temas da conjuntura política brasileira (2010)

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    Publicado na seo Ensaio doJornal de Resenhas, no. 8, maro de 2010,pp. 12-13, sob o ttulo de Transformaes de Grande Alcance

    Temas da conjuntura poltica brasileira

    Fbio Wanderley Reis

    Em linha com a ideia de anlises concretas de situaes concretas,de Lenin, alguns costumam atribuir status metodolgico especial anlisede conjuntura. De minha parte, no acredito em anlise concreta: no hcomo fazer sentido da conjuntura por definio cambiante em que semprevivemos se no a abordamos com preocupao generalizante ou de maneirateoricamente orientada, capaz de apreender justamente seu significadoestrutural e, assim, a forma em que nela se equilibram, em diferentescasos, estabilidade e mudana.

    Essa perspectiva ambiciosa pareceria impor-se, em particular, emmomentos como o atual, quando os traos imediatamente visveis daconjuntura produzem a viva impresso de transformaes de grandealcance. Isso vale, em primeiro lugar, no plano internacional outransnacional. Temos a o contraste dramtico entre o quadro deenfrentamento entre capitalismo e socialismo na Guerra Fria, que marcou

    amplamente a segunda metade do sculo passado, com o protagonismobipolar de Estados Unidos e Unio Sovitica, e, em seguida, a globalizaoacelerada e o colapso do socialismo, seguidos de crises econmicas e daemergncia de novos atores nacionais que tendem a criar um cenriomundial multipolar. J no plano domstico, onde a insero perifrica do

    pas no jogo da Guerra Fria intensificou por vrias dcadas o carterpretoriano e institucionalmente dbil da vida poltica, culminando na longaditadura militar de 1964, as novas condies econmicas e polticas nacena internacional favoreceram um experimento impensvel no quadro

    anterior: a chegada Presidncia da Repblica do lder operrio de umpartido de esquerda, de programa socializante e retrica radical.

    No obstante os temores inicialmente suscitados no establishment,que cercaram a eleio de 2002 da ameaa de crise catastrfica, esse eventoacabou por representar uma oportunidade singular de aprendizado geral eum teste decisivo para a democracia brasileira, permitindo seu acesso a umnovo patamar institucional. Parte importante do aprendizado realizado foi ode moderao e equilbrio por parte de Lula e do PT, substituindo as

    propostas socialistas originais por polticas sociais de orientaosocialdemocrtica conjugadas com a continuidade de polticas econmico-

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    financeiras austeras. As origens ideolgicas do PT, que o singularizam demaneira positiva, por vrios aspectos, na histria dos partidos no Brasil,levaram, esquerda, no s a cobranas baseadas na viso equivocada deque, com a moderao ocorrida, no teramos tido um teste autntico de

    nossa democracia (que dependeria, nessa tica, da aposta obviamenteprecria de que a democracia viesse a ser o enquadramento institucional deum governo propriamente revolucionrio e sobrevivesse a ele...); taisorigens esto tambm claramente subjacentes arrogncia ideolgica quese transvestiu no tosco realismo da compra de apoio parlamentardesvendado na grande crise de 2005, na qual a prpria imagem de apego a

    princpios e compromisso tico do partido se viu comprometida.

    As dificuldades da resultantes colocaram em xeque o processo emque parecamos ter, com o PT, indita construo institucional na faixa

    partidria, conjugando o apelo popular difuso da figura de Lula com oaparente compromisso do partido com ideias, o enraizamento emmovimentos sociais diversos e o incentivo militncia capaz de evitartransformar-se em impedimento disciplina e atuao eficaz. Seguiu-se oafastamento, em grau importante, entre o partido como tal, submetido acises e defeces, e a liderana pessoal de Lula, que, tendo tidocertamente seu pior momento na crise de 2005, terminou por reeleger-secom grande votao para um segundo mandato e por alcanar altssimosnveis de popularidade na esteira dos xitos da poltica social e econmica.

    Tais xitos culminam mesmo na sbita elevao do status do prprio pasna cena mundial, impulsionada tambm pela dinmica econmica propcia

    j de h algum tempo, mas sem dvida incorporando a imagem de Lulacomo fator coadjuvante.

    Dois aspectos podem ser destacados como especialmentesignificativos no quadro assim criado. O primeiro o do mencionadofortalecimento institucional da democracia brasileira. Dificilmente se

    poderia exagerar, mesmo pondo de lado os xitos indicados, a importncia

    de uma Presidncia PT/Lula que chega ao fim do segundo mandato numquadro de normalidade institucional. Naturalmente, dado o nosso longo

    pretorianismo e o protagonismo h muito exercido pelas foras armadas, aquesto decisiva aqui a da domesticao institucional dos militares e deat que ponto se ter cumprido cabalmente. Acabamos de ter, com aretomada da discusso em torno da lei de anistia a propsito do IIIPrograma Nacional de Direitos Humanos e o empenho pressuroso dogoverno em aplacar a insatisfao exibida por chefes militares, claraindicao de que o assunto no se encontra inteiramente resolvido.

