temas de direito penal e processo penal em perspectiva crítica

106
Temas de Direito Penal e Processo Penal Em perspectiva crítica ANTONIO EDUARDO RAMIRES SANTORO Colaboradores: Samanta Felix Gomes de Melo Rodolfo Santos

Upload: antonio-eduardo-ramires-santoro

Post on 29-Jun-2015

1.148 views

Category:

Documents


7 download

DESCRIPTION

Os temas de direito penal e processo penal mais atuais e controversos, incluindo reformas legislativas, decisões jurisprudenciais e atuações judiciais e policiais são abordadas neste livro sob uma perspectiva crítica, humanista e garantista,Este documento é licenciado CC BY: A obra Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica de Antonio Eduardo Ramires Santoro foi licenciada com uma Licença Creative Commons - Atribuição - Uso Não-Comercial - Obras Derivadas Proibidas 3.0 Não Adaptada.

TRANSCRIPT

Page 1: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

i Antonio Eduardo Ramires Santoro

Temas de Direito Penal e Processo Penal Em perspectiva crítica ANTONIO EDUARDO RAMIRES SANTORO

Colaboradores:

Samanta Felix Gomes de Melo

Rodolfo Santos

Page 2: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

ii Temas de Direito Penal e Processo Penal

ANTONIO EDUARDO RAMIRES SANTORO

Doutor e mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de

Janeiro. Mestrando em Direito Penal Internacional pela Universidade

de Granada – Espanha. Especialista em Direito Penal Econômico pela

Universidade de Coimbra - Portugal. Especialista em Direito da

Economia e da Empresa pela Fundação Getúlio Vargas-RJ. Advogado

Criminalista. Professor da Universidade Gama Filho.

TEMAS DE DIREITO PENAL E PROCESSO PENAL

Em perspectiva crítica

Rio de Janeiro

2010

Page 3: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

iii Antonio Eduardo Ramires Santoro

Santoro, Antonio Eduardo Ramires

Temas de Direito Penal e Processo Penal: Em

perspectiva crítica / Antonio Eduardo Ramires

Santoro – Rio de Janeiro, 2010.

1. Direito Penal. 2. Direito Processual Penal. 3.

Filosofia do Direito.

Page 4: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

iv Temas de Direito Penal e Processo Penal

Agradeço, como não poderia deixar de ser, à Samanta e

ao Rodolfo, que me permitiram completar o rol de

críticas com suas intervenções, por isso assinam comigo

dois dos artigos aqui publicados.

Page 5: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

v Antonio Eduardo Ramires Santoro

ÍNDICE:

1 – Casuísmo Político Penal: a inconstitucionalidade da

Lei nº 10.763/03................................................................7

2 – Liberdade como regra: uma negação constitucional da

prisão processual como antecipação de tutela................14

3 – A perene inconstitucionalidade da interceptação

telefônica........................................................................31

4 – A “nova” lacuna no sistema legal de nulidades

causado pela reforma processual....................................36

5 – Reforma processual: uma modalidade de prisão

provisória a menos, as mesmas garantias

constitucionais................................................................49

6 – O quê Wittgenstein diria das interceptações

telefônicas no Brasil?......................................................58

7 – A agressão a Roberto Podval e o caso Nardoni: o neo-

cinturão...........................................................................72

8 – A validade dos conhecimentos fortuitos obtidos nas

interceptações telefônicas...............................................75

9 – A atipicidade formal do tráfico de ecstasy sem laudo

toxicológico: uma questão de direito material................82

Page 6: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

vi Temas de Direito Penal e Processo Penal

10 – Sob a perspectiva fenomenológica a prescrição

retroativa ainda existe...................................................102

Page 7: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

7 Antonio Eduardo Ramires Santoro

1 – Casuísmo Político Penal: a inconstitucionalidade

da Lei nº 10.763/031

Como de sabença comum entre os

estudiosos das ciências penais, a sanha política de dar

satisfação à opinião pública vem causando sérios estragos

teleológicos ao sistema penal. Desta feita, a vítima foi o

título Dos Crimes contra a Administração Pública

praticados por funcionários públicos (Capítulo I), que

compreende os artigos 312 a 327 do Código Penal.

As alterações implementadas pela Lei nº

10.763 de 12 de novembro de 2003, mormente as que

dizem respeito aos acréscimos de pena dos artigos 317 e

333 do Código Penal, se mostram inconstitucionais.

Ora, o artigo 317 do Código Penal tipifica o

crime de corrupção passiva. In verbis:

“Art. 317 - Solicitar ou receber, para si ou

para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da

função ou antes de assumi-la, mas em razão dela,

vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal

vantagem”.

1 Publicado no Boletim IBCCRIM. São Paulo, v.12, n.139, p.

13, jun. 2004.

Page 8: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

8 Temas de Direito Penal e Processo Penal

No dispositivo antecedente, o legislador

penal fez a previsão do crime de concussão, assim

descrito:

“Art. 316 - Exigir, para si ou para outrem,

direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou

antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem

indevida”.

Verifica-se que os núcleos dos tipos penais,

grafados em negrito, diferenciam-se pela gravidade. De

todo evidente que há clara diferença semântica entre o

termo solicitar, utilizado no tipo de corrupção passiva,

que deve ser entendido como a ação de pedir, de rogar,

induzir2, e exigir, utilizado no tipo de concussão, o qual

impende seja compreendido como um ato de imposição,

intimidação.

Estreme de dúvidas o ato de intimidação, de

imposição é muito mais grave que um mero pedido. A

agressão implementada ao bem jurídico protegido no

primeiro caso é mais ofensiva que no segundo. Via de

conseqüência, o crime de concussão é mais grave que o

crime de corrupção passiva. Não por outro motivo o

legislador penal originário cominou penas diferenciadas,

2 PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. 2ª

ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 400.

Page 9: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

9 Antonio Eduardo Ramires Santoro

sendo a primeira mais grave em sua base, isto é, a pena

mínima do tipo de concussão é de 2 (dois) anos, enquanto

a do tipo de corrupção passiva é de 1 (um) ano. Ambas as

penas eram de reclusão, sendo de 8 (oito) anos no

máximo.

E não se diga que o crime de corrupção

passiva tipifica outras duas condutas, o que faria da

comparação supra um ato de mera ação subjetiva. Isso

porque as demais condutas tipificadas são receber,

denotando passividade em contraste à exigência, uma

atividade agressiva e invasiva, e aceitar, menos grave

ainda do que receber, posto que sequer exige o resultado

material, sendo crime formal.

Na corrupção passiva há uma conduta

criminosa lesiva aos interesses da administração pública,

mas nos dois últimos casos suso mencionados não estão

sendo contrariados os interesses de terceiros, enquanto na

concussão necessariamente os interesses do administrado

são violados em conjunto com os da Administração

Pública, mostrando a complexidade do bem jurídico no

caso dos verbos exigir e solicitar, em contraposição aos

atos de receber e aceitar.

Decerto a inovação trazida ao ordenamento

pela Lei nº 10.763, de 12 de novembro de 2003, fez certo

Page 10: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

10 Temas de Direito Penal e Processo Penal

o descompasso do legislador com o sistema penal. Isso

porque a lei referida aumentou a pena do crime de

corrupção passiva para o lapso compreendido entre 2

(dois) e 12 (doze) anos de reclusão.

O aumento da pena máxima do crime de

corrupção passiva somente manteria a harmonia do

sistema caso viesse acompanhada de uma alteração nas

penas dos crimes correlatos, assim entendidos aqueles

que violam o mesmo bem jurídico, mormente o

multicitado tipo penal de concussão.

Com efeito, nas bem lançadas linhas a

respeito do princípio da proporcionalidade, Heloísa

Estellita, em referência a Teresa Aguado Correa3, torna

clara a necessidade de proporcionalidade entre o bem

jurídico tutelado, a gravidade da violação deste e a

quantidade de pena cominada.

A desproporção implementada pela

alteração do Código Penal é ofuscante. Como dito antes,

se comparado o tipo penal de concussão com o de

corrupção passiva no que respeita ao bem jurídico

3 AGUADO CORREA, Teresa. El Principio de

Proporcionalidad en Derecho Penal, Madrid: Edersa, 1999,

apud Heloisa Estellita. “Direito Penal, Constituição e Princípio

da Proporcionalidade”, in: Boletim do IBCCRIM - Edição

Especial - Outubro de 2003 - 9º Seminário Internacional, p. 13.

Page 11: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

11 Antonio Eduardo Ramires Santoro

protegido, verificamos o seguinte: no primeiro tutela-se a

moralidade da Administração Pública, somado ao

interesse patrimonial e à liberdade individual do cidadão,

enquanto no segundo a proteção recai sobre a probidade

da Administração Pública somente, quando muito pode-

se admitir uma violação ao interesse patrimonial do

cidadão na conduta específica de solicitar, mas não se

observa com as condutas incriminadas qualquer violação

da liberdade do administrado.

Em se tratando da gravidade da conduta

violadora do bem jurídico, seria repetitivo verificar que a

concussão tipifica conduta mais grave que a corrupção

passiva. O que justificaria a atitude do legislador ao

agravar a sanção do tipo penal de corrupção passiva, que

passa a ter pena de reclusão cominada entre 2 (dois) e 12

(doze) anos, ao passo que o crime de concussão, mais

grave, como já visto, continua com pena de reclusão de 2

(dois) e 8 (oito) anos?

O sistema penal é, sem dúvida, uma forma

de controle social que visa à manutenção da estrutura de

poder. Este controle pode se dar inclusive sobre estratos

“socialmente inseridos”, que, com suas condutas,

ponham em risco a estrutura, seja por contestarem a

ideologia vigorante, seja por incitarem a camada social

Page 12: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

12 Temas de Direito Penal e Processo Penal

não dominante a romper com o sistema em razão de

revolta contra certas condutas desviantes.

Casos de repercussão na imprensa em geral

tornam os aplicadores do Direito envolvidos popstars

momentâneos, ratificando o condicionamento da

burocratização preconizada por Zaffaroni e Pierangelli4, e

a cobrança por soluções exemplares incitam

modificações legislativas inconseqüentes.

Não há dúvida que o caso conhecido como

“propinoduto” trouxe à tona, mais uma vez, a

cientificamente descompromissada cobrança por penas

maiores, na luta contra a festejada impunidade.

Qualquer aumento de pena ou

criminalização de conduta que derive de um caso de

repercussão na imprensa deve ser evitado, pois em casos

tais não se pode vislumbrar, como empiricamente vem se

demonstrando, cientificidade nessas alterações

legislativas que servem apenas para dar satisfação à

opinião pública, ratificando todos os condicionamentos

do Poder instituído que, em razão desses falsos

paliativos, se firma no caos e não busca uma modificação

4 ZAFFARONI, E. Raúl; PIERANGELLI, José Henrique.

Manual de Direito Penal Brasileiro, Parte Geral, 3ª ed.,

Revista dos Tribunais, 2001, pág. 77.

Page 13: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

13 Antonio Eduardo Ramires Santoro

estrutural das relações sociais para minimizar as

desigualdades, que são as verdadeiras causas da violência

urbana.

Estas modificações em geral apresentam

vícios insanáveis, como é o caso da Lei nº 10.763, de 12

de novembro de 2003, inconstitucional por violar

flagrantemente o princípio da proporcionalidade.

Page 14: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

14 Temas de Direito Penal e Processo Penal

2 – Liberdade como regra: uma negação

constitucional da prisão processual como antecipação

de tutela5

1. Introdução; 2. A prisão provisória; 3.

Prisão Provisória como medida de exceção;

4. Descabimento da burla à regra da

liberdade; 5. Prisão Provisória usada como

antecipação de tutela; 6. Conclusão

1. Introdução

“Para um leigo pode parecer estranho, mas

para quem conhece direito, não é”6 (sic).

Esta frase é de autoria do Ministro Marco

Aurélio, do Supremo Tribunal Federal, e causou certo

estardalhaço na imprensa em julho de 2004, ao esclarecer

porquê havia concedido liberdade provisória para os

acusados do caso propinoduto

A necessidade do magistrado esclarecer sua

decisão tem origem no embate entre o sentimento popular

de impunidade para “criminosos do colarinho branco”,

5 Revista nº 1 da Academia Brasileira de Estudos Jurídicos em

dezembro de 2005 6 Jornal O Globo, Domingo, 27 de junho de 2004, página 2,

“Frases da Semana”.

Page 15: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

15 Antonio Eduardo Ramires Santoro

sem esquecer da desconfiança nas instituições do Estado

Democrático de Direito, mormente, in casu, o Poder

Judiciário e a validação prática destas instituições sem

interferência da opinião leiga.

Sua decisão é uma negação da prisão

processual como forma de antecipação da tutela penal, no

entanto, para compreender o sentido da sonora assertiva

do ministro cumpre estudar a extensão técnica de sua

decisão, como meio de avaliar a sua afirmação.

2. A prisão provisória

A prisão provisória, como medida cautelar

que é, visa, basicamente, manter a situação fática de

forma que o resultado final do processo tenha efetividade

prática.

No caso do processo penal especificamente,

além de permitir que o resultado do processo seja

realizado, ainda podemos vislumbrar outros objetivos que

melhor abordaremos a seguir.

No processo penal brasileiro podemos

verificar a previsão de cinco espécies de prisão cautelar, a

saber: 1) prisão em flagrante, 2) prisão temporária, 3)

prisão preventiva, 4) prisão decorrente de sentença

Page 16: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

16 Temas de Direito Penal e Processo Penal

condenatória recorrível e 5) prisão decorrente de

sentença de pronúncia.

As três primeiras espécies apresentam maior

interesse para o estudo do tema proposto, razão pela qual

serão sucintamente abordadas a seguir:

A prisão em flagrante, conforme o disposto

nos artigos 301 e 302 do Código de Processo Penal, deve

ser efetuada pela autoridade policial e pode ser efetuada

por qualquer pessoa do povo nos casos definidos em lei

como flagrante, quais sejam, quando o sujeito é preso

cometendo o crime ou logo depois de cometê-lo, ou

quando é perseguido logo após em situação que faça

presumir ser o autor da infração, ou quando é encontrado,

logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis

que façam presumir ser ele o autor da infração.

A prisão temporária, por seu turno, inserida

no ordenamento jurídico processual penal brasileiro pela

Lei nº 7.960 de 1989, só pode ser decretada por

autoridade judicial, e cabe para determinados crimes7,

7 De acordo com o inciso III do artigo 1º da Lei nº 7.960/89 são

os seguintes crimes: homicídio doloso, seqüestro ou cárcere

privado, roubo, extorsão, extorsão mediante seqüestro, estupro,

atentado violento ao pudor, rapto violento, epidemia com

resultado morte, envenenamento de água potável ou substância

alimentícia ou medicinal qualificado pela morte, quadrilha ou

Page 17: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

17 Antonio Eduardo Ramires Santoro

quando imprescindível para as investigações do inquérito

policial ou quando o indiciado não tiver residência fixa

ou não fornecer elementos para o esclarecimento de sua

identidade8.

