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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO MESTRADO EM EDUCAÇÃO MARIA NAZARETH BIS PIROLA TELEVISÃO, CRIANÇA E EDUCAÇÃO: AS ESTRATÉGIAS ENUNCIATIVAS DE DESENHOS ANIMADOS VITÓRIA 2006

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

MESTRADO EM EDUCAÇÃO

MARIA NAZARETH BIS PIROLA

TELEVISÃO, CRIANÇA E EDUCAÇÃO:

AS ESTRATÉGIAS ENUNCIATIVAS DE DESENHOS ANIMADOS

VITÓRIA

2006

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MARIA NAZARETH BIS PIROLA

TELEVISÃO, CRIANÇA E EDUCAÇÃO:

AS ESTRATÉGIAS ENUNCIATIVAS DE DESENHOS ANIMADOS

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação do Centro Pedagógico da Universidade Federal do Espírito Santo, linha Educação e Linguagem, como requisito parcial para obtenção do Grau de Mestre em Educação. Orientador: Profª Drª Moema Martins Rebouças.

VITÓRIA

2006

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MARIA NAZARETH BIS PIROLA

TELEVISÃO, CRIANÇA E EDUCAÇÃO: AS ESTRATÉGIAS ENUNCIATIVAS DE DESENHOS ANIMADOS

COMISSÃO EXAMINADORA

_______________________________________ Profª Drª Moema Martins Rebouças Orientadora _______________________________________ Profª Drª Cláudia Maria Mendes Gontijo _______________________________________ Prof.Dr. Alexandre Curtiss ________________________________________ Profª Drª Ana Sílvia Davi Médola

Vitória, 01 de dezembro de 2006

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Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP)

(Biblioteca Central da Universidade Federal do Espírito Santo, ES, Brasil)

Pirola, Maria Nazareth Bis, 1970-

P671t Televisão, criança e educação : as estratégias enunciativas de

desenhos animados / Maria Nazareth Bis Pirola. – 2006.

220 f. : il.

Orientadora: Moema Martins Rebouças.

Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Espírito Santo,

Centro de Educação.

1. Mídia (Publicidade). 2. Crianças. 3. Educação. 4. Semiótica. 5.

Desenho animado. I. Rebouças, Moema Martins. II. Universidade Federal

do Espírito Santo. Centro de Educação. III. Título.

CDU: 37

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Aos meus pais Francisco e Alina, que me deram a vida, o amor, a cultura. Que me mostraram o caminho da ética pessoal e profissional. Por acreditarem em mim, por estarem sempre ao meu lado, me apoiando em minhas decisões.

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AGRADECIMENTOS

A André Luiz Bis Pirola, por ter me incentivado a fazer o mestrado; por ter me

acompanhado desde o dia em que decidi o tema de minha dissertação; por

estar ao meu lado nos momentos cruciais do desenvolvimento da pesquisa;

pelo apoio técnico.

A Mario Gallerani pelo companheirismo e incentivo.

A Moema Martins Rebouças, minha orientadora, por ter acreditado em mim e

no tema, por ter aberto as portas de importantes oportunidades profissionais,

pelo incentivo, pelo astral positivo, alegre. Pela amizade.

A Cláudia Maria Mendes Gontijo, pela forma como conduziu suas aulas,

ajudando-nos a esclarecer conceitos importantes sobre educação e linguagem.

Pelo exemplo de amor e dedicação à pesquisa. Pelo carinho e atenção.

A Alexandre Curtiss e Ana Sílvia Davi Médola, pelas contribuições que deram

no desenvolvimento desse trabalho.

Aos amigos Everaldo Simões e Sandro Nandolpho, por estarem ao meu lado,

nos momentos bons e também críticos. Pela sincera amizade que construímos.

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“É por meio dos outros que nos convertemos em nós mesmos”.

(Vigotski)

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RESUMO

Trata da temática “Televisão-Criança-Educação”, uma problemática que se

arrasta desde a introdução da televisão no cenário brasileiro. Relata que nos

últimos 10 anos, a sociedade tem discutido a relação Mídia e Educação. Mostra

que, a televisão, devido aos impactos gerados por seu espetáculo visual e sua

abrangência geográfica, tem sido o principal alvo das discussões. Propõe que

educadores busquem instrumentos para análise do texto audiovisual

contribuindo para a formação de sujeitos mais autônomos perante aos efeitos

de sentido recebidos pela mídia. Adota como pressuposto teórico metodológico

a semiótica discursiva ou greimasiana. Explica a teoria e seus principais

fundamentos, teoria essa que diz como os textos produzem sentido a partir da

análise dos procedimentos que o estruturam e que o tecem como um todo de

sentido. Tem como objetivo contribuir no âmbito educacional, para a análise

crítica de programas televisivos direcionados ao público infantil. Realiza

pesquisa qualitativa a partir do corpus escolhido: as vinhetas de abertura de

desenhos animados. Adota como critério de escolha programas direcionados

ao público infantil, que veiculam na televisão Globo, devido sua abrangência

geográfica, com representatividade na audiência junto ao público infantil, na

técnica desenho animado e com plásticas diferentes. São eles Três Espiãs

Demais, Homem Aranha, Shaman King. Acredita ter contribuído com os

estudos sobre televisão, criança e educação por focar as atenções da pesquisa

na plasticidade do texto e por ter mostrado caminhos de leitura do texto

audiovisual. Ressalta que os produtos da mídia estão se tornando cada vez

mais populares e poderosos, e por isso, é preciso que se desenvolva métodos

capazes de promover sua pedagogia. Espera que, ao dar os primeiros passos,

tenha contribuído para a leitura e para o desvelamento dos mecanismos dessa

grande tela de sentidos - a televisão.

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ABSTRACT

This paper deals with television-child-education, a problem that has

been going on since the introduction of the television in the Brazilian

scenery . It points out that during the last ten years, the society has

discussed the relation between media and education. It argues that

television, due to the impact on viewing as well as its geographical

coverage, has been the main target of discussions. It also suggests that

educators find tools in order to analyze audiovisual texts contributing

to the formation of more independent citizens in relation to the effect

on senses understood by the media. It is carried out in terms of

discursive semiotics or greimasian theory which describes how texts make

sense from the analysis of the procedures that structure them and make

them as a whole sense. It aims to contribute to the educational scope

for a critical analysis of television programs aimed at children . It is

qualitative research done from chosen corpus: the opening vignettes

about cartoons. Three programs , broadcast at Globo channel (children´s

audience is highly representative), were chosen due to its geographical

coverage, animated cartoons techniques and different productions:

Three Spies Excessively, Spider Man and Shaman King. It is believed that a

contribution to the studies about television, child, education has been

made as this research focuses on texts development and ways of reading

audiovisual texts/./ It also suggests that the media products are

becoming more popular and powerful, that´s why, it is necessary to

develop methods which may promote its pedagogy. It is hoped that the

first steps have contributed to reading and the unveiling mechanisms

underlying this fantastic screen – television.

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LISTA DE FIGURAS

CAP.1 – APRESENTAÇÃO

Figura 1 – Logomarca TV Globinho........................................................... 20

Figura 2 – Geovana Tominaga................................................................... 20

Figura 3 – Logomarca TV Xuxa.................................................................. 21

Figura 4 – Xuxa.......................................................................................... 21

CAP. 4- SUB-ÍTEM 4.1 – O DESENHO AS TRÊS ESPIÃS DEMAIS

Figura 1: Três Espiãs Demais..................................................................... 87

Figura 2: Corpos (a).................................................................................... 94

Figura 3: Corpos (b).................................................................................... 95

Figura 4: Exageros...................................................................................... 96

Figura 5: Transformação............................................................................. 96

Figura 6: Bens de Consumo........................................................................ 97

Figura 7: Apresentações............................................................................. 98

Figura 8: Estados de Alma.......................................................................... 98

Figura 9: Angulosidades.............................................................................. 99

Figura 10: Planos de Expressão................................................................. 100

Figura 11: Planos de Ambiente Geral......................................................... 100

Figura 12: Planos de Detalhe...................................................................... 101

Figura 13: Superposição de Planos............................................................ 101

Figura 14: Florzinha..................................................................................... 102

Figura 15: Mochila....................................................................................... 110

Figura 16: DVD............................................................................................ 110

Figura 17: Roupas....................................................................................... 110

Figura 18: Brinquedos................................................................................. 110

CAP. 4- SUB-ÍTEM 4.2- O DESENHO HOMEM ARANHA

Figura 1: Personagens Principais................................................................ 113

Figura 2: Cores............................................................................................ 123

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Figura 3: Cidade Escura.............................................................................. 124

Figura 4: Cidade.......................................................................................... 128

Figura 5: Olhares......................................................................................... 129

Figura 6: Soco............................................................................................. 131

Figura 7: Apresentações............................................................................. 132

Figura 8: Peter Levantando a Cabeça......................................................... 133

Figura 9: Homem Aranha Tirando a Máscara............................................. 134

Figura 10: Homem Aranha Apontando........................................................ 134

Figura 11: Expressão Rosto Peter.............................................................. 135

CAP. 4- SUB-ÍTEM 4.3- O DESENHO SHAMAN KING

Figura 1: Yoh, Manta, Anna e Amidamaru.................................................. 142

Figura 2: Transformações........................................................................... 159

Figura 3: Yoh de Braços Abertos................................................................ 159

Figura 4: Amidamaru................................................................................... 159

Figura 5: Anna............................................................................................. 160

Figura 6: Androgenia................................................................................... 161

Figura 7: Yoh Gritando................................................................................ 161

Figura 8: Espada e Cabelo Pontiagudo....................................................... 162

Figura 9:Yoh Levantando a Cabeça............................................................ 162

Figura 10: Cenário de Paz e Tranqüilidade................................................. 163

Figura 11: Triangularizações....................................................................... 165

Figura 12: logomarca Shaman King............................................................ 166

Figura 13: Logomarca- Figurativização do Sol............................................ 169

Figura 14: Cores Yoh.................................................................................. 169

Figura 15: Cores Amidamaru...................................................................... 170

Figura 16: Cores Anna-Manta..................................................................... 171

Figura 17: Vilão Hão.................................................................................... 172

Figura 18: Todos Integrantes...................................................................... 173

Figura 19: Todos Integrantes 2................................................................... 174

Figura 20: Todos Integrantes 3................................................................... 174

Figura 21: Todos Integrantes 4................................................................... 174

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Figura 22: Todos Integrantes 5................................................................... 174

CAP. 5 - VARIÂNCIAS E INVARIÂNCIAS

Figura 1: Clover, Peter, Yoh........................................................................ 179

Figura 2: Mudança....................................................................................... 180

Figura 3: Plástica Japonesa........................................................................ 181

Figura 4: Apresentação dos Personagens.................................................. 182

Figura 5: Sobreposição de Planos.............................................................. 182

Figura 6: Fada do Campo............................................................................ 189

Figura 7: Comparação................................................................................. 190

Figura 8: Califórnia Girl................................................................................ 190

Figura 9: Comparação 2.............................................................................. 190

Figura 10: Miami.......................................................................................... 190

LISTA DE QUADROS

3 SOBRE A TELEVISÃO

Quadro 1: Tipos de Interação...................................................................... 56

Quadro 2: Definição de Gêneros................................................................. 58

Quadro 3: Relações Programas e Gêneros................................................ 62

CAP. 4- SUB-ÍTEM 4.3- O DESENHO SHAMAN KING

Quadro 1: Descrição das Seqüências......................................................... 142

Quadro 2: Frases - Verbos – Substantivos................................................. 148

Quadro 3: Descrição Seqüências – Letra música- Figuras......................... 152

Quadro 4: Figuras........................................................................................ 157

Quadro 5: Homologação Formantes Plásticos............................................ 168

Quadro 6: Homologação de Cores e Espaços............................................ 173

Quadro 7: Homologação Topologia-Figuras-Cores-Efeitos de Sentido...... 176

5 VARIÂNCIAS E INVARIÂNCIAS

Quadro 1: Objetos Modais dos Heróis........................................................ 181

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SUMÁRIO

1 APRESENTAÇÃO................................................................................. 14

1.1 MODOS DE SER E ESTAR NO MUNDO........................................... 14

1.2. APRESENTAÇÃO DO PROJETO DE PESQUISA............................ 15

2 PRESSUPOSTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS DA SEMIÓTICA

DISCURSIVA............................................................................................

25

2.1 A PESQUISA EM CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAS......................... 25

2.2 CONCEITOS FUNDANTES DA TEORIA SEMIÓTICA

DISCURSIVA.............................................................................................

27

2.2.1 Conceituação Geral....................................................................... 27

2.2.2 A dicotomia Enunciado/Enunciação............................................ 31

2.2.3 A dicotomia linguagem-objeto / metalinguagem........................ 38

2.2.4 Enunciação e Fazer Discursivo.................................................... 39

2.3 CONCEITOS ESPECÍFICOS.............................................................. 40

2.3.1 Linguagem/Discurso/Fala.............................................................. 40

2.3.2 Sintaxe Discursiva......................................................................... 42

2.3.3 Semântica Discursiva.................................................................... 42

2.3.4 Ato comunicativo........................................................................... 42

2.3.5 Ato discursivo................................................................................. 43

2.3.6 Enunciação/Enunciado/Enunciador/Enunciatário...................... 43

2.3.7 Actantes.......................................................................................... 43

2.3.8 Temas e Figuras............................................................................. 44

2.3.9 Texto/Contexto............................................................................... 44

3 SOBRE A TELEVISÃO.......................................................................... 45

3.1 COMUNICAÇÃO E TELEVISÃO......................................................... 45

3.2 AS CARACTERÍSTICAS DA MÍDIA TELEVISÃO............................... 52

3.3 A QUESTÃO DOS GÊNEROS NA TELEVISÃO................................. 58

3.4 AS CARACTERÍSTICAS DO DESENHO ANIMADO.......................... 64

3.5 TELEVISÃO E EDUCAÇÃO................................................................ 69

4 DAS ANÁLISES..................................................................................... 85

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4.1 O DESENHO TRÊS ESPIÃS DEMAIS............................................... 87

4.1.1 O PROGRAMA E AS PERSONAGENS........................................... 87

4.1.2 A RELAÇÃO ENTRE OS NÍVEIS DISCURSIVO E NARRATIVO.... 87

4.1.3 A SINTAXE DISCURSIVA................................................................ 89

4.1.4 A SEMÂNTICA DISCURSIVA.......................................................... 89

4.1.5 O DISCURSO DO DESENHO.......................................................... 103

4.1.6 RELAÇÃO TEXTO/CONTEXTO...................................................... 110

4.2 O DESENHO HOMEM ARANHA........................................................ 113

4.2.1. O PROGRAMA E OS PERSONAGENS......................................... 113

4.2.2. ANÁLISE DA VINHETA DO DESENHO.......................................... 115

4.2.2.1 O procedimento de descrição.................................................... 115

4.2.2.2 A descrição da vinheta de abertura do programa.................... 116

4.2.2.3 Análise da sintaxe discursiva.................................................... 121

4.2.2.4. Análise da semântica discursiva.............................................. 123

4.2.2.5 Relação Texto-Contexto............................................................. 138

4.3 ANÁLISE DO DESENHO SHAMAN KING......................................... 141

4.3.1 O PROGRAMA E OS PERSONAGENS.......................................... 141

4.3.2 ANÁLISE DA VINHETA DO DESENHO.......................................... 142

4.3.2.1 A descrição das cenas da vinheta de abertura do programa. 142

4.3.2.2 Análise da sintaxe discursiva.................................................... 145

4.3.2.3 Análise da semântica discursiva............................................... 145

4.3.2.4 Relação texto/contexto............................................................... 177

5 VARIÂNCIAS E INVARIÂNCIAS........................................................... 179

5.1 AS REITERAÇÕES: Três plásticas, um único discurso...................... 179

5.2 CONTRATOS DE VERIDICÇÃO: As marcas deixadas pela

enunciação................................................................................................

183

5.3 DESENHOS ANIMADOS E BENS CULTURAIS: Das expressões ao

consumo....................................................................................................

188

6 CONSIDERAÇOES FINAIS................................................................... 194

7 REFERÊNCIAS...................................................................................... 204

ANEXOS................................................................................................... 208

ANEXO A - A escola não parece ter futuro sem a televisão..................... 209

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ANEXO B - A criança na idade mídia: desafios para formação educador 210

ANEXO C - Audiência infantil em questão................................................ 211

ANEXO D - As crianças e os programas de TV........................................ 212

ANEXO E - Brasileiro consome 18,4h de TV por semana........................ 213

ANEXO F - Conar estabelece novas regras para propaganda infantil...... 215

ANEXO G - Fiscalização já: a ditadura da televisão................................ 216

ANEXO H - Mec: TV principal fonte informação para 90% dos

professores...............................................................................................

217

ANEXO I - Por que as crianças assistem desenhos animados................ 218

ANEXO J - Reflexões sobre crianças e o horário nobre na TV................ 220

ANEXO L - 5ª cúpula mundial de mídia para crianças e adolescentes..... 222

ANEXO M - Televisão e criança: por uma leitura crítica e reflexiva da

mensagem audiovisual..............................................................................

223

ANEXO N - Superligados na TV............................................................... 225

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14

APRESENTAÇÃO

1.1 MODOS DE SER E ESTAR NO MUNDO

Neste espaço, relataremos introdutoriamente um pouco da nossa trajetória de

pesquisa, como também alguns pontos que consideramos importantes para

reflexão de um pesquisador. Com o intuito de contribuir principalmente com

aqueles pesquisadores que, como nós, estão vivenciando suas primeiras

experiências de investigação científica, compartilharemos um pouco as nossas

dúvidas, certezas, angústias e felicidades, emoções essas vividas ao longo da

elaboração dessa pesquisa.

À medida em que tirávamos o véu que recobria nosso objeto de análise,

descobrimos que, se fazer pesquisa é estar aberto para descobertas, é

também sair da “zona de conforto”. Ao mesmo tempo em que questionávamos

sobre o objeto, conhecíamos mais sobre nós mesmos. Desde que começamos,

sentimos mais dificuldades em seguir teorias e métodos de análise sem

entendê-los em suas origens. Por isso, voltamos às fontes, pesquisamos sobre

as visões de mundo de nossos autores e sobre as teorias que fundamentavam

as metodologias de análise. Entendendo a gênese, e não apenas os

fragmentos, encarando os “fazeres” não como uma obrigação, mas como

paixão, começamos a delinear nossas questões de investigação.

Para isso, tivemos que mudar também nossa relação e entendimento com o

fator “tempo”. Percebemos que, mais importante do que termos todas as

respostas que gostaríamos ou precisávamos ter, era preciso exercitar uma

postura que sublimasse um pouco o “senhor do relógio”, o tempo Chronos, e

nos entregar mais ao tempo Kairós, “o tempo da experiência, da vivência e da

paixão”.

Agindo assim, numa deliciosa “infância” da pesquisa, antes de formalizar

nossas questões de investigação, respondemos para nossa consciência, duas

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15

questões preliminares que clamavam por respostas: Por que queremos

pesquisar? Em quais visões de mundo acreditamos?

Foi tentando responder primeiramente a essas duas questões, que elaboramos

a presente Dissertação ‘Televisão, Criança e Educação: as estratégias

enunciativas de desenhos animados’, numa postura que fluiu primeiro do

olhar filosófico, passou por um olhar técnico e retornou a um contexto em que

ambos os olhares convergiram para um todo de sentido.

1.2. APRESENTAÇÃO DO PROJETO DE PESQUISA

A tríade temática ‘Mídia-Criança-Educação’ representa uma problemática que

se arrasta desde a introdução da TV no cenário brasileiro, e nos últimos dez

anos, educadores, pais, psicólogos, empresários da comunicação, publicitários

e sociedade em geral, vêm se dedicando a sua discussão. A televisão, devido

aos impactos gerados por sua abrangência geográfica1, é o principal alvo das

discussões, onde os diversos atores ocupam lugares e interesses divergentes.

Os pais, por um lado, depositam suas expectativas de programas adequados e

de qualidade nas emissoras de TV, por não saberem como lidar com os filhos

diante da realidade televisiva, por estarem cada vez mais distantes devido ao

trabalho, enquanto os filhos desenvolvem linguagens e estruturas

interpretativas próprias do simulacro midiático. Por outro lado, os meios de

comunicação, na busca incessante de melhores índices de audiência, nem

sempre veiculam produções de qualidade, e ainda defendem-se daqueles que

denunciam a TV como violenta ou de baixa qualidade, dizendo que “só

reproduzem a realidade”. Com interesses próprios de uma empresa privada, os

meios de comunicação visam principalmente ao lucro. Suas programações e

produção de conteúdos são ditadas pelos índices de audiência, e não,

1 Segundo dados do IBOPE Monitor, 98% dos lares brasileiros possuem pelo menos um aparelho de televisão.

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16

necessariamente, pela demanda de qualidade porventura exigida pelos pais.

Os anunciantes, por sua vez, preferem investir suas verbas de publicidade em

programas cujos índices de audiência sejam elevados, ou seja, onde um

número significativo de telespectadores potenciais possa assistir a seus

comerciais, assimilar suas marcas e, conseqüentemente, comprar seus

produtos e serviços.

Bem no centro desse “cabo de guerra”, encontram-se as crianças ─ cada vez

mais, vorazes consumidoras de mídia, campeãs em assistir TV ─ que nutrem

verdadeiro fascínio pela linguagem televisiva, provavelmente as que mais vêem

televisão no mundo, conforme constatam pesquisas recentes2 em torno da

temática central desta Dissertação.

Uma pesquisa feita pelo instituto de pesquisa IPSOS, relatou que os pais dizem

que seus filhos assistem a, no mínimo, 3 horas de televisão por dia. Já o

IBOPE (Instituto Brasileiro de Opinião Pública), revelou que em setembro/2004

telespectadores de 4 a 17 anos passaram, em média, 4 horas e 25 minutos,

por dia, com a TV ligada.

Ao nos aprofundar no tema central de nossa pesquisa, a partir de nossa

revisão de literatura, e com o assíduo acompanhamento das iniciativas que

estão sendo realizadas sobre tal problemática, constatamos que:

• A maioria das pesquisas feitas sobre mídia e criança, versa sobre ótica da

recepção;

• A maioria delas apresenta análise predominantemente descritiva do

discurso midiático;

• Há, também, uma forte predominância das análises do plano de conteúdo

em detrimento do plano de expressão.

2 Superligados na TV. Folha de São Paulo, São Paulo, p.E1,17 out.2004.

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17

Para provar nossas afirmações, resgatamos questionamentos que, em geral,

procuram responder se as mídias, principalmente a televisão, fazem mal às

crianças.

A esse respeito temos os seguintes registros3 :

• Muito se tem investigado sobre o tema, mas, em geral, não se chega a uma

conclusão, pois as pesquisas generalizam as mídias (TV, rádio, jornal,

revistas em quadrinhos, etc.);

• Outra questão que se coloca é o conceito de “fazer mal” e de “fazer bem”;

• Muitos valores e pré-noções estão envolvidos nas investigações;

• Também verificamos a discussão do conceito de passividade/ alienação dos

indivíduos em relação às mídias e a relação desta com a realidade e seu

processo de socialização;

• Outro ponto a ser registrado é a comprovação de aspectos quantitativos das

horas diárias que a criança tem dispensado à TV (em média 3-5 horas por

dia) tornando-se o meio mais freqüentado pelo público infantil; 98% dos

lares brasileiros possuem pelo menos um aparelho de televisão; a

companhia dos membros da família passa a ser substituída pela companhia

da TV;

• Pais, professores, psicólogos e sociedade acham que os conteúdos da TV

não são adequados ao público infantil (eles vêem de tudo, programas infantis e

outros destinados aos adultos); acham a maioria dos programas apelativos;

exploram questões como sexo precoce, consumismo exacerbado, etc., o que

indica que, se antes o fenômeno era só estudado em seus aspectos

sociológicos, agora também é de interesse psicológico e pedagógico.

A partir desse cenário, podemos afirmar que o campo de estudos sobre a

temática ‘Mídia – Criança – Educação’ está longe de encontrar alternativas

práticas e teóricas que agradem a todos, tendo em vista os conflitos de

interesses de todas as partes envolvidas.

3 MARSCIANI, Francesco. As mídias fazem mal às crianças? Nexos: Revista de Estudos de Comunicação e Educação, São Paulo, ano 1, n.3, p.65-73,1998.

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Naquilo que cabe a nós, educadores/pesquisadores, acreditamos que não

devemos trilhar caminhos que levem a visões moralistas reverberadas pelo

senso comum. Ao invés de ecoar as velhas problemáticas morais que afirmam

que a TV faz mal às crianças, preferimos deslocar o foco para perguntas que

nos ajudem a entender o que existe na TV para que as crianças assistam tanto

a essa mídia.

Uma das alternativas para análise do objeto em discussão é a possibilidade de

leitura de imagens audiovisuais a partir dos pressupostos teórico-

metodológicos da disciplina semiótica discursiva4, teoria essa que

explicitaremos em capítulo específico.

Entendemos, ainda, que, na análise dos meios de comunicação, os formantes

expressivos e de conteúdo devem ser focados na mesma medida,

principalmente em meios figurativos como a televisão, cujos conteúdos são

apreendidos quase na totalidade a partir da expressão das imagens.

Assim, a presente pesquisa tem como objetivo geral contribuir no âmbito

educacional, para a análise crítica de programas televisivos direcionados

ao público infantil.

Como objetivo específico pretendemos “analisar as estratégias enunciativas de

desenhos animados” procurando responder às seguintes questões de

investigação:

• Como se constrói a plasticidade do texto audiovisual?

• Quais os principais mecanismos geradores de efeitos de sentido dos

programas?

• Como se constrói a interação entre os sujeitos envolvidos no processo de

comunicação/produção de um texto televisivo?

• Quais as estratégias de instauração dos sujeitos envolvidos?

4 O fundador da semiótica discursiva, também chamada greimasiana, foi Algirdas Julien Greimas.

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• Como os sistemas de produção das forças macroambientais (econômicos,

ideológicos, culturais, estéticos, políticos, geográficos e tecnológicos) atuam

nos modos de produção do texto televisivo?

Ao propormos nossas questões de investigação, já deixamos claro que nossa

visão de pesquisa fundamenta-se na relação texto-contexto de produção dos

discursos. Dessa forma, estruturamos nossas investigações por meio de um

quadro dialógico que envolve ainda as seguintes questões:

Contexto Imediato (Micro):

• Quem enuncia (origem do discurso)

• Para quem enuncia (destino)

• O que diz e a razão de dizer o que diz?

• Que elementos discursivos e lingüísticos homologam o fazer-crer do

discurso?

Contexto Mediato (Macro):

• Ambiente político

• Ambiente econômico

• Ambiente sociocultural

• Ambiente tecnológico

Uma vez que nosso objetivo geral é contribuir para uma análise crítica de

programas midiáticos televisivos, optamos pela escolha de programas que em

seus próprios discursos mercadológicos se dizem voltados para o público

infantil. Em seguida, optamos pela rede de televisão aberta que é líder em

audiência no Brasil. Assim, para concretizar nossa pesquisa escolhemos como

objeto de estudo três desenhos animados veiculados nos programas TV

Globinho e TV Xuxa, ambos da emissora Rede Globo de Televisão.

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Figura 1 – Logomarca TV Globinho

O programa TV Globinho, em seu formato original, era exibido de segunda a

sábado, das 09h25min às 11h55min, após o programa ‘Mais Você’

(apresentado por Ana Maria Braga) e antes do ‘ES TV 1ª Edição’(programação

local). A partir de quatro de abril de 2005, a TV Globo fez várias mudanças em

sua grade de programação e em suas produções. No lugar do programa TV

Globinho, entrou o programa TV Xuxa (segunda à sexta, das 09h25min às

11h55min), ficando, então, o programa TV Globinho a ser exibido somente aos

sábados das 09h30min às 11h30min.

Figura 2 – Geovana Tominaga

Apresentado pela jovem Geovana Tominaga, tem levado ao ar, de forma

alternada, os seguintes desenhos: ‘Bob Esponja’, ‘Pica Pau’, ‘Super Mouse’,

‘Três Espiãs Demais’, ‘As Tartarugas Ninja’, ‘X-Man’, ‘Heróis em Resgate’,

‘Homem Aranha’, ‘As aventuras de Jack Chan’, ‘Shamon King’, ‘Pokemon’. A

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atinge 6,2 milhões5 de telespectadores em todo o Brasil.

Figura 3 – Logomarca TV Xuxa

Já o programa TV Xuxa, vai ao ar de segunda à sexta, de 10 às 11:55h.

Figura 4 – Xuxa

Apresentado pela famosa Maria das Graças Meneghel, a Xuxa, o TV Xuxa leva

ao ar os desenhos: ‘Bob Esponja’, ‘Timão e Pumba’, ‘Três Espiãs Demais’,

‘Megaman’ e ‘Power Rangers-Força Animal’. Tem sido visto, em média, por 7

milhões de pessoas em todo o Brasil.

Atualizando os números de ambos os programas para o mercado da Grande

Vitória, temos, segundo o IBOPE, de 12 a 18 de setembro de 2005, que, dos

396.600 domicílios com TV, os dois programas, juntos, falam diariamente para

uma média de 210.000 telespectadores, de ambos os sexos, de 04 a 11 anos,

classe CDE.

Para realizar nossas análises, gravamos os dois programas durante março e

abril/2005. Com o intuito de estudar e manter o equilíbrio entre as diferentes

5 Os dados sobre número de telespectadores da TV Globinho e TV Xuxa podem ser

encontrados no site da Superintendência de Comercialização (SUCOM) da TV Globo.

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plásticas ofertadas ao público infantil, optamos por escolher três tipos bem

diferentes de produção: um desenho com assinatura de produção americana

(Três Espiãs Demais); um que aborda a técnica 3D (Homem Aranha) e outro

com a chamada plástica japonesa (Shaman King). As análises estarão focando

as vinhetas de abertura de cada programa/desenho animado, pois são nelas

que o enunciador faz uma espécie de resumo do desenho animado em que os

principais personagens são mostrados: heróis e vilões; letras das músicas e

sonoridades são expressas; principais espaços e lugares são projetados.

Ao longo da elaboração, pesquisa e redação deste trabalho utilizamos como

fonte de pesquisa livros de semiótica, da área de educação, comunicação,

televisão, mídia e infância, também contribuições de dissertações e teses que

se aproximavam do nosso tema, pesquisas, artigos, oficinas, festivais,

congressos, legislação e assuntos diversos relacionados com universo da

mídia, infância e educação.

Como fonte de atualização diária e semanal, usamos os sites das Ong’s

Midiativa, Multirio e Rio Mídia, considerados centros de referência sobre Mídia

e Infância no Brasil. Esses sites produzem boletins eletrônicos diários e

semanais, que foram enviados para nosso endereço eletrônico de dezembro de

2003 a outubro de 2006. Nesse período, foram mais de 150 boletins, com

média de 900 reportagens sobre as diversas ações do tema mídia e criança.

Dessas, selecionamos mais de 75 artigos como documentos para leitura em

profundidade.

No capítulo 2, apresentamos os pressupostos teórico-metodológicos da teoria

semiótica discursiva. Como abertura, procuramos situar a postura do

pesquisador social a partir das contribuições de Pedro Demo e Mirian

Goldenberg. Trabalhamos, também, os principais conceitos que serviram de

fundamento para a nossa pesquisa, e a explicação dos termos que utilizamos

no capítulo 4 (Das Análises). No capítulo 2, nosso diálogo concentrou-se na

fonte da teoria. Utilizamos o texto “Enunciação”, de Algirdas Julien

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Greimas.Trouxemos, igualmente, os ensinamentos de Jean Marie Floch, Eric

Landowski, José Luiz Fiorin, Diana de Barros e Douglas Kellner.

No capítulo 3, concentramo-nos nas especificidades do texto televisivo.

Selecionar as teorias com as quais iríamos dialogar em relação a temas tão

discutidos e teorizados no mercado editorial como ‘Mídia, Televisão e

Educação’ não foi tarefa fácil tampouco confortável, dada à grande

responsabilidade na definição do que poderia ser “representativo”. Decidimos

por dialogar com dois pólos de teorias: o clássico Theodor W. Adorno a partir

de seus livros ‘Dialética do Esclarecimento’ e ‘Educação e Emancipação’. Nos

estudos mais recentes, com J.B.Thompson, estudioso contemporâneo das

mídias, a partir dos livros ‘Ideologia e Cultura Moderna’, ‘Mídia e Modernidade’

Douglas Kellner com ‘Cultura da Mídia’. Sobre as especificidades do texto

televisivo e da técnica de desenho animado fomos buscar inspiração em José

Carlos Aronchi de Souza ‘Gêneros e Formatos na Televisão Brasileira’ e

Elizabeth Bastos ‘Televisão-ensaios metodológicos’. Sobre as especificidades

do desenho animado, contamos com o precioso trabalho de Alberto Lucena

Júnior ‘Arte da Animação: técnica e estética através da história’ e Will Eisner

‘Narrativas Gráficas’. No subitem TELEVISÃO e EDUCAÇÃO, apoiamo-nos

principalmente nas discussões de Theodor W. Adorno, a partir de sua obra

‘Educação e Emancipação’, que reserva capítulo específico sobre ‘Televisão e

Formação’ e o livro ‘Dialética do Esclarecimento’, quando aborda

especificamente em um capítulo a engrenagem da “Indústria Cultural”.

Também dialogamos com as teorias de Vigotski, Leontiev e Gontijo. Para a

especificidade das relações entre Criança, Educação e Mídia lemos, ainda, as

obras das autoras: Analice Dutra Pillar ‘Criança e Televisão’, Solange Jobim e

Souza ‘Infância e Linguagem’, Ana Lúcia M.Rezende ‘A Tevê e a criança que te

vê’, Heloísa Dupas Penteado ‘Televisão e Escola’, Fanny Abramovich ‘O

estranho mundo que se mostra às crianças’ e Maria Amor Pérez Rodriguez

‘Los nuevos lenguajes de la comunicación: enseñar y aprender com los

médios’.

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No capítulo 4, expusemos nossas análises: o subitem 4.1 tratou do desenho

‘Três Espiãs Demais’; o 4.2, sobre o ‘Homem Aranha’; e o 4.3, as análises do

desenho ‘Shaman King’. Nesse capítulo, retomamos os livros, autores e

conceitos fundantes da semiótica discursiva, apresentados no capítulo 2, além

das contribuições das semioticistas Ana Cláudia Oliveira, Lúcia Teixeira,

Moema Rebouças e Ana Sílvia Davi Médola. ‘Universos da Arte’ da artista

Fayga Ostrower teve grande contribuição.

No capítulo 5, fizemos uma espécie de retomada e comparação entre os três

desenhos analisados, mostrando as reiterações, as semelhanças e diferenças,

as marcas deixadas pela enunciação e a forte relação entre desenho animado

e bens de consumo.

No capítulo 6, apresentamos nossas considerações finais. Procuramos partilhar

nossas visões sobre a relação do educador com as mídias, caminhos e

possibilidades de trabalho. Deixamos, também, um pequeno relato de

experiência que vivenciamos no “em se fazendo” de nossa pesquisa.

Na seção ANEXOS, como contribuição para professores e interessados pela

temática de uma forma geral, deixamos alguns artigos relacionados ao nosso

tema, selecionados a partir do banco de dados que construímos ao longo

desses dois anos e meio de pesquisa.

Na seção REFERÊNCIAS, os leitores poderão encontrar as obras e autores

que consultamos para desenvolver nossa dissertação.

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2 PRESSUPOSTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS DA SEMIÓTICA

DISCURSIVA

2.1 A PESQUISA EM CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAS

Metodologia é uma preocupação instrumental. Trata das formas de se fazer ciência. Cuida dos procedimentos, das ferramentas, dos caminhos. A finalidade da ciência é tratar a realidade teórica e praticamente. Para atingirmos tal finalidade, colocam-se vários caminhos. Disto trata a metodologia (DEMO, 1987, p.19).

Quantificável, palpável, concreto – termos comumente utilizados como critério

de cientificidade ─ o pensamento ocidental sempre esteve mais acostumado a

entender como modelo de “cientificidade” as metodologias quantitativas, muito

utilizadas nos objetos de pesquisa das ciências chamadas naturais e exatas,

em detrimento das metodologias utilizadas pelas ciências humanas e sociais.

Segundo Demo,

[...] não temos como provar cabalmente que o objeto social é intrinsecamente diferente do natural, porque isso suporia um conhecimento profundo de tal ordem de ambas as esferas, que é fácil demais desconfiar que não o temos [sic] de forma satisfatória (1987,p.15).

Mesmo assim, é possível ressaltar algumas especificidades que justificam, em

nosso entender, a busca de métodos próprios para as ciências humanas e

sociais. Segundo o autor,

[...] o objeto das ciências sociais é histórico, enquanto o das ciências naturais é, no máximo, cronológico. A provisoriedade processual é a marca básica da História, significando que as coisas nunca “são” definitivamente, mas “estão” em passagem, em transição. Trata-se do “vir-a-ser” (1987,p.15).

A metodologia qualitativa de pesquisa foi desenvolvida, gradativamente, ao

longo do tempo, e suas técnicas de coleta de dados aperfeiçoadas à medida

que os estudos das ciências humanas e sociais (sociologia, antropologia,

psicologia, comunicação social, educação, etc.) foram demandando “novas

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lentes” para “novos objetos”.

Acreditamos que o propósito da Ciência é a pesquisa, e esta, necessariamente,

não se faz neutra e científica pelo tipo de metodologia que utilizará, mas sim,

pela forma como seus pesquisadores utilizarão essa metodologia. De outra

forma, acreditamos não serem as lentes e o instrumental metodológico

garantias de cientificidade, mas sim, o compromisso ético de seus

pesquisadores.

Nenhuma pesquisa é totalmente controlável, com início, meio e fim previsíveis. A pesquisa é um processo em que é impossível prever todas as etapas. O pesquisador está sempre em estado de tensão porque sabe que seu conhecimento é parcial e limitado - o “possível” para ele. (Goldenberg, 1996,p.13)

Pressupostos teórico-metodológicos são formas de se ver o mundo, são lentes

que se debruçam sobre os objetos das mais diversas formas. Sabemos que,

uma vez que o objeto do pesquisador em Ciências Humanas e Sociais é tanto

social quanto quem pesquisa, o exercício da pesquisa se faz mais complexo.

Na medida em que pesquisa seu objeto, pesquisa também a si mesmo. São

comuns, por esse motivo, as preocupações com o rigor do recorte, a prevenção

para que não ocorram desvios na pesquisa, incoerências, todas elas, tentativas

para o alcance de maior objetividade dos dados. Apesar desse esforço,

sabemos que é impossível destituir de todas as análises a subjetividade.

Enquanto seres sociais carregamos conosco, por isso mesmo, nossas

ideologias. A própria escolha do objeto, o recorte que fazemos, os caminhos de

análise escolhidos, nossas escolhas teóricas, já estão investidos, em menor ou

maior grau, de ideologias. E lembramos que isso não é mérito somente das

ciências sociais. Um matemático ou um físico pode trazer também, em suas

pesquisas, suas ideologias de vida, ao manipular fórmulas e até mesmo

justificá-las.

Nesse sentido, fazer pesquisa na área das chamadas Ciências Humanas e

Sociais, requer ainda cuidados que só o bom senso, a crítica e a autocrítica,

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podem proporcionar. Muito mais do que terminologias de repertório, essas

noções representaram, para nós, conceitos preciosos a nortearem o fazer

científico desse projeto de pesquisa.

Posicionados, mas não dogmáticos, flexíveis, porém sem cairmos no

superficialismo ou no relativismo, apresentamos, a seguir, nossos pressupostos

teórico-metodológicos.

2.2 CONCEITOS FUNDANTES DA TEORIA SEMIÓTICA DISCURSIVA

2.2.1 Conceituação Geral

A pesquisa semiótica nos diz o ‘quê’ e o ‘como’ os textos produzem sentidos a

partir da análise dos procedimentos que os estruturam e que os tecem como

um todo de sentido. Essa concepção de texto é definida por Barros (2001)

como objeto de significação. Contudo, como os textos não se constituem de

estruturas fechadas, mas encontram seu lugar, entre os objetos culturais

inseridos numa sociedade, eles precisam ser analisados na relação contextual

socio-histórica que o envolve.

A teoria semiótica, inicialmente, apresentava-se como teoria e metodologia de

análise de conteúdo. Mas, desde os trabalhos de Jean Marie Floch em 1985,

dedica-se a estudar objetos que extrapolam os iniciais textos literários, assim

como as diversas linguagens artísticas como a pintura, o desenho, a escultura,

a publicidade, a moda, uma charge, objetos de design, e outras manifestações.

Nessa expansão, o que importa é a relação entre o plano de expressão e de

conteúdo, que se manifestam nos objetos empíricos analisados. Sendo assim,

ao modelo criado por Greimas, conhecido como percurso gerativo de sentido,

agregam-se a exploração de outras problemáticas que as análises do plano de

expressão buscam somar.

Além de Jean Marie Floch, ressaltamos também Eric Landowski (um dos

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principais colaboradores de Greimas), em seus vários livros e artigos, que

nunca se esqueceu de dizer que a teoria ─ atualmente denominada

sociossemiótica ─ está em vias de construção, pelo que, não pode ser

considerada nem totalizadora, nem universalizante.

A nosso ver, é preciso dar os devidos créditos a seus idealizadores. Greimas

foi genial em avançar na noção de texto, incorporando o mundo não verbal às

análises semióticas; criou uma metodologia que desse conta de analisar as

imagens, e não só os textos verbais escritos, deixando claro, por fim, que sua

teoria proporciona uma forma de leitura do mundo e não a leitura em si. As

bases teóricas iniciais de Greimas, os avanços proporcionados por Landowski

e seus seguidores, também se identificam com outras teorias que tomam corpo

nos dias atuais, como os estudos culturais.

Douglas Kellner (2001, p.37), importante referência no âmbito dos estudos

culturais, lembra que as teorias devem ser concebidas como instrumentos, uma

caixa de ferramentas que nos proporcione modos de visualizar perspectivas

que elucidem fenômenos específicos, não obstante seus “pontos cegos” e

limitações.

Assim, não pretendemos julgar as teorias por nós utilizadas como as melhores,

ou como verdades absolutas, até porque, pela teoria greimasiana, não existe

“verdade absoluta”, e sim, “dizer verdadeiro”.

Ao adotarmos tal conduta, acreditamos, conforme Kellner (2001,p.125), que

devemos, sempre, reexaminar nossos “[...]métodos, posições, pressupostos e

intervenções, questionando-os, revisando-os e desenvolvendo-os

constantemente [...]”, para estarmos sempre “[...] abertos, flexíveis, não

dogmáticos e nem tão rígidos [...]”.

A semiótica discursiva analisa os textos de modo a evidenciar as raízes das

condições de significação com base na própria organização textual, importando

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o que ele diz e como diz.

Para a semiótica, um texto é uma construção do sentido, que pode ser

analisado, pelo percurso gerativo de sentido6, do mais simples e abstrato (nível

profundo) ao mais concreto e complexo (nível de superfície). São eles: o nível

fundamental, o nível narrativo e o nível discursivo.

As estruturas fundamentais abrigam as instâncias mais profundas, em que são

determinadas as estruturas elementares do discurso. Nas estruturas narrativas,

os sujeitos e os objetos se encontram em conjunção ou disjunção com os

objetos-valor.

Nas estruturas discursivas, encontramos o nível mais próximo da manifestação

textual. Os três níveis apresentam tanto elementos sintáticos quanto

semânticos. Na base da semântica estrutural, encontramos ainda o postulado

do paralelismo do plano de expressão e do plano de conteúdo.

Os objetos da semiótica greimasiana podem ser produtos acabados, verbais ou

não, que constituam uma totalidade de sentido, tais como um filme, uma obra

de arte, uma produção arquitetônica, cartas, ruínas de uma cidade, etc. No

entanto, também fazem parte de seu escopo manifestações significantes em

aberto, dinâmicas, que só se deixam captar em ato, entre elas, as micro ou

macro práticas sociais em curso, como as greves, os processos eleitorais, uma

aula, ver televisão, etc.

Fruto dos avanços de seus pesquisadores, a semiótica francesa considera que:

[...] um texto visual, qualquer que esse seja: arquitetura, escultura, paisagem natural ou pintada, desenhada, gravada, fotografia, é construído por um arranjo específico de sua plástica, organizada por

6 O percurso gerativo de sentido é descrito por Fiorin (1997, p.17-18) como “[...]uma sucessão de patamares cada um dos quais suscetível de receber uma descrição adequada, que mostra como se produz e se interpreta o sentido, num processo que vai do mais simples ao mais complexo [...]”.

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mecanismos estruturais particulares de seu sistema com as suas regras, resultando em dada sintagmatização das unidades mínimas: optamos por denominar plástica a semiótica que se ocupa da descrição do arranjo da expressão de todo e qualquer texto visual. Trata-se portanto de uma semiótica de caráter geral do ponto de vista de seus fundamentos teóricos e de seus procedimentos metodológicos (OLIVEIRA,2004,p.12).

Os estudos da Semiótica vão se desenvolver em três diferentes lugares e com

distintos objetivos7. No caso da sociossemiótica, é na Escola de Paris, na

pessoa de Algirdas Julien Greimas (1917-1992), que vamos encontrar suas

origens. Seus estudos partiram da Semântica Estrutural (que se preocupa com

o estudo do discurso manifesto em qualquer tipo de texto), desenvolvendo,

porém, uma Semiótica, não sob uma perspectiva de “teoria de signos”, mas

uma “teoria da significação”, através do plano de conteúdo concebido sob a

forma de percurso gerativo do sentido, como explicamos anteriormente.

A teoria fornecida pela semiótica discursiva permite-nos ir além daquilo que

José Luiz Fiorin (1997) chamará de nível fundamental que é o patamar em que

reconhecemos os elementos mais simples e abstratos que dão conta do

sentido global do texto. Passará, também, pelo nível narrativo, que é a análise

do fazer transformador dos sujeitos e as mudanças de estados que eles

provocam, e chegará ao último e mais complexo nível do percurso gerativo de

sentido ─ o nível discursivo ─ em que podem ser reconhecidos figuras e temas

do discurso.

Para Landowski (2001, p.25), fazer semiótica “[...] não é somente compreender

num primeiro grau certas coisas que se apresentam [...]”, não é apenas

“[...]procurar desentranhar o sentido [...]“. É também ─ e principalmente ─

tentar compreender, num segundo grau, o que nos faz compreender de tal

maneira, e não de outra, o que compreendemos como “aquilo que nos

7 Há pelo menos três grandes teorias semióticas: uma que se elabora nos Estados Unidos e se constitui em torno da obra de Charles Sanders Peirce; uma, que se organiza na França e se constrói a partir da obra de Algirdas Julien Greimas; e uma que se desenvolve na Rússia e se estabelece a partir da obra de Iun Lotman. Neste texto, quando falamos em Semiótica, estaremos nos referindo à concepção francesa.

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interessa”, ou, “aquilo que se passa”.

Enquanto pesquisadores semióticos, portanto, não nos limitamos a relatar e a

descrever o que observamos em nosso redor. Temos por princípio a

preocupação ou a pretensão de analisar nosso próprio olhar, construindo o

mundo enquanto mundo significante. Colocamo-nos, desse modo, como quem

deseja compreender as condições de nossa própria compreensão do mundo.

Sobre a contribuição de Douglas Kellner (2001, p.63), destacamos a forma

como esse autor sugere que as análises das mídias deveriam ser feitas,

defendendo uma análise, com abordagem multiperspectívica8, que dê atenção

à produção da cultura, aos próprios textos e à sua recepção pelo público.

Apesar de esse autor sugerir todas essas instâncias de pesquisa (produção,

texto e recepção), nossa Dissertação focará somente as estratégias

enunciativas do texto. Como pesquisadora iniciante, sentimos necessidade de

primeiro entender como se dá a construção dos mecanismos geradores de

efeito de sentido do texto, para, num futuro próximo, tentar entender como se

dá o processo de apropriação desse tipo de linguagem pelas crianças.

Acreditamos ser preciso primeiro sair da “infância” de leitura do audiovisual,

para depois intervir no processo de ensino-aprendizagem dessa semiótica

particular. Tentaremos, contudo, estabelecer relações com o contexto de

produção, por acreditarmos ser o texto constituído tanto por suas relações

internas, quanto pelas relações que mantém com sua situação histórica e

cultural.

2.2.2 A dicotomia Enunciado/Enunciação

Após o tópico ‘conceituação geral’, detalhamos, neste subitem, conceitos

específicos e fundantes da semiótica discursiva. Preferimos destacar os

8 Um estudo multiperspectívico utiliza uma gama de estratégias textuais e críticas para interpretar, criticar e desconstruir as produções culturais em exame.

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conceitos principais em subitem à parte, pois acreditamos ficar mais fácil para o

leitor entender o cerne da visão semiótica discursiva acompanhando o

encadeamento lógico proposto por Greimas como um todo, do que entendê-lo

através de adendos e citações ao longo dos capítulos dedicados às análises.

Trabalhamos principalmente com o texto intitulado La Enunciación (1996),

tradução de um colóquio que Greimas fez, na década de 70, com alguns

professores em que ele responde a perguntas cruciais para se entender os

pressupostos teórico-metodológicos da semiótica discursiva.

Um texto de leitura difícil e entendimento complexo: é aqui que começamos a

nos dar conta de que é preciso o entendimento dos textos difíceis e complexos

das teorias; de que é melhor irmos às fontes, às origens, para não

perpetuarmos certas “verdades” propagadas por alguns autores, que

simplificam algumas obras sem a devida contextualização do momento em que

os primeiros conceitos foram pensados.

Nesse texto, Greimas deixa claro, em resposta a perguntas de dois

professores, os conceitos primordiais que servirão de base para nosso

percurso de análise:

a) A dicotomia enunciação/enunciado; e

b) A dicotomia linguagem-objeto / metalinguagem.

Por enunciado, Greimas deixa um riquíssimo elenco de definições. Vejamos as

principais:

• “[...] na verdade, é a frase lingüística nos seus elementos mais simples [...]”;

• “[...] é um enunciado elementar, seja sujeito, predicado, verbo, seja

destinador, mensagem, destinatário, etc.[...]”;

• “[...] é o que é enunciado, o que é dito ou escrito [...]”;

• “[...] possui a forma canônica do enunciado frástico” (elementos da frase);

• “[...] o enunciado é o que é enunciado [...]”;

• “[...] é todo encadeamento sintagmático que transcende, ultrapassa as

dimensões da frase e que compreende, portanto, o discurso enquanto

enunciado”.

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A partir dessas definições, o autor formula o conceito que, a nosso ver, é o

ponto inicial para se entender a relação enunciado/enunciação ─ “[...]O

pensamento pensante pensa o pensamento pensado [...]” ─, revelando

que, na França, as crianças tomam esse exemplo como um “quebra-cabeça”

nas aulas de filosofia.

Realmente, trata-se de um “quebra-cabeça”, que propomos, como segue,

tornar didático, para chegarmos aos conceitos que objetivamos.

