tem dias que a gente se sente

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA DOUTORADO EM PSICOLOGIA LUIZANE GUEDES MATEUS TEM DIAS QUE A GENTE SE SENTE COMO QUEM PARTIU OU MORREU, A GENTE ESTANCOU DE REPENTE OU FOI O MUNDO ENTÃO QUE CRESCEU: MEMÓRIAS E HISTÓRIAS DE FAMILIARES DE ATINGIDOS PELA VIOLÊNCIA NO ESPÍRITO SANTO. NITERÓI 2012

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM PSICOLOGIA INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS E FILOSOFIA

    DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA DOUTORADO EM PSICOLOGIA

    LUIZANE GUEDES MATEUS

    TEM DIAS QUE A GENTE SE SENTE COMO QUEM PARTIU OU MORREU, A GENTE ESTANCOU DE REPENTE OU FOI O MUNDO

    ENTO QUE CRESCEU: MEMRIAS E HISTRIAS DE FAMILIARES DE ATINGIDOS PELA VIOLNCIA NO ESPRITO SANTO.

    NITERI 2012

  • LUIZANE GUEDES MATEUS

    TEM DIAS QUE A GENTE SE SENTE COMO QUEM PARTIU OU MORREU, A GENTE ESTANCOU DE REPENTE OU FOI O MUNDO

    ENTO QUE CRESCEU: MEMRIAS E HISTRIAS DE FAMILIARES DE ATINGIDOS PELA VIOLNCIA NO ESPRITO SANTO.

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Psicologia da Universidade Federal Fluminense. Instituto de Cincias Humanas e Filosofia. Departamento de Psicologia, como requisito para obteno do ttulo de Doutor em Psicologia.

    Orientadora: Prof. Dr Ceclia Maria B. Coimbra

    NITERI 2012

  • Ficha Catalogrfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoat

    M425 Mateus, Luizane Guedes.

    Tem dias que a gente se sente como quem partiu ou morreu, a gente estancou de repente ou foi o mundo ento que cresceu: memrias e histrias de familiares atingidos pela violncia no Esprito Santo / Luizane Guedes Mateus. 2012.

    230 f.

    Orientador: Ceclia Maria B. Coimbra.

    Tese (Doutorado) Universidade Federal Fluminense, Instituto de Cincias Humanas e Filosofia, Departamento de Psicologia, 2012.

  • LUIZANE GUEDES MATEUS

    TEM DIAS QUE A GENTE SE SENTE COMO QUEM PARTIU OU MORREU, A GENTE ESTANCOU DE REPENTE OU FOI O MUNDO

    ENTO QUE CRESCEU: MEMRIAS E HISTRIAS DE FAMILIARES DE ATINGIDOS PELA VIOLNCIA NO ESPRITO SANTO.

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Psicologia da Universidade Federal Fluminense. Instituto de Cincias Humanas e Filosofia. Departamento de Psicologia, como requisito para obteno do ttulo de Doutor em Psicologia.

    Aprovada em 2012

    COMISSO EXAMINADORA

    ________________________________________________

    Prof. Dr Ceclia Maria B. Coimbra Universidade Federal Fluminense

    ________________________________________________

    Prof. Dr Estela Scheinvar Universidade Estadual do Rio de Janeiro

    _______________________________________________

    Prof. Dr Maria Lvia do Nascimento Universidade Federal Fluminense

    ________________________________________________

    Prof. Dr Ana Coelho Heckert Universidade Federal do Esprito Santo

    ________________________________________________

    Prof. Dr Llia Ferreira Lobo Universidade Federal Fluminense

    ________________________________________________

    Prof. Dr Vera Malaguti Batista (Suplente) Faculdade Cndido Mendes

  • AGRADECIMENTOS

    A minha famlia, especialmente minha me, que com amor, pacincia e carinho bancou mais essa minha viagem...o doutorado: amor incondicional!!

    No fim da tarde, nossa me aparecia nos fundos do quintal: Meus filhos, o dia j envelheceu, entrem pra dentro Manoel de Barros.

    A minha orientadora Ceclia Coimbra que, desde o mestrado, o leme de tantos devaneios meus: o meu prazer em estar contigo imensurvel!!

    Guarda num velho ba seus instrumentos de trabalho: um abridor de amanhecer, um prego que farfalha, um encolhedor de rios e um esticador de horizontes... Manoel de Barros.

    Aos familiares de atingidos pela violncia no Esprito Santo: nada vai abrandar dor e sofrimento, mas nada tambm ir fazer com que desistam de suas histrias e memrias.

    E, aquele que no morou nunca em seus prprios abismos, nem andou em promiscuidade com os seus fantasmas, no foi marcado. No ser exposto s fraquezas, ao desalento, ao amor, ao poema. Manoel de Barros.

    Aos meus grandes amigos confidentes parceiros de trabalho e do Bonde do CBF: sem a pacincia e a ajuda de todos vocs no conseguiria ser psicloga chefa doutoranda...vocs so o meu norte no Creas Bento Ferreira.

    A voz de um passarinho me recita Manoel de Barros.

    Aos amigos quinzenais de orientao coletiva Danielle, rika, Bruno, Maria Clara, Sandra e Z Rodrigues...esta tese tem um pouquinho de cada um de vocs.

    Que a importncia de uma coisa no se mede com fita mtrica nem com balanas nem barmetros etc. Que a importncia de uma coisa h que ser medida pelo encantamento que a coisa produza em ns Manoel de Barros.

    Aos membros da banca, pela leitura atenta, pela pacincia no decorrer de todo o perodo de qualificao e defesa, assim como pela disponibilidade em estar comigo nestes caminhos e descaminhos.

    Perdoa, mas eu preciso ser outros. Eu penso renovar o homem usando borboletas. Manoel de Barros.

  • RESUMO

    A problemtica sobre a qual trata este trabalho refere-se s prticas de extermnio e violao de direitos humanos no estado do Esprito Santo, a partir da narrativa de mes e familiares de atingidos pela violncia. Esta pesquisa buscou dar visibilidade aos processos que tentam singularizar as diferentes instituies que atravessam o dia-a-dia do cotidiano de pessoas atingidas pela violncia. Da emergncia dessas narrativas procuramos analisar os diversos discursos-prticas desses familiares, assim como entender as construes que estas histrias nos fazem visualizar, como os grupos de extermnio que agem desde as dcadas de sessenta e setenta no Esprito Santo, os conceitos de justia e responsabilizao, assim como as estratgias de luta que transformam dor, angstia e ressentimento, em instrumento de apoderamento ativo, de defesa e de afirmao da diferena e do vivido. O caminhar junto aos familiares de atingidos pela violncia atravs de suas narrativas, o pensar prticas de extermnio e violao de direitos humanos no Esprito Santo, foi um percurso que apresentou-nos muitas possibilidades armadilhas, capturas e inquietaes sobre a importncia e as implicaes da escrita; a potncia do testemunho que, sem perder a sensibilidade diante do sofrimento e da dor, ousou romper duplamente com a condio de falar de um lugar de despossudo e de um territrio criminalizado; uma luta por justia e reparao, marcada ora por intensa dimenso moral, ora capaz de subverter um ritmo acelerado e fragmentado, onde as regras ditadas so contrrias ao sentar, falar, lembrar. Partindo desse conjunto de possibilidades realizamos uma viagem por estas histrias tese que aqui apresentada.

    Palavras-chave: Narrativa. Violncia. Testemunho. Justia.

  • ABSTRACT

    The issue on which this work is refers to the practice of killing and violation of human rights in the state of Espirito Santo, from the narrative of mothers and family members affected by violence. This research aimed to give visibility to the processes that try to single out the various institutions across the day-to-day routine of people affected by violence against a family.The emergence of these narratives seek to analyze the various discourses of family practices, as well as understanding the constructs that make us see these narratives as the death squads acting since the sixties and seventies in the Holy Spirit, the concepts of justice and accountability as well as control strategies that transform pain, grief and resentment, an instrument of empowerment active defense and affirmation of difference and lived. Walking the families of affected by violence through their narratives, the thinking practices of extermination and violation of human rights in the Holy Spirit, was a journey that has given us many possibilities - traps, catch and concerns about the importance and implications of writing, the power of testimony, without losing the sensitivity to the suffering and pain, twice dared to break with the condition to speak from a place of dispossessed and criminalized a territory, a fight for justice and redress, sometimes marked by intense dimension moral, sometimes able to subvert an accelerated pace and fragmented, which dictated the rules are contrary to sit, talk, remember. From this set of possibilities we did a trip, for this story - a thesis that is presented here.

    Keywords: Narrative. Violence. Witness. Justice.

  • SUMRIO

    APRESENTAO ...................................................................................................................................8 INTRODUO .........................................................................................................................................9 1 SAUDADE ARRUMAR O QUARTO DO FILHO QUE J MORREU. O PROJETO, A VIDA E ALGUNS CAMINHOS: FALANDO DE IMPLICAES E ANDANDO SOBRE MUROS, LUGAR DE OBSERVAO......................................................................................................................................18 1.1 NO SEI QUANTO CUSTA UMA VIDA, SEI APENAS DA LUTA QUE TEMOS PARA LEVAR NOSSA VIDA ADIANTE.........................................................................................................................25 1.2 COMO LEVAR A NOSSA VIDA ADIANTE? CENA I: ERA S MAIS UM SILVA QUE A ESTRELA NO BRILHA, ELE ERA FUNKEIRO, MAS ERA PAI DE FAMLIA .................................................................................................................................................28 1.2.1COMO LEVAR NOSSA VIDA ADIANTE? CENA II: VRIOS AMIGOS NO ESTO MAIS AQUI, FIZERAM UMA VIAGEM PARA O MUNDO SEM FIM .........................................................................31 1.3 DESFECHOS DIFERENTES DE UMA MESMA HISTRIA: A MINHA REA TUDO O QUE EU TENHO. MUITO FCIL FUGIR, MAS EU NO VOU, NO VOU TRAIR QUEM EU FUI E QUEM EU SOU........................................................................................................................................................32 2 MUITAS VIDAS, MUITAS HISTRIAS, EMBORA ESTATSTICAS, NO SOMOS ESTATSTICAS: A VIOLNCIA E SEUS CONTORNOS HISTRICOS ATUAIS........................................................49 2.1 POLCIA PARA QUEM PRECISA, POLCIA PARA QUEM PRECISA DE POLCIA: QUEM POLICIA AS POLCIAS? ..............................................................................................................51 2.2 MAS, QUEM POLICIA AS POLCIAS? ............................................................................................70 2.3 SOBRE A VIOLNCIA, PARA A VIOLNCIA E COM A VIOLNCIA: OS MORTOS-VIVOS DO COTIDIANO. MORTOS SEMPRE EM CONFRONTO ..........................................................................87 2.4 432 01 ESTE O NMERO DO SEU REGISTRO NO LIVRO DOS MORTOS NO IDENTIFICADOS NO INSTITUTO MDICO LEGAL .............................................................................93 3. A DITADURA DO CAVEIRO: DO ESQUADRO DA MORTE A SCUDERIE DETETIVE LE COCQ ESCREVENDO SOBRE VIDAS DESCARTVEIS? ...............................................................99 3.1CUIDANDO DO JARDIM: A DESCOBERTA DO CEMITRIO CLANDESTINO DA BARRA DO JUCU E A EMERGNCIA DO ESQUADRO DA MORTE NO ESPRITO SANTO ...........................103 3.2 A SCUDERIE DETETIVE LE COCQ: BEM VINDO AO FIM DO MUNDO, O SINDICATO DO CRIME .................................................................................................................................................115 3.2.1 OS MORTOS VIVOS DO COTIDIANO: ESTRATGIAS DE RESISTNCIA QUE SE REAFIRMAM MESMO DEPOIS DA MORTE ......................................................................................118 3.2.2 PROJETOS QUE FICAM PELA METADE: PAISAGENS RETORCIDAS ENTRE JUNHO DE 1989 A JANEIRO DE 1990 OS ANALISADORES PADRE GABRIEL MAIRE E MARIA NILCE MAGALHES .......................................................................................................................................120 3. 2.3 PROJETOS QUE FICAM PELA METADE: PAISAGENS RETORCIDAS ENTRE JUNHO DE 1990 A JANEIRO DE 1992 OS ANALISADORES JOS MARIA MIGUEL FEU ROSA E CARLOS BATISTA...............................................................................................................................................128 3. 2.4 PROJETOS QUE FICAM PELA METADE: PASAGENS RETORCIDAS ENTRE JUNHO DE 2002 A MARO DE 2003 OS ANALISADORES JOAQUIM MARCELO DENADAI E ALEXANDRE MARTINS CASTRO SILVA .................................................................................................................132

