temos vivos. tempos mortos. eclea bosi

Upload: profpelegrini

Post on 04-Apr-2018

270 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 7/30/2019 Temos Vivos. Tempos Mortos. Eclea Bosi

    1/16

    1

    Tempos Vivos e Tempos Mortos 1

    Ecla Bosi 2

  • 7/30/2019 Temos Vivos. Tempos Mortos. Eclea Bosi

    2/16

    2

    Existe, dentro da histria cronolgica, outra histria mais

    densa de substncia memorat iva no f luxo do tempo. Aparececom clareza nas biografias; tal como nas paisagens, h marcos

    n o espao on de o s valores se aden sam .

    O tem po b iogrf ico t em andamento com o n a m sica desde

    o allegro da inf ncia qu e aparece na lem brana lum inoso e

    do ce, at o adagio da velhice.

    A sociedade industr ial mult ipl ica horas mortas que apenas

    suportamos: so os tempos vazios das f i las, dos bancos, da

    burocracia, preenchimento de formulrios.. .

    Com o alguns percursos ob rigat rios na cidad e, qu e nos trazem

    acm ulo d e signo s de m era info rm ao no m elho r do s casos; tais

    percursos sem sign ificao b iog rf ica, so cada vez m ais invasivos.

  • 7/30/2019 Temos Vivos. Tempos Mortos. Eclea Bosi

    3/16

    3

    M eus dep oen tes eram jovens, decn ios a t rs e penso q ue

    neles ten ha p esado m eno s esse tem po vazio; p esa ent o sob re

    n s um desfavor em re lao a esses velh o s record ado res. Seeu ped i r : Con t e -m e sua v ida ! Se i qu e o in te lec tua l m e vi r

    com vr ias in terpre taes para preencher lacunas ou i lud i r

    esse d esf avo r.

    M as se eu consegu ir qu e m e narrem seus dias com o f azem

    as pessoas mais simples, ficar evidente a espoliao do nosso

    t em po de vida pela ord em social sem escam ot eao p ossvel.S e a s u b s t n c i a m e m o r a t i v a s e a d e n s a e m a l g u m a s

    passagens, nout ras se esgara com grave pre ju zo para a

    formao da ident idade. grave tambm nesse processo o

    of uscam ento percept ivo, o u m elho r d izendo , sub jet ivo, u m a vez

    qu e afeta o sujeito d a percepo.

    As coisas aparecem com menos nit idez dada a rapidez edescontinuidade das relaes vividas; efeito da al ienao, a

    grand e em bo tad ora da cogn io, da sim ples ob servao do

    m undo, do conhecim ento d o ou t ro .

    Desse tempo vazio a ateno foge como ave assustada.

    Se h um a relao q ue u ne po ca e narrativa, con vm verificar

    se a perd a do dom de narrar so f rida p o r t od as as classes sociais;mas no fo i a c lasse dominada que f ragmentou o mundo e a

    experincia; foi a outra classe que da extraiu sua energia, sua

    fo ra e o con junt o d e seus ben s.

  • 7/30/2019 Temos Vivos. Tempos Mortos. Eclea Bosi

    4/16

    4

    Objetos Biogrf icos e Objetos deStatus

    Na Pequena Histria da Fotografia e em Paris, Capital doSculo XIX, Benjam in d escreve o in terio r d os lares b urg u eses, a

    int imidade atapetada e macia, os detalhes da decorao que

    procuram m arcar a singu laridade d e seus pro prietrios.

    Criam os sem pre ao no sso redo r esp aos expressivos send o o

    p rocesso de valorizao d os int eriores crescent e na m edid a em

    que a cidade exibe uma face estranha e adversa para os seusmoradores.

    So t ent ativas de criar um m un do acolh edo r entre as paredes

    qu e o iso lam do m un do alienado e host i l de fora.

    Nas biografias que colhi, as casas descritas tinham janelas

    para a frent e; ver a rua era um a diverso apreciada no havendo

    a preocupao com o isolam ento, com o h oje, em que altos mu rosm ant m a privacidad e e escond em a fachada.

    Fu i tentada a rever uma opos io, que h mui to venho

    fazendo ao comparar lembranas, a opos io ent re objetos

    biogrficos e ob jeto s de status.

