temos vivos. tempos mortos. eclea bosi
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7/30/2019 Temos Vivos. Tempos Mortos. Eclea Bosi
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Tempos Vivos e Tempos Mortos 1
Ecla Bosi 2
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Existe, dentro da histria cronolgica, outra histria mais
densa de substncia memorat iva no f luxo do tempo. Aparececom clareza nas biografias; tal como nas paisagens, h marcos
n o espao on de o s valores se aden sam .
O tem po b iogrf ico t em andamento com o n a m sica desde
o allegro da inf ncia qu e aparece na lem brana lum inoso e
do ce, at o adagio da velhice.
A sociedade industr ial mult ipl ica horas mortas que apenas
suportamos: so os tempos vazios das f i las, dos bancos, da
burocracia, preenchimento de formulrios.. .
Com o alguns percursos ob rigat rios na cidad e, qu e nos trazem
acm ulo d e signo s de m era info rm ao no m elho r do s casos; tais
percursos sem sign ificao b iog rf ica, so cada vez m ais invasivos.
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M eus dep oen tes eram jovens, decn ios a t rs e penso q ue
neles ten ha p esado m eno s esse tem po vazio; p esa ent o sob re
n s um desfavor em re lao a esses velh o s record ado res. Seeu ped i r : Con t e -m e sua v ida ! Se i qu e o in te lec tua l m e vi r
com vr ias in terpre taes para preencher lacunas ou i lud i r
esse d esf avo r.
M as se eu consegu ir qu e m e narrem seus dias com o f azem
as pessoas mais simples, ficar evidente a espoliao do nosso
t em po de vida pela ord em social sem escam ot eao p ossvel.S e a s u b s t n c i a m e m o r a t i v a s e a d e n s a e m a l g u m a s
passagens, nout ras se esgara com grave pre ju zo para a
formao da ident idade. grave tambm nesse processo o
of uscam ento percept ivo, o u m elho r d izendo , sub jet ivo, u m a vez
qu e afeta o sujeito d a percepo.
As coisas aparecem com menos nit idez dada a rapidez edescontinuidade das relaes vividas; efeito da al ienao, a
grand e em bo tad ora da cogn io, da sim ples ob servao do
m undo, do conhecim ento d o ou t ro .
Desse tempo vazio a ateno foge como ave assustada.
Se h um a relao q ue u ne po ca e narrativa, con vm verificar
se a perd a do dom de narrar so f rida p o r t od as as classes sociais;mas no fo i a c lasse dominada que f ragmentou o mundo e a
experincia; foi a outra classe que da extraiu sua energia, sua
fo ra e o con junt o d e seus ben s.
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Objetos Biogrf icos e Objetos deStatus
Na Pequena Histria da Fotografia e em Paris, Capital doSculo XIX, Benjam in d escreve o in terio r d os lares b urg u eses, a
int imidade atapetada e macia, os detalhes da decorao que
procuram m arcar a singu laridade d e seus pro prietrios.
Criam os sem pre ao no sso redo r esp aos expressivos send o o
p rocesso de valorizao d os int eriores crescent e na m edid a em
que a cidade exibe uma face estranha e adversa para os seusmoradores.
So t ent ativas de criar um m un do acolh edo r entre as paredes
qu e o iso lam do m un do alienado e host i l de fora.
Nas biografias que colhi, as casas descritas tinham janelas
para a frent e; ver a rua era um a diverso apreciada no havendo
a preocupao com o isolam ento, com o h oje, em que altos mu rosm ant m a privacidad e e escond em a fachada.
Fu i tentada a rever uma opos io, que h mui to venho
fazendo ao comparar lembranas, a opos io ent re objetos
biogrficos e ob jeto s de status.