A prisão preventiva, base para o estudo das

prisões de natureza cautelar, é cabível, de acordo com o

art. 313 do Código de Processo Penal, nos crimes dolosos

punidos com reclusão, ou punidos com detenção quando

o indiciado for vadio ou houver dúvidas sobre sua

identidade, ou se o réu já tiver sido condenado por outro

crime doloso em sentença transitada em julgado se o

término do cumprimento da pena não tiver se dado há

mais de cinco anos.

A prisão preventiva, cuja decretação

necessariamente deve partir de uma autoridade judicial,

tem como requisitos o fumus boni juris e o periculum in

bando, genocídio, tráfico de drogas, crimes contra o sistema

financeiro. 8 A Lei nº 7.960/89 prevê em seu artigo 1º os casos de

cabimento da prisão temporária. A doutrina e a jurisprudência

se ocuparam da discussão sobre a necessidade de observância

dos três incisos em conjunto para que a prisão temporária

pudesse ser decretada ou se bastaria um deles isoladamente.

Prevaleceu, de forma majoritária, o entendimento de que o

inciso três deve necessariamente estar presente, sendo que um

dos outros dois incisos precisam se conjugar ao terceiro,

autorizando assim a decretação da custódia temporária.

Page 18: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

18 Temas de Direito Penal e Processo Penal

mora. Tais requisitos, trazidos do processo civil para a

prisão cautelar penal, devem ser melhor entendidos

como, segundo a mais moderna doutrina9, fumus

commissi delicti e periculum libertatis.

Em consonância ao artigo 312 do Código de

Processo Penal, entende-se como fumus boni juris ou

fumus commissi delicti a prova da materialidade do delito

e os indícios suficientes da autoria. Já o periculum in

mora ou periculum libertatis deve ser entendido como a

ocorrência de perigo concreto que a liberdade do acusado

trará para a ordem pública, ou para a ordem econômica,

ou para a futura aplicação da lei penal, ou por

conveniência da instrução criminal.

3. Prisão Provisória como medida de exceção

Fato é que a medida cautelar penal de que

tratamos, qual seja, a prisão, deve ter seu estudo e,

sobretudo, sua aplicação prática atrelada à observância de

determinados princípios processuais penais

constitucionais, dos quais o mais importante, para efeito

9 Giovanni Conso e Vittorio Grevi, Profili del Nuovo Codice di

Procedura Penale, Padova, Cedam, 1990, pág. 238, apud

Roberto Delmanto Júnior, As modalidades de Prisão

Provisória e Seu Prazo de Duração, Renovar, Rio de Janeiro,

1998, pág. 67.

Page 19: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

19 Antonio Eduardo Ramires Santoro

deste estudo, podemos dizer que é o princípio

constitucional da presunção de inocência ou princípio da

não-culpabilidade, previsto no inciso LVII do art. 5º da

Constituição da República Federativa do Brasil.

Como corolário deste princípio temos que as

prisões que não decorrem de sentença condenatória penal

transitada em julgado10

só podem ser consideradas

medidas de exceção, o que é regra constitucional

expressa, como se verifica no inciso LXVI do citado

artigo.

Destarte, a liberdade é a regra para quem

responde a um processo penal.

E não se diga que os crimes considerados

hediondos e os equiparados são exceções a esta regra,

nem sequer a prisão em flagrante pela prática de um

crime hediondo pode ser considerada exceção, já que o

impedimento de que trata o artigo 2º, inciso II da Lei nº

8.072/90 é para fiança e liberdade provisória, espécies de

10

Vale excepcionar as prisões de natureza diversa, como é o

caso da prisão administrativa militar e das prisões civis

autorizadas pela Constituição da República Federativa do

Brasil, quais sejam, a prisão decorrente de dívida de pensão

alimentícia e do depositário infiel.

Page 20: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

20 Temas de Direito Penal e Processo Penal

liberdade aplicáveis ao caso de prisão em flagrante, não

preventiva ou temporária11

.

Ademais, do momento que foi efetuada a

prisão em flagrante, deixamos de ter a prisão como regra

e sim o impedimento da concessão da liberdade como

regra para este caso específico.

Nossa jurisprudência com freqüência é

chamada a se pronunciar sobre o assunto, valendo a

transcrição de ementa da lavra do eminente Luiz Vicente

Cernicchiaro:

“Não basta referência à norma.

Imprescindível se faz indicação expressa do fato. No

direito brasileiro não existe mais a prisão preventiva

compulsória. Insuficiente, ademais, a simples invocação

da natureza da ação penal. Ademais, necessário realçar

a necessidade do confinamento.” (STJ – RHC nº 2.618-6,

rel. Min. Vicente Cernicchiaro, mv, DJU 28.6.93, pág.

12901 – grifo nosso).

Esta decisão é didaticamente perfeita para

ilustrar o tema proposto, definindo a prisão processual

11

Embora caiba fiança da prisão decorrente da sentença

condenatória recorrível, é de se lembrar que, como dito antes, o

trabalho visa o estudo das três primeiras espécies citadas, que

são a prisão em flagrante, a prisão temporária e a prisão

preventiva.

Page 21: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

21 Antonio Eduardo Ramires Santoro

como medida de exceção por não haver prisão

obrigatória. Mesmo nos Crimes Hediondos a liberdade é

a regra. Senão vejamos outra decisão esclarecedora:

“Nem mesmo a prática de crime definido

como hediondo justifica a prisão preventiva se não estão

presentes os pressupostos previstos no art. 312 do CPP”

(Trecho do Voto Condutor; STJ – 6ª Turma - RHC

12.023 / RJ; DJ DATA:25/03/2002; Relator Min.

Fernando Gonçalves; Data da Decisão 18/12/2001).

4. Descabimento da burla à regra da liberdade

Não podemos fechar os olhos para a

criminalidade urbana em franco crescimento no Brasil,

expandindo suas atividades e acoando os cidadãos de

bem, dedicados ao trabalho lícito.

Este fato, todavia, não é suficiente para que

a regra da liberdade para quem responde a um processo

penal seja burlada ou relevada.

Não é porque uma futura condenação se

mostra evidente ou provável, ou porque o crime

provavelmente cometido é deveras repugnante ou

violento que o Judiciário deve optar por encarcerar o

increpado enquanto tramita o processo a que responde.

Nada excepciona as regras, a não ser as

exceções previamente estabelecidas por Lei, sob pena de

Page 22: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

22 Temas de Direito Penal e Processo Penal

o pretexto da proteção à sociedade se tornar uma violação

dos direitos individuais.

Inobstante se possa argumentar que o direito

individual não pode prevalecer sobre o direito da

sociedade, a única garantia do direito da sociedade é a

observância dos direitos individuais, mormente quando se

tem em vista que o que hoje é considerado afrontoso à

sociedade, outrora foi considerado subversão à ordem

instituída, ainda que não legitimada.

O respeito à Lei e à Ordem é a única

maneira de garantir que este jargão não seja usado por

estruturas viciadas de Poder, como ocorreu em toda a

América Latina na segunda metade do século XX.

5. Prisão Provisória usada como antecipação de tutela

O processo civil avançou para estudar e

regulamentar a antecipação de tutela, fato que já era

tratado na prática de forma atécnica como medida

cautelar satisfativa.

Estreme de dúvidas a cautelar satisfativa no

âmbito processual civil atendeu ao seu propósito e

cumpriu seu papel até o ingresso efetivo da tutela

antecipada no processo de conhecimento.

É claro que em determinados casos o

resultado final do processo provavelmente será o que é

Page 23: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

23 Antonio Eduardo Ramires Santoro

pleiteado pelo Autor da ação, sendo que a demora poderá

trazer prejuízos irrecuperáveis para o demandante, razão

pela qual o senso comum de justiça determinaria a

antecipação dos efeitos da tutela requerida, invertendo os

efeitos danosos da demora na tramitação processual para

o demandado.

No processo civil isto é possível, até porque

o pano de fundo é, via de regra, direito disponível,

demais disso o princípio em que se funda a produção de

provas é o da verdade formal. Ademais, no processo

civil, não há presunção alguma de que uma das partes

está certa ou errada, a prova simplesmente incumbe a

quem alega.

Ocorre que no processo penal, em que

tratamos de direitos indisponíveis – o maior deles a

liberdade –, em que o princípio que norteia a teoria das

provas é o da verdade real, e, por fim, presume-se que o

acusado é inocente até o fim do processo, não podemos

aplicar a teoria da cautelar satisfativa ou da antecipação

de tutela.

No processo civil a prova incumbe a quem

alega, mas se este provar o que asseverou o ônus da

contraprova se inverte. Isso pode ocorrer no curso do

processo, quando o juiz verificar que o autor apresentou

Page 24: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

24 Temas de Direito Penal e Processo Penal

provas do seu direito a ponto de convencer o juízo que

será o provável vencedor, conseguindo antecipação dos

efeitos da tutela pleiteada.

No processo penal não importa a prova que

se é feita logo de início pelo órgão acusador, até porque

esta prova tem que ser feita obrigatoriamente para

observar a justa causa que é uma das condições da ação

penal e consiste no suporte probatório mínimo para

propositura da ação penal.

A estrutura do processo penal não admite

que o juiz antecipe algum juízo sobre o meritum causae.

Em outras palavras, não cabe ao julgador determinar ou

antecipar quem será o vencedor da demanda, mesmo

porque o processo penal se caracteriza pela

impossibilidade da defesa produzir prova oral ou pericial

antes do momento procedimental adequado em via de

regra, o que tornaria a prisão até o momento da contra-

prova desonesta e anti-isonômica, vez que só na

audiência de prova de defesa poderia o réu demonstrar

que a acusação está errada, ou não de todo verdadeira,

merecendo a liberdade.

Com efeito, a persecutio criminis se inicia

fora de juízo, com um procedimento inquisitorial em que

não se admite, como regra, a produção de prova de defesa

Page 25: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

25 Antonio Eduardo Ramires Santoro

ou o direito ao contraditório. Este procedimento, como

sabido, se destina à produção de provas de acusação.

Sendo assim, para que uma ação se inicie, o órgão

acusador tem que ter produzido provas suficientes da

existência do crime e indícios de autoria, enquanto a

defesa nada pôde fazer até o momento.

Estes elementos citados (provas suficientes

da existência do crime e indícios de autoria) constituem

exatamente o fumus boni juris ou fumus commissi delicti.

Em outras palavras, não haverá ação penal

sem fumus commissi delicti.

Ocorre que, em muitos casos, o fumus

commissi delicti vem sendo usado como fundamento

único para a decretação da prisão preventiva,

aproveitando-se da difusa conceituação de um dos

requisitos do periculum libertatis que é a “garantia da

ordem pública”.

Afinal, o que é a ordem pública? Pior, o que

é a garantia da ordem pública?

Não raro, a mera natureza “grave” do crime

é usada para justificar a proteção à ordem pública. Tal

atitude deve ser veementemente refutada na medida em

que o crime, para ser crime, deve ser grave, de forma que,

em tese, não há crime que não seja grave, caso contrário

Page 26: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

26 Temas de Direito Penal e Processo Penal

não mereceria a tutela penal que, como é cediço, é a

ultima ratio.

E ainda que se admita que alguns crimes

apresentam maior gravidade relativamente a outros (o

que é fato), ainda assim, nenhum crime por mais grave ou

por mais inusitado que seja, merece reprovação penal

antecipada, que seria o equivalente à prisão processual

obrigatória ou à antecipação de tutela penal pleiteada à

vista das provas da existência do crime e indícios da

autoria, tendo em vista a “gravidade do crime”.

Verifique-se outro trecho do caso

anteriormente transcrito:

“Embora seja certo que a gravidade do

delito, por si só, não basta à decretação da custódia

provisória a simples repercussão do fato, sem outras

conseqüências, não constitui circunstância suficiente

para a decretação da custódia preventiva. Não se pode

confundir “ordem pública” com o “estardalhaço

causado pela imprensa pelo inusitado do crime”.”

(Trecho do Voto Condutor; STJ – 6ª Turma - RHC

12.023/RJ; DJ DATA:25/03/2002; Relator Min.

Fernando Gonçalves; Data da Decisão 18/12/2001).

Vale dizer que, freqüentemente, os

noticiários são assoberbados com determinado caso que

Page 27: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

27 Antonio Eduardo Ramires Santoro

passa a ser matéria de presença obrigatória nos veículos

de comunicação por longo período de tempo, exercendo a

imprensa influência inegável sobre o Judiciário que,

pressionado, confunde o estardalhaço com a ordem

pública. In vebis:

“II- Não se pode confundir „ordem pública‟

com o „estardalhaço causado pela imprensa pelo

inusitado do crime‟. Como ficar em liberdade é a regra

geral, deveria o juiz justificar substancialmente a

necessidade de o paciente ficar preventivamente preso.”

(STJ – HC nº 3.232-2-RS – 6ª T., j. em 28.3.95, DJU

4.9.95, pág. 27863)

Verifica-se que à guisa de uma definição

séria, concisa, objetiva e escorreita do termo “garantia da

ordem pública”, muitas prisões vêm sendo decretadas

ilegalmente, configurando verdadeiras antecipações da

tutela final penal, violando o princípio da presunção de

inocência e da prisão provisória como medida de

exceção.

Só se pode admitir a prisão provisória com a

ocorrência de fatos que tornem a liberdade perigosa, ou

seja, não basta o mero cometimento do crime e a

provável condenação para gerar a prisão processual,

necessário que em dado momento da persecução o

Page 28: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

28 Temas de Direito Penal e Processo Penal

increpado tenha tornado, com algum ato, sua prisão uma

medida de necessidade.

6. Conclusão

I – Existem cinco espécies de prisão provisória: 1) prisão

em flagrante, 2) prisão temporária, 3) prisão preventiva,

4) prisão decorrente de sentença condenatória recorrível

e 5) prisão decorrente de sentença de pronúncia;

II – A prisão provisória é medida de exceção, a regra é

que o réu deve responder ao processo penal em liberdade;

III – Mesmo no caso de crimes considerados Hediondos

ou equiparados a regra é a liberdade;

IV – No caso dos crimes considerados Hediondos ou

equiparados, a prisão em flagrante não admite liberdade

provisória com ou sem fiança, o que não torna a prisão a

regra, apenas inviabiliza a liberdade quando uma das

espécies de prisão processual se efetiva;

V – A alegação de prevalência do interesse social não

pode ser argumento para a burla de direitos individuais,

posto que sua observância é a única proteção da ordem

constitucional;

VI – A antecipação de tutela no direito civil é uma

realidade de direito que já vinha sendo aplicada como

cautelar satisfativa;

Page 29: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

29 Antonio Eduardo Ramires Santoro

VII – A cautelar satisfativa ou a antecipação de tutela no

processo penal são burlas ao direito constitucional do

cidadão à ampla defesa, ao contraditório, ao devido

processo legal e ao princípio da presunção de inocência;

VIII – Inobstante, à falta de uma definição para o termo

“garantia da ordem pública”, vem sendo antecipada a

tutela penal sem observância de fatos que realmente

tornem a prisão processual necessária.

