculo, encontramos equidistncia perfeita de todos os pontos em relao ao centro (1998, 6-7). 51

    RICOEUR, TR I, 56. 52

    na verdade este nada, conscienciemo-lo bem, que confere extenso ao tempo; se tirssemos a todos os momentos os seus nadas anteriores e posteriores, eles abater-se-iam sobre um nico momento

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    Na refutao do segundo ponto, argumenta o autor que o prprio tempo foi criado por Deus e comeou a existir com a criao, logo no faz sentido perguntar por um antes da criao, pois isso conceber um tempo antes do tempo, o que resulta num absurdo. Se Deus foi o obreiro dos tempos e no havia tempo antes do cu e da terra, no se pode perguntar que fazia o Criador antes da criao, pois antes do tempo no havia ento. As categorias temporais no servem, portanto, para caracterizar este antes do mundo, pois os tempos no puderam passar antes de o Criador os fazer. Si autem ante caelum et terram nullum erat tempus, cur quaeritur, quid tunc faciebas? Non enim erat tunc, ubi non erat tempus (XI, xiii, 15). Este non tunc do mesmo grau negativo do non aliquid do non faciebat aliquid. Para se poder pensar o tempo como passagem, Agostinho forma a ideia da ausncia do tempo. Para ele, o tempo tem de ser concebido como transitrio para ser inteiramente vivido como transio.53 Todavia, isto no quer dizer que no houvesse um outro tipo de tempo que no fosse transitrio, antes do tempo fugaz das criaturas, como iremos ver, mais frente, a propsito do tempo dos anjos. Mas, mesmo este tempo tambm uma criao de Deus, pois Deus operator omnium temporum.

    Na resposta ao terceiro ponto, o Bispo de Hipona desenvolve o exerccio argumentativo j iniciado em XI, xi, 13, que consiste no esclarecimento do que distingue eternidade de temporalidade, divindade de criatura, para que no se caia no erro de antropomorfizar Deus ao incluir na sua vontade a ideia de novidade e, consequentemente, de mudana. Agostinho clarifica que no no tempo que Deus precede os tempos, como julgavam os platnicos. Ele precede-os com a eternidade sempre presente. Mas, para que se elimine a falsa ideia de temporalidade antes do tempo, diz-se que Deus precede o tempo no com a anterioridade, mas com a eternidade, ou seja, no precede o tempo ou a criao, mas est acima deles, supera-os. preciso pensar a antecedncia antes como superioridade, excelncia, altura: [] praecedis omnia praeterita celsitudine semper praesentis aeternitatis et superas omnia futura [] (XI, xiii, 16). Isto o mesmo que dizer que a eternidade abarca o tempo, o tempo -lhe interior, podendo assim ser devidamente fundado. Os nossos anos passam e sucedem-se. Deus sempre o mesmo e os seus anos no tm fim, existem todos ao mesmo tempo, porque no passam, [] enquanto os nossos s existiro todos, quando todos no existirem (ibidem). Os anos de Deus so um s dia sempre presente, um hoje eterno que no sucede ao ontem nem antecede o amanh, a eternidade.54

    Assim, Agostinho tenta demonstrar que a objeco dos platnicos assenta numa compreenso antropomrfica da eternidade divina, porque estes pressupem a eternidade, simplesmente, como a transcendncia da durao divina em relao ao

    (organizado na vertical para no se confundirem) to sem extenso como a eternidade. O que na realidade acontece, porm, que todos os tm, assim o tempo se fazendo extenso. Mas no os tem a eternidade. E assim ela no se situa neste ou naquele momento do tempo. Ela, em absoluto no se situando e existindo (ela que internamente sem sucesso e portanto desde esse ponto de vista simples), contempornea de qualquer ponto do tempo, assim o podendo fundar. Melhor: existindo j sempre antes e depois porque no tem os respectivos nadas -, ela mesmo anterior e posterior ao tempo; este -lhe em rigor interior, tal como acontecia, mas nesse caso sem pr o problema, na perspectiva em que o tempo (pensado e criado num nico acto por Deus) se concebia dentro dela (J. REIS, 320). 53

    Vide RICOEUR, TR I, 56. 54

    Nec tu tempora praecedis: alioquin non omnia tempora praecederes. Sed praecedis omnia praeterita celsitudine semper praesentis aeternitatis et superas omnia futura, quia illa futura sunt, et cum uenerint, praeterita erunt; tu autem idem ipse es, et anni tui non deficiunt. Anni tui nec eunt nec ueniunt: isti enim nostri eunt et ueniunt, ut omnes ueniant. Anni tui omnes simul stant, quoniam stant, nec euntes a uenientibus excluduntur, quia non transeunt: isti autem nostri omnes erunt, cum omnes non erunt. Anni tui dies unus, et dies tuus non cotidie, sed hodie, quia hodiernus tuus non cedit crastino; neque enim succedit hesterno. Hodiernus tuus aeternitas (XI, xiii, 16).