  • 4. TRECHOS DA VIDA QUE CATEI, TRAPOS DE SENTIMENTOS QUE JUNTEI, FRAGHMENTO DE RISOS QUE ROUBEI: DA ASSOCIAO DE MES E FAMILIARES DE VTIMAS DE VIOLNCIA A EXPERINCIA DE FALAR COM MES ...................................................................147 4.1 O INCIO: HISTRIAS QUE SE TRANSVERSALIZAM ................................................................153 4.2 UMA SINFONIA AGRIDOCE ACERCA DOS LUGARES OCUPADOS PELAS VTIMAS E PELOS VILES DO COTIDIANO .....................................................................................................172 4.2.1 O JULGAMENTO DOS POLICIAIS, DE PEDRO E DA ASSOCIAO ....................................179 4.3 PORQUE H O DIREITO AO GRITO. ENTO EU GRITO...........................................................190 4.4 A EXPERINCIA DE FALAR COM MES: OS CAMINHOS QUE FICAM QUANDO PARTIMOS197 4.5 QUEM TEM MEDO DE MORRER NO DEVERIA NEM NASCER: O CAMPO DE PESQUISA, UM TERRENO FRTIL PARA MAZELAS, MAS TAMBM PARA A INSISTNCIA .................................203 4.6 CONCLUINDO OU ESPERANDO NOVAS FRENTES DE BATALHA? O QUE SERIA DA HISTRIA DOS CAADORES, SE OS LEES PUDESSEM ESCREVER? ...................................208 4.7 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS...............................................................................................220

  • APRESENTAO

    O ATO DE ESCREVER PARA E COM MES

    Pensei inmeras formas para a apresentao dessa histria - tese; embora de fcil compreenso, no conseguia trazer a estas folhas assepticamente brancas, algo que as fizessem falar. Somente lendo alguns fragmentos literrios, distanciados da desejada cientificidade, pude perceber que essa histria falava por si s, e que s mesmo textos errantes poderiam faz-la emergir. Para essa emergncia, optei ento por um errante apaixonado pelas palavras, Rubem Alves,

    Perguntaram-me se acredito em Deus. Respondi com versos de Chico: Saudade o revs do parto. arrumar o quarto para o filho que j morreu. Qual a me que mais ama?! A que arruma o quarto para o filho que vai voltar ou a que arruma o quarto para o filho que no vai voltar?! Sou um construtor de altares. Construo altares beira de um abismo escuro e silencioso. Eu os construo com poesia e msica. Os fogos que neles acendo iluminam o meu rosto e me aquecem. Mas o abismo permanece escuro e silencioso [...] (ALVES, 2007, p. C2).

    Eis aqui a histria de algumas mes, tias, irms, avs; alguns familiares de pessoas que foram atingidas pela violncia no Estado do Esprito Santo. Seriam somente mais algumas tantas histrias de dor e sofrimento contadas por uma pesquisadora, mas, como fascas e lascas, so histrias contadas com essas personagens.

  • INTRODUO Aos que morreram no dedico nenhum minuto de silncio, e sim, toda uma vida de luta (Hebe Bonafini,2001)

    Seus dias passavam em um ritual marcado: acordar, levantar, andar, pensar, esperar. Tudo isso acolhido em um tempo que simplesmente no passava um tempo fora do relgio, mas dentro da necessidade de respostas, respostas que para elas, logo viriam.

    O encontro-acontecimento que inicia esta tese de doutorado se passou nas escadarias do Frum Muniz Freire, no Centro de Vitria Esprito Santo, e me fez testemunha de uma experincia repleta de intensidades, carregada de um redemoinho de muitas vozes que ora me apontavam para um porto seguro, ora direcionavam-me para um labirinto por onde poderia me perder - as prticas de extermnio e violao de direitos humanos1 no estado do Esprito Santo, a partir da narrativa de mes e familiares de atingidos por esta violncia.

    Em meio s faixas, cartazes e baners que pareciam escorrer sangue por toda a calada, encontrei Maria das Graas, Lilians, Arletes, Marlias, Reginas e Irenes; com elas P., M., F., J.2 e tantos outros mortos que tambm circulavam, embora de forma quase invisvel, pelas escadarias do imponente frum. Em alguns momentos eu jurava poder v-los ali, de forma silenciosa, a espera de que suas histrias pudessem ser retomadas e transmitidas em palavras diferentes.

    Era o julgamento dos policiais acusados pela morte de Pedro Nacourt3. Durante trs dias todos eles, vivos e mortos, circulariam por aqueles corredores; uma zona de atrao e risco, sensaes que apontavam para uma pluralidade de foras mes e familiares de atingidos pela violncia. 1 Quando utilizamos o termo direitos humanos vislumbramos processos imanentes, no definidos, no dados e

    no garantidos necessariamente pelas leis que vm se tornando cada vez menos jurdicas e cada vez mais normativas mas que, por isso mesmo, precisam afirmar a vida em toda a sua potncia de criao (COIMBRA, C.;LOBO,L.,NASCIMENTO,M., 2008). Colocaremos em anlise, no decorrer desta tese, essa produo tida como inquestionvel e a histrica, a partir da fala de familiares que foram alijados do convvio de seus filhos, irmos, companheiros, da forma mais dolorosa a morte. 2 Mantivemos somente as iniciais dos nomes dos jovens assassinados, assim como os nomes dos respectivos

    familiares foram modificados por pseudnimos para manter em sigilo a identidade de algumas pessoas que se encontram ameaadas de morte. vlido salientar que o nico nome mantido foi o da Presidente da Associao de Mes e Familiares de Vtimas da Violncia no Esprito Santo, solicitao feita pela prpria entrevistada. 3 O julgamento dos policiais militares acusados pela morte de Pedro Nacourt Filho ser melhor delineado em

    captulo especfico, relativo a emergncia de um dos movimentos de familiares de atingidos pela violncia do estado, a AMAFAVV - Associao de Mes e Familiares de Vtimas de Violncia do Esprito Santo.

  • A chegada no Frum fez-me repensar tudo o que fizera at ali: a tese, a vida, as expectativas quanto ao futuro. Fui recebida por cinco familiares da Associao de Mes e Familiares de Vtimas da Violncia no Esprito Santo AMAFAVV, e um familiar de atingido pela violncia do Rio de Janeiro. De pronto me deram uma camisa com a foto estampada de Pedro com alguns dizeres que me fizeram lembrar da entrevista com Maria das Graas, me de Pedro: Um filho pode at esquecer uma me, mas uma me no esquece um filho jamais. Colocaram-me a par de tudo que acontecera at aquele momento e em seguida nos juntamos ao grupo que fazia viglia em frente ao Frum, que mais parecia uma praa de guerra; de um lado familiares, faixas, fotos e cartazes de todo o percurso de dor, sofrimento e luta daquelas pessoas. Do outro lado um grupo de policiais militares, policiais do Batalho de Misses Especiais BME e tambm de policiais conhecidos, mas a paisana. O enfrentamento parecia inevitvel, mas travestia-se por uma falsa paz momentnea (Dirio de campo, 27/05/2009).

    Ali era narrada oficialmente, depois de dez anos, a histria da morte de Pedro Nacourt Filho. Era tambm mais um dos inmeros encontros que tive com um grupo de mes e familiares de atingidos pela violncia; como transgredir aquela histria oficial?! Como contar, recontar, mas principalmente afirmar aquela e tantas outras histrias daqueles familiares?! Este o fio condutor dessa viagem-tese.

    Transgredir, porm, os meus prprios limites me fascinou de repente. E foi quando pensei em escrever sobre a realidade, j que essa ultrapassa. Qualquer que seja o que quer dizer realidade. O que narrarei ser meloso? Tem tendncia, mas ento agora mesmo seco e endureo tudo. E pelo menos o que escrevo no pede favor a ningum e no implora socorro: agenta-se na sua chamada dor com uma dignidade de baro (LISPECTOR, 2006, p.17).

  • IDIAS IMPERTINENTES: TATEANDO CAMINHOS PARA A ESCRITA

    Rechaamos as exumaes porque nossos filhos no so cadveres. Nossos filhos esto fisicamente desaparecidos, mas vivem na luta, nos ideais e no compromisso de todos os que lutam pela justia e a liberdade de seus povos. Os restos de nossos filhos devem permanecer ali onde caram. No h tmulo que prenda um revolucionrio. Um punhado de ossos no os identifica porque eles so sonhos, esperanas e um exemplo para as geraes que viro (...). Em cada ao, em cada ato que realizamos, ns os trazemos vida. E sabemos que eles nos acompanham. No sabemos onde, mas sabemos que esto muito perto (Juana de Parament, a Juanita, 93 anos, uma das Madres de Plaza de Mayo).

    No fim do primeiro semestre do doutorado percebi que as melhores idias para minha escrita vinham quando j estava na cama, por volta das trs horas da manh. Resolvi ento deixar um pequeno bloco para anotar as que fossem mais interessantes e impertinentes. Foi ento que, em uma quinta-feira chuvosa s quatro e quarenta da manh, Foucault parecia ter me visitado: escrevi, ento, sobre sociedade de controle, sobre racismo e consegui fazer observaes relacionadas ao meu tema de pesquisa - prticas de extermnio e violao de direitos humanos no estado do Esprito Santo, a partir da narrativa de mes e familiares de atingidos por esta violncia. Na manh do dia seguinte descobri que tudo no tinha passado de um sonho, e perdi todas aquelas maravilhosas anotaes! Fiquei pensando sobre isso agora, as trs e quarenta e oito da manh, quando me propus a escrever esta introduo e, principalmente, sobre o comeo desse trabalho repleto de idas e vindas, o qual apresento agora.

    Mas, como no falar de um comeo se permaneo nele at agora? Falar de um comeo no se refere a caminhos delimitados e retilneos, mas falar das escolhas que me aproximaram durante estes quatro anos destes familiares: das lembranas da minha adolescncia que reencontrei e que guardei, dos abraos que recebi de muitas mes e que nunca esquecerei, das mgoas e ressentimentos que caminharam com estas mes tambm e que no vo ficar para traz. Mais uma vez percebi-me sonhando com uma suposta prepotncia de modificar a realidade das famlias com as quais caminhei at aqui. Tentando um consolo lembro-me sempre da confisso de minha professora e orientadora de que mesmo depois de anos ela ainda sentia-se prepotente frente a algumas situaes e sensaes. assim que

  • ainda sinto-me ao contar essa histria, a dor de dentes que perpassa esta histria deu uma fisgada funda em plena boca nossa (LISPECTOR, 2006, p.17).