“Neste exame preliminar, conclui-se pelo desatendimento

a esses ditames constitucionais.(...). Aludiu-se à ordem

pública e, aí, apontou-se a necessidade de prevenir a

repetição de fatos criminosos. Mais do que isso, fez-se

referência ao acautelamento do meio social e à

credibilidade da Justiça, consignando-se a gravidade do

crime e a repercussão. (...). Pouco importa a gravidade

do crime e a impressão no meio social. Quanto mais

grave o crime e maior a reverberação, tem-se a

conveniência de resguardar-se as prerrogativas do

acusado, as franquias, a intangibilidade da ordem

jurídica constitucional. Com esses enfoques é que a

Justiça se impõe e se torna acreditada perante os

concidadãos.” (Ministro Marco Aurélio, Habeas Corpus

84.038-8 Rio de Janeiro)

Page 30: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

30 Temas de Direito Penal e Processo Penal

“É hora de dar-se concretude aos ditames

constitucionais, pagando-se, assim, o preço por viver-se

em um Estado Democrático de Direito. Jamais é demasia

frisar-se que, em Direito, o meio justifica o fim, mas não

este aquele.” (Ministro Marco Aurélio, Habeas Corpus

84.038-8 Rio de Janeiro)

Page 31: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

31 Antonio Eduardo Ramires Santoro

3 – A perene inconstitucionalidade da interceptação

telefônica12

Que mazelas axiológicas escondem o (mal)

uso indiscriminado da interceptação telefônica em nosso

sistema penal? Com o expresso pedido de perdão

antecipado aos juristas e aplicadores do direito pela

intervenção da investigação filosófica no direito penal,

sobretudo na prática jurídica, mas o retorno aos

fundamentos é uma necessidade pouco explorada e aceita

em nosso meio. Puros comentários e glosas às leis penais

e processuais, todavia, escamoteiam insuperáveis

problemas de compatibilização das normas aos valores

constitucionais. Sem questionamento não há crítica, sem

crítica pasteuriza-se o direito.

A prática das interceptações telefônicas

contra a regulamentação de lei revela um sem número de

motivos para críticas, mas não é desta crítica que trato.

Decerto monitoramentos não autorizados ou que duram

mais tempo do que o permitido, degravações realizadas

por policiais sem expertise e até mesmo alterações do

conteúdo das conversas interceptadas, são apenas alguns

12

Publicado no site do IBCCRIM (www.ibccrim.org.br) em 21

de outubro de 2008.

Page 32: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

32 Temas de Direito Penal e Processo Penal

exemplos dos constantes e escabrosos desmandos de um

Estado que se mostra policialesco, invasor e violador da

intimidade dos cidadãos em geral, em grande parte das

vezes com a conivência de quem deveria zelar

diretamente pela legalidade desta prática.

Mas não é desta mazela que falo.

O mal maior está na sanha persecutória da

massa popular que, não raro como resultado de uma

manipulação, ora ideológica, ora rasteiramente na busca

do aumento da audiência de programas televisivos ou

tablóides populares, exige do Poder Público uma

imediata punição para quem „claramente‟ cometeu um

crime.

Não é difícil ouvirmos na televisão, sempre

acompanhada da devida transcrição com iluminação

apropriadamente destacada por efeitos computadorizados,

conversas gravadas em monitoramento, dos quais a parte

investigada e seus advogados, evidentemente por estarem

os autos em segredo de justiça, não têm conhecimento ou

acesso. Não raro, sob pressão, o Poder Judiciário, como

Pilatos, entrega ao povo o objeto do seu clamor.

Ainda que se admita tal manipulação, o que

obviamente só se faz para aprofundarmos a revelação do

absurdo, não se faz qualquer referência à utilização das

Page 33: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

33 Antonio Eduardo Ramires Santoro

gravações telefônicas como sucedâneo da confissão. No

entanto esta é a verdadeira natureza da interceptação

telefônica, o que, por sinal, se faz de forma até muito

mais perniciosa que a própria confissão sob tortura,

porquanto não deixa ao investigado a opção de sofrer

física e psicologicamente a ação do torturador em troca

de seu silêncio.

O que se quer dizer com isto é que o

monitoramento telefônico dificilmente revela um crime

em execução, mesmo porque não é esta a sua função.

Normalmente, e até por exigência da Lei, a conduta

criminosa já ocorreu e o que se busca com o

monitoramento não é flagrar a prática da infração penal,

mas uma prova de que o delito foi praticado e de quem o

praticou. Mesmo porque, se o objetivo fosse flagrar a

prática de uma infração penal, a autorização de

interceptação telefônica deveria partir do Judiciário antes

do ato criminoso, o que nos faria entregues aos vaticínios

de uma superestrutura policial. Uma espécie de Minority

Report à brasileira.

A única exceção a esta aventura

hollywodiana ocorre quando o crime que se busca

investigar é de natureza permanente ou continuada, pois o

crime ocorreu e continua ocorrendo, portanto pode ser

Page 34: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

34 Temas de Direito Penal e Processo Penal

flagrado. Caso contrário não se revelará pela

interceptação telefônica a prática criminosa no ato de sua

conduta típica, mas sim conversas que tratem de crimes

cuja execução já ocorreu.

Ora, se a execução do crime já ocorreu e só

se pode monitorar quem seja suspeito de ter cometido o

crime, somente se poderá obter, com o monitoramento

telefônico, a confissão do autor do crime, em revelação

do fato a outra pessoa (o outro interlocutor) que não é a

autoridade policial, nem judicial, e, pior, contra a vontade

do confesso.

Segue, em linha de conclusão lógica e

irrefutável, que a interceptação telefônica se presta a

extrair uma confissão mais do que forçada, porquanto,

quando se pretende obtê-la pelo uso da força, ainda resta

ao investigado a opção de aceitar a imposição de

violência contra si sem revelar o crime que cometera.

O raciocínio, concessa venia, é simples, se a

interceptação telefônica, tal qual regulamentada pela Lei

nº 9.296/96 somente pode ser realizada quando houver

indícios razoáveis de autoria ou participação em infração

penal, é porque o crime já ocorreu. Se o crime já ocorreu

e quem será monitorado em suas comunicações

telefônicas é o autor ou partícipe indiciário, dele só se

Page 35: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

35 Antonio Eduardo Ramires Santoro

poderá extrair uma confissão em conversa travada com

alguém que não é a autoridade policial ou judicial. Uma

vez extraída a confissão sem o conhecimento do

confesso, violado está o direito que todo cidadão tem de

optar por não falar e, mais grave, não falar contra si.

Assim, podemos concluir, sem medo de

errar, que a interceptação telefônica somente se presta a

extrair confissões de crimes já cometidos, confissão que

não respeita a vontade do agente e que, destarte, viola o

direito ao silêncio e, bem assim, o direito de todos os

cidadãos não serem obrigados a produzir provas contra si

mesmos.

O fato de estar prevista e regulamentada em

Lei não afasta o conflito com os valores da Constituição.

A interceptação telefônica é, portanto, inconstitucional

em sua gênese, em seu conceito como meio de prova que

só se presta a extrair confissões à sorrelfa.

Page 36: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

36 Temas de Direito Penal e Processo Penal

4 – A “nova” lacuna no sistema legal de nulidades

causado pela reforma processual13

É cediço entre os aplicadores do Direito que

a disciplina das nulidades forjada pelo nosso Código de

Processo Penal não contém uma sistematização

coerente14

, porquanto, ao lado de um extenso rol de casos

de nulidades, inserta regras gerais abrindo margem para

aplicação interpretativa a cargo do juiz que,

necessariamente, deve declarar o ato inválido, uma vez

que o vício não pode por outra forma ser reconhecido e

declarado. Não se olvide, demais disso, a mudança de

ordem constitucional operada em 1988, que encerrou

outros tantos casos de nulidades decorrentes de violações

das normas magnas e, sobretudo, de princípios que dão

concretude a direitos fundamentais cuja violação enseja a

declaração de nulidades que vão além do rol previsto no

art. 564 do Código de Processo Penal.

Em que pese a crítica tecida à falta de

teleologia do pseudo sistema que nosso ordenamento

13

Publicado no Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 16, n. 194,

p. 12-13, jan. 2009. 14

Ada Pellegrini Grinover, Antonio Scarance Fernandes e

Antonio Magalhães Gomes Filho, As Nulidade no Processo

Penal, 8ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 31.

Page 37: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

37 Antonio Eduardo Ramires Santoro

encerra, sempre foi por toda doutrina reconhecido uma

teoria geral das nulidades segundo a qual, em regra, os

vícios dos atos podem inquiná-los de inexistentes ou

nulos, malgrado Helio Tornaghi, isoladamente, ainda

distinga os atos nulos dos atos anuláveis15

.

Os atos inexistentes, que também podemos

chamar de não-atos16

, decorrem da falta de um ato e não

há sequer que se falar em invalidação, pois o ato não

existe, como ocorre, exempli gratia, com a falta de

citação17

.

Ainda no que respeita à teoria geral das

nulidades, temos que as nulidades podem ser

classificadas em absolutas ou relativas. Ambas devem

ser declaradas pelo juiz, porém podemos identificar,

basicamente, quatro diferenças:

(1) No caso da nulidade absoluta a

declaração pode ser feita de ofício, ao passo que a

nulidade relativa precisa ser provocada mediante

argüição da parte prejudicada pela produção do ato nulo;

15

Helio Tornaghi, Instituições de Processo Penal, Rio de

Janeiro: Forense, 1959, pp. 64/65. 16

Ada Pellegrini Grinover et al., op. cit., p. 22. 17

Fernando da Costa Tourinho Filho, Processo Penal, 3º vol.,

24ª ed., São Paulo, 2002, p. 115.

Page 38: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

38 Temas de Direito Penal e Processo Penal

(2) O princípio pas de nullité sans grief é

aplicável a ambas, ou seja, somente haverá declaração de

nulidade do ato que, em razão do vício, causou prejuízo à

parte, como dispõe o art. 563 do Código de Processo

Penal, porém o prejuízo dos atos eivados de nulidades

consideradas absolutas é presumido, presunção jure et de

jure18

, que não admite prova em contrário, ao passo que

os atos eivados de vícios considerados relativos

dependem de prova do prejuízo causado à parte que

argüiu a nulidade;

(3) A nulidade absoluta pode ser argüida a

qualquer momento, inclusive, como já dito ser

reconhecida de ofício, ao passo que a nulidade relativa,

não apenas deve ser argüida pela parte prejudicada, como

o momento para argüição da nulidade relativa é próprio,

não se podendo fazê-lo posteriormente;

(4) O ato eivado de nulidade relativa que

não for argüido no momento oportuno é sanado, ou seja,

18

Fernando da Costa Tourinho Filho, op. cit., p. 119, afirma

que há presunção absoluta de prejuízo no caso de nulidades

absolutas, ao passo que Ada Pellegrini Grinover et al., op. cit.,

p. 33, afirma que não é caso de presunção de prejuízo, mas de

evidência de prejuízo, pois entende que as presunções

normalmente admitem a inversão do ônus da prova, problema

que parece não existir na doutrina de Tourinho na medida em

que a presunção por ele sustentada é jure et de jure.

Page 39: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

39 Antonio Eduardo Ramires Santoro

torna-se válido, como preceitua o art. 572 do Código de

Processo Penal, enquanto o ato eivado de nulidade

absoluta não se convalida nunca, nem mesmo depois da

sentença condenatória irrecorrível.

Uma vez reconhecida a nulidade de um ato,

cuja nulidade não tenha sido sanada, o juiz deve declará-

la, pronunciando a que atos ela se estende. Uma vez

reconhecidos os atos que foram atingidos pela declaração

de nulidade, deverão os mesmos ser renovados ou

retificados, conforme regra disposta no art. 573 do

Código de Processo Penal.

Com efeito, esta teoria geral das nulidades,

exposta acima em brevíssimo apanhado, em nada foi

modificada pela reforma do Código de Processo Penal,

mesmo porque esta alterou os dispositivos referentes ao

Tribunal do Júri (Lei nº 11.689/2008), às provas (Lei nº

11.690/2008) e aos procedimentos (Lei nº 11.719/2008).

O problema está na letra morta em que se

tornou a maior parte do art. 571 do Código de Processo

Penal e a verdadeira ruptura sistemática que esta

derrogação provocou. Senão vejamos:

A maneira técnica de se classificar uma

nulidade como relativa ou absoluta é a interpretação

Page 40: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

40 Temas de Direito Penal e Processo Penal

sistemática dos dispositivos do Código de Processo Penal

com a Constituição.

Uma vez violada a Constituição pela prática

de um ato processual, por ser a norma constitucional

estabelecida em prol do interesse público, esta nulidade é

absoluta19

.

De outro ponto, para identificar-se uma

nulidade é relativa ou absoluta quando o ato viola uma

norma infraconstitucional, deve-se fazer uma leitura

teleológica dos dispositivos do Código de Processo Penal

de maneira que o seu entendimento permita classificar

operar a classificação. Com efeito, o art. 572 do referido

Diploma Legislativo, quando estabelece a listagem de

nulidades que poderão ser consideradas sanadas, na

verdade declarou os casos de nulidades relativas, porque

estas são as únicas que se podem sanar.

Ora, se o dispositivo referido lista os casos

de nulidades relativas, é porque estas nulidades, como diz

o inciso I do próprio artigo, para serem declaradas devem

ser argüidas em momento oportuno, qual seja, os

momentos previstos no art. 571 do Código de Processo

Penal.

19

Ada Pellegrini Grinover et al., op. cit., p. 29.

Page 41: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

41 Antonio Eduardo Ramires Santoro

Chegamos ao problema fatual. O referido

art. 571 do Código de Processo Penal prevê 8 (oito)

momentos em que as nulidades relativas devem ser

argüidas, que variam conforme o procedimento adotado

para julgamento do fato levado à apreciação do Poder

Judiciário. Ocorre que as disposições sobre os

procedimentos foram alterados pela recente reforma

processual, como já visto anteriormente, de sorte que os

incisos do art. 571, que faziam referência a outros

dispositivos perderam o sentido. Vejamos cada inciso:

“Art. 571. As nulidades deverão ser

argüidas:

I – as da instrução criminal dos processos

de competência do júri, nos prazos a que se refere o art.

406;”

O antigo art. 406 do Código de Processo

Penal previa o momento em que as partes apresentariam

suas alegações finais escritas, no prazo de 5 (cinco) dias,

na primeira fase do procedimento do júri, que se passa

perante um juiz togado. Era, portanto, nas alegações

finais que as partes deveriam argüir as nulidades

relativas. Com a alteração realizada pela Lei nº

11.689/2008, o novel art. 406 prevê que o juiz ao receber

a denúncia ou queixa, mandará citar o acusado para

Page 42: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

42 Temas de Direito Penal e Processo Penal

responder a acusação no prazo de 10 (dez) dias. Ora,

ainda que se diga que este é o momento para argüição das

nulidades relativas no procedimento do júri, não se deve

esquecer que o art. 571 não prevê nenhum outro

momento para argüição de nulidade antes da pronúncia,

de tal forma que a interpretação literal do art. 571

combinado com o art. 406, ambos do CPP, levaria ao

absurdo de que não é possível argüir nulidades relativas

ocorridas entre a apresentação de defesa escrita, que

ocorre no início do procedimento, e a pronúncia, devendo

aquele que for prejudicado pela prática de um ato eivado

de nulidade relativa suportar os efeitos prejudiciais do

mesmo, por não haver momento próprio para sua

argüição.