‘O pensamento pensante’ significa que alguém ─ ‘ser ôntico, de carne e osso’

─ produz o ato de pensar. Mas, pensar o quê? Será ‘o pensamento pensado’,

ou seja, aquilo que é produto do ‘pensamento pensante’ que o ‘ser ôntico’

pensou ─ respondemos. Podemos depreender, então, dessa dêixis filosófica

que o ‘pensamento pensado’ está para o ‘enunciado’ assim como ‘o

pensamento pensante’ está para a ‘enunciação’. A relação entre enunciação

e enunciado é uma relação de função. O enunciado (pensamento pensado) é

exatamente a manifestação (em forma de linguagem) do pensamento pensante

(ato de pensar, enunciação) de um ser ôntico qualquer.

Entendemos daí, por que o percurso de análise da semiótica discursiva vai do

enunciado (aquilo que se mostra, que é manifestado) à enunciação (a tentativa

de reconstruir o ato do pensamento pensante). Ora, antes de ser manifestado,

o que poderíamos analisar? O pensamento do ser ôntico! ─ alguém poderia

responder. Acontece que o objeto da semiótica discursiva não é a mente do ser

ôntico. O semioticista não tem a pretensão de ingressar diretamente no objeto

da psicologia, da antropologia ou da sociologia, só para citar algumas ciências.

O semioticista analisa aquilo que foi enunciado. É a partir desse percurso que a

análise começa; do que foi dado, manifestado. E sabemos que a humanidade

aprendeu a manifestar seus pensamentos a partir da linguagem (seja ela verbal

oral, verbal escrita ou não verbal). Esses são os nossos objetos de análise: a

manifestação do pensamento já em forma de linguagem!

Durante muito tempo Greimas foi criticado pela célebre frase “fora do texto não

há salvação”. Quando ele disse isso, estava querendo dizer que nós, enquanto

pesquisadores da linguagem, não podemos ser ingênuos em tentar deduzir ou

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inferir no que estava se passando na mente do ser ôntico enquanto ele

pensava o enunciado. Isso é “achismo” ou relativismo. Por outro lado, em

nenhum momento ele disse que devemos desconsiderar as condições sociais e

culturais daquilo que o ser ôntico produz ou interpreta. Esses são alguns

resgates, que temos a obrigação de deixar claro, em defesa dessa teoria.

Vejamos mais algumas citações que Greimas deixa no texto:

• “[..] o enunciado é este pensamento pensado [...]”

• “[...] é a manifestação em termos psicológicos do processo de pensamento

[...]”

• “[...] o enunciado é manifestação do pensamento [...]”

Continuando nosso trabalho de desvelamento dos conceitos de Greimas, fica

evidente que para que o enunciado seja enunciado, é necessário que alguém o

enuncie; é necessário, portanto, que o enunciado possua um predicado, uma

função, enfim, a enunciação.

Podemos dizer, então, que, se o pensamento se manifesta enquanto

enunciado, o pensamento precede o enunciado; e se já existe um enunciado

enquanto objeto do pensamento, da enunciação, é porque existe um processo

intitulado enunciação; logo, isso pressupõe a existência de um sujeito da

enunciação.

Temos, finalmente, a enunciação, que se opõe ao enunciado. ‘Eu digo que’ � é

enunciação; � ’eu estou doente’ � é enunciado. Mas a enunciação possui

também a estrutura de um enunciado elementar, com sujeito, verbo, predicado

e objeto � ‘eu-sujeito, digo-verbo’ �, com uma diferença, porém, o actante,

objeto da enunciação, é um enunciado.

Greimas vai definir, então, que “[...]a enunciação é um enunciado no qual

apenas o actante-objeto é manifestado [...]”. E aí reforçamos nossos

pensamentos descritos anteriormente: se esta enunciação não é manifestada,

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como podemos saber algo?

A única resposta válida é que podemos saber algo porque a enunciação possui uma estrutura que é aquela do enunciado e que, conhecendo a estrutura do enunciado e conhecendo um dos elementos deste enunciado que foi manifestado, podemos, logicamente, pressupor a existência de outros elementos deste enunciado que se chama enunciação (GREIMAS,1996,p.8).

Ou seja, sabemos que a presença do actante-objeto implica a existência do

actante-sujeito, e a relação actante-sujeito e actante-objeto é uma função e

também uma relação predicativa.

Partindo da concepção de que a enunciação é um enunciado, se um dos

termos do enunciado é conhecido os outros podem ser deduzidos: “A

enunciação não pode ser conhecida exceto pela forma de pressuposição lógica

e é o único modo de existir da enunciação” (GREIMAS, 1996).

Outro ponto polêmico da teoria que Greimas esclarece é que, por muito tempo,

os lingüistas consideraram como sujeito da enunciação o sujeito ontológico. Já

a semiótica vai considerar o sujeito lógico ─ ‘eu digo que’ ─ de um determinado

enunciado.

Exemplificar melhor o que se quer dizer, então, resulta em exemplos de frases

como: ‘Você é bela’. Ora, esta é uma frase que pressupõe ‘eu digo que...você é

bela’. Aí as pessoas costumam dizer que Greimas disse que ‘você é bela’. Mas

Greimas é um sujeito ôntico que não pode ser confundido com o sujeito

lingüístico. Esse é um ponto muito complexo da teoria greimasiana, pois

Greimas vai defender, lucidamente, que não podemos provar a existência de

seres ônticos (ou seja, extralingüísticos, ‘real’, pragmático, de carne e osso) por

meio de métodos puramente lingüísticos. Daí, toda uma sorte de confusão e

incoerências teóricas passam a se multiplicar em várias obras que dissertam

sobre a linguagem.

[...] se é por métodos não-lingüísticos que conhecemos, falta coerência lógica quando falamos Lingüística. E a partir disso, há um campo aberto a todas as filosofias, a todas as psicanálises e tudo o que vocês quiserem. [...] Conseqüentemente, em literatura, isso significa que a

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principal conquista, [...] digamos, da Semiótica, está abolida e que retornamos à psicologia do autor e à biografia e vocês sabem quais são as conseqüências disso. Isto não deixa de ser uma escapatória. [...] Se nos pusermos a estudar a ideologia, reduziremos o texto ao sujeito que chamamos psicológico ou ontológico, que está fora. [...] isso consiste em uma renúncia da Lingüística, [...] isto é, retirar-se, renunciar a suas responsabilidades e dizer: agora são os psicólogos e os filósofos que vão ocupar-se disso. [...] Eis a importância da escolha [...] (GREIMAS,1996,pp.8-9).

Apesar de toda essa defesa que Greimas faz de sua teoria, percebemos em

seu posicionamento uma característica que muito nos agrada: uma semiótica

não fundamentalista. Quando afirma que “[...] o discurso, o texto, na medida em

que é manifestado, é a única realidade da qual a Lingüística se ocupa [...]” e

que por isso, então, ela diz tudo que pode ser dito sobre o texto manifestado,

deixa claro, também, que “[...] a lingüística não afirma que não existam outras

realidades, longe disso [...]”. A nosso ver, portanto, esse é um posicionamento

não fundamentalista, pois, apesar de Greimas acreditar firmemente que possa

conhecer o texto em suas várias nuances, não diz que a semiótica é a única

detentora desta possibilidade de desvendamento.

Se a semiótica tem um projeto de “[...]pesquisa coerente, deve limitar-se àquilo

que pode fazer.” [...] Cada ciência é uma única abordagem do mundo. Temos

nossa abordagem e nela permanecemos. [...] é preciso saber do que falamos

[...](GREIMAS,1996).

Greimas também esclarece um outro nó nessa rede teórica. Algumas teorias,

ao chamarem os ‘actantes lingüísticos’ de nomes próprios, pelo simples fato de

dar nomes às coisas, passam a considerar que “as coisas existem antes e

depois de darmos nomes a elas”. Segundo Greimas (1996), entretanto, “[...] se

postulamos a existência de um referente exterior, chegamos a discussões

intermináveis, do tipo ‘se as quimeras existem ou não’ [...]”. Porque, se a

palavra ‘quimera’ existe enquanto nome próprio é preciso denominar as

quimeras, e se as quimeras não existem, o que é esse nome? Palavras que

não designam absolutamente nada”.

Para nós, Greimas encerra essa problemática com esclarecimentos geniais,

tais como: se nos deparamos com um enunciado do tipo “os pássaros têm

asas”, consideramos que este enunciado está certo, que ele é normal. Mas, se

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nos deparamos com um enunciado do tipo “as borboletas têm orelhas”, tudo vai

mal, pois, não é lógico, porque as borboletas não têm orelhas. Como na

realidade as borboletas não têm orelhas, esta frase é anormal. Por isso,

Greimas deixa claro, no desenrolar de seu pensamento, que não acredita em

qualquer referência extratextual que possa ser provada lingüisticamente.

Obviamente, sabemos que essas referências podem até ser provadas de

outras formas (afinal, estamos vivos, falamos, respiramos), mas, para Greimas,

nunca lingüisticamente.

[...] Tudo que representa verdadeiramente o coração da linguagem é expurgado como anomalia.[...] Justamente porque existe esse encaminhamento primeiro que é o neopositivismo, que postula a existência de coisas anteriores à linguagem, e onde a linguagem não serve senão para denominar e para dizer um número infinito de frases sobre o mundo. [...] Frases como pássaros têm asas isso, sim, é correto, mas borboletas têm orelhas, isso não cabe. E por quê? Porque não há orelhas nas borboletas. [...] Eu não quero continuar neste caminho, quero somente lhes dizer que aí há algo que deriva da escolha, das pressuposições filosóficas, no fundo, que a lógica não é inocente em si (GREIMAS,1996,p.10).

A partir desses ensaios, começamos a entender que a “lógica” serve aos mais

diversos interesses epistemológicos sendo preciso que sejamos lúcidos o

suficiente para decidir sobre nossas escolhas.

A linguagem, por ser “polissêmica”, justamente por isso é inventiva “[...] há nela

algo que distingue o homem do animal e não porque diz coisas verdadeiras,

estabelecendo correspondências entre as palavras” (GREIMAS,1996).

Um outro ponto interessante da relação enunciado-enunciação, é que se ‘eu

digo que a terra é redonda’, isso significa dizer que � ‘eu digo que’ � é

enunciação, enquanto � ‘que eu digo que a terra é redonda’ � é enunciado.

Dito de outro modo significa que, a cada enunciado proferido, existe um nível

enunciativo anterior, uma série de ‘eu digo que eu digo que eu digo....’. Ou

seja, o sujeito da enunciação não é jamais apreensível, e todos os ‘eus’ que

nós encontramos no discurso enunciado não são sujeitos da enunciação, mas

‘simulacros’. A pergunta continua aberta: quem foi o primeiro ‘eu’ a dizer no

mundo? Daí, para Greimas, a dificuldade e o problema que é perguntar em

termos tão ingênuos: quem fala no discurso?

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Os diferentes eu que vocês encontram no discurso são eu já falados e não eu que falam. Porque o eu da enunciação está sempre oculto, está sempre subentendido. Isto é elementar. É preciso ter sempre em mente essas coisas quando se fala da enunciação (GREIMAS,1996,p.12).

2.2.3 A dicotomia linguagem-objeto / metalinguagem

Um outro pólo de conceitos esclarecidos por Greimas trata da dicotomia

linguagem/metalinguagem e a relação deste pólo com o anterior ─

enunciado/enunciação.

Greimas não compartilha do conceito jakobsoniano de metalinguagem, como

Jakobson o faz, relacionando-a a metáforas, ou seja, a uma outra forma de

linguagem falar sobre uma linguagem específica. A definição de linguagem/

metalinguagem que Greimas propõe é uma relação que vai do todo à parte.

Se anteriormente já deixamos claro que Greimas entende que “[...] a

enunciação é um enunciado que possui a estrutura de um enunciado [...]”, uma

pergunta que servirá para esclarecer as relações entre os dois pólos

conceituais seria: o que é o enunciado nessa enunciação? Greimas

responderá, então, que será “[...] um actante objeto, isto é, é um dos termos

estruturais, ao passo que a enunciação é o todo.” “[...] Se a enunciação é a

totalidade e se o enunciado é uma parte, então a relação entre enunciação e

enunciado é do tipo do todo para a parte”. Greimas chamará essa relação de

“hipotática”, ou seja, a de pressupor uma ordem hierárquica. “[...]Podemos

definir a metalinguagem como a relação entre dois níveis, dizendo que um

desses tipos de relação é a relação hipotática” (GREIMAS, 1996,p.12).

Assim, entendemos que a leitura de metalinguagem de Greimas é a mesma de

uma relação hipotática, hierárquica. Por isso, a sua escolha epistemológica por

um percurso metodológico que, em suas análises, se inicia da parte

(enunciado) para tentar reconstituir o todo (enunciação). Nesse sentido,

podemos dizer que, se a metalinguagem é uma forma de falar sobre uma

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linguagem, no entendimento de relação hipotática de Greimas o enunciado

(parte/linguagem) fala da enunciação (todo/metalinguagem), e não o contrário.

2.2.4 Enunciação e Fazer Discursivo

Greimas (1996) questiona: a “[...] enunciação trata-se de um ato absoluto,

criador do discurso, ou seja, trata-se de um fazer discursivo, de um fazer dizer,

ou de um fazer saber que não tem conseqüência, uma espécie de retórica, de

grandiloqüência?” Segundo ele, quando consideramos um sujeito absoluto em

si, que está num determinado espaço e tempo, e que fala, e onde somente o

“sujeito falante seja considerado”, temos aí um caminho fértil para a “criação

dos mitos, das metáforas da criatividade”. Mas, quando se trata de um

“[...]fazer dizer (fazer discursivo), certamente há um fazer (discurso), mas

também há um fazer saber (intencionalidade), isto é, há uma transferência do

saber do destinador para o destinatário”. Ou seja, como sempre ressalta uma

antiga máxima da semiótica discursiva: “todo fazer persuasivo pressupõe um

fazer interpretativo”.

O sujeito da enunciação não é apenas um simples sujeito que fabrica mensagens, enunciados, mas é também um sujeito que transmite o saber. Portanto, não é apenas sujeito de uma frase do tipo sujeito/objeto, mas também destinador de uma enunciação que pode ser descrita como destinador/destinatário (GREIMAS,1996,p.13).

Isso significa dizer que se existe um sujeito competente em seu fazer

persuasivo, significa dizer também que, na ponta do fio, existe um sujeito

ouvinte, também competente, que irá elaborar seu fazer interpretativo. Daí a

semiótica greimasiana não acreditar em passividade, alienação (no sentido

inato e não, inconsciente) do sujeito ouvinte. Temos a capacidade de análise

crítica de textos; só precisamos aprender a lê-los, estejam eles (os discursos)

subjacentes a quaisquer plataformas de expressão, orais, escritas ou não

verbais.

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2.3 CONCEITOS ESPECÍFICOS

Reservamos este subitem para dar mais clareza didática aos conceitos que

iremos utilizar nas análises dos desenhos que virão no capítulo 4, para que não

haja nem fragmentação, nem superposição desses ao longo da redação dos

capítulos de análise. Ao mesmo tempo, desejamos clarificar, também, os

conceitos da semiótica, no que dizem respeito à análise discursiva.

Antes de entrarmos nos conceitos específicos da semiótica discursiva, vamos

dissertar a respeito de três difíceis palavrinhas, de significados convergentes,

pouco encontradas nas literaturas específicas, e que estão diretamente ligadas

à nossa pesquisa no âmbito da conceituação macro: Linguagem, Discurso e

Fala.

2.3.1 Linguagem/Discurso/Fala

Fiorin (1997, p.11) vai definir como discurso as combinações de elementos

lingüísticos ─ frases ou conjuntos constituídos de muitas frases ─ usadas pelos

falantes para exprimir seus pensamentos, falar do mundo exterior ou de seu

mundo interior, agir sobre o mundo. A fala é a exteriorização psico-físico-

fisiológica do discurso. Ela é rigorosamente individual, pois é sempre um eu

quem toma a palavra e realiza o ato de exteriorizar o discurso.

Segundo Fiorin (1997,p.12), a fala, em si mesma, é a simples “exteriorização”9

do discurso. É o ato concreto, momentâneo e individual de manifestação da

linguagem. Ele ainda vai definir a linguagem como um fenômeno extremamente

complexo, que pode ser estudado de múltiplos pontos de vista, pois pertence a

diferentes domínios: individual e social, física, fisiológica e psíquica, ao mesmo

tempo.

9 Fiorin, com o termo ‘exteriorização’, não quer, com isso, assumir uma posição de

interno/externo da linguagem. Deixaremos maiores contribuições a esse respeito a partir das leituras de Vigotski e Leontiev, a seguir.

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Outras definições vão dizer que a linguagem diz respeito a um sistema

constituído por elementos que podem ser gestos, sinais, sons, símbolos ou

palavras, que são usados para representar conceitos de comunicação, idéias,

significados e pensamentos. Há, também, definições que associam a

linguagem à função cerebral e que permitem a qualquer ser humano adquirir e

utilizar uma língua.

Essas poucas definições citadas não têm por objetivo esgotar a discussão, mas

apenas mostrar as divergências sobre a conceituação do termo. De todas,

temos que concordar com Fiorin (1997) de que o termo linguagem constitui-se

“[...] fenômeno extremamente complexo [...]”, haja vista a própria dificuldade de

definição do mesmo.

A nosso ver, é preciso tomar cuidado com a definição de linguagem como

‘expressão do pensamento’. Compartilhamos os conceitos de Vigotsky, quando

este autor disserta sobre “linguagem e pensamento” e “pensamento e palavra”.

A partir deles, preferimos evitar a definição de linguagem como expressão ou

instrumento do pensamento. Tal concepção pode fazer crer que a linguagem

exprime, como um utensílio, qualquer coisa de exterior a ela. É como se

caíssemos na incoerência teórica de admitir a existência de

idéias/pensamentos que pudessem ser formulados ou transmitidos de outra

forma que não a da linguagem. Preferimos pensar que a linguagem é, ao

mesmo tempo, a matéria do pensamento e o próprio elemento da comunicação

em sociedade e, simultaneamente, produção de pensamento e uma forma de

comunicá-lo, pertencendo, por essa razão, aos dois mundos (interno e

externo). Não há, portanto, sociedade sem linguagem, tal como não há

sociedade sem comunicação. Tudo o que se produz como linguagem tem lugar

na troca social para ser comunicado. “O homem ‘fala’ e ‘o homem é um animal

social’, são duas expressões sinônimas”.

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Após estas primeiras definições sobre os conceitos que envolvem, de forma

macro, nossa pesquisa, passaremos, agora, aos conceitos específicos da

semiótica discursiva.

O nível discursivo do percurso gerativo de sentido é o lugar das análises da

chamada sintaxe discursiva e semântica discursiva. Segundo Fiorin (1997), a

sintaxe discursiva é o lugar onde

[...] os esquemas narrativos são assumidos pelo sujeito da enunciação que os converte em discurso”, sendo que a enunciação pode ser considerada como “ato de produção do discurso”, ou seja, a enunciação é um movimento, é um processo através do qual estabelece-se a significação entre enunciador-enunciatário, sendo o enunciado o que fica, ou seja, o produto desse ato/movimento/processo (FIORIN, 1997,p.39).

2.3.2. Sintaxe Discursiva

Na sintaxe discursiva, temos, virtualmente, os procedimentos de

discursivização, que são as projeções de pessoa, espaço e tempo em

processos chamados actorialização, espacialização e temporalização.

2.3.3 Semântica Discursiva

É na semântica discursiva que os procedimentos virtuais da sintaxe discursiva

tornam-se concretos através de dois procedimentos chamados tematização e

figurativização.

2.3.4 Ato comunicativo

É a comunicação entre pessoas, na acepção da teoria da comunicação:

emissor>mensagem>canal>receptor. Não trabalharemos com esse

pensamento, apesar de saber que existem os seres ônticos que participam dos

processos de comunicação. Analisaremos, sim, os procedimentos de

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actorialização, espacialização e temporalização estrategicamente inscritos no

texto, ou seja, os agentes discursivos.

2.3.5 Ato discursivo

É o ato em que um enunciador dá a palavra a actantes do discurso, num

determinado enunciado em que estes estarão devidamente projetados num

espaço e tempo, concretizados por temas e figuras, mas somente nos limites

do enunciado-discurso. Será sobre esse processo que faremos nossas

análises.

2.3.6 Enunciação/Enunciado/Enunciador/Enunciatário

• Enunciação: é o ato por meio do qual o falante produz enunciados.

• Enunciado: é toda combinatória de formantes verbais e não verbais

providos de sentido.

• Enunciador: é o destinador da enunciação (o falante). Pode ele estar

implícito no enunciado ─ ‘À noite, todos os gatos são pardos’ ─, ou inscrito

em seu interior ─ ‘eu acho que todos os gatos, à noite, são pardos’.

• Enunciatário: é o destinatário da enunciação (o ouvinte). Também ele pode

estar inscrito ou não no enunciado.

2.3.7 Actantes

São aqueles que realizam ou sofrem uma ação, não importando aqui se são

sujeitos ou objetos; estão sempre presentes na base de qualquer enunciado.

2.3.8 Temas e Figuras

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• Temas: São elementos da semântica discursiva que não correspondem a

nenhum elemento do mundo natural, mas explicam o mundo.

• Figuras: São elementos da semântica discursiva que concretizam, dão

forma aos temas, criando simulações ou simulacros, na tentativa de fazer

referência e/ou iconizar os elementos do mundo natural.

2.3.9 Texto/Contexto

É muito comum ouvirmos que a semiótica só se preocupa com o texto, e não

com o contexto. Mas já deixamos claro, no capítulo de conceitos fundantes,

quando Greimas expõe a relação linguagem-metalinguagem como relação de

parte-todo, que não é bem assim. Esclarecendo mais um pouco essa noção,

não é que a semiótica não se preocupe com o contexto social, muito pelo

contrário, a diferença está na forma de considerar o contexto. Em vez de fazer

como o sociólogo ou psicólogo, que entrevista o “falante” ôntico para saber

quais são seus valores e crenças, ou seja, ouvir do próprio falante suas

condições reais de vida, a semiótica vai ouvir os “falantes” a partir daquilo que

ele escreveu, pintou, desenhou em seu texto. Vai entender que as pessoas

ônticas deixam pistas nos seus textos. Até porque, se para analisar um

discurso precisássemos ouvir todas as pessoas que contribuíram para a sua

produção, como faríamos para analisar um quadro de Van Gogh?

A semiótica, portanto, não condena quem faz um acréscimo de pesquisa

entrevistando pessoas; somente não é dessa forma que ela analisa discurso.

Assim como um antropólogo, que procura nas escavações arqueológicas

sinais, pistas de uma época, a semiótica vai procurar, nos textos, pistas do ato

da enunciação.

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3 SOBRE A TELEVISÃO

3.1 COMUNICAÇÃO E TELEVISÃO

A comunicação sempre esteve presente na vida dos seres humanos, desde os

primórdios, e, da mesma forma, funcionou como a mola propulsora no

processo de hominização. Foi desenvolvida numa relação intrínseca ao

trabalho (trabalho social), à linguagem, à cultura, a todos os aspectos

fundantes da sociedade humana, onde os “[...] seres humanos se ocupavam da

produção e do intercâmbio de informações e de conteúdo simbólico”

(Thompson,1998, p.19).

Para que o processo de comunicação acontecesse, os homens faziam uso de

sinais para expressar seus pensamentos. Com o passar dos tempos e com a

mudança dos modos de vida das sociedades, novos meios de comunicação

surgiram mudando significativamente a comunicação humana: a imprensa, o

telégrafo, o telefone, o rádio, o cinema e a televisão. Com os ”avanços”

tecnológicos surgiram ainda a internet, os celulares, os games e a recém-

chegada TV digital. Segundo Thompson (1998, p.19), “[...] de uma forma

profunda e irreversível, o desenvolvimento da mídia transformou a natureza da

produção e do intercâmbio simbólicos no mundo moderno”.

No fluxo dessas mudanças, muitas foram as Escolas que pensaram as

chamadas “teorias da comunicação”: a Americana, a de Frankfurt, a Francesa

e as Escolas latinas, cujos objetos de investigação abrangeram as áreas de

linguagem em geral, verbal e não verbal, análise de conteúdos, significação,

sentidos, discurso, produção e recepção, só para citar os temas mais comuns.

Ao nos aprofundarmos no estudo da mídia televisão nos deparamos sempre

com discussões que dão diferentes pesos para cada um dos componentes do

processo. As discussões mais comuns focam suas ênfases ora sobre a

produção de mensagens, ora sobre a recepção. Comum também são as

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críticas que versam sobre dominação versus dominado: uns dizendo sobre a

dominação da televisão, tornando o indivíduo alienado, outros, achando que o

ser humano tem consciência o suficiente para rejeitar as sugestões dessa

mídia.

Não podendo ficar alheios a discussões sempre tão recorrentes, entendemos

que, para proceder às análises sobre os meios de comunicação, seus

conteúdos e técnicas, de certo não deveríamos “[...] ignorar a complexa

mobilização das condições sociais que subjazem à produção e circulação de

suas mensagens [...]” uma vez que para entender a comunicação, “[...]devemos

tomá-la como parte integral dos contextos mais amplos da vida social [...]”

(Thompson,1998,p.20).

Nossa convicção é a de que, da mesma forma com que os homens ao se

depararem com o mundo real tentaram sobreviver entendendo aquilo que os

rodeava, entendendo os fenômenos naturais, inventando seus instrumentos

para cultivo, caça, etc., poderiam também entender os meios de comunicação

reagindo às suas proposições. A partir dos textos televisivos, tentaremos

descobrir as posições de sujeito, espaço e tempo que estão sendo construídas

na mídia televisão, especificamente para o público infantil. E também a partir

deles reescrever os contextos de experiência entre crianças/adolescentes e

mídia.

Com nossos estudos, tentaremos, da mesma forma, entender os efeitos de

sentido da mídia, e esperando, conseqüentemente, poder contribuir para a

formação de professores e alunos mais autônomos, frente aos efeitos de

sentido propostos pela mídia televisão.

Sobre a mídia televisão, temos em Theodor W. Adorno, filósofo e fundador da

Escola de Frankfurt, um dos mais críticos e importantes teóricos. Ele

praticamente denunciou, por meio de seus livros, a engrenagem dos meios de

comunicação. Ler Adorno é sentir toda sua angústia, preocupação, ira e

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desesperança em relação à forma como funcionam os meios de comunicação.

O capítulo ‘Indústria Cultural’, do seu livro ‘Dialética do Esclarecimento’, por

exemplo, é uma verdadeira súplica àqueles que consomem os produtos

vendidos pelo cinema, rádio e televisão, para que “abram os olhos” frente aos

“interesses comerciais” dos meios de comunicação. Adorno, a partir da famosa

expressão “indústria cultural”, desenvolveu uma sólida teoria sobre a

engrenagem dos modos de produção e recepção dos meios de comunicação

no seio da sociedade “positiva” e capitalista. Entendia que os meios de

comunicação são empresas como outras quaisquer, que visam ao lucro, e não,

necessariamente, à emancipação do espectador.

Consideramos a filosofia de Adorno extremamente lúcida para os dias atuais.

Assim como ele, classificamos os meios de comunicação como indústria,

empresas que têm na sua engrenagem de produção, proprietários, funcionários

e lucro. Concordamos, também, que os temas vendidos nos programas de

televisão ou rádio já vêm previamente selecionados conforme os interesses da

indústria (seja essa representada por agentes, produtores, meios de

comunicação, agências de publicidade ou anunciantes). Entendemos,

igualmente, que toda a indústria funciona para produzir mensagens que serão

consumidas como produtos tangíveis, ou serviços, disponibilizados em

qualquer “prateleira” comercial.

Em geral, os textos produzidos pela mídia são leves, superficiais e visam ao

entretenimento e ao consumo fácil; são produzidos para tornar menos

complexa a vida dos expectadores, e buscam o entendimento, do contrário o

espectador troca de emissora, pois, cansado de sua jornada de trabalho,

segundo Adorno, o trabalhador-espectador está ávido por descanso, lazer e

entretenimento fácil e prefere consumir aquilo que não o faça pensar muito;

afinal, cansado de tanto trabalhar, não lhe sobra mesmo tempo para pensar.

O espectador não deve ter necessidade de nenhum pensamento próprio, o produto prescreve toda a reação: não por sua estrutura temática – que desmorona na medida em que exige o pensamento - mas através de sinais. Toda ligação lógica que pressuponha um esforço intelectual é

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escrupulosamente evitada. (Adorno,1985,p.128).

Entendemos que a falta desse “pensamento crítico” preconizada por Adorno

não se dá pelo fato de o interlocutor estar impossibilitado de criticar, de reagir.

Um conjunto de fatores contribui para que essa “falta de reação” ─ que em

nossa opinião nem é generalizada, nem determinada ─ aconteça.

Entre os principais fatores, a própria característica técnica do meio TV, onde o

que se diz é rápido, efêmero, não se deixa captar, registrar, a menos que

fiquemos gravando todos os programas para depois analisá-los; não é assim,

contudo, que as pessoas consomem esse meio singular. Outro fator é a própria

forma como assistimos à TV, em momentos de descontração, sentados no

sofá, em dias de lazer.

A TV é consumida e entendida pelos espectadores como entretenimento e

informação. Não assistimos à TV para deliberadamente criticar seus

conteúdos. Logo, a própria forma com que o “corpo físico” dos espectadores se

relaciona com o meio TV, sugere uma não-disposição em observar seus

mecanismos de persuasão, ficando essa tarefa para os estudiosos da mídia.

Outro fator é que, ao assistir TV ou ouvir rádio, estamos diante de um aparelho

técnico, e não de uma pessoa, ao vivo, com quem poderíamos interagir,

discordando ou não. É claro que os meios, atualmente, oferecem mecanismos

para facilitar a interatividade (0800/0300, sites, carta do leitor), mesmo assim,

não se compara à riqueza de um diálogo ao vivo.

Apesar de os textos da mídia oferecerem uma variedade de posições de

sujeito, de suas “[...] imagens projetarem modelos sociais e sexuais, formas

apropriadas e inapropriadas de comportamento, moda e estilo [...]”

(Kellner,2001), acreditamos que, nem por isso, estamos incapacitados de

reagir.

Nosso modo de olhar a relação humanidade-mídia, converge também nos

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posicionamentos assumidos por Thompson (1998,p.200), quando diz que “[...]

ao se moverem através da trajetória espaço-temporal de sua vidas cotidianas,

as pessoas adquirem tanto experiência vividas como mediadas, incorporando-

as num projeto de vida em contínua evolução”. Assim, certas experiências

mediadas se tornam até parte de uma rotina planejada: ler o jornal pela manhã,

ouvir rádio no carro enquanto vai ao trabalho, ver o noticiário da noite, etc.

Talvez por isso possamos inferir que, pelo fato da mídia fazer parte do

cotidiano do espectador e este assistir a ela “desarmado”, ele nem sempre

observa o “pano de fundo” que é vendido nas mensagens.

Vivemos uma época em que a facilidade de acesso aos meios de comunicação

de massa promove também uma “crescente disponibilidade de experiência

mediada” criando, assim, “[...] novas oportunidades, novas opções, novas

arenas para a experimentação do self [...]”10. Ao consumir as mídias, as

pessoas também estão “[...] explorando possibilidades, imaginando

alternativas, fazendo experiências com o projeto do self [...]” (Thompson, 1998,

p.202).

Cremos que nossa “interação” e posição de “sujeito ativo” podem ser

constatadas quando incorporamos, rapidamente, em nosso cotidiano, as

experiências da mídia e suas demandas. Os índices de consumo estão em

toda parte para comprovar. Compramos celulares, novos computadores, novos

carros, novas bugigangas tecnológicas, tudo muito rápido, numa síndrome que

podemos chamar de “tudo-ao-mesmo-tempo-agora”. Creio que a balança só

vai pesar para a “passividade” quando o sujeito espectador privilegiar mais o

ato de incorporar rapidamente em seu ‘self’ as demandas da mídia, sem que,

em algum momento de sua vida, doe-se às análises de suas propostas

discursivas.

10 No livro ‘Mídia e Modernidade’, Thompson usará o termo ‘self’ para designar o “eu”, a construção da identidade do sujeito por meio dos materiais simbólicos mediados.

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Quanto à televisão (assim como a maioria dos meios de comunicação), várias

são as funções que pode desempenhar: comunicação, informação, educação,

cultura, solidariedade, diversão, etc. Neste trabalho, entretanto, nossa intenção

não é a de julgar qual seria a melhor função da televisão, pois, querendo ou

não, elas coexistem e funcionam de acordo com a política comercial e

institucional de cada empresa de comunicação. Queremos sim, a partir daquilo

que é enunciado por ela, contribuir para a leitura de seus textos. Acreditamos

que, se soubermos ler as linhas e entrelinhas, as imagens e a ausência delas,

teremos aí um início de autonomia perante os efeitos de sentido de todo e

qualquer tipo de texto.

Dos anos 50 até aos dias atuais, uma evolução considerável aconteceu no

meio TV, principalmente no quesito tecnologia. Gabriel Priolli11 realizou um

trabalho de resgate da história da televisão em que associa o nível da

programação ao avanço tecnológico, além de aspectos históricos e sociais.

Classificou a TV por décadas: na de 50 foi elitista; na de 60, competiu por

audiência; na de 70, modernizou-se tecnologicamente, e na de 80, expandiu-

se. A década de 90 foi marcada pelo aumento de sensacionalismo na

programação, na busca incessante por maiores índices de audiência.

Nos dias atuais, a TV brasileira continua em expansão, principalmente com a

chegada dos canais por assinatura e operadoras de TV’s a cabo, além das

discussões sobre a implantação da televisão digital. Conquistou respeito e

projeção mundiais, e hoje exporta programas para diversas partes. São

telenovelas, minisséries, musicais, documentários, distribuídos em países tão

diferentes como os hispano-americanos, os luso-africanos e os do Leste

Europeu.

As principais redes de televisão aberta, também chamadas broadcast, são:

Cultura, SBT, Globo, Record, Rede TV! (antiga Manchete), Gazeta e

Bandeirantes. De todas elas, a TV Globo é a líder em audiência, fruto de um

11 Gabriel Priolli é jornalista, professor universitário e diretor da TV PUC.

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trabalho que mescla, habilmente, um padrão nacional, familiar e culturalmente

acessível, além do quesito confiabilidade, conseqüência de uma política que é

sempre muito rígida com os horários dos programas: o telespectador sabe,

exatamente, a hora em que o programa vai ao ar. Nem antes, nem depois.

A TV brasileira segue aquilo que podemos chamar de ‘modelo americano’ de

televisão, que consiste na dependência de patrocinadores para o sustento

financeiro da emissora, totalmente dependente de publicidade, portanto, ao

contrário de outras TVs, na Europa, por exemplo, que visam mais ao conteúdo

e menos ao patrocínio dos anunciantes.

Quanto aos programas, na TV brasileira são feitos sob medida, com produções

de baixo custo, para que as mesmas possam ser viabilizadas no mercado

anunciante. A performance de cada emissora é acompanhada 24 horas pelos

modernos recursos de institutos de pesquisa como o IBOPE, por exemplo. Na

mesma hora é possível detectar se um programa, um apresentador, ou mesmo

um ator está ou não agradando ao público. As decisões, mudanças na grade

de programação, mudança de equipe técnica, deste ou daquele artista, são

tomadas com base nos relatórios de pesquisa, tudo muito rapidamente, para

que não se corra o risco de perder muita audiência e, conseqüentemente,

anunciantes.

Os produtores olham os receptores não como parceiros co-presentes, num diálogo, mas como espectadores anônimos a quem eles devem agradar, persuadir, entreter e informar, cuja atenção eles podem ganhar ou perder e cuja audiência é a condição sine qua non da existência de suas atividades (Thompson,1998,p.92).

Assim, antes de entrarmos no capítulo específico das análises dos programas,

já temos uma primeira pista da relação mídia-espectador ─ “[...] reduzidos a um

simples material estatístico, os consumidores são distribuídos nos mapas dos

institutos de pesquisa em grupos de rendimento assinalados por zonas

vermelhas, verdes e azuis” (Adorno,1985,p.116).

Quanto à relação da televisão e da mídia, em geral, com os demais integrantes

do mercado, podemos dizer que, no que tange ao micro-universo externo, as

empresas de mídia se relacionam com seus clientes anunciantes, clientes

espectadores e concorrência. Quanto ao macro-ambiente externo, sofrem os

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impactos das variantes econômicas, políticas, culturais, tecnológicas e naturais,

da mesma forma que é beneficiada por elas. Desde o começo do filme já se sabe como ele termina, quem é recompensado, e, ao escutar, a música ligeira, o ouvido treinado é perfeitamente capaz, desde os primeiros compassos, de adivinhar o desenvolvimento do tema. [...] Sua produção é administrada por especialistas, e sua pequena diversidade permite reparti-las facilmente no escritório (Adorno,1985,p.118).

Essa citação de Adorno reforça nosso entendimento de que os meios de

comunicação no Brasil são uma empresa como outra qualquer, de iniciativa

privada, que visa ao lucro, divulgando produtos de várias empresas

anunciantes por meio de espaços comerciais chamados ‘breaks’12. Vendidos

fora ou dentro dos programas, esses espaços configuram a principal fonte de

lucro das emissoras, e para que existam, uma grade de programação é

rigorosamente definida pelo departamento de marketing do veículo, com

acompanhamento constante de resultados.

Os produtos da televisão, na condição de programas-produto, são vendidos

com diferentes roupagens, conforme o potencial do mercado consumidor e

anunciante; enquanto programas-mensagem, são produzidos e vendidos como

conteúdo significante, nas roupagens informação, entretenimento, infantil,

novelas, etc., conforme veremos em subitem específico sobre categorias,

gêneros e formatos.

3.2 AS CARACTERÍSTICAS DA MÍDIA TELEVISÃO

O texto televisivo é considerado um texto sincrético, pois forma-se,

simultaneamente, na convergência de diferentes sistemas de linguagens. Na

televisão, as duas formas de registro em que podem ser desenvolvidas

12

‘Break’, em inglês, significa ‘quebra’, ‘arrombamento’. ‘Break comercial’ é o intervalo ou espaço que a emissora cria entre um programa e outro, ou mesmo, intervalos dentro da própria faixa horária em que se passa um programa, momento em que as propagandas pagas (conhecidas normalmente como ‘anúncios’ ou ‘comerciais’) dos anunciantes são mostradas.

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diversas linguagens, esses textos são constituídos, basicamente, pelos

sistemas semióticos visuais e sonoros.

A teoria semiótica, ao estudar os textos visuais, analisa os formantes

constitutivos da plasticidade visual � os formantes eidéticos (figuras/formas),

topológicos (espaciais), cromáticos e matéricos13. Entretanto, o texto televisivo

necessita, ainda, de análises que possam dar conta da especificidade de seus

sistemas semióticos: os planos, os movimentos de câmera, tipos de cortes,

fusão, ‘zoom in’ (recurso de aproximação), ‘zoom out’ (recurso de

afastamento), angulosidades de câmera, edição, etc.

Apesar de o texto televisivo constituir-se com elementos de várias semióticas,

deve ser lido como um todo de significação.

A televisão aberta brasileira não costuma trabalhar com “complexidades”. Sua

narrativa, ao ser transformada em discurso, pretende ser acessível, para que o

telespectador não mude de canal, e tratando-se do público infantil, essa

“fórmula” evidencia-se mais ainda.

A linguagem televisiva exige do espectador certas habilidades, competência e

formas de conhecimento para decifrar suas mensagens (conteúdos e

expressões).

A televisão é classificada por Thompson (1998) como uma “[...] quase interação

mediada [...]”. Segundo esse autor, as formas de comunicação podem ser

classificadas como ‘face-a-face’, mediada, e quase mediada. Assim, alguns

meios técnicos, ao transmitirem mensagens de forma unilateral não deveriam

ser chamados de meios de comunicação, e sim, de “meios de transmissão ou

difusão” de mensagens, por não se tratar de “verdadeira” comunicação no

sentido dialógico do termo, função essa, segundo esse autor, completamente

13 Esse formante não existe na TV, por tratar-se de um texto virtual, não palpável. Mas segundo Ana Sílvia Davi Médola, precisamos estudar mais para descobrir se esse formante realmente não existe.

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possível apenas na interação ‘face-a-face’. A televisão seria, então, o tipo de

comunicação que não permite nem a dialogia, nem a fixação da mensagem por

muito tempo, pois suas mensagens são curtas, rápidas, e efêmeras.

O conceito de dialogia de Thompson, comparado ao do filósofo Mikhail Bakhtin,

apresenta-se, a nosso ver, pouco trabalhado. Bakhtin (2000), ao discutir “os

gêneros do discurso”, fornece uma maior argumentação, quando diz que

muitas são as teorias da comunicação que costumam encarar os parceiros do

processo de comunicação como emissores e receptores. Dessa forma, “[...] a

linguagem é considerada do ponto de vista do locutor como se este estivesse

sozinho[...]” e, mesmo quando o “[...] outro é levado em consideração, é como

um destinatário passivo que se limita a compreender o locutor[...]” (BAKHTIN

2000).

Ao contrário desse pensamento, Bakhtin vai dizer que a comunicação se dá

entre interlocutores que ora podem estar no papel de locutores, ora na de

ouvintes. Acredita que o enunciador, ao formular seus discursos, já o faz

pensando nas possíveis objeções do outro, formatando sob medida seus

enunciados conforme as características dos diversos “auditórios sociais14”.

Bakhtin vai dizer, também, que, numa situação de comunicação, nem sempre

os interlocutores precisam estar presentes fisicamente; ele acredita nos

chamados “interlocutores psicológicos”, uma espécie de imagem do locutor que

fica na mente daquele que esteve na posição de ouvinte. É como se os “ecos

do discurso” ficassem ressonando na mente dos parceiros da comunicação.

Bakhtin vai concordar que os esquemas que tomam a comunicação como

parceiros emissivos (de um lado alguém fala) e receptivos (de outro lado

alguém ouve) não estão errados, pois “[...] correspondem a certos aspectos

14

Auditório social, para Bakhtin, é o grupo de pessoas para os quais o locutor vai construir e divulgar seus enunciados. Acredita o autor que a configuração cultural, econômica, social dos indivíduos de um determinado grupo social interfere diretamente na construção do enunciado que o enunciador construirá. Conhecendo as possíveis objeções e interpretações de um dado enunciatário, o enunciador, em seu fazer-persuasivo, tentará que o “outro” adote o seu ponto de vista.

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reais, mas quando estes esquemas pretendem representar o todo real da

comunicação verbal se transformam em ficção científica” (2000,p.290).

Esclarece-nos também o autor, que o “[...] ouvinte que recebe e compreende a

significação (lingüística) de um discurso, adota simultaneamente, para com

este discurso, uma atitude responsiva ativa: ele concorda ou discorda [...],

completa, adapta, etc.[...]” (2000, p.290, grifo nosso) o discurso no ato na

enunciação.

Com Bakhtin, reforçamos ainda mais nossa convicção da não-determinação de

“passividade” por parte dos interlocutores, já discutidas no início desse

capítulo. Segundo esse autor, “[...] toda compreensão é prenhe de resposta, e,

de uma forma ou de outra, forçosamente a produz: o ouvinte torna-se o locutor”

(2000,p.290).

Mesmo que a “ação responsiva ativa” não aconteça na hora mesma do diálogo,

ela pode acontecer mais tarde, pois pode “permanecer, por certo lapso de

tempo, [como] compreensão responsiva muda” [...] uma compreensão

responsiva de ação retardada: cedo ou tarde, o que foi ouvido e compreendido

de modo ativo encontrará um eco no discurso ou no comportamento

subseqüente do ouvinte”. Assim, a “compreensão responsiva” configura “fase

inicial e preparatória para uma resposta (seja qual for a forma de sua

realização)” (2000, p.291).

Nesse sentido, uma vez que o “outro” não precisa estar necessariamente

presente fisicamente, podemos admitir que a televisão promove um tipo de

dialogia em que o telespectador, ao interagir com “cadeias de enunciados”,

necessariamente não fornece uma “resposta fônica” imediatamente. Com os

ecos do diálogo com os interlocutores psicológicos de seu universo, pode

proceder à compreensão responsiva ativa e, posteriormente, em outro lugar e

noutro momento, exercer uma ação responsiva ativa.

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Pelas características do aparelho de televisão, o tipo de interação que este

meio promove é de tal modo que um dos parceiros estará sempre ausente

fisicamente. O grande ausente (fisicamente falando) ora é o produtor, que

difunde seu discurso, mas não está presente no mesmo espaço e tempo do

ouvinte, ora o telespectador, que não se interessou pelos discursos colocados

em circulação pelos produtores de mídia. Assim, nesse jogo de presença e

ausência, poderíamos dizer que a televisão permite certo tipo de dialogia em

que a ação responsiva sempre advém de uma compreensão responsiva de

efeito retardado.

Mas se Thompson não se aprofundou muito no conceito de dialogia, nos

forneceu didático quadro com características dos tipos de interação.

QUADRO 1: TIPOS DE INTERAÇÃO

Características

interativas

Interação

Face-a-face

Interação

Mediada

Quase-interação

mediada

Espaço-tempo Contexto de co-presença; sistema referencial espaço-temporal comum.

Separação dos contextos; disponibilidade estendida no tempo e no espaço.

Separação dos contextos; disponibilidade estendida no tempo e no espaço.

Possibilidades de deixas simbólicas15

Multiplicidade de deixas simbólicas

Limitação das possibilidades de deixas simbólicas

Limitação das possibilidades de deixas simbólicas

Orientação da atividade Orientada para outros específicos

Orientada para outros específicos

Orientada para um número indefinido de receptores potenciais.

Dialógica/monológica dialógica Dialógica Monológica Fonte: Thompson,1998,p.80.

Esses tipos de comunicação classificadas por Thompson (1998) interessam

diretamente às nossas análises, pois, como diz o autor, no caso da interação

‘face-a-face’ há um distanciamento relativamente pequeno entre enunciador e

enunciatário, sendo que a conversa acontece num contexto de co-presença

entre ambas as partes. Já a suplementação da fala por meios técnicos de

15 Bakhtin vai chamar de dixis uma espécie de entendimento em que o locutor sabe a hora em que passa a ser ouvinte e vice-versa. Também se consideram deixas simbólicas, os gestos, as expressões, a intensidade do olhar, do aperto de mão, entonações de voz, etc.

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vários tipos, faz com que a mensagem ora esteja disponível para um número

maior de pessoas, ora, por mais tempo, no espaço e no tempo, podendo ser

lida e repetida por indivíduos situados em contextos diferentes tanto no tempo

quanto no espaço. Os meios técnicos alteram as condições espaço-temporais

da comunicação entre as pessoas, fazendo com que as mesmas possam

interagir à distância. Essa desigualdade entre os participantes do processo, faz

com que o receptor fique sem canais de resposta imediatos.

Antigamente simultaneidade pressupunha localidade, ou seja, o “mesmo tempo” exigia o “mesmo lugar”. Com o advento dos meios técnicos houve a disjunção entre espaço e tempo e a experiência da simultaneidade separou-se do condicionamento espacial. Ao invés de um aqui e agora, emergiu um “sentido de agora” não mais ligado a um determinado lugar (Thompson, 1998,pág.36 e 37).

As características textuais e de funcionamento do processo comunicativo pela

televisão aumenta muito a responsabilidade do pesquisador dos sistemas

midiáticos. Não só pela análise do discurso, mas também pela análise de um

discurso em que as pessoas, num mundo cada vez mais permeado por novos

meios de comunicação, são capazes de trocar experiências com outras sem

sequer encontrá-las no mesmo ambiente espaço-temporal.

Um aspecto curioso apontado por Thompson no seu livro ‘Mídia e

Modernidade’ (1998), diz respeito às “vantagens” da televisão quando

comparada com a relação ‘face-a-face’. Ao esclarecer por que os indivíduos

gostam tanto do tipo de interação quase mediada que a televisão oferece, vai

dizer que a interação por ela proporcionada libera o indivíduo do compromisso

que uma relação ‘face-a-face’ exige. Com a televisão, acredita o autor,

podemos ter experiências as mais diversas possíveis, sem, necessariamente,

dar satisfação a ninguém; é algo individual, só depende de nossa disposição,

de nosso, tempo, “sem entrar na teia de compromissos recíprocos”. Nesse

sentido, a televisão é vista por Thompson como uma companheira regular e

confiável, que proporciona diversão, conselhos, informações, mas não exige

compromissos, esses específicos das relações ‘face-a-face’. Assim, os

espectadores têm liberdade o suficiente para modelar o tipo de relação que

quer ter com a mídia, ou seja, seus companheiros distantes.

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Outra “vantagem” da televisão, apontada na “tabela de interações” de

Thompson, é a “sua capacidade de utilizar uma grande quantidade de deixas

simbólicas”. A televisão converge, em seu sistema técnico, áudio, vídeo e

ilusão de movimento, aquilo que alguns teóricos do meio chamariam de “retrato

da vida real”, características essas que discutiremos mais detalhadamente nos

capítulos específicos de análises dos desenhos.

3.3 A QUESTÃO DOS GÊNEROS NA TELEVISÃO

Para discutir o conceito de gêneros na televisão, buscamos a visão de três

autores: Elizabeth Bastos, no livro ‘Televisão: Ensaios Metodológicos’; José

Carlos Aronchi ─ ‘Gêneros e Formatos da Televisão Brasileira’; e Bakhtin ─

‘Estética da Criação Verbal’.

Conforme Aronchi (2004), os gêneros são conteúdos programáticos

classificados em categorias mais amplas, sendo que o gênero é o conteúdo, e

a categoria, uma espécie de função. Exemplo: o gênero ou conteúdo infantil

tem a função de entretenimento. O autor propõe, a partir do seu livro ‘Gêneros

e Formatos na Televisão Brasileira’ (2004,p.92), o seguinte quadro para a

definição de gêneros:

QUADRO 2: DEFINIÇÃO DE GÊNEROS

CATEGORIA GÊNERO

Entretenimento Auditório. Colunismo Social. Culinário. Desenho animado.

Docudrama. Esportivo. Filme. Game Show. Humorístico. Infantil.

Interativo. Musical. Novela. Quiz Show. Reality show. Revista.

Série. Sitcom. Talk show. Teledramaturgia. Variedades. Western.

Informação Debate. Documentário. Entrevista. Telejornal.

Educação Educativo. Instrutivo.

Publicidade Chamada. Filme comercial. Político. Sorteio. Telecompra.

Outros Especial. Eventos. Religioso.

Fonte: Aronchi de Souza,2004,p.92.

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Na visão de Elizabeth Bastos ‘Televisão: Ensaios Metodológicos’, “[...] dizer de

um programa que ele é informativo ou de entretenimento é praticamente nada

informar sobre ele”. Segundo a autora, “[...] afinal, que programa não traz

informações ou entretenimento? [...]”. E ainda, “[...] em que exatamente entreter

se opõe a informar [...]” (BASTOS,2004,66).

Apesar das diversas funções que a televisão poderia assumir, conforme

descritas anteriormente na tabela proposta por Aronchi (Entretenimento,

Informação, Educação, Publicidade, outros),

[...] essas não se constituem em aspectos distintivos entre os diferentes produtos televisivos, pois todas elas são de certa forma, neutralizadas pela espetacularização que garante a função maior de tais produtos - o entretenimento (Bastos, 2004,75).

Bastos afirma que em televisão até o ataque terrorista às torres gêmeas é da

ordem do espetáculo, suscitando um perigoso contrato comunicativo que “[...]

funda-se num duplo princípio: o prazer e a seriedade” (BASTOS,2004,p.75).