    Sim, uma fisgada! Tenho uma bruta dificuldade para entender, mas ainda assim o tema familiares de atingidos pela violncia fascina-me, e fascina-me ainda mais a possibilidade de transformar estes fragmentos de histrias intensas em potncia de vida ativa para aqueles que se permitam ler esta pesquisa. To intensas que o prprio texto permeado por idas e vindas, com histrias que se afastam e se aproximam a todo instante, como um quebra cabea, como menciona um familiar no decorrer das entrevistas; um quebra cabea sempre incompleto. Mas no se iludam aqueles que o lerem e esperarem dessa escrita a completude das certezas de um texto seguro. No completa, nem to pouco segura esta leitura, assim como o tema escolhido para a pesquisa.

    Pesquisa que buscou problematizar a narrativa destes familiares para alm de um espao de mortificao, mas sim um espao heterogneo, palco de conflitos e campo de possibilidade de rupturas, de engendramento de alianas que permitam pensar as prticas e aes dos sujeitos.

    Neste percurso-interveno a base se pautou nas abordagens da Anlise Institucional e da Filosofia da Diferena. A construo dessas abordagens deu-se atravs de ferramentas tericas e intervenes realizadas por Gilles Deleuze, Ren Lourau, Flix Guattari, Michel Foucault este ltimo que povoa sorrateiramente minhas noites de sono - dentre tantos outros; para a realizao desse trabalho, destacaram-se algumas ferramentas construdas e que iro passear pelos caminhos desta pesquisa. Uma delas diz respeito confeco do dirio de campo, produzido durante a coleta de dados para a pesquisa, assim como durante todo o perodo de feitura desta tese de doutorado. Segundo Lourau (1993) o exerccio de escrever sobre o cotidiano constri e se apropria da realidade. O dirio de campo - que, por sinal, no necessariamente, redigido todos os dias, reconstitui a histria do pesquisador durante a pesquisa.

  • Uma caracterstica da escrita fora do texto, como que poderemos constatar lendo os dirios de campo, a de produzir um conhecimento sobre a temporalidade da pesquisa (...). O dirio nos permite o conhecimento da vivncia cotidiana desse campo. Tal conhecimento possibilita compreender melhor as condies de produo da vida intelectual e evita a construo daquilo que chamarei de lado mgico ou ilusrio da pesquisa (LOURAU,1993, p. 77).

    Outra ferramenta, que diz respeito ao vis metodolgico da pesquisa, refere-se utilizao de oito entrevistas individuais e uma entrevista grupal, realizadas durante os trs primeiros anos da pesquisa, assim como a participao em trs reunies, quatro encontros e cinco manifestaes destes familiares. Utilizamos, ainda, uma anlise sistemtica em dois jornais de grande circulao do estado A Gazeta e A Tribuna, assim como no jornal virtual Sculo Dirio. Importante enfatizar que nestes trs veculos de comunicao desenvolvemos e organizamos uma pesquisa temtica, utilizando as palavras-chave violncia, esquadro da morte, polcia, grupos de extermnio, familiares de atingidos pela violncia. Esse trabalho de categorizao por palavras-chave nos permitiu o acesso a um conjunto de reportagens no perodo especfico de 1982 a 2011.

    Todas estas perspectivas permitiram analisarmos os processos de excluso, como tambm de sujeio e extermnio da populao dita em situao de risco. O objetivo desta pesquisa foi procurar dar visibilidade aos processos que tentam singularizar as diferentes instituies que atravessam o dia-a-dia do cotidiano desses familiares atingidos pela violncia. Importante salientar que, nesta viagem, a noo de instituio difere da idia de estabelecimento, sendo entendida como prticas sociais historicamente produzidas que se instrumentalizam no interior de diferentes estabelecimentos (LOURAU,1993, p. 77).

    necessrio delinear a instituio como um cruzamento, atravessamento. Dentro do enfoque da Anlise Institucional francesa a noo de instituio referida no texto direciona-se a quaisquer foras e relaes de dominao, explorao e submisso que so percebidas como naturais, eternas e necessrias, e no como produes histrico-sociais. Aqui, instituio no sinnimo de estabelecimento ou organizao.

  • De acordo com Barros (1994) [...], toda sociedade em um dado momento histrico, acaba por instituir certas formas de existir, pois cria, inventa, produz movimentos ou reproduz outros que j existem. Neste sentido, o que nos importou foi tentar analisar os diversos discursos e prticas que permearam a narrativa destes familiares, produzindo um modo de funcionamento singular de vida, mesmo na morte.

    Neste contexto buscamos problematizar trs linhas de fora, que foram se atravessando no percurso da pesquisa, a saber:

    I. A primeira linha tecida se apresentou na emergncia da narrativa de familiares de atingidos pela violncia; um narrar que acaba por instituir certas formas de viver, existir, lutar, resistir, institucionalizar e tambm desinstitucionalizar. Neste sentido, o que nos importou no decorrer da pesquisa foi analisar os diversos discursos-prticas daqueles que ousaram contar suas histrias e de seus familiares assassinados.

    II. A segunda dessas linhas de fora se construiu medida que se percebeu que a narrativa desses familiares apontava para o cume de um iceberg que se instalou no estado do Esprito Santo, principalmente nas dcadas de sessenta e setenta os grupos de extermnio. Constituir uma anlise, mesmo que breve, sobre este aparato, foi um dos percursos que objetivamos construir com estas narrativas.

    III. A terceira linha apontou para a transformao destas narrativas, em um primeiro momento perpassadas de dor, angstia e ressentimento, em instrumento de apoderamento ativo, de defesa e de afirmao da diferena e do vivido. Potencializar estas falas sem perder a sensibilidade diante do sofrimento destes familiares foi um dos caminhos da pesquisa apresentada.

  • No que diz respeito disposio e organizao buscamos apresentar quatro captulos:

    No Captulo I, "Saudade arrumar o quarto do filho que j morreu [...]" O projeto, a vida e alguns caminhos: falando de implicaes e andando sobre muros lugar de observao", buscamos problematizar os caminhos traados para a escolha do objeto de pesquisa, a anlise de implicao com o tema, assim como as possveis trilhas a serem percorridas no decorrer desta tese.

    No Captulo II, "Muitas vidas, muitas histrias. Embora estatsticas, no somos estatsticas: a violncia, os grupos de extermnio e seus contornos histricos atuais, propomo-nos a apresentar a escalada da violncia no Esprito Santo, a existncia de uma suposta guerra civil amplamente disseminada pelos meios de comunicao, assim como os contornos tomados pelo chamado crime organizado no referido estado.

    No Captulo III, "A Ditadura do Caveiro: Do Esquadro da Morte a Scuderie Detetive Le Cocq Escrevendo Sobre Vidas Descartveis?!, buscamos trazer para anlise as transformaes produzidas no cenrio das polticas de segurana pblica do estado, assim como no mbito dos movimentos sociais a emergncia de grupos de extermnio no Esprito Santo.

    No Captulo IV, Trechos da vida que catei, trapos de sentimentos que juntei, fragmentos de risos que roubei4: Da Associao de Mes e Familiares de Vtimas de Violncia do Esprito Santo AMAFAVV experincia de falar com mes", trazemos tese uma breve anlise da emergncia da Associao de Mes e Familiares de Vtimas de Violncia do Esprito Santo - AMAFAVV, um dos principais movimentos sociais de familiares de atingidos pela violncia no Esprito Santo, assim como um enfoque na experincia da pesquisa com os familiares de atingidos pela violncia no Esprito Santo e no campo de pesquisa.

    4 FERRZ. Ningum inocente em So Paulo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006.

  • Buscamos, em todo o caminho trilhado nesta tese, dar vazo a narrativa das histrias destes familiares, fazendo com que no passem de meras entrevistas para pesquisa, mas que se transformem em veculos de mudana do institudo, de afirmao da diferena. No buscamos a suposta verdade destas histrias; nosso intuito ao passear por estes caminhos , alm de problematizar algumas prticas presentes nestas narrativas, das mais duras as mais flexveis, tambm construir junto a estes familiares vidas enquanto potncia de criao.

  • 1 SAUDADE ARRUMAR O QUARTO DO FILHO QUE J MORREU...O PROJETO, A VIDA E ALGUNS CAMINHOS: FALANDO DE IMPLICAES E ANDANDO SOBRE MUROS, LUGAR DE OBSERVAO.

    Antgona julgava que no haveria suplcio maior do que aquele: ver os dois irmos matarem um ao outro. Mas enganava-se. Um garrote de dor estrangulou seu peito j ferido, ao ouvir do novo soberano, Creonte, que apenas um deles, Etocles, seria enterrado com honras, enquanto Polinice deveria ficar onde caiu, para servir de banquete aos abutres. Desafiando a ordem real, quebrou as unhas e rasgou a pele dos dedos cavando a terra com as prprias mos. Depois de sepultar o corpo suspirou. A alma daquele que amara no seria mais obrigada a vagar impenitente durante um sculo s margens do Rio dos Mortos. (Antgona, personagem de Sfocles, mestre da tragdia Grega).5

    So 05h05min da manh. O sol ainda no se apresentou ao dia que se inicia, mas a movimentao na Rodoviria Pedro Nolasco, em Vitria/ES, j tumultuada6. Ainda h tempo para um caf e um misto quente para enganar o estmago depois das oito horas de viagem; afinal, o nibus que sai da rodoviria rumo ao meu trabalho s passa s 06h00min; enquanto isso observo o vai e vem de transeuntes no local. Na rodoviria existem aproximadamente trs pedreiros7 por metro quadrado; caso se tratasse de uma obra da construo civil, garantiria muitos empregos a populao fora do mercado de trabalho. O discurso , invariavelmente, o mesmo:

    [...], por favor, vim para Vitria trabalhar, mas no consegui emprego e estou tentando voltar para minha cidade. Tenho quase todo o dinheiro para comprar minha passagem. Voc poderia ajudar-me com um real?

    5 SFOCLES, 2001. Antgona, em grego Avtiyvn, uma figura da mitologia grega, filha de dipo e Jocasta. A

    verso clssica do referido mito descrita na obra Antgona, do dramaturgo grego Sfocles, um dos mais importantes escritores de tragdia. Esta obra a terceira parte da trilogia Tebana, os quais tambm fazem parte dipo Rei e dipo em Colono. 6 Quando fui selecionada para o curso de doutorado pela Universidade Federal Fluminense encontrava-me

    vinculada a dois servios pblicos no Estado do Esprito Santo, um na esfera municipal, no qual desenvolvo aes na rea de psicologia com crianas, adolescentes e familiares em situao de risco pessoal, e outro na esfera estadual, no qual atuo tambm como psicloga, junto ao Hospital Dr. Drio Silva, em duas unidades de terapia intensiva, adulta e neonatal. Por conta destas vinculaes optei por permanecer no estado, viajando uma vez por semana para o Rio de Janeiro, a fim de executar os crditos necessrios da grade curricular do referido curso. 7 Denominao utilizada por traficantes de entorpecentes queles usurios que fazem uso contumaz de crack.