“II – as da instrução criminal dos processos

de competência do juiz singular e dos processos

especiais, salvo os dos Capítulos V e VII do Título II do

Livro II, nos prazos a que se refere o art. 500;”

O antigo art. 500 previa que, encerrada a

instrução e concluídas as diligências, se requeridas, as

partes teriam 3 (três) dias para apresentar alegações finais

escritas. Este era o momento para argüição de nulidades

relativas. O art. 500 foi revogado pela Lei nº

11.719/2008. Pergunta-se: não há mais momento para

Page 43: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

43 Antonio Eduardo Ramires Santoro

argüir nulidades relativas ocorridas nos procedimentos

ordinário e especiais? Não podemos chegar a este

absurdo.

“III – as do processo sumário, no prazo a

que se refere o art. 537, ou, se verificadas depois desse

prazo, logo depois de aberta a audiência e apregoadas

as partes;”

O antigo art. 537 tratava do prazo de 3 (três)

dias, logo após o interrogatório, em que o acusado podia

apresentar defesa prévia. Este era o momento para argüir

nulidades relativas até o ato de interrogatório. A Lei nº

11.719/2008 revogou o art. 537. Mais uma vez, pergunta-

se: não há mais momento para argüir nulidades relativas

ocorridas no procedimento sumário? É bem verdade que

este inciso, especificamente, determinava que as

nulidades ocorridas depois da defesa prévia (que não

existe mais como antes era regulada), seriam argüidas

logo depois de aberta a audiência e apregoadas as partes.

Esta determinação é possível manter, tendo em vista que

o interrogatório já não mais se realiza antes da audiência

de instrução e julgamento em um ato a parte? Não

pensamos que esta seja a interpretação mais consentânea

com as exigências de realização teleológica do processo

Page 44: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

44 Temas de Direito Penal e Processo Penal

como um sistema e as nulidades como um subsistema

deste.

“IV - as do processo regulado no Capítulo

VII do Título II do Livro II, logo depois de aberta a

audiência;”

Este não foi alterado, mantendo-se

integralmente aplicável.

“V - as ocorridas posteriormente à

pronúncia, logo depois de anunciado o julgamento e

apregoadas as partes (art. 447);”

Antigamente o art. 447 dizia que o

presidente do Tribunal do Júri abriria a sessão, tomando

algumas atitudes, e, por fim, anunciando o julgamento e

apregoando as partes, ao passo que hoje o art. 447,

alterado pela Lei nº 11.689/2008, diz apenas que o

Tribunal do Júri é composto por 1 (um) juiz togado, seu

presidente e por 25 (vinte e cinco) jurados que serão

sorteados dentre os alistados, 7 (sete) dos quais

constituirão o Conselho de Sentença em cada sessão de

julgamento, mais nada, sendo absolutamente

incompatível esta disposição com a determinação de um

momento para argüição de nulidade relativa. Pergunta-se,

mantém-se o momento de argüição de nulidade com a

abertura da sessão, após o compromisso dos jurados, a

Page 45: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

45 Antonio Eduardo Ramires Santoro

que se refere o atual art. 472 do CPP, ou em outro

momento?

“VI - as de instrução criminal dos processos

de competência do Supremo Tribunal Federal e dos

Tribunais de Apelação, nos prazos a que se refere o

art. 500;”

Este dispositivo já se encontrava revogado

tacitamente pela Lei nº 8.038/90

“VII - se verificadas após a decisão da

primeira instância, nas razões de recurso ou logo depois

de anunciado o julgamento do recurso e apregoadas as

partes;”

Como este inciso não faz referência a artigo

de lei específico, mas a momento processual que continua

existindo na sistemática procedimental atual, nada muda

quanto à sua disposição.

“VIII - as do julgamento em plenário, em

audiência ou em sessão do tribunal, logo depois de

ocorrerem.”

O mesmo que foi dito, com relação ao inciso

anterior a este se aplica, ou seja, como não faz referência

a artigo de lei específico, mas a momento processual que

continua existindo na sistemática procedimental atual,

nada muda quanto à sua disposição.

Page 46: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

46 Temas de Direito Penal e Processo Penal

Assim, podemos dizer que fora o inciso VI,

que já estava tacitamente revogado, e os incisos IV, VII e

VIII, cujo texto não remete a alterações da reforma

processual, todos os demais incisos foram atingidos de tal

forma que sua aplicação prática tornou-se impossível.

O que fazer com esta nova lacuna criada

pela reforma processual? Transformar todas as nulidades

em absolutas, já que não existe na lei a previsão expressa

do momento oportuno para argüir as nulidades relativas?

Determinar que estas nulidades devam ser declaradas na

primeira oportunidade em que a parte prejudicada falar

nos autos?

Neste ponto nos remetamos à lição de

Norberto Bobbio em sua formulação da Teoria do

Ordenamento Jurídico20

, a qual, segundo o próprio

filósofo, é a maior contribuição do positivismo para o

Direito. De fato, independente do fundamento filosófico

em que se fulcre o pensamento do intérprete, a

compreensão do Ordenamento como um sistema que tem

por dogma a completude é uma necessidade. Sobretudo

se, como o próprio Bobbio, admitirmos que há lacunas

20

Norberto Bobbio, Teoria do Ordenamento Jurídico, 10ª ed.,

tradução Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos, Brasília:

UnB, 1999.

Page 47: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

47 Antonio Eduardo Ramires Santoro

próprias no Ordenamento, ou seja, espaços que não

decorrem da incompatibilidade entre a ideologia ideal do

sistema e suas normas, mas na falta de norma

internamente ao próprio sistema. Esta lacuna própria

pode ser completada pelo intérprete, recorrendo à

analogia legis ou à analogia juris. A primeira é a busca

de solução para um fato em norma semelhante, ao passo

que a segunda é a busca da solução nos princípios gerais.

Rompendo com a ideologia avalorativa

positivista, temos que o sistema deve ser completo

também pela coerência dos valores que encerra. Daí

porque, no caso presente, esta lacuna própria do

Ordenamento precisa ser preenchida com a aplicação dos

princípios gerais do processo penal.

Em primeiro lugar devemos ter como certo

que a reforma processual não eliminou a diferença entre

nulidades absolutas e nulidades relativas, haja vista que o

art. 572 do CPP é vigente e aplicável. Portanto, não

podemos adotar a solução de simplesmente igualar as

nulidades e fazer letra morta aquilo que ainda vige.

Em segundo lugar, é impensável limitar os

direitos à ampla defesa dos acusados em um processo

penal limitando seu momento de argüição de nulidades

relativas ao primeiro momento em que o mesmo tiver a

Page 48: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

48 Temas de Direito Penal e Processo Penal

oportunidade de falar nos autos após a prática do ato

nulo. Seria uma violação não apenas do princípio da

ampla defesa, mas também do favor rei.

Desta forma, não temos dúvida em afirmar

que o momento para argüir as nulidades relativas é o

último ato processual a ser praticado pela parte

prejudicada pela nulidade antes do juiz proferir a

sentença, o que ocorreria nas alegações finais, que hoje

são, em regra, orais. Assim, estaria sendo mantida a

integridade do sistema, sem desnaturar a classificação das

nulidades e sem eliminar os direitos e garantias do

cidadão. De outra maneira, o sistema processual penal

brasileiro de matiz acusatória e garantista restaria

irreparavelmente desfigurado.

Page 49: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

49 Antonio Eduardo Ramires Santoro

5 – Reforma processual: uma modalidade de prisão

provisória a menos, as mesmas garantias

constitucionais21

Sabemos que as medidas cautelares visam,

basicamente, manter a situação fática de forma que o

resultado final do processo tenha efetividade prática.

A imposição da prisão provisória, por ter

natureza de medida cautelar, também deve ter como

pressuposto permitir que o resultado do processo seja

realizado, porém, no caso do processo penal e mais

especificamente das custódias cautelares, ainda podemos

vislumbrar outros objetivos que melhor abordaremos a

seguir.

A doutrina processual penal brasileira, de

uma forma geral, elenca a existência de cinco espécies de

prisão cautelar, a saber: (1) prisão em flagrante; (2)

prisão temporária; (3) prisão preventiva; (4) prisão

decorrente de sentença condenatória recorrível; e (5)

prisão decorrente de sentença de pronúncia.

21

Publicado no site do IBCCRIM (www.ibccrim.org.br) em 17

de junho de 2009 em co-autoria com SAMANTA FELIX

GOMES DE MELLO.

Page 50: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

50 Temas de Direito Penal e Processo Penal

As terceira e a quarta espécies apresentam

maior interesse para o estudo do tema proposto, razão

pela qual serão sucintamente abordadas a seguir:

A prisão preventiva, base para o estudo das

prisões de natureza cautelar, é cabível, de acordo com o

art. 313 do Código de Processo Penal, nos crimes dolosos

punidos com reclusão, ou punidos com detenção quando

o indiciado for vadio ou houver dúvidas sobre sua

identidade ou não fornecer ou indicar elementos para

esclarecê-la, ou se o réu já tiver sido condenado por outro

crime doloso em sentença transitada em julgado se o

término do cumprimento da pena não tiver se dado há

mais de cinco anos ou se o crime envolver violência

doméstica e familiar contra a mulher, nos termos da lei

específica, para garantir a execução das medidas

protetivas de urgência.

A prisão preventiva, cuja decretação

necessariamente deve partir de uma autoridade judicial,

tem como requisitos o fumus boni juris e o periculum in

mora. Tais requisitos, trazidos do processo civil para a

prisão cautelar penal, devem ser melhor entendidos

Page 51: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

51 Antonio Eduardo Ramires Santoro

como, segundo a doutrina mais atual22

, fumus commissi

delicti e periculum libertatis.

Em consonância ao artigo 312 do Código de

Processo Penal, entende-se como fumus boni juris ou

fumus commissi delicti a prova da materialidade do

delito e os indícios suficientes da autoria. Já o periculum

in mora ou periculum libertatis deve ser entendido como

a ocorrência de perigo concreto que a liberdade do

acusado trará para a ordem pública, ou para a ordem

econômica, ou para a futura aplicação da lei penal, ou

para conveniência da instrução criminal.

A prisão decorrente de sentença

condenatória recorrível, por sua vez, está prevista no

artigo 393, I do Código de Processo Penal e atribui à

prisão a natureza de efeito da sentença, outorgando-lhe

ares de obrigatoriedade, que deve ser rechaçada à luz da

regra inserta no inciso LXVI do artigo 5º da Constituição

Federal, que prevê a excepcionalidade da prisão.

22

Giovanni Conso e Vittorio Grevi, Profili del Nuovo Codice

di Procedura Penale, Padova, Cedam, 1990, pág. 238, apud

Roberto Delmanto Júnior, As modalidades de Prisão

Provisória e Seu Prazo de Duração, Renovar, Rio de Janeiro,

1998, pág. 67.

[5] Vide decisão no AgRg na MC 12.493/SP, Relator Ministro

Hamilton Carvalhido, julgamento: 26/04/2007, DJ 25/06/2007,

6ª Turma.

Page 52: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

52 Temas de Direito Penal e Processo Penal

Fato é que a medida cautelar penal de que

tratamos, qual seja, a prisão, deve ter seu estudo e,

sobretudo, sua aplicação prática atrelada à observância de

determinados princípios processuais penais

constitucionais, dos quais o mais importante, para efeito

deste estudo, podemos dizer que é o princípio

constitucional da presunção de inocência ou princípio da

não-culpabilidade, previsto no inciso LVII do art. 5º da

Constituição da República Federativa do Brasil.

Como corolário deste princípio, temos que

as prisões que não decorrem de sentença condenatória

penal transitada em julgado23

só podem ser consideradas

medidas de exceção, o que é regra constitucional

expressa, como se verifica no inciso LXVI do citado

artigo.

Neste passo, a prisão decorrente de sentença

condenatória da qual cabe recurso vem sendo

interpretada, teleologicamente, sob pena de não se

incorporar à ordem constitucional hodierna, como

dependente de decisão prisional fundamentada, no corpo

23

Vale excepcionar as prisões de natureza diversa, como é o

caso da prisão administrativa militar e das prisões civis

autorizadas pela Constituição da República Federativa do

Brasil, quais sejam, a prisão decorrente de dívida de pensão

alimentícia e do depositário infiel.

Page 53: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

53 Antonio Eduardo Ramires Santoro

da própria sentença condenatória recorrível, na qual se

exponha(m) o(s) requisito(s) do periculum libertatis em

que se funda a necessidade de segregação imediata.

Não existe, outrossim, impositivamente24

,

execução provisória da pena à luz dos referidos preceitos

constitucionais, nem tampouco prisão provisória

obrigatória.

Destarte, a liberdade é a regra para quem

responde a um processo penal, ainda que esteja pendente

o julgamento de um recurso ao qual não esteja atribuído

por lei efeito suspensivo.

A presunção de necessidade de custódia

cautelar que a primeira vista ressalta da leitura desavisada

do artigo 393, inciso I, do CPP é mitigada pela

hermenêutica constitucional pela qual devem passar

todos os dispositivos infra-constitucionais, mormente

aqueles que já vigiam sob a ordem anterior.

Não é por outro motivo que o STF25

e o

STJ26

vêm rechaçando a prisão decorrente de sentença

24

Nada impede, todavia, que está seja uma opção voluntária do

próprio condenado.

25

Vide decisão no HC 89754, Bahia, Relator Min. Celso de

Mello, Julgamento: 13/02/2007, 2ª Turma.

Page 54: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

54 Temas de Direito Penal e Processo Penal

condenatória recorrível quando o magistrado não

fundamente expressamente que motivos foram

determinantes para fazer clara a presença no caso

concreto do periculum libertatis, assemelhando

expressamente os requisitos da prisão decorrente de

sentença condenatória recorrível aos requisitos da prisão

preventiva.

Com a reforma do Código de Processo

Penal, especificamente a mudança realizada pela Lei nº

11.719/2008 no art. 387, com a inclusão do parágrafo

único, a interpretação teleológica constitucional se

transformou em norma legal.

Isso porque, malgrado o art. 393, inciso I do

CPP não tenha sido revogado, a nova redação do

parágrafo único do art. 387 do mesmo Diploma impõe ao

juiz que proferir a sentença que decida motivadamente

sobre a manutenção ou imposição de prisão preventiva ou

outra medida cautelar.

Importa ressaltar que esta mudança não é

meramente formal ou adaptativa da ordem legal à

interpretação constitucional, mas promove uma alteração

26

Vide decisão no AgRg na MC 12.493/SP, Relator Ministro

Hamilton Carvalhido, julgamento: 26/04/2007, DJ 25/06/2007,

6ª Turma.

Page 55: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

55 Antonio Eduardo Ramires Santoro

significativa no sistema de prisões processuais, bem

como refaz as modalidades de prisão existentes em nosso

ordenamento jurídico.