Se a mob i l idade e a con t ingnc ia acompanham nossas
relaes, h algo que desejamos que permanea imvel, aom enos na velhice: o con junt o de o bjetos que n os rodeiam . Nesse
conju nt o am am os a dispo sio tcita, m as eloq ent e. M ais qu e
uma sensao es t t i ca ou de u t i l i dade e les nos do um
assent im ent o n ossa po sio n o m un do , nossa identid ade; e
os que est iveram sempre conosco falam nossa alma em sua
lng ua n atal. O arranjo da sala, cu ja cadeiras prep aram o crculo
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das conversas amigas, como a cama prepara o descanso e a
m esa de cabeceira os derrad eiros instan tes do dia, o rit ual ant es
do sono .A ord em desse espao no s un e e no s separa d a so ciedad e e
um elo f am i liar com o passado.
Quanto mais voltados ao uso quotidiano mais expressivos
so os objetos: os metais se arredondam, se ovalam, os cabos
de madeira br i lham pelo contato com as mos, tudo perde as
arest as e se ab ran da.So estes os objeto s qu e Violette M orin 3 chama de objetos
biog rf icos, po is envelhecem com o po ssuido r e se incorpo ram
sua vida: o relgio d a fam lia, o lbu m de f ot og rafias, a m edalha
d o e s p o r t i s t a , a m s c a ra d o e t n l o g o , o m a p a -m n d i d o
viajante... Cada um desses objetos representa uma experincia
vivida, um a avent ura afet iva do m orado r.Diferent es so os am bient es arrum ado s para pat ent ear status,
com o um dcor de teatro: h objeto s qu e a m od a valoriza, m as
no se enrazam no s interiores ou tm garant ia po r um ano , no
envelhecem com o d on o, apenas se deterioram .
S o ob je to b iog r f i co i nsubs t i t u ve l : as co i sas que
e n v e l h e c e m c o n o s c o n o s d o a p a c f i c a s e n s a o d econt inuidade.
Recon h ece M achado de A ssis:
No, no, a minha memria no boa. comparvel a
algum que tivesse vivido por hospedarias, sem guardar delas
nem caras, nem no m es, e som ent e raras circun stncias. A qu em
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passe a vida na mesma casa de famlia, com os seus eternos
m veis e costum es, pessoas e afeies, que se lhe g rava tudo
pela con tinu idade e repetio.
No s em nossa sociedade dividimos as coisas em objetos
de con sum o e relqu ias de fam lia. M auss encon tra essa d istin o
em m uito s po vos: tanto entre os rom anos com o ent re os po vos
de Samoa, Trobr iand e os indgenas nor te-amer icanos. H
talism s, cob ertas de pele e cob res blason ado s, t ecido s arm oriaisqu e se transm item solenem ente com o as m ulheres no casam ento ,
os privilgios, os nomes s crianas. Essas propriedades so
sagrad as, n o se vend em n em so ced idas, e a f am lia jam ais se
desfaria delas a no ser com gran de d esgo sto . O co nju nt o dessas
coisas em to d as as t ribo s sem pre d e nat ureza espirit u al.
Cada u m a dessas coisas tem no m e: os tecido s bo rdad os comfaces, olhos, figuras animais e humanas, as casas, as paredes
decoradas.
Tud o f ala, o t eto , o f og o , as escultu ras, as p int uras.
Os prat os e as colh eres b lason adas com o to t em do cl so
anim ado s e fericos: so rp licas d os instru m ent os inesgo t veis
que o s esprito s deram aos ancest rais. O t em po acresce seu valor:a arca passa a velha arca, depois avelha arca qu e b ia no m ar,
at ser chamada de a velha arca que bia no mar com o sol
nascente dentro.
A casa on d e se desenvo lve um a criana po voad a de coisas
preciosas qu e no tm preo.
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A s coisas qu e m od elam os du rant e an os resistiram a n s com
sua alteridade e tom aram algo do qu e fom os. Ond e est no ssa
primeira casa? S em sonhos podemos retornar ao cho ondedemos nossos primeiros passos.