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    tempo. Todavia, o conhecedor profundo do xodo e dos Salmos sabe bem que a Deus se revela como um Sum, um Idipsum. Cest en effet par opposition la fluence du temps vcu de lhomme que lExode et les Psaumes dfinissent lidentit immuable, ou mieux lIpsit absolue de lternel prsent.55 Nesse sentido, passar menos do que superar. O no tempo de Deus, ou o nunca de Deus, supera sem preceder o tempo humano.56 No entanto, este Deus absolutamente perfeito e transcendente um Deus pessoal que criou o ser humano e se familiariza com ele numa relao asctica de amor.57 La transcendance de lternit par rapport au temps pour Augustin cest la transcendance dun Dieu personnel qui cre des personnes et sentretient avec elles ; cest donc la transcendance dun tre qui se possde dans un prsent sans fin par rapport lexistence dtres dont la contigence se manifeste dans les vicissitudes du temps.58 Logo, no lcito pensar Deus imagem do homem, como uma natureza finita. Entre a criatura e o criador vai uma distncia infinita, clivada pelo pecado. Para os homens, qualquer nova aco implica uma nova vontade, porque o seu esprito est submetido mutabilidade; o mesmo no se pode dizer de Deus, que imutvel. Porque a nossa razo limitada no consegue pensar um Deus infinito, corremos o risco, para o apreender, de o antropomorfizar.59 Deus no criou o gnero humano no tempo por causa de um impulso volitivo novo, mas, como j referimos, por causa de um desgnio eterno; este um mistrio profundo e insondvel, que, na sua essncia, vedado nossa compreenso. Deus, s por ser, faz ser.

    O problema da iniciativa divina depende tambm ele da forma como se entende o tempo. Na Cidade de Deus, XII, 12-19, o autor aborda novamente a questo: ope-se circularidade do tempo, defendida pelo pensamento grego e, baseando-se na tradio crist, oral e bblica, advoga uma concepo temporal linear, nica e irrepetvel. S assim se pode entender a encarnao, a morte e a ressurreio de Jesus como acto nico salvfico eficaz. O problema da criao temporal e de uma nova vontade em Deus reside na inconciliabilidade com a finitude da sua cincia. Para os filsofos helnicos, o conhecimento de Deus era finito, era preciso, por isso, para que o mundo no escapasse cincia divina, que ele fosse tambm finito, mas eterno. O seu movimento elptico de eternos recomeos, onde as mesmas circunstncias se repetem eternamente, tornam-no permevel cincia de Deus, para quem deixa de haver singularidades. Deus, para os platnicos, no consegue abarcar a diversidade infinita das essncias singulares do mundo, a sua providncia geral, no se ocupa das circunstncias, porque as desconhece. Mas, para Agostinho, tudo o que comea e acaba s comea e acaba quando o conhecimento infinito de Deus, ao qual nada escapa, sabe que deve comear ou acabar. O ser humano no apareceu no tempo por um desgnio novo, mas querido por Deus desde toda a eternidade. 60

    Em suma, Agostinho responde aos seus objectores atravs da afirmao do carcter absoluto da eternidade divina, libertando Deus dos traos humanos que os

    55 SOLIGNAC, Note complmentaire n 18, 584.

    56 A eternidade tambm pensada negativamente, como ausncia de tempo. En ce sens, la ngation est

    double: il faut que je puisse nier les traits de mon exprience du temps pour percevoir celle-ci comme en dfaut par rapport ce qui la nie. Cest cette double et mutuelle ngation, pour laquelle lternit est lautre du temps, qui, plus que tout, intensifie lexprience du temps (RICOEUR, TR I, 58). 57

    Na obra De Doctrina Christiana, onde aborda, ainda com termos neoplatnicos, a questo da relao entre tempo e eternidade e da encarnao do Verbo, Agostinho diz que o Verbo faz-se temporal para nos eternizar (J. GUITTON, 121). 58

    RICOEUR, TR I, 58. 59

    Cf. De ciuitate Dei, XII, 17, Apud J. GUITTON, 170. 60

    Vide J. GUITTON, 167-170.