Já o filósofo Bakhtin (2000), vai falar de gêneros no livro ‘Estética da Criação

Verbal’, referindo-se aos gêneros do discurso. Caracteriza-os como primários,

também chamados simples (comunicação verbal espontânea), e secundários,

também chamados complexos (comunicação cultural, principalmente a escrita

artística, científica, sociopolítica). Vai dizer que é de suma importância estudar

a natureza do enunciado e a diversidade de seus gêneros nas diferentes

esferas da atividade humana, pois é indispensável, para qualquer estudo, seja

qual for a sua orientação específica, “uma concepção clara da natureza” do

enunciado em geral, e dos vários tipos de enunciados em particular (primários

e secundários), ou seja, dos diversos gêneros do discurso (Bakhtin,

2000,p.282).

Bakhtin afirma que é a partir de uma dada função (científica, técnica,

ideológica, oficial ou cotidiana) que é gerado um dado gênero, ou seja, um

dado tipo de enunciado:

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Em cada época de seu desenvolvimento, a língua escrita é marcada pelos gêneros do discurso e não só pelos gêneros secundários (literários, científicos, ideológico), mas também pelos gêneros primários (os tipos do dialogo oral: linguagem das reuniões sócias, dos círculos, linguagem familiar, cotidiana, etc.). (2000, p.285).

A partir dos conceitos de gêneros trazidos por Bakhtin, podemos inferir que,

para cada função da atividade de comunicação humana, um tipo de gênero

pode ser construído, ou seja, dependendo da intencionalidade do enunciador,

um gênero primário ou secundário poderá ser utilizado. Ambos vão se

diferenciar, porém, além do conteúdo, também na forma e no estilo em que

serão enunciados, dependendo do auditório social a que se destinará. Nesse

sentido, também as idéias de Bakhtin podem ser aplicáveis à forma como a

televisão configura seus produtos. Se, conforme Bakhtin, os gêneros

secundários (complexos) absorvem os primários (conversação espontânea das

pessoas), podemos dizer que a televisão faz essa apropriação eficazmente. O

que mais faz a TV, em uma novela, senão apropriar-se de matéria-prima da

vida real, das conversas cotidianas, de histórias reais, e transformá-las em

dramaturgia? Assim, concebendo seus textos a partir de casos do cotidiano, a

TV consegue, com maestria, aproximar os telespectadores, fazendo com que

os mesmos se identifiquem com suas histórias.

Com a ajuda das visões desses três autores, acreditamos que qualquer

classificação (categoria, nome e toda sorte de nomenclaturas definidas pelas

emissoras de TV), é feita para cumprir determinados objetivos, orientados, em

última instância, pelas demandas mercadológicas. Para além dessas

nomenclaturas, podemos dizer que a televisão produz conteúdos que podem

cumprir diversas finalidades/funções. Para divulgar seus conteúdos, a TV o faz

por meio de seus programas. Para esses programas serem veiculados, os

produtores materializam-nos com diferentes conteúdos, estilos e formatos.

Conteúdos, estilos e formatos, na televisão, assumem plásticas que são

próprias da semiótica televisiva (áudio, vídeo e ilusão de movimento).

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Examinar um produto televisivo é atentar às diferentes linguagens responsáveis pela sua expressão e à forma como elas se articulam: de um lado, à plástica da imagem – estilos de cenário, vestuário, maquiagem, iluminação, e, mesmo, modos de interpretação; de outro, enquadramentos, cortes em cenas, planos, montagens e edição, justaposição de cenas em movimento, anulações e sucessões (BASTOS, 2004,p.70-71).

Nesse sentido, se as nomenclaturas de categorias, funções e gêneros

utilizadas pela televisão para organizar seus programas-produto nem sempre

têm a ver com sua verdadeira função ou conteúdo que está sendo veiculado,

quais critérios são utilizados para dizer que este ou aquele programa informa,

entrete, ou mesmo, para distingui-los entre conteúdo infantil e jornalístico?

Investigamos essas questões fazendo uma comparação entre as informações

contidas no ‘site’ institucional da TV Globo e as existentes em sua tabela de

comercialização.

Se entrarmos na ‘home’ da TV Globo e ‘clicarmos’ no item ‘todos os sites’,

teremos todos os ‘sites’ de programas da emissora, classificados da seguinte

forma: Notícias, com 30 ‘sites’ de programas, Esportes, 29 ‘sites’ e

Entretenimento, com 65 ‘sites’.

De saída, já identificamos o direcionamento da empresa, uma vez que a

secção ‘entretenimento’ é responsável por colocar 65 produtos da emissora no

mercado. Para exemplificar, extraímos alguns ‘sites’ que estão englobados em

cada secção. Se ‘clicarmos’ na secção ‘Notícia’, encontraremos catalogados

nela, ao mesmo tempo, os ‘sites’ dos programas Jornal Nacional, Fantástico

e Linha Direta. Na secção ‘Esporte’, temos os ‘sites’ dos programas Globo

Esporte, Esporte Espetacular e Futebol. Já na secção ‘entretenimento’,

temos exemplos de ‘sites’ de programas como Belíssima, Chocolate com

Pimenta, A Casa das Sete Mulheres, TV Xuxa, TV Globinho, Casseta e

Planeta e A Grande Família.

Se compararmos com a tabela de preços colocada à disposição para

comercialização, temos que:

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• Jornal Nacional é considerado gênero Jornalístico;

• Fantástico, gênero Show;

• Linha Direta, gênero Reportagem;

• Globo Esporte, gênero Esporte;

• Esporte Espetacular, gênero Esporte;

• Futebol, gênero Esporte;

• TV Xuxa, gênero Infantil;

• TV Globinho, gênero Infantil;

• Belíssima, gênero Novela;

• Chocolate com Pimenta, gênero Novela;

• A Casa das Sete Mulheres, gênero Mini-série;

• Casseta e Planeta, gênero Humorístico; e

• A Grande Família, gênero Série.

As classificações contidas no ‘site’, unidas às classificações contidas na tabela

de preços, leva-nos à seguinte rede de relações:

QUADRO 3: RELAÇÕES PROGRAMAS E GÊNEROS SECÇÃO NOTÍCIA

Programas Gênero

Jornal Nacional Jornalístico

Fantástico Show

Linha Direta Reportagem

SECÇÃO ESPORTE Programas Gênero

Globo Esporte Esporte

Esporte Espetacular Esporte

Futebol Esporte

SECÇÃO ENTRETENIMENTO Programas Gênero

TV Xuxa Infantil

TV Globinho Infantil

Belíssima Novela

Chocolate com Pimenta Novela

A Casa das Sete Mulheres Mini-série

Casseta e Planeta Humorístico

A Grande Família Série

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Assim, a categoria ampla, secção em que a emissora engloba um programa, é

a forma como a emissora gostaria que um programa fosse visto no que diz

respeito à sua função. Se um programa está englobado na categoria

entretenimento, significa que a emissora o produz com a função de entreter.

Mas, se um programa está inserido na categoria notícia, ele tem a função de

noticiar, informar. Mas, e a categoria Esporte? Qual é a sua função? Entreter

ou informar? Sabemos que o esporte, no Brasil, é uma atividade altamente

entretenedora. O brasileiro é fanático por futebol. A própria ambientação com

que os comerciais brasileiros apresentam esse esporte, sempre na praia, ou

em festa, com amigos, cerveja e belas mulheres, é lúdica. Por que, então, o

nome futebol, em vez de entretenimento?

Quando analisamos a forma como a TV Globo coloca à venda seus programas

cujas classificações de gêneros são nomeadas como jornalístico, humorístico,

novela, série, esporte e infantil, a confusão fica maior. Se o gênero é

considerado o conteúdo do programa, a que uma classificação de nome

‘infantil’ nos remete? E, novamente, esporte? ‘Infantil’ nos parece mais a faixa

etária a que está destinado um programa do que necessariamente o conteúdo

ou função.

Lúcia Teixeira (1996), em seu livro ‘As Cores do Discurso’, afirma que a

titulação é uma espécie de moldura enunciativa, uma forma de vender o

conteúdo enunciado, configurando um primeiro elo entre enunciador e

enunciatário, despertando a curiosidade desse último pelo tema ou notícia a

ser divulgada.

Após análise do site institucional da TV Globo, acreditamos ser exatamente

nessa direção que as emissoras de televisão pensam seus chamados gêneros,

segmentando o mercado consumidor e colocando o produto certo na prateleira

certa. Oferece diversão para quem quer diversão, notícia para quem quer

notícia, esporte para quem quer esporte, com um pano de fundo que não

necessita de análises muito aprofundadas para descobrir, pois:

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• A TV está presente em 98% dos lares brasileiros;

• Os espectadores consomem esse meio em momentos de descontração;

• As emissoras reservam a maior parte de sua grade de programação para

conteúdos espetacularizantes, lúdicos, de ficção;

• Vivemos num sistema econômico em que a aquisição de um aparelho de

televisão é facilitada em diversas prestações;

• A indústria fabricante investe pesadamente em aparelhos com telas cada

vez maiores.

Isto posto, estamos convencidos de que, simultaneamente à lógica do

mercado, em televisão prevalece a lógica do entretenimento.

3.4 AS CARACTERÍSTICAS DO DESENHO ANIMADO

Segundo Souza (2004), estudos realizados no Brasil, em 1995, indicam que

66% da programação brasileira são compostos de produção nacional. Os

gêneros que formam a categoria entretenimento representam 64,6% do total da

programação.

O gênero desenho animado, na sua totalidade, entendido como função de

entretenimento, que no início da televisão brasileira era voltado exclusivamente

para o público infantil, passou por mudanças visando à conquista de um

público mais velho. ‘Os Simpsons’ e ‘A Família Dinossauro’, que abordam

situações cotidianas que atraem tanto adultos quanto crianças, provam isso.

Muitos desenhos são atemporais, e os personagens não envelhecem nunca ─

‘Os Flintstones’ têm mais de trinta anos. Os primeiros desenhos americanos

transmitidos no Brasil introduziram bichos e insetos que mexiam com o

imaginário das crianças: cachorros, gatos, ratos e aves � Bob Pai e Bob Filho,

Olho Vivo e Faro Fino, Manda-Chuva, O Gato e o Rato, Piu-Piu, o Jacaré

Wally, a Formiga Atômica, os ursos Zé Colméia e Catatau. Também outros,

como o Fantasma Gasparzinho e a Pantera Cor-de-Rosa, além dos

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personagens famosos da Disney e da dupla Hanna-Barbera.

Já o gênero infantil, desde os primórdios da televisão brasileira, espelhou-se

em sucessos internacionais, como a famosa Vila Sésamo (versão brasileira do

americano Sesame Street), e também na literatura, como o Sítio do Pica-Pau-

Amarelo, do escritor Monteiro Lobato. Outra produção famosa, produzida pela

TV Cultura, é o ‘Castelo Rá-tim-bum’, eleito o melhor programa do gênero

infantil em 2004, na opinião de pais, crianças e profissionais das empresas de

mídia.16 Já programas como Tarzan e Super-Homem foram importados dos

Estados Unidos.

Segundo Souza (2004), nenhum outro gênero de televisão reúne na produção

tantos profissionais de diferentes áreas quanto o infantil; psicólogos,

educadores, médicos, e até profissionais de educação física são consultados

pela equipe de TV.

A televisão mantém o atributo de babá eletrônica neste país, em que as crianças passam poucas horas na escola. Por isso, o gênero infantil garante para elas diversão passiva desde o início do dia até o fim da tarde. [...] As redes abraçaram a deficiência da qualidade do ensino público e dedicam boa parte da programação a crianças, apoiadas por patrocinadores, que reconheceram o potencial do consumidor mirim, com forte poder de pressão na família (SOUZA,2004,p.114).

Em relação à apresentação dos programas infanto-juvenis, podemos

mencionar as três principais apresentadoras: Xuxa, Angélica e Eliana, todas no

padrão loira, bonita e sensual. As crianças

[...] formam o grupo mais expressivo de espectadores, pois não têm barreiras para assimilar os sentimentos que o texto sugere - gritam, aplaudem, se enfurecem e até ficam tristes com as histórias; ademais, não há limitações para expressar os movimentos corporais imitando as personagens (FADUL, apud Souza, 2004, p.116).

16 O Prêmio ‘Mídia Q’ foi idealizado, em 2004, pela empresa Multifocus, em parceria com a ONG Midiativa, com o objetivo de premiar os programas de qualidade para o público infantil.

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Tudo o que se move é animado, e se todos os filmes mostram movimento,

poderíamos dizer, então, que todos os filmes são animados. Mas quando o

produtor audiovisual usa o termo “animação”, tem em mente um sentido muito

particular. Todo filme é, por natureza, uma decomposição do movimento numa

série de fases imóveis. Quando o cineasta usa o termo “filme animado”, o faz

no sentido estrito do trabalho de um artista gráfico, que recria no papel as fases

separadas de um movimento que dão a ilusão de uma ação contínua quando

projetadas em seqüência numa tela.

Quando um pintor ou escultor deseja criar a ilusão de vida e movimento na

imagem imóvel, pode fazê-lo isolando alguma atitude momentânea como a

mão estendida, os olhos levantados, o cabelo erguido pelo sopro do vento.

Assim, a imagem imóvel parece estar à beira do movimento ─ “[...] Sente-se

que há vida naqueles membros retesados, naqueles lábios que parecem

prestes a sorrir” (HALAS & MANVELL, 1979, p.14).

A história do desenho animado recebeu influências de artistas da arte

contemporânea, arte abstrata e também do mundo das revistas em quadrinho.

Recebeu contribuição de diferentes estilos, desde aqueles que adotavam um

estilo de representação tal e qual do real (naturalismo), até aos que se

mostravam menos apegados à representação da realidade.

O que toda animação normal tem em comum é a exposição do filme fotograma por fotograma. É isto que a torna fundamentalmente diferente da filmagem ao vivo, onde o que quer que se mova é filmado na continuidade do seu movimento. [...] Quando o animador põe o lápis sobre o papel, deve ter em mente o que vai acontecer às suas idéias gráficas antes que elas cheguem à tela - a pintura, o decalque, a partitura musical, os efeitos sonoros, a narração e o diálogo (HALAS & MANVELL,1979,p.21-22).

Apesar de a essência da animação ser o movimento, e os profissionais que

lidam com isso serem especialistas em como o movimento se dá na vida real,

uma figura desenhada deve possuir as qualidades livres do desenho, da

caricatura e não apenas ser cópia do real. “[...] Na verdade, as qualidades

essenciais da animação começam onde a ação real dos filmes termina”

(HALAS & MANVELL, 1979, p.27).

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O processo de animação de desenhos é longo e árduo. Várias são as etapas,

que devem ser trabalhadas minuciosamente e em sincronia com as demais, e

todos os profissionais envolvidos devem estar atentos para o produto final.

Na animação, cada desenho sucessivo é parte de uma seqüência pictórica, um movimento que tem um começo e um fim e que é elemento essencial da sua forma artística. O animador pensa em primeiro lugar nesse movimento, antes de desenhar qualquer uma de suas fases sob a forma de esboço ou imagem acabada. Para ele, a composição dentro do fotograma tem não apenas altura, largura e sugestão de profundidade na perspectiva, mas também um movimento cronometrado. É uma composição móvel. (HALAS & MANVELL, 1979,p.27).

Nesse sentido, apresentamos, a seguir, as etapas da animação de desenhos:

1) ‘Storyboard’ e Som;

2) Roteiro;

3) Modelos dos Personagens;

4) Projeto e layout;

5) Gravação do som;

6) Gravação das vozes;

7) Diagramação da música e do diálogo;

8) Diagramação para fotografia;

9) Animação principal;

10) Animação intermediária;

11) Teste de animação;

12) Aperfeiçoamento dos esboços da animação;

13) Preparação dos fundos;

14) Traçado a tinta nas folhas de acetato;

15) Pintura das folhas de acetato;

16) Controle;

17) Fotografia/ Filmagem;

18) Verificação dos copiões;

19) Montagem da imagem e do som;

20) Gravação das trilhas e mixagem final;

21) Cópia final para exibição.

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Em seguida, apresentamos, de forma geral, as principais etapas do processo de

produção do desenho animado e como elas funcionam, sem a pretensão,

porém, de detalhar cada etapa do processo, já que, de algumas delas, com a

leitura do próprio nome pode-se entender o que significa, deixando, assim, para

o capítulo de análises, maiores detalhamentos das especificidades pertinentes à

plástica dos desenhos animados:

• O processo de produção de desenho animado começa por aquilo que

chamamos de ‘storyboard’, que significa a transposição da concepção

visual do filme/desenho para o papel. É um conjunto de ilustrações

mostrando a seqüência da ação;

• À medida que o ‘storyboard’ vai sendo feito, os profissionais vão

pensando na trilha, na voz dos personagens e nas várias expressões que

um personagem terá � se alegre, triste, de frente, de perfil, no tamanho

do corpo, do rosto, dos braços, etc. Assim, cada detalhe do personagem é

pensado, inclusive o plano de fundo (uma cidade, uma floresta, etc.);

• Quando esses primeiros processos estão prontos, cada folha é

separada e colocada em seqüência para ser produzida, pintada e

finalizada, e são colocadas em seqüência para simular o movimento;

• Após essas etapas, um cinegrafista filma e coloca luz em cada folha, de

acordo com as indicações técnicas feitas pelos diretores;

• Após a filmagem, é feita uma mixagem do produto com o sistema sonoro

(voz dos personagens, fundo musical, efeitos, diálogos).

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3.5 TELEVISÃO E EDUCAÇÃO

Para nós, escrever sobre Televisão e Educação é uma grande alegria. É o

momento em que, enfim, podemos reunir a experiência adquirida em quatorze

anos de atividade publicitária com os últimos cinco anos dedicados

exclusivamente à Educação.

Pelas contingências das escolhas profissionais, estivemos mais próximos da

prática do que “da filosofia da prática”. Nossa inserção no ambiente

educacional nos possibilitou resgatar anos daquilo que, sem constrangimento,

chamaria ‘dormência teórica’.

Para dar conta deste ensaio filosófico, nossos posicionamentos foram

delineados a partir das visões de mundo de Theodor Adorno, com as

discussões proporcionadas nas entrevistas que deram origem ao livro

‘Educação e Emancipação’, cujo capítulo ‘Televisão e Formação’ serviu-nos de

fonte de inspiração. Além das teorias que compõe as nossas referências e dos

livros de nossos autores, bastante esclarecedoras também foram as notícias

sobre mídia e educação acompanhadas, semanalmente, através das

divulgações das Ongs Midiativa e Rio Mídia.

As discussões que Theodor Adorno suscitou em suas obras ao longo de sua

vida, principalmente sobre o tema ‘Educação e Emancipação’, estão muito

atuais para os dias de hoje. Adorno entendia que toda educação deve ser

também educação política. Dizia que a “[...] teoria social é na realidade uma

abordagem formativa, e a reflexão educacional constitui uma focalização

político-social, uma educação política” (1995, p.15). Denunciou seriamente “[...]

os referenciais da razão nos termos de uma racionalidade produtivista pela

qual o sentido ético dos processos formativos e educacionais vaga à mercê das

marés econômicas”. Afirmava que “[...] a crise da formação é a expressão mais

desenvolvida da crise social da sociedade moderna” (pp.15 e 16).

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Adorno não criticava a racionalidade, no conceito mesmo do termo, mas sim, a

falta de racionalidade, “o déficit das pessoas na experiência formativa

dialética”, que, para ele, seria a própria razão. Para Adorno (1985), era preciso

advertir a razão em prol da própria razão, era preciso denunciar a cumplicidade

entre o desenvolvimento da ciência e cultura, as formas socialmente

objetivadas da subjetividade e a estrutura de dominação conservadora da

formação social. Suplicava por uma educação que seria chamada de

“Educação contra a Barbárie” 17, uma educação com sentido emancipatório. Ao

contrário do que se poderia pensar, o sentido de “educação emancipatória”,

para Adorno, não consistia em passar bons conselhos ou tons de moralidade,

consistia, sim, em denunciar que se as mazelas do mundo acontecem é porque

existem “condições objetivas” para que aconteçam.

Dessa forma, uma educação emancipadora, para Adorno, era admitir que,

naturalmente, uma educação crítica, por si só, já é “tendencialmente

subversiva”. É romper com a educação, enquanto mera apropriação de

instrumental técnico e receituário para eficiência, e optar por uma educação

que reelabore a História, privilegiando o contato com o outro não idêntico, o

diferenciado.

Mais especificamente sobre a relação entre “Educação e Televisão”, Adorno

não condenava a televisão em si, mas o uso indiscriminado que as pessoas

faziam desse veículo particular e da produção especializada, estereotipada e

ideológica dos programas. Não achava que a solução era polarizar entre

assistir ou não assistir à televisão. Como sociólogo da educação, concentrou

seus estudos nos possíveis efeitos de transmissões sem objetivo educacional.

Focou, particularmente, aquilo que chamava de “encenações televisivas”, ou

seja, os programas ficcionais18.

Já naquela época, para nossa alegria, dizia, junto com outros teóricos, que o

17 Educação contra a Barbárie faz referência aos episódios nazistas em Auschwitz. 18

Pontuamos que, para nós, todo programa na TV é ficcional, pois, se é imagem, é ficção.

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importante era que as pessoas se conscientizassem tanto da “função

educacional, da função educativa de esclarecimento da televisão, quanto do

perigo da sedução que ela representa” (ADORNO,1995,p.78). Sugeria que, a

partir desta dupla consciência, instituições apropriadas fossem criadas para

ensinar televisão, isto é, introduzir o uso da televisão seja na educação de

adultos, seja na escola. Achava realmente necessário ”ensinar os espectadores

a verem televisão” (1995,p.79). Fez, inclusive, nos Estados Unidos, um estudo

intitulado ‘Como ver tevê?’, que, na verdade, consistia em “ver tevê sem ser

iludido, ou seja, sem se subordinar à televisão como ideologia”. Essa é uma

parte muito importante da teoria de Adorno que nos ajuda a justificar nossa

proposta de leitura de imagens da televisão.

Sabendo que as crianças e jovens ficam tão fascinadas pelas imagens, a ponto

de perder “o pano de fundo” do que está sendo veiculado, reiteramos a

necessidade de pesquisar, de maneira mais sistematizada, os mecanismos de

leitura dessa mídia particular no âmbito da educação.

Encontramos conforto nas idéias de Adorno quando o mesmo dizia que o

ensino de tevê deveria “[...] desenvolver as aptidões críticas; ele deveria

conduzir as pessoas, por exemplo, à capacidade de desmascarar ideologias;

deveria protegê-las ante identificações falsas e problemáticas [...]”, protegendo-

as, sobretudo, em face dos diversos mecanismos da propaganda

(ADORNO,1995,p.79/80).

Quando questionado se era possível ter uma televisão que poderia estar acima

das condições da própria sociedade em que atuava, Adorno mostrava-se

bastante racional. Sabia que a televisão estava comprometida, em sua própria

ontologia, com a sociedade em que estava inserida. Mas acreditava em táticas

de sobrevivência, como a possibilidade de alargar a produção de programas

para outras cabeças pensantes diferentes dos especializados produtores de

TV. Achava que ao possibilitar a inserção de pessoas críticas, professores,

artistas, e até oposicionistas, na produção dos programas, saindo dos

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parâmetros dos “termos vigentes”, a televisão poderia, sim, “[...] contribuir para

transformar a consciência das pessoas [...]”. O autor dava um recado claro

também aos produtores de TV, quando dizia que “[...] as pessoas que fazem

tevê precisavam refletir profundamente acerca de sua atividade [...]”

(ADORNO,1995,pp.79-82).

Adorno (1995) partilhava também, com outros teóricos19, a tese de que sobre a

relação da TV com a realidade, basta que nós comparemos o tamanho

pequeno da tela para saber que é impossível que esta apresente de forma

realista uma cópia da vida. Essa ressalva nos faz questionar até se o aumento

das telas de TV (15, 20, 29 polegadas) ─ e os exagerados tamanhos dos

chamados ‘home theatres’ 20 ─ não é uma tentativa das indústrias de fazer

parecer mais real ainda o que se mostra na telona.

Especificamente sobre os diferentes sistemas semióticos proporcionados pela

TV, Adorno vai fazer uma importante ─ e nostálgica ─ relação entre palavra

escrita, imagem, mundo real e suas relações. Vai dizer que, quanto mais as

palavras se convertem de “[...] veículos substanciais do significado em signos

destituídos de qualidade, quanto maior a pureza e a transparência com que

transmitem o que se quer dizer, mais impenetráveis elas se tornam”.

(1995,pp.153-154).

Entendemos, aqui, que Adorno queria dizer, com isso, que a aparente

facilidade de significação acaba por comprometer o real sentido dos discursos,

numa clara alusão à imagem a que a palavra se refere. Vai dizer, ainda, que,

“distintos e inseparáveis”, a palavra e o conteúdo estão associados um ao

outro. Conceitos como melancolia, história e vida eram reconhecidos na

palavra que os destacava e conservava. Sua forma constituía-os e ao mesmo

tempo refletia-os. A decisão de separar o texto literal como contingente e a

correlação com o objeto como arbitrária, acaba com a mistura supersticiosa da

19 O livro ‘Educação e Emancipação’ surgiu a partir de vários seminários que contaram com entrevistas e debates de Adorno com outros filósofos, entre eles, Becker e Kadelbach. 20

Telões enormes simulando uma sala de cinema; o mesmo que ‘cinema em casa’.

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palavra e da coisa.

Para clarear um pouco mais essas idéias de Adorno sobre as relações entre a

palavra escrita, imagem e mundo real, buscamos os ensinamentos de Vigotski

(1996) e Leontiev21. Este vai dizer que tanto os signos quanto os instrumentos

são, ao mesmo tempo, produções culturais e mediadores das relações

humanas. A diferença é a direção, ou seja, para onde eles apontam. Enquanto

o instrumento (no conceito marxista) está dirigido para as relações externas, o

signo está dirigido para o próprio indivíduo e para as outras pessoas. Apesar

de Leontiev não achar o termo “internalização” adequado, já que este poderia

pressupor uma dicotomia interno/externo, dizia que não existe possibilidade de

significações fora das relações sociais, pois o objeto não é portador de

significado sozinho, é preciso haver um interpretante. Vigotski e Leontiev

acreditavam que, se existe uma natureza humana, essa só poderia ser social.

O mundo exterior é apropriado pelo indivíduo, que o transforma em estrutura

própria (individual) da personalidade do sujeito. O que permite essa passagem

é o processo de apropriação possibilitado pelo uso que as pessoas fazem da

linguagem.

Outro autor que reforça a nossa convicção quanto a estudar as mídias no

ambiente escolar é J.B.Thompson, ao dizer que

[...] se o homem é um animal suspenso em teias de significado que ele mesmo teceu, então os meios de comunicação são rodas de fiar no mundo moderno e, ao usar estes meios, os seres humanos fabricam teias de significação para si mesmos (1998,p.19).

Assim entendido, fica cada vez mais claro para nós que não faz sentido

delimitar fronteiras entre vida particular, vida escolar e mediações de qualquer

21 As visões de Vigotski e Leontiev foram esclarecidas � em amplitude e profundidade � pela professora Cláudia Gontijo nas aulas de Tópicos em Linguagem, no semestre 2004-2. As principais obras e conceitos fundantes desses dois autores foram estudados, debatidos e esclarecidos. Especificamente sobre o parágrafo pertinente a esta nota, trata-se de conteúdo amplamente debatido sobre o texto “O conceito de apropriação na perspectiva histórico-cultural”. GONTIJO, Cláudia Maria Mendes. Séries Estudos, 2001.

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natureza, já que, ambas, significações formais (escola) e não formais (mídia),

constituem matéria-prima para a formação do sujeito.

Para a nossa defesa da necessidade de estudos especializados sobre a mídia

no âmbito escolar, encontramos em Thompson (1998) uma lúcida contribuição,

quando o autor disserta sobre ação, poder e comunicação. É um importante

raciocínio, cujo desenvolvimento, por isso, apesar da longa citação, optamos

por transcrever na íntegra:

[...] os fenômenos sociais podem ser vistos como ações intencionais levadas à cabo em contextos sociais estruturados. A vida social é feita por indivíduos que perseguem fins e objetivos os mais variados. Assim fazendo, eles sempre agem dentro de um conjunto de circunstâncias previamente dadas que proporcionam a diferentes indivíduos diferentes inclinações e oportunidades. Estes conjuntos de circunstâncias podem ser conceituados como campos de interação, para usar um termo fertilmente desenvolvido por Pierre Bourdieu. Os indivíduos se situam em diferentes posições dentro desses campos, dependendo do tipo e da quantidade de recursos disponíveis para eles. Em alguns casos estas posições, quando institucionalizadas, adquirem uma certa estabilidade – isto é, tornam-se parte de um conjunto relativamente estável de regras, recursos e relações sociais. As instituições podem ser vistas como determinados conjuntos de regras, recursos e relações com certo grau de durabilidade no tempo e alguma extensão no espaço, e que se mantêm unidas com o propósito de alcançar alguns objetivos globais. As instituições definem a configuração dos campos de interação pré-existentes e, ao mesmo tempo, criam novas posições dentro deles, bem como novos conjuntos de trajetórias de vida para os indivíduos que os ocupam (THOMPSON, 1998,p.21).

Essa passagem proporcionada por Thompson, principalmente seu fechamento,

reforça nossa posição de ser preciso que o educador e os pesquisadores,

principalmente, se posicionem.

Assim, o lugar do qual falamos é de uma educadora-pesquisadora, que leciona

a disciplina ‘Estudo das Mídias’, e que trilhou 14 anos de experiência no

convívio mercadológico com as mídias televisão, rádio e internet. É o lugar de

uma educadora inquieta com os conteúdos que as TV’s abertas proporcionam

ao público infantil. E que acredita ser preciso ajudar os professores com

possibilidades de leituras de imagens, para que esses profissionais, além de

usufruírem, possam também contribuir para a análise crítica das mídias junto

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ao público infantil.

O ofício de educadora permite-nos enxergar que nossa responsabilidade

aumenta mais ainda quando nosso trabalho lida com vidas ─ pequeninas e

preciosas vidas. Na educação, os projetos político-pedagógicos constituem

formas de ver o mundo, e são essas formulações que são transmitidas para

aqueles que estão em fase de construção de um projeto de vida singular.

A escola, com seus projetos, currículos e disciplinas, oferece “conjuntos de

trajetórias de vida para os indivíduos que as ocupam”. E, se a “vida social é

feita por indivíduos que perseguem fins e objetivos os mais variados, por que

não incluir nos currículos escolares o estudo das mídias? Se os agentes da

educação, agem dentro de um conjunto de circunstâncias previamente dadas

que proporcionam a diferentes indivíduos diferentes inclinações e

oportunidades, por que não proporcionar a professores e alunos uma prática de

leitura que possa contribuir para sua autonomia, sua emancipação?

Esse é nosso lugar de fala, essas são nossas utopias, que, enquanto utopias,

nos estimulam a pesquisar e a buscar estratégias de inserção de uma proposta

de leitura de audiovisuais nos currículos escolares.

Somos adeptos do pensamento de que tudo na vida ─ e também na educação

─ é uma questão de posicionamento tomado, de como as relações são

configuradas, seus valores, crenças, cultura. Sem querer ser simplista ou

utópica, é preciso acreditar que, com boa-vontade e vontade política, podemos

mudar os cenários. É comum ouvirmos ressoar, dentro da própria escola, que,

se quisessem, governo e empresários poderiam matar a fome do mundo.

Todavia, movimentos bem mais simples ─ leitura das mídias, por exemplo, ─

ainda lutam para serem reconhecidos nos programas e disciplinas dos próprios

cursos de educação.

Atualmente, as crianças já nascem imersas no mundo imagético. São mais

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fascinadas pela plasticidade da imagem do que pelo conteúdo. Acompanhando

as linguagens nas diversas mídias, notamos que, pouco a pouco, as palavras

estão sendo substituídas pela imagem ─ quanto mais imagem melhor, mais

rápido de assimilar. Exemplo disso são os recentes comercias da Pepsi, que

não dizem nada, apenas mostram a imagem ─ o comercial ‘Dá-dá-dá’ é uma

ode à imagem. Segundo alguns publicitários, peças publicitárias, como a

citada, e opções plásticas, como essas da indústria publicitária, colaboram para

a ‘imbecilização’ da propaganda e, conseqüentemente, dos consumidores,

além de contribuírem para anular “o sujeito pensante”, um termo utilizado por

Adorno.

É através da Educação, portanto, que vamos resgatar o “sujeito pensante”, no

dizer de Adorno derrotado antes mesmo do embate com o inimigo, numa clara

alusão à indústria cultural. Pretendemos, assim, com a leitura de imagens

audiovisuais, contribuir para o resgate desse “sujeito pensante” que existe em

cada um de nós.

As Ong’s Midiativa e Rio Mídia têm promovido, semanalmente, uma série de

debates na televisão educativa sobre o tema mídia e educação. Um dos

programas da série, ‘Encontros com a Mídia’, apresentado pela educadora e

produtora de mídia Regina de Assis, entrevistou o professor Pier Cesare

Rivoltella, da Faculdade de Ciências da Formação, da Universidade Católica

de Milão. Estudioso da relação entre mídia e educação, Rivoltella defende a

formação de um novo profissional: o mídia-educador. Segundo ele, esse

profissional, além de atuar como educador para e com os meios, poderia atuar

junto às empresas de produção e exibição, em favor da qualidade das

produções de mídia dirigidas para crianças e adolescentes. Para Pier Cesare

Rivoltella, é importante que a escola esteja ligada a esse debate ─ “[...] Os

meios já fazem uma mediação com as crianças e os adolescentes. É preciso

que os professores façam parte desta mediação dos meios [...]" 22.

22

Entrevista dada ao programa Encontros com a Mídia, artigo Mídia e Educação, Multirio, acesso em 28/06/2006.

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Nesse sentido, acreditamos, firmemente, ser no ambiente escolar que devamos

discutir linguagens, leitura, ideologias. Sabemos que o Brasil é um país de

desigualdades: nem todos têm acesso a uma escola pública e de qualidade,

mas todos têm uma TV dentro de casa. Assim, sem pensamento reflexivo, os

espectadores mirins consomem projetos de vida de personagens da TV que,

dificilmente, conseguirão realizar em suas vidas particulares. Não queremos,

aqui, fazer uma relação direta de causa e efeito; mas precisamos estudar mais

acerca dessas relações. Parece-nos proveitoso, portanto, pensar mais

profundamente essa inter-relação entre mídia e televisão ─ projetos de vida ─

e suas conseqüências no contexto de vida do cidadão.

Com o advento da televisão, as pessoas estão expostas cada vez mais a um

variado fluxo de imagens dentro de suas próprias casas. Isso permite modificar

as próprias relações, uma vez que um novo mundo virtual de entretenimento e

informação acaba reordenando as percepções de espaço e tempo, muitas

vezes anulando as distinções entre realidade e ficção, produzindo novos

modos de experiência e subjetividade. A companhia da mídia televisiva, em

muitas ocasiões, substitui a companhia da família, da escola e da igreja, e

acaba sendo para os indivíduos referência dos valores do dia-a-dia.

Parafraseando Nilton Hernandes23, acreditamos que, se um analista quiser ter

um entendimento menos fragmentário de objetos semióticos que têm uma

articulação complexa entre conteúdo e expressão, como os artísticos,

cinematográficos, publicitários, jornalísticos, deverá não só ter uma reflexão

profunda sobre as estratégias sensíveis, mas também verificar a importância

delas no manejo ou sobredeterminação dos conteúdos dos textos. Pode-se ter,

assim, melhor compreensão dos interesses, valores e objetivos do enunciador

e suas estratégias de persuasão e manipulação do enunciatário.

23

Jornalista, mestre e doutorando em Semiótica pela FFLCH-USP.

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Kellner (2001), em sua experiência de 25 anos de magistério, relata que

constatou que as pessoas, estudantes ou não, nem são naturalmente versadas

em mídia, nem críticas em relação à sua cultura, pelo que, devem poder contar

com métodos e instrumentais críticos, para terem poder contra a força

manipuladora da sociedade e da cultura existentes. Sustenta ainda, que as

pessoas vivem mergulhadas, apaixonadamente, no mundo da mídia e devem

ser incentivadas a examinar e analisar criticamente a cultura em que

mergulham tão a fundo.

O Brasil é um país com aproximadamente 170 milhões de habitantes, onde

98% de seus domicílios contêm pelo menos um aparelho de TV. Somente na

região da Grande Vitória/ES (segundo pesquisa IBOPE-setembro/2005),

existem 396.600 domicílios com TV, o que representa uma população da

ordem de 1.506.500 indivíduos, com mais de 4 anos de idade, assistindo à TV

em casa.

Para quem viveu imerso, do nascimento à morte, numa sociedade de mídia e consumo é, pois, importante aprender como entender, interpretar e criticar seus significados e suas mensagens. Numa cultura contemporânea dominada pela mídia, os meios dominantes de informação e entretenimento são uma fonte profunda e muitas vezes não percebidas de pedagogia cultural: contribuem para nos ensinar como nos comportar e o que pensar e sentir, em que acreditar, o que temer e desejar e o que não.[...] Aprendendo como ler e criticar a mídia, resistindo à sua manipulação, os indivíduos poderão fortalecer-se em relação à mídia e a cultura dominantes (KELLNER, 2001,p.10).

Quanto ao processo que antecede à criação dos meios de comunicação – a

linguagem – sabemos que ela é atributo da humanidade; é a linha que separa

as atividades humanas das atividades dos animais. Essas afirmativas baseiam-

se no grande legado teórico de Vigotski (1997) que, por sua vez, inspirou-se no

legado teórico de Marx e Engels. Com Vigotski, aprendemos que as atividades

dos homens são distintas dos animais, pois a

[...] hominização resultou da passagem à vida numa sociedade organizada na base do trabalho; que esta passagem modificou a sua natureza e marcou o início de um desenvolvimento que, diferentemente

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do desenvolvimento dos animais, estava e está submetido não às leis biológicas, mas às leis sócio-históricas (VIGOTSKI apud GONTIJO, 2001, p.46).

Apesar de os homens terem inventado seus instrumentos de sobrevivência

(caça, pesca, defesa, abrigo do calor e do frio, etc.), não foi esse um fenômeno

isolado que garantiu o processo de desenvolvimento humano.

Simultaneamente à criação de instrumentos, os homens também

desenvolveram formas de comunicação que resultaram em tipos singulares de

linguagem. Dessa forma, “[...] o uso de instrumentos no trabalho permitiu ao

homem controlar a natureza e o surgimento da linguagem, permitiu-lhe dominar

o seu próprio comportamento e o de outros homens” (GONTIJO,2001,p.47).

Sendo assim, o uso da linguagem pelos homens, é o “[...] conteúdo principal de

toda história do desenvolvimento cultural”. (VIGOTSKI apud GONTIJO, 2001,

p.47).

Desses preceitos, começamos a nos dar conta de que o homem ao se deparar

com a natureza transforma-a, transformando também a si próprio e aos

demais. Para que essa relação social aconteça, faz uso de signos, sendo o

único que consegue abstrair o mundo real sob a forma de pensamento

individual, interior. Fica claro, portanto, que o homem não absorve o mundo,

mas os signos. Então, aprender a ser ‘humano’ é aprender a absorver a

significação dos objetos culturais produzidos por e para a humanidade. Sendo

assim, podemos afirmar que os processos de significação sempre foram, desde

os primórdios, a ‘chave’ para o desenvolvimento da humanidade, e ainda o são,

devido às diversas formas de relações comunicacionais que o mundo

contemporâneo oferece.

Recentemente, questões como “a noção de linguagem verbal” e “não verbal”,

têm sido discutidas na Academia. Os teóricos clássicos da linguagem, como

Vigotski e Bakthin, desenvolveram suas teorias e pesquisas no âmbito da

linguagem verbal (oral e escrita), as quais, desde então, têm sido trazidas ao

ambiente escolar pelos educadores que se dedicam à pesquisa de seus

legados teóricos. Entretanto, devido aos recortes, característica de qualquer

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teoria e pesquisa, não desenvolveram aproximações com outros tipos de

linguagens, como as imagéticas, gestuais, corporais, etc.

Já os clássicos que versam sobre a linguagem não verbal, como o legado

teórico da semiótica de Algirdas Julien Greimas e colaboradores, partem de

uma noção ampla de texto, em que são considerados como textos tanto os

sistemas verbais (oral e escrito) quanto os não verbais (imagens, gestos,

expressão corporal, etc.). A semiótica de Greimas rompe também com os

esquemas tradicionais de representação da comunicação, principalmente

aqueles que encaram o processo de comunicação como um esquema em que

um emissor envia uma mensagem para um receptor através de algum tipo de

canal.

[...] descartando completamente a possibilidade de uma informação pura, uma mensagem, transmitida de um emissor a um receptor por um canal, ou de um sujeito empírico a um outro sujeito empírico, concebe a teoria semiótica que cada construção textual, ao ser edificada, instala nela um “eu” do enunciador e o “tu” do enunciatário. Tem-se, pois, a instauração de relação lingüística do tipo “eu-tu” ou, aquela outra, do tipo ele, no interior da organização textual, que estabelece assim seus próprios princípios comunicacionais (OLIVEIRA,2004,pp.21-22).

Ao contrário daquele esquema comunicativo, a semiótica trabalha com a

instância da enunciação, onde um ‘eu’ pressupõe sempre um ‘tu’, ambos

situados num tempo e espaço. Essa crença teórica também é compartilhada

por Bakthin, quando diz que

[...] com efeito, a enunciação é o produto da interação de dois indivíduos socialmente organizados e, mesmo que não haja um interlocutor real, este pode ser substituído pelo representante médio do grupo social ao qual pertence o locutor. A palavra dirige-se a um interlocutor: ela é função da pessoa desse interlocutor (BAKHTIN,1986,p.112).

A partir dessas noções amplas de texto e enunciação, nós, educadores,

podemos exercer a pedagogia de textos sem temer a aproximação teórica

entre os clássicos da linguagem verbal e os da não verbal. A nosso ver, os

teóricos que citamos apresentam-nos concepções de leitura de textos que mais

se aproximam do que divergem.

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Acreditamos que a pedagogia da mídia, a partir de seus referenciais teóricos,

deveria fazer parte da reforma educacional, e, ao desenvolvê-la, deveríamos

[...] situá-la em sua conjuntura histórica e analisar o modo como seus códigos genéricos, a posição dos observadores, suas imagens dominantes, seus discursos e seus elementos estético-formais incorporam certas posições políticas e ideológicas [...], como as produções culturais da mídia reproduzem as lutas sociais existentes em suas imagens, seus espetáculos e sua narrativa (KELLNER,2001,p.76).

Acreditamos necessária essa inclusão nos currículos escolares, pois sabendo

que a cultura da mídia chegou para ficar (e, no mínimo, seus produtos estão se

tornando cada vez mais populares e poderosos), precisamos nos munir de

teorias e desenvolver métodos capazes de promover a sua pedagogia.

Quando falamos em pedagogia da mídia, estamos nos reportando a uma

iniciativa de educadores que tentam ensinar a ler, analisar e decodificar os

textos da mídia, “[...] de um modo semelhante ao que se faz com os textos

escritos, ensinando a avaliar as qualidades estéticas das produções da mídia e

a usar suas várias tecnologias como ferramentas de auto-expressão e criação”

(KELLNER, 2001, p.425).

Porém, não devemos esquecer que, paralelamente à inserção da pedagogia

crítica da mídia nas escolas, devemos, igualmente, envidar esforços para que o

acesso às diversas mídias seja também pensado em seu caráter público; daí, a

importância de canais de informação gratuitos, para que os cidadãos possam

estar bem informados, e assim, incluídos no diálogo social.

Num contexto em que a nova tecnologia da comunicação está provocando transformações drásticas na cultura, no lazer, e na vida diária, é preciso perceber a importância de uma política para a mídia e da compreensão do modo como o sistema e as estruturas da comunicações ajudam a determinar o tipo de programação e seus efeitos (KELLNER,2001,p.429).

Acreditamos que o educador deva trabalhar o ensino-aprendizagem da

linguagem não verbal desde as séries iniciais, pois, ao nascer, a criança torna-

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se herdeira de um mundo já dado, de um contexto histórico-cultural em plena

atividade24. Gontijo, ao sintetizar os pensamentos de Luria e Vigotski, sobre o

desenvolvimento da criança, diz que

[...[ à medida que a criança cresce, estando imersa em relações sociais que lhe propiciam a aprendizagem, passa a fazer uso dos meios culturais disponíveis e a exercer um domínio, cada vez maior, sobre os seus próprios processos mentais (GONTIJO, 2001, p.48).

Nesse processo de maturação, a criança objetiva, primeiro, as relações do

mundo social para, depois, objetivá-las no âmbito individual. Esse processo foi

chamado por Vigotski de internalização, e, por Leontiev, de apropriação,

segundo quem “[...] é o principal conceito introduzido por Vigotski na

Psicologia” (LEONTIEV apud GONTIJO, 2001, p.50).

Vigotski vai dizer ainda que o

[...] signo é qualquer estímulo criado artificialmente que seja veículo para o domínio da conduta alheia ou própria [...] e que a especificidade da conduta humana resulta desta atividade fundamental: criação e utilização de signos (VIGOTSKI apud GONTIJO, 2003, p.21).

Consideramos essa citação de suma importância para aproximar os conceitos

pensados por Vigotski com nossa determinação em pesquisar imagens

audiovisuais. As imagens são signos, são produções do mundo cultural,

carregadas de intencionalidades, conceito este que, por si só, já significa

querer influenciar o outro.

A partir desses pressupostos, justifica-se a importância de mediação

qualificada e sistematizada nas fases iniciais de formação da criança para o

ensino-aprendizagem das estruturaras sintáxicas e semânticas da linguagem

audiovisual.

24

Isso não significa que a criança, ao se deparar com o mundo, objetiva, passivamente, a realidade natural e cultural; ao contrário, ela apropria-se e reelabora as atividades externas em atividades dela própria, que sempre variará conforme o tipo e as circunstâncias de sua vida social.

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83

Para nós, o mais concreto exemplo de mediação do professor faz coro com o

pensamento de Vigotski, quando este diz que “[...] é por meio dos outros que

nos convertemos em nós mesmos, o que significa dizer que toda atividade

interna foi antes externa, foi para as outras pessoas o que é para nós”

(VIGOTSKI, apud GONTIJO, 2001,p.55).

A partir das linhas de raciocínio desenvolvidas até aqui, elencamos alguns

pontos que acreditamos respaldar as pesquisas dos modos de produção e

significação dos textos midiáticos televisivos no âmbito da educação:

• Os processos comunicacionais e suas formas singulares de linguagem

estão na base da formação humana;

• Os agentes de formação (escola, família, etc.) devem ser encarados como

co-responsáveis pelo processo de desenvolvimento humano, não obstante

acreditarmos que o processo de educação sistematizada seja função da

escola;

• Tendo em vista as diversas fontes de informação extracurriculares

possibilitadas ao indivíduo desde seu nascimento, deveriam, então, os

professores se capacitarem para a leitura desses diferentes sistemas

semióticos;

• Os professores, ao fazerem uso do embasamento teórico das diversas

possibilidades de linguagem, estão também contribuindo para uma visão

ampla de educação e de mundo;

• Os professores podem e devem aproveitar a matéria-prima, fornecida pela

mídia, trabalhando diferentes contextos em sala de aula, numa perspectiva

multidisciplinar;

• Ao falar de formação humana, acreditamos que a mediação do professor é

fundamental nas séries iniciais do processo de ensino-aprendizagem, daí

nossa proposta para estudar os sistemas semióticos de um programa

televisivo infantil;

• E, o que para nós, parece fundamental: ninguém ensina aquilo que não

conhece, que não vivenciou; logo, a necessidade do professor, através da

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formação continuada, (des)engessar o olhar para a leitura dos novos textos

produzidos no mundo contemporâneo.

Simultaneamente a essas considerações, é preciso ressaltar que apesar da

apropriação das mensagens da mídia ter se tornado num meio de

autoformação no mundo moderno, não é dizer que ele é o único meio.

Sabemos que há muitas formas de interação social, como as existentes entre

pais e filhos, alunos e professores, entre pares, que continuarão a

desempenhar um papel fundamental na formação pessoal e social.

Os primeiros processos de socialização na família e na escola são, de muitas

maneiras, decisivos para o subseqüente desenvolvimento do indivíduo e de

sua autoconsciência.

Mas não devemos esquecer que, num mundo cada vez mais midiático, uma

nova arena foi criada para o processo de autoformação. É uma arena livre das

limitações espaço-temporal da interação face-a-face e, dado o alcance da

televisão em sua expansão global, torna-se cada vez mais acessível aos

indivíduos em todo mundo.

Se for verdade que as pessoas se utilizam das informações passadas na

família ou na escola para formarem suas personalidades, é verdade, também,

que utilizam os materiais simbólicos difundidos pela mídia. Assim, se os alunos

usam informações da mídia na construção do seu ‘self’, é preciso que

educadores estejam sintonizados com essas novas demandas de construção

do ‘self ‘, que antes não existiam.

Ao expormos nossos pensamentos sobre por que o professor incentivar o

ensino-aprendizagem de diferentes tipos de textos, responderemos, na voz de

Gontijo, ao citar Leontiev, que

[...] se fossem destruídas todas as pessoas da face da Terra e só restassem as crianças pequenas e as objetivações, a história seria interrompida e teria que ser recomeçada, pois a continuidade da história deve-se à transmissão para as novas gerações da cultura humana por meio da comunicação que se desenvolve entre as pessoas (GONTIJO, 2001,p.56-57).

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4 DAS ANÁLISES

Na interpretação pessoal, nosso subjetivo junta-se ao objetivo, pois cada um de nós entra com sua própria experiência de vida, seus valores e suas aspirações. E como cada pessoa constitui um ser único, com uma experiência de vida também única, as interpretações que dará serão sempre diferentes das de outra pessoa. Talvez até diferentes em diversos momentos de sua própria vida. Entretanto – e este é um ponto da maior importância – apesar da grande diversidade de nuances pessoais, as interpretações subjetivas se manterão dentro do leque de significados possíveis, estabelecidos pela estrutura objetiva da obra (FAYGA,2004,p.26).

Selecionamos, para análise, três desenhos animados, a partir de plásticas

diferentes, por acreditar que, com três alternativas diferentes, nossa

contribuição, nesse processo, poderia ser ampliada naquilo que é ofertado ao

público infantil:

• Três Espiãs Demais ─ um desenho com assinatura de produção

americana, por ser a indústria de produção e distribuição americana muito

comprada pelas emissoras de televisão brasileiras, além de seus

programas serem bem assistidos pelos telespectadores mirins. Trata-se,

da mesma forma, de um dos exemplos de desenhos norte-americanos

que imitam o design de animes japoneses;

• Homem Aranha ─ um programa, também com a produção americana,

porém com a técnica de animação 3D (três dimensões). Sua história

nasceu nas revistas em quadrinhos, foi adaptada para o cinema e,

atualmente, é veiculada na TV aberta e por assinatura; e

• Shaman King King ─ privilegiando, aqui, a produção com a plástica

oriental, muito veiculada nas telas americanas e também brasileiras.