    Se a mob i l idade e a con t ingnc ia acompanham nossas

    relaes, h algo que desejamos que permanea imvel, aom enos na velhice: o con junt o de o bjetos que n os rodeiam . Nesse

    conju nt o am am os a dispo sio tcita, m as eloq ent e. M ais qu e

    uma sensao es t t i ca ou de u t i l i dade e les nos do um

    assent im ent o n ossa po sio n o m un do , nossa identid ade; e

    os que est iveram sempre conosco falam nossa alma em sua

    lng ua n atal. O arranjo da sala, cu ja cadeiras prep aram o crculo

  • 7/30/2019 Temos Vivos. Tempos Mortos. Eclea Bosi

    5/16

    5

    das conversas amigas, como a cama prepara o descanso e a

    m esa de cabeceira os derrad eiros instan tes do dia, o rit ual ant es

    do sono .A ord em desse espao no s un e e no s separa d a so ciedad e e

    um elo f am i liar com o passado.

    Quanto mais voltados ao uso quotidiano mais expressivos

    so os objetos: os metais se arredondam, se ovalam, os cabos

    de madeira br i lham pelo contato com as mos, tudo perde as

    arest as e se ab ran da.So estes os objeto s qu e Violette M orin 3 chama de objetos

    biog rf icos, po is envelhecem com o po ssuido r e se incorpo ram

    sua vida: o relgio d a fam lia, o lbu m de f ot og rafias, a m edalha

    d o e s p o r t i s t a , a m s c a ra d o e t n l o g o , o m a p a -m n d i d o

    viajante... Cada um desses objetos representa uma experincia

    vivida, um a avent ura afet iva do m orado r.Diferent es so os am bient es arrum ado s para pat ent ear status,

    com o um dcor de teatro: h objeto s qu e a m od a valoriza, m as

    no se enrazam no s interiores ou tm garant ia po r um ano , no

    envelhecem com o d on o, apenas se deterioram .

    S o ob je to b iog r f i co i nsubs t i t u ve l : as co i sas que

    e n v e l h e c e m c o n o s c o n o s d o a p a c f i c a s e n s a o d econt inuidade.

    Recon h ece M achado de A ssis:

    No, no, a minha memria no boa. comparvel a

    algum que tivesse vivido por hospedarias, sem guardar delas

    nem caras, nem no m es, e som ent e raras circun stncias. A qu em

  • 7/30/2019 Temos Vivos. Tempos Mortos. Eclea Bosi

    6/16

    6

    passe a vida na mesma casa de famlia, com os seus eternos

    m veis e costum es, pessoas e afeies, que se lhe g rava tudo

    pela con tinu idade e repetio.

    No s em nossa sociedade dividimos as coisas em objetos

    de con sum o e relqu ias de fam lia. M auss encon tra essa d istin o

    em m uito s po vos: tanto entre os rom anos com o ent re os po vos

    de Samoa, Trobr iand e os indgenas nor te-amer icanos. H

    talism s, cob ertas de pele e cob res blason ado s, t ecido s arm oriaisqu e se transm item solenem ente com o as m ulheres no casam ento ,

    os privilgios, os nomes s crianas. Essas propriedades so

    sagrad as, n o se vend em n em so ced idas, e a f am lia jam ais se

    desfaria delas a no ser com gran de d esgo sto . O co nju nt o dessas

    coisas em to d as as t ribo s sem pre d e nat ureza espirit u al.

    Cada u m a dessas coisas tem no m e: os tecido s bo rdad os comfaces, olhos, figuras animais e humanas, as casas, as paredes

    decoradas.

    Tud o f ala, o t eto , o f og o , as escultu ras, as p int uras.

    Os prat os e as colh eres b lason adas com o to t em do cl so

    anim ado s e fericos: so rp licas d os instru m ent os inesgo t veis

    que o s esprito s deram aos ancest rais. O t em po acresce seu valor:a arca passa a velha arca, depois avelha arca qu e b ia no m ar,

    at ser chamada de a velha arca que bia no mar com o sol

    nascente dentro.

    A casa on d e se desenvo lve um a criana po voad a de coisas

    preciosas qu e no tm preo.

  • 7/30/2019 Temos Vivos. Tempos Mortos. Eclea Bosi

    7/16

    7

    A s coisas qu e m od elam os du rant e an os resistiram a n s com

    sua alteridade e tom aram algo do qu e fom os. Ond e est no ssa

    primeira casa? S em sonhos podemos retornar ao cho ondedemos nossos primeiros passos.