Co nd enado s pelo sistem a econ m ico extrem a m ob ilidade,
perdemos a crnica da faml ia e da cidade mesma em nosso
percurso errante.
O desenraizam ent o cond io desagregadora da m em ria.
* * *
Um a idia-m est ra para anlise seria a de u m a separao d e
um espao p rivado, p essoal e o espao p b lico, ann im o.
Creio q ue aind a se po ssa ir alm e apro fu nd ar essa dist ino
em termos de psicologia social do espao vivido.T o m e m o s u m d o s e x e m p l o s d a d o s p o r B e n j a m i n : a s
fotograf ias fami l iares que esto em cima de um mvel numa
sala de visitas bu rg u esa.
A sua p resena fsica tem qu e ser lida feno m eno log icam ent e.
E aqui a visada intencional da pessoa que colocou aqueleretrato sob re o m vel que d eve passar pelo crivo d o intrp rete.
1 . A fo t o d o p arente que j m orreu p ode ser cont emp lada
pelo dono da casa como um pre i to sent ido sua memr ia .
Estamos, portanto, em pleno reino de privacidade, tout court ,
qu e int eressa e afeta a relao p essoal, nt im a, do reco rdad o e
do recordado r.
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2. A fo to d aquele m esm o parent e po deria ter sido colocada
com o espri to de q uem faz um a exposio q ue int eressa o o lhar
do outro o olhar social. Por essa visada a foto sobre o mvelcarece de uma aura afet iva prpria e ganha outra aura, a do
status, on de esto em bu tido s valores de d istino, sup erioridad e,
c o m p e t i o , n a m e d i d a e m q u e o m o r t o f o i u m a p e s s o a
im po rtante, logo do tada de valor-de-t roca.
Um olhar in ibe o outro: so abordagens qual i ta t ivamente
excludentes. O objeto ou biogrf ico, ou signo de status, e,com o t al, ent raria para a esfera de um a intim idade , ent re aspas,
ostensiva e pu blicvel, que j f az parte d a Hist ria d as Ideo log ias
e das M ent alidad es, de qu e Benjam in fo i um adm irvel precursor.
Se essa ob servao faz sent ido , eu diria qu e o bu rgus, enquan to
agente e produto do universo de valores de troca, no pode
refu giar-se auten ticam ent e na esfera da int im idade afet iva, po isat m esm o os seus ob jeto s biog rf icos pod em converter-se e
freqentem ente se con vertem em peas de um m ecanism o d e
rep roduo de status. A soc iedade de massas estendeu e
m ult ip l icou esse fenm eno e, ao m esm o t em po , o d issipou e o
desgasto u criand o o ob jeto descartvel. A sociedade de con sum o
apenas mais rpida na produo, circulao e descarte dosob jeto s de status. E certam ent e m eno s requint ada e m ais pu eril
do que a burguesia francesa ou alem do comeo do sculo.
M as no m ais cruel.
* * *
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E ex is tem, a lm desses , aque les ob je tos pe rd idos e
desparce i rados que a o rdenao rac iona l do espao tan to
despreza. Cacos misteriosos so pedaos de alguma coisa quep e r t e n c e u a a l g u m . B e n j a m i n , n o e n s a i o f a m o s o s o b re
Baudelaire, segue os passos do f laneur observando vitrinas e
galerias; m as haver algu m para recolher o s despo jos da cidad e
para os quais ning um volta os olhos e o vent o dispersa.
Os depoim ent os que o uvi esto po voado s de coisas perdidas
que se dar ia tudo para encon t ra r quando nos abandonam,sum indo em fu nd os inson dveis de arm rios ou nas fen das do
asso alho , e no s d eixam sua p rocu ra pelo rest o d a vida4 .
Reprod uzo aqu i trecho da narrat iva que ou vi do Sr. Am adeu,
f i lho de u m a grand e e afet uo sa fam l ia de Trieste, qu e com bat eu
na Resistn cia du rant e a lt im a gu erra m un dial:
Hoje as crianas lem Pin quio em ad ap tao e a h ist ria
fica bem resumida. Ou vem o filme de Walt Disney. Mas ns
tnhamos em casa o livro original do escritor italiano Collodi.