Os materiais analisados são as vinhetas de abertura de cada programa, pois

são nelas que os enunciadores concentram uma espécie de resumo do

desenho, em que mostram os principais personagens (sejam eles heróis ou

vilões), os espaços freqüentados e, dependendo do tamanho da vinheta, outros

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elementos.

Para acompanhamento das análises (que serão feitas nas próximas páginas), é

preciso o auxílio dos DVD’s que compõem este trabalho.

Os poucos segundos de animação pode, em princípio, parecer a iniciantes em

leitura de audiovisual pouco tempo para análise de discurso. Mas, desde que

iniciamos nossas pesquisas, adotamos um olhar diferente quanto ao

movimento rápido da TV: em vez de usarmos o controle remoto para buscar

mais e mais canais, numa busca desenfreada por saber um pouco de tudo o

que passa na TV, exercitamos um olhar mais calmo, que prefere analisar muito

de pouco.

Os filmes são feitos de forma que sua apreensão adequada exige, é verdade, presteza, dom de observação, conhecimentos específicos, mas também de tal sorte que proíbem a atividade intelectual do espectador, se ele não quiser perder os fatos que desfilam velozmente diante de seus olhos. (ADORNO, 1985 p. 119).

Hoje, felizmente, temos um recurso que Adorno não tinha em sua época ─ o

controle remoto!

Sugerimos, então, que apertem a tecla slow25, para melhor contemplação dos

poucos segundos26 que separamos para análise.

Procuramos decompor uma imagem em seus diversos componentes, a fim de reconhecer de que modo o conteúdo expressivo da imagem corresponde às ordenações de seu espaço. Seria como numa aula de anatomia, onde se dissecam os músculos de um corpo para descobrir como funcionavam no organismo vivo (FAYGA, 2004, p.42).

25 ‘Slow’ significa ‘lento’. É o recurso do controle remoto que permite ver, lentamente, as cenas. 26 A título de curiosidade, meio segundo é representado no desenho animado por 12 fotogramas. Para se produzir 30 segundos, então, foi preciso compor 720 fotogramas.

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4.1 O DESENHO TRÊS ESPIÃS DEMAIS

4.1.1 O PROGRAMA E AS PERSONAGENS

Figura 1: Três Espiãs Demais

O desenho Três Espiãs Demais é uma produção americana que estreou nos

EUA em 03/01/2001. A vinheta de abertura tem, aproximadamente, 30

segundos, e faz uma espécie de apresentação das personagens através de um

jingle (letra de música cantada pelas personagens).

É uma série que conta as aventuras de três adolescentes, espiãs, que moram

em Beverly Hills (EUA) e solucionam casos mirabolantes em diversas partes do

mundo: Sam é a sabe-tudo do trio. Ela é inteligente e ótima aluna na escola.

Sua esperteza salvou as amigas várias vezes; Alex é a atrapalhada e divertida.

É a mais nova do trio. Esportista, péssima motorista e meio ingênua; Clover,

vaidosa, namoradeira, sempre dando em cima dos garotos, mesmo no meio

das missões. E tem ainda o Jerry, o chefe delas, que dirige a organização

para a qual as espiãs trabalham.

4.1.2 A RELAÇÃO ENTRE OS NÍVEIS DISCURSIVO E NARRATIVO

Ao começarmos nossas análises pela plasticidade do desenho, considerando-a

como manifestação mais superficial, estaremos focando o nível discursivo do

programa. Neste patamar do percurso gerativo de sentido, analisamos os

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temas e as figuras, ou melhor, dizendo como os temas são revestidos pela

figuratividade.

Mas é importante lembrar que, ao optarmos por iniciar nossas análises pelo

nível discursivo, não significa que esse nível encontra-se separado do todo do

texto. O nível discursivo está diretamente ligado ao narrativo; é o momento em

que a narrativa é assumida por um ‘eu-aqui-agora’, ou seja, sujeitos que

assumem a narrativa num dado espaço e tempo.

De acordo com a teoria semiótica, no nível narrativo os sujeitos encontram-se

em conjunção ou disjunção com seu objeto-valor. Para que passem de um

estado a outro precisam operar uma transformação. Se conseguem êxito, o

resultado é uma sanção positiva (eufórica), caso contrário, uma sanção

negativa (disfórica).

A fórmula básica de narrativas dos desenhos animados sempre instaura heróis-

mocinhos que passarão por desafios-dificuldades, enfrentando vilões-bandidos,

até chegarem ao final feliz.

No desenho Três Espiãs Demais, o objeto de valor sinalizado em cada

programa sempre será ‘resolver alguma missão’. Para operar essa

performance (resolver a missão), as meninas mudam de estado, são

transformadas em sujeitos da ação e de um poder fazer. Para isso, são

manipuladas por sedução, quando o chefe delas Jerry apresenta as ‘armas’

que as ajudarão (botas, batons, coletes, espelhos, lentes, etc.). São esses

produtos, objetos-modais27, que as ajudarão a concluir com êxito qualquer

missão, uma vez que, além de sua aparência física, possuem também outros

dispositivos (furadeiras, guarda-chuvas, comunicadores, visão infravermelha,

pára-quedas, etc.). Ao final da trama, sempre conseguem concluir com êxito a

missão a elas confiada, prendendo os vilões. Logo, temos uma sanção

27 Para a semiótica, na narrativa, existem dois tipos de objetos: os ‘modais’ e os de ‘valor’. No caso do desenho As Três Espiãs Demais, os “bens de consumo” são a concretização do objeto modal (poder vencer) dos sujeitos/personagens.

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eufórica. Esta estrutura narrativa é repetida em todo o episódio e contemplada

também na vinheta de abertura.

4.1.3 A SINTAXE DISCURSIVA

A sintaxe discursiva é formada pela projeção de sujeitos, tempo e espaço que,

no nível semântico, são concretizados por temas e figuras:

• Sujeitos, o ‘eu’ do discurso: são as personagens Sam, Clover e Alex.

Adolescentes que, ambiguamente, ora comportam-se como meninas (ciúme,

bolsinhas florais, visita a shopping, concurso de modelos, etc.), ora como

mulheres capazes de realizar o trabalho de espiãs;

• O espaço, o lugar, o aqui das personagens: no geral, o enunciador instala

no desenho espaços macro ─ América do Norte, Estados Unidos, Nova York,

Bervely Hills, Hollywood. Mas instala também microespaços (metrópole,

shoppings centers, hotéis, safáris, quadra de esportes, o quarto das

adolescentes, etc.);

• O tempo das personagens: o enunciador instala o tempo do “agora”,

moderno, atual, contemporâneo. É um tempo presente.

4.1.4 A SEMÂNTICA DISCURSIVA

O desenho animado é o mundo dos temas e das figuras, solo fértil onde

conceitos são apresentados por meio de objetos e figuras reconhecíveis,

extraídas do mundo. Em Três Espiãs Demais, o próprio programa sempre

apresenta o tema do dia, como, por exemplo, ‘Cidadãs Modelos’. Mas como

nossa análise pretende ir além do tema dado, analisaremos como o

enunciador, em seu fazer-persuasivo, se utilizará dos recursos plásticos para

figurativizar o tema e manipular os enunciatários.

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Para encontrar os temas subjacentes às figuras, precisamos, por uma questão

metodológica, analisar, separadamente por cada sistema de linguagem, os

formantes expressivos, do texto televisivo; ou seja, a partir dos elementos

expressivos (plano de expressão), homologaremos os efeitos de sentido (plano

de conteúdo).

a) A sonoridade na abertura do programa

Na vinheta de abertura do programa, o principal recurso do enunciador é a

apresentação de um jingle (letra cantada), em sincronia com as imagens das

personagens,que vão sendo apresentadas de forma rápida, em quadros, numa

espécie de resumo do que é a vida deles. O enunciador mostra imagens das

personagens em shoppings, viagens, praticando esportes, nas espionagens,

etc. Dessa forma, logo no início, o enunciatário é levado a conhecer um pouco

mais da intimidade, dos gostos, atitudes e valores das personagens. A música

é rápida, dinâmica e alegre. É cantada pela mesma voz das personagens,

numa espécie de auto-apresentação e, ao mesmo tempo, um endosso dos

valores cultivados por elas já que, sobre seus corpos, é mostrado,

rapidamente, de forma escrita, seus nomes (Sam, Clover, Alex). Essa é uma

estratégia de aproximação28, pois a música é cantada na primeira pessoa do

plural (nós) causando, assim, um efeito de sentido de subjetividade, logo, de

aproximação com as personagens.

[...] narrar em primeira ou terceira pessoa é uma opção feita pelo enunciador, visando a transmitir efeitos de subjetividade ou de objetividade. [...] No primeiro caso, há uma explosão de subjetividade, enquanto, no segundo, constrói-se uma objetividade analítica que recobre a projeção do eu poético (FIORIN,1997,p.44).

A LETRA DA MÚSICA

“Estamos prontas pra qualquer missão enfrentar E vamos encarar Mas toda vez que entramos no shopping

28

Estratégias de aproximação são chamadas, pela semiótica discursiva, de ‘debreagem enunciativa’.

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queremos comprar Elegantes, famosas Das missões desvendamos a trama Sempre espertas, corajosas, De três espiãs conquistamos a fama E é pra já Vamos lá Girem nosso programa”

Escutando a música, identificamos um ritmo dinâmico, extrovertido, rápido, em

oposição ao que poderia ser estático, introvertido, lento. Podemos, então, dizer

que o ritmo imprime um efeito de sentido alegre, eufórico, positivo.

Quanto à letra da música, as palavras-chaves são: prontas/ missão/ enfrentar/

encarar/ shopping/ comprar/ elegantes/ famosas/ missões/ trama/ espertas/

corajosas/ três espiãs/ fama/ programa.

‘Enfrentar’, ‘encarar’, ‘comprar’, são verbos que transmitem “estados de alma”

pró-ativos, dispostos, em ação.

Então, articulando letra e música, o efeito de sentido que podemos apreender é

o de dinamismo associado à alegria, ambos num sentido de positividade.

Ainda sobre o sistema verbal, identificamos que os pronomes utilizados estão

na 1ª pessoa. Ao utilizar esse recurso, o enunciador aproxima o enunciatário

da subjetividade das personagens, para que os mesmos se identifiquem com

elas. Para reforçar ainda mais a estratégia de identificação, o enunciador usa o

sistema verbal escrito colocando sobre os corpos das personagens o nome

delas (Sam, Alex, Clover). Ao dar um nome, uma identidade para as “espiãs”, o

enunciador, com tal estratégia, tenta, mais uma vez, aproximar o enunciatário

delas.

Na sonoridade do desenho, é preciso falar ainda sobre o “tom” das vozes das

personagens. Apesar da vinheta de abertura não contemplar inteiramente esse

recurso que queremos explicar, assistindo aos programas por inteiro fica claro

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que o tom utilizado pelo enunciador é uma marca característica do desenho.

Por “tom” estaremos entendendo aquilo que Bakhtin esclareceu em Marxismo e

Filosofia da Linguagem (1986), especificamente sobre as interações verbais.

Segundo esse autor, na análise das interações verbais é preciso levar em

conta as “entonações”, os gestos e as expressões não verbais que acontecem

numa dada comunicação.

Muitas vezes não se pode entender o que o outro está falando, mas pelo tom de voz já se consegue saber com quem se está falando, se é sobre amor ou briga, se está feliz ou triste (Revista de ciência on line http://www.cienciaonline.org/ apud Bastos, 2004,p.120).

Na atualidade, a semioticista Elizabeth Bastos (2004) tem dissertado sobre o

tema “tom” na televisão. Afirma que

[...] o enunciador, como sujeito operador de determinadas seleções e combinações, capazes de produzirem as articulações responsáveis pela instauração da significação, define em nível discursivo o tom principal que gostaria de conferir ao que é enunciado (BASTOS,2004,p.123).

O enunciador trabalha também o tom para abrandar uma situação que,

dependendo da cultura, seria considerada uma atitude inaceitável. Sabemos,

por exemplo, que, pelos atuais valores da sociedade brasileira, o tema ‘traição

conjugal’ não é visto com ‘bons olhos’. A respeito disso, na novela Belíssima

(2006), da TV Globo, o autor (Sílvio de Abreu) conseguiu fazer com que o

personagem Alberto (interpretado pelo ator Alexandre Borges) caísse no gosto

popular, apesar de trair ‘suas mulheres’. A estratégia foi operar com um tipo de

‘tom’ que trabalhou a comicidade, o humor. O personagem era ‘boa pinta’,

atrapalhado, cômico, vivia se metendo em confusões. Mas o que fez toda a

diferença para que o personagem Alberto caísse no gosto popular, apesar de

trair suas mulheres, foi a música de fundo, que era inserida quando o

personagem aparecia (um samba alegre sobre o tema ‘malandragem’).

Retomando a análise do desenho, podemos dizer, então, que o enunciador de

Três Espiãs Demais, escolheu a personagem Clover para trabalhar o caráter

humorístico no tom da voz dessa personagem. É pela voz de Clover que o tom

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humorístico é impresso em todo desenho. Com humor, as heroínas passam

seus valores, seus conceitos, falam como resolvem seus problemas, como

decidem determinadas questões.

b) Cores

No estudo das cores, temos, segundo as teorias artísticas, as chamadas

“cores-luz” e as “cores-pigmento”. Quando utilizamos tintas, lápis de cor,

canetas coloridas e outros materiais para colorir, estamos utilizando “cores-

pigmento”. Os pigmentos cromáticos são classificados em três categorias:

primários, secundários e terciários. As cores primárias da cor-pigmento são:

vermelho, amarelo e azul forte. As cores secundárias, obtidas pela combinação

das primárias, duas a duas, em proporções iguais, são: laranja, verde e violeta.

Já as terciárias, são as várias combinações possíveis entre elas.

A cromaticidade predominante do desenho Três Espiãs Demais é o rosa. Mas

o enunciador trabalha o desenho com cores primárias, secundárias e terciárias.

Podemos identificar uma profusão de cores, como o lilás, o vermelho, o rouge,

o verde, o azul, entre outras. Ressaltamos também o lugar especial para o

brilho, trabalhado pela inserção do elemento plástico “luz”, que contrasta áreas

com cores claras e escuras. O brilho, presente nos flashes oriundos das

máquinas fotográficas, apresenta a temática da fama, existente no universo

das modelos, das celebridades e pessoas famosas. As bolsinhas são da cor

rosa; a vinheta de passagem é uma florzinha rosa; nos shoppings e demais

ambientes predominam as cores de tom rosa.

Temos, então, no plano de expressão, um trabalho de plasticidade cromática a

partir da cor rosa, que homologa, no plano de conteúdo, o mundo feminino e

adolescente como um ambiente alegre, leve, alto astral.

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c) Figuras/ Formas

Figura 2: Corpos (a)

O programa é trabalhado, em sua plasticidade, mais próximo da figuratividade

e mais distante da abstração. Personagens e cenários são trabalhados numa

tentativa de iconicidade (mais próximo do real).

Considerando o mundo natural [...] deve-se reconhecer que a operação de “imitação” consiste numa acentuada redução das qualidades desse mundo, pois, de um lado, somente os traços exclusivamente visuais são a rigor “imitáveis”, embora o mundo nos faça presente através de todos os nossos sentidos e, de outro lado, apenas as propriedades planares, bidimensionais são, desse modo, a rigor, “transponíveis” e representáveis [...]. Os “traços” do mundo [...] transpostos para uma tela são verdadeiramente pouca coisa em relação à riqueza do mundo natural (GREIMAS, 2004, p.78).

A iconicidade não é completa em Três Espiãs Demais devido às proporções

que são dadas a alguns traços dos personagens. O desenho animado se

diferencia de outros gêneros, pois um de seus recursos é o uso da caricatura e

também de proporções exageradas. No caso do desenho Três Espiãs Demais,

as desproporções encontram-se nos cabelos, olhos e bocas (que se

apresentam muito grandes quando as personagens estão em apuros, logo,

causando um efeito de sentido de drama).

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Figura 3: Corpos (b)

O enunciador trabalha, basicamente, com duas formas: as verticais-retas e as

quadradas. Essas formas são reforçadas pelo excesso de linhas retas. Três

Espiãs Demais são personagens altas, retas, esguias, e os corpos têm o

mesmo tamanho (o que as diferencia é a cor dos olhos e cabelos), pois a altura

é igual e o formato oval dos rostos também. Nesse desenho, o formato

arredondado (o álter) é raro. Assim também acontece nos dias atuais, a

questão do padrão, da modelagem e a exclusão do diferente.

Altos também são os prédios, símbolo das metrópoles. Quanto à forma

“quadrada”, é trabalhada, basicamente, para retratar a tecnologia

(computadores, televisões). A forma reta e alta no plano de expressão dá um

efeito de sentido, no plano de conteúdo, de grandeza, de superioridade, de

continuidade. Isso é reforçado, ainda mais, quando o enunciador usa a tomada

de câmera numa angulosidade que ora vai de baixo para cima (criando nesse

desenho um sentido de superioridade), ora vai de cima para baixo (sentido de

aventura).

Halas & Manvell (1979) vão dizer que “o exagero” faz parte do ofício da

animação. Esse recurso gráfico, de exagero/distorção aguda da realidade,

garante a comicidade do desenho. Em Três Espiãs Demais, encontramos

pouco esse recurso, daí, para nós, a intencionalidade do enunciador em situar

a trama mais próxima do real. Mas, se repararmos bem, a proporção do

tamanho do rosto é bem menor do que o tamanho do cabelo, olhos e boca, que

são bem acentuados. Para manter o tom de humor do desenho, o enunciador

usa o recurso do exagero na boca das personagens, para garantir esse efeito

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de sentido em diversas situações como mostra a figura 4: Clover nervosa; Alex,

compulsiva por comidas; As Espiãs caindo.

Figura 4: Exageros

No desenho animado, o exagero é, em grande parte, funcional. As partes do corpo que gesticulam ─ pernas, braços, mãos, pés ─ exigem maior tamanho, e mais ainda a cabeça, que é a característica principal de qualquer ser humano ou animal. [...] A boca exige maior tamanho para o gesto da fala, da mesma forma que os olhos, que constituem o meio mais importante para demonstração visual de certos estados de espírito, emoções e personalidade (HALAS & MANVELL, 1979,p.65-66).

Quanto às figuras que aparecem em cada seqüência, resolvemos descrevê-las

a partir de duas seqüências, que estão bem delineadas: antes e depois de se

tornarem heroínas. A figura que separa a transformação é a do personagem

Jerry. Assim, podemos destacar as seguintes figuras:

Figura 5: Transformação

Quadro 1: Transformações

1ª Seqüência

(até onde aparece Jerry)

2ª Seqüência

(após aparição de Jerry)

As Espiãs

Armário (parece ser de escola)

Patins

Espiãs

Carros

Helicópteros

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Quadra de esportes

Praia

Florzinha

Semáforo

Bervelly Hills

Hollywood

Computadores

Livros

Quarto

Notebook

Shopping

Compras

Moto

Jatinho

Bolsinhas

Batom

Espelhinhos

Cinto

Headfone

Sombrinha

Lente de contato

Relógios

Vilões

Ao dividir essas duas seqüências em duas temporalidades ─ uma ANTES e

uma DEPOIS ─, podemos constatar o que acontece na vida das heroínas,

antes e depois que o chefe Jerry delas aparece. Antes, são meninas comuns,

que ficam juntas, trancadas no quarto, vão ao shopping, etc. Depois que Jerry

aparece, são convocadas para missões e se transformam nas Três Espiãs

Demais, tendo que passar por várias aventuras.

Figura 6: Bens de Consumo

Os bens de consumo, figurativizados por lentes de contato, espelhinhos,

sombrinhas, cintos, batons, bolsas, etc., são os objetos modais da trama, que

ajudarão as meninas comuns, a se transformarem em heroínas. Essa questão

nos parece central, pois o enunciador, ao figurativizar produtos de consumo

(batons, espelhos, bolsas, botas, etc.) com outras funções que não as usuais,

os apresentam como produtos que valem muito mais do que a própria

aparência; são produtos ‘amigos’, que as salvam de situações complicadas: os

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bens de consumo estão ali para transformá-las e para salvá-las!

A opulência de um ego doentio é estimulada numa sociedade cujas bases da experiência [...] sofrem diariamente abalos talvez irreparáveis. Dessa forma, o entorpecimento que tantas vezes Adorno denunciou em seus textos é combatido não através daquele pedido de ajuda, o qual permitia ouvir o sussurro de um ego combalido que clamava pelo fim de sua própria debilidade. Ele é “contestado” através de mecanismos de defesa que comprazem aos ditames do consumo dos produtos “culturais”, tais como os produtos que prometem o “rápido e milagroso” emagrecimento às custas da anorexia ou dos brincos e tatuagens colocados nos lábios e narinas dos jovens (ZUIN,1999, pág. 157).

Figura 7: Apresentações

Na primeira seqüência, ao figurativizar SAM junto a objetos da ciência,

apresenta-a como estudiosa. CLOVER, sempre rodeada de florzinhas e

estrelinhas, é apresentada como romântica e deslumbrada. E por fim, ALEX,

junto aos doces, compulsiva por comidas.

Figura 8: Estados de alma

Se repararmos bem na aproximação dos corpos (estados de alma/afeição

delas em relação às figuras-objetos), podemos constatar dois estados opostos:

em relação aos objetos de consumo, a aproximação é total; já em relação à

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cena em que elas aparecem numa biblioteca, que parece ser de escola,

mostram-se com total desinteresse. Imprimir estados de alma positivo/com

interesse e negativo/sem interesse por algum objeto, pessoa ou situação, é

deixar claro as intencionalidades do discurso. No caso de Três Espiãs Demais,

prevalece o discurso do consumo, em detrimento a tantos outros discursos

possíveis para o público infanto-juvenil.

d) Topológico

A análise topológica está diretamente relacionada aos planos, espaços,

lugares, posições das figuras no espaço da tela.

Figura 9: Angulosidades

Na primeira seqüência, o enunciador começa a cena mostrando a imagem das

pernas das modelos, de baixo para cima, passando pelo corpo, até chegar ao

rosto delas. ‘Congela’ de baixo para cima a imagem das personagens, quando

as mesmas fazem uma pose para o enunciatário. Esse recurso de

‘congelamento’, em plano americano, é o de debreagem enunciativa, pois

aproxima as personagens do enunciatário. “[...] O plano americano corta a

pessoa um pouco acima da cabeça e mais ou menos na altura dos joelhos.

Tem esse nome porque foram os americanos, nos primórdios do cinema, quem

mais divulgaram esse plano” (PAULO,1981,p.33). Ao utilizar o recurso de

câmera numa angulosidade de baixo para cima, reforça a altura dos corpos das

personagens, dando um efeito de sentido de superioridade, grandeza.

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Figura 10: Planos de Expressão29

A partir daí, até o momento em que aparece o Jerry (chefe delas), o plano que

predomina é o de expressão ─ “[...] O plano de expressão corporal ou de

diálogo são assim denominados porque seu objeto principal é o corpo humano”

(PAULO,1981,p.33). O enunciador, ao usar o plano de expressão, pretende,

com essa estratégia, focar o corpo das personagens, aproximando o

enunciatário das ações delas, de seus gostos, de seus comportamentos,

convidando-os a conhecer um pouco mais de sua intimidade. O recurso do

close-up, ou primeiro plano, é também utilizado para mostrar a expressão do

rosto das personagens. Esse recurso, ao permitir uma maior proximidade com

a face dos atores, provoca uma maior aproximação do enunciatário com os

sentimentos vividos pelos personagens.

Figura 11: Planos de Ambiente geral

A partir da segunda seqüência (após Jerry), os planos que predominam são os

de ambiente/geral e também os de detalhe. O enunciador, com a estratégia de

plano geral, leva o enunciatário a conhecer os espaços onde as aventuras

acontecem e como as heroínas agem ─ “[...] O plano geral mostra um grande

29

Alertamos o leitor para não confundir o “plano de expressão da linguagem” com as tipologias de planos e enquadramentos do texto audiovisual.

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panorama: deserto, cidade, estádio lotado, etc. Nele, a figura humana se perde,

mal é reconhecida”. (PAULO,1981,p.31). O efeito de sentido é o de aventura e

ação.

Figura 12: Planos de detalhe

Já o recurso do plano de detalhe é usado, pelo destinador, para mostrar,

exclusivamente, os bens de consumo usados pelas personagens nas ações

(batom, cinto, lentes de contato).

Os ângulos de câmera são tomados na vertical, sempre que as personagens

estão em apuros (caindo dos prédios altos, dos helicópteros), reforçando o

efeito de aventura. As poucas tomadas de câmera horizontais aparecem para

mostrar os detalhes de ambientes em cada início de cena, para que o

telespectador reconheça que houve troca de cenários (lugar).

Figura 13: Superposição de Planos

Na figura 13, podemos perceber como o enunciador trabalha, num mesmo

espaço, várias figuras e planos: as três personagens em ação, detalhes de

carros, objetos, lugares, cada figura ocupando “um micro espaço” dentro do

“espaço macro”. Assim, o enunciatário construído pelo enunciador de Três

Espiãs Demais é um sujeito que tenha competência visual e perceptual o

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suficiente para assimilar várias situações ao mesmo tempo. O enunciador, com

o recurso de inserir vários quadros menores num único quadro, mostra, numa

única imagem, várias temporalidades. Assim também vivem os jovens na

atualidade; a internet permite que várias janelas se abram ao mesmo tempo.

Também desse modo se configura a TV por assinatura, e a futura, digital. Nas

janelas abertas pela TV, o enunciatário viaja por conteúdos, espaços e

temporalidades diferentes, adquirindo, dessa forma, diversas experiências, sem

necessariamente precisar sair de seu espaço físico.

e) Cortes/Fusões

Os recursos de cortes e fusões imprimem, no texto audiovisual, ritmo,

temporalidades e mudança de espaços. As cenas são mostradas com cortes e

fusões muito rápidas, o que, no plano de conteúdo, corrobora a ação e

aventura.

A velocidade é a característica principal dos desenhos animados norte-

americanos, diferentemente dos desenhos orientais que têm pouco ou nenhum

interesse pela velocidade e permitem que a ação se desenrole bem ao ritmo do

tempo real. O efeito dinâmico é obtido por meios que pertencem ao mundo da

cinematografia ao vivo ─ a velocidade do ritmo dos cortes; a inserção súbita de

um primeiro plano mostrando certo detalhe da ação ou da expressão do

desenho; o movimento da câmera que afasta ou se aproxima de algum detalhe

escolhido. Em Três Espiãs Demais, o enunciador abusa desses efeitos, tendo

assim, como produto final, um programa bem dinâmico.

Figura 14: Florzinha

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O elemento expressivo utilizado na passagem de cada seqüência é uma

florzinha (espécie de vinheta de passagem). Reiteradamente, essa florzinha é

usada pelas três personagens como anel. Também suas mochilas contêm a

imagem da florzinha, cuja imagem aparece, novamente, no final da seqüência

de apresentação, em forma de um guarda-chuva envolvendo o corpo de uma

das personagens, protegendo-a. Assim, como todos os super-heróis possuem

um pacto, a imagem da florzinha é a expressão/figurativização e confirmação

desse pacto. Ela é o elemento plástico/expressivo de união entre cenas e

personagens. Além da fusão das cenas, é o indicador da passagem do tempo e

da mudança dos espaços.

4.1.5 O DISCURSO DO DESENHO

• O não-eu (pessoas): quem são os sujeitos? Quais são seus valores?

Ao projetar uma actorialização com sujeitos elegantes e famosos, que

discursam em primeira pessoa, que seus principais valores se resumem em

compras nos shoppings, constatamos que o enunciador de Três Espiãs Demais

instaura sujeitos do TER em detrimento de sujeitos do SER. Também podemos

constatar que, ao projetar sujeitos padronizados, reforçam que o outro, o álter,

o diferente, é o NÃO-EU do desenho Três Espiãs Demais.

• O não-lugar: quais lugares freqüentam ou não freqüentam?

Ao apresentar as metrópoles, os shoppings, as viagens pelos diversos cantos

do mundo, podemos constatar que CASA e ESCOLA são os não-lugares de

Três Espiãs Demais.

• O não-tempo: como vivem as personagens sob a perspectiva temporal?

Ao projetar somente o tempo atual, moderno, presente, constatamos que

PASSADO e FUTURO configuram um não-temporalidade em Três Espiãs

Demais.

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O sujeito da enunciação de Três Espiãs Demais, desdobrando-se em

enunciador e enunciatário, assume, como enunciador, as seguintes

características:

• Fala diretamente quem é, o que gosta e o que faz;

• Assume o mesmo tempo de fala em que ocorrem as suas ações,

concomitância de um tempo presente ao momento da fala, ou seja, mesmo

tempo da enunciação ─ “Estamos prontas” ─, o mesmo que dizer “Estou

pronta”. É a instauração de uma enunciatária-modelo, que diz que está

pronta aqui e agora (num tempo presente), assumindo o que gosta e os

locais que freqüenta, mostrando por meio de quais circunstâncias efetiva

sua performance para conquistar seus anseios/objetivos (objetos de valor);

não tem problema em mostrar suas falhas, seus momentos disfóricos;

mostra que não é politicamente correta; tudo é dito e mostrado; enfim, é

transparente, seu diálogo é aberto.

Por conseqüência, o enunciador de Três Espiãs Demais norteia o olhar do

enunciatário/a de modo a partilhar com ele seus pontos de vista ─ um

enunciatário que, pouco a pouco, vai sendo construído com as seguintes

características:

• Público feminino;

• Adolescente;

• Que gostam de shoppings, admiram e estão cercados pelos objetos de

consumo (“mas toda vez que entramos no shopping queremos comprar”);

• Que gostam de praticar esportes (figurativizadas nesses espaços na quadra

de tênis);

• Que gostam de aventuras (caindo de prédios);

• Que recebem ordens (“das missões, desvendamos as tramas”);

subordinam-se às ordens, mesmo sem vontade própria, pois o enunciador,

nesse caso específico figurativizado pelo destinador, Jerry, as convence

de suas investidas para resolver missões, em troca dos objetos modais que

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lhes ajudarão a se transformar em heroínas (objetos de consumo tais como

botas, lentes de contato, bolsinhas rosas, batons, guarda-chuvas,etc.);

• Que se consideram elegantes e gostam da fama (“elegantes, famosas, de

três espiãs conquistamos a fama”);

• Que são espirituosas e tenham profundo senso de humor;

• Que têm momentos de compulsão por comidas/guloseimas;

• Que gostam de todos os tipos de transportes;

• Que vivem na metrópole;

• Que vivem o tempo presente;

• Que não se interessam por estudo;

• Que não apresentam sinais de que tenham família, irmãos, pais e nem um

lar; não são projetadas em ambientes escolares;

• Que são auto-suficientes; não temem o perigo (“Estamos prontas pra

qualquer missão enfrentar e vamos encarar” / “sempre espertas,

corajosas”);

• E que sejam rápidas para decifrar as piadas, as falas rápidas, as mudanças

rápidas de tempo e lugar, de situações (vinhetas), etc.

O autor Eric Landowski, no livro Presenças do Outro (2002), faz uma

esclarecedora imersão no estatuto da “Moda”. Aproximando os conceitos do

autor com o desenho Três Espiãs Demais, que em um de seus episódios tem o

título Cidadãs Modelos, mostraremos algumas semelhanças do discurso da

“moda” com o discurso do desenho.

Landowski vai nos dizer que a moda tem a ver com o sentimento de mudança,

de algo diferente do passado, às vezes banalizado pelo presente e que nos

inclina para um desejo de novidade vindo do futuro. A moda busca

freneticamente o novo, mesmo que esse novo seja o relançamento de uma

moda do passado.

A moda tem a ver também com o sentimento de identidade dos próprios

sujeitos, daquilo que muda em torno deles e com eles. “Querer mudança não é

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apenas desejá-las, não é apenas tomar posição diante das coisas que mudam,

é também escolher uma maneira determinada de viver seu próprio devir”

(LANDOWSKI,2002,p.92). Desse ponto de vista, a mudança esperada,

desejada e assumida torna-se paradoxalmente, produtora de identidade.

A moda, faz aparecer uma certa sensação do tempo. Os decretos da moda se

referem à maneira de falar, de se vestir, de pensar, de comer. É sentir-se do

seu tempo, e que assim, se “está na moda”.

Ao se deixar levar no dia-a-dia pelas senhas intelectuais, lingüísticas, vestimentares e outras, do lugar e do momento, ao seguir o movimento ambiente, ao louvar todos em coro os mesmos ídolos da estação ou ao cantar os mesmos slogans, cada um se reconhece a cada instante a si mesmo, em uníssono com o outro, seu vizinho, seu semelhante: como se, num mundo onde nada que vale em matéria de gosto ou de opinião tem o direito de durar, fosse preciso para permanecer socialmente em seu lugar mudar, por assim dizer, de pele a cada primavera (LANDOWSKI,2002,p.93).

Mas a moda não intervém apenas no tempo vivido dos sujeitos. Na medida em

que “ela põe em circulação formas que podem ter valor de signos de afiliação

facilitando a constituição de grupos sociais distintos uns dos outros, ela é

também um fator de segmentação e articulação do espaço social”(2002, p.94).

Conforme o autor, as “preferências da moda” e do seu discurso do novo,

reproduz no idêntico, uma dinâmica de produção das diferenças.

Seguir uma moda é adotar as marcas com o auxílio das quais determinado meio declina figurativamente sua identidade, é no mínimo, sugerir que se pertence á classe social em questão, e com isso indicar que se assume a pertença a ela, se for o caso, ou demonstrar que se gostaria, pelo menos, de passar por alguém que é dela ((LANDOWSKI,2002,p.96).

Nesse sentido, as formas que a moda articula agem, pelo menos em teoria,

tanto como máscaras, quanto como reveladores. Se elas servem para na

maioria das vezes dizer as identidades, elas podem também a cada instante se

transformar em meios de se travestir ou de simular as identidades.

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Ao mesmo tempo que segmenta o corpo social, com seus estilos, contribui

também para estabilizá-lo decretando “maneiras de ser e de fazer”, colocando

para cada grupo a norma do momento e contribuindo para os jogos do parecer

que ela torna possíveis.

Nossa teoria diz que “todo ser”, implica um “não ser”. Assim toda identidade,

pressupõe um alteridade. Acreditamos, como Landowski que é efetivamente o

ponto de vista que cria o objeto, ou pelo menos que lhe dá o significado. E,

num ambiente em que existem mais do que um ponto de vista possível, haveria

certamente opções de escolha, e de articulação das possibilidades oferecidas.

É sobre esse ponto, acreditando que precisamos do outro para nos tornar nós

mesmos, que precisamos das alteridades para constituir nossa identidade, que

questões relevantes sobre o discurso do desenho Três Espiãs Demais serão

por nós ressaltados, como indicadores de que precisamos estar alertas com as

construções de sujeito, espaço e tempo que são oferecidas ao público infantil.

O enunciador desse desenho não oferece aos enunciatários possibilidade de

escolha. Instaurado dentro do desenho, a enunciatária ou é magra, alta,

esbelta, compra produtos e se transforma em heroína, ou “não é tudo isso”.

Caso ela resolva não ser tudo isso, ela estará fora de moda, não estará

investida dos valores heróicos, modernos, instalado pelo enunciador. O que

nos preocupa é em que medida uma subjetividade/identidade construída

somente a partir do igual, do modelo único está sendo formada? Que tipo

de criança o enunciador, com isso, ajuda a formar?

Em Presenças do Outro, Landowski relata que quando perdemos um ente

querido ou “a mulher amada” vai embora, o sujeito sofre com o

“desaparecimento desse outro” de seu mundo, de seu espaço. A partir dessa

observação do autor, nos damos conta que o desenho Três Espiãs Demais

nem chega a trabalhar a “perda do outro”. Ele simplesmente não oferece o

outro. O desenho com isso, tende ou pretende ser a própria “totalidade

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englobante”.

Landowski vai dizer que a novidade (que a moda traz consigo) não tem sentido

se não se destacasse contra um fundo de permanência. Os seres constituem

suas identidades na alternância, na transitoriedade, nos processos da vida, vão

se tornando outros, sendo eles mesmos. “O ser do sujeito seria o produto do

correlacionamento de uma série aberta, contingente, heterógena, de presentes

ordenados no tempo (2002,p.102).

Também para o autor, a busca de si mesmo reveste a forma gramatical da

teoria do discurso. Dizer “eu sou isso”, ou “não sou mais isso”, significa

aproximar-se (embreagens) e distanciar-se (debreagens). “Ser”, implica num

complexo exercício de rupturas de pontos de vista.

Mas, já ressaltamos que o desenho Três Espiãs Demais não oferece “outros

pontos de vista”, as aproximações do desenho apontam para um único

caminho. O que está inscrito no texto mostra uma única direção, a direção do

padrão. Logo, o “desvio-padrão”, não tem lugar nesse desenho.

A constituição de uma subjetividade pressuporia presença e ausência,

surgimento e abolições. Nesse sentido o desenho As Três Demais, ao

presentificar um único modelo (presença/surgimento), reforça ao mesmo tempo

o não-modelo (ausências/abolições). Não haveria “problema” nenhum nisso,

pois é dessa forma mesmo, como diria Landowski - por um desvio de negação

- que nos afirmamos. O problema existe no “como” o enunciador trabalha o

modelo (identidade), revestindo beleza, culto ao corpo, relações de consumo

como sinônimos de valores positivos/eufóricos. Se o modelo sugerido pelo

desenho está investido de valores positivos, e, se só eles são mostrados, toda

essa presença (o dito), pressupõe uma ausência (o não-dito). A ausência então

do desenho é a ausência daqueles que não seguem os ditames do padrão.

Assim, ao afirmar a tríade presença/padrão/valor positivo, o enunciador afirma

também a tríade ausente/desvio-padrão/valores negativos.

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Em relação ao tempo, Landowski vai dizer que a moda está sempre em busca

de novidades. A moda comemora o novo como as pessoas comemoram a

passagem do tempo em 31 de dezembro. “Comemoramos o novo pelo novo,

pois a única coisa que justifica comemorar o ano novo é o fato dele ser novo,

de não ser o que termina, exemplo perfeito de uma valorização da mudança

em estado puro” (2002, p.111).

O enunciador assim, ao trabalhar o novo pelo novo, produz um efeito de

“euforia pura do acontecimento, adesão à novidade por ela mesma. Ao nos

deixarmos persuadir pela moda das “Cidadãs Modelos”, ao modificarmos

nossos hábitos e adquirirmos outros, ao mudarmos de ponto de vista, e

principalmente ao aceitar os valores que estão investidos nas novidades do

momento, estamos “promovendo” a moda como instrumento capaz de romper

nosso cotidiano. Como diz Landowski, “a moda é abertura, festa, liberdade”. O

discurso da moda, do novo e do presente, inscritos no desenho Três Espiãs

Demais, vai suprimindo assim, outros discursos possíveis: o discurso do

passado, do futuro, da escola, da família.

Sabemos que os discursos circulam em vários espaços: em casa, na escola,

na mídia. Assim como os criadores do discurso da moda, os enunciadores de

desenhos animados, fazem circular por meio de seus desenhos, como num

“jogo de passa-anel” as instaurações de verdades admitidas, sem, que

saibamos ao certo, quem disse que o mundo tem que ser deste ou daquele

modelo. Os discursos dos desenhos animados, variantes apenas nas plásticas

(plano de expressão), reiteram um mesmo conteúdo, formam uma “doxa do

momento: o que se diz, o que se pensa, o que se pode, talvez até o que se

pode dizer, o que é razoável pensar hoje, aqui e agora, (2002, p.121),

Por fim, continuamos preocupados, ao imaginar, quais subjetividades são

construídas pelos enunciatários do desenho, ao se deparar com um ambiente

midiático que os libera do contato com a família, da escola, que promove a

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perda da memória, que não projeta um futuro. Se todos esses “atores liberados

pelo desenho”, são, como já vimos, condição básica para constituição de

subjetividades/identidades, o discurso do desenho Três Espiãs Demais, no

fundo, vai liberando os enunciatários deles mesmos.

4.1.6 RELAÇÃO TEXTO/CONTEXTO

Figura 15: Mochila Figura 16: DVD Figura 17: Roupas Figura 18: Brinquedos

Segundo Fiorin (1997, p.66), “[...] quando tomamos um texto figurativo,

precisamos descobrir o tema subjacente às figuras, pois para que estas

tenham sentido precisam ser a concretização de um tema, que por sua vez, é o

revestimento de um esquema narrativo [...]”. Esse autor lembra-nos também

que a “[...] recorrência de determinados traços semânticos, estabelece a leitura

que deve ser feita do texto[...]”, sendo esta, provida não de uma fantasia do

leitor, mas da inscrição de tais traços semânticos no texto. Nesse sentido, a

partir de toda figuratividade e composição plástica exposta no desenho

(shoppings, metrópoles, bens de consumo), depreendemos o seu tema central:

“relações de consumo”.

Podemos dizer, então, que o texto do desenho Três Espiãs Demais reforça as

práticas da sociedade contemporânea, cujo sistema socioeconômico é ditado

pelas relações de consumo.

Sendo os bens de consumo os verdadeiros actantes da trama, o enunciatário é

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levado a viajar num percurso temático que explora o mundo moderno, as

cidades, os shoppings, a vida do cotidiano. O enunciador transporta os

enunciatários para um mundo aquém da fantasia, do lúdico, da ilusão,

inserindo-o, assim, numa viagem que não ultrapassa as cercanias do dito

mundo pós-moderno.

Fazendo uma relação da narrativa construída dentro da trama pelo enunciador,

com o momento atual em que vivemos, uma primeira aproximação nos ocorre.

Trata-se do perfil “globalizado” atualmente demandado nas várias instâncias do

ambiente mercadológico.

A globalização, entendida como produção, distribuição e consumo de bens e

serviços organizados a partir de uma estratégia mundial voltada para o

mercado mundial, funciona na estrutura do sistema de economia capitalista.

Como a informação está mais acessível no tempo e espaço, os indivíduos

passam a consumir produtos, estilos de vida, compartilhar valores e crenças de

sociedades distantes. Culturas internacionais estão mais acessíves. Somos

capazes de sofrer com as guerras, com a dor do outro, sem necessariamente

ter vivenciado de perto uma guerra civil, por exemplo. Mesmo assim, somos

capazes de sofrer, sorrir e formar opiniões a partir dos “segundos” que nos

chegam pelos meios de comunicação.

Segundo a consultoria norte-americana McKinsey, a competição mundial tende

a envolver apenas cinco grandes empresas por setor. São esses oligopólios

midiáticos que produzem, distribuem e organizam, em escala global, a maior

parte da informação e das atividades culturais como música, cinema, filmes,

shows, livros, revistas, bem como, entretenimento, esporte, jogos, lazer, o

mercado das artes e a indústria da fantasia infantil e juvenil. A indústria da

comunicação tem nos EUA o país hegemônico, verdadeiro pólo de produção e

distribuição de conteúdos.

Assim, é possível que em todas essas modalidades de atividade cultural, as

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grandes corporações marquem sua presença em nosso cotidiano por meio dos

produtos culturais e informativos que produzem, distribuem ou reconfiguram

conforme a cultura de cada país consumidor.

No Brasil, grandes empresas estrangeiras da área de telecomunicações e

computação já atuam no mercado. Os grupos nacionais mais fortes –

Organizações Globo, Grupo Abril, Grupo Silvio Santos, Grupo Folha, Estado e

Igreja Universal – transmitem e distribuem programas e conteúdos dos grandes

conglomerados, ou possuem projetos em colaboração com empresas

internacionais.

Segundo a ONG Midiativa, em 2002 foi aprovado, no Congresso Brasileiro, um

projeto de lei que abre às multinacionais a participação na composição

acionária de empresas brasileiras do setor das comunicações. A pressão dos

oligopólios midiáticos, de governos e órgãos financiadores internacionais,

aliados a interesses de grupos locais, traz sérias conseqüências para a difusão

de uma cultura nacional.

Como todos esses acordos acontecem sem o acompanhamento da sociedade

organizada, quando menos nos damos conta, este ou aquele programa de

televisão, comprometido com este ou aquele grupo de mídia que pretende

faturar milhões com determinados produtos de anunciantes internacionais ou

nacionais, já está no ar.

As análises feitas no programa Três Espiãs Demais comprovam o discurso

afinado do texto do desenho com o contexto descrito até aqui. Sabemos que,

para além das análises críticas de audiovisual, alternativa a ser trabalhada

pelos professores em sala de aula, outras iniciativas devem e podem ser

exercitadas. Acreditamos ainda num horizonte em que a sociedade organizada

(pais, professores, psicólogos, anunciantes e grupos de mídia) possa discutir

as políticas que o setor de telecomunicações desenvolve para o telespectador

infantil.

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4.2 O DESENHO HOMEM ARANHA

4.2.1 O PROGRAMA E OS PERSONAGENS

O personagem Homem Aranha foi criado em 1962 pelo artista Stan Lee, que,

na época, trabalhava na editora de histórias em quadrinhos Marvel, hoje

detentora principal e/ou parcial dos direitos autorais de negócios (filmes,

revistas, produtos, etc.) que envolvam a marca Homem Aranha.

O personagem Homem Aranha ficou conhecido principalmente pelas famosas

HQ’s (histórias em quadrinho). Posteriormente, foi para o cinema e finalmente

chegou à televisão com o título “Homem Aranha, a nova série animada”,

com 13 episódios.

Atualmente, o programa é exibido tanto nas emissoras de televisão de canal

aberto, quanto na TV Globo e suas afiliadas, como também em algumas

televisões por assinatura.

Figura 1: Personagens principais

O jovem Peter Parker foi mordido por uma aranha, o que lhe deu poderes

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sobre-humanos, que fizeram dele tanto um super-herói para aqueles que

necessitam quanto um vilão para a polícia.

Seus poderes incluem uma super força, reflexos muito rápidos, habilidade para

escalar superfícies, utilizar teias de aranha, além de possuir um sexto sentido

aguçado para o perigo.

Por um lado, Peter está passando pelos mesmos problemas por que passam

todos os jovens que estão no primeiro ano da Faculdade; por outro lado, ele

tem essa “pequena” responsabilidade de salvar o mundo do mal.

Harry Housborne (à direita e em segundo plano)

Peter e seu melhor amigo, Harry, dividem um apartamento. Harry tem bastante

dinheiro e vem de uma família privilegiada, porém incompleta por causa da

morte do seu pai. Uma morte que, segundo Harry, foi culpa do Homem

Aranha, coisa que lhe desperta um ódio enorme do super-herói, e que lhe

causa um grande dilema, já que o Homem Aranha é, secretamente, Peter

Parker, seu melhor amigo.

Mary Jane (à esquerda e em segundo plano)

Mary Jane estuda drama e está na mesma Faculdade que Peter e Harry.

Todos os dias Mary Jane sofre com sua relação com Peter, já que sempre

existe a dúvida se vão ficar juntos ou não. O outro problema é que Mary Jane

também tem algo com o Homem Aranha, sem saber que ele é o próprio Peter,

ou seja, um grande dilema. Os 13 episódios da nova série animada para a

televisão são:

1. Cabeça Nas Nuvens

2. A Festa

3. Abraço Apertado

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4. Memória Passageira

5. Guardando Segredos

6. Homem Aranha Desabilitado

7. O Engano Real

8. Heróis e Vilões

9. A Lei da Selva

10. Quando As Faíscas Voam

11. A Espada De Shikata

12. Jogos da Mente - Parte Um

13. Jogos da Mente - Parte Dois

4.2.2. ANÁLISE DA VINHETA DO DESENHO

A vinheta de abertura é o resumo dos 13 episódios da nova série animada feita

para a televisão. Conseguimos, assim, captar o sentido da série (13 episódios)

a partir dos principais fragmentos deixados pelos enunciadores na vinheta de

abertura do desenho.

4.2.2.1 O procedimento de descrição

Antes de entrarmos na descrição da vinheta do programa, vale ressaltar que,

segundo Greimas e Courtés (1979), o conceito da palavra “descrição”, desde o

século XIX, tem sido alvo de discordância entre os filósofos da linguagem. Seja

pelos indícios positivistas que implicitamente a própria palavra conota,

seja pela suposta pretensão de designar a totalidade.

Para a semiótica discursiva, a “descrição” é uma das etapas de extrema

importância do processo metodológico do fazer semiótico, cabendo ao

semioticista descrever tal e qual os elementos constituintes do objeto. É uma

primeira apreensão do objeto que está por ser definido, aplicando sobre ele

procedimentos de reescrita que, posteriormente, resultará numa interpretação

sintática e semântica.

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4.2.2.2 A descrição da vinheta de abertura do programa

A vinheta de abertura do desenho Homem Aranha tem 30 segundos. Para

organização posterior das análises, dividimos essa vinheta em cinco partes,

com as seguintes denominações: seqüência abertura, primeira seqüência,

segunda seqüência, terceira seqüência e quarta seqüência.

Seqüência Abertura

Do alto de um prédio, uma figura humana, vestida com roupa vermelha e azul

(parece ser a de um homem), está agachada e de costas. Olha para uma

cidade, lá embaixo e à sua frente, uma grande cidade, com prédios altos e

escuros com luzes acesas nas janelas dos apartamentos. A câmera vem

aproximando a cidade (efeito de ‘zoom in’) até ao homem, que ainda está de

costas e agachado. A cidade vem se aproximando dele, bem à sua frente, e

nesta cidade que se aproxima, o enunciador escolhe um prédio central para

aproximar, fazendo com que o mesmo preencha a maior parte da tela da

televisão. O prédio, todo escuro, preto, com tons grafite e com uma faixa de cor

lilás, retangular, posicionada verticalmente na parte central da figura, vem se

aproximando, frontalmente, do homem agachado

Primeira Seqüência

De repente, um olhar de homem surge, com a câmera fechada somente neste

olhar; a boca não aparece (assim como a boca do Homem Aranha que também

não aparece sob sua máscara). A expressão máxima de sua face é o olhar,

uma vez que a máscara recobre todos os outros órgãos expressivos da face:

boca, orelha, nariz.

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Em um novo take30, surge o Homem Aranha, seu olhar, e ele de lado em

movimento. No take seguinte, surge, novamente, o misterioso olhar do homem

(ainda desconhecido por nós enunciatários). De um prédio em explosão, surge

o Homem Aranha, descendo ao chão, com auxílio de sua teia, para ajudar

quatro homens. O Homem Aranha só passa por entre os homens e sobe

novamente para o alto dos prédios. Do momento em que o primeiro olhar do

misterioso homem aparece, contabilizamos 19 fotogramas31:

1. Câmera fechada no olhar do misterioso homem;

2. Imagem do misterioso homem e do Homem Aranha sobrepostas;

3. Fusão de duas imagens do Homem Aranha;

4. Homem Aranha de corpo inteiro;

5. Câmera fechada no olhar do misterioso homem;

6. Câmera fechada no olhar do misterioso homem;

7. Homem Aranha de corpo inteiro;

8. Câmera fechada no olhar do misterioso homem;

9. Homem Aranha de corpo inteiro;

10. Câmera focando olhar Homem Aranha;

11. Imagem do misterioso homem e Homem Aranha sobrepostas;

12. Câmera focando rosto do misterioso homem;

13. Câmera focando olhar do Homem Aranha;

14. Câmera fechada no olhar do misterioso homem;

15. Imagem do misterioso homem e Homem Aranha sobrepostas;

16. Câmera fechada no olhar do Homem Aranha;

17. Câmera fechada no olhar do Homem Aranha;

18. Câmera fechada no olhar do Homem Aranha;

19. Câmera mostra o Homem Aranha de corpo inteiro.

30 ‘Take’ - vamos traduzir como ‘tomada de cena’. 31 Fotograma é cada impressão fotográfica, ou quadro unitário de um filme cinematográfico. No cinema sonoro, a velocidade de projeção em filmes de 35 mm é de 24 fotogramas por segundo.