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    platnicos e Plotino lhe tinham atribudo61. O Uno de Plotino transcende a prpria eternidade e a sua inefabilidade no permite nenhum discurso acerca dele. ao nvel do nous, lugar dos inteligveis imutveis e intercomunicantes, que se realiza propriamente a eternidade. A eternidade somente dos inteligveis na Inteligncia, a permanncia das ideias imutveis. Assim, a eternidade no absoluta, mas relativa, a transcendncia do nous em relao s almas dispersas no mundo e aos corpos disseminados no cosmos, uma transcendncia do modo de ser e no do ser. Contudo, o autor cristo, com base nas Escrituras, transpe esta oposio plotiniana entre tempo (como passado presente e futuro) e eternidade (como eterno presente, sem passado nem futuro) para o plano do esse; no j do esse abstracto ou ontolgico, mas do esse existencial e vivido; no de um ser isolado, mas de um ser que diz de si prprio Eu sou Aquele que sou e se relaciona pessoalmente com as criaturas que criou e ama, sem, com isso, perder nada da sua divindade absoluta e eterna.62 Agostinho interpreta assim o stare e o manere de Deus como eterno presente.

    J. Guitton critica esta forma de ver o tempo separado e em oposio com a eternidade. Tendemos a ver a eternidade do ponto de vista do tempo, mas devamos esforar-nos por ver o tempo da perspectiva da eternidade, ainda que obtivssemos uma imagem imperfeita e fugidia.63

    fundamental no esquecer que abordamos estas questes complexas com linguagem demasiado ambgua e analgica; os conceitos humanos revelam-se limitados e imprecisos para falar do Absoluto, logo, a filosofia e a teologia incorrem constantemente em antropomorfismo. Quando aplicamos a Deus termos como repouso, ociosidade, preguia, conteno, trabalho, preciso dar-lhes um sentido totalmente novo e guardar as devidas reservas de mistrio. Com efeito, em Deus pode verificar-se a identidade de contrrios, Nele a oposio perde efeito e termos opostos podem aplicar-se com igual coerncia. Agostinho exemplifica, dizendo que Deus age repousando-se e repousa agindo, e, quando Ele realiza uma nova obra, no atravs de um novo projecto, mas devido a um projecto eterno. O antes e o depois s existem nos efeitos das suas aces e no no seu prprio agir. No houve em Deus duas vontades, em que uma tivesse sido abolida ou alterada pela outra. Foi por uma vontade nica e inaltervel que Ele impediu que as coisas fossem antes do seu tempo, tal como no as fez depois de j terem comeado. Isto mostra aos homens o quanto o criador independente das suas criaturas e como elas so o efeito de uma bondade totalmente gratuita. Comenta o autor que, na eternidade, Deus no tinha as criaturas consigo e no era por isso que era menos feliz.64

    61 O tema do tempo e da eternidade vem desenvolvido nas Eneadas VI, viii e III, vii de Plotino. A se

    define eternidade do nous como uma vida que persiste na sua identidade, que est sempre presente a ela prpria na sua totalidade, que no agora isto e depois aquilo, mas que simultaneamente, de uma s vez, que no agora uma coisa e daqui a pouco outra, mas que uma perfeio indivisvel. Tal como um ponto onde se unem todas as linhas, sem que elas se estendam jamais para fora; este ponto persiste em si prprio na sua identidade; no sofre modificao alguma; est sempre no presente e no tem passado nem futuro: ele o que e -o sempre. A eternidade no o substrato dos inteligveis, mas de certa forma o reflexo que sai deles mesmos [] (Apud SOLIGNAC, Note complmentaire n 18, 583). 62

    SOLIGNAC, Note complmentaire n 18, 583, 584. 63

    Puisquil y a une ternit dune part, et dautre part un temps, saint Augustin envisage chacune de ces deux ralits en projection dans celle quon lui oppose. Essayons de voir lternit du niveau du temps : nous comprendrons pourquoi elle se figure si grossirement sous les espces de lespace. Mais efforons-nous aussi, par une sorte de vision anticipe, de voir le temps du point de vue de lternit, - si imparfaite et si fuyante quen soit limage elle nous gardera dans la vrit (J. GUITTON, 174). 64

    Patitur quippe qui afficitur, et mutabile est omne quod aliquid patitur. Non itaque in ejus vacatione cogitetur ignavia, desidia, inertia ; sicut nec in ejus opere labor, conatus, industria. Novit quiescens agere, et agens quiescere. Potest ad opus novum, non novum, sed sempiternum adhibere consilium; nec