Com efeito, tendo em vista que a lei nova

revoga a mais antiga no que com ela não for compatível,

isto é, promove uma revogação tácita, não pode haver

dúvida que a Lei nº 11.719/2008 revogou os artigos 311,

apenas em parte, e 393, inciso I, ambos do CPP.

O referido art. 311 limita a possibilidade de

decretação da prisão preventiva ao período de inquérito e

instrução criminal. Ora, certamente o ato de prolação da

sentença não faz parte do período de instrução criminal,

razão pela qual o novel parágrafo único do art. 387

estendeu o período legal de possibilidade de decretação

da prisão preventiva para além do término da instrução

criminal.

De outro lado, se o juiz decidirá sobre a

manutenção ou imposição de prisão preventiva no ato

sentencial, é certo que a prisão decorrente de sentença

condenatória recorrível está revogada, por corolário

lógico.

Com isso a imposição de prisão na sentença

não é um efeito dela, nem tampouco uma modalidade de

Page 56: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

56 Temas de Direito Penal e Processo Penal

prisão diversa da preventiva, é a própria prisão

preventiva.

Houve, assim, uma alteração do sistema de

prisões provisórias, haja vista que a jurisprudência pátria

reconhecia a existência da prisão decorrente de sentença

condenatória recorrível, mas estabelecia requisitos para

sua imposição, os quais coincidiam com os da prisão

preventiva por uma questão de garantia constitucional do

acusado. Em outras palavras, nossos tribunais impunham,

para preservar a compatibilização do Código de Processo

Penal aos princípios constitucionais, a observância dos

requisitos da preventiva para imposição de prisão

decorrente de sentença condenatória recorrível.

Com a mudança implementada pela Lei nº

10.719/2008, o juiz deverá decidir sobre a manutenção ou

imposição da própria prisão preventiva no ato de

prolação da sentença condenatória recorrível, o que

importa dizer que a prisão decorrente de sentença

condenatória recorrível não existe mais.

Assim, a Reforma do Processo Penal

promoveu, tacitamente, a revogação da previsão legal da

prisão decorrente de sentença condenatória recorrível e

reduziu o rol de modalidades de prisão provisória

previstas no ordenamento processual penal brasileiro a

Page 57: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

57 Antonio Eduardo Ramires Santoro

apenas quatro: (1) prisão em flagrante; (2) prisão

temporária; (3) prisão preventiva; e (4) prisão decorrente

de pronúncia.

Com isso não aumentaram as garantias

constitucionais aos acusados já reconhecidas pela

jurisprudência pátria, mas foram aderidas ao texto legal,

consolidando-as.

Page 58: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

58 Temas de Direito Penal e Processo Penal

6 – O quê Wittgenstein diria das interceptações

telefônicas no Brasil?27

A moderna orientação da doutrina

espanhola, no que respeita à teoria do delito, se funda na

filosofia da linguagem, na esteira da renovadora lição de

T. S. Vives28

que, declaradamente baseado na filosofia de

Wittgenstein e na sociologia de Habermas, desenvolveu a

teoria da ação significativa.

Mesmo no âmbito do direito penal

econômico a filosofia da linguagem já apresenta sua

influência pelas mãos de Carlos Martínez-Buján Pérez29

.

No Brasil, Paulo Cesar Busato30

se mostra

um expoente desta nova teoria.

Na esteira desse novo pensamento, vale uma

pequena incursão pela prática das interceptações

telefônicas no Brasil sob a ótica “Wittgensteiniana”. Para

27

Publicado no site do IBCCRIM (www.ibccrim.org.br) em 27

de outubro de 2009. 28

Fundamentos de Derecho Penal, Tirant Lo Blanch, 1996,

Valencia. 29

Derecho Penal Económico y de la Empresa – Parte General,

Tirant lo Blanch, 2007, Valencia. 30

Direito Penal e Ação Significativa, Lumen Juris, 2007, Rio

de Janeiro.

Page 59: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

59 Antonio Eduardo Ramires Santoro

tanto utilizaremos, metodologicamente, a técnica da

análise de “cases”.

De antemão cumpre uma breve exposição

sobre o que entendemos por aplicação da filosofia da

linguagem à teoria das provas e, via de consequência, à

interceptação telefônica. As provas pretendem trazer ao

processo o conhecimento da verdade, independente da

adoção ou não do princípio da busca da verdade real ou

da aplicação da verdade formal, como hodiernamente

preconizam os teóricos garantistas31

, uma vez que essas

opções valorativas dizem respeito à distribuição do ônus

da prova.

A prova não é o fato, nem tampouco o

reproduz, mas é um meio pelo qual são externados os

significados que promovem a possibilidade de

conhecimento pelo juiz, ou por outro sujeito processual.

Daí porque o termo meio de prova é absolutamente

adequado.

De outro giro, os momentos da prova vão

desvelar outras aplicações linguísticas necessárias à

distribuição e delimitação de tarefas dos sujeitos do

processo e auxiliares do juízo. São momentos da prova: o

31

Vide Luigi Ferrajoli, Direito e Razão, Revista dos Tribunais,

2002, São Paulo.

Page 60: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

60 Temas de Direito Penal e Processo Penal

requerimento, o deferimento, a produção e a valoração.

Esses momentos, não raro, dependendo do meio de

prova, se confundem ou não observam cronologicamente

esta ordem. Um exemplo claro dessa inversão é a prova

documental, cuja juntada é requerida ao mesmo tempo

em que a produção da prova é realizada, sendo o

deferimento posterior e, em grande parte das vezes,

tácito.

Uma vez produzida, dos autos do processo

constará o substrato da prova, restando assim, satisfeitos

os três primeiros momentos. Ao valorá-la, no quarto

momento, o julgador encontrará o sentido da prova, ou

seja, aquilo que ela comunica e revela ao mundo jurídico.

Esta tarefa é uma tarefa interpretativa e privativa do juiz,

cabendo às partes apenas argumentar para convencer o

juízo sobre o melhor significado da prova.

Com base nestes significados o juiz definirá

os fatos que entender estarem demonstrados e que serão

chamados de elementos de prova, com base nos quais

formará sua convicção sobre a procedência ou não da

pretensão deduzida em juízo.

Especificamente quanto à interceptação

telefônica, o requerimento é precedente da produção, por

determinação legal (muito embora não seja difícil

Page 61: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

61 Antonio Eduardo Ramires Santoro

verificar pelos escândalos veiculados pela imprensa a

existência possível, e até provável, de grampos

telefônicos clandestinos no Brasil).

A produção, por sua vez, demanda uma

intrincada operação que envolve desde os delegados,

agentes e escrivães de polícia, até empresas privadas

proprietárias de softwares e hardwares patenteados e

vendidos com o único desiderato de possibilitar

tecnologicamente a execução do monitoramente de

comunicações, passando pelas empresas de telefonia,

operadoras de rádio-comunicação, etc.

De resto, a produção da prova se dá com a

gravação das comunicações e constituem meios de prova

os arquivos de gravações que passam a constar das

mídias de armazenamento digital juntadas ao processo. O

substrato da prova é o conteúdo dos arquivos. O sentido

da prova é a interpretação do conteúdo das conversas

constantes dos arquivos, que, como visto, é tarefa

privativa do juiz.

Inobstante a fixação dessas premissas

teóricas, a prática da interceptação telefônica se revela

um verdadeiro emaranhado de ações muitas vezes

desconexas, outras vezes com inversão completa dos

papéis processuais desempenhados pelos agentes

Page 62: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

62 Temas de Direito Penal e Processo Penal

policiais, que comumente invadem as tarefas privativas

do juiz.

Passemos, dessarte, à análise de casos de per

se:

1º caso) Foi devidamente requerida e autorizada a

interceptação telefônica, a prova foi produzida mediante

monitoramento, realizada a gravação das conversas em

mídia digital juntada aos autos e transcritas pelo agente

da autoridade policial, porém, verifica-se que nem todas

as conversas transcritas constam dos arquivos de áudio,

ou seja, diversas conversas não estão gravadas. Por

exemplo, de 3.500 arquivos de áudio, somente estão

gravados na mídia digital 3.200, ou seja, 300 se

perderam e não foram encontrados.

Neste caso, não há que se falar em prova.

Isso porque os meios de prova que são os arquivos de

áudio somente existem se todos estiverem íntegros. Não é

possível considerar a existência de um meio de prova em

parte. Por exemplo, não se pode considerar a existência

de uma prova documental consistente em um contrato de

5 (cinco) páginas sendo juntadas apenas três páginas do

instrumento ao processo. A prova é um todo. Não existe

uma prova em parte.

Page 63: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

63 Antonio Eduardo Ramires Santoro

Especificamente no que respeita à

interceptação telefônica, a Lei que a regula, nº 9.296/96,

em seu art. 9º, prevê a possibilidade de inutilização de

gravações que não interessarem mais ao deslinde do

processo. Porém, para que isto aconteça, é necessário que

haja um requerimento formal feito pelo Ministério

Público ou pela parte interessada e decidido pelo juiz, o

qual deverá determinar seja instaurado um incidente

processual formal, com a presença obrigatória do

Ministério Público e facultativa do acusado ou seu

representante legal.

Desta forma, a existência de previsão legal

de inutilização de gravações imprestáveis apenas está a

corroborar o entendimento de que o perdimento de alguns

arquivos de áudio torna a prova inexistente, porquanto

pudesse a autoridade policial desprezar alguns arquivos e

inutilizá-los por conta própria, desnecessária seria a

previsão do art. 9º da Lei nº 9.296/96.

Não é difícil concluir, portanto, que a prova

é una. No caso da interceptação telefônica, perdida parte

dos meios de prova, ou seja, alguns arquivos de áudio,

perdida foi a prova como um todo.

Neste ponto é importante frisar que nem

mesmo os arquivos de áudio existentes se prestam como

Page 64: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

64 Temas de Direito Penal e Processo Penal

prova por si só, porquanto os fatos que se destinam a

retratar, via de regra, são tratados durante algumas

conversas telefônicas que quando ouvidas em conjunto

dão a verdadeira conexão necessária para conhecimento

completo e mais preciso possível do fato ou dos fatos.

Uma conversa ouvida e analisada estanque

das demais em que o mesmo assunto foi tratado pode

perder o sentido, uma vez que dissociada do seu contexto

fático. Por exemplo, um réu liga para outro e pergunta:

“Você recebeu o que eu te mandei?”, em seguida o réu

que recebeu a ligação liga para outra pessoa e fala:

“Olha, já recebi a cópia da identidade que fulano

(primeiro réu) mandou, vou juntar ao processo hoje

mesmo.”. A primeira ligação, ouvida e interpretada

estanque da segunda, poderia sugerir a existência do

pagamento de alguma vantagem indevida, porém, ao

ouvi-las e interpretá-las em conjunto, a primeira se torna

uma ligação comum e sem qualquer interesse do ponto de

vista da prática de crimes.

A prova de interceptação telefônica na qual

não constam todos os áudios gravados durante o período

de monitoramento, importa frisar, não é inválida, mas

inexistente.

Page 65: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

65 Antonio Eduardo Ramires Santoro

2º caso) Foi devidamente requerida e autorizada a

interceptação telefônica, a prova foi produzida mediante

monitoramento, realizada a gravação das conversas em

mídia digital juntada aos autos e transcritas pelo agente

da autoridade policial, porém, verifica-se que nem todas

as conversas transcritas constam dos arquivos de áudio,

ou seja, diversas conversas não estão gravadas. Por

exemplo, de 3.500 arquivos de áudio, somente estão

gravados na mídia digital 3.200, ou seja, 300 se

perderam e não foram encontrados. Questionada, a

autoridade policial afirma que do meio digital em que

foram gravadas as conversas, todas foram apagadas,

havendo apenas como recuperar as unidades de backup,

ou seja, cópia.

Vale fazer uma digressão sobre a prova

documental. Isso porque já em 1959 Helio Tornaghi32

afirmava que documento é todo objeto material apto a

registrar a prova de um fato, aí incluídos os filmes, discos

e, evidentemente, CDs, DVDs, HDs, pen drives, etc.

Assim, a mídia de armazenamento dos arquivos digitais é

documento.

32

Instituições de Processo Penal, volume IV, Forense, 1959,

Rio de Janeiro, pág. 150.

Page 66: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

66 Temas de Direito Penal e Processo Penal

No caso de haver se perdido a mídia em que

originalmente foi gravada a conversa telefônica, a

regravação desta em outra mídia configura cópia de

documento.

A cópia de documento, analogicamente ao

art. 385 do Código de Processo Civil, tem a mesma força

probante do original, dês que, intimadas as partes, o

escrivão proceda à conferência e certifique a

conformidade entre o original e a cópia, do que importa

concluir que as partes devem manter o documento

original para efeito de conferência.

No caso das mídias de armazenamento de

arquivos digitais não é diferente. O original deve ser

mantido para eventual conferência e, se não o for, não

poderá o escrivão, ou quem quer que seja, proceder à

conferência da conformidade entre a cópia e o original.

Ademais, cumpre firmar o direito da parte

contra quem foi produzido determinado documento

argüir sua falsidade, o que se estende para as mídias de

armazenamento digital, devendo ser instaurado incidente

de falsidade na forma do art. 145 do Código de Processo

Penal e, portanto, dependendo de perícia para atestar a

sua veracidade, o que só pode ser realizado sobre o

documento original.

Page 67: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

67 Antonio Eduardo Ramires Santoro

Assim, não havendo mais a unidade de

mídia em que foram armazenados os arquivos digitais ou

não havendo alguns arquivos por terem sido apagados, a

prova somente terá validade se não houver arguição de

falsidade. Portanto, havendo arguição de falsidade e não

existindo mais a mídia original, não haverá prova válida.

3º caso) Foi devidamente requerida e autorizada a

interceptação telefônica, a prova foi produzida mediante

monitoramento, realizada a gravação das conversas em

mídia digital juntada aos autos e transcritas pelo agente

da autoridade policial, porém, verifica-se que a

transcrição das conversas não correspondem ao

conteúdo do arquivo de áudio. Por exemplo, o réu disse

em um determinado diálogo interceptado: “Doutor

Delegado, eu não quero que arquive o inquérito”,

enquanto o agente da autoridade policial transcreveu

“Doutor Delegado, eu quero que arquive o inquérito”,

tendo, portanto, sido suprimida a palavra “não” pelo

agente policial.

Neste caso há meio de prova válido, pois os

arquivos de áudio foram efetivamente juntados ao

processo. Porém, há que se deixar claro que neste ponto o

substrato da prova foi indevidamente alterado, embora o

meio de prova da interceptação telefônica não seja a

Page 68: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

68 Temas de Direito Penal e Processo Penal

transcrição da gravação, mas o próprio arquivo de áudio.

No entanto, a transcrição do conteúdo dos arquivos é a

forma pela qual a lei prevê seja dado conhecimento aos

sujeitos do processo do conteúdo dos arquivos, que é,

como já foi dito, o substrato da prova.

Exatamente por isso, uma vez arguida a

falsidade da transcrição é fundamental que o áudio esteja

juntado aos autos do processo, permitindo assim ao juiz e

às partes conhecer diretamente do conteúdo do meio de

prova ouvindo os arquivos de áudio.