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Quando a câmera foca no olhar do Homem Aranha, ela abre para o corpo

inteiro, mas a ênfase continua no olhar; ele vem subindo/escalando, de baixo

para cima, um prédio, vem subindo, como um inseto, como uma aranha; ênfase

neste olhar, que sobe e vem em nossa direção.

Novas cenas aparecem com o Homem Aranha descendo sempre numa

angulosidade de câmera do alto para baixo. Novamente uma explosão

acontece num prédio e uma pessoa é atirada para fora desse prédio em

chamas. O Homem Aranha surge do lado esquerdo para o direito da tela. Será

que ele vai salvar esse homem, que foi atirado (ou foi ele quem o atirou) para

fora do prédio? ─ Isso, nas cenas, não fica claro.

Surge, novamente, a metrópole preta, escura, grafite, com uma tomada de

câmera do alto para baixo, mostrando, lá embaixo, no chão, os carros em

movimento. Nesse mesmo take, o Homem Aranha aterrissa na parte frontal de

um prédio. O Homem Aranha surge na parte central da tela com as cores vivas

de sua roupa de super-herói (azul e vermelha) e “dá um soco no meio da tela”.

Segunda Seqüência

Após esse “soco no meio da tela”, que foca, em plano de detalhe, a mão do

Homem Aranha com anéis de metal, surge uma teia de aranha, azul, vermelha

e preta ao fundo. No meio dessa teia, surge a figura de um homem com cabeça

baixa; sua cabeça vem subindo, lentamente, de baixo para cima e seus olhos,

fechados, vão se abrindo e olhando diretamente para nós (enunciatários). É o

mesmo olhar do homem misterioso que aparecia em toda a 1ª seqüência.

Aparece sobre seu corpo o nome Peter Parker.

A imagem de Peter Parker some e aparece, do lado esquerdo da tela, a

imagem de uma moça ruiva, com seu rosto, que está de costas para nós. Ela

vem, em posição corporal lateral, virando seu rosto, seus olhos fechados vêm

se abrindo e seu nome revelado: Mary Jane Watson. Curiosamente, quando

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ela se vira totalmente para nós, não olha em nossa direção (enunciatários),

mas em direção a algum lugar que parece extrapolar a tela da TV; olha para o

alto e para o lado esquerdo.

A imagem de Mary Jane some (na técnica fade-out) e surge a imagem de um

homem loiro, do lado oposto em que apareceu Mary Jane, agora, do lado

direito da tela. Seu rosto está também de costas para nós, ele (o homem loiro),

em posição lateral, como Mary Jane, vem virando seu rosto, seus olhos vêm se

abrindo e seu nome revelado: Harry Housborne. Curiosamente, também,

quando ele se vira totalmente para nós, não olha em nossa direção, mas em

direção a algum lugar fora da tela, para o lado direito e à frente, o olhar um

pouco inclinado para o alto.

Terceira Seqüência

Passamos, então, para uma 3ª seqüência, cheia de takes de aventura, que

resumem, a partir de fragmentos de cada take, um pedacinho de cada um dos

13 episódios dessa série animada para a televisão:

• Surge uma mulher de roupa preta, fugindo, ao alto, entre os prédios, e o

Homem Aranha, de cabeça para baixo, perseguindo-a;

• Uma figura de monstro (cabeça parecida com a de um dragão), de

cabeça para baixo;

• O Homem Aranha, do alto de um prédio, olhando para baixo, e o sol

brilhando ao fundo. Ele pula e aterrissa em cima de um carro em

movimento, no meio de uma rua principal da metrópole.

• Surge a figura do chefe da redação, onde Peter Parker trabalha como

fotógrafo, apontando o dedo, parecendo estar dando ordens para

alguém;

• Surge uma mulher loira, de roupa branca, atacando alguém;

• Surge Harry Osborn, com um machado, batendo-o contra uma mesa;

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• Surgem três homens de roupa preta, um gordo e dois magros, com uma

arma de raio laser, atacando alguém;

• Um homem é lançado ao ar, parece que está sendo eletrocutado pela

arma de raio laser dos vilões da cena anterior;

• Surge um rosto fantasmagórico, contraste de escuridão e luz, preto e

branco, gritando; a câmera foca, em plano de detalhe, sua boca aberta,

gritando e de dentro dela sai uma espécie de raio;

• Surge um homem vestido de preto, atacando com uma arma

diferenciada (parece um arco), e a flecha lançada é mais moderna,

parece um pequeno míssil;

• Surge Peter e Mary Jane se beijando e, ao fundo, as figuras de prédios

e letreiros coloridos/néon da metrópole passando; é noite.

• Surge o Homem Aranha, que é atacado por um monstro (espécie de

réptil), que cai de um prédio muito alto com ele;

• Surge o Homem Aranha entrando pela janela (parece uma sala de

escritório), cujo vidro estilhaça ao entrar;

• Surge o Homem Aranha, no chão, e um carro que tenta o atropelar, mas

ele pula e consegue escapar do atropelamento;

• Surge a mesma vilã de uma cena anterior, de preto, com óculos verdes

(parece óculos de natação, idéia de poder na visão), correndo, fugindo,

e o Homem Aranha perseguindo-a;

• Surge Mary Jane caindo do alto de um prédio e o Homem Aranha atrás

dela para salvá-la da queda;

• Surge o Homem Aranha, à noite, pulando de cima para baixo, lançando

sua teia, que sai dos seus pulsos;

• Surge o Homem Aranha saindo de uma grande explosão do alto de um

prédio, parece que ele está voando em direção a nós (enunciatários).

Quarta Seqüência

Finalmente, na 4ª e última seqüência da vinheta de abertura, surge o Homem

Aranha tirando sua máscara. É o mesmo homem do olhar misterioso da

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121

seqüência de abertura, que foi revelado como Peter Parker na 2ª seqüência. O

rosto de Peter Parker está posicionado do lado direito da tela, olha para cima e

para o lado direito. Seu rosto está iluminado, porém com uma parte tomada por

uma sombra preta.

Na mesma perspectiva do olhar de Peter Parker, surge o Homem Aranha,

agachado, em cima de um prédio, apontando a mão direita para a mesma

direção que Peter Parker olha.

4.2.2.3 Análise da sintaxe discursiva

A sintaxe discursiva está preocupada em descobrir as marcas da enunciação

inseridas num determinado enunciado. A esse processo chamamos

discursivização, que analisa os procedimentos de actorialização,

espacialização e temporalização, ou seja, como os enunciadores inserem em

seus enunciados as categorias de pessoa, tempo e espaço.

A semiótica discursiva, ao analisar as marcas deixadas pelo enunciador em um

determinado enunciado, faz isso através de um procedimento chamado

debreagem, que pode ser enunciativa ─ ‘Eu penso que a vida é bela’ ─, ou

enunciva ─ ‘Ela pensa que a vida é bela’.

No primeiro exemplo, definimos ‘Eu penso que a vida é bela’ como debreagem

enunciativa, pois estão projetadas dentro dessa frase/enunciado uma pessoa

(eu, Nazareth), um tempo (agora) e um espaço (aqui), que é concomitante ao

ato da enunciação.

Já no segundo exemplo, definimos ‘Ela pensa que a vida é bela’ como

debreagem enunciva, pois estão projetadas nessa frase também uma categoria

de pessoa (ela, aquela que não está falando, mas de quem estão falando), de

um tempo (o não agora, não é concomitante ao momento da enunciação) e de

um espaço (o lá, do lugar de onde a pessoa está falando, que não é o

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122

momento da enunciação).

Assim, no procedimento de debreagem enunciativa, onde o ‘eu’ coloca-se

dentro do enunciado, produz-se um efeito de sentido de subjetividade ─

primeira pessoa. Já na debreagem enunciva, ao contrário, o ‘eu’ ausenta-se do

enunciado, produzindo, assim, um efeito de objetividade ─ terceira pessoa.

Trazendo esses mesmos conceitos para o nosso objeto, que é o meio

televisão, é importantíssimo lembrar que qualquer programa (seja ele desenho

animado, telejornal, novela, etc.) será sempre um enunciado. Mais importante

ainda é entender que o ‘marco zero’ para se analisar as debreagens de um

enunciado, é tomar o texto (no espaço da televisão) como ponto de partida, e

não a nossa relação de pesquisador/receptor com o meio televisão. Se fosse

assim, o texto estaria sempre debreado no espaço do ‘lá’. Mas como a

semiótica analisa os discursos, o pesquisador deve estar atento a que a análise

deva tomar o texto apresentado como ponto de partida para se chegar às

marcas da enunciação no enunciado.

Num texto imagético, os procedimentos que o enunciador utiliza para que o

enunciatário se identifique e se aproxime ao seu fazer-crer dos textos

enunciados, primeiramente se dão pelo processo de figurativização (tentativa

de verossimilhança com o real). É a partir desses procedimentos figurativos do

plano de expressão que o semioticista tentará chegar aos temas subjacentes a

essas figuras, tentando desvelar os procedimentos pelos quais o enunciador

quer nos fazer crer daquilo que diz.

• Sujeitos (Eu): Homem Aranha, Peter Parker, Mary Jane, Harry Housborne

(jovens, corpos perfeitos, modernos, roupas modernas, estudam e

trabalham). Então, o desenho instaura um leitor modelo32, que é o jovem

moderno;

32

Leitor modelo ou espectador modelo: é o perfil demográfico e psicográfico do possível espectador. Segundo Lorenzo Vilches, “os produtores de televisão têm em sua mente muitos

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123

• Espaços (Aqui): Metrópole, Nova York, sendo que os ambientes que

freqüentam ─ lanchonetes, pátio da universidade, raramente sala de aula,

biblioteca somente para encontros, escritórios, vida noturna, ruas da cidade,

muitas aventuras, locais perigosos, arriscados ─ são mostrados, na maioria

da trama, em situações de risco e confusão.

• Tempo (Agora): tempo presente ─ na maior parte da trama o tempo é

noturno.

4.2.2.4. Análise da semântica discursiva

Nessa etapa, são detalhados os elementos do plano de expressão, ou seja, a

partir da identificação da plasticidade figurativa preconizada pela semiótica

(eidético, topológico, cromático e matérico); além dos recursos de plasticidade

próprios do texto televisivo, encontram-se os temas subjacentes.

a) Cores:

Figura 2: Cores

A saturação, a partir das cores escuras como o preto, prevalece em toda a

vinheta de abertura. Assistindo a todo o desenho, para confirmar se dentro da

trama continua a predominância dessa plasticidade de cor, constatamos que o

preto prevalece nos espaços apresentados.

espectadores concretos e um espectador modelo”. Assim, os produtores de mídia, conhecendo esse perfil antecipadamente por meio de pesquisas mercadológicas, criam “modelos teóricos” de leitores modelos, e estes, “progressivamente vão se concretizando em receptores empíricos”.

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124

Figura 3: Cidade escura

Mas, será que na vida “real” todos os ambientes são pretos? São comuns

prédios de metrópole pretos? Os ambientes de fundo dos lugares e o interior

de ambientes todos pretos? Sabemos que não. Na vida ‘real’ não é comum

encontrarmos prédios pretos ou lugares totalmente pretos. Mas, então, o que o

enunciador pretende com essa plasticidade a partir da cor preta? Qual o efeito

de sentido desejado? Exercitando o semi-simbolismo33, verificamos com quais

figuras o preto se relaciona no desenho. Assistindo a toda a vinheta de

abertura, num exercício minucioso de descrição, a cor preta está relacionada

com as seguintes figuras:

• Com os prédios;

• Com o interior dos ambientes;

• Com o Ar/ Espaços/ noite;

• Em contraste com as luzes da noite/ e com as janelas dos prédios;

• Com as roupas dos vilões;

• Com as roupas dos heróis (personagens principais: Peter Parker, Mary

Jane, Harry Housborn);

• Com a teia de fundo que apresenta os heróis (personagens principais).

33

Para a semiótica, analisar textos pelo semi-simbolismo significa não admitir, a priori, os simbolismos arbitrários que a cultura impõe a determinados objetos. É preciso identificar as relações entre o plano expressivo e o plano de conteúdo, para dizer que um objeto X produz um efeito de sentido Y.

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125

Então, podemos dizer que a cor preta está diretamente relacionada à

metrópole, que abriga altos prédios, sempre em horário noturno, a ambientes

escuros, sombrios, misteriosos. Mas para sua significação estar completa, a

cor preta precisa e deve ser relacionada com a música que embala toda a

vinheta de abertura.Trata-se de uma música bem cadenciada, somente

instrumental, em ritmo de boate, estilo musical ‘dance’, com fortes intervenções

de bateria. É a música da noite, da metrópole, dos ambientes que os heróis e

vilões freqüentam e de onde a aventura flui, de onde o único beijo, mostrado na

vinheta, acontece sob o testemunho da cidade negra e das placas néon ao

fundo, em puro movimento. Embalados pelo som de boate, os personagens

vivem as aventuras que a noite pode proporcionar, parece mesmo que estão

dentro de uma boate, com flashes imagéticos passando em sua volta. O

movimento imaginal é rápido, com rápidas fusões, cenas muito fragmentadas,

sem possuírem, necessariamente, início, meio e fim, sem muitas explicações; é

a supremacia da imagem narrando tudo. Embalados pelo som de boate, vivem,

intensa e rapidamente, as aventuras que a noite pode proporcionar!

b) Sonoridade:

A vinheta é toda instrumental, música eletrônica, dinâmica, ritmo ‘dance', de

boate, sem nenhuma intervenção verbal oral. O que não é dito pretende ser

sentido, a música flui enquanto as imagens passam; nenhuma mensagem oral

é expressada, somente a instrumental.

As imagens do desenho Homem Aranha têm profundidade, os ambientes são

sombrios, escuros, mas ao mesmo tempo contrastam com outros ambientes de

iluminação esplêndida, com muitos efeitos visuais, ambientes altamente

explosivos e energéticos. Assim, para sincronizar as escolhas imagéticas com

a sonoridade, a música escolhida pelo enunciador também é potente, um misto

de música eletrônica com animação de vanguarda.

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126

c) Figuras/Formas:

As principais figuras do desenho Homem Aranha são:

Lugares/Espaços

• Prédios (altos, em chamas, com luzes dos apartamentos acesas);

• Interior de ambientes (parece ser de escritório).

Heróis/mocinhos

• Peter Parker

• Mary Jane

• Harry

• Homem Aranha

Vilões

• Homens (gordos e magros)

• Mulheres (loiras e morenas)

• Fantasmas

• Animais (réptil)

Objetos:

• Armas (arco e flecha)

Outros

• Chefe de Peter Parker

• Explosões

• Carros

Em Homem Aranha, as figuras representam a “supremacia da imagem”. As

figuras centrais são trabalhadas em sua plasticidade com a técnica 3D (três

dimensões) ─ tridimensional, ou 3D, significa qualquer figura que tenha altura,

largura e profundidade. Normalmente, uma ilustração é bidimensional, porque

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lhe falta a profundidade, que é a terceira dimensão. Assim, quando falamos em

espaço tridimensional em computação gráfica, estamos nos referindo a uma

ilusão, pois a imagem que se forma na tela do computador é sempre

bidimensional. Conforme Barbosa Júnior (2002), o método para se conseguir o

efeito 3D é o mesmo estabelecido pelos pintores renascentistas, que, partindo

de um modelo real ou virtual, faz com que o mesmo pareça tridimensional

quando figurativizado numa superfície bidimensional. Essa superfície

bidimensional pode ser tanto a tela de um quadro quanto a tela de um monitor

de vídeo.

Se o enunciador, ao escolher suas técnicas de expressão, seus jogos de

imagens e suas respectivas composições, usa-as com a intencionalidade do

fazer-crer por parte dos enunciatários, em Homem Aranha, ao figurativizar os

principais personagens com a técnica 3D, já confirma a intencionalidade direta

deste fazer-crer, de aproximar o enunciatário, tanto quanto possível, de uma

situação ‘real’, uma vez que técnica 3D é só um efeito de sentido, pois qualquer

desenho, essencialmente, é composto por duas dimensões espaciais (altura,

largura). A técnica 3D tenta criar o efeito de sentido de profundidade, de

volume. Com essa técnica, podemos observar que uma linha branca contorna

as figuras. Esse recurso dá um efeito de sentido de aveludado, de realidade, de

leveza, de movimento, brilho, luz. Ao mesmo tempo, diferentemente dos

desenhos tradicionais em que o traçado forte da linha demonstra a

intencionalidade do artista, na animação 3D as figuras não têm esse traçado

forte.

Acreditamos existir um sentido para se utilizar a plástica 3D nos dias atuais,

pois em Homem Aranha os personagens parecem robôs. Não seria esse

mesmo o efeito de sentido pretendido pelo enunciador?

O enunciador de Homem Aranha tira proveito desse efeito para construir o

discurso de uma plasticidade moderna, robotizada, tecnológica, envernizada.

Os personagens de Homem Aranha, em 3D, parecem bonecos de plástico,

bem parecidos aos que encontramos na loja.

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128

Figura 4: Cidade

Analisando a primeira cena da vinheta de abertura, constatamos que a cidade

que o Homem Aranha observa abriga, paradoxalmente, escuridão e luz. O

enunciador, ao instaurar o herói agachado, observando a cidade, instaura

também o enunciatário, pois, lembrando a relação de como a comunicação se

dá, este enunciatário, fora do texto (em casa, vendo a televisão), migra seu

olhar para dentro da tela como se estivesse lá, na pele do Homem Aranha,

olhando a cidade junto com ele.

Quando a cidade se aproxima do Homem Aranha, temos, nesse efeito de

‘zoom in’, também uma aproximação, gerando um efeito de expectativa, de

querer saber o que vem por aí e o que acontecerá quando a cidade chegar.

Com o Homem Aranha parado e a cidade escura se aproximando, parece que

os dois sujeitos (Homem Aranha e cidade) travarão um embate. Se Homem

Aranha é o herói, seria a cidade-metrópole a vilã?

Na primeira seqüência, conforme já descrito, temos um jogo de olhares com 19

fotogramas.

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129

Figura 5: Olhares

O enunciador, com esse recurso, vai trabalhando os ‘regimes de visibilidade’34

do desenho ─ de acordo com Eric Landowski (1992), os regimes de visibilidade

dizem respeito aos dispositivos do ‘ver’. Para que esses mecanismos sejam

identificados e traduzidos é preciso que exista uma “relação de pressuposição

recíproca ─ um que vê, o outro que é visto”. Nas relações entre os sujeitos “[...]

será o sujeito virtualmente observável que, procurando ele próprio, de certa

forma ‘fazer-se ver’, organizará o dispositivo requerido para a ‘captação do

olhar’ de um observador potencial” (Landowski, 2002,p.89).

Segundo Landowski (2002), pelo simples fato de existirem, as pessoas passam

a ser ‘sujeitos visíveis’. Firmam relações além do ‘ver e ser visto’, mas também

relações intencionais como ‘fazer ver’ e ‘fazer ser visto’, sendo que, o sujeito

que vê não é um simples receptor, mas um sujeito ‘captador de imagens’, que

recebe o papel de ‘sujeito operador’.

A partir dessas noções de Eric Landowski, podemos dizer que, na primeira

seqüência, o enunciador de Homem Aranha, ao exibir 19 fotogramas focando

no jogo de olhares entre Homem Aranha e Peter Parker, vai criando um efeito

de sentido de mistério, de algo proibido, que não pode ser visto e,

34 Os regimes de visibilidade são tratados por Eric Landowski no livro Sociedade Refletida,

2002.

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130

consequentemente, gerando curiosidade por parte do enunciatário em

desvendar a trama.

Observando a figura 5, vemos que o olhar enquadrado de Peter está sempre

sozinho, sem nenhum outro elemento em volta. Já a imagem do Homem

Aranha é mostrada publicamente, subindo prédios, aterrissando em cima dos

carros, uma clara publicização de sua imagem. Somente a imagem do rosto de

Peter deve ser preservada.

Assim, o regime de visibilidade dessa seqüência pode ser entendida como um

‘não querer ser visto’, por parte de Peter Parker, e de um ‘querer ser visto’ do

Homem Aranha. Analisando toda a vinheta, notamos, também, que os espaços

pelos quais Peter circula são espaços do âmbito privado, no escritório, com os

amigos. Já Homem Aranha aparece sempre nos espaços de domínio do

público. Podemos dizer, então, que Peter Parker está para os ‘espaços

privados’ assim como Homem Aranha está para os ‘espaços públicos’.

Relacionando esses dispositivos, temos que os sujeitos observáveis:

• Peter Parker -> não quer ser visto -> espaço privado = precisa de

privacidade.

• Homem Aranha -> quer ser visto -> espaço público -> precisa de

publicização.

Para todo sujeito observável, existe também um sujeito observador em

potencial, atualizando um ‘querer ver’. Em Homem Aranha, o enunciador,

ao mostrar somente os olhos de Peter, satisfaz o ‘querer ver’ do

enunciatário, mas limita o seu ‘poder ver’, preservando, assim, em parte, o

‘segredo’ da trama. Já em relação às imagens do Homem Aranha, uma

curiosa situação acontece. Quando o enunciador publiciza sua imagem,

garante um suposto ‘poder ver’, pois, na verdade, o enunciatário só poderá

ver o que lhe é ‘dado ver’, ou seja, um Homem Aranha coberto por uma

máscara, reforçando ainda mais o clima de mistério/segredo. Essas

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estratégias, construídas pelo enunciador, vão garantido, antes do término

da vinheta, a curiosidade do enunciatário, a audiência de que o texto

televisivo necessita.

Figura 6: Soco

O take em que Homem Aranha dá “um soco na tela” nos faz lembrar um

debate, ao vivo, em 6/12/2005, das 21h30min às 22h30min, no Canal Futura,

Net 32. Participaram desse evento Pedro Paulo Carneiro (Diretor da TV

Educativa), Solange Jobim (Prof.ª do Depto. de Psicologia da PUC-RIO,) e um

dos maiores críticos da atualidade em relação aos meios de comunicação,

Prof. Valdemar Setzer (IME/USP), segundo o qual somente eliminando da face

da terra os meios eletrônicos/imagéticos a humanidade “avançaria”.

Setzer diz que determinadas estratégias que os produtores de TV usam ─ “um

soco no meio da tela”, uma cena de grande impacto, uma trilha imprevista ─

servem para “acordar” o telespectador, isso porque, de acordo com pesquisas

científicas, divulgadas em seus vários livros e artigos na área de recepção, a

TV, nos primeiros 30 segundos de audiência, leva a um efeito de sonolência,

ou seja, um tipo de hipnose.

Apesar do foco de nossa investigação não contemplar os efeitos psicológicos

causados pela recepção de meios de comunicação, consideramos esse um

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132

assunto pertinente, pois a impressão que dá, quando o enunciador de Homem

Aranha usa esse recurso, é exatamente o de causar impacto. Dando um “soco”

em nós, estaria o enunciador ‘convocando’ o enunciatário para uma maior

interação.

Quanto aos anéis de metal do Homem Aranha, lembramos que os

adolescentes também usam anéis, piercings, brincos e outros adereços de

metal. Assim, instaurando o herói usando os mesmos objetos que o mundo

adolescente usa, o enunciador aproxima os enunciatários, que constatam que

Homem Aranha, além de herói, também inclui-se como um sujeito que se

preocupa com sua aparência, escolhendo para si adereços.

Figura 7: Apresentações

Na seqüência que chamamos de ‘apresentações dos personagens principais’,

o enunciador apresenta Peter Parker, Mary Jane Watson e Harry Housborn.

Verificamos que Peter Parker aparece em primeiro plano e em posição central.

Do seu lado direito Mary Jane, e do esquerdo, Harry Housborn.

A forma com que Peter é apresentando é diferente das apresentações de Mary

Jane e Harry. O enunciador coloca Peter na topologia central da tela, enquanto

Mary Jane e Harry estão, respectivamente, do lado direito e esquerdo.

Somente Peter está com o corpo na posição frontal, enquanto Mary Jane e

Harry estão com os corpos em posição de perfil, reforçando, assim, a

bilateralidade das relações. Somente Peter olha diretamente para o

enunciatário, pois Mary Jane e Harry olham para fora da tela, para o lado.

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Figura 8: Peter levantando a cabeça

É interessante como esse tipo de apresentação/aproximação com o

enunciatário é sutil. Com um simples levantar de cabeça e olhar frontal para a

câmera, como se estivesse interpelando o enunciatário, o enunciador causa o

efeito de sentido de desvelamento, logo, de aproximação.

Se formos comparar com o desenho Três Espiãs Demais, que usa o recurso da

linguagem verbal oral ─ “Estamos prontas pra qualquer missão enfrentar” ─,

em Homem Aranha nenhuma palavra é dita; simplesmente, o recurso de

câmera em ‘close’, fechado no rosto de Peter Parker, olhando frontalmente

para nós, dá o efeito de sentido de aproximação.

Dessa forma, inserindo Peter na topologia central, posicionando seu corpo no

sentido frontal e permitindo que só ele olhe diretamente na direção do olhar do

enunciatário, o enunciador vai, aos poucos, desfazendo o clima de mistério dos

jogos de olhares da primeira seqüência.

No último fotograma da figura 9, temos a concretização da identidade daquele

olhar misterioso que foi figurativizado em toda a primeira seqüência. O olhar

tem identidade ─ chama-se Peter Parker.

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134

Figura 9: Homem Aranha tirando a máscara

Na quarta seqüência, temos a revelação da identidade do Homem Aranha. À

medida que vai tirando sua máscara, percebemos tratar-se daquele mesmo

olhar do homem misterioso da primeira seqüência, que não se deixava captar

totalmente em conjunto com a face, que travava um embate com o olhar do

Homem Aranha e que se revelou como Peter Parker na segunda seqüência.

Agora, é o Homem Aranha que se revela para nós: sua identidade é Peter

Parker.

Mas Peter Parker, que agora sabemos ser o Homem Aranha, olha para a

direita, numa diagonalidade que vai de baixo para o alto. Seu olhar tem

expressão de espanto, parece temer algo, estar com medo do futuro ou daquilo

para que olha; parece estar atônito, triste, inquieto, preocupado.

Figura 10: Homem Aranha apontando

Percebemos, então, que na mesma direção do olhar de Peter, numa

diagonalidade que vai do alto direito da tela para o lado inferior e esquerdo,

aparece a imagem do Homem Aranha. Curiosamente, é a mesma imagem da

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135

seqüência de abertura. Só que agora está de frente, apontando para Peter,

como se estivesse dizendo: “o Homem Aranha é você Peter Parker: você foi o

escolhido”.

Figura 11: Expressão rosto Peter

As diferenças na expressão do rosto e na topologia dos corpos deixam claro a

dominância do personagem Homem Aranha sobre o personagem Peter Parker.

O efeito de sentido dessa cena é muito forte; parece ser a primeira vez que

Peter Parker fica frente a frente com o Homem Aranha, como se estivesse

olhando para o próprio espelho.

Relacionando essas informações, temos:

• Duas imagens/duas figuras (imagem de Peter Parker e imagem do

Homem Aranha);

• Dois personagens (personagem Peter Parker e personagem Homem

Aranha);

• Dois nomes, duas identificações (Peter Parker e Homem Aranha).

Em Presenças do Outro (2002), Landowski, faz um ensaio sobre os “regimes

de presença e formas de popularidade” dos políticos. Vai falar dos espaços

cênicos da sociedade, como por exemplo o teatro, da relação da teatralização

e significação, e, o que para nós parece mais frutífero em sua análise – pela

relação que desejamos fazer com o desenho Homem Aranha – a dupla

representação do ator, a máscara e a persona.

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Landowski vai dizer que os atores de teatro por meio das personagens que

interpretam e das máscaras que tomam emprestado, esses atores ganham um

primeiro grau de visibilidade. Mas, mesmo após o fim do espetáculo, continuam

a representar, pois,

Retirado em seu camarote, tratar-se-á primeiramente, para agradar mais a alguns admiradores privilegiados, de se mostrar um pouco mais de perto, sem maquiagem e como que sem véus; mas desde que a mídia o permita, nosso comediante tampouco deverá hesitar em expor a verdade de seu ser diante dos microfones e das câmeras, isto é, aos olhares de todos. São outras tantas ocasiões bem-vindas para a encenação de sua própria intimidade. (LANDOWSKI,2002,p.189)

Assim, os modos de presença dos políticos, dos jornalistas, e de qualquer

outra profissão do “espetáculo”, pressupõe uma abertura de si para o outro

supostamente curioso em conhecer mais sobre sua vida particular. O êxito dos

famosos, é medido de certo modo pelo grau de reconhecimento público que a

mídia atribui à sua performance. Como lembra Landowski, “ser popular é ser

conhecido e amado pelo povo, pelo maior número de pessoas” (2002,p.190).

Assim, acontece com o personagem Homem Aranha, ele é um herói popular,

precisa de notoriedade, é conhecido e amado não pelo o que é (até porque

ninguém no desenho, a não ser Peter e nós enunciatários) conhecemos a

identidade sob a máscara do Homem Aranha. Homem Aranha para ser notado,

para mostrar seu desempenho, sua performance precisa de um espaço

“institucional e cênico” para atualizá-las. Surge então a metrópole, a cidade. Se

o teatro é o palco do artista, se o palanque é o palco do político, a metrópole é

o palco de Homem Aranha.

[...] espectadores sentados em algum lugar na sala e olhando o que diante de nós se representa de nós mesmos, estamos então presentes também em cena, pelo menos desde o momento em que começamos a nos identificar com os atores que vemos atuar ali (LANDOWSKI,2002,p.187).

O enunciatário de Homem Aranha, vai sendo construído para cobrar

desempenho do herói, não importa quem ele é. Assim como os eleitores

cobram do político que ela aja, faça, dê retorno, os enunciatários desse

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137

desenho querem ver toda a explosão da pragmática do herói, dele não se

espera outra coisa. Para o enunciatário de Homem Aranha, “dizer é fazer”.

Então, se o enunciador oferece ao enunciatário um herói da cidade, aqui e

agora, para o mesmo se identificar, estariam faltando outras construções de

sujeitos, espaços e tempos nesse desenho?

Ao que tudo indica, parece que sim, pois, segundo Landowski, mesmo a vedete

do cinema, mesmo a estrela mais famosa, tem direito a uma pequena parte de

privacidade. É aí que entra em cena, outro artista, Peter Parker. O enunciador,

ao instalar Peter Parker, rapaz comum, sempre reservado, em espaços

privados, instala também o outro lado do enunciatário. Aquele lado que precisa

preservar sua intimidade, o lado da pessoa comum, que vive seu cotidiano,

assim como nós. O enunciador então, instala alguns desejos dos enunciatários:

O desejo de ser “herói” e de ser “pessoa comum”;

O desejo de “ser outro” e de “ser você mesmo”;

O desejo da “identidade” e da “alteridade”;

A possibilidade de “se mostrar” e de “se esconder”.

Com esses recursos e estratégias, o enunciador vai concretizando, as diversas

modalidades do ser dos sujeitos. O desenho Homem Aranha vai construindo

assim a própria transitoriedade da vida, comum a todos nós, porém mais

intensa na fase da juventude.

d) Movimento Imaginal

Em Homem Aranha toda a narrativa imagética está atrelada aos takes muito

rápidos, fragmentados, em rápidas fusões, totalmente ritmado e em sincronia

com a música que também é bem dinâmica. O enunciatário que vai sendo

construído no desenho deve ter capacidade para perceber, rapidamente, as

transformações propostas pelas cenas. É pelo movimento imaginal que um dos

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principais jogos de aparência acontece em Homem Aranha, com a inserção de

19 fotogramas. Com a rapidez do movimento e das trocas dos takes, detalhes

importantes, entre um take e outro, são quase imperceptíveis. A plástica do

movimento rápido, com imagens fragmentadas e sobrepostas, vai se tornando

a nova sintaxe da “televisão pós-moderna” feita sob medida, também, para

jovens pós-modernos.

4.2.2.5 Relação Texto-Contexto

Na tentativa de levar o Cinema para dentro das casas das pessoas e atender à

ânsia dos telespectadores por novidade, os empresários de televisão contam,

atualmente, com a ajuda da computação gráfica. A própria série animada para

a televisão, do desenho Homem Aranha, faz parte dessa ânsia por formatos e

plásticas diferentes. Essa tentativa, no entanto, não é privilégio somente dos

desenhos animados. Os programas jornalísticos utilizam-se desses recursos,

quando contam com a ajuda de infográficos e animação, para simular uma

situação que não pode ser filmada ou que necessita de um maior entendimento

por parte do telespectador. É só lembrar da reconstituição de um crime na TV,

por exemplo. A simulação animada tenta reconstituir o ato do crime, como se

estivéssemos lá, presentes; uma espécie de injeção de adrenalina. Ora, qual o

sentido de reproduzir, realisticamente, um crime, numa reportagem? Não

bastaria a notícia de que houve um crime?

Assim, os novos telespectadores estão sendo acostumados e construídos para

exigir essas emoções. Com animação nas reportagens, conseguimos

acompanhar até as incursões da NASA na exploração do espaço sideral. No

Brasil, por exemplo, assistir ao futebol sem o ‘tira-teima’ (no momento, um

recurso que tem sido visto apenas nas transmissões da Rede Globo de

Televisão), sem as sofisticadas simulações, provoca uma sensação de

incompletude, um vácuo de informação.

Do mesmo jeito que alguns questionam se é melhor assistir a um filme no

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cinema ou em casa, podemos questionar igualmente que, com as telas cada

vez maiores, as pessoas preferem ver futebol em casa, com amigos, a lotar os

estádios de futebol. Assistir ao futebol em casa significa movimentar, além da

indústria televisiva, outras indústrias como a de bebidas e alimentos, não por

acaso, os principais anunciantes de programas esportivos.

Depois de conquistar o apelido de “retrato fiel da vida”, de ter conquistado e

solucionado entraves tecnológicos, de ter conquistado os maiores criadores de

enredos do país, de ter conseguido os principais artistas, de produzir cenários

impecáveis, a televisão clama, agora, por aquilo que sua estrutura técnica não

permite tal como a vida real o faz: a interação direta!

Conseguir, pois, a interação, é o novo desafio da televisão. Enquanto isso não

é resolvido, a TV vai criando, plasticamente, tão-somente, efeitos de sentido.

Falar da relação texto-contexto em televisão, pressupõe também entender os

mecanismos de produção, divulgação, transmissão e recepção dos conteúdos

televisivos. Para a semiótica, analisar as relações entre os textos da mídia e a

sociedade em que vivemos, é analisar, da mesma forma, as intertextualidades,

interdiscursividades, as quais, como as escolhas de um enunciador, servem a

uma determinada ideologia. Segundo Fiorin (2003,p.51), “[...] a

intertextualidade é o processo de incorporação de um texto em outro, seja para

reproduzir o sentido incorporado, seja para transformá-lo [...]”. Já a

interdiscursividade é “[...] o processo em que se incorporam percursos

temáticos e/ou percursos figurativos, temas e/ou figuras de um discurso em

outro [...]”. Numa obra de arte, por exemplo, quando o pintor insere em seu

quadro formas geométricas, representadas predominantemente por cubos e

cilindros, faz, de certa forma, uma intertextualidade com os quadros de Pablo

Picasso, mas não necessariamente com o discurso dos quadros de Picasso. Já

em outro exemplo, quando um pintor apresenta corpos de homens e mulheres

caídos, uma cidade destruída, vestígios de armas e animais por meio de uma

técnica bem icônica, não está fazendo intertextualidade com a obra de Picasso,

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mas interdiscurso com “Guernica”, seu quadro mais famoso.

Assim, fazer a relação do texto Homem Aranha com o contexto cultural e

ideológico da sociedade atual é lembrar, antes de tudo, que estes fatores foram

identificados por nós dentro do próprio texto. Percebemos que o enunciador de

Homem Aranha instala jovens com corpos esbeltos, magros, altos, bem

sucedidos, envolvidos com aventuras, riscos, perigo e que vivem,

intensamente, o tempo presente, as emoções que a música e a noite podem

proporcionar.

Na vida extralingüística, não generalizando, e cientes de que o desenho

animado constrói um mundo de estereótipos, as pesquisas35 sobre juventude

apontam também para esse “modo de ser e estar no mundo” do jovem. O

jovem que se mostra no desenho não tem família, não está em casa, é auto-

suficiente, mas, curiosamente, não está na escola.

O Homem Aranha é um herói parecido com os jovens da vida real. É da cidade,

pula de um lado para outro, aterrissa sobre automóveis. Como os jovens

atuais, está sempre em movimento, não sabe ao certo nem de onde vem, nem

para onde vai. Os jovens também demonstram pouco apego ao passado,

vivem intensamente o presente e têm uma certa desesperança pelo futuro.

Para mostrar suas habilidades, o Homem Aranha precisa que a metrópole

exista, pois ela é suporte para o desempenho de suas performances. Assim

como Homem Aranha, a juventude também trava um embate com as

demandas da cidade contemporânea: precisa mostrar sua auto-suficiência,

enfrentar os desafios do primeiro emprego, do mercado de trabalho.

Os principais personagens do desenho, Peter Parker e Homem Aranha, por

vezes, querem ser notados, por outras, se escondem, imprimem os jogos da

aparência do ser versus parecer. A juventude atual também vive a opressão de

35 Banco de Dados, artigos Ong Midiativa.

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uma cultura em que a aparência é cada vez mais cultuada ─ o culto ao corpo, a

busca pela perfeição. Nesse jogo das aparências, com as demandas

promovidas pela vida cotidiana, assim como Homem Aranha, o jovem

transfigura seu corpo, seu cabelo, suas vestes. A cidade de ritmo frenético não

pode parar, nem mesmo para pensar. A cidade do tudo-ao-mesmo-tempo-,

agora também abriga aquilo que pretensamente credencia a TV de ser

chamada retrato da vida real: a simultaneidade do som com imagem em

movimento.

O apego à imagem do super-herói vai sendo estimulado pela TV aberta e por

assinatura, pelas revistas em quadrinho, cinema e internet. Para suprir o êxtase

que a imagem do herói provoca, a loja passa a ser a extensão da mídia. Na

loja, os espectadores mirins podem levar, concretamente, para casa, os

produtos tangíveis que a intangível e efêmera imagem televisiva de Homem

Aranha suscita.

A plasticidade da TV passa a ser a plasticidade das relações: efêmera,

superficial, não se deixa captar. As relações vão sendo tecidas, e a presença

física do outro, pouco a pouco, vai sendo dispensada. O “outro”, no planeta

mídia, vai se tornando tão somente uma imagem.

4.3 ANÁLISE DO DESENHO SHAMAN KING

4.3.1 O PROGRAMA E OS PERSONAGENS

Lançado em 1998, no Japão, Shaman King saiu, inicialmente, nas páginas da

revista Shonen Jump, berço dos principais sucessos de HQs nipônicas.

Shaman King foi um sucesso também nas telas. Em 2001, saiu a versão em

anime. Embora tenha várias diferenças em relação ao mangá, o desenho

animado se tornou um dos campeões de audiência. Neste ano (2006), ao

alcançar a marca de 64 episódios, o anime foi encerrado no Japão. No Brasil,

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ele passa na Fox Kids, desde 2002, e também nas televisões abertas, como a

Rede Globo (Programa TV Globinho).

Yoh Asakura é um xamã que liga este mundo (material) ao outro (mundo

espiritual). Yoh é um jovem aparentemente desligado da vida, mas que, na

verdade, possui poderes inimagináveis: ele vê e conversa com espíritos. Yoh

pode incorporar espíritos e usar as habilidades especiais de cada um deles.

Isso tudo por que ele é um xamã, ou seja, uma pessoa que tem o poder de

conectar o Mundo dos Vivos (Mundo Material) ao Mundo Espiritual. Os grandes

companheiros de Yoh nessa empreitada são: Manta Oyamada, Amidamaru e

Anna Kyoyama.

Figura 1: Yoh, Manta, Anna e Amidamaru

4.3.2 ANÁLISE DA VINHETA DO DESENHO

4.3.2.1 A descrição das cenas da vinheta de abertura do programa

Como a vinheta de abertura desse desenho tem aproximadamente 90

segundos, para facilitar a identificação das partes descritas vamos atribuir uma

numeração às seqüências e suas respectivas descrições. Identificamos 29

seqüências de imagens.

QUADRO 1: DESCRIÇÃO DAS SEQÜÊNCIAS

SEQ. DESCRIÇÃO

SEQ.1 A vinheta inicia-se com a imagem de uma bola de luz que se aproxima da tela e

se transforma na imagem de um pássaro que sobrevoa o ambiente que se

mostra: terra, mar, céu. Numa tomada panorâmica, à esquerda da tela, mostra-

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se montanhas de cores predominantemente marrons e pequenas áreas verdes.

À direita da tela, a imagem de um lago/mar azul, e, da metade da tela para o

alto, mostra-se o céu azul. Sob o fundo desse céu azul, aparece o lettering com

o nome do desenho: Shaman King – as letras são de cor vermelha com

contorno amarelo. Esse contorno tem formato pontiagudo, triangularizado

(formato da letra “V”).

SEQ.2 Do lado direito da tela, aparece a imagem do herói principal, Yoh Asakura,

encostado numa árvore. Está de braços abertos e olhando para frente.

Simultaneamente à sua imagem, aparece, também, a imagem de uma cidade

com prédios. É dia. Yoh Asakura está vestido com uma espécie de quimono

branco, calça comprida e camisa também de manga comprida, aberta, e o peito

à mostra.

SEQ.3 Do lado esquerdo da tela, numa tomada quase idêntica à da SEQ.2, aparece o

também herói Amidamaru. Ele, da mesma forma, está encostado numa árvore, de

cabeça baixa e olhos fechados. Parece entardecer, com o pôr-do-sol (cores amarelo e

vermelha) na tela.

SEQ.4 Aparece Manta Oyamada, o amiguinho assustado dos heróis. Sua imagem aparece

totalmente aproximada da tela e vai se afastando até mostrá-lo em pequena dimensão,

em seu tamanho normal, no meio da rua, entre várias pessoas/pedestres que passam de

um lado para outro.

SEQ.5 Aparece a noiva de Yoh Asakura, a jovem Anna Kyoyama. Sua primeira imagem

aparece de perfil, olhos fechados. Quando abre os olhos, cai uma lágrima. Para quem

não conhece os personagens, é difícil reconhecer, somente com essa imagem de perfil,

tratar-se de um personagem do gênero sexual feminino. Nem mesmo o colar que usa

serve como identificador de sua feminilidade.

SEQ.6 A bola de fogo aparece de novo no meio da tela, mas, dessa vez, o herói Yoh

está no centro da bola. Abaixado e curvado, levanta-se como se tivesse tirando

algo de dentro do seu corpo/estômago (sincronia com a letra da música: “Tira

do fundo da alma...”).

SEQ.7 Um objeto é lançado ao céu. Parece ser uma bolsa, contendo espadas, e

funde-se com uma imagem que aparece, do suposto vilão/espírito.

SEQ. 8 Aparece Yoh com uma espada. Parece estar lutando. Junto a ele aparece a

imagem do espírito amigo (Amidamaru).

SEQ.9 Aparece um jovem vilão. Yoh e ele lutam.

SEQ.10 Aparece uma bola de fogo.

SEQ.11 Aparece a imagem de espadas que se cruzam na terra e no céu.

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SEQ.12 Aparece a imagem de vilões.

SEQ.13 Aparece a imagem de Yoh e Amidamaru.

SEQ.14 Aparece a imagem da noiva (Anna), e do amiguinho Manta, juntos.

SEQ.15 Nessa seqüência, várias imagens de supostos vilões aparecem. Homens, um

jovem (mas parece mulher) e uma legião de “monstros” de cor vermelha e

preta. Todos lutam pairando no ar, no céu.

SEQ. 16 Aparece a imagem de um suposto vilão com notas de dinheiro nas mãos.

SEQ.17 Aparece imagens de pessoas (não conseguimos identificar se fazem parte do

quadro de heróis ou vilões).

SEQ. 18 Aparece a imagem de Yoh, sozinho na tela, na parte central, de cabeça baixa e

olhos fechados. Suspende a cabeça, abre os olhos e olha frontalmente para a

tela /enunciatários.

SEQ.19 Imagens de supostos vilões e monstros aparecem numa angulosidade que vai

de baixo para cima.

SEQ.20 Imagem de Yoh e jovem vilão (de vermelho).

SEQ.21 Yoh e Amidamaru aparecem. Yoh, de roupa preta, com sua espada à frente, e

Amidamaru, de roupa branca, atrás de Yoh, parecendo protegê-lo.

SEQ.22 Imagens de novos vilões aparecem. Estão sempre no céu, pairando no ar.

Quando esses personagens aparecem, o fundo da tela é trabalhada com a

cromaticidade vermelha. Além dos vilões, uma imagem de bola de fogo (cor

amarela) aparece.

SEQ.23 A imagem de um vilão aparece. Ele está segurando sua espada e faz um

movimento brusco, parecendo cortar algo em meio ao céu. Em meio ao

invisível, que sua espada corta, saem vários monstros (somente suas cabeças,

brancas, fantasmagóricas). Suas imagens (cabeças) vêm caindo em direção ao

chão/terra.

SEQ.24 A imagem do jovem vilão novamente aparece. Parece estar segurando uma

arma, algo parecido com um foguete.

SEQ.25 Yoh aparece com uma espada de madeira.

SEQ.26 A imagem da bola de fogo vem se aproximando da tela e junto com ela um

vilão dá um golpe (parece estar golpeando a própria tela da televisão) e várias

faíscas saem de sua espada.

SEQ.27 Nosso herói, Yoh, aparece e lança uma bola de luz, que vai caindo sobre a

terra. Essa bola vira faíscas no céu. Uma dessas faíscas atinge, em cheio, o

olho/rosto do vilão (que está de vermelho) e parece destruí-lo, pois sua imagem

desintegra-se.

SEQ. 28 Essa mesma bola de luz se transforma no mesmo pássaro da SEQ.1, do início

da vinheta. Essa imagem do pássaro sobrevoa duas vezes o mesmo cenário de

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natureza (montanhas, lago e céu) apresentado na SEQ.1. Depois de tantas

lutas (mostradas das seqüências 2 a 27), o cenário da SEQ.28 volta a ser o

mesmo da SEQ.1, um cenário de paz.

SEQ.29 Por fim, como última seqüência da vinheta de abertura, temos a seqüência que

numeramos como 29.

-Aparecendo à esquerda da tela e migrando para o lado direito, temos a

imagem do jovem vilão. O fundo da tela é de cor amarela.

-Da direita da tela e migrando para o lado esquerdo temos a imagem de Anna.

O fundo de tela é de cor vermelha.

- A imagem de Yoh aparece entre os dois, bem ao centro, enquanto a imagem

de Anna e do jovem vilão viram sombras, respectivamente, vermelhas e

amarelas.

- Numa única inserção, aparece a imagem de todos os outros personagens, a

maioria mostrada nas seqüências anteriores.

- Observamos que, do lado esquerdo de Yoh, temos as imagens dos seus

amigos, com destaque especial para o espírito amigo Amidamaru. Do lado

direito de Yoh, temos as imagens dos vilões, com destaque especial para o

espírito do mal, que protege o jovem vilão.

4.3.2.2 Análise da sintaxe discursiva

Como já explicamos nas análises dos desenhos anteriores, o procedimento de

análise da sintaxe discursiva é a identificação das projeções de pessoa, espaço

e tempo trabalhadas pelo enunciador. Mas para chegar a essas respostas,

numa narrativa visual, precisamos iniciar as análises pela expressividade que

nos é dada, a princípio, pelas figuras. Assim, iniciaremos nossas análises pelas

imagens que nos são dadas, quais sejam, figuras, formas, linhas, cores,

contrastes, ritmos, topologia e também pelos demais elementos expressivos

que compõem o texto televisual: sonoridade, angulosidades, cortes, fusões e

movimentos imaginais.

4.3.2.3 Análise da semântica discursiva

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Analisar a semântica discursiva é identificar os procedimentos de tematização

e figurativização. Como nosso texto é predominantemente figurativo, para

chegarmos aos temas subjacentes começaremos por explorar os formantes

expressivos utilizados pelo enunciador. É sempre bom lembrar que os

elementos expressivos revestem e concretizam os temas, sem, no entanto, por

ser expressão, deixar de fazer parte deles. Os elementos expressivos são, ao

mesmo tempo, plataforma e conteúdo, são faces, porém inseparáveis. Fundam

os temas, ao mesmo tempo em que os expressam.

a) A sonoridade na abertura do programa

O enunciador trabalha a sonoridade da vinheta de abertura com uma música

de aproximadamente 90 segundos. Ao contrário de Três Espiãs Demais, não

são os próprios heróis que cantam a música. As vozes masculina e feminina

que cantam o jingle não são dos personagens figurativizados na trama; a

princípio, vamos chamar, provisoriamente, de “outras vozes”.

Enquanto a música é cantada, temos a inserção de 29 seqüências de imagens.

Já numa primeira análise, ao assistir a vinheta, ouvindo a letra e vendo as

imagens passarem, já constatamos que o enunciador insere as imagens numa

tentativa de coerência entre o que está sendo cantado e mostrado.

Em sincronia com o recurso verbal oral (cantado), aparece, sobre a tela, o

lettering (recurso verbal escrito) da letra da música. Outros letterings, com os

vários nomes dos produtores da vinheta ─ diretor, cenógrafos, trilhas, etc. ─

também aparecem enquanto a vinheta é cantada e mostrada.

Ainda podemos constatar que o enunciador não trabalha sobre a

figurativização dos personagens seus nomes. Em Três Espiãs Demais temos

claramente esse recurso (Sam, Clover, Alex), como também em Homem

Aranha (Peter, Harry e Mary Jane).

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Já em Shaman King, o enunciador não trabalha os nomes com o recurso da

expressão verbal escrita, somente oral. Essa escolha do enunciador sinaliza

um maior interesse em se trabalhar o nome Shaman King de forma escrita e

sonora. Inferimos que, por se tratar de nomes compostos, grandes (Yoh

Asakura, Manta Oyamada, Anna Kyoyama e Amidamaru), de pronunciabilidade

de certa forma estranha à língua portuguesa, o enunciador opta por não

desviar a atenção do enunciatário, garantindo que o mesmo tenha um fácil

entendimento da vinheta de abertura.

Com essas escolhas, percebemos que o enunciador vai trabalhando um perfil

de enunciatário, que precisa de reforço de lettering para acompanhar a letra

cantada da música, ao mesmo tempo em que opta por não cobrar que o

mesmo decore os nomes compostos dos quatro heróis principais. Shaman King

apenas basta, esta é a única exigência do enunciador em relação aos nomes.