    Co nd enado s pelo sistem a econ m ico extrem a m ob ilidade,

    perdemos a crnica da faml ia e da cidade mesma em nosso

    percurso errante.

    O desenraizam ent o cond io desagregadora da m em ria.

    * * *

    Um a idia-m est ra para anlise seria a de u m a separao d e

    um espao p rivado, p essoal e o espao p b lico, ann im o.

    Creio q ue aind a se po ssa ir alm e apro fu nd ar essa dist ino

    em termos de psicologia social do espao vivido.T o m e m o s u m d o s e x e m p l o s d a d o s p o r B e n j a m i n : a s

    fotograf ias fami l iares que esto em cima de um mvel numa

    sala de visitas bu rg u esa.

    A sua p resena fsica tem qu e ser lida feno m eno log icam ent e.

    E aqui a visada intencional da pessoa que colocou aqueleretrato sob re o m vel que d eve passar pelo crivo d o intrp rete.

    1 . A fo t o d o p arente que j m orreu p ode ser cont emp lada

    pelo dono da casa como um pre i to sent ido sua memr ia .

    Estamos, portanto, em pleno reino de privacidade, tout court ,

    qu e int eressa e afeta a relao p essoal, nt im a, do reco rdad o e

    do recordado r.

  • 7/30/2019 Temos Vivos. Tempos Mortos. Eclea Bosi

    8/16

    8

    2. A fo to d aquele m esm o parent e po deria ter sido colocada

    com o espri to de q uem faz um a exposio q ue int eressa o o lhar

    do outro o olhar social. Por essa visada a foto sobre o mvelcarece de uma aura afet iva prpria e ganha outra aura, a do

    status, on de esto em bu tido s valores de d istino, sup erioridad e,

    c o m p e t i o , n a m e d i d a e m q u e o m o r t o f o i u m a p e s s o a

    im po rtante, logo do tada de valor-de-t roca.

    Um olhar in ibe o outro: so abordagens qual i ta t ivamente

    excludentes. O objeto ou biogrf ico, ou signo de status, e,com o t al, ent raria para a esfera de um a intim idade , ent re aspas,

    ostensiva e pu blicvel, que j f az parte d a Hist ria d as Ideo log ias

    e das M ent alidad es, de qu e Benjam in fo i um adm irvel precursor.

    Se essa ob servao faz sent ido , eu diria qu e o bu rgus, enquan to

    agente e produto do universo de valores de troca, no pode

    refu giar-se auten ticam ent e na esfera da int im idade afet iva, po isat m esm o os seus ob jeto s biog rf icos pod em converter-se e

    freqentem ente se con vertem em peas de um m ecanism o d e

    rep roduo de status. A soc iedade de massas estendeu e

    m ult ip l icou esse fenm eno e, ao m esm o t em po , o d issipou e o

    desgasto u criand o o ob jeto descartvel. A sociedade de con sum o

    apenas mais rpida na produo, circulao e descarte dosob jeto s de status. E certam ent e m eno s requint ada e m ais pu eril

    do que a burguesia francesa ou alem do comeo do sculo.

    M as no m ais cruel.

    * * *

  • 7/30/2019 Temos Vivos. Tempos Mortos. Eclea Bosi

    9/16

    9

    E ex is tem, a lm desses , aque les ob je tos pe rd idos e

    desparce i rados que a o rdenao rac iona l do espao tan to

    despreza. Cacos misteriosos so pedaos de alguma coisa quep e r t e n c e u a a l g u m . B e n j a m i n , n o e n s a i o f a m o s o s o b re

    Baudelaire, segue os passos do f laneur observando vitrinas e

    galerias; m as haver algu m para recolher o s despo jos da cidad e

    para os quais ning um volta os olhos e o vent o dispersa.

    Os depoim ent os que o uvi esto po voado s de coisas perdidas

    que se dar ia tudo para encon t ra r quando nos abandonam,sum indo em fu nd os inson dveis de arm rios ou nas fen das do

    asso alho , e no s d eixam sua p rocu ra pelo rest o d a vida4 .

