tempo e crise na teoria da modernidade de reinhart koselleck

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    histria da historiografia ouro preto nmero 8 abril 2012 70-90

    Tempo e crise na teoria da modernidade de ReinhartKoselleck

    Time and crisis in Reinhart Koselleck's theory of modernity

    ResumoEste artigo explora dois aspectos constitutivos da teoria da modernidade proposta pelo historiadoralemo Reinhart Koselleck. O primeiro corresponde sua interpretao da emergncia da noo detempo histrico; e o segundo, a seu argumento acerca da crise sociopoltica que se instaura apartir da tendncia moderna a recorrer a filosofias da histria para sustentar programas de aopoltica. Procurar-se- demonstrar que Koselleck, ao mesmo tempo em que sada a descoberta/inveno pelas filosofias da histria do sculo XVIII de uma histria humana, condena ainstrumentalizao poltica dessas mesmas filosofias como o vetor de uma crise que se estende daRevoluo Francesa at a Guerra Fria. guisa de concluso, sugerem-se alguns pontos deaproximao entre a viso da modernidade de Koselleck e aquela da filsofa Hannah Arendt.

    Palavras-chaveTeoria da histria; Modernidade; Reinhart Koselleck.

    AbstractThis article explores two inherent aspects of the theory of modernity proposed by the Germanhistorian Reinhart Koselleck. The first one corresponds to his interpretation of the emergence ofthe notion of historical time; and the second one, to his argument on the sociopolitical crisis setoff by the modern tendency to use philosophies of history as support for programs of politicalaction. It will be shown that Koselleck, while saluting the discovery/invention by the 18th centuryphilosophies of history of a human history, condemns the political instrumentalization of thosephilosophies as the vector of a crisis that extends itself from the French Revolution up to the ColdWar. As a conclusion, a few points of contact between Kosellecks vision of modernity and that ofthe philosopher Hannah Arendt are suggested.

    KeywordsTheory of history; Modernity; Reinhart Koselleck.

    Enviado em: 6/9/2011Aprovado em: 27/9/2011

    Joo de Azevedo e Dias DuarteDoutorandoPontfica Universidade Catlica do Rio de [email protected] Senador Vergueiro, 23/903 - Flamengo22230-000 - Rio de Janeiro - RJBrasil

    * Este artigo tem sua origem em um seminrio especial de teoria e histria da historiografia ministradono segundo semestre de 2009, na PUC-Rio, pelo professor Marcelo G. Jasmin, a quem agradeo peloscomentrios e sugestes a uma verso preliminar, apresentada em forma de palestra, em 2010, no 4Seminrio Nacional de Histria da Historiografia. Agradeo tambm ao CNPq e FAPERJ, financiadoresde minha pesquisa de doutorado.

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    Sem risco de exagero, possvel dizer que o historiador e terico alemoReinhart Koselleck hoje uma figura bem conhecida no mbito acadmicoda histria e das cincias humanas no Brasil. O acesso sua obra foi facilitadograas s tradues para o portugus de sua tese de doutorado, submetida Universidade de Heidelberg em 1954 e publicada em 1959, Crtica e crise:uma contribuio patognese do mundo burgus (1999), e da coletneade artigos da dcada de 1970, Futuro passado: contribuio semnticados tempos histricos (2006), e o prestgio e a influncia de Koselleck tmcrescido consideravelmente entre os intelectuais brasileiros. Sua contribuioterica e metodolgica tem sido discutida e comparada a outras abordagensno campo da histria intelectual, ao mesmo tempo em que a metodologiada histria dos conceitos (Begriffgeschichte) j encontra aplicaes em nossaprtica historiogrfica.1

    H, porm, um elemento importante de sua obra que tem sidorelativamente pouco explorado pela bibliografia, e do qual o presente artigopretende tratar: sua teoria da modernidade, i.e., sua concepo acerca doperodo compreendido, grosso modo, entre os sculos XVIII e XX da histriaeuropeia.2 Pretendo abord-la a partir de uma discusso de dois de seusaspectos mais salientes: a histria da emergncia da noo de tempo histricoe o argumento acerca das consequncias sociopolticas extremas envolvidasno uso de filosofias da histria, a partir do sculo XVIII, para legitimar programasde ao poltica. Meu propsito ser pr em evidncia a atitude ambivalentemanifestada por Koselleck a respeito da modernidade. Pois, para ele, esseperodo, ao mesmo tempo em que inaugura possibilidades nicas eextremamente profcuas para o pensamento, tambm o momento de umaescalada sem precedentes de violncia e de guerras, cuja inevitabilidade,inicialmente dissimulada, foi forjada pelas filosofias da histria que a originaram e aimpulsionaram. guisa de concluso, sugerirei alguns pontos de contato entre aviso da modernidade de Koselleck e aquela de sua conterrnea e contempornea,a filsofa Hannah Arendt. Buscarei, dessa forma, aproximar dois intelectuais cujasobras refletem experincias intensas do sculo XX: a aventura do pensamento e acatstrofe poltica das guerras e dos regimes totalitrios.

    Tempo

    Koselleck praticava aquilo que, em alemo, se chama Historik, metodologiaou teoria da histria. Sua nfase na teorizao, ou a sua defesa da necessidade

    1 Como evidncia desse interesse e pela importncia de sua contribuio ao debate, destacam-se asduas coletneas organizadas por Marcelo Jasmin e Joo Feres Jr.: Histria dos conceitos: debates eperspectivas (2006) e Histria dos conceitos: dilogos transatlnticos (2007). Parte de um projetointernacional em andamento de realizar uma histria conceitual dos pases de fala espanhola eportuguesa na Europa e na Amrica (Iberconceptos), o Lxico da histria dos conceitos do Brasil(2009), envolvendo pesquisadores de diferentes instituies, contm um conjunto significativo detrabalhos empricos que recorrem a procedimentos tericos e metodolgicos da Begriffgeschichte.2 Em ltima instncia, sua reflexo metodolgica e prtica historiogrfica decorrem e se organizam apartir da problemtica da emergncia e constituio da modernidade. Sandro Chignola (2007) discuteproblemas relacionados aplicabilidade do mtodo da Begriffsgeschichte provenientes dessa premissa;cf. nota 6 deste artigo.

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    de teoria para a disciplina da histria, notria e se verifica pelo fato de que viaa pesquisa semntica, conduzida segundo o mtodo da histria dos conceitos,como uma espcie de propedutica para a teoria ela leva teoria dahistria (KOSELLECK 2006, p. 306). Embora o termo teoria seja tambmaplicado para se referir s vrias teorias que os historiadores costumam tomaremprestado s cincias sociais em suas investigaes empricas, e que seresumem na rubrica histria social, , principalmente, ao estudo das pr-condies meta-histricas, antropolgicas, da experincia histrica que Koselleckse refere quando o emprega. Em sua prpria definio, uma teoria da histria uma teoria que estabelece as condies para a histria possvel (KOSELLECK2006, p. 187), ou ainda: uma doutrina das condies de possibilidade dehistrias (KOSELLECK 1997, p. 70). Para Koselleck, as fontes lingusticas semprese remetem a algo alm (ou aqum) da linguagem: as condies antropolgicas,pr-lingusticas, que constituem estruturas formais de repetio, cuja atualizaoemprica diversificada d origem s histrias concretas (KOSELLECK 2002, p.2-3). Para apreender o modo pelo qual as histrias emergem, Koselleck recorrea uma abordagem terica que continua, ainda que de forma alterada e original,a tradio da epistemologia histrica tal como concebida no mbito acadmicoalemo das Geisteswissenschaften. No por acaso, seu projeto de analisar ascondies para a histria possvel possui ecos neokantianos evidentes.3

