tempo e espaço nos quadrinhos

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Ensaio apresentado na disciplina Teorias do Cotidiano, ministrada pelo prof. Wellington Pereira, no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFPB.

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Page 1: Tempo e espaço nos quadrinhos

O mito do eterno retorno: espaço e tempo como

formas do cotidiano nas tirinhas de jornal

Alexandro Carlos de Borges Souza1

Os quadrinhos são filhos diletos do humor e da fantasia, e por mais que as mudanças

sofridas em pouco mais de um século tenham diversificado seus temas e públicos, é ainda por essas

veredas que a maioria das pessoas os reconhece, ou é apresentada a eles. Nascidos dos jornais,

primeiro como ilustração, depois como charges e, em seguida, desenvolvendo uma linguagem

própria no formato das tirinhas, ou comic strips, os quadrinhos não demoraram a alcançar uma

autonomia midiática, migrando para espaços próprios como suplementos dominicais, revistas

periódicas e, enfim, álbuns de luxo.

Se hoje os quadrinhos podem tratar de qualquer assunto que se possa pensar, servindo

inclusive como veículo para sisudas reportagens de guerra e relatos autobiográficos, esta arte da

“era da reprodutibilidade técnica” conseguiu se fixar na selva mercadológica das massas

amealhando a simpatia graças ao riso franco, mas nunca inocente, provocado por suas tirinhas de

humor, veiculadas diariamente nos jornais.

Hoje, as tirinhas de humor, como gênero e produto, podem estar sofrendo alterações

significativas, mas se encontram ainda longe de enfrentar uma decadência irremediável. O

encolhimento dos espaços editoriais vem vitimando as páginas reservadas para esse gênero

jornalístico2, comumente visto como superficial pelos editores (diferentes expressões formam esse

material 'menor' dos jornais, como quadrinhos, horóscopo, classificados, colunismo social e afins).

Ainda assim, nas publicações de grande circulação, os ditos 'jornalões', as tirinhas resistem, mesmo

que num espaço dominado pelos syndicates com os personagens de sempre.

Por isso, as tirinhas cômicas têm migrado com sucesso para o ambiente digital, mantendo

suas convenções formais de linguagem, com a clássica estrutura de três ou quatro quadrinhos3 e a

temática voltada para o humor. Em termos de gênero, pode-se inferir que a principal mudança se

resumiu ao lugar de construção de sentido, como propõe o linguísta Patrick Charadeau. Na internet,

há um ambiente criativo bem mais interessante e amplo que o dos jornais, com uma diversidade de

autores e personagens de impressionar.

1- Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal da Paraíba.

2 - A classificação das tirinhas como gênero jornalístico é defendida pelo pesquisador Marcos Nicolau.

3 - Ou vinheta, é a unidade básica de sentido dos quadrinhos, espaço geralmente delimitado por um contorno retilíneo (também chamado requadro) no qual são inseridos imagens ou texto que constituem a narrativa (RAMOS, 2009).

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A já citada autonomia midiática dos quadrinhos, no entanto, demorou a ser acompanhada

por uma maioridade crítica, uma vez que a reflexão sobre sua natureza e mensagem é recente. Isso

talvez seja consequência dessa origem cômica dos quadrinhos. Tal qual o fictício frei Jorge de

Burgos, criado por Umberto Eco (este um dos pioneiros no pensamento teórico sobre os

quadrinhos), a academia se recusaria a enxergar nessa comicidade e nessa liberdade imaginativa um

objeto digno de interesse.

Um problema semelhante acometeu por um bom tempo os estudos sobre o cotidiano nas

ciências sociais, que apenas recentemente mereceram a devida atenção. Esse “campo de apreensão

do real”, como define o sociólogo João Carlos Tedesco, se notabilizou por se tornar uma arena de

combate entre teóricos modernos e pós-modernos, divididos em dois principais eixos teóricos: o

marxista e o fenomenológico. Os primeiros empenhados em inscrever a vida cotidiana nas

macroestruturas de análise do social e os segundos alegando que o caráter fugidio e fragmentário do

cotidiano exclui e renega quaisquer projetos baseados em progresso social e linearidade histórica

(aqui novamente nos apoiamos nas observações de Tedesco).