A LETRA DA MÚSICA

//Ele vai vencer (vozes masculina e feminina, espécie de coro) A luz nunca se apaga (a partir dessa frase somente voz masculina) Na terra e no céu Uma estrela brilha Em cada um de nós A vida nunca acaba Se o sonho existir Uma estrela morre E outra toma o seu lugar Um herói que crê (a partir dessa frase voz feminina) Na luz do bem Tem o dom, a força E o poder Tira do fundo da alma Essa luz Ele vai vencer A espada e o sonho (as duas vozes cantam com predominância da voz feminina) Vão brilhar A escuridão Vai terminar Os laços de amizade Nunca vão se romper A espada e o sonho

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Vão brilhar A escuridão Vai terminar Um herói vai renascer A espada e o sonho Vão brilhar A escuridão Vai terminar Um herói vai renascer Um herói que crê Na luz do bem Um herói que crê Ele vai vencer //

Como já adiantamos, o enunciador, em sincronia com a letra cantada, insere o

que identificamos como 29 seqüências de imagens. Com esse raciocínio,

vamos isolar os verbos e substantivos principais da letra, e depois, sincronizar,

num quadro extra, as frases da letra, lado a lado, com a seqüência de

imagens. Não pretendemos, com isso, fazer uma amostragem (quantitativa)

dos nomes e verbos, a exemplo do que faz a análise do conteúdo, que define

em percentuais quantas vezes um determinado nome ou verbo aparece dentro

de um texto. Nosso objetivo, com esse procedimento, é facilitar, mais à frente,

o cruzamento e a inter-relação de temas e figuras.

QUADRO 2: FRASES - VERBOS - SUBSTANTIVOS

Frases Verbos Substantivos/

Pronomes Pessoais

Ele vai vencer Vencer Ele

A luz nunca se apaga Apagar Luz

Na terra e no céu ----- Terra e Céu

Uma estrela brilha Brilhar Estrela

Em cada um de nós ----- Nós

A vida nunca acaba Acabar Vida

Se o sonho existir Existir Sonho

Uma estrela morre Morrer Estrela

E outra toma o seu lugar Tomar Outra (estrela) / lugar

Um herói que crê Crer Herói

Na luz do bem ----- Luz/ bem

Tem o dom, a força Ter Dom e força

E o poder ----- Poder

Tira do fundo da alma Tirar Alma

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Essa luz ----- Luz

Ele vai vencer Vai (ir) / Vencer Ele

A espada e o sonho ----- Espada e Sonho

Vão brilhar Vão(ir) / Brilhar -----

A escuridão ----- Escuridão

Vai terminar Vai (ir) / terminar ----

Os laços de amizade ------ Laços e Amizade

Nunca vão se romper Vão (ir)/ Romper -----

A espada e o sonho ------ Espada e Sonho

Vão brilhar Vão(ir) / Brilhar ------

A escuridão ------ Escuridão

Vai terminar Vai (ir) / Terminar ------

Um herói vai renascer Vai (ir) / Renascer Herói

A espada e o sonho ----- Espada e Sonho

Vão brilhar Vão(ir) / Brilhar -----

A escuridão ----- Escuridão

Vai terminar Vai (ir) / Terminar -----

Um herói vai renascer Vai (ir) / Renascer Herói

Um herói que crê Crer Herói

Na luz do bem ----- Luz/ bem

Um herói que crê Crer Herói

Ele vai vencer Vai (ir) / Vencer Ele

O formante ‘sonoridade’ é composto por letra da música (linguagem verbal oral)

instrumental, que é o fundo musical e efeitos sonoros. Em Shaman King, os

três recursos são utilizados. Se compararmos como a voz das personagens

Três Espiãs Demais são trabalhadas, podemos dizer que o enunciador de

Shaman King não quis dar um caráter diferencial às vozes do quarteto de

heróis. A voz da loura Clover é bem distintiva, bem caracterizada. Em Shaman

King, da mesma forma que o enunciador não quis trabalhar o nome de cada

um dos heróis, por serem nomes grandes, compostos, também não quis

colocar os heróis cantando com suas próprias vozes. Ao contrário, “outras

vozes” cantam a música.

[...] narrar em primeira ou terceira pessoa é uma opção feita pelo enunciador, visando a transmitir efeitos de subjetividade ou de objetividade.[...] No primeiro caso, há uma explosão de subjetividade, enquanto, no segundo, constrói-se uma objetividade analítica que recobre a projeção do eu poético. (FIORIN,1997,p.44).

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Mas qual o sentido que vai sendo criado, quando “outros” falam de nós e

cantam nossos valores, nossas crenças? Temos, aqui, a co-presença de um

narrador. Com esse efeito, o enunciador provoca certo distanciamento em

relação ao enunciatário que vai sendo construído dentro do desenho. Sabemos

que distanciamento não é o que os enunciadores de programas desejam.

Existe uma outra intencionalidade por trás desse recurso. Ao inserir outras

vozes que falam sobre os heróis, o enunciador vai construindo um clima de

mistério, do desejo de conferir esses valores com o enunciatário. Ora, “se ele

vai vencer”, se a “espada e o sonho vão brilhar”, e “se um herói vai renascer”,

o enunciatário recebe um chamamento, uma proposta de constatação. Será

mesmo que nosso herói vai vencer? Cabe ao enunciatário conferir!

Em relação às vozes que cantam (masculina e feminina), temos, aqui, uma

instauração de enunciatários tanto masculinos como femininos. Esse recurso

está em sincronia com as figuras masculina e feminina trabalhadas no

desenho.

A melodia é branda, calma, bem espaçada, por isso produz semelhante efeito

de sentido. A exceção aplica-se a um solo de guitarra ─ ‘elétrica’ ─, que entra

após a letra ser toda cantada, para dar base ao refrão que será retomado.

Os verbos são: Vencer/ Apagar/ Brilhar/ Acabar/ Existir/ Morrer/ Tomar/ Crer/

Ter/ Tirar/ Vai Vencer/ Vão Brilhar/ Vai Terminar/ Vai Romper/ Vai Terminar/

Vão Romper/ Vão Brilhar/ Vai Renascer/ Vão Brilhar ─ que remetem a um

futuro a ser conquistado, um estado diferente do atual. Um presente, estado

inicial e um futuro, estado desejado, pretendido. Para sair de um estado e

chegar ao outro e alcançar o objeto-valor, nossos heróis precisam realizar uma

performance, transformação. Se conseguirem, obtêm sanção positiva, caso

contrário, negativa. Um futuro permeado por obstáculos, e que, por isso

mesmo, os heróis precisam superar, passar por desafios, para conquistar a

vitória. Mas o enunciador, a partir do refrão, dá a dica de como “esse algo”

pode ser conquistado:

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// Um herói que crê

Na luz do bem

Tem o dom, a força

E o poder//

E da finalização, última estrofe:

//Um herói que crê

Na luz do bem

Um herói que crê

Ele vai vencer //

Assim, para realizar com sucesso sua performance, nosso herói só precisa

“ACREDITAR”. O enunciatário do desenho Shaman King é chamado a

acreditar na “luz do bem”. Mais à frente, vamos ter oportunidade de mostrar

como o enunciador figurativiza a “luz do bem”.

Quanto aos substantivos e pronomes pessoais, há total predominância de

palavras que remetem a elementos da natureza. Assim, temos: Ele/ Luz/ Terra/

Céu/ Estrela/ Nós/ Vida/ Sonho/ Herói/ Bem/ Dom/ Força/ Poder/ Alma/ Espada

/ Escuridão/ Laços/ Amizade.

Dessa forma, os caminhos expressivos escolhidos pelo enunciador, analisados

a partir da questão da sonoridade, vai conferindo à trama um efeito de sentido

que perpassa por:

• Coerência, uma vez que trabalha as imagens a partir da letra;

• Mistério, pois a letra é cantada por “outras vozes”;

• Equilíbrio, já que, apesar de dinâmica, a melodia não provoca rupturas,

altos e baixos;

• Familiaridade, pois temos as vozes masculina e feminina;

• Positividade, porque os instrumentos remetem a tons eufóricos;

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• Harmonia, pois os efeitos especiais, como uma guitarra ou bateria, não

destoaram do todo da melodia e letra;

• Estado eufórico de ‘esperança’, ao trabalhar com a predominância do verbo

‘crer’;

• Miticismo, a partir de substantivos que conotam a convergência de

elementos do mundo natural e sobrenatural.

b) Figuras/ Formas

Segundo Fayga Ostrower,

[...] em imagens figurativas [...] reconhecemos no ‘como’ das formas o ‘quê’, seu conteúdo expressivo. [...] A forma incorpora o conteúdo de tal modo que se tornam uma só identidade. [...] Não existe conteúdo fora da forma concreta de alguma imagem, pois jamais a forma seria apenas uma espécie de envoltório a cobrir alguma coisa que poderia ser coberta de outra maneira também. Quando se dá outra forma a um conteúdo, modifica-se o conteúdo (2004,p.27).

Preferimos fazer a análise das formas e figuras a partir de um quadro em que

homologamos as figuras sincronizadas com as 29 seqüências descritas das

imagens e com a letra da música.

QUADRO 3: DESCRIÇÃO SEQÜÊNCIAS – LETRA MÚSICA- FIGURAS

SEQ. DESCRIÇÃO LETRA FIGURAS

SEQ.1 A vinheta inicia-se com a imagem de uma

bola de luz que se aproxima da tela e se

transforma na imagem de um pássaro

que sobrevoa o ambiente que se mostra:

terra, mar, céu. Numa tomada

panorâmica, à esquerda da tela,

mostram-se montanhas, de cores

predominantemente marrons e pequenas

áreas verdes. À direita da tela, a imagem

de um lago/mar azul, e da metade da tela

para o alto, mostra-se o céu azul. Sob o

fundo desse céu azul, em primeiríssimo

plano, aparece o lettering com o nome do

Ele vai vencer

Bola de luz

Pássaro

Terra

Mar

Céu

Montanhas

Lago/Mar

Céu

Lettering Shaman

King

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desenho: Shaman King – as letras são

de cor vermelha com contorno amarelo.

SEQ.2 Do lado direito da tela aparece a imagem

do herói principal, Yoh Asakura,

encostado numa árvore. Está de braços

abertos e olhando para frente.

Simultaneamente à sua imagem, aparece

também a imagem de uma cidade com

prédios. É dia. Yoh Asakura está vestido

com uma espécie de quimono branco,

calça comprida e camisa também de

manga comprida, aberta, e o peito à

mostra.

A luz nunca se apaga

Na terra e no céu

Uma estrela brilha

Em cada um de nós

Yoh

Árvore

Cidade

Prédios

SEQ.3 Do lado esquerdo da tela, numa tomada

quase idêntica à da seq.2, aparece o

também herói Amidamaru. Ele também está

encostado numa árvore, de cabeça baixa e

olhos fechados. Parece entardecer, com o pôr-

do-sol (cores amarelo e vermelha) na tela.

A vida nunca acaba

Se o sonho existir

Amidamaru

Árvore

SEQ.4 Aparece Manta Oyamada, o amiguinho

assustado dos heróis. Sua imagem aparece

totalmente aproximada da tela e vai se

afastando até mostrá-lo em dimensão pequena,

em seu tamanho normal, no meio da rua, entre

várias pessoas/pedestres que passam de um

lado para outro.

Uma estrela morre

E outra toma o seu lugar

Manta

Rua

Pessoas

SEQ.5 Aparece a noiva de Yoh Asakura, a jovem

Anna Kyoyama. Sua primeira imagem aparece

de perfil, olhos fechados. Quando abre os

olhos, cai uma lágrima.

Um herói que crê

Na luz do bem

Tem o dom, a força

E o poder

Anna

SEQ.6 A bola de fogo aparece de novo no meio

da tela, mas dessa vez o herói Yoh está

no centro da bola. Abaixado e curvado,

levanta-se como se tivesse tirando algo

de dentro do seu corpo. Aparece a

Tira do fundo da alma

Essa luz

Ele vai vencer

Bola de Fogo

Yoh

Amidamaru

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imagem de Amidamaru por trás do jovem

Yoh, como se o estivesse protegendo.

Aparece a face de Yoh, gritando, e seu

corpo inteiro, de peito e braços abertos.

SEQ.7 Um objeto é lançado ao céu. Parece ser

uma bolsa contendo espadas e funde-se

com uma imagem que aparece do

suposto vilão/espírito.

A espada e o sonho

Vão brilhar

Bolsa

Espadas

Vilão

SEQ. 8 Aparece Yoh com uma espada. Parece

estar lutando. Junto a ele aparece a

imagem do espírito amigo (Amidamaru).

continua Yoh

Amidamaru

Espada

SEQ.9 Aparece um jovem vilão. Yoh e ele lutam. A escuridão

Vai terminar

Vilão

Yoh

SEQ.10 Aparece uma bola de fogo. continua

Bola de Fogo

SEQ.11 Aparece a imagem de espadas que se

cruzam na terra e no céu.

continua Espadas

Terra

Céu

SEQ.12 Aparece a imagem de vilões Os laços de amizade

Nunca vão se romper

Vilões

SEQ.13 Aparece a imagem de Yoh e Amidamaru. continua Yoh

Amidamaru

SEQ.14 Aparece a imagem da noiva (Anna) e do

amiguinho Manta, juntos.

continua Anna

Manta

SEQ.15 Nessa seqüência várias imagens de

supostos vilões aparecem. Homens, o

jovem Hao e uma legião de “monstros” de

cor vermelha e preta. Todos lutam

pairando no ar, no céu.

A espada e o sonho

Vão brilhar

A escuridão

Vai terminar

Vilões

Homens

Mulher

Monstros

Ar

Céu

SEQ.16 Aparece a imagem de um suposto vilão

com notas de dinheiro nas mãos.

Um herói vai renascer

Vilão

Notas de dinheiro

SEQ.17 Aparece imagens de pessoas (não

conseguimos identificar se fazem parte

do quadro de heróis ou vilões).

continua Pessoas

SEQ. Aparece a imagem de Yoh, sozinho, na continua Yoh

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18 tela, na parte central, sua está de cabeça

baixa e olhos fechados. Suspende a

cabeça, abre os olhos e olha frontalmente

para a tela /enunciatários.

SEQ.19 Imagens de supostos vilões e monstros

aparecem numa angulosidade que vai de

baixo para cima.

A espada e o sonho

Vão brilhar

Vilões

Monstros

SEQ.20 Imagem de Yoh e jovem vilão (de

vermelho)

A escuridão

Vai terminar

Yoh

Vilão

SEQ.21 Yoh e Amidamaru aparecem. Yoh, de

roupa preta e com sua espada à frente, e

Amidamaru, de roupa branca, atrás de

Yoh, parecendo protegê-lo.

Um herói vai renascer

Ele vai para a guerra, de cor

preta, mas protegido pela paz do

espírito, de branco, Amidamaru.

Yoh

Amidamaru

SEQ.22 Imagens de novos vilões aparecem.

Estão sempre no céu, pairando. Quando

esses personagens aparecem, o fundo da

tela é trabalhada com a cromaticidade

vermelha. Além dos vilões, uma imagem

de bola de fogo (cor amarela) aparece.

continua Vilões

Céu

Bola de Fogo

amarela

SEQ.23 A imagem de um vilão aparece. Ele está

segurando sua espada e faz uma

movimento brusco parecendo cortar algo

em meio ao céu. Em meio ao invisível

que sua espada corta, saem vários

monstros (somente suas cabeças,

brancas, fantasmagóricas). Suas imagens

(cabeças) vem caindo em direção ao

chão/terra.

Um herói que crê

Na luz do bem

Vilão

Espada

Monstros

Cabeças

SEQ.24 A imagem do jovem vilão novamente

aparece. Parece estar segurando uma

arma, algo parecido com um foguete.

continua Vilão

Arma/foguete

SEQ.25 Yoh aparece com uma espada de

madeira.

Um herói que crê

Ele vai vencer

Yoh

Espada de

madeira

SEQ.26 A imagem da bola de fogo vem se

aproximando da tela e junto com ela um

vilão dá um golpe (parece estar

continua Bola de Fogo

Vilão

Faíscas

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golpeando a própria tela da televisão) e

várias faíscas saem se sua espada.

Espada

SEQ.27 Nosso herói Yoh aparece e lança uma

bola de luz que vai caindo sobre a terra.

Essa bola vira faíscas no céu. Uma

dessas faíscas atinge em cheio o

olho/rosto do vilão (que está de vermelho)

e parece destruí-lo pois sua imagem

desintegra-se.

Continua

Yoh

Bola de Luz

Terra

Faíscas

Céu

Olho

Rosto

Vilão

SEQ.28 Essa mesma bola de luz se transforma no

mesmo pássaro da seq.1, do início da

vinheta. Essa imagem do pássaro

sobrevôa duas vezes o mesmo cenário

de natureza (montanhas, lago e céu)

apresentado na seq.1.

Sem letra, só instrumental. Bola de Luz

Pássaro

Montanhas

Lago/Mar

Céu

SEQ.29 Por fim, como última seqüência da

vinheta de abertura, temos a seqüência

que numeramos como 29.

-Aparecendo à esquerda da tela e

migrando para o lado direito, temos a

imagem do jovem vilão. O fundo de tela é

de cor amarela.

-Da direita da tela e migrando para o lado

esquerdo temos a imagem de Anna. O

fundo de tela é de cor vermelha.

- A imagem de Yoh, aparece entre os

dois, bem ao centro, enquanto a imagem

de Anna e do jovem vilão viram sombras,

respectivamente, vermelha e amarela).

- Numa única inserção, aparece a

imagem de todos os outros personagens,

a maioria mostrada nas seqüências

anteriores.

- Observamos que do lado esquerdo de

Yoh, temos as imagens dos seus amigos,

com destaque especial para o espírito

amigo Amidamaru. Do lado direito de

Sem letra, só instrumental. Jovem Vilão

Anna

Yoh

Demais

personagens

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Yoh, temos as imagens dos vilões com

destaque especial para o espírito do mal

que protege o jovem vilão.

Isolando somente as figuras de cada seqüência, temos o seguinte quadro, que

sugerimos ler horizontalmente, da esquerda para direita.

QUADRO 4: FIGURAS

1. Bola de luz 2. Pássaro 3. Terra 4. Mar

5. Céu 6. Montanhas 7. Lago/Mar 8. Céu

9. Shamon King 10. Yoh 11. Árvore 12. Cidade

13. Prédios 14. Amidamaru 15. Árvore 16. Manta

17. Rua 18. Pessoas 19. Anna 20. Bola de Fogo

21. Yoh 22. Amidamaru 23. Bolsa Espadas 24. Vilão

25. Yoh 26. Amidamaru 27. Espada 28. Vilão

29. Yoh 30. Bola de Fogo 31. Espadas 32. Terra

33. Céu 34. Vilões 35. Amidamaru 36. Amidamaru

37. Anna 38. Manta 39. Vilões 40. Homens

41. Mulher 42. Monstros 43. Ar 44. Céu

45. Vilão 46. Notas dinheiro 47. Pessoas 48. Yoh

49. Vilões 50. Monstros 51. Yoh 52. Vilão

53. Yoh 54. Amidamaru 55. Vilões 56. Céu

57. Bola de Fogo

amarela

58. Vilão 59. Espada 60. Monstros

61. Cabeças

monstros

62. Vilão 63. Arma/foguete 64. Yoh

65. Espada de

madeira

66. Bola de Fogo 67. Vilão 68. Faíscas

69. Espada 70. Yoh 71. Bola de Luz 72. Terra

73. Faíscas 74. Céu 75. Olho 76. Rosto

77. Vilão 78. Bola de Luz 79. Pássaro 80. Montanhas

81. Lago/Mar 82. Céu 83. Jovem Vilão 84. Anna

85. Yoh 86. Demais Pers. 87. 88.

A partir desse quadro, podemos dizer que o enunciador trabalha com as figuras

clássicas de um desenho animado: heróis/mocinhos, vilões/bandidos, suas

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armas, seus objetos de valor, seus espaços e tempos.

Quanto às projeções de pessoas, no processo que a semiótica discursiva

chama de actorialização, temos, figurativizadas como heróis, as figuras

masculinas Yoh, Amidamaru e o pequenino Manta. A heroína feminina é Anna.

As demais projeções de pessoas são vilões figurativizados em figuras também

masculinas e femininas. Figuras do mundo extranatural também são

actorializados como monstros e fantasmas, perfazendo a legião do mal,

enquanto um pássaro branco representa a legião do bem.

As armas usadas por heróis e vilões são predominantemente figurativizadas

por espadas. Outros elementos do mundo extranatural funcionam também

como armas: faíscas, bolas de fogo ou bolas de luz.

Os espaços projetados pelo enunciador são predominantemente figurativizados

por céu, terra, árvores, lago/mar, espaços esses, tidos como de um mundo

natural. Ao projetar figuras surgindo no céu, pairando, além de monstros,

fantasmas, faíscas, bolas de fogo ou luz, temos a instauração de um espaço

considerado como extranatural.

A questão do tempo, na trama, está diretamente sincronizada com figuras e

espaços. Temos, assim, um tempo considerado natural, e outro, considerado

mítico, sobrenatural.

Sincronizando as figuras das pessoas, espaços e tempos com a análise que

fizemos do item “sonoridade”, podemos dizer que o enunciador escolhe figuras

que possam presentificar a letra cantada. Ambos os recursos de expressão,

sonoridade e figuras nos remetem aos mesmos temas: heróis, vilões, armas,

objeto-valor, mundo natural e sobrenatural.

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Figura 2: Transformações

Na SEQ.1, de abertura, temos, a partir das imagens em movimento, a

figurativização do tema ‘transformações’: a figura de ‘uma bola de luz’ que se

transforma na figura de “um pássaro”.

Figura 3: Yoh de braços abertos

Na SEQ.2, quando Yoh está de braços abertos, peito à mostra e olhando para

frente, parece estar aberto ao que o futuro tem a lhe oferecer, está aberto a

mudanças de estado, transformações. Uma transformação que parece vir de

outro lugar.

Figura 4: Amidamaru

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Realmente, a transformação vem de outro lugar, aqui reiterando, mas de outro

lugar da tela, como mostra a SEQ.3. Com as mesmas características da

SEQ.2, o enunciador muda as disposições topológicas dos actantes. Enquanto

na SEQ.2 Yoh está à direita da tela, na SEQ.3 Amidamaru está à esquerda.

Enquanto Yoh está de olhos, peito e braços abertos, Amidamaru está curvado

e de olhos fechados. Olhos abertos, mundo natural. Olhos fechados, um

mundo de onde vela Amidamaru. Dois mundos, dois lugares, dois espaços e

tempos diferentes: mundo natural versus mundo sobrenatural.

Essas três primeiras seqüências que acabamos de analisar, são mostradas em

conjunto com a letra da música que enuncia “que a vida nunca acaba”; “uma

estrela brilha em cada um de nós”; e, “uma estrela morre e outra toma seu

lugar”. Ou seja, transformações, renovações, renascimento. Passagens de um

estado a outro.

Figura 5: Anna

Na SEQ.5, temos a cena em que aparece a figura de Anna. Para quem não

conhece os personagens, é difícil reconhecer somente com essa imagem de

perfil tratar-se de um personagem com gênero sexual feminino. Nem mesmo o

colar que usa serve como identificador de sua feminilidade.

Os desenhos de plástica japonesa trabalham a figuratividade de gêneros

masculino-feminino quase indistintamente, as imagens são muito parecidas.

Uma espécie de migração da imagem “rude” do imaginário de herói-masculino

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da plástica americana migra para uma imagem “mais delicada” do homem

japonês. Assim, numa plástica em que as imagens corporais e faciais mais se

parecem do que divergem, temos quase uma androgenia.

A curiosidade dessa cena, como mostra a figura 5, é que o enunciador do

desenho Shaman King precisa inserir, sobreposta à imagem de perfil da

personagem Anna Kyoyama, outra imagem dela, à direita e na parte superior

da tela, de corpo inteiro, de frente, usando um vestido e um véu na cabeça. Só

assim temos certeza que se trata de figura feminina.

Figura 6: Androgenia

Figura 7: Yoh gritando

Na SEQ.6, ao aparecer a face de Yoh, gritando, e seu corpo inteiro, de peito e

braços abertos, curvado como se tentasse tirar algo de dentro do corpo,

consideramos figurativizada o trecho da letra “tira do fundo da alma” . Assim,

‘esse algo’, tirado do fundo da alma, é Amidamaru, pois sua imagem aparece

por trás do jovem Yoh como se o estivesse protegendo.

Nessa foto, podemos observar melhor o

comentário que fizemos sobre a androgenia

dos personagens.

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Figura 8: Espada e cabelo pontiagudo

Na SEQ.8, notamos que o cabelo, branco e pontiagudo, de Amidamaru é

quase idêntico à espada que Yoh segura.

Na SEQ.11, ao aparecer a imagem de espadas que se cruzam na terra e no

céu, o enunciador deixa claro que a luta acontece nos espaços naturais e

sobrenaturais. E, mesmo quando acaba em um espaço, continua em outro. Na

terra, lutam Yoh e um jovem vilão Hao, seu irmão gêmeo. No céu, lutam o

espírito Amidamaru, que protege Yoh, e um outro espírito ─ o espírito de fogo

─ que protege o jovem vilão. Dois mundos, duas lutas.

Figura 9:Yoh levantando a cabeça

Na SEQ.18, temos certeza de que o enunciador acaba de apresentar o

principal herói, pois aparece a imagem de Yoh, sozinho, na tela, na parte

central. Está de cabeça baixa e olhos fechados. Suspende a cabeça, abre os

olhos e olha frontalmente para a tela/enunciatários. Lembramos, aqui, que esse

recurso de apresentação também foi utilizado de forma idêntica pelo

enunciador de Homem Aranha. De certa forma também, foi utilizado pelo

enunciador de Três Espiãs Demais, quando as meninas param, fazem pose e

olham para os enunciatários. Acreditamos que esse recurso é facilitado por

uma das características do texto audiovisual: o movimento. Ao mostrar algo

que, a princípio, está oculto, com um simples movimento de cabeça e olhos,

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temos a migração do oculto para o revelado, segredo versus desvendamento.

A SEQ. 27, novamente, nos remete ao tema transformações, quando o

enunciador figurativiza nosso herói Yoh lançando uma bola de luz que se

transforma em faíscas no céu. Uma dessas faíscas atinge, em cheio, o

olho/rosto do vilão, e sua imagem desintegra-se. Novamente, transformações.

Figura 10: cenário de paz e tranqüilidade

Na SEQ.28, a bola de luz transforma-se no mesmo pássaro da SEQ.1, do início

da vinheta. Assim, o enunciador, depois de tantas lutas (mostradas das

seqüências 2 a 27), retoma o mesmo cenário mostrado na abertura, da SEQ.1,

um cenário de paz. Espaços de paz e tranqüilidade são afetados por vilões. Os

heróis precisam superar os obstáculos, vencer os desafios para alcançar o

objeto-valor: recuperar um cenário de paz e tranqüilidade. Assim, mais uma

vez, relembramos a performance que conferiu ao nosso herói a sanção positiva

do cenário de paz figurativizado na SEQ.28, reforçadas pela música no refrão e

última estrofe: “// Um herói que crê, na luz do bem, tem o dom, a força e o

poder// Um herói que crê, na luz do bem, um herói que crê, ele vai vencer”.

Os heróis da plástica japonesa contam mais com a ajuda de pessoas e objetos

do mundo sobrenatural do que do mundo natural. Quem os protege e os

ameaçam estão fora deste mundo. Mas espíritos e monstros podem ser

combatidos com uma arma diferente: “A Crença na luz do Bem”. As armas não

são nada, se não houver a crença. Mas, como o enunciador dá conta de

figurativizar a “crença” dos heróis?

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164

Ao figurativizar as várias cenas de lutas travadas com monstros e espíritos, o

enunciador coloca o herói numa postura de coragem. Um herói que acredita na

força do amigo, espírito de ‘outro mundo’, que tem ajuda de uma espada e de

uma bola de luz. Mas um herói que sobretudo “acredita”. Mas, e se a crença

necessitasse de uma comprovação? O enunciador constrói dentro do texto um

enunciatário que precisa de provas para continuar acreditando, ou seja, o

enunciatário precisa saber que as sanções positivas aconteceram, que as

performances foram bem sucedidas.

Assim, o enunciador de Shaman King fecha a última cena, na SEQ.28, com a

comprovação, com a prova de que vale a pena “acreditar”: o enunciador fecha

a vinheta mostrando o mesmo cenário de paz da SEQ.1. Ou seja, tudo ficou no

mesmo lugar, tudo está do mesmo jeito. Para fazer jus ao contrato de crença

por parte do enunciatário, o enunciador mostra, a partir do cenário da SEQ.28,

a comprovação de que o herói venceu; logo, podemos continuar acreditando.

Por fim, na última seqüência, a que demos o número 29, acreditamos que sua

análise será mais rica a partir do formante expressivo ‘cores’, que faremos mais

à frente. Por enquanto, no que concerne ao formante figura, ao dispor à

esquerda da tela e migrando para o lado direito a imagem do jovem vilão; da

direita da tela e migrando para o lado esquerdo a imagem de Anna; e, ao

centralizar a imagem de Yoh entre os dois, o enunciador pretende deixar bem

delimitado dois espaços e mundos bem diferentes: o bem e o mal.

E, quando numa única inserção, aparece a imagem de todos os outros

personagens, observamos que, do lado direito de Yoh (do ponto de vista dele),

temos as imagens dos seus amigos, com destaque especial para o espírito

amigo Amidamaru. Do lado esquerdo de Yoh, temos as imagens dos vilões,

com destaque especial para o espírito do mal que protege o jovem vilão. Logo,

o enunciador ao investir nessas disposições espaciais, com as figuras aqui

descritas, apresenta uma leitura de que os dois jovens (bem e mal) lutam no

espaço natural (terra) enquanto seus protetores (espíritos) lutam no espaço

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165

sobrenatural. Mas, ambos, bem e mal, figurativizados pelas duplas Yoh/

espírito protetor e jovem vilão/espírito protetor, respectivamente, circulam entre

os dois mundos num eterno ir e vir, formando e transformando, nascendo e

renascendo. Essa última seqüência será retomada no item ‘cores’, já que sua

análise será mais rica quando associarmos figuras, formas, topologia e cores.

Vamos, agora, tratar dos elementos expressivos que compõem as

formas/figuras: as linhas, retas, curvas e outras formações figurativas.

Em Shaman King, a forma que predomina na composição das figuras é a

triangularização, um formato que devemos enxergar como um “V”. Vejamos:

Figura 11: Triangularizações

• Nos cabelos pontiagudos dos personagens, o formato “V” predomina;

• Nos olhos e principalmente no formato do rosto;

• No talhe das roupas;

• Na forma como o personagem principal ─ Yoh ─ está, de pé, pernas

entreabertas. Em outras imagens, com mãos na cintura. Essas duas

disposições fazem o formato “V”;

• O pássaro é triangular;

• As armas, espadas são triangulares, pontiagudas.

• E o contorno do nome Shaman King, numa espécie de faísca pontiaguda,

também tem o formato em “V”.

Outra característica do contorno da figura é a força do traçado da linha preta

nos olhos e sobrancelhas, para causar um efeito de sentido de expressividade

forte; e o traço fino, no contorno dos corpos e roupas, para conseguir um efeito

de sentido de delicadeza. As formas pequenas e delicadas apresentam melhor

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166

o biótipo japonês. Nos desenhos de estética japonesa, tamanho nem sempre é

sinônimo de força.

c) Cores:

Figura 12: logomarca Shaman King

Segundo a artista e escritora Fayga Ostrower, em seu livro Universos da Arte,

“[...] não faz o menor sentido falar sobre cores isoladas como se elas

possuíssem identidade própria: o vermelho é isso, o verde aquilo, como se as

cores inicialmente já estivessem impregnadas de algum conteúdo expressivo”

(2004,p.102).

Assim também pensa o semioticista, sendo que, o sentido de uma cor vai

depender da relação dessa cor com os outros elementos do contexto

imagético, ou seja, depende com quais figuras, formas, cenários, personagens

e até com qual fundo musical essa cor está relacionada.

É comum encontrarmos, nas literaturas que analisam imagens, conclusões

simbólicas do uso das cores. Quantos de nós já não encontramos definições de

paixão para o vermelho, de paz para o branco e de luto para o preto.

Se as análises de cores fossem estritamente simbólicas, creio que não

necessitaríamos de nenhum esforço de análise.

Vamos exercitar essas noções, fazendo as análises sob as duas óticas: a

estritamente simbólica e a semi-simbólica, essa última, uma noção teórica da

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semiótica discursiva que, como já vimos, homologa os elementos expressivos

para extrair-lhes os efeitos de sentido.

Uma análise simbólica, rapidamente, daria conta de pesquisar os significados

das cores na cultura japonesa. Desse modo, procedendo à pesquisa, temos

que as cores da bandeira japonesa são o vermelho e o branco. Vermelho, no

Japão, significa força, tradição (as mulheres japonesas casam de vermelho).

Uma cor que na mitologia é associada ao sol é a cor amarela, sendo que o sol

é representado por uma deusa.

Então, na análise da logomarca Shaman King, diríamos que o vermelho

representa força ─ como devem ser fortes todos os heróis. O contorno amarelo

da logomarca remete ao Sol ─ o astro rei ─ e, por conseqüência, Shaman

King também será rei.

Mas, curiosamente, no Japão, vermelho é usado pelas mulheres, e amarelo

que é sol, é uma deusa. Duas cores que estão relacionadas ao mundo

feminino, no Japão.

Onde estaria a relação dessas cores com o mundo feminino, na seqüência de

abertura? Não encontramos resposta satisfatória.

Refazendo a análise pelo semi-simbolismo, temos que, na seqüência 1, após a

bola de luz, que abre a vinheta, e dos elementos da natureza (céu, lago,

montanhas, áreas verdes e também o pássaro que sobrevoa esse ambiente),

o enunciador finaliza essa seqüência com a logomarca Shaman King. A

logomarca, com o nome do desenho, tem as letras vermelhas, contornadas

pela cor amarela. O formato da fonte que dá o nome Shaman King é

arredondado; a cor amarela aparece em uma figura com formatos

arredondados e pontiagudos, como se faíscas brotassem do nome vermelho

Shaman King. Além disso, o enunciador finaliza essa seqüência com a

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imagem do pássaro subindo ao canto direito da tela, como se fosse buscar o

nome Shaman King. Este, trazido pelo pássaro, migra do canto superior e

direito da tela, para o primeiríssimo plano. Assim, a logomarca permanece, por

alguns segundos, sob o fundo azul da tela, centralizada em primeiríssimo

plano.

Nos domínios da arte, as cores vermelha, azul e amarela são consideradas

cores36 primárias. De suas combinações fluem as chamadas cores secundárias

(laranja, verde e violeta) e as demais, terciárias (marrom, ocre, cinza, preto,

branco), bem como todas as demais gamas de composição de cores.

Homologando, então, as cores vermelha e amarela, a composição figurativa do

nome ‘Shaman King’ com fontes arredondadas e pontiagudas, o movimento

migratório da logomarca que vai de uma angulosidade esquerda e inferior para

direita e superior, e a topologia central, em primeiríssimo plano, que a

logomarca ocupa na tela, temos:

QUADRO 5: HOMOLOGAÇÃO FORMANTES PLÁSTICOS

Cores Figuras Topologia e Movimento

-Vermelho, amarelo e azul:

são as três cores

primárias.

- Lettering Shaman King.

- Demais elementos

figurativos: céu, lago,

montanhas.

-Lettering Shaman King migra do canto

superior e direito da tela para o

primeiríssimo plano e centralizado.

Assim, nem precisaríamos recorrer à tradução do nome Shaman King (Deus

Xamã) para perguntar:

- Qual é mesmo o único elemento da natureza que não foi figurativizado na

seqüência 1 ?

- Qual o elemento da natureza que tem as cores vermelha e amarela numa

espécie de fusão37?

- Qual o elemento da natureza que durante o dia está ao alto em relação ao

36 Estamos nos referindo à ‘cor-pigmento’ e não ‘cor-luz’. 37 Da fusão das cores primárias, vermelho e amarelo, surge o laranja.

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ponto de vista de quem está na terra? Assim, o que mais uma figura, com

letras arredondadas vermelhas, contornada por formas arredondadas e

pontiagudas amarelas, centralizadas em primeiríssimo plano no centro da tela

de fundo azul poderia evocar? O sol. Shaman King, Deus Xamã, um Deus tão

poderoso como o astro-rei Sol.

Figura 13: Logomarca- figurativização do sol

Procedendo à análise das demais seqüências, vamos observar as cores com

as quais o enunciador trabalha os personagens, roupas e cenários que estão

inseridos.

Figura 14: cores Yoh

O personagem Yoh, antes de evocar os poderes do Shaman (ou seja, antes de

se transformar em herói), usa uma camisa branca, de mangas compridas,

aberta, com finos contornos de uma linha de cor preta. Na camisa,

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encontramos projeções do elemento plástico ‘luz’, quando o enunciador projeta

sombras no pescoço e camisa de Yoh. Na calça comprida prevalece a cor

verde escuro, com verde claro em contraste e a cor preta na altura das

articulações (joelho e cintura). Seus cabelos são negros, com duas pontas

maiores pontiagudas. Sua pele clara, tom de marrom, tem um brilho que

contrasta entre o claro e o escuro da tonalidade de sua pele. Seus olhos

grandes, bem contornados, são negros no contraste do fundo branco. Sua

boca pequena é figurativizada com um minúsculo traço fino preto. No peito à

mostra, seu colar tem três garras pontiagudas, da mesma cor de seu cabelo,

numa espécie de miniatura dos contornos também pontiagudos do seu cabelo.

Ainda um detalhe expressivo, vermelho, prendendo seu cabelo, o arco de seu

‘walkman’ (radinho de ouvido). Por fim, sua sandália aberta, de plataforma alta,

prevalecendo a cor marrom.

A seqüência em que Yoh aparece com esse traje, na vinheta de abertura, é a

SEQ.2. Ele, do lado direito da tela e de braços abertos, encostado numa

árvore, olha para algum lugar no infinito, em direção ao céu. As cores da face,

dos olhos, do fino traço preto, da boca e da roupa, juntas, homologadas ao sutil

movimento de abertura dos braços e olhar para o infinito, contribuem para o

efeito de sentido de leveza, de sobriedade, tranqüilidade e equilíbrio.

Figura 15: cores Amidamaru

O espírito que Yoh evoca é Amidamaru, seu espírito protetor. Seu cabelo

pontiagudo tem a cor violeta-claro (violeta esbranquiçado, dessaturado pelo

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branco). Branca também é a cor de sua manta. Sua roupa é de cor preta. Sua

bolsa tem as cores vermelha e preta e sua espada é marrom. Na seqüência 2,

em que aparece, está do lado esquerdo da tela, encostado numa árvore, de

cabeça baixa e olhos fechados. Parece entardecer, com o pôr-do-sol (cores

amarelo e vermelha) na tela. O conjunto cromático trabalhado pelo enunciador,

ao escolher como alternativas de cores a vestimenta branca, o cabelo violeta-

esbranquiçado e a figurativização de uma face baixa, de olhos fechados,

passa-nos um efeito de sentido de introspecção, mistério, mundo mítico.

Figura 16: Cores Anna e Manta

Ana tem cabelos castanhos, olhos negros, pele clara. Usa roupa preta, um

colar azul e um véu vermelho sobre a cabeça. Na seqüência 5, em que

aparece, o enunciador, além de apresentá-la de perfil, também mostra sua

imagem de frente. O conjunto cromático, associado aos olhos fechados e à

lágrima que cai, dá um efeito de sentido de tristeza, melancolia. A cor vermelha

é bem trabalhada no véu que usa, um véu longo, esvoaçante, que toma boa

parte da composição de sua figura. Ao homologar o tamanho, a espacialidade

que o véu ocupa, com a cor vermelha, notamos que o enunciador quer que o

véu seja visto. Associado ao segundo recurso que o enunciador usa ─ a

imagem de Ana de frente ─ entendemos que esse recurso é o apelo à sua

feminilidade.

Manta, por sua vez, tem a mesma cor de cabelo ─ castanhos ─ de Ana. Sua

pele é branca, dando um efeito de sentido de estar sempre assustado,

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amedrontado. O recurso que o enunciador usa é o mesmo utilizado em Homem

Aranha, “[...] introduzindo na imagem uma fonte de iluminação, cujos efeitos

fantasmagóricos, de golpes de claridade e sombras repentinas, acompanham a

agitação dos personagens” (Faigha,2004,p.94).

Figura 17: vilão Hao

O jovem vilão, irmão gêmeo de Yoh, chama-se Hao. Veste roupa preta, tem as

mesmas feições figurativas e cromáticas de Yoh. A diferença é a posição de

seu cabelo, pontiagudo e para frente, como se fosse atacar. A mecha violeta

em seu cabelo negro é um recurso cromático diferenciador, trata-se da mesma

cor violeta que os demais vilões de seu grupo usam. Hao é figurativizado com

uma face de cor clara, levemente abaixada. Seus olhos negros estão numa

posição não frontal, levemente inclinados, com sobrancelhas que se contraem.

Assim, essa composição figurativa e cromática colabora para o sentido de

ataque, como se Hao estivesse pronto para a luta.

Nessa última figura, devido à sua característica, não seria possível analisar a

cor separada dos formantes topologia (espaços), figuras e formas. Assim, é

nessa figura final da SEQ.29 que a riqueza desses formantes nos conduzirão

aos temas.

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Figura 18: todos integrantes

Na última seqüência, onde todos os integrantes estão juntos, podemos

visualizar melhor o trabalho cromático, topológico (espaços) e figurativo,

instaurado pelo enunciador, e, por conseqüência, inferir sobre seus efeitos de

sentido. Como são muitos os personagens e as cores utilizadas, optamos por

homologar as cores de Yoh, dos amigos à sua direita e dos inimigos à

esquerda. Na semiótica, quando falamos de esquerda e direita, estamos

entrando no texto; nosso olhar não parte como se estivéssemos do outro lado

da tela, na poltrona de casa, mas, sim, lá dentro do texto, na visão de Yoh, ou

seja, na visão que o enunciador quer que tenhamos.

QUADRO 6: HOMOLOGAÇÃO DE CORES E ESPAÇOS

Amigos à direita

(do alto para baixo) Yoh

Inimigos à esquerda

(do alto para baixo)

Fundo Vermelho

Magenta com preto

Violeta esbranquiçado

Preto

Branco e cinza

Azul

Violeta esbranquiçado

Verde

Vermelho

Preto

Fundo amarelo esbranquiçado

Vermelho

Preto

Fundo Vermelho

Magenta com preto

Verde

Roxo

Roxo

Branco e cinza

Roxo

Preto

Rosa

Marrom

Fundo amarelo esbranquiçado

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d) Topológico (planos):

Figura 19: todos integrantes 2 Figura 20: todos integrantes 3

Os três heróis Yoh, Ana e Hao, estão todos de preto, a diferença é o véu

vermelho de Ana e a mecha violeta de Hao. A cromaticidade roxa que sai da

roupa do espírito de fogo é a mesma do cabelo de seu protegido Hao; o violeta

é trabalhado claramente na posição diagonal, vem do espírito, passa pela gola

de um segundo vilão e chega à mecha do cabelo de Hao. Assim, o espírito

conduz a mente de Hao, sendo a cor violeta o recurso cromático que o

enunciador escolhe para uni-los na maldade.

Figura 21: todos integrantes 4 Figura 22: todos integrantes 5

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Nas figuras 21 e 22, podemos ter uma melhor visualização das cores que o

enunciador do desenho Shaman King trabalha. Percebemos que o lado

esquerdo dos inimigos tem as cores mais densas, fechadas, saturadas. Do

lado direito, dos amigos, a proporção espacial, ocupada pelo branco, é bem

maior, dando um efeito de sentido de maior leveza ao lado direito. As cores

claras, frias, como o branco-cinza e o violeta-esbranquiçado, conferem leveza

aos amigos de Yoh, enquanto as cores densas, saturadas, tornam a figura

mais pesada para o para o lado dos inimigos ─ a clara dicotomia, bem versus

mal.

Analisando toda a figura, numa angulosidade que vai de baixo para o alto, a cor

mais clara, amarelo esbranquiçado, faz um ‘degradê’, o que vai do amarelo

esbranquiçado ao chão, e da metade da figura para o alto, o amarelo começa a

migrar para o vermelho, até chegarmos ao vermelho mais denso, saturado, na

posição da cabeça dos espíritos.

Todos os personagens da figura são trabalhados em maior ou menor grau com

a cor preta, um sinal cromático em comum. Estariam todos prontos para a luta?

Os dois espíritos têm um traço cromático em comum: a cor magenta; apenas

eles habitam o mundo do magenta. Uma curiosidade sobre essa cor é

apontada por Fayga (2004,p.104), que nos lembra que “[...] a sétima cor do

arco-irís seria o magenta, misto de vermelho e violeta. Na realidade essa cor

não é visível no espectro solar, tendo sido incluída por motivos mágico-

simbólicos em torno do número sete”.

Caso proceda nosso raciocínio de que temos dois mundos no desenho (o das

pessoas do mundo natural e o dos espíritos, do mundo sobrenatural), podemos

dizer que o enunciador, ao conferir a Yoh a topologia central e ao figurativizá-lo

com a forma vertical, permite que o mesmo habite os dois mundos, o bem e o

mal. Assim, é a centralidade e a verticalidade que permitem esse efeito de

sentido. Se a verticalidade separa os dois mundos, bem e mal, a

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horizontalidade separa os mundos natural e sobrenatural. E o elemento

expressivo que reforça esse efeito de sentido da linha imaginária horizontal é a

cor. Observamos que é justamente no meio da figura, para aonde a cor migra,

que as figuras do mundo natural ficam separadas topologicamente das figuras

do mundo extranatural (os dois espíritos). Nessa perspectiva cromática, vemos

que, do chão para o alto, o amarelo esbranquiçado vai lentamente migrando

num ‘degradê’, até chegar ao vermelho mais denso. Observamos que não há

ruptura cromática dos dois espaços (inferior versus superior); há, sim, um

‘degradê’, uma sutil passagem de um mundo a outro, como se acontecesse

uma fusão. A carga de valor fica por conta da leveza que o plano inferior tem

(amarelo claro) até a densidade do plano superior (vermelho escuro). Dessa

forma, o enunciador confere leveza ao mundo da terra, e à medida que a cor

migra para o alto, da metade da figura para cima, vamos encontrando o mundo

dos espíritos, culminando com a cor vermelha saturada. Assim, o enunciador,

ao dividir o espaço em duas cores, divide também os dois mundos, o natural e

o extranatural.

Temos, então:

QUADRO 7: HOMOLOGAÇÃO TOPOLOGIA-FIGURAS-CORES-EFEITOS DE SENTIDO

Topologia Figuras Cores Valores-Efeitos de

Sentido

Superior Espíritos Vermelho Denso Mal, pesado

Inferior Humanos Amarelo Claro Bem, leveza

Direito Amigos-heróis Vermelho denso +

amarelo claro

Bem, co-habitam

os dois mundos

Esquerdo Inimigos-vilões Vermelho denso +

amarelo claro

Mal, co-habitam

os dois mundos

Com as análises expostas até aqui, podemos dizer que os personagens do

desenho Shaman King não são projetados na vinheta de abertura em locais

que lembrem escolas, academias ou shoppings; ao contrário, a vinheta de

abertura mostra os personagens sempre projetados em espaços que podemos

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chamar naturais ou extranaturais. Uma vez que estão sempre pairando, o

espaço macro é a própria inserção dos personagens no tempo, nos vários

tempos, sempre migrando de um mundo a outro. Quanto às angulosidades,

prevalece o efeito ‘de baixo para cima’, quando o enunciador mostra os corpos

dos personagens, dando um efeito de sentido de superioridade. Já quando a

angulosidade migra ‘de cima para baixo’, os personagens estão caindo,

conferindo à seqüência um efeito de aventura. São poucos os mecanismos que

focam as faces dos personagens, do tipo close. Prevalece a tomada de câmera

que mostra o corpo inteiro, suas armas, lutas, desdobramento das ações.

e) Cortes/Fusões/Movimento Imaginal

Podemos constatar que, numa vinheta de 90 segundos, como é o caso do

desenho Shaman King, o enunciador, para dar velocidade à vinheta, insere

várias seqüências de imagens (29, no caso do referido desenho). Caso

contrário, o efeito seria de lentidão. No caso de Shaman King, toda uma

história é contada, de modo que cenas muito rápidas são inseridas, em

sincronia com toda a letra/sonoridade.

4.3.2.4 Relação texto/contexto

Os mangás e animes (como são chamados os desenhos japoneses) trouxeram

para suas narrativas as questões da cultura japonesa. Os conteúdos dos

animes foram, pouco a pouco, sendo apropriados pelo cinema e também pela

televisão.

A narrativa japonesa costuma privilegiar a questão do espírito, do sobrenatual.

Recentemente, um filme chamado “Castelo Encantando”, que é de produção

japonesa, mostra que a luta japonesa é pela alma, pelo transcendental; não

parecem brigar por questões materiais. A luta deles começa na terra e continua

no céu, em outras vidas. Lenda, tradição, respeito aos antepassados são

conceitos trabalhados nos desenhos japoneses. Ao construir dessa forma suas

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narrativas, incentivam certa consciência da história de seu país e de sua

cultura, que é repassada de gerações a gerações.

Mas com o mercado global, esses programas são comercializados para outros

países, e, os produtores de cada emissora fazem uma espécie de adaptação

(ainda que mínima) para o país em que o programa será veiculado. Esse é o

caso de Shaman King, como já identificamos, em que os produtores não

trabalham os nomes dos personagens, pois são difíceis de serem absorvidos

pela cultura brasileira.

O enunciatário construído pelo desenho Shaman King são jovens, meninos e

meninas. Transitam facilmente pelos mundos natural e sobrenatural. São

personagens lutadores, verdadeiros guerreiros mirins. Cultuam o lado mítico

das coisas e têm extrema habilidade no manuseio de armas, espadas e bolas

de fogo. Esse enunciatário também não está sozinho, conta com ajuda de

espíritos, pessoas de outro mundo. Também são auto-suficientes, andam em

grupos, prontos para a luta. Essas características, também são identificadas

nos jovens “reais” da sociedade em que vivemos.

É interessante notar que a construção no desenho Shaman King, poderia,

numa vista apressada, indicar para um mundo menos “comercial”, quando

comparado com os desenhos Três Espiãs Demais e Homem Aranha. Talvez

essa impressão se dê porque o enunciador trabalha mais no desenho os

espaços (natural e extranatural) do que os adereços dos personagens. Mas,

mesmo assim, podemos identificar nos personagens centrais, a ênfase que o

enunciador dá nos seus cabelos pontiagudos, em seus colares, sandálias,

walkman, nos corpos magros e andróginos. Tudo leva a crer que, em se

tratando de desenho animado, até o mito já vem globalizado.

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5 VARIÂNCIAS E INVARIÂNCIAS

Para a semiótica, as reiterações e isotopias permitem inferir sobre a

regularidade de um discurso. ‘Iso’ significa igual, parecido, semelhante; ‘Topo’,

lugar. Lembramos que o semioticista ao proceder às análises das isotopias,

continua com o compromisso de identificar as pistas inscritas no texto.