    O fato da droga ser vendida em pequenas pedras motivo de aluso palavra pedreiro.

  • Eu realizei o mesmo percurso, Vitria - Niteri, Niteri - Vitria uma vez por semana, por pelo menos trinta e seis meses, o que contabiliza aproximadamente 176 viagens, 1.408 horas. Neste perodo, os mesmos meninos demasiadamente magros, sujos e mal vestidos, me abordaram, solicitando o valioso um real para a viagem de volta.

    Tambm invariavelmente, a viagem de volta era sempre feita em direo a Ilha do Prncipe, um conjunto de favelas localizado em frente referida rodoviria, onde iam em busca das pedras de crack. Observei silenciosamente aquela procisso de meninos dia aps dia, sentada nos bancos de espera da rodoviria de Vitria. Eles, por mais que me abordassem sempre, no torpor do efeito da droga, jamais me reconheceram.

    Em muitas ocasies encontrei a regio quase desertificada dos meninos viajantes; certa vez quando questionei, um dos comerciantes informou que, por vezes, a Polcia Militar realizava a limpa na rea, utilizando mtodos pouco ortodoxos para mant-los afastados, como espancamentos, uso de spray de pimenta, e at alguns desaparecimentos, atribudos sempre ao envolvimento dos meninos com as drogas. Acabava, em alguns segundos, por remeter-me a minha proposta de pesquisa para o doutorado, mas, como sempre, eram quase 06h00min e o trabalho me esperava, seguia em direo ao ponto de nibus; o sol comeava a despontar...os pedreiros continuavam em busca do valioso um real, em busca da pedra E era hora de ir rumo a minha jornada de trabalho, que ia at s 23 horas.

    Alguns dos meninos sorrateiramente abordavam-me, mais uma vez, no ponto do coletivo; um misto de medo e constrangimento assolavam-me. No sei ao certo medo de qu: um possvel roubo, um possvel ataque, um possvel qualquer coisa. O discurso assptico e neutro, repleto de sentidos, por vezes invadia-me, absorvia-me, fazia-me reta em percursos to repletos de curvas.

  • Caso este fosse um texto romntico teramos alguns viles, uma possvel herona; Porm, sem heronas ou viles, sem a imparcialidade desejada por muitos, seguia rumo ao trabalho, carregando comigo trs acessrios inseparveis no decorrer desta viagem-pesquisa: meu MP4, no qual uma mistura sonora de hip hop e funk me mantinha acordada; meu dirio de campo8, parceiro inseparvel nas horas de espera nos bancos da rodoviria, nos dias quentes da cidade de Niteri, ou no silncio das noites de trabalho; e a mochila surrada, repleta de ferramentas para seguir na vivncia deste percurso, nada retilneo.

    Em alguns momentos da escrita sinto como se caminhasse pelo acostamento; como se, de fato, ainda no tivesse me debruado sobre essa histria. Ora por medo de enlamear-me com ela, ora por receio de apaixonar-me. Sinto que a todo tempo tento vivenciar apenas uma experincia empobrecida de sofrimento sem, no entanto, vivenciar as estratgias de resistncia e a singularidade contida nessa experincia (Dirio de campo, 05/11/2008).

    Mas esse percurso-tese de doutorado comeou a ser escrito h aproximadamente nove anos e meio. Ele emergiu durante o perodo em que atuei como Educadora Social do Programa Cidado Criana, da Prefeitura Municipal de Vitria, porm, ainda no encontrava intensidade necessria para transformar-se em algo visvel aos olhos, aos sentidos. Afetou, produziu inquietude, desterritorializou, porm, ainda invisvel aos sentidos dos menos atentos.

    Sua configurao acadmica se iniciou durante o perodo do mestrado, quando me propus a trazer s margens da Ilha do mel9, alguns contadores de histrias os meninos e meninas ditos em situao de rua da cidade de Vitria. No sabia exatamente o que transpor para o papel; alguns flashes ainda me acompanhavam; flashes que traziam cena um conjunto de pistas da minha relao com o mundo, com a vida e, neste sentido, situavam minhas implicaes com o trabalho que desenvolvi como educadora social.

    8 Durante toda a feitura da tese utilizei-me do dirio de campo como uma ferramenta para auxiliar a registrar

    entrevistas e acontecimentos que presenciava ou dos quais tomava parte de alguma forma. Foi de extrema importncia que os acontecimentos fossem registrados para posterior anlise sobre os fatos vivenciados. Lourau (1993) faz nfase no uso do dirio de campo como uma ferramenta para a anlise das implicaes de seu autor. Considera-se aqui que o observador sempre est implicado em seu campo de estudo, sempre envolvido com ele. 9 Vitria, a capital do Estado do Esprito Santo, localizada em uma ilha de mesmo nome e se caracteriza por

    sua beleza e modernidade. Seu encanto inspirou denominaes como Ilha do Mel, Cidade Prespio e Delcia de Ilha. Fundada oficialmente em 8 de Setembro de 1551, Vitria uma das 10 cidades mais antigas do Brasil.

  • A idia inicial para o mestrado seria analisar a forma como se forjou a rede de assistncia infncia e adolescncia no Municpio de Vitria, e como esta rede foi colocada em questo pela ecloso de um grupo de cerca de quarenta meninos (as) de rua. A tentativa seria levantar os aspectos relevantes da construo da poltica atual de atendimento a estas crianas e adolescentes no municpio supracitado, como tambm o entendimento de como esta construo articulava-se com questes como a excluso, o confinamento, o esquadrinhamento e o extermnio desses meninos e meninas.

    Embora o tempo impossibilitasse a realizao de uma pesquisa de maiores propores, ainda me inquietava outra questo, que me perpassava insistentemente: como funcionava a vida nas ruas?! E mais: quem so estas personagens que subvertem toda uma lgica instituda que produz meninos de rua como seres homogneos, ahistricos?! Perguntas que s comeariam a ser respondidas se analisasse no a rede de assistncia, mas fragmentos do cotidiano deste grupo de meninos (as) que, juntos, colocaram todo um estado em estado de alerta. Foi preciso reviver medos, perdas, angstias, alegrias; e reviv-los no mais s ocupando o lugar de educadora, de trabalhadora social, mas tambm o de pesquisadora.

    Por onde comear se eram tantas e to envolventes as histrias que atravessavam a vida daqueles meninos (as) moradores de rua? Quem eram as personagens daquelas histrias? Para no me permear da fala autorizada daqueles que transformavam estes meninos e meninas em perigosos, decidi por sentar-me nas ruas, viver um pouco das ruas, ouvir histrias, contar histrias, deixar-me afetar pelos medos, desejos, anseios do que se configurava como a instituio menino de rua.

    Ao optar pela manuteno das histrias do dia-a-dia dos meninos e meninas, fui guiada por elas. O que trouxeram para minha dissertao, para aqueles que a leram? Emoes desconcertantes que se entrelaaram entre meninos (as), educadores e aqueles que circulam pelas ruas da cidade; possibilidade de caminhar por estradas sinuosas, nas quais as curvas reservam o imprevisto, o inusitado dos acontecimentos. Contar a histria destas crianas e adolescentes foi

  • falar das ruas, do escuro, do perigo, da morte eminente, mas sobretudo, falar de maravilhosos contadores de histrias.

    Aos poucos, fui reunindo pedaos destas histrias, construindo, inventando novas relaes que pudessem de alguma forma, fazer emergir algo que fosse alm da tica dos vencedores10. Foi preciso desordenar fatos que pareciam mergulhados em silncios, fatos estes que deveriam estar fora da memria histrica da cidade de Vitria. Mas, insistentemente, a cidade pulsava, e pulsando fazia com que estes acontecimentos no cassem no esquecimento desmobilizante, mas se tornassem ntidos, causassem incmodo.

    Boa parte destas narrativas mostrou, por um lado, toda uma rede de relaes obscuras de prostituio, mortes, furtos e principalmente crimes ligados ao alardeado crime organizado do estado do Esprito Santo, como tambm fizeram emergir por outro, a existncia de uma rede de relacionamentos intensos e potentes, rede esta construda pelos prprios moradores das ruas, e que nos abriu a possibilidade de desmontar alguns conceitos generalizados, como de criana abandonada, de perda do vnculo familiar e de educador de rua.

    Quando pensei que conclura meu trabalho como pesquisadora, percebi que a arte de pesquisar no se limitava ao conhecimento construdo; confesso que parecia que os fatos vividos e relatados na dissertao, assim como tantos outros ocorridos no decorrer da pesquisa haviam esgotado toda a minha capacidade de criao, talvez pelo cansao, pela impotncia ou pelo exaustivo percurso da pesquisa; porm percebi que havia deixado de lado alguns fatos que enriqueceriam este trabalho, fatos que hoje so de extrema importncia e que principalmente trariam a cena, algumas estratgias adormecidas nas vielas e palafitas, nas ruas escuras sem iluminao pblica, nas casas de madeira ou alvenaria destrudas pelo tempo, nos picos dos morros por onde no caminhei.

    Foram dois anos de encontros, desencontros e mortes. Acreditava que a onipotncia de manter aqueles meninos e meninas vivos s se materializava nas pginas da dissertao, porm, hoje percebo que mant-los vivos vai mais alm do que relembrar suas mortes. Mant-los vivos mostrou-se possvel na memria daqueles 10

    O referido assunto ser melhor trabalhado no decorrer desta pesquisa.

  • que se aventuraram a acompanh-los, mesmo depois de mortos; pais, mes, irmos, companheiras (as) que guardaram sorrisos, momentos e memrias e que, por isso, reposicionaram-se no mundo, ousando articular-se contra aquelas mortes e, de forma mais ampla, contra uma poltica de segurana que se pauta em um processo fragmentado, mas em crescimento autorizado de formao de grupos de extermnio contra aqueles considerados perigosos. Mant-los vivos mostrou-se possvel especialmente quando nos propomos a um reencontro com histrias que no se construram no sofrimento individualizante, mas em um fluxo intenso, em um coletivo de expresses.

    A dor indizvel. Falamos de dor, mas, o que ela de fato [...] ela no ! a partir desse no ser que se produz a coletivizao dessa dor: elas no sabem explic-la, mas sentem, tentam exp-la, cont-la, dividir e tornar coletivo o que o Estado insiste em individualizar (Dirio de campo, 17/12/2008).

    Contrrios a poltica do esquecimento, estes familiares propem que o silncio seja quebrado e que esse processo de aniquilao que, em algum momento, atravessou suas vidas de forma violenta, seja lembrado, combatido, e que as histrias desses meninos jovens possam ser afirmadas. So estas histrias que, aliadas a tantas outras, so o tema dessa tese de doutorado.

    So pessoas que acreditam que as histrias de seus familiares no foram em vo, que estas vidas foram mais que sobrevidas; para isso trazem s ruas mais do que lembranas, mais do que sorrisos, trazem os corpos de seus entes despedaados em caixo aberto, a histria de suas mortes, de todo seu sofrimento e mazelas.

    No queremos assombrar as pessoas com a exposio da nossa dor, dos corpos dos nossos filhos, mas queremos que elas compartilhem conosco o significado de ter um familiar retirado do seu convvio de forma violenta, por causa da insanidade de um estado assassino. Queremos que essa dor no seja s nossa (Maria das Graas Nacourt, me de Pedro Nacourt Filho, assassinado por policiais militares).