Dentre os chamados pós-modernos, uma visão das mais interessantes do cotidiano (e

também das mais criticadas) é a do sociólogo francês Michel Maffesoli. Ele propõe um

reencantamento do mundo, a partir do conhecimento comum, que serviria como contraponto às

forças que tentam estabelecer os rumos do desenvolvimento social. Sua investigação é centrada nos

pequenos atos que formam o dia a dia, as ações insignificantes que, na verdade, compõem boa parte

da vida em comum das pessoas.

Essa mudança radical de visada foge, portanto, ao escopo generalizante das grandes visões

políticas e econômicas sobre o social (em especial as de cunho marxista e positivista). Para isso,

Maffesoli se utiliza de uma sociologia compreensiva pronta para investigar o mundo das formas

sociais, regidas fundamentalmente pelo imaginário, amparado nos pensamentos de Weber e Simmel,

entre outros.

O que nos interessa na viagem conceitual de Maffesoli é a maneira como ele vai construir

sua crítica à modernidade, alegando que a vida cotidiana se configura por meio de uma concepção

diferente de tempo, que renega o projeto moderno. Em linhas gerais, há uma noção de tempo de

fundo judaico-cristão, que poderia ser representada por uma linha reta em sentido único,

pressupondo pontos de partida e chegada e que seria o tempo histórico, uma imagem criada pela

modernidade. Esse tempo advoga uma ideologia baseada no ‘progresso’ e numa ‘evolução’ do

corpo social ao longo da linha, buscando racionalizar cada aspecto da vida em sociedade.

Maffesoli afirma que o cotidiano funciona sob outra lógica e seu tempo seria pagão, em

contraposição ao tempo cristão da modernidade. Ao invés de linearidade, o cotidiano é regido por

fragmentação, descontinuidade e vazios de sentido. Neste cotidiano, uma rica simbologia, ainda que

inconsciente e dissimulada, garante a coesão social. A vida próxima das pessoas seria, então, regida

pelo nonsense, pelo jogo da diferença, pelo tempo cíclico, pela repetição ritual, pela teatralidade,

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pelo trágico. Há, aqui, claros ecos do eterno retorno nietzscheano.

Seriam essas as chamadas formas do social, arquétipos fundamentais que, no dia a dia,

transfiguram-se em estereótipos banais, devido ao esvaziamento de sentido operado pela repetição

desses atos. Essas formas são, ao mesmo tempo, aparentes e dissimuladas. Estão na superfície das

coisas, mas sua recorrência abundante é vista como inexpressiva. É assim que o autor concilia

noções aparentemente antagônicas como o cotidiano e o imaginário.

Para alcançar a amplitude conceitual do cotidiano, é necessário aplicar uma visão global,

porém não globalizante. “Existe uma resistência teimosa do concreto mais próximo frente a

qualquer explicação redutora e simplificadora”, diz Maffesoli, em A Conquista do Presente –

ecoando a complexidade prescrita por Edgar Morin em seu Método.

O olhar sobre o cotidiano de Maffesoli também evita o discurso de pretensões científicas

aplicado ao social, como ele mesmo explica: “É bem mais ‘realista’ reconhecer o impressionismo

de uma avaliação, afirmar a polissemia que brilha numa situação ou num conjunto social do que

acreditar na cientificidade de um veredicto generalizante e totalitário.” Esse é o espaço ocupado

pela sociologia compreensiva proposta pelo sociólogo.