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    Os advrbios de tempo, tais com antes, ento, agora, depois ou os substantivos como comeo, fim, durao s se podem aplicar ao tempo humano; em relao Divindade eles assumem um sentido diferente ou so, simplesmente, absurdos. Para alm da linguagem, temos de considerar o risco que representa a nossa imaginao quando pensa acerca de Deus e projecta Nele qualidades humanas maximizadas. Somos constantemente tentados a idealizar um Deus nossa imagem e semelhana, por isso tudo o que possamos dizer ou imaginar acerca do Divino estar sempre afectado pelos nossos conceitos e ficar sempre infinitamente distante desse mistrio inenarrvel e absolutamente transcendente que a nossa razo deve procurar, mas nunca conseguir esgotar.

    O que os crentes acreditam que a criao fruto do amor divino e que a Divindade Absoluta estabelece uma relao nica e pessoal de amor com cada uma das suas criaturas humanas. No temos palavras rigorosas e claras para falar acerca de Deus e da eternidade. No sabemos o que a eternidade, se h alguma realidade por trs da palavra, talvez fosse melhor design-la por outro do tempo ou por supra-temporalidade. Em ltima instncia, parece no passar de uma palavra encontrada para tentar explicar e apreender a essncia e a existncia de Deus em contraste com a essncia e a existncia humana. Toda a nossa linguagem tem a marca da temporalidade. Mas Deus, se existe, no pode ser temporal, no pode envelhecer, no pode estar sujeito durao nem sucesso, logo, achamos que nada podemos dizer de forma segura e positiva, para alm da convico de que Ele . No nos parece razovel dizer com signos lingusticos unvocos o quer que seja acerca da sua condio ontolgica. Ela transcende infinitamente a nossa compreenso e a nossa linguagem tcnico-cientfica, por isso, os poetas/profetas/msticos so ao mais aptos para dizer e desdizer Dele alguma coisa.

    Se falamos de Deus como criador no podemos dizer antes nem depois nem durante nem quando. De Deus nem podemos dizer com absoluta segurana emprica que nem que no , pois esta terceira pessoa do singular do presente do indicativo exclusiva da criatura temporal. Deus est antes e transcendente s palavras. As palavras em relao a Deus so redutoras, porque analgicas e carregadas de humanismo. Deus os crentes acreditam que , pois ao contemplar os seus vestigia no universo e as suas prprias vidas, ao analisar a beleza e a complexidade de toda a criao no conseguem deixar de supor algum absolutamente superior que com todo o amor os faz ser. Para alm disso, a sua crena baseia-se em experincias pessoais de f, radicadas na unio mstica, proporcionada pela orao e pelas epifanias do prprio Deus em Jesus Cristo, nos profetas, nos patriarcas, nos santos e nas Sagradas Escrituras. Mas temos que reconhecer que toda a linguagem teolgica est contaminada de antropomorfismo, por isso, quando se fala de Deus, todas as reservas so poucas. Seria prefervel o silncio, se assim os crentes O pudessem comunicar uns aos outros, mas a crena tem de dar razes de si prpria e, logo, tem de ser argumentativa, tem de se mostrar razovel, j que no pode nem filosfica nem cientificamente demonstrar o que cr. A forma mais sublime de experimentar Deus ser sempre o silncio confiante e contemplativo ou o culto comunitrio solidrio, baseado numa linguagem ritual simbolicamente significativa e criadora e numa aco amorosa respeitadora e protectora

    poenitendo quia prius cessaverat, coepit facere quod non fecerat. [...] In illo autem non alteram praecedentem altera subsequens mutavit aut abstulit voluntatem, sed una eademque sempiterna et immutabili voluntate rea quas condidit, et ut prius non essent egit, quamdiu non fuerunt, et ut posterius essent, quando esse coeperunt: hinc eis qui talia videre possunt mirabiliter fortassis ostendens, quam non eis indiguerit, sed eas gratuita bonitate condiderit, cum sine illis ex aeternitate initio carente in non minore beatitate permansit (De civ. Dei, XII, 17; Apud J. GUITTON, 172).

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    do outro acima do eu. O signo religioso antes de tudo potico/mstico, diferente do signo da linguagem comum com que designamos referentes concretos e visveis. O signo religioso remete para uma realidade que nos transcende absoluta e infinitamente, que, por isso, no pode dar razes de si.

    2.1.3 A criao temporal

    Para Agostinho, a criao no tempo, relatada no livro do Gnesis, era um dos pontos mais delicados da teo