    A questo central a que uma teoria da histria deve responder, e que,literalmente, abre a coletnea de artigos Futuro passado, : o que o tempohistrico? (KOSELLECK 2006, p. 13). A noo de tempo histrico chavepara a apreenso terica da possibilidade da histria em Koselleck,4 e tambmpara a compreenso de sua concepo da modernidade. Embora no lhe sejacompletamente estranho, o tempo histrico no redutvel ao tempomensurvel e natural, o tempo astronmico ou biolgico (KOSELLECK 2006, p.14-15). A histria tem um tempo prprio, imanente, e este tempo dependedas experincias concretas dos homens; mais especificamente, depende damaneira pela qual os homens articulam em cada presente a dimenso dopassado, sua experincia acumulada, e a dimenso do futuro, suasexpectativas, esperanas e prognsticos.5

    Se a histria tem um tempo, tambm o tempo tem uma histria. Nosartigos que compem Futuro passado, Koselleck prope a tese de que a

    3 A excelente introduo de Elas Jos Palti traduo espanhola da coletnea de artigos de Koselleck,Los Estratos del Tiempo: estudios sobre la historia (2001), situa a Historik de Koselleck em relao aohorizonte mais amplo do debate terico e historiogrfico alemo e sugere sua continuidade com oprojeto de Wilhelm Dilthey de uma crtica da razo histrica. Koselleck jamais elaborou sua teoria dahistria na forma de um tratado sistemtico, e suas reflexes a esse respeito encontram-se dispersasao longo do vasto conjunto de ensaios publicados. A contribuio de Koselleck ao Festschrift de Gadamer,Historik und Hermeneutik, de 1985, marca, sem dvida, um esforo, que persistiria em seus textossubsequentes de precisar melhor as categorias de sua Historik, e, assim, diferenciar sua abordagemterica tanto da hermenutica filosfica quanto do giro lingustico nas cincias humanas (cf. KOSELLECK1997; 1989; 2000; 2002; cf. tambm HOFFMAN 2010).4 Para uma discusso perspicaz da noo de tempo histrico em Koselleck, cf. ZAMMITO 2004.5 Espao de experincia (Erfahrungsraum) e horizonte de expectativa (Erwartungshorizont) soduas das categorias que Koselleck emprega como condies de possibilidade da histria; elas remetema um dado antropolgico prvio, sem o qual a histria no seria possvel, ou no poderia sequer serimaginada (KOSELLECK 2006, p. 308).

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    a experincia temporal e, consequentemente, tambm a ideia de histria teriamsofrido, no mbito da cultura alem, uma transformao decisiva entre 1750 e1850 - perodo de transio entre a primeira modernidade (frhe Neuzeit) e oque se poderia chamar de a modernidade propriamente dita.6 Koselleck insisteque houve uma verdadeira obsesso com o tempo durante esse perodo, oque se revela, na linguagem contempornea, por meio da criao de novosconceitos, neologismos contendo uma qualidade temporal, ou na resignificaode conceitos antigos, os quais passaram a exibir um fator temporal:

    praticamente ningum conseguiu escapar ao conceito de tempo e ao que eleera capaz de oferecer. O tempo exerceu uma influncia sobre o conjunto dalinguagem, e pelo menos a partir da Revoluo Francesa deu colorido a todoo vocabulrio poltico e social (KOSELLECK 2006, p. 296).7

    Tais fenmenos lingusticos, que integram o processo que se denominatemporalizao (Verzeitlichung), culminam na emergncia de um tempo novo(neue Zeit): a modernidade (Neuzeit). Embora a consolidao, no sculo XVIII,da trade Antiguidade, Idade Mdia e Idade Moderna, rematando uma disposiopara derivar a periodizao de princpios histricos imanentes, seja umacaracterstica da nova experincia, no se trata simplesmente do estabelecimentode um novo perodo histrico. Trata-se, fundamentalmente, da descoberta/inveno dos tempos histricos. evidente que no faz sentido falar de umtempo novo quando se considera o tempo natural, objetivo, dado que esteflui continuamente, de maneira invarivel. O ponto de Koselleck que algo naexperincia, na percepo do tempo, se alterou. Surgiu, na modernidade, umnovo conceito de tempo, emancipado da cronologia natural; um tempo denatureza distinta daquele que se experimentara, at ento, como um meioneutro, um mero pano de fundo sobre o qual se projetavam, repetindo-se, asaes e as instituies humanas. Desde ento,

    o tempo passa a ser no apenas a forma em que todas as histrias sedesenrolam; ele prprio adquire uma qualidade histrica. A histria, ento,passa a realizar-se no apenas no tempo, mas atravs do tempo. O tempose dinamiza como uma fora da prpria histria (KOSELLECK 2006, p. 283).

    6 Koselleck emprega o conceito de Sattelzeit para se referir a este perodo, comumente traduzido, deforma literal, como tempo-sela. Recentemente, Koselleck demonstrou preferir o termo Schwellenzeit(tambm literalmente, tempo liminar), que aponta de forma menos ambgua para a transio queprepara para outra experincia de tempo e outro mundo conceitual (KOSELLECK 2006, p. 108). Boaparte da prtica da Begriffsgeshichte, da qual o nome de Koselleck tornou-se praticamente umametonmia, consiste na documentao desta transformao, reunida no monumental GeschichtlicheGrundbegriffe. Historisches Lexicon der politisch-sozialen Sprache in Deutschland, organizado porKoselleck, Otto Brunner e Werner Conze. Sandro Chignola (2007) acredita que, por no se colocar aquesto a respeito da origem da moderna cientificidade da poltica, aquela cientificidade que tornapossvel falar dela justamente por conceitos, o projeto do Geschichtliche Grundbegriff tende a imprimirum carter evolutivo e anacrnico sua abordagem, projetando retrospectivamente a experinciamoderna da poltica sobre toda a tradio ocidental.7 Koselleck menciona ainda que a enciclopdia alem Grimm registra mais de cem expresses novascompostas com a palavra tempo (Zeit) surgidas entre 1770 e 1830 (KOSELLECK 2006, p. 294).

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    Do ponto de vista da experincia temporal, o que est em jogo napassagem para a modernidade uma nova forma de articulao entre o passadoe o futuro, entre experincia e expectativa, que envolve uma separaoprogressiva entre ambos:

    minha tese afirma que na era moderna a diferena entre experincia eexpectativa aumenta progressivamente, ou melhor, s se pode conceber amodernidade como um tempo novo a partir do momento em que asexpectativas passam a distanciar-se cada vez mais das experincias feitasat ento (KOSELLECK 2006, p. 314).

    Na modernidade, a produo de mudanas de forma mais acelerada faziacom que a experincia passada fosse cada vez menos pertinente para darconta das novas experincias e, em consequncia, o futuro se tornavaprogressivamente mais imprevisvel. Subjetivamente, isso foi percebido comose o tempo se acelerasse: o tempo que se acelera em si mesmo, isto ,nossa prpria histria, abrevia os campos da experincia, rouba-lhes suacontinuidade, pondo continuamente em cena mais material desconhecido(KOSELLECK 2006, p. 36).