    Contudo, mesmo se o trato com os militares persiste como algo delicadopara o governo em circunstncias em que a memria dos pesados custos da

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    longa ditadura de 1964 ainda est bem viva, nada parece justificar a ideiade que tenhamos uma crise militar efetiva, ou temores anlogos aos quemarcavam com frequncia o perodo pretoriano de nossa histria recente:no h como cogitar a srio de golpe militar, e a definitiva insero

    democrtica das foras armadas no quadro poltico-institucional brasileiro,com a superao do complexo de sublevao que elas compartilhavamcom outros setores de nossas elites, parece no ser seno questo de tempo.

    O segundo aspecto se refere nova forma adquirida pela presena daquesto social no processo poltico-eleitoral do Brasil. Naturalmente, elase faz presente h tempos, desde que a grande desigualdade herdada denossa longa experincia escravista comeou a combinar-se com atransformao econmico-social, o crescimento das cidades e das massas

    populares urbanas e a enorme expanso do eleitorado. Durante muitotempo, porm, o resultado dessas mudanas em termos poltico-eleitoraisfoi a forma clssica de populismo, caracterizado, como nas anlises deTorcuato di Tella, pelo apelo ao povo por parte de lideranas de elite econtendo claro componente fraudulento, que se integrava comocontraponto no quadro geral de instituies frgeis e pretorianismo.

    Agora, talvez possvel continuar a falar de populismo, ou ver ocaso de Lula como parte de uma nova onda populista na Amrica Latina,que alguns identificam em casos como os dos Kirchner e de Chvez,

    Morales e Correa. Mas problemtico separar aquilo que justifique a carganegativa da ideia de populismo, de um lado, e, de outro, a simples operaoda democracia num contexto de desigualdade e de massas material eeducacionalmente carentes. E o que temos visto, no Brasil e em pasescomo Bolvia, Venezuela e Equador, marcados estes ltimos porturbulncias recentes, tende a corroborar algo que a sociologia poltica vemsalientando de novo com fora: se a democracia chega a operar de modo aincorporar as maiorias populacionais, ela se torna fatalmente redistributiva.Os dados mostram redistribuio efetiva nos pases em questo, o Brasil

    includo (e surpreendentemente, como tm revelado as pesquisas doLatinobarmetro, com apoio crescente democracia nos trs pasesvizinhos, no obstante as turbulncias). Em nosso caso, de todo modo, olulismo, combinando simbolismo popular e empenho redistributivo,resultou em algo indito nas disputas presidenciais, tendendo a marcar o

    processo eleitoral de maneira mais geral: a intensa correlao, quetranspareceu com nitidez especial na eleio de 2006, entre o apoioeleitoral a um candidato ou outro e a posio socioeconmica dos eleitores

    com as projees regionais dessa correlao. No casual, naturalmente,

    que o tema da poltica social se tenha imposto de forma saliente na

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    campanha daquele ano, e prometa continuar a ser um tema de decisivarelevncia nas disputas futuras.

    No h como pretender, contudo, que as coisas venham marchando

    de maneira positiva quanto ao aspecto da eventual institucionalizaopartidria. A alternativa realisticamente concebvel ao modelo idealizadode poltica ideolgica que tem predominado entre ns a de um sistema

    partidrio em que a percepo desinformada e difusa dos interesses emjogo permita, mesmo se influda por fatores personalistas e esprios doponto de vista daquele modelo, a identificao estvel com alguns partidos,podendo assim servir de suporte a polticas orientadas por perspectiva delongo prazo. Pesquisas sobre identificao partidria no Brasil tmmostrado que ela no ocorre seno numa minoria do eleitorado (cerca de35% dele em 2002), incluindo proporo aprecivel da minoria sofisticadae politicamente atenta. A grande pergunta a respeito da eventualconsolidao de nosso sistema partidrio a de se e quando vir a produzir-se a identificao partidria estvel na massa dos eleitores menosenvolvidos politicamente (os cerca de 65% restantes), independentementedo carter menos ou mais sofisticado ou ideolgico dessa identificao.Condio crucial para isso seria a estabilidade da oferta partidria, quetem sido impedida nas tropelias de nossa histria poltica.

    de se esperar que a estabilidade institucional bsica que

    aparentemente alcanamos, com a superao da feio mais abertamentepretoriana do processo poltico (mesmo se a superao real do fosso socialcontinua a exigir larga perspectiva de tempo), venha a permitir o avanoquanto institucionalizao partidria nos termos modestos sugeridos. Oltimo par de dcadas pareceu corroborar a expectativa: o que a experinciado PT teve de singular se conjugou com o repetido enfrentamento eleitoralcom o PSDB, de forma a sugerir que se viessem a criar em torno dos dois

    partidos as identificaes estveis que eventualmente redundassem numsistema partidrio simplificado e consolidado. Mas, se a crise petista

    ensejou que o PT acabasse, em ampla medida, cedendo o passo ao lulismo,ela resultou tambm, ironicamente, em crise do PSDB: sucessivas derrotasem eleies para a Presidncia, falha em encontrar o discurso alternativo aolulismo e, a um tempo, fiel ao suposto compromisso socialdemocrtico,certo vezo oligrquico da dinmica interna que transforma a escolha decandidatos presidenciais em ameaa coeso partidria... E o xito noenquadramento partidrio de nossa democracia parece requerer quevenhamos a ter novidades significativas em relao ao cenrio atual.