Nele, o carpinteiro Gepetto que criou o b on eco de pau era um
trabalhador que s conh eceu a pobreza. M orava num quartinho
onde lutava contra a fome e o frio com a fora do seu brao
que ia diminu indo com a idade. No fu ndo desse quart inho via-
se um a lareira com um belo fo go : m as era apenas um a pintu ra
do engenhoso Gepetto na parede, para iludir o f r io do inverno
com a viso d e um a lareira. Esse desenh o m e encant ava e penso
que ainda encanta as crianas que folheiam o livro.
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Gepett o acon selhava o teim oso Pinq uio, cabea de pau:
No jo gu e n ada f o ra. Isso u m d ia p od e servir p ara
algum a coisa!
( E s t e c o n s e l h o o s v e l h o s v i v e m r e p e t i n d o : e l e s n o
conseguiram assimilar ainda a experincia do descartvel que
lhes parece um desperd cio cru el. Por isso o arm rio d as vovs
cheio de caixas, retalhos e vidrinhos...)
Os meninos italianos ouviam de suas mes este conselho
qu e Gepetto dava para o endiabrado Pinqu io.
* * *
Capturado pelos nazistas, Amadeu conheceu um extremodespo jam ent o, f oi privado de t ud o. A s roup as largas dan avam
no seu corp o e os sapato s, t i rados de u m a pi lha sem nu m erao,
feriam seus ps. Vagava pelo cam po com o u m espectro f am into ,
ia resist ind o n o avesso d o n ada . M as sem pre havia algo a ser
descoberto: um papel rasgado que a ventania arrastava, um
santinh o am assado qu e algu m esqu eceu, um prego sem cabea,
uma chave part ida. Ele ia guardando cada um desses f iapos
abandonados.
P o r e x e m p l o , d e u m p a p e l r a s g a d o f e z u m e n v e l o p e ,
descreveu n o avesso a sua ag on ia, end ereou ao irm o em Trieste
e escond eu-o n um bu raco n o cho. Do is anos depo is seu irm o
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recebia a carta. Algum a havia encontrado e enviado pelo
correio. Qu em teria sido? Nu nca sou beram .
A chave part ida que recolheu n um ralo e conservou po r tant otempo, e le t rans fo rmou num ins t rumento her ico . Quando
conduzido para Auschwitz, usou-a como chave de fenda na
janelinha do banh eiro do t rem e da sal t ou para a lib erd ade e
para a vida.
* * *
A Luz de Estrelas Remotas
A m e m r i a o p e r a c o m g r a n d e l i b e r d a d e e s c o l h e n d o
acont eciment os no espao e no tem po , no arbi t rar iam ente m as
p o r q u e s e r e l a c i o n a m a t r a v s d e n d i c e s c o m u n s . S oconfiguraes mais intensas quando sobre elas incide o brilho
de um signif icado colet ivo.
tare fa do c ient is ta soc ia l p rocurar esses v ncu los de
afinidades elet ivas ent re fen m eno s distan ciados no t em po .
Com o exemp lo, cito u m a frase do long o depoim ento de Dona
Jovina Pessoa, mil i tante que acompanhou desde os primeiros
vagido s anarqu istas do Brasil, at a lu t a p ela anistia d os presos
po lt icos qu e ela travou j com 80 anos.
Recordan do sua f orm ao no s ban cos escolares ela d iz:
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Tinha m uit a ad m irao por todos os reb eldes. Quan do
estu dant e, lia o grande gegrafo Reclus que s com ia po porque
era o qu e a hum anidade pob re podia com er.
Fui con sult ar o d icion rio o nd e encon t rei: Reclus, Elise,
gegrafo, Frana (183 0-19 05 ), autor d e um a Geografia Universal .