    Segundo Koselleck, at meados do sculo XVIII, era perfeitamente razovelcontar-se com a futuridade do passado, ou seja, com a expectativa de que ofuturo se assemelharia ao passado. Precisamente por que nada deessencialmente novo poderia em princpio ocorrer (KOSELLECK 2006, p. 34),era possvel tirar diretamente concluses do passado para o futuro. Este era osentido do topos ciceroniano historia magistra vitae, que sintetiza a configuraohistoriogrfica que prevalecera at ento: a histria como uma coleo deexemplos que servem prudncia dos homens. Tal concepo magistral dehistria assentava-se sobre uma estrutura temporal esttica que articulavapassado, presente e futuro em um espao contnuo. Dentro desse espao, asaes e os eventos repetiam-se ou, ao menos, admitia-se que poderiam serinterpretados de forma anloga , o que garantia a possibilidade de se aprendercom o passado, i.e., de que os acontecimentos passados, cuidadosamentetransmitidos e conservados na memria da posteridade, serviriam como guiaspara os homens no presente e no futuro. Na modernidade, entretanto, com aemergncia de um futuro diferente do futuro passado, um futuro aberto,indeterminado e indeterminvel pelas experincias passadas, o passado cessoude ensinar. A radicalidade do futuro, vivido no presente como acelerao,separou as dimenses do tempo, anulando a utilidade da experincia passada.O passado deixou de iluminar o futuro, segundo a famosa frase de Tocqueville,e o velho topos se dissolveu frente a um tempo novo.

    A primeira categoria com que se compreendeu esta nova experinciatemporal foi o conceito de progresso, no qual se deixa manifestar uma certadeterminao do tempo, transcendente natureza e imanente histria(KOSELLECK 2006, p. 55). Se, por um lado, o progresso representava umasecularizao das expectativas crists do futuro, por outro, tratava-se de umsingular coletivo (Kollektivsingular), i.e., um metaconceito globalizante que

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    sintetizava em um movimento nico e universal uma srie de experinciasnovas que vinham interferindo, com profundidade cada vez maior, na vida doseuropeus desde o sculo XVI.8 A Revoluo Copernicana, o desenvolvimentoda tcnica, o descobrimento do globo terrestre com suas populaes vivendoem fases diferentes de desenvolvimento, a dissoluo do mundo feudal pelaindstria e pelo capital, e, depois de 1789, a Revoluo Francesa foram fatoresque contriburam para tornar a sensao de surpresa, de ruptura da continuidade,uma constante da modernidade.

    No mbito dessa experincia de surpresa permanente, que comeava entoa impor-se, o tempo foi modificando em etapas o sentido quotidiano doseu fluxo, ou do ciclo natural dentro do qual as histrias acontecem.Agora, o prprio tempo podia ser interpretado como novo, pois o futurotrazia outro futuro, e isto mais depressa do que parecia possvel (KOSELLECK2006, p. 289).

    Esses vrios fatores contriburam tambm para a disseminao daexperincia (cuja origem remete expanso para o ultramar) da coexistncia,em um mesmo espao temporal, de vrios tempos distintos aquilo queKoselleck designa como contemporaneidade do no contemporneo(Gleichzeitigkeit des Ungleichzeitigen), i.e., a percepo da convivncia de umamultiplicidade de fenmenos histricos movendo-se segundo ritmos imanentese diferenciados. A maneira pela qual a conscincia filosfica europeia lidou comessa experincia, no final sculo XVIII, foi por meio da ordenao diacrnica ehierrquica dos vrios tempos em um movimento nico, linear e universal,denominado progresso. Essa brutal singularizao se deu, tambm, entre outrosconceitos polticos, no conceito de histria prprio modernidade: a histriatornou-se um singular coletivo, um metaconceito transcendental, que sintetizarelato e acontecimento e engloba as vrias histrias individuais, que, at ento,eram percebidas como desconexas entre si.9 Envolvendo toda a humanidade,a histria do progresso um percurso estruturado de desenvolvimento, que seinicia na barbrie e se orienta na direo de um futuro luminoso.

    8 Ao insistir na tese, originalmente formulada por Karl Lwith (1977 [1949]), de que a ideia de progresso uma verso secularizada do esquema escatolgico judaico-cristo, Koselleck evita a distinoestabelecida por Hans Blumenberg, em sua crtica tese da secularizao (1999, espec. part. 1),entre uma ideia legtima de progresso que se baseia em experincias concretas e responde aoproblema da contingncia da existncia mundana decorrente da nfase, no final da Idade Mdia, naonipotncia divina e uma verso desvirtuada e ilegtima do progresso como um movimento linear,universal e inevitvel, que se articula nas filosofias da histria, reocupando a estrutura vazia datemporalidade do esquema escatolgico cristo. No entanto, Koselleck acompanha Blumenberg nos em conceder ao conceito de progresso um fundamento em experincias concretas, como tambmem conceb-lo, a despeito de continuidades, como uma inovao radical em relao s expectativascrists: o que nos importa aqui, antes de tudo, lembrar que o progresso estava voltado para umatransformao ativa deste mundo, e no do alm, por mais numerosas que possam ser, do ponto devista intelectual, as conexes entre o progresso e uma expectativa crist do futuro (KOSELLECK2006, p. 318). Sobre o debate Lwith-Blumenberg, cf. WALLACE (1981; 1999). Jean-Claude Monod(2002) oferece um panorama da discusso acerca da secularizao no pensamento alemo.9 Em alemo, essa transformao marcada na linguagem pelo progressivo abandono, consolidadona segunda metade do sculo XVIII, do termo Historie, que dizia respeito narrativa dosacontecimentos, em favor do emprego do termo novo Geschichte, que designava tanto o relato quantoo acontecimento em si (KOSELLECK 2006, p. 48).

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    Segundo Koselleck, o conceito de progresso s foi criado no final dosculo XVIII (KOSELLECK 2006, p. 317). No entanto, a noo teoricamenterevolucionria de tempo histrico, i.e., de um tempo imanente histria, jvinha sendo preparada nas teorias do conhecimento histrico de figuras comoo telogo luterano Johann Martin Chladenius (1710-1759) e o historiador JohannChristoph Gatterer (1727-1799), precursores do Historicismo.10 Chladenius eGatterer contriburam para que a histria se constitusse como uma prticadisciplinar cientfica, encetando uma reflexo teoricometodolgica (Historik),da qual o prprio Koselleck se via como um continuador. De acordo comKoselleck, o significado da teoria da perspectiva histrica elaborada porChladenius residiu em relativizar o pressuposto epistemolgico que sustentavaa concepo at ento prevalecente, da historiografia como a mera narrativados acontecimentos tal como se deram. Segundo este realismo ingnuo,como Koselleck o denomina (KOSELLECK 2006, p. 164), a verdade histrica algo que se revela imediatamente ao observador imparcial, e, portanto, quantomais prximo estiver o narrador do evento se possvel como sua testemunhaocular mais verdadeiro ser o seu relato. Da advinha, segundo Koselleck, apreferncia concedida histria do presente, o registro cuidadoso dosacontecimentos dignos de serem registrados.