    Para o grupo de familiares, esta a resistncia de alguns que teimam em viver, viver mesmo mortos. Aqui grupo deixa de ser o modo como os indivduos se organizam para ser um dispositivo, catalizador existencial que poder produzir focos mutantes de criao (BARROS, 1994, p. 151).

  • Esta tese de doutorado tem a pretenso de mostrar encontros com pessoas que ficam na periferia de todas as relaes ilimitadas e indefinidas, paradoxais como todas as coisas que incendeiam a vida. No se busca aqui, descrever personalidades de mes e familiares que, em algum momento de suas vidas, foram bruscamente separados de seus filhos, maridos, irmos, mas, mais uma vez, contar histrias. E importante salientar que colher certos destroos foi muito doloroso, mas enriquecedor para estas histrias. Destroos de relaes familiares atravessadas pela violncia, restos de vidas singulares que, pelos usos e desusos, transformaram-se em persistncia, restos de sensaes e afetos que me atravessaram no contato dia aps dia com pessoas que transformaram sua histria individualizada pelo Estado em estatsticas, em inmeras histrias coletivas. Colar pedaos desse mundo foi uma srie de achados e perdidos. Para alm da histria oficial encontrei histrias do dia-a-dia, das mazelas humanas. Atravs destas histrias, que persistem mesmo na morte, que a insistente violao de direitos, que por vezes mostra-se invencvel, encontrar um ltimo limite de resistncia. So estes movimentos que busco trazer nesta tese de doutorado.

  • 1.1 NO SEI QUANTO CUSTA UMA VIDA, SEI APENAS DA LUTA QUE TEMOS PARA LEVAR A NOSSA VIDA ADIANTE

    Gostaria de me insinuar sub-repticiamente no discurso que devo pronunciar hoje, e nos que deverei pronunciar aqui, talvez durante anos. Ao invs de tomar a palavra, gostaria de ser envolvido por ela e levado bem alm de todo comeo possvel. Gostaria de perceber que no momento de falar uma voz sem nome me precedia h muito tempo: bastaria ento, que eu encadeasse, prosseguisse a frase, me alojasse, sem ser percebido, em seus interstcios, como se ela me houvesse dado um sinal, mantendo-se, por um instante, suspensa. No haveria, portanto, comeo; e em vez de ser aquele de quem parte o discurso, eu seria, antes, ao acaso de seu desenrolar, uma estreita lacuna, o ponto de seu desaparecimento possvel (FOUCAULT, 1971, p.01).

    No decorrer do percurso para So Pedro V11 tento no pensar na entrevista que ser realizada; Ana Maria perdera o filho de forma violenta h seis meses, mas recentemente fora convocada a depor acerca das circunstncias em que J. foi morto. Tento distrair-me com a leitura de um livro acerca da personagem Antgona, figura da mitologia grega.

    A narrativa tem princpio com a morte dos dois filhos de dipo, Etocles e Polinice, que se mataram em busca do trono de Tebas. Com isso, ascende ao poder Creonte, parente prximo da linhagem de Jocasta. Seu primeiro dito dizia respeito ao sepultamento dos irmos; ficou estipulado que o corpo de Etocles receberia todo cerimonial devido aos mortos e aos deuses. J Polinice teria seu corpo largado a esmo, sem o direito de ser sepultado e deixado para que as aves de rapina e os ces o destroassem. Creonte entendia que isso serviria de exemplo para todos os que pretendessem diligenciar contra o governo de Tebas. 11

    A regio de So Pedro est localizada no lado Norte Noroeste da Ilha de Vitria, junto a um dos canais do esturio do Rio Santa Maria. Na regio onde hoje se encontra o bairro So Pedro, existia at 1977, a localidade denominada Ilha das Caieiras, rea de manguezal como ecossistema predominante. O assentamento de So Pedro se iniciou em 1977, com a ocupao de uma rea de mangue, por aproximadamente quarenta famlias, que se instalaram em barracas de lona e barracos rsticos, que mais tarde se tornaram reas de palafitas e depsito de lixo, transformando-se, mais tarde, em um grande depsito de lixo urbano a cu aberto. O local se caracterizou, em fins da dcada de 1970, como alternativa habitacional para migrantes pobres, desempregados e subempregados dos setores pblicos e privados. A ltima grande ocupao coletiva das famlias pobres e grileiros profissionais, aconteceu em maio de 1983, inicialmente, no loteamento "Floresta da Ilha" e, em seguida, no manguezal na outra margem da Rodovia Serafim Derenzi. Desta ocupao participaram, preliminarmente, cerca de 400 famlias. Com a concluso das obras do "Programa Promorar" em fins de 1983, aumentou consideravelmente a procura dos manguezais restantes do contorno do bairro, pela populao desempregada, de baixa renda da Grande Vitria e, principalmente migrantes, como alternativa de habitao. datado deste perodo as subdivises que hoje o bairro apresenta, com cinco grandes regies, nomeadas de So Pedro I a So Pedro V. O bairro foi criado pela Lei 2.959/82, e a precria condio de vida desse assentamento humano foi retratada no vdeo de repercusso internacional Lugar de Toda Pobreza, produzido pelo jornalista e cineasta Amylton de Almeida. Atualmente, So Pedro considerado, pelas estatsticas municipais, como o bairro mais violento de Vitria, capital do Esprito Santo.

  • Ao saber do dito, Antgona, filha de dipo e Jocasta, nascida de um matrimnio condenado pelo incesto, deixa claro que no deixar o corpo do ente querido sem os ritos sagrados, mesmo que tivesse que pagar com a prpria vida por tal ao. Mostra-se insubordinvel s leis humanas por estar indo de encontro s leis divinas. Creonte ento avisado de que o corpo de Polinice havia recebido uma pequena camada de p, e com isso seu dito havia sido desrespeitado, colocando seu domnio prova.

    Descobre-se ento que o rebelado tratava-se de Antgona, e esta levada at Creonte. Trava-se ento um combate de idias e ideais: de um lado a r, tendo como sua defesa o cumprimento s leis dos deuses, as quais so mais antigas e, segundo ela, superiores s terrenas, e de outro lado o inquisidor, que tenta mostrar que ela agiu errado, explica seus motivos e razes, mas cada um continua intrpido em suas crenas. Creonte manda chamar tambm Ismnia, irm de Antgona, que mesmo no tendo concordado com o ato da irm, confessa o crime que no cometeu. Ambas ento so condenadas a morte.

    As possibilidades de dilogos entre Antgona e Ismnia, com Ana Maria e tantas outras mes que entrevistei para esta pesquisa parecem emergir do silncio de minha leitura. Neste momento volto histria de Ana Maria e de tantos outros familiares que perderam filhos, companheiros, sobrinhos, vidas ceifadas pela violncia; em alguns casos esses familiares no puderam sequer enterr-los, pois seus corpos nunca foram encontrados. Segundo estes familiares, para transformar indignao e revolta em busca por respostas, algumas famlias trazem s ruas os corpos de seus filhos em caixo aberto, trazem com eles a realidade de suas mortes.

    Muitos Etocles e Polinices so assassinados diariamente, enterrados sob a suspeio criminosa, enterrados como indigentes, ou nunca enterrados, pois seus corpos jamais foram encontrados por seus familiares. Como nos aponta Baptista

    A dor da herona grega, personagem da pea escrita por Sfocles, representada pela primeira vez em 441 a.C, dialoga com a cidade, narrando colises das foras entre cidado e Estado, leis de deuses visveis a todos e leis arbitrrias dos tiranos. Tragicamente reinvindica o lugar para sepultar o cadver do irmo, impedindo que ces e aves carniceiras o devorem, destruindo o corpo e a sua memria de guerreiro (BAPTISTA, 2001, p. 182).

  • Como eu te falei, se tivessem simplesmente matado ele e jogado seu corpo por ai como fazem todos os dias, sem que o corpo tivesse desaparecido, eu iria sofrer muito, chorar, me desesperar. Iria poder enterr-lo e buscar os culpados, mesmo sabendo que vivo em um lugar de injustias. Mas nem por isso posso lutar pois nem o corpo dele eu tive para enterrar. Voc sabe o que isso?! No sabe, ningum sabe!! (Sra. Irene, me de E.C.R.,22 anos, supostamente assassinado por policiais militares, cujo corpo nunca foi encontrado).

    O dito de Creonte passa a ser contraposto pelo povo nas ruas, e toda a cidade est de acordo com a proeza de Antgona. A arrogncia e o poder tomam conta de Creonte, que acredita ser o nico a poder ordenar e governar. Seu filho, Hmon, futuro marido de Antgona, ameaa ento se matar, caso o pai no anule a condenao. Ento o tirano resolve tornar mais cruel a pena de Antgona, aprisionando-a em uma caverna escavada na rocha, s com o alimento imprescindvel, para assim ter seu fim lento e doloroso.

    Tirsias, adivinho notrio e respeitado em Tebas, adverte Creonte do mal que ir se abater em sua vida devido sua teimosia, e que os deuses estavam enfurecidos. Ele se mantm irredutvel, mas aps a partida do adivinho se convence a libertar Antgona e sepultar Polinice.

    O desfecho cruel impe-se ento a Creonte: mesmo tendo sepultado o corpo de Polinice, h muito tempo morto, Creonte tem que viver com o peso da morte de Antgona - que j havia se matado quando ele fora busc-la - com o suicdio de seu filho Hmon - ao saber da morte de sua amada - e com o suicdio da prpria esposa, Eurdice - ao receber a notcia da morte de seu filho.

    Antgona morre, e junto com ela h a total aniquilao do poder de Creonte. Em um dilogo construdo entre as histrias de desfechos trgicos, aos poucos vejo configurarem-se sob meus olhos inmeras Antgonas, enlouquecidas e potencializadas pela busca dos corpos de seus familiares, pelo desejo de dar-lhes um sepultamento digno. Vejo Ana Maria, Arlete, Cleonice, Maria das Graas, Roberta, Ana Lcia, Conceio, Ilda, Irene, ainda vejo inmeras Antgonas na verso clssica da violncia de Estado. Elas querem sim, enterrar seus filhos! Mesmo que tudo no passe de um ritual religioso para muitos pesquisadores desavisados, para elas tudo o que precisam para voltarem a seguir suas vidas: enterrar seus filhos!

  • A obra de Sfocles dramatizando a coliso entre poderes apresenta-nos a intensidade e afirmao da insurgncia como ato criativo e poltico. Recusando a inevitvel passividade delegada sina de mulher, transgredindo os limites hierrquicos do seu corpo em Tebas, a herona grega faz do desejo uma arma de combate. Na gora, denunciando a arbitrariedade da lei dos homens, Antgona desloca do corao o pouso ntimo da dor particular entrelaando-a a dores e injustias alheias. Sua luta trgica politiza o ato de existir, tornando-o inseparvel da polis (BAPTISTA, 2001, p.182).

    Pergunto-me mais uma vez o que devo abordar, por onde comear, se so tantas e to envolventes as histrias que atravessam essas mes, esses familiares? Quem so os contadores destas histrias? Percebo que o ponto onde deveria saltar do coletivo j se aproxima, e vou busca de uma entrevista, certamente, com uma das muitas Antgonas que esta tese ir nos apresentar.