    Reprod uzo aqu i trecho da narrat iva que ou vi do Sr. Am adeu,

    f i lho de u m a grand e e afet uo sa fam l ia de Trieste, qu e com bat eu

    na Resistn cia du rant e a lt im a gu erra m un dial:

    Hoje as crianas lem Pin quio em ad ap tao e a h ist ria

    fica bem resumida. Ou vem o filme de Walt Disney. Mas ns

    tnhamos em casa o livro original do escritor italiano Collodi.

    Nele, o carpinteiro Gepetto que criou o b on eco de pau era um

    trabalhador que s conh eceu a pobreza. M orava num quartinho

    onde lutava contra a fome e o frio com a fora do seu brao

    que ia diminu indo com a idade. No fu ndo desse quart inho via-

    se um a lareira com um belo fo go : m as era apenas um a pintu ra

    do engenhoso Gepetto na parede, para iludir o f r io do inverno

    com a viso d e um a lareira. Esse desenh o m e encant ava e penso

    que ainda encanta as crianas que folheiam o livro.

  • 7/30/2019 Temos Vivos. Tempos Mortos. Eclea Bosi

    10/16

    1 0

    Gepett o acon selhava o teim oso Pinq uio, cabea de pau:

    No jo gu e n ada f o ra. Isso u m d ia p od e servir p ara

    algum a coisa!

    ( E s t e c o n s e l h o o s v e l h o s v i v e m r e p e t i n d o : e l e s n o

    conseguiram assimilar ainda a experincia do descartvel que

    lhes parece um desperd cio cru el. Por isso o arm rio d as vovs

    cheio de caixas, retalhos e vidrinhos...)

    Os meninos italianos ouviam de suas mes este conselho

    qu e Gepetto dava para o endiabrado Pinqu io.

    * * *

    Capturado pelos nazistas, Amadeu conheceu um extremodespo jam ent o, f oi privado de t ud o. A s roup as largas dan avam

    no seu corp o e os sapato s, t i rados de u m a pi lha sem nu m erao,

    feriam seus ps. Vagava pelo cam po com o u m espectro f am into ,

    ia resist ind o n o avesso d o n ada . M as sem pre havia algo a ser

    descoberto: um papel rasgado que a ventania arrastava, um

    santinh o am assado qu e algu m esqu eceu, um prego sem cabea,

    uma chave part ida. Ele ia guardando cada um desses f iapos

    abandonados.

    P o r e x e m p l o , d e u m p a p e l r a s g a d o f e z u m e n v e l o p e ,

    descreveu n o avesso a sua ag on ia, end ereou ao irm o em Trieste

    e escond eu-o n um bu raco n o cho. Do is anos depo is seu irm o

  • 7/30/2019 Temos Vivos. Tempos Mortos. Eclea Bosi

    11/16

    1 1

    recebia a carta. Algum a havia encontrado e enviado pelo

    correio. Qu em teria sido? Nu nca sou beram .

    A chave part ida que recolheu n um ralo e conservou po r tant otempo, e le t rans fo rmou num ins t rumento her ico . Quando

    conduzido para Auschwitz, usou-a como chave de fenda na

    janelinha do banh eiro do t rem e da sal t ou para a lib erd ade e

    para a vida.

    * * *

    A Luz de Estrelas Remotas

    A m e m r i a o p e r a c o m g r a n d e l i b e r d a d e e s c o l h e n d o

    acont eciment os no espao e no tem po , no arbi t rar iam ente m as

    p o r q u e s e r e l a c i o n a m a t r a v s d e n d i c e s c o m u n s . S oconfiguraes mais intensas quando sobre elas incide o brilho

    de um signif icado colet ivo.

    tare fa do c ient is ta soc ia l p rocurar esses v ncu los de

    afinidades elet ivas ent re fen m eno s distan ciados no t em po .

    Com o exemp lo, cito u m a frase do long o depoim ento de Dona

    Jovina Pessoa, mil i tante que acompanhou desde os primeiros

    vagido s anarqu istas do Brasil, at a lu t a p ela anistia d os presos

    po lt icos qu e ela travou j com 80 anos.

    Recordan do sua f orm ao no s ban cos escolares ela d iz:

  • 7/30/2019 Temos Vivos. Tempos Mortos. Eclea Bosi

    12/16

    1 2

    Tinha m uit a ad m irao por todos os reb eldes. Quan do

    estu dant e, lia o grande gegrafo Reclus que s com ia po porque

    era o qu e a hum anidade pob re podia com er.