Conforme Fiorin (1997,p.81),

Inúmeras vezes ouvimos dizer que o texto é aberto e que, por isso, qualquer interpretação de um texto é válida. Quando se diz que um texto está aberto para várias leitura, isso significa que ele admite mais de uma e não toda e qualquer leitura. Qual é a diferença? As diversas leituras que o texto aceita já estão nele inscritas como possibilidades. Isso quer dizer que o texto que admite múltiplas interpretações possui indicadores dessa polissemia. Assim, várias leituras não se fazem a partir do arbítrio do leitor, mas das virtualidades significativas presentes no texto.

Após a análise dos três desenhos, vamos identificar o que eles têm em comum,

aquilo que os aproxima, o que têm de diferente e o que os afasta. Estaremos,

com isso, analisando as identidades e alteridades, as variâncias nas

invariâncias.

5.1 AS REITERAÇÕES: Três plásticas, um único discurso

A primeira reiteração diz respeito à estratégia enunciativa de colocar ao centro

o herói protagonista principal. Nos três desenhos, um personagem é central.

Figura 1: Clover, Peter, Yoh

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Quem está no centro das atenções, em posições centrais, são considerados

heróis. Nessa imagem também identificamos a padronização dos corpos. Os

heróis divulgados para o público infantil são magros, esbeltos, traços finos. O

álter não é herói.

Figura 2: mudança

Percebemos, igualmente, que nos três desenhos existe uma estratégia

enunciativa que muda o direcionamento da trama, como, por exemplo, ‘o estalo

de dedos de Jerry em ‘Três Espiãs Demais’, ‘o soco na tela’ de Homem Aranha

e Yoh tirando algo ‘do fundo da alma’ em Shaman King. No primeiro caso,

assim que Jerry estala os dedos, as meninas viram heroínas; no segundo caso,

assim que Homem Aranha dá um soco na tela, os três personagens principais

são apresentados, e as diversas aventuras mostradas; no último caso, assim

que ‘Yoh’ tira do fundo da alma a ajuda do amigo espírito Amidamaru, são

mostradas as cenas de lutas com os inimigos.

Outra reiteração são os espaços freqüentados e não freqüentados pelos

personagens. Os ambientes ─ escola e casa ─ não são instaurados pelo

enunciador em nenhum desenho. Freqüentam shoppings, cidades, noite,

espaços extranaturais.

A reiteração pela conquista do objeto-valor também se repete nos três

desenhos. Mas vejamos qual o objeto de valor dos três desenhos e como os

heróis fazem para conquistá-los:

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• em Três Espiãs Demais ─ o objeto-valor é viver a própria aventura

resolvendo as missões que Jerry passa para elas. Para conseguirem a

performance, precisam contar com a ajuda dos bens de consumo;

• em Homem Aranha ─ a performance do herói conta com seu sexto sentido

aguçado; sua teia é a arma contra os vilões e o cenário da metrópole, sendo

os prédios uma espécie de coadjuvantes para que suas habilidades sejam

mostradas;

• em Shaman King ─ o herói conta com a crença na luz do bem, com os

espíritos e com sua arma, uma espada.

QUADRO 1: OBJETOS MODAIS DOS HERÓIS

Três Espiãs Demais Homem Aranha Shaman King

-Bens de Consumo

-Armas-objeto

-Sexto Sentido

-Arma - Teia de aranha

-Prédios

-Crença luz do bem

-Amigos espíritos

-Arma - Espada

Outro ponto muito parecido, apontando uma tendência para a plástica

japonesa, é o formato do rosto, olhos e cabelos, como mostra a figura 3.

Figura 3: plástica japonesa

Na figura 4 podemos identificar a forma como o enunciador apresenta os

personagens centrais. No caso de Shaman King e Homem Aranha, o recurso é

o mesmo: um pequeno gesto ao levantar a cabeça apresenta o herói principal.

Já no desenho Três Espiãs Demais, a câmera vai dos pés à cabeça das

personagens, que posam frontalmente para os enunciatários.

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Figura 4: Apresentação dos personagens

Comum aos três desenhos também é a rapidez do movimento imaginal. Os

takes são muito rápidos, são várias cenas e fusões, e, em alguns casos, há

sobreposição de imagens no mesmo plano, como mostra a figura 5.

Figura 5: sobreposição de planos

Quanto à sonoridade, em Três Espiãs Demais e Shaman King, temos uma letra

cantada em sincronia com as imagens que vão passando. Em Homem Aranha,

apesar de não existir letra, o ritmo faz sincronia também com as imagens

mostradas. Os enunciadores dos três desenhos, então, sincronizam ritmo de

som com ritmo de takes, e coerência entre o que é cantado e o que é

mostrado.

Por fim, sobre as reiterações das temáticas. Ao longo da história das artes e

humanidades, os artistas buscavam inspiração no real para construir suas

pinturas, esculturas, suas obras de arte; o real, de certa forma, serviu de

referência para os artistas.

Se, ao longo da história, as plásticas e temas abordados privilegiavam o mito ─

Deus, o homem e a natureza ─, podemos dizer que nos desenhos Três Espiãs

Demais, Homem Aranha e Shaman King, seus enunciadores, ao contemplar,

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183

no plano de expressão, cidades, objetos, bens de consumo, prédios altos,

escritórios, sandálias, walkmans, colares, privilegiam e reforçam temáticas e

sistemas da sociedade contemporânea. Por isso, o nome que demos a esse

sub-capítulo: AS REITERAÇÕES: Três plásticas, um único discurso.

5.2 CONTRATOS DE VERIDICÇÃO: As marcas deixadas pela enunciação

Segundo Moema Rebouças (2003,p.23), um

[...] enunciado pressupõe uma instância da enunciação, estabelecendo um eixo de comunicação entre um enunciador e um enunciatário. Essa comunicação, supõe um saber do enunciador sobre um saber do enunciatário, e sobre o que este considera ser a ‘realidade’ e sobre o que este julga ser ‘fiel’ a esta realidade. O enunciador, ao exercer um fazer persuasivo, tendo como objeto a veridicção, faz com que seja estabelecido um contrato enunciativo, ou de veridicção, com base no ‘crer verdadeiro’ que o enunciatário atribui ao discurso”.

Neste capítulo, queremos mostrar, a partir de nossas análises, outras

estratégias, instauradas pelos enunciadores de desenhos animados, passíveis

de serem lidas e identificadas por nós nos três desenhos.

Se compararmos a música (letra + sonoridade) das vinhetas de abertura dos

três desenhos, temos:

a) No desenho Três Espiãs Demais ─ “Estamos prontas pra qualquer

missão enfrentar...” ─, temos a instauração de 1ª pessoa do plural, ou

seja, as próprias personagens, ao cantar, falam de seus valores,

promovendo, assim, uma aproximação com os enunciatários;

b) Em Homem Aranha não há letra verbal oral, só música, o texto é “dito”

somente pelas imagens;

c) Já em Shaman King ─ “Ele vai vencer” ─ o enunciador promove um

distanciamento, pois ‘alguém’ ─ 3ª pessoa do singular ─ diz: “Ele vai

vencer”.

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Assim, fazemos as seguintes interrogações:

Em ‘Shaman King’, quem está dizendo “Ele vai vencer”? Quem são essas

vozes que cantam sobre os heróis? Que falam deles? Como podemos chamá-

las?

O sujeito da enunciação projeta no discurso do desenho alguém que diz que

ele (o herói ‘Yoh’) vai vencer; esse alguém está incluído na trama apenas na

expressão oral e não é figurativizado. Temos, então, um narrador, que nos

afirma que nosso herói vai vencer. Os enunciatários de Shaman King, então,

sabem, por meio de um narrador não visível, que nosso herói vai vencer e

sentem-se, assim, estimulados a conferir essa vitória, bastando assistir ao

programa.

[...] se o discurso em 1ª pessoa é assumido por um actante que age como narrador, no discurso em 3ª pessoa, o sujeito projetado pela enunciação funciona como um observador que conhece as fontes e as situações citadas ou narradas no discurso (TEIXEIRA, APUD BARROS,1996, p.112/113). Esse enunciador distanciado da cena concretizada no texto, tem teoricamente, o objetivo de impessoalizar o discurso, tornando-o imparcial e objetivo. Greimas reconhece que a manipulação discursiva ocorre sob duas formas: a camuflagem subjetivante e a camuflagem objetivante, definindo esta última como o puro enunciado das relações necessárias entre as coisas, apagando, quanto possível, todas as marcas da enunciação. O apagamento do sujeito, pela impessoalização de um observador que se coloca fora da cena enunciada, é o recurso mais eficaz da imediata objetividade do discurso” (TEIXEIRA, APUD BARROS,1996, p.112/113).

Já no desenho Três Espiãs Demais, existe um início de diálogo: “Estamos

prontas, pra qualquer missão enfrentar”; elas mesmas estão contando suas

histórias, quem elas são, seus gostos, etc. O enunciador não entra na trama

para narrar, como em Shamam King; ele se disfarça sob a figurativização das

próprias personagens (figura e sonoridade). Nesse caso, em que o enunciador

se projeta na figura e na voz dos próprios personagens, há uma estratégia que

o enunciatário não percebe, pois trava-se um diálogo direto com o enunciatário,

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sem terceiros para nos contar. Essa estratégia de diálogo fica mais clara

quando as personagens falam, no final da música, de forma imperativa: “girem

nosso programa”. Com esse recurso, por meio das personagens, o enunciador

interpela o enunciatário a agir, a girar o programa, a entrar na trama. Fica claro

o embate direto do diálogo estabelecido: S1 (enunciador) interpela diretamente

S2 (enunciatário).

Já em Shamam King, alguém canta (S3 enunciador narrador); alguém, que não

o próprio herói, fala dele. O enunciador (S1) projeta um enunciador-narrador

(S3) que narra sobre os heróis. Essa estratégia de instaurar um enunciador

narrador (S3) “disfarçado” na trama ─ pois S3 não está figurativizado ─, ao

mesmo tempo em que é sutil, permite-nos identificar mais fortemente a ‘mão’

do enunciador na trama. Temos, aqui, o que a semiótica discursiva vai chamar

de “as marcas da enunciação”, ou seja, o recurso claro da presença do ato de

enunciação (produção dos enunciados) no enunciado (produto já acabado,

texto).

Ora, o que um desenho animado pode querer? Narrar histórias, transformar

seus personagens em enunciadores de suas próprias ações. Mas são apenas

desenhos, e desenhos não falam. Então, para dar mais credibilidade ao

discurso, o enunciador de Três Espiãs Demais dá vida às bonecas pintadas

sobre a folha de acetato; colocam-nas para falar. Assim fica mais crível, e, por

outro lado, faz o enunciatário se esquecer de que se trata de uma ficção.

Já em Shamam King, logo no início da vinheta, recebemos uma pista de que se

trata de uma ficção; afinal, alguém (S3) está narrando para nós, intermediando,

ou seja, alguém que não a ficção, fala da ficção. Assim, fica mais claro que é

uma história contada, um conto. É como se o enunciador estivesse dizendo:

isso não é a verdade, é só uma historinha, viu?

E em Homem Aranha, em que ninguém narra nada? A história narra-se por si

só, somente com as imagens. Ninguém precisa falar nada, oralmente, aos

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enunciatários; os mesmos já estão vendo! É a construção de um enunciatário

adolescente que não precisa que alguém conte nada a ele. O enunciatário de

Homem Aranha vê; logo, entende. Explicar não faz parte do tipo de

enunciatário ‘maduro’, ‘já grandinho’, projetado pelo enunciador na trama;

explicar é coisa de criança!

Migrando das searas dos ‘disfarces’ que o enunciador utiliza no texto televisivo,

percebemos também outros mecanismos que são utilizados pelos

enunciadores com a finalidade de causar curiosidade.

No caso do desenho Três Espiãs Demais, já entramos na trama sabendo que

elas são espiãs, pois o próprio título do programa deixa isso claro; não existe

mistério, como em Homem Aranha, que utiliza máscaras; as heroínas já entram

dizendo “de Três Espiãs, conquistamos a fama”; deixam claro quem são e o

que fazem para se tornarem heroínas; logo, não é preciso esconder.

Já em Homem Aranha o mistério faz parte de toda a trama: ninguém pode

descobrir a identidade do herói. Só nós, enunciatários, sabemos. É um segredo

nosso, pois dentro da trama, ninguém sabe. Além do próprio Peter Parker, só

os enunciatários do desenho sabem quem é Homem Aranha. Mary Jane e

Harry não sabem. Então, forma-se um esquema do tipo: S1 (enunciador) deixa

que S2 (enunciatário) saiba quem é o Homem Aranha; logo, temos, com esse

recurso, uma estratégia de aproximação: o enunciador, ao compartilhar com o

enunciatário seu segredo, promove entre as duas partes uma cumplicidade.

Então, S1 dota o S2 de um “poder saber”, mas não “poder contar”; estabelece,

com ele, um segredo: é como se estivesse dizendo para o enunciatário “eu

confio só em você”. A narrativa de Homem Aranha é mais do que mistério.

Temos, curiosamente, repetida na própria trama desse desenho, uma das

principais características do meio televisão: o jogo do ‘parecer versus ser’.

Já no desenho Três Espiãs Demais, quando as mesmas se transformam em

heroínas constatamos que não existe mistério. Não existe o jogo do ‘parecer

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versus ser’; existe, sim, um claro recado de como se faz para ser: é só comprar

os bens de consumo que lhes dão poder.

Por fim, em Shamam King, o enunciador, na tentativa de impessoalizar o

enunciado, ao projetar um narrador disfarçado e que diz “Ele vai vencer”, leva-

nos à identificação de temporalidades diferentes. Se ele vai vencer, significa

que ele não está aqui no momento, mas num tempo diferente do momento em

que se diz. Temos, então, um tempo futuro, instaurado com a ajuda da forma

verbal ‘vai’. É exatamente esse recurso que permite ao enunciador de Shaman

King a audiência do enunciatário. Se no desenho Três Espiãs Demais o

enunciador projeta a personagem pedindo ao enunciatário para que “girem

nosso programa”, em Shamam King o enunciador conta ao enunciatário toda

uma história, dizendo que o herói vai vencer. Diz, no presente, de algo que

acontecerá no futuro. Cabe aos enunciatários assistirem ao programa e conferir

a vitória do herói. Três estratégias enunciativas, três formas de pedir a

audiência dos enunciatários.

Nos textos figurativos, as imagens, que se assemelham com o real (tomando o

real como referência), demarcam tempos e lugares. Assim, são marcos de

temporalidade, de uma época, por exemplo. Shoppings Centers,

computadores, tecnologia, bens de consumo, prédios, metrópoles, são

exemplos de um tempo atual, concomitantes ao tempo real. São assim os

desenhos Três Espiãs Demais e Homem Aranha.

Em Shaman King, por sua vez, nas figurativização das espadas, espíritos e

personagens planando, temos a instauração de um tempo mítico, nem

moderno, nem futuro. A trama poderia estar se passando em qualquer época

(passado, presente ou futuro). Num olhar apressado, talvez não víssemos

marcas definidoras de um tempo, deixando fluir o indefinido (ou talvez o

indefinido queira suscitar o tempo pós-moderno). Mas num olhar apurado, nos

damos conta de que o walkman que Yoh usa como se fosse um arco vermelho

em sua cabeça, é a marca definidora do tempo moderno.

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5.3 DESENHOS ANIMADOS E BENS CULTURAIS: Das expressões ao

consumo

Thompson (ano, p.33) vai dizer que

A valorização econômica é o processo de atribuição de “valor econômico” às formas simbólicas, um valor pelo qual elas podem ser trocadas no mercado. Em virtude da valorização econômica, as formas simbólicas se tornam mercadorias: objetos que podem ser vendidos e comprados no mercado por um determinado preço. Às formas simbólicas mercantilizadas irei me referir como “bens simbólicos.

Para nós, a televisão é uma prateleira de experiências. É só ligar, consumir

suas mensagens e reportar-se para outro lugar. Mas, ao desligá-la, para fixar

mais o gosto da experiência, o telespectador pode comprar os produtos que os

programas ofereceram, e que os farão relembrar as mesmas experiências

absorvidas na tela.

Atualmente, vivemos aquilo que Thompson chama de “sequestro das

experiências”. Vivemos num mundo no qual a capacidade de experimentar se

desligou da atividade de encontrar. O seqüestro das experiências de locais

espaços-temporais da vida cotidiana anda de mãos dadas com a profusão de

experiências mediadas e com a rotineira mistura de experiências que muitos

indivíduos dificilmente encontrariam face a face. Ao assistir à televisão, as

pessoas se deparam com inúmeras narrativas e visões de mundo. Para

enfrentar a crescente oferta de materiais simbólicos oferecidos pelos meios de

comunicação, as pessoas acabam por encontrar, na loja, a extensão daquilo

que vivenciaram por meio da TV.

Os detentores das marcas dos desenhos animados, além de oferecerem os

estilos de vida dos personagens na tela, oferecem também os personagens na

loja em forma de brinquedo. O entretenimento imagético migra para o

entretenimento físico. Além disso, estimulam a criação de fãs clubes dos

heróis. Os fãs colecionam discos, fitas, vídeos, recortes de jornais, revistas,

vão a concertos, assistem a filmes, compram produtos dos heróis e escrevem

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cartas a outros membros do fã-clube. Assim, não se sentem sozinhos,

partilham com uma rede de outros fãs suas escolhas simbólicas e materiais.

Quanto maior for a perfeição com que as técnicas da indústria cultural consigam duplicar os objetos empíricos, mais fácil se torna hoje obter a ilusão de que o mundo exterior é o prolongamento sem ruptura do mundo que se descobre no filme (Adorno, ano,p.118).

Adorno (1985) vai dizer que tanto técnica quanto economicamente, a

publicidade e a indústria cultural se confundem. Nas duas, a mesma coisa

aparece em inúmeros lugares, e a repetição mecânica do mesmo produto

cultural já é a repetição do mesmo slogan propagandístico. Lá como cá, sob o

imperativo da eficácia, a técnica converte-se em psicotécnica, em

procedimento de manipulação das pessoas. Nas duas, reinam as normas do

surpreendente e no entanto familiar, do fácil e no entanto marcante, do

sofisticado e no entanto simples. O que importa é subjugar o cliente que se

imagina como distraído ou relutante.

Nesta dissertação, nossos objetivos de investigação não contemplam a análise

dos breaks comerciais, ou seja, da publicidade dirigida ao público infantil.

Apesar disso, achamos necessário deixar algumas evidências de que

Thompson e Adorno têm razão quando falam respectivamente em ‘seqüestro

de experiências’ e ‘duplicação de objetos empíricos’.

No break comercial do programa TV Globinho encontramos as seguintes

ofertas publicitárias, antes e depois do desenho Três Espiãs Demais: bonecas

Barbie , nas versões ‘Fada do Campo’, ‘Miami’ e ‘Califórnia Girl’.

Figura 6: Fada do Campo

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Nessa figura podemos observar que, assim como Três Espiãs Demais, a

boneca loura está colocada na topologia central. Ainda temos a boneca ruiva e

morena.

Figura 7: Comparação

Com as bonecas ‘Califórnia Girl’, temos também a loura no centro e as

aventuras na praia, com carro. Além de óculos, pranchas, roupas, maquiagem

e bijuterias usadas pelas bonecas.

Figura 8: Califórnia Girl

Uma curiosidade na apresentação do comercial dessas bonecas é o plano de

detalhe que o comercial mostra quando foca os pés das bonecas, mesma

estratégia utilizada pelo desenho Três Espiãs Demais quando começa a

vinheta de abertura, que mostra em plano de detalhe os pés das personagens.

Figura 9: Comparação 2

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Na apresentação do comercial das bonecas ‘Miami’, temos também praia,

motos, bolsas, maquiagem, rádio de mão, além de bonecas louras e morenas.

Lembramos que a trama das Três Espiãs Demais os espaços instalados giram

em torno de Bervelly Hills, EUA.

Figura 10: Miami

Na televisão, o espaço comercial já nasceu para vender produtos. Poderíamos

dizer que aí não há disfarces. Como o desenho animado não é um espaço

típico para a venda de produtos tangíveis, vendem ideologias, projeções de

sujeitos, espaços e tempos estereotipados, bem como um modo de vida que o

produto do anunciante tende a satisfazer. É uma grande troca de favores. É a

verdadeira retroalimentação do sistema ─ ‘diga-me qual é o seu produto, que

eu direi qual é o conteúdo do meu programa’ (ou seja, ‘que eu o transformarei

em discurso’). Se é pelo discurso que o meio de comunicação capta

anunciantes para os seus breaks comerciais, acreditamos estar aqui o

verdadeiro poder da mídia: o poder discursivo.

Quando a ideologia do principio da livre força de equivalentes dissemina-se de tal maneira que se torna extremamente difícil pensar que nem sempre foi assim na história da humanidade, a investigação dos pressupostos psicológicos da semiformação faz-se cada vez mais urgente (ZUIN,1999, pág. 78).

Aliado ao poder discursivo da mídia, vivemos num contexto de mercado em

que a proliferação de shopping centers parece ser a própria miniatura das

cidades. “Como numa nave espacial, é possível realizar ali todas as atividades

reprodutivas da vida: come-se, bebe-se, descansa-se, consomem-se

mercadorias”(SARLO, 2004, p.15).

Soma-se a isso também, com esse tipo de “cidade pós-moderna”, um discurso

midiático que promove a “cultura jovem” onde ser jovem é ter liberdade de

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escolha sem limites, como afirmação abstrata da individualidade e autonomia

dos sujeitos. Os objetos e os bens de consumo passam a ser os ícones da

cultura jovem.

São os nossos ícones, quando outros ícones que representavam alguma divindade, demonstram sua impotência simbólica. [...] São os nossos ícones porque podem criar uma comunidade imaginária, a dos consumidores, cujo livro sagrado é o advertising, e cujo ritual é o shopping spree, e cujo templo é o shopping, sendo a moda o seu código civil (SARLO,2004,p.28).

Além do desejo pelos objetos, deseja-se também os valores investidos neles,

um espécie de dois mitos: beleza e juventude. Essa busca pelo belo e pelo

novo, é uma corrida contra o tempo, pois sabemos, o tempo passa, e nós

envelhecemos. Mas o mercado está aí, e se ele não pode ao menos “parar” o

tempo, propõe para os consumidores pelo menos uma “ficção consoladora: a

velhice pode ser adiada”. Se a “velhice indigna das mercadorias expulsou a

temporalidade da nossa vida diária, o tempo dos objetos só pesa para quem

não pode substituí-los por outros mais novos” (SARLO,2004,p.31).

O discurso do mercado apoiado pelos meios de comunicação (ou vice-versa, o

que daria no mesmo), é que todos podem comprar, sempre existirá uma

mercadoria para um tipo de gosto e para o tamanho de um bolso.

Lembrando até um slogan surgido em 2006, “tem certas coisas que o dinheiro

não compra, mas para todas as outras, existe Mastercard”.

Mas sabemos que não é bem assim, o mercado já sabe quem poderá comprar

suas mercadorias, mas, no entanto, como precisa ser universal, enuncia um

discurso como se todos, nele, fossem iguais.

Por isso, nesse capítulo DESENHOS ANIMADOS E BENS CULTURAIS: Das

expressões ao consumo, quisemos apenas – uma vez que não nos propomos

a estudar os conteúdos dos breaks comerciais nessa pesquisa – mostrar que

existe uma continuidade entre o discurso do desenho animado com o discurso

do break comercial, um é extensão do outro, os dois, mídia e empresa

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anunciante participam de um mesmo projeto discursivo.

Dessa forma, estamos mais convictos, ao final de nossa pesquisa, que num

contexto como esse, uma das principais funções do educador é o

esclarecimento das relações intrínsecas entre formação social e consumo,

desvelando pela leitura, as ideologias contidas em um discurso. E o mediador

para isso ainda é o espaço escolar.

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6 CONSIDERAÇOES FINAIS

Ao finalizar esta dissertação, fazemos um balanço de nossos estudos, de

nossas participações em eventos, cursos, congressos e daquilo que justificou

nossa presença no Mestrado: o projeto de pesquisa ‘Televisão, Criança e

Educação: As Estratégias Enunciativas de Desenhos Animados’.

Nossa incursão na vida científica começou quando entramos no Mestrado em

Educação, da Universidade Federal do Espírito Santo, em maio de 2004.

Além da felicidade que nos toma, escrever estas linhas já é uma grande vitória.

É poder olhar para trás, lembrar do salto qualitativo que demos, das várias

experiências vividas e, com cabeça erguida, dizer... valeu a pena!

O Mestrado em Educação, na UFES, correspondeu às nossas expectativas.

Com ele, pudemos exercitar, além do ensino, as atividades de pesquisa e

extensão.

No primeiro semestre de 2004, vivemos uma imersão nas chamadas teorias,

psicologias e filosofias da educação: informações novas, grandes autores e

obras, metodologias, seminários, avaliações.

No segundo semestre, conhecemos as disciplinas específicas de nossa área,

“Educação e Linguagem”. Greimas, Vigotsky e Bakthin foram nossos principais

aportes teóricos. Nossas professoras de linguagem, nosso porto seguro.

Exemplos de amor à profissão e à pesquisa, doaram mais do que suas horas-

aula. Verdadeiras amigas, elas estiveram ao nosso lado quando precisamos,

mesmo após a qualificação, quando o ‘cordão umbilical’ já havia sido cortado.

Com a Educação e Linguagem, nos demos conta de como se dá a construção

da vida em sociedade, como a humanidade sistematizou o pensamento e as

primeiras formas de expressão. Percebemos quão lindo é o “espetáculo do

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homem no mundo”.

Em 2005, com o apoio da disciplina ‘Metodologia da Pesquisa Educacional’,

formalizamos nosso quadro teórico e as principais questões de investigação.

Começamos a dar os primeiros passos autônomos, participando de seminários,

congressos, oficinas, levando os primeiros esboços para apreciação da

comunidade acadêmica. Foi em uma dessas oportunidades que tivemos a

certeza que nossa pesquisa realmente poderia contribuir para a Educação.

Em junho de 2005, participamos do “VI Seminário Capixaba sobre o Ensino

da Arte: A Arte contempla a Arte”, na UFES.

Ministramos, no referido evento, juntamente com o colega (na época,

mestrando) Sandro Nandolpho, uma Oficina de análise de imagens

audiovisuais, com carga horária de cinco horas e participação de 40

professores do ensino de Arte das escolas municipais do Espírito Santo ─

‘Contempla Imagens Móveis’ ─ cuja fundamentação teórica abordada foi a

semiótica discursiva.

A teoria semiótica analisa qualquer tipo de texto, seja ele verbal ou não verbal.

A partir do plano de expressão, depreende-se o plano de conteúdo,

identificando-se e analisando-se a construção dos mecanismos geradores de

efeito de sentido dos textos. Especificamente em relação ao texto imagético,

tem por metodologia a análise dos formantes expressivos da sintaxe visual:

eidético (figuras/formas), cromáticos, topológicos e matéricos.

Os organizadores do evento perceberam um grande interesse dos professores

em caminhos metodológicos que os ajudassem na leitura de textos visuais. Foi

a partir dessa demanda que preparamos a oficina ‘Contempla Imagens

Móveis’. Separamos dois materiais audiovisuais para estudo na oficina: o

desenho animado Três Espiãs Demais e o filme Desmundo38.

38

O filme Desmundo é um drama, com duração de 100 minutos. Foi lançado no Brasil em

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Num primeiro momento, retomamos com os professores o estudo dos

elementos da sintaxe visual; num segundo momento, analisamos cada

elemento plástico expressivo dentro do desenho Três Espiãs Demais. A partir

dessa identificação, mostramos como cores, formas, figuras, traços, linhas,

instauração de sujeitos, espaços e tempos provocavam efeitos de sentido.

Repetimos o mesmo processo com o filme Desmundo.

Ao final, abrimos para um diálogo com os professores, para ouvir suas dúvidas

e contribuições. Os professores disseram, então, que não tinham um caminho

metodológico que os ajudassem numa leitura de audiovisual; ou seja, não eram

capacitados a definir por onde começar essa leitura: se pela cor, pela forma,

figuras, etc. O que percebemos é que os temas eram depreendidos de uma

leitura mais próxima ao senso comum, como acontece, normalmente, com os

espectadores de mídia. Nem sempre o que era depreendido estava presente

no texto; dizia mais respeito a uma leitura fantasiosa, que, normalmente, estava

relacionada a outras vivências daqueles professores.

Quanto a isso, deixamos nosso posicionamento de que o caminho

metodológico de análise de audiovisuais, necessariamente, não precisa estar

destituído das subjetividades de cada um, até porque acreditamos que, em

qualquer interpretação, trazemos para elas os nossos valores de vida.

Deixamos nossa crença de que, para sairmos de uma postura de análise

“menos relativista” para uma análise “mais coerente”, insistimos num caminho

metodológico que fluísse do texto ao contexto de vivências.

O retorno foi imediato. Ao final da oficina, vários docentes vieram nos relatar

como foi importante, para o olhar deles, a oficina ministrada. Depoimentos

2003. Com direção de Alain Fresnot, tem como protagonistas principais os artistas Simone Spoladore, Osmar Prado e Caco Ciocler.

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espontâneos foram dados, entre eles a declaração de que passariam a “ver

televisão com outros olhos”, o que deixou claro que existe uma carência de

metodologias na análise de audiovisuais, tanto para o público docente quanto

para o discente. Foram vários os pedidos e convites para que déssemos

continuidade ao projeto.

Desde a qualificação, em agosto de 2005, foram 13 meses de pesquisa intensa

com o corpus escolhido. Paradoxalmente, ao encerrar o Mestrado, não

pensamos num final, mas, sim, num recomeço.

Demos os primeiros passos rumo à pesquisa científica, que, necessariamente,

não termina aqui. Aprendemos que pesquisa se faz sempre. Não temos a

pretensão de dar conta do todo, mas daquilo que traçamos como metas de

investigação.

Guardamos a serena convicção, naquilo que esteve ao nosso alcance, de ter

permanecido no tema que constituiu a nossa proposição inicial: ‘contribuir, no

âmbito educacional, para a análise crítica de programas televisivos

direcionados ao público infantil’, cuja perspectiva inclui a seguinte

programática:

• analisar as estratégias enunciativas de desenhos animados;

• responder como se constrói a plasticidade do texto audiovisual;

• quais os principais mecanismos geradores de efeitos de sentido dos

programas; como se constrói a interação entre os sujeitos envolvidos no

processo de comunicação/produção de um texto televisivo;

• quais as estratégias de instauração dos sujeitos envolvidos; e

• como os sistemas de produção das forças macroambientais (econômicos,

ideológicos, culturais, estéticos, políticos, geográficos e tecnológicos) atuam

nos modos de produção do texto televisivo.

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Em termos plásticos, a lógica da animação e do meio televisão é a imagem em

movimento. Em função do trabalho a que nos propúnhamos realizar,

precisávamos pesquisar, detalhadamente, as imagens, o que só seria possível

‘congelando-as’. Assim agindo, no entanto, subvertemos a lógica.

Transpondo esse conceito para a vida ‘real’, significa dizer que, por

conseqüência, ‘congelamos’ também a correria do dia-a-dia, a efemeridade de

nosso tempo, a superficialidade de nossas relações, ou seja, acabamos por

subverter a lógica de um dia contemporâneo.

Da mesma forma como ‘congelamos’ as imagens, para analisá-las

detalhadamente, subverter a lógica de um dia contemporâneo significa

estender um olhar crítico e profundo às lógicas que pautam e justificam nossa

inserção e nosso comportamento cotidiano no mundo, o qual, por sua vez,

assim como as imagens, tem no movimento, na rapidez ─ e também na pressa

─ a sua essência.

Subverter a lógica do mundo, para dele abstrair a essência de um dia

contemporâneo, é o mesmo que ‘congelarmos’ uma imagem, para analisá-la

detidamente.

Descobrimos, assim como Rebouças (2003), que, ao analisar desenhos

animados pela semiótica discursiva, cada desenho aponta para um início de

análise.

[...] não existe um direcionamento para o olhar, como na escrita, indicando se começamos da esquerda para a direita, do alto para baixo, das partes para o todo. A maneira de ver, de conduzir o olhar pela plástica da obra, é como a obra, uma construção” (REBOUÇAS,2003,P.13).

Assim, foi a própria plasticidade construída que sinalizou para nós por onde as

análises deveriam começar.

Em Três Espiãs Demais, conseguimos analisar formante por formante,

separadamente, sem perder o sentido do todo. Em Homem Aranha, a

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sonoridade potente impôs todo o ritmo à análise dos demais formantes. Já em

Shamam King, a análise simultânea de figura, topologia e cor contribuiu, mais

eficazmente, para a descoberta dos efeitos de sentido.

Ao longo de nossa preparação, pudemos aprender com os teóricos estudados,

que uma educação emancipadora significa também dar lugar a outros tipos de

linguagens dentro da Educação, como é o caso das linguagens da mídia,

absorvidas pelas crianças durante quase 5 horas por dia!

A par desses estudos, descobrimos que preconizar uma educação

emancipadora significa o enfrentamento de problemas que não se resumem

apenas e tão-somente na veiculação de desenho japonês e/ou americano.

Mais do que isso, falta, acima de tudo, uma política que avalie o percentual

com que os grandes conglomerados internacionais divulgam suas culturas,

preterindo os espaços para produções regionais. Para se ter uma idéia da

dimensão dessa interferência, é preciso que se perceba que, mesmo antes de

aprender literatura regional, as crianças já sabem os nomes dos personagens

americanos e japoneses. Mas esse ainda não é o problema ─ conhecer

prematuramente o Pato Donald ou Tom e Jerry (como eu conheci) ─ e sim, a

tibieza das grades de programação nacional quanto às produções

genuinamente brasileiras.

É preciso, portanto, para se neutralizar essa interferência, que se exiba mais

produções brasileiras, mais ‘Sítios’ (do Pica-Pau Amarelo), mais ‘sacis-

pererês’, mais ‘gruta da cuca’!

No entanto, entendemos que esse não é um problema simples. As crianças já

nascem desterritorializadas em seu próprio espaço. O primeiro território privado

a que têm acesso ─ o seu berço ─ é povoado de brinquedos do tipo ‘Meninas

Superpoderosas’, ‘Batman’, ‘Homem Aranha’, ‘Barbie’, ‘Falcon’, e tantos outros

personagens que a TV veicula, e que, por conseqüência, são vendidos na loja.

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As crianças, então, nascem e crescem já aculturadas por essas interferências

midiáticas, que se tornam, por sua vez, algo muito grave, já que, antes de

aprender a contemplar os museus e as obras de arte, elas preferem contemplar

a vida alheia no ‘orkut’; antes de viajar, ir aos próprios lugares e conversar com

as pessoas, comunicando-se ‘ao vivo’, acham natural relacionarem-se

‘virtualmente’.

O problema, portanto, é entender que a cultura midiática se espalha, e com sua

força simbólica gera sentido na TV, distribuindo, dessa forma, os mesmos

sentidos simbólicos em forma de produtos palpáveis.

É sabido que o combate à influência midiática exercida sobre o público infantil

pelos grandes conglomerados da Comunicação pode ser considerado algo

praticamente impossível.

Em primeiro lugar, isso envolveria ‘pisar no pé’ dos gigantes da indústria de

mídia, que não cobrariam barato pela ousadia, já que não podem arriscar o

seu rico fluxo de caixa com atitudes unilaterais nascidas de um sonho filosófico,

em um país distante qualquer.

Na torrente do caudal financeiro que irriga a agenda pessoal dos executivos

que poderosamente decidem sobre o que o mundo vai assistir, com certeza

‘política educacional’, ou ‘educação infantil’, ou qualquer outra ideologia nobre,

jamais seria considerada. Muito pelo contrário, para que possam continuar

nadando no mar das moedas fortes, toda alienação é bem-vinda. Quanto mais

os grilhões se apertarem, melhor. Dá até para fazer um paralelo com o

populismo político: quanto mais pobreza, melhor!

A coisa se tomou de tal monta, tão intricados são os encadeamentos dessa

máquina poderosa, que podemos dizer que a decisão que projeta tudo isso,

que gera as mais diversas perspectivas, não nasce apenas de uma vertente,

faz parte de um sistema complexo, aliás, mais do que isso, multiplexado, que

não permite acesso, pois um ‘curto’ na parte afeta o todo, e para que isso não

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aconteça defensas poderosas entram em ação.

Trazendo isso para o nosso ‘cantinho tropical’, essas forças gigantescas,

interligadas aos interesses nacionais ─ estes também, por sua vez, hoje

acorrentados com e pelo capital globalizado ─ podem formar um aparato quase

inexpugnável, para sofrear os arroubos de quantos se aventurem incomodá-

los. E quando falamos em ‘interesses nacionais’, estamos falando igualmente

da nossa complicada classe política, sempre permeável aos apelos dessas

grandes potências.

Fecha-se, então, o circuito, e iniciativas que possam interferir nesse sistema

multiplexado são imediatamente rechaçadas. E aí, tanto pelo lado político

quanto pelo terreno econômico, ‘bandeiras’ podem ser levantadas. ‘Políticas

segregacionistas’, ‘fechamento de mercado’, ‘política antiglobalizante’,

‘nacionalismo exarcebado’, entre outras ideologias nascidas do sentimento

nativista, estão entre os primeiros levantes dessa dominante massa midiática.

Mas o país é nosso. As crianças são as nossas. São os nossos filhos – futuros

cidadãos de um país independente ─ que estão sendo alienados na esteira do

capitalismo brutal, que renega e subtrai valores, se isso conduz ao

fortalecimento de suas ações no bolso e na Bolsa, e que faz com nossas

crianças saibam mais dos heróis americanos ou japoneses do que daqueles

que construíram a nossa História.

Pode parecer quase impossível, mas alguma coisa tem de ser feita. Se não

podemos ‘mandar parar’ o planeta mídia, por sermos ‘anões’, quando

comparados aos gigantes, podemos, isto sim, com muito heroísmo, num

esforço sobre-humano, se isso for preciso, cantar bem alto o hino das nossas

ideologias, até criarmos o caldo de cultura necessário para que as coisas

aconteçam.

Para isso não nos falta a inspiração dos grandes Educadores da Humanidade,

Professores, Mestres, Doutores, os quais, com certeza, um dia também

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vislumbraram a concretização de seus ideais, apesar das brumas no horizonte.

Educação emancipadora, portanto, não pode ser apenas mais uma frase vazia,

mas a tradução de ações vigorosas capazes de situarem o estudante diante da

realidade irreversível, a qual, ao mesmo tempo em que o mantém inserido no

contexto, fornece-lhe o instrumental necessário para que faça, com

independência, mas com sabedoria, as suas escolhas; que o permita mesmo

usufruir das novidades do mercado midiático, mas sem se deixar alienar por

outras linguagens, quando estas nada tiverem a acrescentar ao seu cabedal.

Por isso, o nosso objetivo ─ ‘contribuir, no âmbito educacional, para a análise

crítica de programas televisivos direcionados ao público infantil’. Podemos

acrescentar ainda: ‘análise crítica das diversas linguagens midiáticas existentes

e as que, sem dúvida, vão surgir’.

Uma educação emancipadora, emoldurando uma forte preparação crítica nos

primórdios da personalidade ─ nos primeiros anos escolares ─ pode resultar

numa emancipação educada, consciente, liberta de todo e qualquer jugo.

A hora, portanto, requisita de todos nós a busca pela introdução dessa postura

crítica na Escola e, por que não, nos currículos escolares. Promoção de

oficinas, divulgação em seminários, congressos; preparação de professores

diante dessa realidade inexorável; aquisição de todo o aparato técnico

necessário ao bom desempenho do mestre em sala de aula; e tudo o mais que

puder prevalecer para que a educação emancipadora cumpra o seu papel.

Como já dissemos algumas páginas atrás, “[...] ao encerrar o Mestrado, não

pensamos num final, mas, sim, num recomeço. [...]”.

Despedimo-nos, assim, desta Dissertação, com uma historinha de ficção que

fizemos39, e que, como diriam os enunciadores de desenhos animados,

39

O diálogo construído por nós, foi inspirado em semelhante diálogo que a autora Fayga

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começa assim:

“Era uma vez”, em algum lugar, no futuro, numa escolinha no Espírito Santo,

Brasil...

Aluno: Tia, cada um pode ler imagens da televisão?

Professora: Sim, mas dentro daquilo que o programa propõe.

Aluno: Mas, aí vale tudo, basta olhar e já entendemos?

Professora: Não, não basta olhar, é preciso ver.

Aluno: Tia, então temos que aprender a ver televisão?

Professora: Sim, é para isso que estamos aqui, Joãozinho, para aprender, ou

melhor, para reaprender a ver televisão.

Aluno: Mas, qualquer criança já não vê, ainda mais eu que já sou grandinho?

Professora: Você está certo, qualquer criança já vê. Olha, Joãozinho, a tia vai

te contar uma historinha:

“Quando éramos crianças, penso que sabíamos ver, ou, pelo menos, queríamos saber. Tínhamos a curiosidade à flor da pele. Todas as crianças têm. Brincando, estão experimentando e descobrindo o mundo, os materiais e os objetos que existem, as posições em que existem, em que posições poderiam ser colocados, o que de possível se poderia fazer, ou talvez até de impossível. As crianças às vezes são “impossíveis” na sua curiosidade. Mas - e repare se não é assim - nessa abertura diante das coisas, o crescente discernimento que é o desenvolvimento sensível de nossa inteligência, e tudo aquilo que completaria o entendimento de nós mesmos, está sendo desestimulado pela educação que recebemos. Não me refiro à instrução na escola, que pode ser boa ou má. Refiro-me à educação num sentido mais amplo, à formação de nossa mente pelo mundo sensível em nossa volta: pelas formas de trabalho, pelas formas de diversão e lazer- pelos meios de comunicação e pelas palavras e imagens utilizadas, pelas ruas que atravessamos todos os dias, as casas em que moramos, as lojas em que compramos e os próprios objetos que devemos comprar. Aí, tudo é de tal modo ofensivo à sensibilidade, de tamanho desrespeito ao material, o que, em si, nada mais é do que desrespeito ao próprio ser humano, que é espantoso as pessoas não o perceberem”40.

Aluno: Que lindo, tia, a senhora ‘tá’ bem filosófica hoje, hein! Acho que vou

gostar de reaprender a ver televisão. Vai ser o maior barato!

Ostrower manteve com seus alunos operários. 40 Citação completa. Fayga Ostrower. Universos da Arte, 2004,p.47.

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ANEXOS

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ANEXO A A ESCOLA NÃO PARECE TER FUTURO SEM A TELEVISÃO - POR MÁRCIA LEITE Se a intenção é discutir a relação entre infância e mídia, o título deste texto visa provocar algumas reflexões. A escola não parece ter futuro sem a televisão (GÓMEZ, 2001) é uma afirmação aparentemente radical, mas que pode ser confirmada quando constatamos que a mídia em geral e especialmente a televisão fazem parte de modo significativo do cotidiano dos professores, funcionários, alunos e de seus pais. Se a escola é a instituição da modernidade que ocupa o lugar do saber instituído, a televisão faz um deslocamento desse lugar, oferecendo outros espaços de informação e conhecimento. Na sociedade contemporânea ocidental, é possível se considerar ambas como “instituições educativas”, independente da qualificação dessa “educação”. Por mais que a academia venha negando esse papel à TV, este já lhe foi atribuído pelo cotidiano. Cabe agora responder a outra questão: qual é o futuro da escola? Mesmo com todos os discursos hegemônicos voltados para a importância dos investimentos em educação formal, os grandes recursos financeiros estão alocados na mídia, uma consideração que pode nos ajudar a compreender porque a televisão está tão presente na nossa vida. Não se trata, entretanto, de promover uma aproximação interesseira, mas sim necessária, pois a TV modificou definitivamente as percepções dos sujeitos-audiência do século XXI. Ela se apresenta para ganhar a partida dos educadores, a não ser que estes identifiquem os contextos de aprendizagens propícios, ou elaborem estratégias de análise crítica sobre os modos de ver e de gostar da programação. Não se trata de buscar possibilidades para didatizar os programas comerciais, propor apenas a existência de programas educativos ou ter atitudes repulsivas diante da TV, tentativas históricas e equivocadas dessa relação, mas sim de acompanhar os usos que os telespectadores fazem do que assistem, explorando como se constituem por intermédio da TV. Possibilitar que identifiquem as manipulações existentes e os estereótipos, que escutem seus silêncios, notem suas exclusões, e se distanciem da programação. (GÓMEZ, 2001, p.103). Não se trata de criar uma classificação, indicando o que é ou não educativo, o que pode ou não ser visto. Por mais que a academia e a intelectualidade façam isso, as audiências manipulam o controle remoto em função de seus interesses, valores, estruturas afetivas, sociais e culturais. São múltiplas leituras e apropriações, uma para cada leitor/telespectador. A escola está impregnada do discurso televisivo, independente do seu currículo oficial e de seus compromissos com os saberes acadêmicos. Os professores posicionam-se como praticantes e usuários freqüentes da programação veiculada pelos canais comerciais. As novelas são assuntos constantes na hora do recreio, seja nas salas dos professores, seja nos pátios e corredores. Muitas vezes essas discussões aproximam os professores da vida e do interesse dos alunos e dos outros professores, humanizando essas relações. É preciso ver e sentir o cotidiano das salas de aula com todas as suas cores e nuances e não apenas pelas estratégias formais que as constituem. E para que isso aconteça é fundamental instaurar uma cultura crítica da visualidade eletrônica, isto é, dar empoderamento às audiências, dar voz aos indivíduos e seus grupos, discutindo o que assistem, como e por que o fazem. Mesmo querendo melhorar a qualidade da nossa programação televisiva, não é possível almejar de modo idealista que todas assumam uma programação educativa, ainda que afirmem isso em seus discursos e propostas. Por mais que ocupemos os espaços políticos como sociedade civil organizada e consigamos modificar este quadro, precisamos, como educadores, planejar a desconstrução pedagógica da televisão (GÓMEZ, 2001), nos preocupando mais com as televidências, as mediações, tornando mais claro os discursos em jogo. Nada melhor para isso do que dar voz e autoria aos alunos conhecendo suas representações e identificações de si próprios, das pessoas e das coisas do mundo. Márcia Leite - Diretora da Escola Oga Mitá/ Gerente de Cultura e Lazer do SESC-DM (texto originalmente publicado no livro 2, do projeto Conversa de Crianças. Núcleo de Publicações da MULTIRIO) http://www.multirio.rj.gov.br/portal/riomidia/rm_materia_conteudo.asp?idioma=1&idMenu=5&label=Artigos&v_nome_area=Artigos&v_id_conteudo=64381 acesso em 18/03/2006

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ANEXO B A CRIANÇA NA IDADE MÍDIA: DESAFIOS PARA A FORMAÇÃO DO EDUCADOR Solange Jobim e Souza. Psicóloga, Doutora em Educação. Docente do Departamento de Psicologia da PUC-Rio e da Faculdade de Educação da Uerj. A revolução tecnológica nos coloca um desafio fundamental, ou seja, o de compreendermos que estamos diante do surgimento de uma outra cultura, que exige de nós uma adaptação nos modos de ver, de ler, de pensar e de aprender. Não se trata, portanto, de usar a tecnologia como modo de expandirmos as antigas formas de ensino-aprendizagem, ou termos a mídia na escola como meio para amenizar o tédio do ensino, mas trata-se de um modo radicalmente novo de inserção da educação nos complexos processos de comunicação da sociedade atual. Reivindicar a presença da cultura audiovisual na escola não é descartar a cultura letrada, mas integrá-la, incentivando o diálogo profícuo entre variados modos de construção do saber que circulam entre nós. O livro, em vez de segregar ou de se fechar em si mesmo, deve se integrar neste novo processo de constituição do saber, abrindo espaço para a realização das múltiplas escrituras. Portanto, a transformação nos modos como circula o saber é a questão fundamental na atualidade, exigindo das gerações precedentes o esforço para incorporar novos hábitos de produção de conhecimento que escapam dos lugares sagrados – o livro e a escola - que antes continham e legitimavam o saber. A escola precisa enfrentar e questionar a profunda reorganização que vive o mundo das linguagens e das escritas, reformulando a obstinada identificação da leitura com o que se refere somente ao livro. Hoje é imprescindível levarmos em conta a pluralidade e heterogeneidade de textos, relatos e escrituras (orais, visuais, musicais, audiovisuais, telemáticos) que circulam entre nós. Esta atitude tem implicações políticas graves, à medida que a exclusão social na contemporaneidade passa, necessariamente, pelo acesso das populações marginalizadas aos novos modos de obter e gerar conhecimento. À medida que as crianças mais abastadas entram em contato com os aparatos tecnológicos no contexto da família, a escola se constitui, em nossa realidade social, especialmente para as crianças pobres, o espaço privilegiado de acesso às novas formas de conhecimento que a tecnologia prefigura. A produção do conhecimento não dispensa a nossa capacidade de dialogar com os aparatos tecnológicos, incentivando as pessoas a construírem, com eles, novas possibilidades de usos, submetendo as máquinas ao nosso poder e desejo de inventar outros jogos ainda não revelados na prática. Trata-se, portanto, de criarmos, por meio da educação, modos de confronto com a experiência tecnológica, colocando tanto educadores como educandos na posição de se sentirem responsáveis por inventar outras estratégias de interação na produção de conhecimento. Isto significa dizer que a educação mediada pela tecnologia é um jogo, pois cada vez mais as máquinas se transformam em aparatos para recuperarmos a dimensão lúdica na produção do conhecimento, que é, de fato, também trabalho. A relação jogo e trabalho no contexto da tecnologia se transforma de modo radical. A criança não teme a tecnologia porque para ela, desde o princípio, os aparelhos são máquinas de jogar, são brinquedos. No brincar a criança inventa o jogo, cria sempre novos lances e desafia a máquina experimentando com ousadia e curiosidade os resultados que desencadeia. Já o adulto não consegue a mesma descontração porque a máquina, tomada como mediadora do trabalho sério, perde todo o encantamento e a magia que a criança é capaz de alcançar. Cabe ao educador aprender esta postura com a criança e construir junto com ela, sem deixar de lado a sua experiência como adulto que vê o mundo de uma determinada maneira, modos mais criativos para enfrentarmos os desafios que a tecnologia nos impõe. O confronto entre gerações amplia o campo das experiências criadoras, pois o saber da criança, em contato com o conhecimento do adulto, configura um clima de autêntica liberdade nos modos de ser, agir e conhecer. Aprender a ver o mundo com outros olhares, resgatando sua condição de diversidade, é formar leitores de imagens que sabem dar um sentido estético e ético ao modo como produzimos conhecimento na contem-poraneidade. Este é um dos maiores desafios para a educação nos dias atuais. Obras consultadas

• FLUSSER, Vilém Ensaio sobre a fotografia. Para uma filosofia da técnica. Lisboa: Relógio D’ água, 1998.

• JOBIM E SOUZA, Solange. Sub-jetividade em questão. A infância como crítica da cultura. Rio de Janeiro: 7 letras, 2000.

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MARTÍN-BARBERO, Jesus, REY, Germán. Os exercícios do ver. Hegemonia audiovisual e ficção televisiva. São Paulo: Senac, 2001.