A chei o verbet e m uit o seco com parado aluso d e D. Jovina.
Procurei m estres de Geo grafia e qu and o o s int errogu ei sob re
esse autor colhi respostas pobres e evasivas. No entanto, queca lo r se i r rad ia do rp ido lembrar de uma c r iana a ten ta :
Quand o estu dant e, lia o g rande gegrafo Reclus qu e s com ia
po porque era o qu e a hum anidade pobre pod ia com er .
Em que m om ento te r ela abraado o an arquism o? E qu em
t er sido seu p rof essor? Em qu e aula transm itiu ele o esprito d o
ge grafo fran cs para a m enina b rasi leira? prodg io da memr ia esta evocao da persona l idade
coerent e e apaixon ada d e Reclus qu e no s to ca com o se est ivesse
jun t o a ns.
Eis uma tensa configurao formada por Elise Reclus, por
u m m estre-escola descon hecido , po r Jovina e, atravs de q uem
a escuto u, vem chegand o at n s com o nd ice de salvao.A con stelao m em orativa tem um fu tu ro im previsvel; com o
gestalt requ er pregnncia, fecham ento .
E s vezes esse fechamento vai depender de nossos gestos
de ag ora, p orqu e seus aut ores m orreram na vspera, antes de
com plet ar a f igu ra de suas vidas.
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a histria de um passado aberto, inconcluso, capaz de
pro m essas. No se deve julg -lo com o u m tem po ult rapassado ,
m as com o u m un iverso cont radi t r io d o q ual se pod em arrancaro sim e o n o, a tese e ant tese, o qu e teve segu im ent o t r iunf al
e o que fo i t runcado.
Para tanto exige-se o que Benjamin, no seu ensaio sobre
Kafka, chamava de ateno intensa e leve.
Quer ia aprox imar este conce i to com o de S imone Wei l ,
f i lsofa da ateno. Lendo a Ilada como o poema da fora,descobriu qu e Hom ero con tem pla com igual serenidade o destino
dos gregos e dos troianos, ambos os povos submetidos s leis
im placveis da g uerra e da m ort e.
Esse rem em orar m editat ivo tam bm o de Benjam in qu ando,
ao rever os prof etas do A nt igo Testam ent o, encont ra neles direo
para aes presentes. Ou seja, fazendo da memria um apoiosl ido d a von tad e, m atriz de pro jeto s.
Isto s po ssvel qu and o o histo riado r pro voca um rasgo no
discurso bem costu rado e eng om ado d o histo ricism o e se detm
bru scam ent e nu m a constelao satu rada de t enses 5 . No o
faz para registrar po rm eno res da m ent alidade da poca; um a
escolha que tem a ver com o sujeito def inido pela ipseidade eno p ela sem elhana com ou tro s, pela m esm idade. Um sujeito
qu e tom ou a palavra ou agiu, causa de si m esm o e decid iu
e t icamente c r iando um tempo p r iv i leg iado , um tempo fo r te
den tro d o correr plano do s dias.
Se, para Benjam in, a rem em orao um a reto m ada salvado ra
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do passado , no s depo im ent os biog rf icos eviden te o processo
de re-con hecim ent o e de elucidao. Escut em os D. Risoleta, anci
n egra e ant iga cozinh eira, qu e inicia o seu relato : J estacabando este ano santo e agradeo por estar recordando e
bur i lando m eu espr ito .
O recordar para e la um tem po sabt ico e cada fato brut o
lapidad o pelo espr ito at qu e desprend a luz.
Por estar cega e muito idosa, medita em sua experincia e
tem aut oridad e de con selheira com o p rova o resto da narrat iva.Quando o ve lho narrador e a cr iana se encont ram, os
conselhos so absorvidos pela histria: a moral da histria faz
par te da narra t iva como um s corpo, gozando as mesmas
vantagens estticas (as rimas, o humor...).