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    Tais questes levam ao tema da reforma poltica, que se associa, emseu carter recorrente, com o da corrupo em suas faces variadas.Sucintamente, cabe destacar duas proposies a respeito.

    A primeira se refere ao papel das normas e a sua dupla feio, quercomo componentes culturais de um contexto viscoso e resiliente (o quetenho chamado o institucional como contexto), quer como objetos

    passveis de manipulao deliberada no nvel da aparelhagem institucional-legal (o institucional como objeto). Em vez da postura edificante queconta com uma espcie de apropriada converso coletiva, no podemosesperar ser eficazes em prazos relevantes seno na ao dirigida aoinstitucional como objeto ou seja, na elaborao e na implementaorigorosa de leis que alterem as expectativas dos atores e lhes afetem oclculo. A aposta a de que assim possamos eventualmente ver cumprir-seo preceito sociolgico segundo o qual expectativas que se reiteram ecorroboram acabam por transformar-se em prescries ou normas, com aeventual mudana em direo propcia da cultura mesma e do contexto querepresenta. Do ponto de vista especfico da reforma poltica, penso quecabe extrair da, contra o convite passividade que encontramos em certosanalistas, o nimo de experimentar com dispositivos legais como osrelativos a fidelidade partidria, clusulas de barreira, regras sobrecoligaes, adequada combinao de princpios majoritrios e

    proporcionais, listas partidrias fechadas ou flexveis...

    A segunda proposio vincula a perspectiva empenhada na reforma acerto diagnstico da natureza da crise tica que estaramos vivendo nomomento, com a intensa corrupo poltica. Esse diagnstico v aintensificao da corrupo como consequncia da democratizao do pas:cento e trinta milhes de eleitores num pas desigual significam peso

    poltico decisivo para os menos iguais e, supe-se, correspondentedeteriorao intelectual e tica na qualidade da representao poltica. Mas, parte as muitas fantasias sobre a qualidade intelectual e tica de nossa

    velha representao oligrquica, clara a distoro envolvida em omitir, apropsito dos nossos problemas tico-polticos de hoje, a longa tradio deestado cartorial, clientelismo e quejandos que vicejava como parte da

    poltica oligrquica (e cujos mecanismos subsistem e moldam de muitasformas o presente) e destacar, ao revs, a democratizao que solapa essa

    poltica. O elitismo do diagnstico desatento aos pesados traosestruturais negativos do nosso ponto de partida e aos difceisconstrangimentos que segue impondo ao jogo poltico como condutoinevitvel de possveis avanos.

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    Um ltimo ponto. Avaliaes recentes da conjuntura polticabrasileira tm salientado a feio de estado-amlgama que caracterizariao governo Lula, no qual um estado ativo trata de envolver as forasvariadas da sociedade civil e supostamente lhes compromete a

    autonomia. Mas, nas condies do nosso fosso social e de precriastradies institucionais, patente o risco de que o jogo que se decida nonvel da sociedade civil como tal redunde em transpor para o plano das

    polticas do estado, como sempre, as assimetrias profundas que acaracterizam. Por outras palavras, no h como escapar a dose importantede paternalismo como trao distintivo do estado democrtico, que no seraquele forado a limitar-se a responder capacidade diferencial de pressode interesses depoderdesigual. Ora, como os xitos da socialdemocracianeocorporativa tm demonstrado, esse trao se liga com a necessriaacomodao dos interesses diversos pela ao do estado, ou mesmo, emalguma medida, no mbito do prprio estado. Note-se que, no caso

    brasileiro, a desigualdade se reflete, parte a tese da perda de qualidadeda representao, na extrao social dos membros do prprio Legislativo,no obstante sua escolha por meio de eleies assim como se reflete, emsurdina mas de modo bem claro, no funcionamento de um Judiciriocomposto por membros doutos, que supostamente decidiro imparcial eisentamente com base na lei. Cumpre talvez procurar assegurar que nosso

    processo eleitoral traga mais nitidamente a caracterstica de amlgamasocialmente integrador ao Legislativo, que possa assim agir com eficincia

    de forma a neutralizar certo ativismo frequentemente torto do Judicirio aque nos vimos habituando.

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