    Embora no questionasse o privilgio metodolgico da histria do presentee da testemunha ocular como o melhor historiador, Chladenius tornou a ideia deimparcialidade problemtica. Para Chladenius, mesmo que os acontecimentos,uma vez transcorridos, permaneam inalterados como realidades acabadas, asrepresentaes que deles so feitas necessariamente variam conforme a posiodo observador. Por mais que estejam sinceramente comprometidos com relatar averdade, historiadores diferentemente situados e oriundos de lugares sociais distintosiro produzir relatos diferenciados. Do ponto de vista da teoria do conhecimento, anovidade introduzida por Chladenius foi que a relatividade dos juzos histricosdeixava de ser um inconveniente para se tornar o ndice mesmo de uma verdadecujo acesso condicionado pela posio daquele que observa e registra osfenmenos ocorridos. Ao levar em conta a posio do narrador, a histria comeavaa se tornar eo ipso interpretao.11

    relatividade espacial, acrescentou-se a relatividade temporal, e a histriafoi historicizada. Ao longo dos sculos XVIII e XIX, a teoria da perspectiva,acompanhando aquilo que se deu com a linguagem poltica no horizonte doprogresso, incorporou tambm um fator temporal. Gatterer, entre outros,colocou em questo as ideias, ainda mantidas por Chladenius, de que a verdade

    10 Sobre Chladenius e Gatterer, o papel deles e de outros autores do Iluminismo alemo nodesenvolvimento do Historicismo, REILL 1975.11 A nfase de Koselleck no papel chave de Chladenius em seu desenvolvimento na Alemanha noobscurece o fato de que a moderna conscincia da historicidade dos fenmenos foi preparada, pelomenos desde o Renascimento, pelos estudos comparativos de direito, pela crtica bblica e pela filologiahumanista (cf., por exemplo, KELLEY 1970). Recuando mais no tempo, Funkenstein discute o papelque o princpio hermenutico da acomodao, partilhado pelos exegetas medievais judaicos e cristos,teria exercido na formao dessa conscincia, FUNKENSTEIN 1986, p. 202-289.

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    histrica permaneceria sempre idntica a si mesma e de que a testemunha diretaseria o melhor historiador. Isso se deu por que a passagem do tempo deixou deser vista como neutra e passou a ser percebida como capaz de alterar no apenaso presente, mas tambm, a posteriori, o prprio passado. O tempo novo, otempo da modernidade, trazia novas experincias, e essas experinciastransformavam a viso que se tinha dos acontecimentos ocorridos.

    Em outras palavras, os acontecimentos perderam seu carter histrico estvel,que at ento havia sido fixado nos anais. Tornou-se possvel, ou mesmonecessrio, que com o correr do tempo os mesmos processos fossem narradose avaliados de forma diferente (KOSELLECK 2006, p. 287).

    Tratava-se de uma questo de (novas) perspectiva(s), nas palavras deGoethe: A histria tem de ser reescrita de tempos em tempos, pois oscontemporneos de um tempo que progride so levados a pontos de vista apartir dos quais o passado se deixa contemplar e julgar de maneira nova(apud KOSELLECK 2006, p. 177). Com isso, a perspectiva do observador direto,da testemunha ocular, perdia seu privilgio epistmico para aquela mais ricaem experincia (melhor posicionada) do historiador vindouro, e o registro dahistria do tempo presente, at ento dominante, entrava em crise. O tempopresente da modernidade mudava de forma to rpida que escrever a suahistria se tornou uma tarefa no apenas difcil como tambm pouco proveitosa,porque sujeita a se tornar obsoleta antes mesmo de terminada. Nesse processo,a forma de reproduo do passado tambm se alterou: o passado deixou deser mantido na memria pela tradio escrita ou oral, passando a serreconstrudo pelo procedimento crtico (KOSELLECK 2006, p. 174). A aceleraodo tempo, a separao progressiva das dimenses temporais, que o ncleoda experincia moderna do tempo, alienava e relegava o passado a umaalteridade crescente, obrigando-o a ser reconstrudo pela crtica histrica emsua crescente alteridade, ele [o passado] tornou-se um objeto especial dacincia histrica crtica (KOSELLECK 2006, p. 81). Ao incorporar teoria doconhecimento histrico a nova concepo do tempo, a filosofia da histria pr-revolucionria contribuiu para o abandono do princpio da possvel repetiodos eventos, fundamento da configurao magistral da histria. No h comoextrair lies do passado, pois ele diferente do presente, que, por sua vez,ser distinto do futuro. A singularidade dos eventos, a singularidade da histria,tornou-se a principal premissa terica tanto do historicismo quanto das teoriasdo progresso (KOSELLECK 2006, p. 144).

    Para Koselleck, o historicismo e o progresso, embora paream conceitosantagnicos, so como duas faces da mesma moeda (KOSELLECK 2006, p.81). Noutras palavras: a elaborao crtica do passado, a formao da escolahistrica, se baseia na mesma circunstncia que tambm ps em marcha oprogresso que se projetava para o futuro (KOSELLECK 2006, p. 319). Acircunstncia que aproxima a crtica histrica e o progresso a separao

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    entre passado e futuro, que caracteriza a experincia da modernidade e d origem noo de tempo histrico. Sua relao, porm, contingente e no necessria.Em sua extrema conciso, a passagem acima chama a ateno tambm para umponto que aqui nos interessa enfatizar: a ideia de que, na modernidade, ao mesmotempo em que se abrem, com o surgimento da noo de tempo histrico,possibilidades inditas e extremamente profcuas para a reflexo sobre a histria,essas mesmas possibilidades acabariam sendo restritas a elaboraes progressistas,filosofias da histria que sero, por sua vez, o instrumento de uma crise sociopolticasem precedentes. A reflexo terica de Koselleck, que segue a trilha aberta porChladenius, constitui um esforo para explorar o potencial da noo de tempohistrico dissociando-a das elaboraes progressistas.

    Crise

    Passemos agora noo de crise e dimenso sociopoltica damodernidade. Pelo que j foi dito, possvel perceber que o que est em jogo,na experincia temporal da modernidade, uma transformao tanto do vnculocom o passado quanto, e principalmente, do vnculo com o futuro. um futuronovo que condiciona o passado: o futuro do tempo histrico, e no o seupassado, que torna dessemelhante o que semelhante (KOSELLECK 2006, p.56). Nesta seo, considerarei o argumento de Koselleck acerca da evoluodas noes de futuro na modernidade at a emergncia e o estabelecimento,nas filosofias da histria dos sculos XVIII e XIX, de uma ideia utpica de futuro.De acordo com o autor, tal concepo, alimentada por um idealismo moral,cuja origem reside em uma experincia de alienao, trouxe como consequnciapoltica a perpetuao de uma crise, que se estende da Revoluo Francesa ato final da Guerra Fria.

    Segundo Koselleck, at o sculo XVI, a Igreja Catlica manteve asexpectativas, esperanas e prognsticos sob o seu rgido controle por meio dadoutrina do Juzo Final. O futuro, concebido escatologicamente, projetava-separa alm de toda experincia terrena, o que o imunizava contra esta: tratava-se, pois, de expectativas que no podiam ser desfeitas por nenhuma experinciacontrria, porque se estendiam para alm desse mundo (KOSELLECK 2006, p.316). A manuteno do poder secular da Igreja estava ligada sua capacidadede manter esse futuro, definido porm indeterminado no tempo, em suspenso.Com a Reforma e os conflitos que lhe seguiram, o pressuposto essencial dessatradio foi destrudo, liberando as expectativas do fim do mundo. Taisexperincias pareciam anunciar a chegada iminente do fim, cuja expectativacorrespondia a uma sensao de acelerao ou abreviao temporal. Paracontemporneos, como Martinho Lutero, a abreviao do tempo [era] umsinal visvel da vontade divina de permitir que sobrevenha o Juzo Final, o fim domundo (KOSELLECK 2006, p. 25). Porm, o Juzo Final no sobreveio, e oimpasse produzido pela ciso da Igreja exigia uma soluo no teolgica paraos conflitos que arrasavam a Europa. Essa foi atingida pela via da poltica, quelogrou pacificar o espao europeu, ao custo de sua emancipao da religio

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    o acordo nascido da necessidade trazia em si um novo princpio, aquele dapoltica, que deveria se disseminar no sculo seguinte (KOSELLECK 2006, p.27). A nova hierarquia entre a poltica e a religio, que estava na base dosistema de Estados e da poltica absolutista dos sculos XVII e XVIII, foiconsolidada em conceitos de soberania forjados por tericos como ThomasHobbes e Jean Bodin.