A alteração indevida do conteúdo do áudio

na transcrição é uma falsidade documental e pode ser

aferida escutando meramente o arquivo de áudio ou, caso

haja dificuldade de compreensão, realizando perícia

exatamente na forma do incidente de falsidade do art. 145

do Código de Processo Penal.

No entanto, uma vez constatada pelo

magistrado a indevida alteração do substrato da prova,

torna-se nula toda a transcrição realizada, subsistindo a

prova em seu meio original, que deve, portanto ser

ouvido pelo juiz para que tome conhecimento do

verdadeiro conteúdo e possa, assim, atribuir sentido à

prova.

Page 69: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

69 Antonio Eduardo Ramires Santoro

4º caso) Foi devidamente requerida e autorizada a

interceptação telefônica, a prova foi produzida mediante

monitoramento, realizada a gravação das conversas em

mídia digital juntada aos autos e transcritas pelo agente

da autoridade policial, porém, verifica-se que em

diversas conversas os agentes da autoridade policial

transcreveram os diálogos captados interpretando o

sentido das palavras. Por exemplo, o réu disse:

“Recebeu o livro que eu mandei entregar?”, ao passo

que o agente policial transcreveu exatamente esta

conversa, porém, no resumo da mesma, fez a observação

de que o termo “livro” é um código utilizado para

denominar “dinheiro”.

Aqui temos uma prova em que o meio de

prova não foi alterado e consta dos autos, a transcrição é

correta e retrata o que realmente aconteceu, o que

importa termos o efetivo substrato da prova. Porém o

agente policial imiscuiu-se nas funções do juiz e conferiu

indevidamente sentido à prova, isto é, interpretou o

significado do conteúdo, induzindo o juiz a acreditar que

a prova demonstrava um determinado fato, forjando um

elemento de prova.

Ora, como foi dito anteriormente, somente o

juiz pode interpretar o substrato da prova e atribuir-lhe

Page 70: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

70 Temas de Direito Penal e Processo Penal

sentido. De outro lado, apenas as partes podem

argumentar, com a finalidade de convencer o juiz, que

determinado sentido é mais adequado que outro possível.

A autoridade policial e seus agentes não têm o poder de

substituir o juiz, nem argumentar, visto que não são

partes. Sua tarefa é produzir prova para instruir o

processo, ou seja, fornecer ao juiz o meio de prova e seu

substrato, mas nunca, em hipótese alguma conferir-lhe

sentido.

O fato de a Lei nº 9.296/96 determinar que o

resultado da diligência seja encaminhado pela autoridade

policial ao juiz acompanhada de um resumo da operação,

não autoriza confundir o termo “resumo da operação”

com “resumo das conversas telefônicas” e, ainda que o

resumo das conversas facilite a compreensão e, por

motivos de conveniência, seja desejável em busca da

celeridade processual, não poderá conter juízos de valor e

atribuição de sentido, posto ser esta a função processual

do juiz.

Não é demasiado chamar atenção para o fato

de que o primeiro contato que o juiz tem com a prova é

exatamente por meio do resumo da conversa gravada, de

tal sorte que, ao ouvir a gravação, em já estando incutido

Page 71: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

71 Antonio Eduardo Ramires Santoro

no inconsciente do juízo (no sentido lacaniano33

) o

significado suposto atribuído pelos agentes policiais ao

substrato da prova, sua interpretação dificilmente terá

outro sentido que não aquele preconcebido.

Cumpre ressaltar o fato de que a

interceptação telefônica já é, por sua própria natureza,

uma prova situada na fronteira da inconstitucionalidade,

posto que, com exceção dos crimes permanentes e

continuados, tem por finalidade extrair uma confissão à

sorrelfa do investigado que em tese já cometeu o crime e,

portanto, a única possibilidade de prova é surpreendê-lo

confessando a terceira pessoa para utilizar esta

“conversa-confissão” como prova.

Porém, mais pernicioso que a obtenção de

uma confissão de inopino, é forjar uma confissão com

base em suposto sentido das palavras, o que,

provavelmente, faria Wittgenstein reconhecer que as

interceptações telefônicas no Brasil são um fértil campo

para exemplificar a dissociação entre “significado” e

“verdade”. Completo, por minha conta e risco ideológico:

também resta certo o divórcio entre “significado” e

“justiça”.

33

Jaques Lacan, O Seminário – as formações do inconsciente,

livro 5, Jorge Zahar Editor, 1999, Rio de Janeiro.

Page 72: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

72 Temas de Direito Penal e Processo Penal

7 – A agressão a Roberto Podval e o caso

Nardoni: o neo-cinturão34

Há dois anos assisto a tudo que se passa no

caso do casal Nardoni estupefato. A imprensa, sem

qualquer receio de estar sendo parcial e injusta, indica ao

povo o caminho da barbárie e o Judiciário, que deveria

estar de forma isenta processando e julgando o caso, se

apressando em dar satisfações à opinião pública.

Até aí, concessa venia, nada de diferente do

que já se conhece em casos de impacto midiático e social.

O aterrador foi ter o dissabor de assistir uma

multidão ultrapassando os incompreensíveis protestos

acompanhados de assaques verbais na porta do fórum e

partindo para a agressão física de Roberto Podval,

conhecido advogado de escol no meio jurídico.

Já havia me ocorrido à mente, à guisa de

comparação com o fato, a cena descrita por Michel

Focault em seu primeiro capítulo do livro Vigiar e Punir,

na qual narra a aplicação de uma pena de suplício em

período pré-Revolução Francesa, momento

historicamente anterior ao período das Luzes e,

34

Publicado no site do IBCCRIM (www.ibccrim.org.br) em 05

de maio de 2010.

Page 73: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

73 Antonio Eduardo Ramires Santoro

sobretudo, ao Humanismo incipiente. É evidente que os

Nardoni não estão tendo suas peles raspadas e banhadas

com ácido e enxofre, nem tampouco estão com seus

quatro membros amarrados a um cavalo para que os

arranquem. Mas estão sofrendo pena em praça pública,

para acompanhamento e delírio do povo.

No entanto, os ataques físicos a Roberto

Podval me remeteram instantaneamente ao conto de

Graciliano Ramos, um cinturão. O narrador, uma criança

de quatro anos, se vê frente a frente com seu primeiro

julgamento da vida, na condição de réu. Seu pai levantara

da rede na varanda onde dormia e, não encontrando seu

cinturão, escolheu seu filho como culpado pelo sumiço

do objeto. Sem qualquer cerimônia açoitou-o até cansar e

retornou ao local onde estava. Antes de deitar-se de novo,

percebeu que o cinturão estava em baixo da rede.

Obviamente nada falou com seu filho, sumariamente

julgado sem direito de defesa.

É evidente que a multidão que se acumulava

na frente do fórum estava desejosa de um espetáculo

grotesco, nos moldes descritos por Michel Focault e,

como não o tivesse, aplicaram sua pena no advogado de

defesa que, na consciência coletiva, literal e fisicamente

representava os réus, tudo sem se preocupar em saber o

Page 74: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

74 Temas de Direito Penal e Processo Penal

que diziam as provas e sem assegurar o direito de defesa.

“Para quê, se sabemos que são culpados?”

Decerto o direito e o processo penal servem,

e muito, para proteger os réus das desumanidades latentes

dentro dos seres humanos.

Espero que ao chegarem a suas casas, ao

invés de dormirem com o sentimento de “missão

cumprida” (porquanto não lhes foi dada essa “missão”),

cada uma daquelas pessoas encontre em baixo da rede o

seu cinturão e reflitam que a suposta conduta criminosa

que reprovaram por meio de agressão física imposta ao

advogado dos réus não é nada diferente de suas próprias

condutas, o que reflete a condição bestial da raça

humana.

Page 75: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

75 Antonio Eduardo Ramires Santoro

8 – A validade dos conhecimentos fortuitos obtidos

nas interceptações telefônicas35

Dentre diversas questões discutidas acerca

da interceptação telefônica uma não tem merecido

tratamento doutrinário e jurisprudencial no Brasil

condizente com sua importância prática, qual seja, o

conhecimento fortuito de fatos criminosos diversos do

objeto da interceptação telefônica legalmente autorizada.

Com frequência, os monitoramentos

telefônicos autorizados judicialmente terminam por

captar conversas que dizem respeito a outros fatos

diversos daqueles que ensejaram o deferimento da

medida, dando margem ao surgimento de novas

investigações com base na prova produzida originalmente

para fim diverso.

Mas qual é o tratamento adequado a ser

dado a essa informação à luz da Constituição?

A Lei n. 9.296/96, que regulamentou o art.

5°, inciso XII da Constituição para dispor sobre os casos

de autorização da interceptação telefônica como meio de

prova no processo penal brasileiro, nada dispôs sobre o

35

Publicado em Boletim IBCCRIM. São Paulo : IBCCRIM,

ano 17, n. 210, p. 15-16, mai., 2010.

Page 76: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

76 Temas de Direito Penal e Processo Penal

assunto, deixando à doutrina e à jurisprudência esta

missão.

Antes de qualquer comentário, necessário se

faz o esclarecimento de uma diferença relevante entre a

legislação brasileira e a de países como Alemanha36

(1),

Itália37

(2) e Portugal38

(3), por exemplo. Alhures, as

normas que tratam da interceptação telefônica utilizaram

o método de catalogar os crimes passíveis de serem

objeto de escuta telefônica judicialmente autorizada, o

que não ocorreu no Brasil.

Na Alemanha, exempli gratia, entrou em

vigor, em 1992, a lei de combate ao Tráfico Ilícito de

Entorpecentes, inserindo no ordenamento positivo uma

solução ao caso de conhecimentos fortuitos advindos de

interceptação telefônica, antes construída pela doutrina e

jurisprudência. Foi adotada a teoria segundo a qual são

passíveis de valoração probatória os conhecimentos

fortuitos conexos com o crime catalogado que deu ensejo

à interceptação telefônica, dês que o conhecimento

36

AGUILAR, Francisco. Dos Conhecimentos Fortuitos

Obtidos Através de Escutas Telefónicas. Coimbra: Almedina,

2004. p. 47-48. 37

GRINOVER, Ada Pellegrini e outros. As Nulidades no

Processo Penal. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2004. p.

223. 38

AGUILAR, Francisco. Op. Cit.. p. 61.

Page 77: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

77 Antonio Eduardo Ramires Santoro

fortuito se refira a um crime que figure entre os

catalogados. O Supremo Tribunal alemão ratificou a

adoção desta teoria como solução para os casos de

conhecimentos fortuitos advindos de escuta

telefônica39

(4).

Na doutrina brasileira o tema ainda é pouco

tratado, mas podemos apontar alguns autores que se

debruçaram sobre o tema, senão vejamos:

Damásio E. de Jesus40

(5) afirma ser

inimaginável que o cidadão sofra, num Estado

Democrático de Direito, uma verdadeira devassa em sua

vida íntima. A exceção à proteção da intimidade e da

privacidade é feita em casos extremos e de absoluta

necessidade. A Lei n. 9.296/96 regulamenta as condições

para autorização da interceptação telefônica, dentre elas

está o objeto (possível fato criminoso) da investigação.

Por esses motivos, não pode o Estado valer-se de estar

violando um direito fundamental do cidadão e desviar-se

do objetivo para o qual adotou tal medida.

Temperando este entendimento com a

aplicação do princípio da razoabilidade, Luiz Flávio

39

AGUILAR, Francisco. Op. Cit.. p. 49. 40

JESUS, Damásio E. de. Interceptação de Comunicações

Telefônicas. São Paulo: Revista dos Tribunais n.735. p. 458-

473.

Page 78: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

78 Temas de Direito Penal e Processo Penal

Gomes e Raúl Cervini41

(6) entendem que as gravações

que captam conhecimento fortuito de fatos criminosos

diversos de seu objeto podem ter valor probatório, desde

que o fato fortuito tenha conexão com o fato criminoso

objeto da apuração.

Aduza-se que, para ser reputada lícita a utilização de

conhecimentos fortuitos, exigir-se-ia não somente a

conexão do conhecimento fortuito com o crime objeto da

escuta, mas também que, numa avaliação hipotética, o

crime secundário fosse passível de ser objeto de

autônoma autorização judicial para interceptação

telefônica, isto é, deve preencher os requisitos do art. 2º

da Lei n. 9.296/96.

Para abordagem meritória do tema, é

fundamental lembrar que a Constituição consagrou, em

seu artigo 1º, o Estado Democrático de Direito e, no art.

5º, alçou a liberdade como valor fundamental, sendo que

nestas bases deve o sistema jurídico ser construído e

interpretado.

Por isso é que a persecução penal

democrática e garantista deve, entre outras necessidades,

41

GOMES, Luiz Flávio e CERVINI, Raúl. Interceptação

Telefônica – Lei 9.296, de 24.07.96. São Paulo: Ed. Revista dos

Tribunais, 1997. p. 193-194.

Page 79: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

79 Antonio Eduardo Ramires Santoro

primar pelo respeito ao Princípio da Dignidade da Pessoa

Humana, do qual indubitavelmente deriva o direito à

privacidade e à intimidade.

Tomando essa lição, temos que a teleologia

da Lei n. 9.296/96 ao autorizar a quebra do sigilo

telefônico, por conseguinte a violação à intimidade e à

privacidade do indivíduo, deu ao Estado instrumento sem

o qual certos fatos criminosos ficariam impunes, devido à

inidoneidade de outros meios de prova para constatá-los.

E, para legitimar essa relativização de direito

fundamental insculpido no artigo 5° da CRFB/88, exige-

se que a autorização judicial decorra de fundados indícios

de autoria ou participação em fato criminoso

determinado, que não seja possível colher a prova por

qualquer outro meio e que o crime seja punido com pena

de reclusão, conforme art. 2º da Lei n. 9.296/96.

De toda sorte, como qualquer relativização

de direito, sobretudo de natureza fundamental

constitucional, sua aplicação deve ser feita de maneira

parcimoniosa e a interpretação de suas regras deve se dar

na forma do princípio favor rei. Nesta linha de

pensamento, o ato de afastamento do direito à

inviolabilidade das comunicações deve respeitar a

Page 80: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

80 Temas de Direito Penal e Processo Penal

intimidade e a privacidade naquilo que não foi o objeto

específico de decisão judicial da medida violadora.

Assim, tomando-se as regras constitucionais

como paradigmas de interpretação da lei ordinária, só é

possível emprestar validade probatória aos

conhecimentos fortuitos advindos de escuta telefônica se

o fato descoberto for conexo com o fato investigado,

guardando, desta forma, um liame entre eles.

Nossos Tribunais, malgrado não tenham

enfrentado em muitas oportunidades esta questão, quando

o fizeram deixaram claro ser exatamente este o

entendimento mais adequado. No HC n. 83.515, o

Supremo Tribunal Federal, pela pena do ministro Nelson

Jobim, exprimiu que a interceptação telefônica

judicialmente autorizada pode servir de fonte probatória

de conhecimento fortuito de fato criminoso, desde que

seja conexo com o fato ensejador do deferimento da

medida.