No t em o p eso d a m oral abstrat a, m as a graa da f ant asia
em bo ra seja um a norm a ideal de condu ta t ransm it ida6 .Ho je precisam os decifrar o q ue esqu ecem os ou no f oi dito ,
como centelha embaixo das cinzas porque estamos entre dois
m om ento s de um a narrat iva. No p od em os dizer com o o velho
M as a vida passou! , nem com o a cr iana M as a vida
a inda no chegou ! .
Na cham ada idade prod ut iva (os velho s so o s im prod ut ivosn as estat st icas), b em , n essa idad e o s con selho s f oram p erdido s,
ai de n s!
Ado rno nas M inim a M oral ia j observa qu e no se do m ais
conselho s, cada um f iqu e com sua op inio.
T e m o s q u e p ro c u ra r s o z i n h o s o c o n s e l h o e s q u e c i d o ,
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cam inhando entre destroos nu m cho atu lhado pelos tem po s
m orto s qu e nos so im po sto s.
Num texto encan tador, Nar ra r e Curar , Jeann e M arieGagnebin faz refletir sobre a funo curativa das histrias. A
narrat iva terap ut ica, apressa a con valescena qu and o a m e,
sent ada junt o ao leito da criana, desperta-lhe o ut ra vez o g osto
pela vida.
Con cordo, po rque a h ist r ia con tada um farmacon , antes
preparado pela narrado ra no s tu bo s e pro vetas da f ant asia e dam em ria, atravs de sbia do sagem .
* * *
Ns devemos ento contar histrias? A nossa histria?
verdade que, ao narrar uma experincia profunda, ns aperdem os tam bm , naquele mo m ento em qu e ela se corpo r if ica
(e se en rijece) na n arrat iva.
Porm o m ut ism o tam bm petr i f ica a lem brana qu e se
paralisa e sedim enta n o f un do da gargan ta com o d isse Ung arett i
no po em a sob re a infncia que f icou:
Arrestata in fo nd o alla go la com e um a roccia di gridi
[Presa ao f undo da gargant a com o um a rocha de gritos.]
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Notas
1. Este texto um excer to do cap tu lo 1 A sub stncia soc ial dam em r ia Sob o signo d e Ben jamin [Walte r Ben jamin ] , do l iv ro Otemp o v ivo d a mem r ia: en saio s d e Psicolo g ia So cial (So Pau lo: A t eliEdit orial , 20 03 ), e fo i auto rizado po r sua au to ra, Ecla Bo si, Secretariada Edu cao d o Estad o d e So Paulo, p ara com po r este l ivreto, ent reguea educadores da rede estadu al par t icipantes do Program a Cam inho sda A r te A escola vai ao t eat ro , du rante a exib io d a pea PrimeiraPessoa, de Ed la van Steen , com Eva W ilm a e Vn ia Pajares, so b direode W i ll iam Pereira, no Palcio d os Band eirant es, em ago sto de 2 00 5.
2. Ecla Bosi professora de Psicologia Social na Universidade de SoPaulo e escreveu, entre outras, as obras Cultura de massa e culturapo pu lar: leituras de op errias (Vozes), Sim on e W eil: a cond io o perriae ou tro s estud os sob re a op resso (Paz e Ter ra), Rosala de Cast ro : poesias(traduo, Brasil iense), Memria e sociedade: lembranas de velhos(Companhia das Letras), Velho s am igos (Companhia das Letras).
3 . L Ob jet , Com m unications 13 , 1969 .4. No Orlando Furioso de Ariosto, as coisas perdidas na terra sobem
para a lua o nd e perm anecem , quem sabe nossa espera.
5 . W. Benjam in, Teses sobre a Filosof ia da Hist ria em Obras escolh idas,vo l. I, So Pau lo, Brasiliense, 19 96 . Tese 17 .
6. A s con dies para tran sm isso plena da experincia j no existem
no m un do ind ustr ia l, segun do Benjam in.