    No processo de gnese do Estado absoluto, que se deu paralelamente aodeclnio das expectativas escatolgicas, outro tipo de futuro se constituiu. Emsubstituio s profecias apocalpticas, surgiu, no contexto do sistema europeude Estados soberanos, o prognstico racional, que deslocou a ideia de futurocomo fim, pondo em seu lugar um futuro concebido como um campo depossibilidades finitas, organizadas segundo o maior ou menor grau depossibilidades (KOSELLECK 2006, p. 32). A difcil arte do clculo poltico,praticada nos gabinetes das cortes europeias dos sculos XVII e XVIII, operavaa partir de uma quantidade finita de variveis, cuja transformao era assumidacomo mais ou menos regular e previsvel o nmero de prncipes soberanos, ocarter, a expectativa de vida e as foras militares e econmicas mobilizveisde cada um , para traar cenrios de futuro capazes de orientar as aes. Nombito histrico-temporal da poltica absolutista, o futuro permanecia, portanto,inevitavelmente atrelado ao passado, e o velho topos historia magistra vitaeera revitalizado (KOSELLECK 2006, p. 46). Como, nesse horizonte, nada deessencialmente novo poderia em princpio ocorrer (KOSELLECK 2006, p. 34),era sempre possvel tirar concluses do passado para o futuro, os quais seencontravam articulados em um mesmo espao contnuo. Assim, o prognsticoracional no foi capaz de inaugurar um tempo novo, e sua experincia temporalcorrespondente permaneceu alicerada em categorias naturais a sucessodinstica, a expectativa de vida dos soberanos cuja capacidade potencial derepetio constitua o carter circular de sua histria (KOSELLECK 2006, p. 36).

    A situao s se alterou de fato com a emergncia de uma forma dereflexo sinttica que transformava a histria em uma unidade processual doacontecer, uma totalidade aberta para um futuro indito: foi s com o adventoda filosofia da histria que uma incipiente modernidade desligou-se de seu prpriopassado, inaugurando, por meio de um futuro indito, tambm a nossamodernidade (KOSELLECK 2006, p. 35). Embora combinasse elementos tantoda profecia quanto do prognstico racional, o futuro novo das filosofias dahistria distanciava-se de ambos por, de um lado, desvincular-se, enquantoexpectativa, de tudo que as antigas experincias haviam sido capazes de oferecere por, de outro, referir-se a uma transformao ativa deste mundo. Esses doisaspectos, na viso de Koselleck, encontram-se inextricavelmente ligados: oprogresso descortina um futuro capaz de ultrapassar o espao do tempo e daexperincia tradicional, natural e prognosticvel (KOSELLECK 2006, p. 36)porque, em sua origem, na filosofia da histria, ele se volta contra a experincia ele quer ultrapass-la. O vetor da filosofia da histria foi o cidado emancipadoda submisso absolutista e da tutela da Igreja, o prophte philosophe

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    (KOSELLECK 2006, p. 36), aquele que no se contenta com apenas prever ofuturo, mas que quer tambm acelerar esse futuro.

    Com isso, tocamos em uma importante proposio desenvolvida em Crticae Crise, segundo a qual a conscincia histrico-filosfica moderna, que semanifestou como filosofia utpica da histria, constituiu-se em reao polticaabsolutista: a utopia, como resposta ao Absolutismo, inaugura o processodos tempos modernos (KOSELLECK 1999, p. 160). Esse processo entendidopor Koselleck a partir dos conceitos de crtica e crise. A crise, que se estendeuda Revoluo Francesa at o sculo XX, com suas guerras, quentes e fria, foium produto da crtica, que, no final do sculo XVIII, se articulou como filosofiada histria e se voltou contra o Estado absolutista e a sociedade estamental.Portador da filosofia da histria, o sdito-cidado, cuja autoconscincia moralse formou sombra do Estado, no segredo das lojas manicas e da repblicadas letras, passou a reconhecer na ordem absolutista uma determinao ilegtimae a exigir o seu desmonte. Essa reivindicao tomou a forma de utopia, i.e.,de construes fictcias de futuro, cuja realizao era tida como inevitvelporquanto se inscrevia no curso real da histria.

    Para Koselleck, havia uma hipocrisia fundamental nesse processo. Asfilosofias utpicas da histria eram um instrumento de reivindicao polticaque no se reconheciam enquanto tal: ao mesmo tempo em que conferiam aoseu autor/ator uma legitimidade indiscutvel, decorrente do prprio processohistrico, dimenso secularizada do plano da providncia, elas o eximiam daresponsabilidade decisria e o isentavam da culpa pelos acontecimentos. Tudoo que se podia fazer era acelerar ou retardar um futuro inevitvel. Ao se fazerconforme com o desgnio racional que se supunha reger o movimento histrico,a crtica esclarecida escamoteava seu carter real de reivindicao poltica,obliterando os riscos e as consequncias inerentes ao.

    Paradoxalmente, o pressuposto da crtica esclarecida, que levou crise e dissoluo do Estado absolutista, encontrava-se no prprio fundamento destainstituio. Segundo Koselleck, a crtica fruto da alienao poltica impostapelo Absolutismo aos homens como soluo aos conflitos religiosos do sculoXVII. Visando a estabelecer uma soberania acima dos partidos em disputa, oEstado neutralizou politicamente as convices particulares, relegando-as aodomnio livre do privado, radicalmente separado da esfera pblica, na qual ossditos deveriam se limitar obedincia.12 Essa ciso entre um domnio livre,da conscincia e da opinio (o espao do homem), e um domnio restrito, dapoltica (o espao do sdito), marcou de forma decisiva o surgimento dopensamento esclarecido, imprimindo-lhe um carter dualista. Desprovido deautoridade poltica, o homem, que se desligava da religio, encontrou na moral

    12 Empregando os mesmos conceitos, Jrgen Habermas (1991) desenvolveu, posteriormente, umaviso alternativa sobre o contexto de gnese do pensamento esclarecido. Sobre Koselleck e Habermas,cf. LA VOPA 1992.

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    o meio de sua autodeterminao, e comeou a articular uma instituio paralelaao Estado (a sociedade civil) que encarnava uma jurisdio acima de qualquerautoridade.

    o objetivo dos cidados ser aperfeioar-se moralmente at o ponto desaber efetivamente, e cada um por si, o que bom e o que mal. Assim,cada um torna-se um juiz que, em virtude do esclarecimento alcanado,considera-se autorizado a processar todas as determinaes heternomasque contradizem sua autonomia moral (KOSELLECK 1999, p. 16).

    Nesse processo de esclarecimento, a moral, alheia realidade, vislumbrano domnio da poltica uma determinao heternoma, nada alm de um estorvo sua autonomia (KOSELLECK 1999, p. 16). Na medida em que a causa quedeu origem ao Absolutismo (as guerras de religio) foi esquecida, o prncipe foiprogressivamente esvaziado de sua legitimidade, convertendo-se, na visoburguesa, de garantidor da paz em inimigo da liberdade. Desfez-se, assim, aaliana da razo com o Estado. A Raison dtat perdeu sua razo medidaque essa se converteu em crtica. Dirigida inicialmente religio e arte, acrtica racional acabou por envolver em seu processo tambm a poltica vigente.Apoiando-se em construes utpicas de futuro para fazer valer sua jurisdiocontra uma tradio que percebia como ilegtima, a crtica racional, cujo mtodoconsiste em considerar o que exigido pela razo diante do qual o presentedesaparece como se fosse a realidade verdadeira (KOSELLECK 1999, p.145), aprofundou a experincia de alienao que est na sua origem. Em nomeda moral, a histria foi destituda de sua facticidade. A partir de ento, a histrias pode ser concebida como filosofia da histria, um processo da inocncia quese deve realizar (KOSELLECK 1999, p. 160).