    1.2 COMO LEVAR A NOSSA VIDA ADIANTE? CENA I: ERA S MAIS UM SILVA QUE A ESTRELA NO BRILHA, ELE ERA FUNKEIRO, MAS ERA PAI DE FAMLIA12

    As ruas do bairro So Pedro V transversalizam-se como labirintos que compem-se e recompem-se a todo o momento; em um primeiro instante, despercebida, menciono que todas se parecem, e que de fato todas so iguais. As ruas, assim como as vidas ali presentes, entrelaam-se, porm no so nem de perto iguais. Ana Maria sabe disso melhor que ningum, e continua seguindo em frente, na via crucis 13 que se props a fazer, com minha estranha companhia.

    Os homens invadiram a residncia e o encontraram sozinho; a me sara h alguns minutos, para a compra de fsforos, na esquina mais prxima. A sesso de espancamento iniciou-se dentro de casa, quando comearam a bater-lhe com alguns pedaos de pau. J. foi retirado de sua casa s 19h30min, foi arrastado do porto de sua casa por seis ruas, quatro esquinas, passando por trs quebra-molas,

    12

    Rap do Silva Mc Bob Rum.

    13 O caminho percorrido diz respeito aos locais por onde o corpo do jovem J. foi arrastado e torturado por seus

    assassinos, antes de sua morte. A necessidade de refaz-lo emergiu de sua me, aps acordo acerca de entrevista para a formulao desta tese. vlido ressaltar que Ana Maria, foi um dos nomes fictcios dados s entrevistadas durante o percurso do doutorado, por solicitao das mesmas.

  • tendo sido espancado com objetos que variaram de pedaos de pau, pedras e tambm objetos perfuro - cortantes.

    O corpo apresentava cortes profundos principalmente na face, assim como inmeras perfuraes de arma branca. J. foi espancado por cerca de duas horas, tendo seu corpo jogado no mangue da baia de Vitria, aproximadamente s 21h40min horas.

    O laudo direto e objetivo: morte por submerso. Afogamento!! E o inqurito, este mais lmpido: o indivduo, em atividades desconhecidas na regio do manguezal da baia de Vitria, veio a bito por submerso, o que no caracteriza-se como crime. Inqurito instaurado, apurado e arquivado.

    Como no viram o que tinha acontecido com o J.? O bairro inteiro sabia, inmeras testemunhas do espancamento, minha famlia foi ameaada por um bom tempo, isso tudo por causa de um afogamento ? A justia brinca com a gente, brinca com nossa dor, nosso sofrimento. Meu filho morreu espancado e no afogado! (Ana Maria, me de J.,19 anos. 07.01.2009).

    Arquivado se no fosse pelo fato de Ana Maria, nossa personagem, ter sido chamada a depor para o arquivamento do referido processo. Diante de trs policiais civis ela brada, questionando se no foram vistas as marcas de espancamento no corpo de seu filho, em seu rosto desfigurado.

    Ana Maria chamou uma de suas filhas que estava de sada para a escola e pediu que ela trouxesse as fotos de J., era o incio do nosso passeio` por aquela narrativa. Eram pelo menos uns dez pacotes de fotos envelhecidas pela vida, pelo viver intenso; falavam de J. desde sua primeira festinha junina, quando o bairro ainda no sabia o que era asfalto ou saneamento bsico. Ana Maria passava devagarzinho cada foto e narrava sobre a poca vivida por eles, pela famlia. Era uma saudade to real, to intensa que fez com que me emocionasse como poucas vezes havia acontecido. As fotos de J. eram diferentes, tinham uma narrao to prxima, e tudo que ela falava tinha um sentido diferente, nem sei ao certo por que, mas tinha. Sentia-me devastada e ao mesmo tempo envolvida; era uma senhora magra, de olhar intenso. O rosto abatido pela vida hipnotizava. Ela simplesmente no parecia aceitar que ele havia partido. Por mais que ela fosse consciente, precisava crer que ele iria voltar, que o filho no havia morrido (Dirio de campo, 07/01/2009).

    J. no mais vive, mas naquele instante, como em uma pelcula antiga, sua histria refeita, recontada, reatualizada e revivida. Ana Maria por vezes olhava na direo da porta de madeira, ainda com sinais visveis do arrombamento do dia da morte de J.; segundo ela, volta e meia v o menino entrando por ali volta e meia imagina o que no fez, o que poderia ser diferente. Sinto como se a narrativa de Ana Maria fosse

  • sempre feita e refeita, mas, de alguma forma, nunca fosse, de fato, ouvida. Percebo que a insurgncia dessa memria, redesenhando uma histria que no pode ser esquecida, demanda-me um olhar mais atento sobre o testemunho dessas mulheres, corpos tambm atingidos pela violncia do Estado. No como uma contemplao a esse lugar de vtimas, muito menos buscando sentimentos cercados de compaixo e pela mobilizao emocional que esse lugar vtima produz. Interessa-nos este discurso, pois emerge como uma ferida aberta que insiste em sair da esfera privada para o domnio do espao pblico. Ana Maria se lembra de quando o menino era s um menino, de quando precisava deix-lo sozinho logo cedo, pois trabalhava muito longe, tendo que sair de casa ainda de madrugada. Por alguns minutos culpa-se por ter tido que trabalhar tanto para criar os filhos; em outros momentos, a dor maior a de no poder estar novamente com o filho.

    Ficou um buraco, um buraco enorme. Um vazio muito grande, s que a gente tem que levar a vida para frente, se apegar em Deus e pedir que ele d um bom lugar para o filho da gente. Eu durmo todo dia pelejando para sonhar com ele, mas eu quase nunca sonho... (Ana Maria, me de J.,19 anos, 07.01.2009).

    Em uma noite quente de agosto de 2008, assassinos com fardas da polcia militar destruram todos os sinais de vida de Ana Maria. Mataram at os passarinhos de J.; pisaram e esmagaram as poucas flores plantadas em frente ao barraco de madeira. At janeiro de 2009, o pequeno cmodo que era usado como quarto por J. continuava fechado, contrariando a falta de espao naquela pequena casa de madeira. As roupas de J., as fotos, os recortes de jornal sobre bailes funk, motos e encontros de galeras, tudo da exata forma como ele deixou.

    Perder um filho morrer um pouco, o corao fica em pedaos. um sentimento sem explicao. Sinto que o entreguei a Deus, e hoje vivo sem um pedao de mim, e isso para a vida toda. (Ana Maria Silva dos Santos, me de J,19 anos, 07.01.2009).

    Ouvir narrativas de dor, sofrimento, revolta, mas principalmente de impunidade extremamente doloroso no trajeto da pesquisa. Embora soubesse o que me esperava pela frente, a nica certeza que me movia era o fato de acreditar que aquelas no seriam histrias pessoais, mas coletivas, plurais; no seriam palavras minhas, mas palavras nossas (Dirio de campo, 07/01/2009).

  • 1.2.1 COMO LEVAR A NOSSA VIDA ADIANTE? CENA II: VRIOS AMIGOS NO ESTO MAIS AQUI, FIZERAM UMA VIAGEM PARA UM MUNDO SEM FIM.14

    Era um homem sexagenrio. Estava laado pelo pescoo com trs cordas. Um sargento puxava a corda esticada direita do homem, outro esquerda e um terceiro por trs. Dia 03 de abril de 1964, dois dias depois do golpe militar. O homem sexagenrio estava sendo arrastado pelas ruas de Recife num espetculo hediondo comandado pelo tenente-coronel Darcy Villocq Viana. Tortura em praa pblica, para mostrar como dali por diante seriam tratados os adversrios do regime recm-implantado. Pouco antes havia sido surrado, os ps queimados com cido, e o tenente-coronel lhe dissera que no passeio pelas ruas ele iria descalo, para aliviar a dor nos ps. Seguia o cortejo sinistro e o homem procurava contrair os msculos do pescoo, pois as cordas apertavam cada vez mais. Torturado e torturadores passaram em frente a outro quartel e o tenente-coronel incitou os oficiais, soldados e recrutas a linchar o homem. No foi atendido, o que o deixou ainda mais furioso. Em um cruzamento deteve o desfile, fez o trnsito parar e recomeou a bater no homem, chamando o povo a fazer o mesmo. Tambm no foi atendido. Mais tarde, quando o tenente-coronel deu por encerrada a barbaridade, o torturado foi recolhido fortaleza de Cinco Pontas, de onde seria transferido para a Casa de Deteno de Recife.(ESTRELA. Disponvel em: . Acesso em 03 abril. 2006).

    Integrante do Comit Central do PCB ao lado de Luiz Carlos Prestes, Gregrio Bezerra deflagrou o movimento de insurreio planejado pela Aliana Nacional Libertadora em 1935, para assumir o poder na cidade de Recife. Com o movimento derrotado, Gregrio foi preso, espancado e barbaramente torturado. Por participar dos eventos ligados ao levante comunista, Gregrio foi condenado a 27 anos de priso. Em 1942 foi transferido para a Ilha Grande, no Rio de Janeiro. No ano seguinte passou para o presdio Frei Caneca, onde permaneceu preso por dez anos, at o final da era Vargas, em 1945. Porm, com o Golpe Militar de 1964, Gregrio foi novamente cassado, espancado e barbaramente torturado pelos militares, fatos relatados acima. Foi libertado, somente, no ano de 1969, trocado, junto com outros

    14 Histria Triste Menor do Chapa.

  • 13 presos polticos, pela vida do embaixador americano Charles Burcke Elbrick, seqestrado no Brasil.

    A histria de Gregrio Bezerra ganhou cartaz no momento em que foi atingido pela tortura em pblico relatada acima, quando aos sessenta e quatro anos, foi preso e arrastado pelas ruas do Recife, por uma guarnio militar. Foi o nico opositor do regime militar a ser torturado em praa pblica, no Recife. A Gregrio, o poeta Ferreira Gullar dedicou o poema, em forma de cordel, intitulado a Histria de um Valente.15

    1.3 DESFECHOS DIFERENTES DE UMA MESMA HISTRIA: A MINHA REA TUDO O QUE EU TENHO. MUITO FCIL FUGIR, MAS EU NO VOU, NO VOU TRAIR QUEM EU FUI E QUEM EU SOU16

    As marcas nos corpos de J e Gregrio Bezerra no so mais visveis, mas agora esto marcadas em suas histrias. Perodos histricos diferentes, histrias diferentes que em algum momento atravessam-se: Gregrio, torturado e enclausurado, J. torturado e covardemente assassinado; diferente, apenas o desfecho trgico do jovem perigoso; em comum a presena de representantes do

    15

    Valentes, conheci muitos, e valentes, muito mais. Uns s Valente no nome uns outros s de cartaz, uns valentes pela fome, outros por comer demais, sem falar dos que so homem s com capangas atrs. Mas existe nessa terra muito homem de valor que bravo sem matar gente mas no teme matador, que gosta da sua gente e que luta a seu favor, como Gregrio Bezerra, feito de ferro e de flor. Gregrio, que hoje em dia um sexagenrio, foi preso pelo Governo dito "revolucionrio", espancado e torturado, mais que Cristo no Calvrio, s porque dedica a vida ao movimento operrio e luta dos camponeses contra o latifundirio. Filho de pais camponeses, seu rumo estava traado: bem pequeno j sofria nos servios do roado. Com doze anos de idade foi pra capital do estado, mas no Recife s pde ser moleque de recado. Voltou pra roa e o jeito foi ser assalariado. At que entrou pro Exrcito e decidiu ser soldado. Sentando praa, Gregrio foi um soldado exemplar. Tratou de aprender a ler e as armas manejar. Em breve tornou-se cabo mas no parou de estudar. Chegou at a sargento na carreira militar. Sua vida melhorou mas no parou de pensar na sorte de sua gente entregue a duro penar. Um dia aquela misria havia de se acabar. Foi pensando e conversando, trocando pontos de vista, que Gregrio terminou por se tornar comunista e no Partido aprendeu toda a doutrina marxista. Convenceu-se de que o homem, no mundo capitalista o prprio lobo do homem, torna-se mau e egosta. Da luta de 35, Gregrio participou. Derrotado o movimento, muito caro ele pagou. O Tribunal Militar do Exrcito o expulsou, e o meteu na cadeia onde Gregrio ficou at em 45 quando a anistia chegou(Ferreira Gullar. Histria de um valente, cordel, 1966)

    16 Frmula Mgica da Paz Racionais Mcs

  • Estado no papel de torturadores e assassinos, a naturalidade com que prendem, julgam e executam penas.