    Fui con sult ar o d icion rio o nd e encon t rei: Reclus, Elise,

    gegrafo, Frana (183 0-19 05 ), autor d e um a Geografia Universal .

    A chei o verbet e m uit o seco com parado aluso d e D. Jovina.

    Procurei m estres de Geo grafia e qu and o o s int errogu ei sob re

    esse autor colhi respostas pobres e evasivas. No entanto, queca lo r se i r rad ia do rp ido lembrar de uma c r iana a ten ta :

    Quand o estu dant e, lia o g rande gegrafo Reclus qu e s com ia

    po porque era o qu e a hum anidade pobre pod ia com er .

    Em que m om ento te r ela abraado o an arquism o? E qu em

    t er sido seu p rof essor? Em qu e aula transm itiu ele o esprito d o

    ge grafo fran cs para a m enina b rasi leira? prodg io da memr ia esta evocao da persona l idade

    coerent e e apaixon ada d e Reclus qu e no s to ca com o se est ivesse

    jun t o a ns.

    Eis uma tensa configurao formada por Elise Reclus, por

    u m m estre-escola descon hecido , po r Jovina e, atravs de q uem

    a escuto u, vem chegand o at n s com o nd ice de salvao.A con stelao m em orativa tem um fu tu ro im previsvel; com o

    gestalt requ er pregnncia, fecham ento .

    E s vezes esse fechamento vai depender de nossos gestos

    de ag ora, p orqu e seus aut ores m orreram na vspera, antes de

    com plet ar a f igu ra de suas vidas.

  • 7/30/2019 Temos Vivos. Tempos Mortos. Eclea Bosi

    13/16

    1 3

    a histria de um passado aberto, inconcluso, capaz de

    pro m essas. No se deve julg -lo com o u m tem po ult rapassado ,

    m as com o u m un iverso cont radi t r io d o q ual se pod em arrancaro sim e o n o, a tese e ant tese, o qu e teve segu im ent o t r iunf al

    e o que fo i t runcado.

    Para tanto exige-se o que Benjamin, no seu ensaio sobre

    Kafka, chamava de ateno intensa e leve.

    Quer ia aprox imar este conce i to com o de S imone Wei l ,

    f i lsofa da ateno. Lendo a Ilada como o poema da fora,descobriu qu e Hom ero con tem pla com igual serenidade o destino

    dos gregos e dos troianos, ambos os povos submetidos s leis

    im placveis da g uerra e da m ort e.

    Esse rem em orar m editat ivo tam bm o de Benjam in qu ando,

    ao rever os prof etas do A nt igo Testam ent o, encont ra neles direo

    para aes presentes. Ou seja, fazendo da memria um apoiosl ido d a von tad e, m atriz de pro jeto s.

    Isto s po ssvel qu and o o histo riado r pro voca um rasgo no

    discurso bem costu rado e eng om ado d o histo ricism o e se detm

    bru scam ent e nu m a constelao satu rada de t enses 5 . No o

    faz para registrar po rm eno res da m ent alidade da poca; um a

    escolha que tem a ver com o sujeito def inido pela ipseidade eno p ela sem elhana com ou tro s, pela m esm idade. Um sujeito

    qu e tom ou a palavra ou agiu, causa de si m esm o e decid iu

    e t icamente c r iando um tempo p r iv i leg iado , um tempo fo r te

    den tro d o correr plano do s dias.

    Se, para Benjam in, a rem em orao um a reto m ada salvado ra

  • 7/30/2019 Temos Vivos. Tempos Mortos. Eclea Bosi

    14/16

    1 4

    do passado , no s depo im ent os biog rf icos eviden te o processo

    de re-con hecim ent o e de elucidao. Escut em os D. Risoleta, anci

    n egra e ant iga cozinh eira, qu e inicia o seu relato : J estacabando este ano santo e agradeo por estar recordando e

    bur i lando m eu espr ito .

    O recordar para e la um tem po sabt ico e cada fato brut o

    lapidad o pelo espr ito at qu e desprend a luz.

    Por estar cega e muito idosa, medita em sua experincia e

    tem aut oridad e de con selheira com o p rova o resto da narrat iva.Quando o ve lho narrador e a cr iana se encont ram, os

    conselhos so absorvidos pela histria: a moral da histria faz

    par te da narra t iva como um s corpo, gozando as mesmas

    vantagens estticas (as rimas, o humor...).