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211

ANEXO C

AUDIÊNCIA INFANTIL EM QUESTÃO Como definir audiência tendo como referência o público infantil? Creio que começar se indagando sobre um conceito de audiência infantil seria uma estratégia interessante. Quando adotamos uma perspectiva de análise em que a noção de criança é compreendida na sua relação com a cultura e com o lugar social e histórico que ela ocupa, não podemos deixar de considerar que a categoria “infância” é constituída, na atualidade, a partir da relação que a criança estabelece com os produtos da mídia. Entretanto, esta relação não se dá de forma passiva, pois a criança é um agente ativo que consome e produz cultura. Faz-se necessário investigarmos as experiências das crianças com os produtos da mídia e não apenas julgá-las por sua capacidade ou incapacidade de utilizar e compreender a mídia do modo como o adulto a compreende e julga. Esta perspectiva de análise conduz a um duplo questionamento, qual seja: por um lado, nos indagamos como a mídia constitui a audiência infantil; por outro, perguntamos como se dá a negociação entre a criança e a mídia, na medida em que as crianças são participantes ativas no processo de constituição de significados. Esta reflexão conduz a indagações sobre o modo como o conceito de audiência infantil se estrutura e a partir de que elementos, ou como as crianças se definem a si próprias como audiência. Ora, ao invés de partirmos de uma compreensão de audiência infantil como algo pré-existente, passamos a ver este conceito como contingente, provisório e em permanente construção. Isto significa dizer que a audiência infantil é produto de uma negociação entre o público e os diferentes discursos que circulam e se manifestam, em vários níveis, no contexto da experiência da criança com a mídia, quais sejam: o discurso da produção, o discurso das políticas de regulamentação, o discurso das pesquisas, a escolha dos conteúdos, a formatação dos textos em roteiros, as mediações feitas pela família e pela escola, etc. Vale dizer que nenhum destes discursos é um determinante isolado, mas a interação entre eles, no contexto das práticas sociais, é responsável pela constituição do que denominamos “audiência infantil”. Assim sendo, podemos afirmar que mudanças no comportamento da audiência provocam mudanças nas instituições responsáveis pelos produtos de mídia, e vice-versa. Entretanto, é importante ressaltar que um dos fatores fundamentais neste processo é o diálogo, no âmbito da família e da escola, sobre os produtos culturais veiculados pela mídia para crianças e adolescentes, desenvolvendo discussões que incluem referências éticas e estéticas pautadas na formação de valores que trazem à tona concepções variegadas de “beleza” e de “verdade”. Em contraposição, este diálogo deve fundamentar o questionamento de valores divulgados, em geral, pela mídia, e que se orientam pelo fortalecimento da cultura do consumo e pelas leis do mercado, que, via de regra, são os responsáveis financeiros pela veiculação de produtos de mídia de baixa qualidade, mas com larga audiência. Esta abordagem nos leva a colocar em questão o termo “poderes da audiência”, uma vez que este pode suscitar um posicionamento maniqueísta que tende a uma compreensão da audiência ou como auto-suficiente e crítica, ou como pobre de fundamentos e incapaz de analisar criticamente e de forma autônoma aquilo que se oferece como produto da mídia, portanto, uma audiência passiva e manipulada. Esta vertente de análise é responsável por algumas explicações tanto ingênuas quanto fatalistas, as quais admitem que a baixa qualidade de alguns produtos televisivos está sendo incentivada pelo mau gosto e pela incompetência do público, culpando, portanto, o público de modo isolado e unilateral pelos altos índices de audiência dos programas que deveriam ser questionados, quando os consideramos sob o ponto de vista de uma ética que pretende salvaguardar a experiência da criança dos abusos da mídia. À medida que superamos o posicionamento dicotômico sobre a compreensão do que é a audiência, e admitimos que a audiência é um fato histórico, mas também social e cultural, nos acercamos de uma abordagem que situa o compromisso político de todos e de cada um no processo de constituição tanto do público qualificado e exigente como da mídia de qualidade. Audiência e mídia são dois momentos distintos de um mesmo processo de constituição da mídia de qualidade. Assim, a compreensão de um conceito de “audiência infantil” deve supor uma organização social que desenvolva compromissos políticos com os diferentes setores da sociedade, com vistas a alcançar um objetivo comum: mídia de qualidade e audiência exigente e qualificada para exercer a crítica. Deste modo, nos parece mais adequado falar dos poderes da mídia em relação ao poder e ao direito da audiência de exercer a crítica, ou seja, uma audiência que se constitui no desejo e no direito de transformar a mídia. Nosso desafio maior. * Solange Jobim e Souza - Coordenadora do Comitê dos Pesquisadores da 4ª Cúpula Mundial de Mídia para Crianças e Adolescentes

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ANEXO D AS CRIANÇAS E OS PROGRAMAS DE TV Desde minha primeira pesquisa com crianças e adolescentes, feita em escolas públicas do município do Rio de Janeiro, na década de 80 (e que está publicada no livro “O Mito na Sala de Jantar”, Ed. Movimento, Porto Alegre, 1993, 2ª edição), tenho observado que as crianças cada vez mais participam abertamente do mundo dos adultos, de modo muito particular a partir de sua experiência como espectadores de TV. Essa tendência, porém, não é específica da relação desse público com os produtos da mídia: ela está na sociedade como um todo, que sugere a antecipação da vida adulta de meninos e meninas de seis, oito, dez anos, que muito cedo já adquirem uma performance de gente mais velha, no modo de vestir, no linguajar, etc; falam em dieta, em cirurgia plástica, em alisamento de cabelo, em conquistas amorosas. As questões relativas à sexualidade, aos embates da experiência amorosa, bem como a angústia em relação ao futuro, a “sair-se bem na vida”, e tantas outras, são intensamente tratadas na programação televisiva, especialmente nos programas citados em recente pesquisa divulgada pelo Jornal O Globo. (Os programas mais assistidos pelas crianças de 4 a 11 anos, no último mês de janeiro, foram: Senhora do Destino, Big Brother Brasil, Tela Quente, Festival Nacional e Zorra Total). A curiosidade em relação aos temas adultos seria, a meu ver, algo sem maiores problemas. O que sucede é que a própria televisão inclui - na programação supostamente adulta - elementos próprios do mundo infantil. O que dizer, por exemplo, da infantilização dos jogos propostos aos jovens confinados do Big Brother Brasil? Eles brincam como crianças, mas as brincadeiras são misturadas a práticas perversas de utilitarismo em relação às pessoas, de acirrada competição, de uso indiscriminado do corpo e da afetividade. A meu ver, aí é que mora o perigo: aprende-se (as crianças e todos nós) um modo de existência calcado fundamentalmente no uso e no abuso do outro. As telenovelas tratam também dessas temáticas. Os esquetes dos programas de humor, igualmente. E a criança encontra ali, sobretudo, o jogo, a seqüência engraçada, ao mesmo tempo em que pode ter simbolicamente acesso, sem nenhuma interdição, ao quarto dos pais, ao casal por baixo do cobertor, a todas as discussões sobre encontros e desencontros sexuais e amorosos, sem que se faça, em muitos casos, qualquer mediação (muitos pais sequer se dão conta de que no mínimo seria importante discutir aquilo que estão vendo em casa, com os filhos). É importante lembrar que as crianças gostam também dos programas feitos especialmente para elas. Elas vêem de tudo. Se oferecermos a elas programas inteligentes, criativos, com temáticas e tratamentos próprios do mundo infantil, certamente elas assistirão. Mas isso ainda é raro nas nossas emissoras de televisão, com poucas exceções. Tive a oportunidade de participar da equipe de criação de um programa infantil, no final da década de 80, na TV Educativa do Rio de Janeiro, o “Canta Conto”, apresentado pela atriz e música Bia Bedran. O programa era muito simples, mas muito bem feito. Era pura literatura e música da melhor qualidade para crianças. E foi, na época, o programa de maior audiência da TV Educativa, no mesmo período em que a Xuxa estourava na Rede Globo. Há espaço para todo o tipo de programação. Mas a realidade brasileira é essa: a maioria da população tem acesso aos canais abertos, em que o cuidado com a criança é apenas item de “bom-mocismo” das propostas ditas educativas dessas grandes emissoras, como se vê na novela teen “Malhação”. Penso que é bastante difícil esperar das grandes emissoras uma revolução quanto à melhoria do que se oferece às crianças. Aposto na educação e formação dos comunicadores jovens, bem como nos trabalhos marginais que podem ser feitos nas escolas, de produção de vídeos com crianças, de debates sobre filmes e programas de TV, e ainda na formação dos professores e dos pais, para conduzir da melhor forma esse cotidiano em que as crianças se educam pobremente por meio dos Zorras e BBBs da vida. Há tanta beleza e tanta diversidade de modos de vida jamais mostrados na TV. Quando nossos comunicadores terão sensibilidade para captar isso? Por que não multiplicar peças como “O Auto da Compadecida” nas nossas televisões? Acho que os educadores precisariam selecionar esses raros materiais e mostrar para as crianças, exibir essas maravilhas, de modo que elas aprendam a gostar também de outras linguagens, outras histórias, outros modos mais humanamente ricos de existir. Rosa Maria Bueno Fischer. Jornalista, doutora em Educação e professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). http://www.multirio.rj.gov.br/riomidia/ Acesso em 07.03.2005

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ANEXO E

BRASILEIRO CONSOME 18,4H DE TV POR SEMANA Pesquisa divulgada no ano passado pelo Instituto NOP World revela o quanto a televisão está presente no dia-a-dia do Brasil. O estudo mostra que os brasileiros gastam com televisão mais do que o triplo de tempo que passam lendo. Em uma semana, são 18,4 horas em frente à TV e 5,2 diante dos livros. O uso do rádio e da internet também superam a do livro. Para a primeira mídia, são gastas por semana 17,2 horas e para a segunda, 10,5 horas. O levantamento avalia o consumo de 30 países, entre eles Egito, Argentina, Itália, Rússia, Canadá, Estados Unidos, Venezuela, México, Austrália, Coréia e Japão. No consumo de televisão, o país ocupa o 8º lugar. Com relação à internet, está em 9º. Quando o assunto é rádio, o Brasil pula para a 2ª posição. No ranking mundial de consumo de leitura, o país aparece em 27º lugar, à frente apenas de Taiwan, Japão e Coréia. A pesquisa, realizada entre dezembro de 2004 e fevereiro de 2005, entrevistou 30 mil pessoas a partir dos 13 anos de idade. Confira os dez primeiros 'consumidores' de cada mídia: Televisão / horas por semana 1º - Tailândia – 22,4 2º - Filipinas – 21,0 3º - Egito – 20,9 4º - Turquia – 20,2 5º - Indonésia – 19,7 6º - Estados Unidos – 19,0 7º - Taiwan – 18,9 8º - Brasil – 18,4 9º - Reino Unido – 18,0 10º - Japão – 17,9 Rádio / horas por semana 1º - Argentina – 20,8 2º - Brasil – 17,2 3º - África do Sul – 15,0 4º - República Tcheca – 13,5 5º - Tailândia – 13,3 6º - Turquia – 13,3 7º - Polônia – 12,5 8º - Hungria – 12,1 9º - Alemanha – 11,5 10º - Austrália – 11,3 Leitura / horas por semana 1º - Índia – 10,7 2º - Tailândia – 9,4 3º - China – 8,0 4º - Filipinas – 7,6 5º - Egito – 7,5 6º - República Tcheca – 7,4 7º - Rússia – 7,1 8º - Suécia – 6,9 9º - França – 6,9 10º - Hungria – 6,8

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27º - Brasil – 5,2 Internet / horas por semana 1º - Taiwan – 12,6 2º - Tailândia – 11,7 3º - Espanha – 11,5 4º - Hungria – 10,9 5º - China – 10,8 6º - Hong Kong – 10,7 7º - Polônia – 10,6 8º - Turquia – 10,6 9º - Brasil – 10,5 10º - Egito – 10,3 http://www.multirio.rj.gov.br/riomidia/ em 03/02/2005

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ANEXO F CONAR ESTABELECE NOVAS REGRAS PARA PROPAGANDA INFANTIL Desde o dia 1 de setembro, entraram em vigor as novas regras para as propagandas voltadas para o público infanto-juvenil estabelecidas pelo CONAR (Conselho de Autoregulamentação Publicitária). Elas condenam o uso de verbos no imperativo, anúncios que provoquem qualquer tipo de discriminação e dêem idéia de superioridade por meio da aquisição do produto. “As mudanças foram feitas para impor limites aos exageros de algumas veiculações que desrespeitavam a dignidade do público-alvo”, comenta Paulo Gusmão, presidente do Sindicato das Agências Publicitárias do estado de Sergipe. Frases como “Não dá para ficar sem”, “Peça para o papai comprar” e “Faça como eu: use...” estão proibidas a partir de agora. As antigas táticas das indústrias para atingir o público infanto-juvenil perderam espaço no mercado, mas novas formas de promover o mesmo impacto estão sendo estudadas. “A nova proposta pode até ser um dificultador, porém não acredito que possa prejudicar a venda dos produtos. A função do publicitário é buscar meios que atinjam diretamente o público-alvo e nós vamos conseguir isso”, afirma Thiago Souza, professor de Publicidade da Universidade Tiradentes. As novas regras para a regulamentação da propaganda direcionada ao público infanto-juvenil estão disponíveis no site do CONAR. Na página, o consumidor que se sentir ofendido pode denunciar o comercial abusivo, mas a denúncia não pode ser anônima. O CONAR NÃO PERMITE

• Provocar situações de constrangimento com o propósito de impingir o consumo; • Impor a noção de que o consumo proporcione superioridade ou inferioridade; • Peças publicitárias que associem a criança ou o adolescente a situações ilegais,

perigosas ou socialmente condenáveis; O uso de apelos imperativos de consumo dirigido diretamente a crianças e adolescentes como “Peça para a mamãe comprar”. Por Jéssica Vieira [email protected] http://blog-contexto-ufs.blogspot.com/2006/09/conar-estabelece-novas-regras-para.html Acesso em 25/10/2006

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ANEXO G FISCALIZAÇÃO JÁ A ditadura da televisão - Mariana Czekalski (*) Sabemos que a televisão é o meio de comunicação mais abrangente e popular no Brasil. Não é por acaso que 97% da população com mais de 10 anos no país assiste à TV pelo menos uma vez por semana, segundo pesquisa realizada pelo Instituto Ipsos-Marplan. A baixa escolaridade e a conseqüente falta do hábito de leitura, além dos preços das publicações impressas, são alguns fatores que explicam a força da televisão tanto no Brasil como na América Latina. Mas é incrível que, mesmo com o elevado nível de sensacionalismo, apelação e violência na telinha, o Ibope se mantenha alto na maioria dos programas. Eles subestimam a capacidade intelectual e a paciência do telespectador, ignoram a dignidade humana, ao levar ao ar produtos repetitivos e vazios de conteúdo. Exemplos como Faustão (Rede Globo), há 15 anos no ar, Gugu Liberato (SBT), que chegou a divulgar falsas entrevistas com supostos criminosos, Márcia Goldschmidt (Bandeirantes), simulando brigas e discussões familiares, e Ratinho (SBT), o "rei da baixaria", são campeões em nivelar a programação a patamares tão baixos. Ética e bom senso O assunto foi abordado pela revista Carta Capital (3/11/2004), que divulgou matéria interessante sobre a problemática. Freqüentemente, as emissoras, em nome da liberdade de expressão, relativamente recente no país, caracterizam a era da mídia às avessas, pelo extremo oposto, a ditadura da televisão. A maioria extrapola os limites e justifica seus próprios erros por se considerarem porta-vozes da democracia. Estamos cansados desta lavagem cerebral eletrônica de besteirol. A onipotente televisão aberta precisa ser reciclada para respeitar o telespectador que, antes de ser um consumidor de produtos e ideologias, é um cidadão. Parece estar ultrapassado o velho dilema alegado pelas televisões, de que a audiência sinaliza o que o povo quer assistir. Será que este mecanismo é realmente transparente? Será que não ocorre justamente o contrário, ou seja, são poucas opções nos canais abertos que oferecem uma programação de qualidade? Não estamos levantando a bandeira do moralismo ou da censura, mas ética e bom senso. Certamente a Ancinav é um retrocesso, mas chegamos a um ponto em que é preciso um órgão que fiscalize o que é veiculado e que selecione o horário de veiculação. Isso para que as massas tenham acesso a programas como os da TV Cultura, da Globo News e do Canal Futura, voltadas à prestação de serviço, educação e entretenimento. (*) Jornalista, escritora e professora http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos.asp?cod=316TVQ003 ACESSO EM 27/01/2006

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ANEXO H MEC: TV É PRINCIPAL FONTE DE INFORMAÇÃO PARA 90% DOS PROFESSORES A diretora de produção e capacitação da Secretaria de Educação à Distância (SEED) do Ministério da Educação, Carmen Moreira de Castro Neves, revelou dados interessantes sobre a relação dos professores da rede pública com a TV durante o Seminário Satélites 2004, que aconteceu em São Paulo entre os dias 1 e 2 de setembro. Segundo dados da SEED, cerca de 90% dos professores das escolas públicas brasileiras têm na televisão a principal fonte de informação, através dos telejornais; apenas 50% das mais de 155 mil escolas possuem linha telefônica, 48 mil têm pelo menos um computador, e 19,6 mil têm acesso à Internet. De acordo com Carmen Moreira, para um país com a extensão do Brasil, o uso do satélite para o ensino à distância é ideal, e se faz cada vez mais necessário. Ela ressaltou ainda que não basta aos professores ter acesso à televisão, pois o aprendizado à distância exige dedicação, superação de obstáculos e investimentos. Um exemplo das dificuldades já enfrentadas pelos professores nesse processo foi a resistência ao programa TV Escola, do Ministério da Educação, lançado em 1996, pela crença de que a TV poderia substituir o educador. Após superar o receio e reconhecer que a televisão pode ser uma aliada da educação, resta enfrentar os problemas materiais: falta de recursos, de equipamentos e infra-estrutura. A resolução destes problemas depende do montante de verbas do orçamento da União que é disponibilizado para o Ministério da Educação. Neste ano a verba para o ensino à distância girou em torno de R$30 milhões, que deveria cobrir os gastos com infra-estrutura e capacitação de gestores, professores, técnicos e alunos. O Congresso encaminhou no dia 31 de agosto a proposta orçamentária para 2005, que prevê aumento de 43% em relação à 2004. Segundo a proposta, o orçamento de 2005 seria de R$2 bilhões contra os R$1,4 bilhão disponibilizados em 2004. De acordo com a SEED, todas as escolas da rede pública já deveriam ter acesso à Internet e ao sistema de ensino à distância. O entrave se deve aos altos custos dos procedimentos envolvidos no ensino à distância, e à inconstância na remessa dos recursos disponíveis. Segundo Carmen Moreira, as verbas costumam ser liberadas sem uma periodicidade regular, o que dificulta a execução de um trabalho sistemático com planejamentos de médio e longo prazo. (Fonte: Tela Viva)

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ANEXO I POR QUE AS CRIANÇAS ASSISTEM DESENHOS ANIMADOS A participação dos pais junto ao que a criança assiste na TV é fundamental. No entanto, acho que ela não deve se limitar à definição de restrições em termos do que a criança pode ou não pode ver. O mais interessante nessa participação A participação dos pais junto ao que a criança assiste na TV é fundamental. No entanto, acho que ela não deve se limitar à definição de restrições em termos do que a criança pode ou não pode ver. O mais interessante nessa participação é o diálogo.é o diálogo. Por que as crianças se encantam com o desenho animado? Para as crianças, o ato de assistir à TV envolve muito mais jogo, brincadeira, ação e movimento do que uma atitude tradicional de telespectador diante da telinha. A afirmação é de Raquel Salgado, professora da área de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), que estuda a relação das crianças com os desenhos animados. De acordo com a sua tese de doutorado "O brincar e os desenhos animados: um diálogo com os super-heróis mirins", a diferença mais visível dos heróis-mirins de hoje em relação aos super-heróis do passado, como Batman, Superman e Mulher Maravilha, é que os atuais são crianças superpoderosas e muito mais próximas da realidade do nosso dia-a-dia. “São crianças e heróis que vão à escola, recebem bronca dos pais, ficam de castigo, desobedecem, reclamam por carinho e atenção e burlam as leis dos adultos. Mas, ao mesmo tempo, são crianças e heróis capazes de grandes feitos, como salvar a cidade de inimigos poderosos, criar maquinarias e aparatos eletrônicos que permitem comunicações interplanetárias”. Embora acredite que haja uma dimensão educativa nos desenhos, a pesquisadora destaca que os produtores de desenhos animados estão interessados, muito mais do que educar, em propor desafios às crianças e desconstruir papéis estabelecidos. O que, na sua avaliação, é necessário e instiga cada vez mais as crianças a assistirem aos desenhos. Acompanhe a entrevista: RIO MÍDIA - Por que as crianças gostam de desenhos animados? Raquel Salgado - O sucesso dos desenhos animados entre as crianças não é um fenômeno recente. Desde a década de 60, eles são os programas favoritos da garotada. Esse sucesso se deve ao fato dos desenhos terem como uma de suas principais características a linguagem lúdica. Costumo dizer que os desenhos, em geral, são convites às crianças para o jogo. Mais do que um entretenimento televisivo, eles carregam discursos, seja por meio dos personagens ou de suas aventuras que podem ser traduzidas em jogos e brincadeiras. Atualmente, essa relação entre o desenho animado, o jogo e a brincadeira da criança está cada vez mais visível. Na nossa realidade midiática, não há como separar o desenho que passa na TV dos games eletrônicos e dos jogos disponíveis no mercado. Em uma linguagem totalmente multimídia, a criança hoje assiste ao desenho e brinca com ele, jogando um game ou manipulando os bonecos de seus personagens. No trabalho de pesquisa que desenvolvi com crianças pequenas (de 4 a 6 anos), já pude observar que há crianças que brincam enquanto assistem aos desenhos. Para elas, a ação de assistir à TV envolve muito mais jogo, brincadeira, ação e movimento do que uma atitude tradicional de telespectador diante da telinha. RIO MÍDIA - Os desenhos animados podem ser vistos como instrumento pedagógico para transmitir valores éticos e modelos de comportamento? Raquel Salgado - Há uma dimensão educativa nos desenhos animados, principalmente se considerarmos o aspecto ético dos valores que podem ser construídos quando a criança interage com eles. Isto, por outro lado, não pode se confundir com um tipo de pedagogia diretiva, onde o desenho animado traz valores e modelos determinados que serão copiados pela criança, no sentido de afetar e modelar sua conduta. Entendo que os desenhos têm coisas a dizer para as crianças. Eles trazem uma visão do que é ser criança no mundo em que vivemos e de como o adulto vê a criança, a brincadeira e o jogo infantil. No entanto, essas visões não são definitivas. Essas visões ganham vida no momento em que a criança as interpreta a seu modo e, com elas e a partir delas, constitui seus valores e formas de se inserir na vida social. RIO MÍDIA - Existe alguma preocupação dos produtores de desenhos animados em criar histórias com mensagens politicamente corretas? Raquel Salgado - É muito comum os adultos definirem o que é importante e bom para a criança ver na TV. Em geral, os critérios se baseiam em concepções pedagógicas orientadas por princípios psicológicos sobre o desenvolvimento e a aprendizagem. Sem desconsiderar o valor educativo que isso tem, até porque sempre são os adultos que produzem, criam e definem os programas de TV, os livros, os brinquedos e todos os outros produtos culturais que as crianças consomem, acho muito mais interessante

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tentarmos saber o que as crianças gostam ou gostariam de ver na TV e que sentidos elas estão construindo ao consumirem esses produtos. Em relação à produção dos desenhos animados, não saberia dizer se esta preocupação existe entre os produtores. Acho que a perspectiva da criança como consumidora, exigente e ícone da nova geração, é o que se coloca como critério no campo da produção de mídia. Muito mais do que educar a criança, os produtores de desenhos animados estão interessados em propor desafios aos pequenos e desconstruir papéis estabelecidos. RIO MÍDIA - Quem são os atuais modelos/heróis dos desenhos animados? RIO MÍDIA - Os heróis de hoje são diferentes dos heróis do passado? Raquel Salgado - Talvez a diferença mais visível dos heróis-mirins de hoje em relação aos super-heróis do passado, como Batman, Superman e Mulher Maravilha, seja o fato dos atuais serem crianças superpoderosas, mas próximas da realidade do nosso dia-a-dia. Eles vão à escola, recebem bronca dos pais, ficam de castigo, desobedecem, reclamam por carinho e atenção, burlam as leis dos adultos, mas, ao mesmo tempo, são capazes de grandes feitos - impossíveis para os adultos -, como salvar a cidade de inimigos poderosos, criar maquinarias e aparatos eletrônicos que permitem comunicações interplanetárias, manipular com maestria os segredos do mundo virtual, viajar pelo mundo em busca de aventuras com seres estranhos sem a presença e o suporte dos adultos. Essa mescla de realidade com fantasia, tendo a criança como o eixo dos feitos heróicos, talvez seja o ingrediente especial que faz com que os desenhos animados atuais tenham uma estreita conexão com o imaginário infantil. Além disso, a autonomia e a independência que esses pequenos heróis apresentam em relação aos adultos despertam, e muito, o interesse das crianças. RIO MÍDIA - Os pais devem se preocupar com o que os seus filhos assistem e com os seus heróis? Raquel Salgado - A participação dos pais junto ao que a criança assiste na TV é fundamental. No entanto, acho que ela não deve se limitar à definição de restrições em termos do que a criança pode ou não pode ver na TV. O mais interessante nessa participação é o diálogo entre pais e filhos como possibilidade de negociar sentidos, valores e conhecimentos sobre o que se assiste na TV. É óbvio que nós adultos temos opiniões e formas de olhar para um programa que são diferentes dos olhares das. Muito mais importante do que convencer a criança a ver uma coisa e não ver outra na TV é trocar os muitos sentidos possíveis sobre o que se assiste na TV. RIO MÍDIA - Como você avalia a questão do consumo de mercadorias relacionada aos desenhos animados? Raquel Salgado - A conexão entre desenho animado e merchandising é muito intensa. A cada novo desenho lançado na TV, um boneco, um game, um tênis, uma blusa, uma mochila e uma infinidade de produtos são lançados no mercado. Sem dúvida, a meta que se coloca é o consumo, e o consumo desse pequeno cidadão que é a criança. Para melhor ilustrar essa relação e como a criança a vive, trago aqui uma discussão que surgiu no grupo de crianças com o qual trabalhei. Ao brincar com o jogo de carta do Yu-Gi-Oh! (desenho animado), as crianças estabeleciam quem poderia ou não participar. Os meninos que tinham os decks (baralhos) dos personagens dos desenhos diziam que aqueles que não assistiam ao desenho animado não podiam jogar, assim como aqueles que não tinham os decks não podiam opinar sobre o desenho. Tanto o desenho quanto os aparatos do jogo funcionam como pré-requisitos para participar de um mundo ou de outro, tanto do jogo quanto do desenho propriamente dito. O consumo, neste caso, é uma regra de inclusão e exclusão. É o ingresso necessário para entrar e participar dessas esferas sociais. De fato, temos aí uma relação problemática que envolve uma dimensão ética de como o requisito do consumo passa a ser para a criança um valor que define as relações sociais que ela estabelece com o outro. Esta é uma questão importante para a educação do nosso tempo que nos leva a pensar em formas de intervenção junto às crianças e que possam suscitar espaços de reflexão e diálogo sobre o que consumir significa para as nossas vidas.

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ANEXO J REFLEXÕES SOBRE CRIANÇAS E O HORÁRIO NOBRE NA TV O fim das férias de verão trouxe uma estatística importante para quem se preocupa com as crianças brasileiras de 4 a 11 anos e o que elas gostam de ver na TV aberta, em horário nobre. A novela de maior audiência (Senhora do Destino), que terminou há pouco na Globo, era a preferida. Em seguida vinham o Big Brother Brasil e os filmes apresentados pelo mesmo canal. Aos sábados, nossa criançada eleva também a audiência do humorístico Zorra Total. As crianças não apontam os programas jornalísticos, os de auditório, os de entrevistas e os que apresentam documentários como seus favoritos, embora eles também sejam exibidos no horário nobre. O levantamento deixa claro também o tempo valioso que as crianças, entrevistadas pelo Ibope, passaram diante da TV nas, quando poderiam estar envolvidas em outras atividades. Estes dados apontam algumas questões que merecem discussão e tomada de decisões, pelo menos por parte das famílias e dos responsáveis pela produção e programação da TV aberta. Dois aspectos chamam nossa atenção. Primeiro: as crianças estão, na maior parte das vezes, acompanhadas de adultos que, em geral, são os que decidem o que é assistido. Segundo: o público infantil manifesta preferência por programas que apresentam algum tipo de narrativa e bom humor. Esta análise inicial permite que confirmemos, mais uma vez, a importância que a narrativa de histórias, por meio de produtos audiovisuais, têm para os seres humanos de qualquer idade. Conhecer, compreender e desvendar as relações e os conflitos humanos, identificar-se com personagens e constituir conhecimentos e valores é uma atitude vital e indispensável em nossa sociedade. Tem, inclusive, um efeito catártico para as frustrações, desejos ou ambições de um alto número de telespectadores, entre eles, nossas crianças. Novelas, por mais folhetinescas que sejam, trabalham com a matéria-prima da vida, em todas as suas nuances e desdobramentos, e mesmo um reality show, apesar da sua aparência tosca e medíocre, narra a saga de heróis, heroínas ou vilões em busca de vitórias e prêmios. Isto só se alcança por meio da imaginação, da argúcia, da atenção, da vingança, do ardil, da dominação, da traição e também da superação do fracasso, da solidão, da pobreza e do sofrimento, em direção ao estrelato e à fama, nem que seja por 15 minutos, ou longas semanas e meses. Rir, mesmo que do ridículo e do grotesco, alivia tensões e diverte. Crianças mais novas, ainda sem uma visão crítica desenvolvida, são presas fáceis do humor barato, com apelo popular. Não se pode esquecer ainda que tudo que se vê e ouve no horário nobre é permeado pela venda avassaladora de produtos que atribuem sucesso e modernidade a quem os adquire ou os deseja, mesmo sem poder comprá-los. Várias pesquisas evidenciam que a produção audiovisual tem o poder de estimular os dois lados do cérebro: o tecido neocortical, responsável pelas funções superiores do raciocínio, tais como a constituição do significado de palavras e ações; e o sistema límbico articulador dos instintos, da intuição, dos desejos, afetos e emoções. O cérebro das crianças é por isto cooptado, com facilidade, pelos programas de TV, que tanto exercem atrações sobre seu raciocínio, quanto sobre seus sentimentos, desejos e afetos. O professor Geoff Beattie, do Departamento de Psicologia da Universidade de Manchester, na Inglaterra, constatou que as pessoas retêm mais informação quando esta é apresentada por meios audiovisuais, que lidam com aspectos prazerosos. Esta tese também é comprovada em outros estudos realizados ao longo dos últimos anos, nos Estados Unidos e na Escandinávia, onde foram pesquisados programas de televisão de alta qualidade educativa, cultural e de entretenimento. É o caso, por exemplo, de Vila Sésamo, assistido nos últimos 36 anos em 120 países, que adapta o seu conteúdo ao contexto das crianças de cada região. Uma das produções da Multirio que alcança maior sucesso com as crianças, premiada e reconhecida no Brasil e no exterior, é a série Juro que Vi, que revisita mitos de nosso folclore, como o Curupira, o Boto e a Iara. Produzida com crianças e professores de uma escola da Prefeitura do Rio, ela também vem alcançando êxito devido, em grande medida, ao fato de lidar com arquétipos universais, que tratam do medo, da coragem, da feiúra, da beleza, do poder, da covardia e de outras qualidades e limitações humanas. Portanto, a TV, ao veicular produtos audiovisuais que provocam encantamento, desejo, medo,

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esperança ou confiança, entre outras emoções, tem um poder de convencimento e dominação. O que traz, inexoravelmente, responsabilidade a quem produz e divulga, um dos temas mais abordados durante a 4ª Cúpula Mundial de Mídia para Crianças e Adolescentes, realizada no Rio de Janeiro em abril de 2004. Na ocasião, foram elaboradas duas Cartas de Princípios para a Mídia de Qualidade, referendadas por profissionais de mídia, educação, cultura, políticas públicas e 150 adolescentes dos cinco continentes. Diante do panorama traçado, algumas discussões são urgentes: - As famílias e os responsáveis acompanham suas crianças na hora em que elas assistem às novelas, aos reality shows, aos filmes e aos programas humorísticos? Conversam sobre o que está sendo visto? Alimentam críticas ou buscam alternativas em outros canais e atividades distintas quando as cenas são ofensivas à dignidade, à ingenuidade e ao desconhecimento das crianças? - As emissoras de grande audiência, que vendem seus espaços comerciais e faturam com a exploração da violência, da perversidade, do deboche, da banalização das relações sexuais, do voyeurismo, embora também busquem enfatizar valores familiares e a diversidade cultural e social, podem dizer que exercem o autocontrole, que sempre alardeiam, em respeito aos direitos de crianças, adolescentes e suas famílias por um entretenimento de qualidade? - Os canais de TV educativos e culturais, subsidiados por verbas governamentais, portanto, sem necessidade de submissão às regras do mercado, têm tido a capacidade de oferecer alternativas inteligentes, criativas e atraentes? - Afinal, o que é qualidade nos programas de TV? É o que diverte, encanta, inspira para a solidariedade e a compreensão? Ou é o que dá audiências, lucros e prêmios? É possível unir estes objetivos em horário nobre? O ritual de reunir a família ao redor da TV, a cada noite, em horário nobre, exige de todos os protagonistas - os que produzem e divulgam e os que assistem e interagem - um verdadeiro compromisso ético, estético e político, que respeite os direitos de nossas crianças e adolescentes e proporcione, à sua capacidade de imaginar, conhecer e se divertir, uma programação de maior qualidade. Regina de Assis, presidente da MULTIRIO e coordenadora do RIO MÍDIA. http://www.multirio.rj.gov.br/riomidia/ Acesso em 11/04/2005

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ANEXO L 5ª Cúpula Mundial de Mídia para Crianças e Adolescentes MÍDIA COMO INSTRUMENTO PARA A PAZ GLOBAL E A DEMOCRACIA Entre 23 e 29 de março de 2007, a África do Sul irá abrigar a 5ª Cúpula Mundial de Mídia para Crianças (World Summit on Media for Children), evento promovido pela Children’s Broadcasting Foundation of Africa (CBFA) sob o tema, "Mídia como Instrumento para a Paz Global e a Democracia". Os "Summits" (Cúpulas), lançados em 1995 na Austrália, oferecem uma plataforma global para celebrar a riqueza da mídia produzida para crianças. Em abril 2004, o MIDIATIVA foi um dos organizadores da 4ª Cúpula Mundial de Mídia para Crianças e Adolescentes, no Rio de Janeiro. A Cúpula irá demonstrar a diversidade da mídia produzida na África, mas será também um encontro mundial baseado no espírito de “ubuntu” – “Eu sou porque você é” – para compartilhar necessidades globais, situações e possibilidades. A programação inclui mesas redondas, workshops, painéis, sessões plenárias e mostras. Os temas-chave e conceitos irão a globalização da mídia infantil, o acesso das crianças à sociedade da informação, os direitos das crianças no tocante à mídia, investimentos, abordagens regulatórias comparativas, o papel dos provedores de conteúdo, HIV-AIDS e seu impacto na mídia infantil, treinamento de adultos e jovens produtores de mídia para crianças, como elas participam da criação de sua própria mídia, pesquisa e estudos comparativos. Os resultados esperados incluem pesquisa e projetos de produção concebidos para amplificar a diversidade de vozes e culturas infantis, através de uma mídia criada localmente e compartilhada globalmente. Produções de alta qualidade são difíceis de se desenvolver, especialmente em países em que os recursos são limitados, mas a Quinta Cúpula Mundial pretende buscar soluções sustentáveis. A Quinta Cúpula também irá reunir crianças e adultos que estão utilizando a mídia para promover a cultura, a igualdade de gêneros, o pensamento independente, a responsabilidade sobre o meio ambiente e a saúde global. Irá ressaltar as formas de uso apropriado das tecnologias disponíveis para oferecer conteúdos que complementem e promovam estratégias de aprendizagem. A mensagem subjacente ao evento está alinhada aos objetivos da Declaração do Milênio das Nações Unidas, e das prioridades estabelecidas nos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio. A Cúpula se dirige a diversos profissionais da área, como especialistas em políticas públicas, reguladores, organizações de defesa dos direitos das crianças, produtores, cineastas, especialistas em rádio, pesquisadores, provedores de Internet, web designers, especialistas em novas tecnologias, desenvolvedores de conteúdo em novas plataformas de mídia, especialistas em estudos culturais, emissoras públicas, entre outros. OBJETIVOS DA CÚPULA MUNDIAL DE MÍDIA PARA CRIANÇAS E ADOLESCENTES • Ampliar o entendimento e desenvolvimetno da televisão para crianças ao redor do mundo. • Elevar o status da programação infantil • Chamar a atenção de figuras-chave das emissoras para a importância das questões relacionadas a crianças • Promover uma carta de princípios norteadores para a televisão infantil • Assegurar que o fornecimento de programas para crianças seja garantido à medida em que a revolução das comunicações prossegue. • Apoiar o mundo em desenvolvimento de forma a oferecer oportunidades para a programação de qualidade para crianças no futuro Faça o download da agenda da 5ª Cúpula Mundial de Mídia para Crianças e Adolescentes (em inglês) Visite o site oficial da 5ª Cúpula para mais informações.

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ANEXO M TELEVISÃO E CRIANÇA: POR UMA LEITURA CRÍTICA E REFLEXIVA DA MENSAGEM AUDIOVISUAL Na medida em que, as crianças de gerações recentes estão fortemente expostas às mensagens veiculadas pela televisão, torna-se fundamental discutir a leitura deste meio, tendo em vista suas múltiplas possibilidades de influência sobre o desenvolvimento infantil. É crescente a preocupação de educadores, pais e políticos entre outros agentes sociais, com a qualidade do produto televisivo consumido por crianças, adolescentes e jovens. Não é raro encontrarmos discussões acerca da adequação da programação televisiva, seja em relação aos horários de exibição de determinados programas ou ao próprio conteúdo dos mesmos. Embora reconheça a enorme importância destas discussões, este artigo pretende observar a relação televisão/criança a partir de outro ângulo: o da recepção do produto televisivo. Na realidade, a questão da recepção do produto televisivo será tratada aqui, como uma questão referente à leitura: a leitura da mensagem audiovisual. O ensaísta francês Roland Barthes - um dos pioneiros no estudo da Semiologia - diferenciou-se dos demais semiólogos estruturalistas, seguidores de Ferdinand de Saussure, por uma particularidade: à noção acadêmica de signo, ele acrescenta a noção de sujeito. Para Barthes, um signo deve ser compreendido levando-se em conta a intervenção do sujeito que observa este signo. Segundo ele, se a fotografia, por exemplo, não sofresse a intervenção pessoal subjetiva, do observador - que pode ver num signo muito mais que uma representação do real - ela ficaria limitada ao registro documental. Entretanto, apesar de cumprir este papel, a fotografia ultrapassa os limites de um simples registro, na medida em que, enquanto signo recebe um reconhecimento particular por parte do sujeito. Ora, isto também acontece em relação à televisão. O observador do produto televisivo também realiza um reconhecimento particular sobre a produção audiovisual que recebe através da televisão. Analisando a imagem publicitária, Barthes reconhece três tipos de mensagem: uma mensagem lingüística, uma mensagem literal e uma mensagem simbólica. A primeira cumpre uma função de fixação. Barthes entende que esta função garante a orientação do nosso olhar sobre a imagem, afastando significados distintos daquele(s) proposto(s) por quem produziu a imagem. Para ele, "toda imagem é polissêmica e pressupõe, subjacente a seus significados, uma 'cadeia flutuante' de significados, podendo o leitor escolher alguns e ignorar outros". (1990, p.32) Podemos então, compreender o papel desempenhado pela mensagem lingüística: enquanto técnica, sua função é "fixar a cadeia flutuante dos significados, de modo a combater os signos incertos". (p.32) Neste sentido, a mensagem lingüística deve ser entendida como condutora do leitor através dos diferentes significados da imagem, desviando-o de alguns e aproximando-o de outros. Na publicidade televisiva a mensagem lingüística apresenta-se, em geral, sob forma de texto (legenda, narração etc.). É a mensagem que garante aquilo que o autor quis dizer, impedindo a proliferação dos sentidos conotados. Em geral, esta mensagem é a mensagem "fácil" pois a carga informativa é detida pelo segundo tipo de mensagem. Lembremo-nos, por exemplo, de um filme de publicidade qualquer. Nele, a mensagem "difícil" é confiada à imagem. Já à palavra, ao texto, está reservada uma descrição rápida, que possibilite uma leitura fácil, especialmente voltada para o leitor "apressado"; onde a imagem informa o conteúdo principal da mensagem - de forma menos trabalhosa para o leitor - enquanto o texto apóia a informação principal, na maior parte das vezes, complementando-a ou duplicando-a. Já a mensagem literal é a imagem denotada; é aquela que está livre de todas as possíveis conotações que a imagem possa sofrer. Segundo Barthes, "a imagem denotada naturaliza a mensagem simbólica, inocenta o artifício semântico, muito denso (sobretudo em publicidade), da conotação". (1990, p.37). Podemos compreender então que a mensagem literal corresponde à imagem propriamente dita. É como se apagássemos os signos da conotação. Neste caso, o único sentido que lhe sobraria seria o da identificação da cena representada que, segundo Barthes, corresponderia ao primeiro grau do inteligível, sendo que, aquém desse grau o leitor só percebe linhas, cores e formas. Entretanto, apagar da imagem os signos da conotação é uma operação que só se processa mentalmente. Isto atribui um caráter utópico à denotação da imagem, que nos conduz imediatamente ao terceiro tipo de mensagem: a mensagem simbólica. Para Barthes, este tipo de mensagem corresponde à imagem conotada e, sua originalidade reside nas múltiplas possibilidades de leitura de uma mesma imagem. Obviamente, todos reconhecemos a intencionalidade da mensagem publicitária e sabemos, portanto, que não existem mensagens ingênuas, desprovidas de uma conotação prévia - o que confirma o caráter utópico da imagem denotada. Mas, retornando à questão da originalidade da imagem conotada, Barthes vem afirmar que "as possibilidades de leitura de uma mesma lexia (uma imagem) é variável segundo os indivíduos (...) A diversidade das leituras não é, no entanto, anárquica, depende do saber investido na imagem (saber prático, nacional, cultural, estético) (...) Há, em cada pessoa, uma pluralidade, uma coexistência de léxicos (...) A imagem, em sua conotação, seria, assim, constituída por uma arquitetura de signos provindos de uma

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profundidade variável de léxicos (...)" (1990, p.38). Se reconhecermos a existência de uma mensagem simbólica, que é conotada e, por isso mesmo passível de variadas possibilidades de leitura, deparamo-nos com um precioso argumento para justificar a idéia de que é possível qualificar a recepção do produto audiovisual, ou seja, apesar de toda a intencionalidade da mensagem audiovisual, que direciona nosso olhar; é possível realizar outras leituras deste produto e, não simplesmente consumi-lo passivamente. Mas como as crianças e jovens aprenderão a fazer outras leituras da mensagem veiculada pela TV? Segundo Joan Ferrés (1996), "para produzirmos uma integração adequada da televisão à vida dos alunos, a escola e o lar devem andar de mãos dadas, cada uma com suas responsabilidades. (...) Mas essa tarefa dificilmente será desempenhada por pais que, em geral, estão tão carentes de formação nessa área quanto seus filhos. Por isso, hoje, cabe à escola a maior responsabilidade na formação".(p. 92) Ainda segundo o mesmo autor, "uma escola que não ensina como assistir à televisão é uma escola que não educa".(p. 07). Por que a escola não ensina seus alunos a assistir televisão? Um observador leigo, responderia que ninguém nos ensina a assistir televisão, aprendemos sozinhos e, não seria a escola a encarregada de mais esta tarefa. Na verdade, aprendemos a assistir televisão sozinhos em função de a gramática televisiva ser de muito fácil compreensão, e isso se deve, em larga medida, ao papel desempenhado pela mensagem lingüística, ou seja, a mensagem "fácil". Este tipo de mensagem, como já mencionamos anteriormente neste estudo, é aquela que garante o entendimento daquilo que o autor quis dizer. Mas será que isso exclui a responsabilidade da escola diante desta questão? Joan Ferrés (1996) afirma que, nos países industrializados o fato de assistir televisão ocupa o terceiro lugar na escala de atividades à qual os cidadãos adultos dedicam mais tempo, depois do trabalho e do sono, e o segundo lugar no tempo dedicado pelos estudantes. (...) Nesse contexto, se uma escola não ensina a assistir televisão, para que mundo está educando?". (p. 8-9). Neste sentido, esse ensinar a assistir à televisão, pode ser compreendido como ensinar a ler a mensagem audiovisual veiculada por diferentes meios. Desta forma, devemos compreender este novo desafio da escola dentro de um contexto de leitura. As crianças e jovens precisam lidar, dentro do ambiente escolar, com a leitura dos diferentes meios, e não só com a leitura da palavra escrita. Se nos preocupamos em ensinar a narrativa literária aos nossos alunos, porque não ensinamos também a narrativa televisiva? A escola pode e deve oferecer modelos de interpretação e de análise crítica do produto audiovisual. Segundo Patricia Marks Greenfield (1988), "embora o código televisivo seja complexo e variado, há o perigo de que ele seja usado automaticamente e sem esforço: que o código simbólico da televisão seja processado passiva, ao invés de ativamente. Este problema não pode ser solucionado ao nível do código. É uma questão de tomada de atitude frente à televisão e à rede de interações geradas pela televisão (...)".(p.31) Portanto, se reconhecemos que a imagem veicula três tipos de mensagem, sendo uma delas produzida a partir das múltiplas possibilidades de leitura de uma mesma imagem, podemos ter a certeza então, de que é possível transformar o processamento automático da mensagem audiovisual, que gera passividade entre outras conseqüências não menos prejudiciais ao desenvolvimento infantil; em um processamento ativo, que gera reflexão e análise crítica sobre a referida mensagem. É nesta certeza de que é possível realizar uma transformação na recepção da mensagem audiovisual, que repousa a importância de a escola investir no ensino da leitura do produto audiovisual veiculado pela televisão. Referências bibliográficas: - BARTHES, Roland. O óbvio e o obtuso: ensaios críticos III. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. - FERRÉS, Joan. Televisão e educação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996 - GREENFIELD, Patricia Marks. O desenvolvimento do raciocínio na era da eletrônica: os efeitos da TV, computadores e videogames. São Paulo: Summus, 1988. Marcos Ozório Mestre em Educação e diretor do Departamento de Mídia e Educação da MULTIRIO http://www.multirio.rj.gov.br/riomidia/ Acesso em 11/04/2005

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ANEXO N

SUPERLIGADOS NA TV :PESQUISA REALIZADA EM DEZ PAÍSES REVELA QUE CRIANÇAS BRASILEIRAS SÃO CAMPEÃS EM VER TELEVISÃO DANIEL CASTRO COLUNISTA DA FOLHA "Superligados na TV", copyright Folha de S. Paulo, 17/10/2004 As crianças e os adolescentes brasileiros são provavelmente os que mais vêem televisão no mundo. Por outro lado, são os que menos lêem livros. Os que moram em grandes cidades quase não brincam. E a quase totalidade deles ignora a prática de esportes coletivos e o uso do computador. Essa gangorra é o retrato de uma pesquisa inédita feita pelo instituto Ipsos em dez países (entre eles Estados Unidos, Reino Unido e China). Foram entrevistados 5.500 pais e responsáveis por crianças e adolescentes de 2 a 17 anos. A pergunta: o que seus filhos fazem todos os dias? No Brasil, 57% dos 500 entrevistados responderam que seus filhos assistem a TV durante pelo menos três horas por dia e 31%, de uma a duas horas. Só 5% falaram que seus filhos não vêem TV. Os dados são mais conservadores que os do Ibope. Segundo o instituto, os telespectadores de 4 a 17 anos passaram em setembro, em média, quatro horas e 25 minutos por dia com a TV ligada. Em contraponto à televisão, 43% dos pais brasileiros ouvidos disseram que seus filhos não ocupam nada de seu tempo lendo livros ou brincando com os amigos; 79% disseram que seus herdeiros não praticam esportes coletivos; 69% afirmaram que eles não usam computadores. "O resultado é preocupante. Quando há mais TV do que leitura, há um empobrecimento do país. Não brincar também é perigoso. A criança que não brinca não conversa, fica isolada", diz Ana Bock, presidente eleita do Conselho Federal de Psicologia (CFP) e professora da PUC-SP. Para Beth Carmona, presidente da TVE (emissora educativa do Rio de Janeiro), há um fator que faz toda a diferença na análise desses dados. "O tempo que as crianças passam nas escolas nos Estados Unidos e na Europa é de até sete horas por dia. Aqui, não passam mais do que quatro horas. Logo, os brasileiros ficam mais tempo em casa do que na escola, provavelmente vendo televisão", afirma Carmona, que também coordena a ONG Midiativa. O fato de a pesquisa da Ipsos ter sido feita no Brasil apenas em centros urbanos (São Paulo, Rio, Belo Horizonte, Recife e Porto Alegre), de acordo com Beth Carmona, explica a alta incidência de crianças que não brincam com amigos. Por trás disso, estaria o medo da violência nas ruas. Carmona responsabiliza parcialmente a política educacional brasileira por esse panorama de muita televisão e pouca leitura e brincadeira. Mas não isenta a televisão. "A TV pode levar a criança a conclusões distorcidas. A TV mostra uma rua mais perigosa do que ela é, e isso gera medo, neurose, violência. A influência da televisão no Brasil é muito séria. Nossas crianças são mais desinformadas. Na Europa, há uma tradição de TV pública com programação para criança mais elaborada." Para Rodrigo Toni, diretor-geral do Ipsos no Brasil, a pesquisa não permite afirmar que a TV afasta a criança dos livros e das brincadeiras. "Há muita televisão, mas o que as afasta das outras atividades são a falta de hábito e os ambientes educacional e familiar. Os vilões são os próprios pais, que não valorizam a leitura", diz. Opinião parecida tem a psicóloga especializada em famílias Lidia Aratangy: "Pais leitores têm mais chances de ter filhos leitores simplesmente porque as crianças percebem que aquele objeto deve ser muito importante para prender a atenção de uma pessoa tão importante". Ela recomenda também que os pais assistam à TV juntos dos filhos, para transformá-los "de esponjas em filtros". Segundo a psicóloga Ana Bock, "o ideal é que se gaste tempo vendo TV e também lendo. A leitura é ainda uma das ferramentas mais ricas que temos. Nela, é você quem faz o cenário, diferentemente do que ocorre com a TV". De acordo com Bia Rosenberg, gerente de produção da TV Cultura, a pesquisa retrata um aspecto cultural: "Já é uma tradição a família brasileira assistir a muita televisão. Isso não significa que sejamos mais burros, mas que escolhemos o que é mais fácil". Não é por acaso, portanto, que a MTV não tenha tido retorno de seu público-alvo (adolescentes e jovens) de uma vinheta que exibe há dois meses: "Desliga a TV e vai ler um livro". "Recebemos muitas felicitações de pais e professores", conta José Wilson, diretor de marketing do canal. Os adolescentes não se manifestaram.