A analogia é um recurso recorrente utilizado por Maffesoli para embasar sua explanação

sobre as formas sociais. Sendo assim, vamos lançar mão também de algumas analogias para essa

investigação sobre como a relação dos quadrinhos com o cotidiano se dá sob o signo do tempo.

Com isso, poderemos localizar algumas raízes de sua popularidade e sucesso junto às massas.

Considere-se, por exemplo, que a imprensa seja uma espécie de discurso moderno,

racionalizante sobre o cotidiano. Assim, o jornal diário tenta acomodar o cotidiano no interior de

uma narrativa clássica, linear, com começo meio e fim, pela qual o público reconhecerá a inscrição

diária do mundo numa ordem pré-estabelecida4. Não apenas isso: o jornal busca também inscrever

os fatos do dia na ordem macroeconômica e política do mundo, encaixá-lo na metanarrativa

moderna.

Porém, o discurso jornalístico não é unívoco, nem em forma, nem em conteúdo. Aliado ao

noticiário, há uma variedade de discursos e gêneros que não podem ser ignorados, mesmo que

ocupem posições 'subalternas ' ou de pouco destaque na edição. Uma visão plural sobre o que é

veiculado no jornal pode mostrar como, por trás do discurso uniformizador, há espaço para a

subversão silenciosa do cotidiano mágico.

E poucos gêneros jornalísticos têm essa capacidade como as tirinhas cômicas. A melhor

maneira de entender como isso se dá é analisando como se constroem as relações do tempo e do

4- Vale salientar que, no interior dos textos jornalísticos, pode-se operar uma desconstrução, mesmo que involuntária, dessa colonização do cotidiano. Mas, não é objetivo desse texto apontá-la. Traquina também aponta um caráter anti-histórico do jornalismo, visto que o mesmo tenta encerrar os acontecimentos na ordem do dia, ‘esquecendo-se’ de relacioná-los com fatos anteriores, como é comum em coberturas a longo prazo de conflitos, por exemplo.

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cotidiano nas tirinhas. A começar pela própria estrutura dessas obras. Num espaço reduzido,

horizontal, até quatro quadros são utilizados para comportar a narrativa. Esta não é uma regra fixa,

mas um padrão. Algumas tiras, por exemplo, podem ter apenas um quadro, como o caso de Frank

and Ernest; outras podem usar um espaço maior – e mais quadros – para desenvolver histórias mais

complexas, como Sic, de Orlandelli, ou Nemo in Slumberland, de Winsor McCay.

Na tira, o objetivo final é o humor. O que 'encerra' a narrativa, ou seja, o que a justifica, é o

efeito cômico que se obtém ao final da leitura. Logo, não há um princípio, meio e fim aristotélicos

para a história contada. Ela se dá por encerrada ao conseguir seu objetivo prático. A tira é, portanto,

episódica, anedótica, irregular.

A própria estrutura dos quadrinhos é fragmentária. Cada quadro da tirinha ressalta

determinado momento no espaço-tempo rico em significado, cuja proximidade com outro quadro

acrescenta sentido ao anterior e impulsiona a narração. O que ocorre entre um quadro e outro é

vazio, mas pleno de significados, uma vez que cabe ao leitor completar, em sua imaginação, os

momentos insignificantes que ficaram subentendidos5. Do mesmo modo é o tempo social: pleno de

vazios insignificantes, pontuados por momentos de intensa vivacidade.

O tempo nas tirinhas cômicas é quase sempre cíclico, o que torna o espaço da ação

recorrente. Ao fim de cada tira, ou a cada edição do jornal, o tempo se renova para os personagens,

como se nada tivesse ocorrido anteriormente. Geralmente, fatos ocorridos em tiras anteriores

dificilmente trazem quaisquer repercussões para a seguinte. Personagens se machucam, às vezes até

morrem, para retornar na edição do dia seguinte como se nada houvesse ocorrido.