    Minha mo ainda est trmula; impossvel no se sensibilizar com as situaes vivenciadas. Os fragmentos da histria do filho de Ana Maria traduzem alguns dos relatos e sentimentos que perpassam as lutas dos familiares de atingidos pela violncia.

    Um misto de angstia, revolta, perplexidade, imobilismo; mas tambm uma gama de sensaes que movem, que se lanam em busca de afirmar a dignidade, a memria e, por vezes, os corpos dos filhos, companheiros e parentes prximos assassinados e desaparecidos.

    H vrias maneiras de narrar a histria de um pas. Uma viso sempre esquecida, conhecida como tica dos vencidos, aquela forjada pelas prticas dos movimentos populares, nas suas lutas, no seu cotidiano, nas suas resistncias e na sua teimosia em produzir outras maneiras de ser, outras sensibilidades, outras percepes. Prticas que recusam as normas pr-estabelecidas, e que procuram de certa forma construir outros modos de subjetividades, outros modos de relao com o outro, outros modos de produo. desta histria que vamos falar um pouco; de uma histria onde os segmentos populares no so meros espectadores dos fatos, mas produtores dos acontecimentos. De uma histria onde a subjetividade dominante - apesar de seu poderio e tentativas - no consegue silenciar e ocultar a produo de espaos singulares, de prticas diferentes e eliminar a memria histrica de uma outra memria (COIMBRA, 2000, p. 01).

    Propor, a partir da narrativa destes familiares, um debate sobre homicdios praticados por grupos de extermnio formados principalmente por militares, significa acolher imediatamente a urgncia de sua condio como uma real questo social. No Esprito Santo, o tema (in) segurana pblica vem se apresentando como uma das expresses da demanda social, que fica cada vez mais complexa medida que cresce. No decorrer dos ltimos anos, o quadro de violncia no estado, em particular os homicdios, vem tendo nfase nos noticirios locais e nacionais, estimulando pesquisas, publicaes acadmicas, provocando intensos movimentos na sociedade capixaba, dispositivos que tem provocado a emergncia de outras formas de pensar e produzir anlises acerca das polticas de segurana pblica do Esprito Santo. O que caracteriza um dispositivo sua capacidade de irrupo naquilo que se

  • encontra bloqueado de criar, seu teor de liberdade em se desfazer dos cdigos que procuram explicar dando a tudo o mesmo sentido (BARROS, 1994, p.190).

    Perguntamo-nos, por vezes, o que est em jogo quando emergem todos estes holofotes sobre a questo dos ndices de violncia, da eficcia, ou no, das polticas de segurana pblica. Foucault, no curso Segurana, Territrio e Populao, ministrado no Collge de France, entre janeiro e abril de 1978, nos fornece algumas pistas para esta indagao.

    O curso citado vai enfocar, especialmente, o que Foucault vai designar de sociedade de segurana ou biopoltica, alicerada no poder sobre a vida, na ao sobre o homem no enquanto corpo, como na sociedade disciplinar, mas enquanto espcie, populao. O debate central ir se desenvolver em torno da governamentalidade, relacionada a arte de governar

    O conjunto constitudo pelas instituies, os procedimentos, anlises e reflexes, os clculos e as tticas que permitem exercer uma forma bem especfica, embora muito complexa, de poder que tem por alvo principal a populao, por principal forma de saber a economia poltica e por instrumento tcnico essencial os dispositivos de segurana (FOUCAULT, 2008, p. 143).

    Enquanto na sociedade de soberania, o poder do soberano se exerce sobre um territrio, e na sociedade disciplinar o poder se dirige fundamentalmente aos espaos disciplinares, na sociedade biopoltica ou de segurana trata-se, antes de tudo, na relao poder-espao, de exercer o controle dos fluxos, da circulao, no do homem enquanto indivduo ou corpo, mas do homem enquanto espcie visando assim o controle da populao, em suas mltiplas modalidades (FOUCAULT, 2008). Neste contexto, todo um tratamento prioritrio passa a ser potencializado a partir da emergncia do fenmeno populao, principalmente atravs da economia e da estatstica, esta, uma forma de controle que se dirige sobre o homem enquanto espcie, em seus processos de reproduo, natalidade, mortalidade, difuso de doenas, regularidade de acidentes, etc. Toda uma srie de dispositivos de segurana so criados no sentido de garantir certos padres dessa reproduo e certo direcionamento na circulao dessa populao. Insta frisar porm, como nos afirma Foucault :

  • No h a era do legal, a era do disciplinar, a era da segurana. Vocs no tem mecanismos de segurana que tomam o lugar dos mecanismos disciplinares, os quais teriam tomado o lugar dos mecanismos jurdico-legais. Na verdade, vocs tm uma srie de edifcios complexos nos quais o que vai mudar, claro, so as prprias tcnicas que vo se aperfeioar ou , em todo caso, se complicar, mas o que vai mudar, principalmente, a dominante ou, mais exatamente, o sistema de correlao entre os mecanismos jurdico-legais, os mecanismos disciplinares e os mecanismos de segurana (FOUCAULT, 2008, p. 11).

    Em meio a todo este aparato de controle, de dispositivos de segurana para medir ndices tolerveis de violncia, emergem tambm alguns outros movimentos; estes movimentos tm se expressado numa intensa atividade na qual se empenham vrias pessoas envolvidas com as questes sociais, resultando na reedio e elaborao de antigos e novos conceitos, mesmo antes de se ter conseguido situar os reais impactos dessa violncia ou conhecer as reais dimenses da sua escalada. Um destes movimentos, e que trazemos como um dos pontos de articulao de nossa pesquisa a Associao de Mes e Familiares de Vtimas de Violncia do Esprito Santo, que traz em sua trajetria histrias de dor e sofrimento, mas tambm da teimosia em continuar lutando, da vida que insiste em pulsar, mesmo atravs de vidas que foram parcialmente esquecidas.17

    A Associao comeou com pequenas reunies em locais emprestados como a FAFI e a Associao de Moradores do Centro; no comeo a gente pensava em se calar e viver a angstia da dor da perda s entre ns mesmos, mas aos poucos percebemos que s isso no bastava. Decidimos ento no sermos mais covardes e colocarmos nosso sofrimento exposto para que outras pessoas soubessem o que acontece hoje no Esprito Santo... (Maria das Graas Nacourt, me de Pedro Nacourt e Presidente da AMAFAVV).

    Vidas parcialmente esquecidas, assim um pouco da histria de E. Segundo sua me, na infncia, E. era um menino estudioso. Comeou a trabalhar cedo, ainda na adolescncia, para ajudar a famlia. Certo dia, no ano de 2005, despediu-se da me em casa, na Serra/ ES, para mais um dia de jornada. Nunca mais foi visto. Alguns testemunhos do conta que, perseguido por uma viatura da Polcia Militar, o mesmo foi alvejado por inmeros tiros, sendo levado a um hospital do municpio e, posteriormente, ao Instituto Mdico Legal; consta entrada do corpo de E.C.R. no 17

    Traremos no decorrer desta tese, captulo especfico acerca da Associao de Mes e Familiares de Vtimas de Violncia do Esprito Santo AMAFAVV, um dos pontos de partida para a pesquisa com todos os familiares entrevistados. A AMAFAVV no o objeto da pesquisa, mas o ponto onde se bifurcam e se estabelecem relaes de foras que foram o cerne deste doutorado.

  • referido Instituto, porm, a famlia nunca o encontrou. Hoje, a histria de vida e morte dele figura junto a um amontoado de papis aparentemente esquecidos nas prateleiras da Diviso de Homicdios e Proteo a Pessoa - DHPP, em Vitria.

    Mais de 17 mil assassinatos, alguns ocorridos h quase uma dcada, continuam sem soluo no Esprito Santo. Os nmeros so parte de um levantamento realizado pela Associao de Mes e Familiares de Vtimas de Violncia do Esprito Santo AMAFAVV em 2011. E muito provvel que esses nmeros sejam maiores, j que todo dia novos casos aparecem.

    Se voc me perguntar o que aconteceu de verdade com ele, quais foram seus ltimos passos, eu no sei responder. Conheo pedaos de uma histria que no me deram o direito de conhecer; cinco anos aps o desaparecimento dele ningum ainda sabe dizer onde est o corpo dele. E quem pensa que eu vou desistir est enganado, jamais vou desistir de encontrar ele, mesmo morto. (Sra. Irene, me de E.C.R.,22 anos, assassinato de grande repercusso no ES devido ao desaparecimento do corpo).

    Nossa tentativa de levantar, atravs da narrativa desses familiares, os aspectos histricos, polticos e sociais que permitiram a emergncia das lutas coletivas destes familiares, como tambm do entendimento de como esta construo se articula, em alguns momentos, com questes como a homogeneizao, o esquadrinhamento e, principalmente, o extermnio dos denominados sujeitos de risco. Percebemos que estas narrativas apontam para a forma como os modelos de pobreza e periculosidade foram forjados, enlaados e aprisionados historicamente, a partir de uma lgica de discriminao que segrega, exclui e extermina o considerado diferente.

    Narraes que lutam contra as foras do esquecimento...Com o passar do tempo, dos momentos, das histrias, conheci muitas coisas, pessoas e espaos. Entre tantos fatos, histrias de vidas, muitos relatos: famlias pobres e numerosas, vidas humildes, pouca instruo escolar; mal liam e escreviam, conhecimento de quem no soube direito o que era a escola formal, mas soube o que era a vida. Nessas famlias, muita gente nasceu, alguns sobreviveram, muitos tambm morreram; alguns pela desnutrio, muitos pela violncia; alguns vingaram! Por cerca de cinco anos, vinculada a projetos das Prefeituras dos municpios da Serra e de

  • Vitria, no Esprito Santo, pude acompanhar de perto a histria de algumas destas famlias.

    Foram fragmentos de histrias com os quais estive implicada18. Como proposta para esta tese busco oferecer ao leitor estas histrias contadas e recontadas por estes familiares, sem a inteno de afirm-las enquanto verdadeiras ou falsas, muito menos revel-las, visto que nada h para ser revelado. Como o catador de detritos ou sucata, me proponho a revirar esses sacos escondidos pelo Estado, colher os cacos destas histrias. Busco apanhar tudo aquilo que deixado de lado como algo que no tem significao, algo que parece no ter nem importncia nem sentido, algo com que a histria oficial no sabe o que fazer (GAGNEBIN, 2006, p. 54).