    Transformando a histria em um processo forense no qual assumia opapel de acusador e juiz, a crtica se manifestava por meio de dualismos morais razo e revelao, liberdade e despotismo, natureza e civilizao, comrcioe guerra, moral e poltica, decadncia e progresso, luz e escurido (KOSELLECK1999, p. 90) que determinavam de antemo o processo a seu favor, aomesmo tempo em que, em sua generalidade, dissimulavam seu papel comoparte interessada. A pretenso neutralidade e objetividade obscureceu osentido poltico efetivo da crtica: a crise que ela invocava (a guerra civil) e adeciso poltica envolvida (a tomada do poder). A crise que, na RevoluoFrancesa, manifestou-se em sua verdadeira face como guerra civil, sob cujalei vivemos at hoje, foi obscurecida por uma filosofia da histria para a qual adeciso poltica pretendida no passava do fim previsvel e inexorvel de umprocesso suprapoltico e moral (KOSELLECK 1999, p. 160).

    A alienao foi aprofundada pela filosofia da histria, que buscou compens-la emitindo promissrias a descoberto, contra um futuro que, enquanto utpico,afastava-se continuamente da experincia. A conta foi apresentada pela primeiravez na Revoluo Francesa (KOSELLECK 1999, p. 161). Para Koselleck, avtima da crtica moral no foi apenas a poltica absolutista, mas tambm, e

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    sobretudo, a atividade poltica em si mesma: no fogo cruzado da crtica, nose desmantelou apenas a poltica de ento. Neste mesmo processo, reduziu-se a prpria poltica, enquanto tarefa constante da existncia humana, aconstrues utpicas de futuro (KOSELLECK 1999, p. 17).

    Eis a teoria da modernidade de Koselleck em sua dimenso antimoderna.Em Crtica e crise, o ncleo de sua teoria da modernidade a ruptura entreexperincia e expectativa apresenta-se carregado de polmica. O tom pessimistae polmico de sua tese de habilitao que seria mitigado em seus artigos dosanos 60 e 70, nos quais se dedicou a desdobrar terica e metodologicamente asimplicaes desse insight deve-se, sem dvida, influncia de Carl Schmitt, queensinara a Koselleck no s a pensar por meio de conceitos como a conceber ocampo da poltica como inerentemente marcado pelo conflito. A modernidade,metonimizada pelo liberalismo e pelos demais ismos dos grandes movimentospolticos dos sculos XIX e XX, pensada, por Koselleck, na chave schimittiana danegao do poltico, i.e., como uma tentativa dissimulada de neutralizao edespolitizao da existncia, baseada em uma viso utpica da vida social comoinerentemente pacfica.13 Dissimulada, porque esse apolitismo, como jdenunciara Carl Schmitt, tambm corresponde a uma tomada de posio poltica ser apoltico seu politicum (KOSELLECK 1999, p. 129) ; uma posioparticularmente prenhe de consequncias extremas. Koselleck no exprime umareao tradicionalista modernidade; no h, em sua obra, qualquer sinal deuma inteno de retorno a uma situao pr-moderna, mas sim de uma dennciado utopismo e da hipocrisia de que se reveste a poltica moderna, e de suasperigosas consequncias.

    significativo do apolitismo liberal-burgus que o prprio conceito derevoluo tenha sido empregado por filsofos e homens de letras, no Iluminismo,como apartado do de guerra civil era possvel depositar esperanas em umarevoluo, sem ao mesmo tempo imaginar uma guerra civil (KOSELLECK 1999,p. 227, p. 232-234). No sculo XVIII, o conceito de revoluo foi, seguindo omovimento geral da linguagem poltico-social na modernidade, temporalizado,tornando-se, contrariamente ao seu sentido astronmico original, um conceitode movimento, que apontava para a marcha linear e sem retorno dosacontecimentos. No contexto da filosofia iluminista pr-revolucionria, o termopassou a concentrar as expectativas utpicas de uma transformao positiva epacfica de todos os campos da experincia uma revoluo benfazeja, naexpresso de Christoph Martin Wieland (apud KOSELLECK 2006, p. 67) ,opondo-se, como tal, violncia e barbrie das guerras civis passadas.Porm, a experincia de 1789 inevitavelmente reaproximou os conceitos derevoluo e de guerra civil, que se tornaram, desde ento, indissociveis: desde oincio do sculo XIX, seguindo o percurso da crise, a revoluo designa cada vezmais o processo contnuo de uma mudana permanente, que se acelerouimpulsionado pela guerra civil ou por outras guerras (KOSELLECK 2006, p. 298).

    13 Cf. SCHMITT 1992. Veja-se tambm o excelente comentrio de Bernardo Ferreira (2004). SobreKoselleck e Schmitt, cf. VILLAS BAS 2006; PANKAKOSKY 2010.

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    Com os movimentos revolucionrios dos sculos XIX e XX, inspirados naRevoluo Francesa, a revoluo e a guerra civil foram definitivamente inscritasno curso real da histria, entendido, por esses movimentos, como um processogeral de emancipao social que implicava no dever moral de ser acelerado aqualquer custo, inclusive por meio de violncia. Ento, aquilo que j estavapresente na origem do moderno conceito reflexivo de histria, a factibilidade dahistria, assumiu sua consequncia plena.

    O impulso, na filosofia da histria de Kant, de projetar o futuro comotarefa do dever moral, portanto de entender a histria como uma instituioexecutiva temporalizada da moral, marcou profundamente o sculo seguinte(KOSELLECK 2006, p. 239). Desde a Revoluo Francesa, o axioma moralsegundo o qual uma tarefa do homem acelerar o futuro e introduzir os temposde liberdade e felicidade profetizados tornou-se uma realidade da poltica. Acapacidade de fazer previses foi transferida para as mximas da ao, queretiravam sua legitimidade da prpria histria. Na combinao entre utopia edisponibilidade da histria, aprofundou-se e perpetuou-se a crise. O ttulopermanente de legitimidade outorgado revoluo pela histria abrangia tambma guerra civil que a acompanhava. A expresso revoluo em estadopermanente, empregada por Proudhon e Marx, tornou-se um emblema paraos movimentos poltico-sociais revolucionrios dos sculos XIX e XX. A revoluodeveria se estender, geograficamente, abarcando todo o globo, e,temporalmente, perpetuando-se, at que seus objetivos utpicos fossemrealizados, fossem eles uma sociedade sem classes, fossem eles um Reich demil anos. A perpetuao da crise, cuja origem remonta crtica do sculo XVIII,foi a tragdia do sculo XX, na viso de Koselleck.

    A filosofia da histria foi afinal o vetor da crise sociopoltica que se abateusobre a Europa desde a Revoluo Francesa em diante. Ao substituir o futuropassado por futuros utpicos (fices morais), ela inaugurou um processoautoalimentado e, portanto, sem fim (ad absurdum) de revolues e guerras.A crtica de Koselleck voltava-se contra o uso voluntarista da histriaprocessualizada como uma fonte permanente de legitimao poltica, do qualdenunciava o carter ideolgico arbitrrio e o potencial totalitrio. Esses se doa ver nas figuras de linguagem, nos pares de conceitos antitticos assimtricos,empregados pelas unidades de ao poltica na modernidade.14 A conversodo conceito de humanidade singularizado pela filosofia iluminista, etransformado no Sujeito do Processo histrico em um conceito de luta polticadeu origem a uma srie de pares conceituais que manifestam, em suas estruturassemnticas, uma lgica de excluso do outro (do inimigo) incomparvel nahistria dos conceitos polticos. Desde o emprego por Saint-Just do par Homem/rei (no-homem) para advogar em favor da condenao morte de Lus XVI

    14 No clssico ensaio, A semntica histrico-poltica dos conceitos antitticos assimtricos, Koselleckdesenvolveu a tese, inspirada em Carl Schmitt, de que toda unidade de ao poltica e social s seconstitui por meio de conceitos pelos quais ela se delimita, excluindo outras, de modo a determinar asi mesma (KOSELLECK 2006, p. 192).