Quando há a persistência de elementos na narrativa (e isso se dá na maioria das vezes

espacialmente) ela é temática, mas não contínua. Ou seja, a recorrência de elementos de dias

anteriores funciona mais como um mote do que como uma sequência narrativa propriamente dita.

Tome por exemplo Calvin and Hobbes, sucesso mundial de Bill Waterson sobre o menino

hiperativo e seu tigre de estimação. Em determinadas tiras, o garoto está em casa, no jardim ou na

escola, seus espaços de convivência normais. A permanência dele em determinados lugares não

obedece a uma ordem narrativa pré-estabelecida, mas apenas enquanto tais espaços se mostrarem

úteis para o exercício humorístico do autor.

Não há uma evolução cronológica ou temporal do personagem: no dia seguinte, a tira

poderá trazê-lo em outro espaço sem que haja a necessidade de justificar essa mudança. Não há,

muito menos, sinais da passagem do tempo: Calvin and Hobbes foi publicada durante uma década e

apesar de, a cada ano, os personagens aparecerem celebrando datas como Natal, aniversário ou

Halloween, não vemos o garoto envelhecer um dia sequer ao longo de 10 anos.

5 - Nesse sentido, Moacy Cirne vai considerar que a especificidade dos quadrinhos está nesse corte gráfico, o espaço em branco existente entre um quadro e outro.

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Essas peculiaridades podem ser ampliadas para uma diversidade de tiras cômicas como

Peanuts (Charlie Brown); Hagar, o Horrível; Garfield; Recruta Zero e várias outras. Além disso,

essa percepção cíclica do tempo migrou das tirinhas cômicas para os quadrinhos infantis, passando

depois para outra expressão derivada diretamente destes últimos: os desenhos animados.

Podemos observá-la na Turma da Mônica, de Maurício de Sousa, no qual a criançada do

bairro do Limoeiro permanece há três décadas nos seus sete, oito anos de idade, mesmo a cada ano

sendo publicadas edições comemorativas de aniversário desse ou daquele personagem. O tempo é

autocontido e se renova a cada história, permanecendo os quadrinhos ligados ao cotidiano mesmo

possuindo uma periodicidade maior que a do jornal.

Em desenhos mais modernos, essa típica relação com o tempo é motivo de crítica ou

material para o próprio humor das séries. Como, por exemplo, na telessérie Os Simpsons, em que a

família (cujo bebê Maggie permanece de chupeta após 22 temporadas!) passa pelas mais

mirabolantes peripécias a cada episódio para retomar a sua vida familiar no episódio seguinte como

se nada tivesse acontecido. Ou ainda no seriado South Park, em que um dos personagens era

persistentemente assassinado a cada episódio para retornar na próxima semana sem que ninguém

estranhasse isso, o que gerou até um bordão ('Oh, my god, they killed Kenny!').

Que impacto não deveria causar sobre o público uma obra como Little Nemo in

Slumberland, de Winsor McCay? Imagine abrir um jornal dominical em algum dia por volta de

1907 e se deparar com uma página inteira a cores com sempre a mesma história de um menino que

se envolve em situações absurdas e mirabolantes numa terra encantada para acordar, no último

quadro, sendo chamada pela mãe. Uma irrupção do onírico e do imaginal6 em meio a páginas e

páginas do discurso apolíneo e racional sobre a vida operado pelo jornal.

Essa repetição cíclica reforça outra característica do cotidiano: a intensidade da vida

mesmo em seus momentos de vazio e repetição. Afinal, se o tempo nas tiras é cíclico e

autorrenovável, a sua publicação constante consiste num compêndio de momentos ricos em

significado e força vital que se acumulam num mesmo espaço-tempo, ao mesmo tempo banal e

encantador. Essa pujança pode justificar a permanência das tirinhas como gênero mesmo com a sua

gradual expulsão de seu ambiente midiático originário e sua migração para o meio digital.

6- Termo empregado por Maffesoli, em referência à fenomenologia, para denominar a força de criação da imaginação sobre o social.