    No t em o p eso d a m oral abstrat a, m as a graa da f ant asia

    em bo ra seja um a norm a ideal de condu ta t ransm it ida6 .Ho je precisam os decifrar o q ue esqu ecem os ou no f oi dito ,

    como centelha embaixo das cinzas porque estamos entre dois

    m om ento s de um a narrat iva. No p od em os dizer com o o velho

    M as a vida passou! , nem com o a cr iana M as a vida

    a inda no chegou ! .

    Na cham ada idade prod ut iva (os velho s so o s im prod ut ivosn as estat st icas), b em , n essa idad e o s con selho s f oram p erdido s,

    ai de n s!

    Ado rno nas M inim a M oral ia j observa qu e no se do m ais

    conselho s, cada um f iqu e com sua op inio.

    T e m o s q u e p ro c u ra r s o z i n h o s o c o n s e l h o e s q u e c i d o ,

  • 7/30/2019 Temos Vivos. Tempos Mortos. Eclea Bosi

    15/16

    1 5

    cam inhando entre destroos nu m cho atu lhado pelos tem po s

    m orto s qu e nos so im po sto s.

    Num texto encan tador, Nar ra r e Curar , Jeann e M arieGagnebin faz refletir sobre a funo curativa das histrias. A

    narrat iva terap ut ica, apressa a con valescena qu and o a m e,

    sent ada junt o ao leito da criana, desperta-lhe o ut ra vez o g osto

    pela vida.

    Con cordo, po rque a h ist r ia con tada um farmacon , antes

    preparado pela narrado ra no s tu bo s e pro vetas da f ant asia e dam em ria, atravs de sbia do sagem .

    * * *

    Ns devemos ento contar histrias? A nossa histria?

    verdade que, ao narrar uma experincia profunda, ns aperdem os tam bm , naquele mo m ento em qu e ela se corpo r if ica

    (e se en rijece) na n arrat iva.

    Porm o m ut ism o tam bm petr i f ica a lem brana qu e se

    paralisa e sedim enta n o f un do da gargan ta com o d isse Ung arett i

    no po em a sob re a infncia que f icou:

    Arrestata in fo nd o alla go la com e um a roccia di gridi

    [Presa ao f undo da gargant a com o um a rocha de gritos.]

  • 7/30/2019 Temos Vivos. Tempos Mortos. Eclea Bosi

    16/16

    1 6

    Notas

    1. Este texto um excer to do cap tu lo 1 A sub stncia soc ial dam em r ia Sob o signo d e Ben jamin [Walte r Ben jamin ] , do l iv ro Otemp o v ivo d a mem r ia: en saio s d e Psicolo g ia So cial (So Pau lo: A t eliEdit orial , 20 03 ), e fo i auto rizado po r sua au to ra, Ecla Bo si, Secretariada Edu cao d o Estad o d e So Paulo, p ara com po r este l ivreto, ent reguea educadores da rede estadu al par t icipantes do Program a Cam inho sda A r te A escola vai ao t eat ro , du rante a exib io d a pea PrimeiraPessoa, de Ed la van Steen , com Eva W ilm a e Vn ia Pajares, so b direode W i ll iam Pereira, no Palcio d os Band eirant es, em ago sto de 2 00 5.

    2. Ecla Bosi professora de Psicologia Social na Universidade de SoPaulo e escreveu, entre outras, as obras Cultura de massa e culturapo pu lar: leituras de op errias (Vozes), Sim on e W eil: a cond io o perriae ou tro s estud os sob re a op resso (Paz e Ter ra), Rosala de Cast ro : poesias(traduo, Brasil iense), Memria e sociedade: lembranas de velhos(Companhia das Letras), Velho s am igos (Companhia das Letras).

    3 . L Ob jet , Com m unications 13 , 1969 .4. No Orlando Furioso de Ariosto, as coisas perdidas na terra sobem

    para a lua o nd e perm anecem , quem sabe nossa espera.

    5 . W. Benjam in, Teses sobre a Filosof ia da Hist ria em Obras escolh idas,vo l. I, So Pau lo, Brasiliense, 19 96 . Tese 17 .

    6. A s con dies para tran sm isso plena da experincia j no existem

    no m un do ind ustr ia l, segun do Benjam in.