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    at a introduo do par ariano/no-ariano na legislao nazista dos anos 30,verifica-se um processo em que a negao lingustica do inimigo tornava-setanto mais arbitrria quanto cruel. Da mera expropriao na linguagem, passava-se justificao do extermnio puro e simples de um outro-inimigo, cuja definioera sempre aberta e malevel.

    Concluso

    Na percepo e denncia das potencialidades totalitrias das filosofiasmodernas da histria, Koselleck no se encontrava sozinho. guisa de concluso,gostaria de sugerir um caminho pelo qual seria possvel aproximar as vises deKoselleck e Hannah Arendt sobre a modernidade. As referncias a Arendt soraras na obra de Koselleck.15 Em contrapartida, no h nenhuma indicao deque Arendt tenha lido Crtica e crise ou qualquer outro trabalho de Koselleck.16

    A impossibilidade de basear a comparao na recepo mtua de suas obrasno elimina, porm, a utilidade heurstica de se aproximar esses dois grandespensadores. H, em primeiro lugar, um ponto de partida terico comum: aforte influncia de Martin Heidegger e Carl Schmitt.17 verdade que os doisautores conduziram suas anlises a partir de abordagens e problemticasdistintas. A vasta e variada obra de Arendt, na qual se destacam umenfrentamento conceitual acirrado com a tradio do pensamento polticoocidental e uma original fenomenologia das atividades humanas, caracteriza-sepor um interesse constante pelo problema da ao poltica, enquanto Koselleckconduziu suas investigaes sob uma preocupao terica sistemtica, dirigidapara as condies antropolgicas da experincia histrica. Todavia, Arendt e Koselleckcompartilharam no s a conscincia de terem vivido em um presenteabsolutamente indito e terrvel, entre as experincias das guerras mundiais e dototalitarismo e a expectativa apocalptica de uma guerra atmica,18 como tambm,mobilizados por um sentimento antitotalitrio comum, buscaram compreenderesse momento a partir de um dilogo com o passado e a tradio. Nesse sentido, possvel perceber pontos em comum em alguns de seus diagnsticos damodernidade, especialmente no que diz respeito crtica ao conceito moderno dehistria, aspecto que pretendo brevemente salientar nestas ltimas pginas.

    15 Pude encontrar quatro breves menes em: KOSELLECK 1999, cap. 2, nota 32; KOSELLECK 2006,cap. 2, nota 31, cap. 3, nota 1 e p. 67.16 Hoffman menciona, porm, um encontro ocorrido em 1956, quando Arendt, a convite de Koselleck,deu uma palestra em Heidelberg (HOFFMAN 2010, p. 224). O convite sugere o reconhecimento daimportncia do trabalho de Arendt por Koselleck, e talvez, como gostaria de sugerir, uma afinidadepoltica e intelectual mais profunda.17 Sobre Koselleck e Heidegger: HOFFMAN 2010. Sobre Koselleck e Schmitt: nota 13 do presente artigo.Sobre Arendt e Heidegger: VILLA 1996 e 1999, especialmente cap. 3. Trabalhos recentes tm chamado aateno para pontos de contacto entre as obras de Arendt e Schmitt: KALYVAS 2008; MOYN 2008.18 Desde 1945 vivemos entre guerras civis latentes ou declaradas, cujo horror pode ser ultrapassadopor uma guerra atmica (KOSELLECK 2006, p. 77). Uma passagem muito semelhante abre o prefcio primeira edio de Origens do totalitarismo (ARENDT 1998, p. 11; 2005). O tom muitas vezespessimista, catastrofista e polmico de Koselleck e Arendt no se deve simplesmente influncia deHeidegger, de Schmitt ou de quaisquer das filosofias de cunho existencial dos sculos XIX e XX, mas,sobretudo, s respectivas experincias histricas da intelectual judia expatriada e do jovem soldadoegresso do front leste da guerra genocida de Hitler. Para dados biogrficos de Koselleck: HOFFMAN2006. Sobre Hannah Arendt, ver a sua biografia de Elizabeth Young-Bruehl (1982).

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    Assim como Koselleck, Arendt via a modernidade como um momento decrise. Para a filsofa, vivenciou-se, na modernidade, a crise de uma tradiosociopoltica secular que se estendia, historicamente, at Roma, e,intelectualmente, at Plato. Foi essa crise que permitiu a ascenso, no sculoXX, aproveitando-se do vcuo deixado pelo colapso do conceito tradicional deautoridade, dos regimes totalitrios, de uma nova e terrvel forma de poltica,baseada no terror e na ideologia (ARENDT 2000, p. 128; 1998, p. 531). Origensdo totalitarismo (1951) marca o esforo, presente em toda a sua obra dops-guerra, decompreender o fenmeno totalitrio. O totalitarismo no oresultado, do ponto de vista da causalidade lgica ou da necessidade histrica,da modernidade, mas o seu sintoma mais evidente. Arendt no se cansavade enfatizar a sua originalidade e a impossibilidade de compreend-lo por meiodas categorias tradicionais da teoria poltica. Ao contrrio de outras formas deopresso poltica (o despotismo, a tirania e a ditadura), a essncia dos regimestotalitrios o terror. Em vez de se caracterizar pela ilegalidade ouarbitrariedade, o totalitarismo desafia esses conceitos ao se apresentar comoo executor de uma Lei superior a todas as constituies: a lei da natureza ouda histria, ambas concebidas processualmente i.e., como leis de movimento e no segundo o modelo tradicional das fontes estveis, transcendentes, dasleis positivas. O terror a realizao da lei do movimento (ARENDT 1998, p.517), o instrumento de sua acelerao, por meio do qual as sentenas demorte supostamente pronunciadas pela histria ou pela natureza contra asraas inferiores ou classes moribundas so executadas.

    Os regimes totalitrios se aproveitaram e aprofundaram uma experinciaque, segundo Arendt, s se generalizou, adquirindo relevncia poltica, namodernidade: a solido, a experincia de no pertencer ao mundo, que uma das mais radicais e desesperadas experincias que o homem pode ter(ARENDT 1998, p. 527). A solido, que um produto do desarraigamento eda superfluidade, tornou-se, em nosso sculo, a experincia diria de massascada vez maiores (ARENDT 1998, p. 530), em decorrncia do colapso dasinstituies polticas e tradies sociais do nosso tempo (ARENDT 1998, p.528) e da ascenso do capitalismo tecnolgico. Os regimes totalitrios seaproveitaram dessa situao oferecendo s massas a irresistvel coerncia daideologia. Por meio da ideologia, o totalitarismo substitua a realidade pelalgica axiomtica de uma nica ideia (a histria humana como a histria da lutade classes, o processo natural como a evoluo e o aperfeioamento da espcie),dando ao homem a sensao de ser o instrumento de uma necessidade supra--humana. Uma vez engolfados no processo da ideologia e do terror, os homensso finalmente privados de qualquer espao para a liberdade e a individualidade:em lugar das fronteiras e dos canais de comunicao entre os homensindividuais, [o totalitarismo] constri um cinturo de ferro que os cinge de talforma que como se a sua pluralidade se dissolvesse em Um-S-Homem dedimenses gigantescas (ARENDT 1998, p. 518). Eis o fim ulterior do domniototal (do qual os campos de concentrao oferecem o paradigma): a eliminao

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    da pluralidade e espontaneidade da existncia humana, e a converso dosindivduos em matria dctil a ser modelada pelo terror na forma final,radicalmente desumanizada, que a ideologia supe ser o desgnio da histriaou da natureza.