    No buscamos o que muitos podem denominar justia. No buscamos ou reivindicamos direitos ou novas e pesadas penas, muito menos se trava aqui uma cruzada pelo fim da impunidade, atravs da judicializao de toda e qualquer ao humana. Nosso intuito narrar histrias, produzir ranhuras onde antes o reto e o previsvel engessavam e transformavam foras ativas em ressentimento e sentimentos de vingana.

    A problemtica sobre a qual me proponho debruar, diz respeito histria de algumas personagens. Quando nos referimos a um grupo de familiares que perderam seus filhos, netos, sobrinhos assassinados, falamos de pessoas que se reposicionaram no mundo a partir de um acontecimento violento, visto que o assassinato de um familiar no se restringe a uma pessoa afetada; os integrantes dos grupos de extermnio que agem na atualidade no estado no atiram somente nos diretamente atingidos, mas tambm afetam gravemente a vida de quem fica.

    18

    O conceito de implicao aponta para um modo particular de conhecimento relacionado com maneiras especficas de ser e estar no mundo. Portanto, quando falamos em implicao estamos nos referindo aos vnculos (afetivos, profissionais, polticos,...) com todo o sistema institucional. Entendemos como ferramenta fundamental em nosso percurso de pesquisa a anlise de implicaes. A ferramenta anlise de implicaes supe, entre outras, as anlises transferenciais daqueles que fazem parte da interveno, a anlise de todos os atravessamentos ali presentes (sexo, idade, raa, posio socioeconmica, crenas, formao profissional, entre outros) e a anlise das produes socioculturais, polticas e econmicas que atravessam esse mesmo estabelecimento e que tambm constituem os sujeitos que dele participam. (COIMBRA; NASCIMENTO, 2007, p. 29)

  • Talvez seja uma tristeza que no passe mais, pois perder um filho como perder um pedao da gente. Mas quando Deus leva, no temos a quem recorrer para traz-los de volta. S nos resta se acostumar ou lutar por justia, mesmo que esta justia no possa traz-lo de volta... (Ana Maria, me de J, 19 anos. 07.01.2009).

    Propomo-nos a, no decorrer desta pesquisa, trazer para o centro alguns fragmentos da histria daqueles que ficaram gravemente feridos com a perda de seus familiares; guerrilheiros do contemporneo, as mes e os familiares atingidos pela violncia no Esprito Santo trazem consigo lembranas que nos remetem a toda a histria de nosso pas e a um passado no muito remoto, onde os opositores da ordem eram outros, mas igualmente exterminados: o perodo da ditadura.

    Conexes visveis ou supostamente camufladas, lembradas ou esquecidas, podem ser constitudas entre a atuao dos familiares dos atingidos pela ditadura de ontem e os familiares dos atingidos pela violncia policial de hoje, e presente em toda a nossa histria. No caso especfico dos familiares de pessoas afetadas pela violncia, vrias imagens integram estes dois momentos: a priso, a tortura, a morte e o desaparecimento de corpos.

    Justia? No existe justia no Esprito Santo! Com dinheiro aqui voc pode comprar tudo, de juzes at habeas corpus. Ns queremos que as pessoas percebam isso, que no apoiando chacinas e grupos de extermnio que resolvero o problema da violncia, porque ela passa por pessoas grandes aqui do Estado. Ns queremos que nossos filhos mortos sejam vistos como seres humanos e no como lixo, no como marginais mortos em confronto. Queremos os corpos dos desaparecidos em rebelies nos presdios capixabas, que nunca nos foram entregues, queremos exames de DNA em corpos encontrados em covas rasas em locais de desova desses mesmos grupos de extermnio formados por policiais... (Maria das Graas Nacourt, me de Pedro Nacourt e Presidente da AMAFAVV) Desaparecimento de corpos: como se em um instante de imobilizao de um filme opaco pelo tempo, uma cena, visualizssemos a Nova Doutrina de Segurana Nacional, onde o inimigo interno no mais representado pelos militantes polticos das dcadas de 1960 e 1970, mas pelos incmodos miserveis que perambulam pelas ruas da cidade, os flanelinhas usurpadores, os ladres de supermercado, os ladres de vidas. Miserveis em sua existncia expem nossa almejada segurana, e devem desaparecer, evaporar, e porque no morrer?! Afinal, constri-se sua periculosidade miservel atravs da sua criminalizao. Aplaudimos o

  • silenciamento destas vidas perigosas e tentamos eliminar, ainda em vida, a potncia de obstinao de seus familiares. Segundo Batista (2003, p. 21) no Brasil, a difuso do medo do caos e da desordem tem sempre servido para detonar estratgias de neutralizao e disciplinamento planejado das massas empobrecidas.

    Trazemos para nossa proposta de estudo essa experincia repleta de significados, que tem chamado ateno de amplos segmentos da populao: os movimentos de mes e familiares contra a atuao violenta da polcia e contra a existncia de grupos de extermnio, em sua maioria formada por policiais militares.

    Grupos de extermnio: iminente perigo social, pois a pobreza perigosa precisa ser disciplinada, normatizada, regulada. Para estes destinam-se os territrios dos pobres (COIMBRA, 2001), onde a misria extrema se faz enquanto realidade cotidiana, e onde o extermnio assume o lugar das polticas pblicas. Com argumentaes higienistas de limpeza da cidade e manuteno da segurana dos cidados de bem fazem emergir, nos anos anteriores ao perodo da ditadura, os grupos de extermnio.

    Embora se apresentem mais fortes e organizados pelo prprio Estado no perodo da ditadura, importante salientar que desde 1958 j havia se organizado no Rio de Janeiro o que ficaria conhecido nos anos de 1960 e 1970 como o Esquadro da Morte (COIMBRA, 2001, p.127). Ele era ento comandado pelo detetive Mariel Morysctte de Mattos, um dos chamados Homens de Ouro da Polcia Carioca. Na dcada de 1960, o Rio de Janeiro vivia um momento em que, alguns segmentos da sociedade carioca solicitavam providncias imediatas relativas questo do crescimento da criminalidade, em especial os casos ligados a assaltos a taxistas, homicdios e invases a lojas e centros comerciais. Naquele momento, o chefe de Polcia do Distrito Federal, general Amauri Kruel, ento com poderes que equivaliam aos de ministro, ordenou a criao imediata de uma organizao de combate aos marginais, conhecida como Servio de Diligncias Especiais - SDE. O rgo teria ento o aval para caar estes criminosos onde quer que eles estivessem. Na prtica, os policiais ganharam autonomia para investigar, julgar e condenar os supostos criminosos. Em outras palavras, a polcia instaurou a pena de morte no estado do Rio. A medida ganhou aval de polticos, comerciantes e de alguns setores da populao, alm de grande parte da imprensa. Logo aps a criao do SDE, o

  • Secretrio de Segurana, Coronel Luis Frana, escolheu doze policiais da sua fora de elite para definitivamente "limpar" a cidade. O grupo ficou conhecido como "Os Homens de Ouro". Mais da metade desses homens vinha da temida Polcia Especial, criada por Getlio Vargas, durante o Estado Novo, e ficaram conhecidos como Esquadro da Morte.

    Composto por membros do poder judicirio, policiais civis e militares, assim como renomados polticos, o Esquadro tinha como principal objetivo eliminar supostos criminosos. Um dos principais expoentes destes grupos de extermnio foi, e acreditamos ainda ser, a Scuderie Detetive Le Cocq, sociedade civil sem fins lucrativos criada no Esprito Santo mediante registro civil em 24/10/1984, com finalidade social para bem servir a coletividade atravs do aperfeioamento moral, intelectual e profissional de seus membros (ZANOTELLI, 2002, p.117).

    (...) uma organizao ultra-conservadora de direita, que se destinava em princpio ao assassinato de supostos delinqentes, mas que, ao fim, sob a capa de impunidade, no se furtou a praticar os mais hediondos crimes. uma associao que congrega, sobretudo, policiais civis e militares, aos quais vm se agregar membros do Ministrio Pblico, do Poder Judicirio e outras autoridades pblicas, alm de indivduos da sociedade civil. Ela mostrou ser um sindicato do crime bem estruturado, contando com diversos departamentos, tribunais de justia internos, procuradorias, etc, tentando reproduzir, internamente, o aparelho estatal (ZANOTELLI, 2002, p. 119).

    No Esprito Santo, em face de diversas denncias apresentadas contra a mesma, foi solicitada sua dissoluo em 20/11/1995, porm existem fortes indcios da continuidade de suas aes, fato que ser melhor trabalhado no captulo relativo a atuao dos grupos de extermnio no referido estado.

    Com a dissoluo no papel da Scuderie Detetive Le Cocq o crime organizado ganhou fora a fora da invisibilidade!! Antes seus membros eram reconhecidos pelos smbolos que ostentavam, pelo poder arbitrrio que exerciam ao expor a caveira com duas tbias. Hoje esse poder invisvel, no tem corpo nem rosto definido. Voc pode ser da Scuderie!!. (Maria das Graas Nacourt, me de Pedro Nacourt e Presidente da AMAFAVV)

    O que se coloca na atualidade que se estabelece, ento, uma disputa entre estes grupos - o chamado crime organizado - e o Estado. Desconfiamos, porm, de uma estreita ligao entre o Estado e o que se chama por crime organizado.

  • Desconfiamos da afirmao desta entidade crime organizado como um poder paralelo. Acreditamos ser somente um arcabouo de poder e de Estado que articula a violncia enquanto mecanismo de dominao e perpetuao do poder.

    Pensando o conceito de crime organizado Batista (2008) afirma que este um paradigma j desconstrudo pela criminologia crtica. uma categorizao frustrada. Em nome de uma poltica criminal a prpria vida suprimida. Supostamente para garantir a paz; e em nome dessa paz se constri esta entidade chamada crime organizado.

    A poltica criminal consiste em um discurso legitimante do poder punitivo, e no pode escapar a sua tenso interna na medida em que construda enquanto valorao geral do modo de encarar a conflitividade criminalizada a partir do poder, e, portanto, de exercer o poder punitivo. Logo, no se limita ao campo legislativo, remete ao campo judicial e penitencirio (ZAFFARONI, 2003, p. 274-275).

    A falsa afirmao de que o crime tem uma forma singular, caracterstica e incomum, e que ningum mais estabelece controle sobre ele a guerra civil - no nos atende em nossas anlises. No partimos de um pressuposto de que essa entidade chamada de crime organizado atue conforme a cabea de chefes da quadrilha, assassinos vorazes, impiedosos, articuladores e organizadores de uma ampla rede de trfico de entorpecentes, seqestros relmpagos, entre outros.

    No partilhamos da idia de que existe uma sociabilidade prpria do crime. A sociabilidade do crime a sociabilidade do Estado e do capital. So interesses econmicos e polticos que esto gerando esse acordo, embora este mesmo Estado fortalea as teorias de uma natureza criminosa e perversa. A temtica crime organizado ser melhor desenvolvida no terceiro captulo dessa tese, onde apontamos algumas anlises acerca dos fantasmas que so construdos a partir dessa demanda.

    A teoria de uma natureza criminosa e perversa que o conceito de crime organizado refora, amplamente disseminada, especialmente atravs do uso miditico de acontecimentos que visam aterrorizar e infundir o pnico, para imediato aproveitamento poltico pelas diferentes esferas pblicas.

  • Invariavelmente via nas matrias de jornais a afirmao de uma natureza criminosa em todos aqueles meninos mortos em confronto. Os veculos de comunicao se dedicavam a toda uma construo do perfil daqueles criminosos...possivelmente en