O mesmo ocorreu no julgamento do HC n.

84.224 (STF), no qual o ministro relator Gilmar Mendes -

apesar de não ser o mérito da questão - comentou sobre o

assunto em seu voto, fazendo um paralelo com o Direito

Alemão e adotou o mesmo entendimento. Inclua-se neste

Page 81: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

81 Antonio Eduardo Ramires Santoro

rol o HC n 69.552 (STJ), em acórdão da lavra do ministro

Felix Fischer.

É salutar, portanto, concluir, que a

interceptação tem de existir somente para averiguar fato

determinado, não servindo para vasculhar a vida do

cidadão, o que desnaturaria a medida como meio de

prova e a tornaria uma vigilância constante, nos moldes

descritos por George Orwell em seu romance distópico

1984, com a ressalva de que Oceânia, país idealizado

pelo escritor, era um arremedo da ditadura de Stalin.

Page 82: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

82 Temas de Direito Penal e Processo Penal

9 – A atipicidade formal do tráfico de ecstasy sem

laudo toxicológico: uma questão de direito material42

1) Introdução; 2) O que é o “ecstasy” – um

breve histórico; 3) Como afirmar, em tese,

que o “ecstasy” é substância entorpecente ou

capaz de causar dependência física ou

psíquica proscrita? 4) Como afirmar, na

prática, que o “ecstasy” é substância

entorpecente ou capaz de causar

dependência física ou psíquica proscrita?

1) Introdução

Ao ler o artigo do Doutor Diogo Alexandre

Restani, publicado no mês de maio no site do IBCCRIM,

sobre a utilidade da norma penal em branco, me senti

impulsionado a dar uma pequena contribuição ao assunto,

com o objetivo de demonstrar, à luz da história do

“ecstasy”, o quanto a política criminal anti-drogas é

circunstancial e pouco atende à finalidade de proteger o

bem jurídico saúde pública, mesmo tendo o, no mínimo

42

Publicado no site do IBCCRIM (www.ibccrim.org.br) em 16

de julho de 2010.

Page 83: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

83 Antonio Eduardo Ramires Santoro

questionável, instrumento jurídico da norma penal em

branco às mãos.

Senão vejamos:

2) O que é o “ecstasy” – um breve histórico

O ecstasy é uma droga sintética produzida

em laboratório. Vale esclaracer que o que hoje é chamado

de ecstasy foi uma substância desenvolvida pelo

Laboratório Merck, em 1912, patenteada em 1914, e se

tratava de uma droga para ser usada como vaso

constritor, chamada MDMA (3,4-methylenedioxy-

methamphetamine).

Uma substância próxima desta já havia sido

desenvolvido em 1910, o MDA (3,4-

metilmethylenedioxyamphetamine) e foi patenteado em

1960 pela empresa francesa SmithKline para ser usado

como tranqüilizante e inibidor de apetite.

Na década de 1970, o químico da

Universidade de São Francisco, Dr. Alexander Shulgin,

desenvolveu testes sobre os efeitos da ingestão de doses

maiores de MDMA em humanos, tendo descrito a

sensação de ter, ele próprio, ingerido 120mg de MDMA.

Posteriormente, em 1991 publicou um livro

escrito juntamente com sua esposa, intitulado “Pihkal

(Phenetylamines I have Known and Loved): A

Page 84: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

84 Temas de Direito Penal e Processo Penal

Chemichal Love Story” (tradução: ”Pihkal

(Fenetilaminas que conheci e amei): Uma História de

Amor Química”), em que descrevem o processo de

sintetização de fenetilaminas que testaram em si próprios.

A partir daí, nos anos 1980, diversos

psicoterapêutas passaram a usar o MDMA em tratamento

psicoterápicos em suas clínicas. O MDMA passou a ser

festejado nos meios psicoterapêuticos, chegando a ser

tratado pela Newsweek, de 15 de abril de 1985, em artigo

de autoria de J. Adler intitulado “High on Ecstasy”, como

a droga que faz “um ano de terapia em duas horas”.

No início dos anos 1980 a distribuição do

MDMA era controlada pelo Boston Group, tendo grande

consumo no Texas, onde o ecstasy era distribuído

livremente em bares e nightclubs de Dallas. Podia

inclusive ser comprado por telefone grátis, do tipo 0800,

e pago com cartão de crédito.

Neste mesmo ano o Departamento de

Entorpecentes Americano reagiu e os Estados Unidos

passaram a classificar o ecstasy como uma droga de uso

restrito, só podendo ser consumida com acompanhamento

médico.

Todavia, a fama do ecstasy, então conhecida

como a “droga da festa”, já havia ultrapassado o

Page 85: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

85 Antonio Eduardo Ramires Santoro

Atlântico e encontrara ampla ressonância na cidade

turística espanhola de Ibiza, em razão da inauguração da

“Acid House”, tendo o verão de 1988 sido conhecido

como o “Verão do Amor”.

A partir daí o ecstasy passou a ser

considerado proibido e o uso e a venda passaram a ser

considerados crimes.

Hoje 80 a 90% da produção de ecstasy é

feita na Bélgica ou na Holanda e sua fórmula química

apresenta mais de 20 (vinte) variações dependendo da

rota de sintetização da droga. Sendo usados como

metilamina, a fenetilamina (sintetizada pelo Dr. Shulgin)

ou até mesmo a cafeína ou a lactose em alta

concentração.

Desta forma, resta muito claro que,

hodiernamente, os comprimidos chamados de ecstasy são

feito de diversas substâncias psicotrópicas que não o

MDMA. Vejamos o que diz a Universidade de IOWA

nos Estados Unidos:

“Ecstasy versus Imposters (PMA)

Much of what is sold as ecstasy is not

MDMA. Sadly, many sellers are only out to make an

extra dollar. The seller may rightly know what is

contained in the imposter pill but sell it anyway. Drug

Page 86: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

86 Temas de Direito Penal e Processo Penal

labs are able to manufacture pills that resemble ecstasy

with the same pill size, color, and logos. What a user

buys as ecstasy may actually be PMA, MDA, MDEA,

LSD, amphetamines, caffeine, or lactose, among others.

One of these drugs, PMA, is similar to

ecstasy but gives users a less intense high. Because of

this, users may be inclined to take more of the drug

believing they received a weak pill. This immediate

second dose of PMA could prove to be fatal as a side

effect of this drug is an escalating body temperature. This

drug has already been blamed for a number of deaths.

Buyer beware!” (grifo nosso)43

Cumpre traduzir pequeno trecho desta

citação:

“Muito do que hoje é vendido como ecstasy

não é MDMA.(...). O que os usuários compram como

ecstasy pode ser realmente PMA, MDA, MDEA, LSD,

anfetamina, cafeína ou lactose, além de outras.”

A ONG Street Drugs também expõe a

utilização atual de diversas fórmulas químicas que são

vendidas com o nome de ecstasy:

43

extraído do site da Universidade de IOWA nos Estados

Unidos – www.uiwoa.edu.

Page 87: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

87 Antonio Eduardo Ramires Santoro

“Tablets sold as Ecstasy are not always

pure MDMA. As demand for Ecstasy has increased, so

has the appearance of Ecstasy "fakes" often containing

other substances such as amphetamine, caffeine, codeine,

DXM, ephedra/ephedrine, ketamine, MDA,

methamphetamine, and PCP.”44

Cumpre traduzir pequeno trecho desta

citação:

“Tabletes vendidos como Ecstasy não são

sempre MDMA puro. Como a demanda por Ecstasy

aumentou, apareceram os Ecstasy “falsos” comumente

contendo outras substâncias tais como anfetamina,

cafeína, codeína, DXM, efedrina, ketamina, MDA,

metanfetamina e PCP.”45

No Brasil, em uma pequena amostragem de

carregamentos de ecstasy apreendidos em São Paulo

entre 1997 e 2002, o mestre em toxicologia e análises

toxicológicas da USP, Silvio Fernandes Lapachinske,

pode verificar que mais de 15% (quinze por cento) das

amostras não tinham a susbstância psicotrópica MDMA.

In verbis:

44

extraído do site www.streetdrugs.org. 45

extraído do site www.streetdrugs.org.

Page 88: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

88 Temas de Direito Penal e Processo Penal

“Os resultados das análises de

quantificação da MDMA e identificação das substâncias

análogas e adulterantes das 25 amostras, utilizando o

método proposto e validado pelo presente trabalho, estão

apresentados na Tabela 5. Desse total 21 continham

somente MDMA (84%) e uma MDMA associada a

cafeína (4%). Das três amostras restantes, uma continha

apenas MDEA, outra apenas metanfetamina e a outra

anfetamina associada com cafeína.”46

Daí se verifica que atualmente são vendidas

sob a denominação “ecstasy” uma série de substâncias,

sozinhas ou combinadas entre si. Estes dados são não

apenas das ONG´s e Universidade americanas, como

cientificamente comprovados pelas amostras brasileiras.

A título exemplificativo, podemos elaborar uma pequena

lista de substâncias químicas utilizadas como “ecstasy”:

(1) MDMA; (2) MDA; (3) anfetamina; (4)

metanfetamina; (5) n-etil-anfetamina; (6) MMDA; (7)

MDE; (8) MDEA; (9) MBDB; (10) PMA; (11) PMMA;

46

“Quantificação de MDMA em amostras de ecstasy por

cromatografia em fase gasosa (GC/NPD)”, Silvio Fernandes

Lapachinske, Dissertação de mestrado, Programa de Pós-

graduação em Toxicologia e Análises Toxicológicas da

Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP – Universidade

de São Paulo, São Paulo, 2004.

Page 89: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

89 Antonio Eduardo Ramires Santoro

(12) PEA; (13) LSD; (14) codeína; (15) DXM; (16)

efedrina; (17) ketamina; (18) PCP; (19) cafeína; (20)

lactose; Entre outras...

3) Como afirmar, em tese, que o “ecstasy” é substância

entorpecente ou capaz de causar dependência física ou

psíquica proscrita?

São quatro as características das leis penais

em branco: (1) normas que tipificam delitos, isto é,

incriminadoras; (2) confiam a outra norma somente a

especificação (individualização) da matéria de proibição;

(3) a técnica da remissão; (4) a remissão deve ser

expressa ou tácita, nunca implícita.

Quanto à primeira característica nada há que

torne necessária qualquer incursão explicativa.

Quanto à segunda, todavia, deve se atentar

para o fato de que a norma complementar deve atender à

exigência de certeza constitucional da conduta proibida.

Pablo Rodrigo Alflen da Silva esclarece:

“Deve, por conseqüência, ser satisfeita a

exigência de certeza, em outras palavras, é necessário

que se dê concreção suficiente para que a conduta

qualificada como delitiva seja estabelecida de modo

suficientemente preciso, resultando, dessa forma,

Page 90: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

90 Temas de Direito Penal e Processo Penal

salvaguardada a função de garantia da lei penal com a

possibilidade de conhecimento da atuação penalmente

cominada.”47

Em outras palavras, a norma que

complementa a norma penal em branco deve deixar

claramente estabelecido, de forma concreta, o que vem a

ser a conduta proibida, sob pena de se ter por violado o

princípio da legalidade constitucional.

Quanto à terceira característica, vale mais

uma vez a lição do citado jurista:

“Em terceiro lugar, tem-se que o mais

peculiar nas leis penais em branco é o emprego da

técnica de remissão. Que, aliás, é outro aspecto que as

distingue dos tipos abertos ou dos tipos que empregam

elementos normativos ou de conteúdo indeterminado.”48

Significa dizer que os tipos em branco não

são tipos abertos ou que contenham elementos

normativos dependentes de um juízo de valoração do

magistrado aplicador da lei para conhecer o verdadeiro

sentido da norma.

47

Pablo Rodrigo Alflen da Silva, Leis Penais em Branco e o

Direito Penal do Risco: Aspectos Críticos e Fundamentais,

Lúmen Júris, Rio de Janeiro, 2004, pág. 78. 48

Idem, ibidem

Page 91: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

91 Antonio Eduardo Ramires Santoro

Na verdade, a norma penal em branco é um

tipo fechado, de legalidade e tipicidade perfeita e

estritamente delineada, dês que a norma em branco e a

norma complementar sejam lidas em conjunto, nunca

separadamente.

Não por outro motivo não há remissão

implícita, mas sempre expressa ou tácita.

A Lei nº 11.343/2006, a nova Lei de Drogas,

tem todos os seus tipos em branco. E a remissão é

expressa, realizada pelo art. 1º, parágrafo único,

complementada por norma transitória constante do art.

66. In verbis:

“Art. 1º. Omissis.

Parágrafo único. Para fins desta Lei,

consideram-se como drogas as substâncias ou os

produtos capazes de causar dependência, assim

especificados em lei ou relacionados em listas

atualizadas periodicamente pelo Poder Executivo da

União.

Art. 66. Para fins do disposto no parágrafo

único do art. 1o desta Lei, até que seja atualizada a

terminologia da lista mencionada no preceito,

denominam-se drogas substâncias entorpecentes,

psicotrópicas, precursoras e outras sob controle

Page 92: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

92 Temas de Direito Penal e Processo Penal

especial, da Portaria SVS/MS no 344, de 12 de maio de

1998.”

Importa frisar que estes dispositivos fazem

remissão expressa à norma complementar que será

elaborada pelo Poder Executivo da União,

transitoriamente a que foi elaborada pelo Ministério da

Saúde, e sem a qual a norma penal incriminadora não

satisfaz os requisitos necessários para que estejam

atendidos os princípios constitucionais da legalidade e da

tipicidade.

Somente com a leitura conjunta da norma

incriminadora prevista na Lei nº 11.343/2006 e da norma

complementar do Ministério da Saúde é que teremos

conhecimento da conduta proibida.

Isso porque, a própria Lei nº 11.343/2006,

ao prever a complementação dos tipos, deixou claro que

nem toda droga é ilícita, como ocorre, por exemplo, com

o álcool etílico.

Vale ressaltar que esta remissão feita pelo

art. 1º, §único da Lei nº 6.368/76 é o que garante ao

cidadão não restar refém dos tipos abertos e das

interpretações judiciais extensivas das normas

incriminadoras. Vale, mais uma vez, trazer a lição do

citado jurista:

Page 93: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

93 Antonio Eduardo Ramires Santoro

“Logo, se se toma como exemplo a

expressão “substância entorpecente” (Lei 6.368/76),

verifica-se que é uma expressão vaga na medida em que

abrange tanto substâncias de caráter lícito que são

usadas com fins medicinais como as substâncias que o

legislador levou em consideração ao elaborar o tipo do

injusto, sendo que a partir desse exemplo observa-se que,

de fato, a extensão (alcance) da expressão é menor

quanto maior a intenção. Contudo, neste caso, o

legislador recorrer ao método exemplificativo, visando

uma determinação exaustiva, seria muito mais perigoso

do que recorrer à técnica legislativa das leis penais

branco (como fez). E embora Ferrajoli considere que “a

função garantista reside no fato de que os delitos sejam

pré-determinados pela lei de maneira taxativa, sem o

reenvio a parâmetros extra-legais”, ou seja, rechaçando

totalmente o emprego da técnica das leis penais em

branco, o exemplo deixa claro que, senão na maioria, em

uma grande parte dos casos o emprego desta técnica

exerce uma função de garantia de grau muito mais

elevado do que deixar ao arbítrio judicial a decisão. Isso

porque, como já referido, onde ao legislador se impõe,

afasta-se ao juiz a decisão de um juízo positivo ou

Page 94: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

94 Temas de Direito Penal e Processo Penal

negativo seguro, na medida em que lhe é possível uma

outra concretização.”49

Assim, a norma penal em branco inserta no

art. 12 da Lei nº 11.343/2006 deve ser lida com seu

complemento, qual seja a norma do Ministério da Saúde

que lista as substâncias entorpecentes proscritas, sob pena

de se ter por violadora do sistema constitucional de

garantia qualquer leitura estanque da norma

incriminadora.