    Para entender como se chegou a esse ponto, Arendt, convencida de quea crise do nosso sculo [...] no nenhuma ameaa de fora (ARENDT 1998,p. 512), buscou, em obras posteriores como A condio humana (1958) eEntre o passado e o futuro (1961), investigar aqueles elementos da modernidadee da tradio que estariam ligados catstrofe. O conceito moderno de histria,discutido no ensaio O conceito de histria: antigo e moderno, um deles.Esse tem sua origem, no sculo XVII, em uma experincia de alienao domundo, proveniente do desespero que se apoderou dos homens ante adescoberta de que seus sentidos no os informavam corretamente sobre averdade da natureza. A noo de processo, fundamento do conceito modernode histria, surgiu no bojo da Revoluo Cientfica, quando as cincias naturais,visando a superar a crise epistemolgica, voltaram-se da contemplao para aexperimentao. Houve, ento, uma mudana no conceito de verdade, que seinstrumentalizou, abandonando sua base platnica. A partir desse momento,s aquilo que o prprio homem fez podia ser passvel de conhecimento. Oexperimento, que interfere diretamente na natureza, assegurava o progressodo conhecimento como um processo de fabricao. processualizao danatureza, seguiu-se a processualizao da histria, cujo sentido se deslocoudas palavras, feitos e sofrimentos dos homens (fundamento da concepoclssica) para a ideia de um processo feito pelo homem.

    H, para Arendt, uma fatdica monstruosidade (ARENDT 2000, p. 95) nomoderno conceito de histria, que decorre, precisamente, da obliterao deaes e eventos concretos, que tm seu sentido particular esvaziado, em prolde um processo englobante que lhes confere sentido de fora. como se amera sequncia temporal adquirisse uma importncia e dignidade inditas, dizela (ARENDT 2000, p. 97). A noo processual de histria s chegou conscincia da poca moderna no ltimo tero do sculo XVIII, notadamente,na filosofia de Hegel, esmorecendo um interesse redivivo pela poltica, que seesboou, no sculo XVII, na sequncia do processo de secularizao que separoua religio e a poltica. Esse interesse incipiente foi definitivamente solapado nosculo XIX, findando em desespero em Tocqueville e na confuso entrepoltica e histria em Marx (ARENDT 2000, p. 111). Segundo Arendt, naidentificao marxista da ao com o fazer histria, que transforma os desgniossuperiores que se revelam ao filsofo em fins intencionais da ao poltica,pode-se verificar o esforo da modernidade, igualmente presente na filosofiada histria de Kant, para recuperar a estabilidade que decorria do vnculohierrquico entre pensamento e ao da tradio: nessa verso do derivar apoltica da histria [...], de forma alguma restrita a Marx ou ao pragmatismoem geral, podemos facilmente detectar a antiga tentativa de escapar sfrustraes e fragilidade da ao humana construindo-a imagem do fazer(ARENDT 2000, p. 114).

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    Porm, esse esforo de superar a contingncia, determinando o particularpelo todo e a poltica pela Histria, culminou em fracasso, contribuindo apenaspara aprofundar a alienao do mundo que est na sua origem. A confusoentre sentido (algo que se revela imediatamente) e padro (algo que se faz),presente nas filosofias da histria, revelou suas consequncias totalitrias nosculo XX.

    Os sistemas totalitrios tendem a demonstrar que a ao pode ser baseadasobre qualquer hiptese e que, no curso da ao coerentemente guiada,a hiptese particular se tornar verdadeira, se tornar realidade factual econcreta. A hiptese que subjaz ao coerente pode ser to loucaquanto se queira; ela sempre terminar por produzir fatos que so entoobjetivamente verdadeiros (ARENDT 2000, p. 123-124).

    Por intermdio da ideologia e do terror, qualquer ordem, qualquernecessidade, qualquer sentido que se queira impor far sentido (ARENDT 2000,p. 125). O objetivo totalitrio de fabricar uma humanidade aperfeioada,intimamente ligado concepo da histria como um processo fabricado pelohomem, a expresso trgica daquilo que Arendt considera, em A condiohumana, ser a caracterstica mais distintiva da modernidade: um esforo deautoafirmao que procede de uma crena desmedida no poder humano e deum ressentimento em relao aos limites que definem a existncia o desejode fugir condio humana (ARENDT 2005, p. 10). Desinclinado a aceitaraquilo que ele mesmo no fez, o homem moderno transforma a realidade pormeio da cincia e da tecnologia, refazendo-a na esperana de criar um mundototalmente humanizado no qual ele possa (finalmente) se sentir em casa (VILLA1999, p. 184). Arendt nos adverte contra a hubris contida na vitria modernado homo faber, lembrando que o seu resultado possvel (vislumbrado no projetototalitrio) a prpria destruio da humanidade enquanto realidadefenomenolgica de indivduos singulares.

    A despeito dessa viso negativa, Hannah Arendt, assim como Koselleck,percebia um aspecto positivo na modernidade. Se, por um lado, a modernidadefoi entendida como um momento de crise, por outro, ela foi tambm ummomento que inaugurou possibilidades nicas para a reflexo. A quebra datradio, na modernidade, descobriu um hiato entre o passado e o futuro, eeste hiato, na viso de Arendt, o lugar privilegiado para o pensamento (ARENDT2000, p. 39). Assim, mesmo que as potencialidades tericas da noo detempo histrico no interessassem filsofa como interessaram aohistoriador-terico, essa abertura, a separao entre passado e futuro, permitiua Arendt voltar-se criticamente para o passado, buscando recuperar os sentidose as experincias originais de uma srie de conceitos sociopolticos ao,liberdade, autoridade, julgamento e poder que foram encobertos pelo quadrode referncias da tradio, marcado pelo nexo hierrquico entre o pensar e oagir. A sobredeterminao do pensar sobre o agir, resgatada pelas filosofias dahistria modernas, , na concepo de ambos os autores, hostil contingnciainerente poltica e responsvel pela catstrofe do sculo XX. No entanto, a

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    separao entre passado e futuro decorrente da quebra da tradio, da qual asfilosofias da histria se alimentaram e para a qual contriburam, forneceu ocontexto para reflexes originais sobre a histria e sobre a poltica.

    Dessa forma, pode-se dizer que suas obras so reaes tericas criseexperimentada e diagnosticada. Os espectros da alienao e da negao daliberdade levaram Arendt a se dedicar atividade que, a seus olhos, poderia,conferindo sentido, identidade e coerncia a uma existncia individual, nospreservar da ameaa de desumanizao: a atividade poltica, pela qual Arendtentendia a comparticipao de palavras e atos (ARENDT 2005, p. 210) emum espao pblico, a experincia de agir em conjunto com semelhantes nafundao e preservao da liberdade. Ao mesmo tempo, a Historik de Koselleck,sua busca por estruturas antropolgicas de repetio que condicionam a prioria possibilidade de histrias no plural, pode ser vista como um esforo parareaproximar, em um plano terico, as dimenses fraturadas do tempo namodernidade e resgatar a poltica enquanto realidade agonstica concreta dosdesvos utpicos da moralidade e da histria.

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