Com efeito, a Portaria nº 344/98 da

Secretaria de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde

regulamenta o que vem a ser substância entorpecente

(equiparada a drogas ilícitas para efeito de aplicação da

Lei nº 11.343/2006, por força do art. 66 do mesmo

Diploma Legal), enquanto seu Anexo I (atualizada

anualmente pela Resolução da Diretoria Colegiada da

Agência Nacional de Vigilância Sanitária) lista as

substâncias entorpecentes proscritas.

É exclusivamente nesta lista da Agência

Nacional de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde

que devemos buscar a informação necessária para

49

Idem, pág. 129.

Page 95: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

95 Antonio Eduardo Ramires Santoro

verificar se aquilo que se convencionou chamar de

“ecstasy” é ou não uma droga proscrita.

Isso porque, não constando o “ecstasy” da

referida lista, não há que se falar em prática de crime

descrito na Lei nº 11.343/2006 para as pessoas que

pratiquem as condutas nela tipificadas e cuja susbstância

entorpecente seja o “ecstasy”.

Em outras palavras, não há crime de tráfico

de drogas ilícitas se um cidadão vende uma substância

que não está na lista da Agência Nacional de Vigilância

Sanitária. Por isso é necessário procurar se na referida

lista consta o “ecstasy”, sob pena de, não constando da

lista, ter-se por atípica a conduta de quem vende a

referida substância.

No que concerne às substâncias químicas

listadas no item anterior que são sintetizadas e vendidas

sob a denominação “ecstasy”, vale fazer uma breve e

simples, porém completa, correlação com a lista da

Agência Nacional de Vigilância Sanitária para sabermos

se constam da lista e se são proscritas ou permitidas.

1) MDMA – consta da lista F2 – a lista F é das

substâncias de uso proscrito no Brasil, sendo que F1 é das

substâncias entorpecentes e a lista F2 é das substâncias

psicotrópicas;

Page 96: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

96 Temas de Direito Penal e Processo Penal

2) MDA – não consta da lista;

3) Anfetamina – consta da lista A3 – lista das

substâncias psicotrópicas não proscritas (sujeitas a

Notificação de Receita “A”);

4) Metanfetamina – consta da lista A3 – lista das

substâncias psicotrópicas não proscritas (sujeitas a

Notificação de Receita “A”);

5) n-etil-anfetamina – consta da lista B1 – lista de

substâncias psicotrópicas (sujeitas a notificação de receita

“B”);

6) MMDA – consta da lista F2– a lista F é das

substâncias de uso proscrito no Brasil, sendo que F1 é das

substâncias entorpecentes e a lista F2 é das substâncias

psicotrópicas;

7) MDE –consta da lista F2– a lista F é das

substâncias de uso proscrito no Brasil, sendo que F1 é das

substâncias entorpecentes e a lista F2 é das substâncias

psicotrópicas;

8) MDEA – não consta da lista;

9) MBDB – não consta da lista;

10) PMA – consta da lista F2– a lista F é das

substâncias de uso proscrito no Brasil, sendo que F1 é das

substâncias entorpecentes e a lista F2 é das substâncias

psicotrópicas;

Page 97: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

97 Antonio Eduardo Ramires Santoro

11) PMMA – não consta da lista;

12) PEA – não consta da lista;

13) LSD – consta da lista F2– a lista F é das

substâncias de uso proscrito no Brasil, sendo que F1 é das

substâncias entorpecentes e a lista F2 é das substâncias

psicotrópicas;

14) Codeína – consta da lista A2 – lista das substâncias

entorpecentes de uso permitido, mas em concentrações

especiais (sujeitas a notificação de Receita “A”);

15) DXM – não consta da lista;

16) Efedrina – consta da lista D1 – Lista de substâncias

precursoras de entorpecentes e/ou psicotrópicos (sujeitas

a receita médica sem retenção);

17) Ketamina não consta da lista;

18) PCP – não consta da lista;

19) Cafeína – não consta da lista;

20) Lactose – não consta da lista.

Portanto, das 20 (vinte) substâncias químicas

conhecidamente vendidas como “ecstasy”, metade não

constam da lista da Agência Nacional de Vigilância

Sanitária do Ministério da Saúde, das outras dez que

constam da lista, apenas 5 (cinco) são efetivamente

proscritas, sendo as demais substâncias de uso

controlado, mas não proibido.

Page 98: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

98 Temas de Direito Penal e Processo Penal

Vale frisar, destarte, que, em termos de

probabilidade, apenas 25% (vinte e cinco por cento) das

substâncias vendidas como “ecstasy” são proscritas, isto

é, proibidas, o que gera uma probabilidade de 75%

(setenta e cinco por cento) de os “ecstasy´s” vendidos

serem permitidos.

Apenas para terminar, de todas as 20 (vinte)

substâncias listadas como “ecstasy” apenas uma é

substância entorpecente, e mesmo assim é permitida, ou

seja, não proscrita. Todas as outras 19 (dezenove) ou são

permitidas (que é o caso de 50% da lista) ou são

psicotrópicas ou preparatórias.

4) Como afirmar, na prática, que o “ecstasy” é substância

entorpecente ou capaz de causar dependência física ou

psíquica proscrita?

A própria Lei nº 11.343/2006 não apenas

determina de que forma deve se determinar se uma

substância é ou não proscrita, como limitou a forma

como se deve realizar esta prova, para efeito de firmação

da legalidade da prisão em flagrante. In verbis:

Art. 50. omissis

§ 1o Para efeito da lavratura do auto de

prisão em flagrante e estabelecimento da materialidade

Page 99: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

99 Antonio Eduardo Ramires Santoro

do delito, é suficiente o laudo de constatação da natureza

e quantidade da droga, firmado por perito oficial ou, na

falta deste, por pessoa idônea.

De outro lado, a Lei não impõe a realização

de laudo definitivo, deixando a critério do juiz, se

entender imprescindível, determinar exames e perícias na

fase judicial da persecução penal, sendo certo que ao

designar dia e hora para audi~encia de instrução e

julgamento, deverá requisitar o laudo pericial. In verbis:

Art. 55. Omissis

§ 5o Se entender imprescindível, o juiz, no

prazo máximo de 10 (dez) dias, determinará a

apresentação do preso, realização de diligências, exames

e perícias.

Art. 56. Recebida a denúncia, o juiz

designará dia e hora para a audiência de instrução e

julgamento, ordenará a citação pessoal do acusado, a

intimação do Ministério Público, do assistente, se for o

caso, e requisitará os laudos periciais.

No entanto, a Lei não deixa claro se o laudo

a ser requisitado é o laudo de constatação provisório ou o

laudo definitivo, realizado por determinação judicial, de

tal maneira que o juiz pode interpretar ser desnecessária a

elaboração do laudo.

Page 100: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

100 Temas de Direito Penal e Processo Penal

Certo é, todavia, que algum laudo pericial

deva ser elaborado.

No entanto, a prova pericial, como de

sabença comum entre os aplicadores do Direito, não é

imprescindível para a configuração do crime de

associação para o tráfico (art. 35 da Lei nº 11.343/2006),

bem como o laudo, como de resto toda prova produzida

por perito, não vincula a decisão judicial, visto que o

perito é um auxiliar do juízo que não está adstrito ao

resultado do laudo, mesmo nos crimes de tráfico de

drogas ilícitas.

Assim, malgrado a inexistência do laudo dê

azo a nulidade do processo, por força do art. 564, inciso

III, letra “b” do CPP, combinado com o art. 158 do

mesmo Diploma Legal, não se pode olvidar que o juízo

pode condenar alguém por associação para o tráfico sem

laudo, bem como por tráfico com laudo negativo, uma

vez que tal prova é imprescindível, mas seu resultado não

é vinculante.

No entanto, tudo isto é apenas a visão

processual do fenômeno jurídico, porquanto sob o ponto

de vista do direito material penal, a inexistência de laudo

no que diz respeito a acusações de tráfico ou associação

Page 101: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

101 Antonio Eduardo Ramires Santoro

para o tráfico de ecstasy, especificamente, implicam na

atipicidade da conduta.

Assim, para afirmar, na prática, que o

“ecstasy” é substância entorpecente ou capaz de causar

dependência física ou psíquica proscrita é imprescindível

a apreensão da substância e a elaboração de um laudo de

constatação de substância. Mesmo porque, como já foi

amplamente esclarecido, pode ser que a substância

vendida como “ecstasy” seja permitida, vez que das 20

(vinte substâncias denominadas “ecstasy”, apenas 5

(cinco) são proscritas.

Só há uma maneira de saber se o “ecstasy”

comercializado é proibido, apreendendo a substância e

elaborando um laudo pericial de constatação de

substância, sob pena de se ter por atípica a conduta e não

apenas por mera nulidade processual.

Page 102: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

102 Temas de Direito Penal e Processo Penal

10 – Sob a perspectiva fenomenológica a

prescrição retroativa ainda existe50

A Lei nº 12.234 de 05 de maio de 2010

alterou o Código Penal especificamente nos artigos 109 e

110. Dentre essas modificações a que irá gerar mais

debates doutrinários e discussões nos tribunais, estreme

de dúvidas, é a que confere nova redação ao §1º do art.

110 e revoga o §2º do mesmo dispositivo.

Antes da alteração, os dispositivos se

combinavam para legitimar legalmente a chamada

“prescrição retroativa”, porquanto previa que após o

trânsito em julgado para a acusação ou com o

improvimento do recurso desta a prescrição regulava-se

pela pena aplicada e poderia ter por termo inicial data

anterior a do recebimento da denúncia.

Com a vigência da nova Lei temos que a

pena aplicada continua a regular o prazo prescricional

após o trânsito em julgado para a acusação ou o

improvimento de seu eventual recurso, mas, “...não

50

Publicado no site do IBCCRIM (www.ibccrim.org.br) em 03

de setembro de 2010.

Page 103: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

103 Antonio Eduardo Ramires Santoro

podendo em nenhuma hipótese, ter por termo inicial data

anterior à da denúncia ou queixa”.

Afora o fato de não ter se usado o termo

“recebimento da denúncia ou queixa”, mas

especificamente “denúncia ou queixa”, o que mereceria

outro artigo completo para comentar sobre suas

implicações práticas, a extensão da vedação de ter como

termo inicial data anterior à denúncia ou queixa implica

na discussão sobre a permissão implícita contida na

proibição expressa.

Em outras palavras, a prescrição retroativa

não se opera apenas entre a data da consumação ou do

último ato de tentativa até o recebimento da denúncia

(primeira causa interruptiva), mas também em outros

interregnos de tempo: (1) entre a data do recebimento da

denúncia ou queixa e a publicação da sentença

condenatória recorrível; (2) entre a data do recebimento

da denúncia ou queixa e o acórdão condenatório que

tenha reformado sentença absolutória de primeira

instância; (3) entre a data do recebimento da denúncia ou

queixa e a data da pronúncia; (4) entre a data da

pronúncia e a publicação da sentença condenatória

recorrível. A questão é saber se a proibição de que a

prescrição tenha por termo data anterior à denúncia ou

Page 104: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

104 Temas de Direito Penal e Processo Penal

queixa engloba também todas estas possibilidades de

prescrição retroativa.

Schleiermacher51

desenvolveu sua teoria

hermenêutica de compreensão de textos sob duas

vertentes: em primeiro lugar o intérprete deve se colocar

no lugar da psique do autor e, em segundo lugar, deve se

reconstruir o texto com nexo linguístico.

Quanto aos textos legislativos colocar-se na

psique do autor deve se entender como o resultado dos

debates decorrentes do processo legislativo. No caso em

tela há uma forma simples de descobrirmos a psique dos

legisladores, uma vez que o projeto original apresentado

pelo deputado Antonio Carlos Biscaia dispunha que o

termo inicial da contagem do prazo prescricional no caso

em que a pena aplicada regula o prazo prescricional por

ter transitado em julgado para a acusação ou improvido

seu recurso seria a data da publicação da sentença

transitada em julgado, impossibilitando qualquer

possibilidade de retroagir o prazo prescricional.

O texto final, todavia, apenas impede que o

termo inicial seja anterior à data da denúncia ou da

queixa, demonstrando que a psique coletiva dos

51

Schleiermacher, Hermeneutik und Kritk, Ed.Frank, 1974.

Page 105: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

105 Antonio Eduardo Ramires Santoro

legisladores não visava extirpar do ordenamento jurídico

a prescrição retroativa em períodos iniciados após a

denúncia ou queixa, os quais já foram enumerados acima.

Quanto à segunda vertente de

Schleiermacher, a melhor maneira de reconstruir o texto

legislativo com nexo linguístico está no procedimento

fenomenológico de Edmund Husserl52

. Na feliz

interpretação de Aquiles Côrtes Guimarães53

, a

consciência humana imprime no mundo social (fenômeno

que aparece para a consciência) a marca de sua

potencialidade de intuir valores, o que é independente da

experiência, é apriorística. Assim é que a consciência

funda o direito, exercendo seu papel de iluminadora e

revela sua essência que é a intencionalidade.

Os valores a que deve se referir o intérprete

da lei ao reconstruir o texto com nexo lingüístico e

filosófico assumindo uma atitude fenomenológica e

humanista são aqueles que estão na gênese dos direitos

fundamentais e princípios garantistas constitucionais do

Estado de Direito.

52

Husserl, Edmund. Ideias para uma fenomenologia e para

uma filosofia fenomenológica, 2ª edição, Idéias e Letras, 2006,

São Paulo. 53

Aquiles Côrtes Guimarães. Cinco Lições de Filosofia do

Direito, Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2007, pág. 5.

Page 106: Temas de Direito Penal e Processo Penal em perspectiva crítica

106 Temas de Direito Penal e Processo Penal

Assim é que um dispositivo penal

interpretado favoravelmente ao cidadão (favor rei) não

pode suprimir direito que a lei não o fez expressamente,

ou seja, a afirmação de uma proibição (ter como termo

inicial data anterior à denúncia ou a queixa) não pode,

sob a perspectiva hermenêutica fenomenológica, implicar

na extensão da proibição a outros períodos posteriores à

denúncia ou queixa, ao contrário, a proibição parcial

desvela uma confirmação da existência do instituto da

prescrição retroativa para os casos não proibidos

expressamente.