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A GUERRA COLONIALE OUTRAS MEMRIAS MAIORES QUE O PENSAMENTO

A GUERRA COLONIAL E OUTRAS MEMRIAS MAIORES QUE O PENSAMENTO Autor Capa : : Armando Sousa Teixeira Veladimiro Luciano sobre fotografias cedidas por Antnio Manuel Marqus e Reviso : Composio : outras de autor desconhecido. Hlder Costa ( falecido ) e Nazar Almeida Joo M. Fusto, Antnio Pedro e filho, Apolnia, Catarina e lvaro Teixeira, Tiragem Data : : Ftima Tereso. 5 exemplares manuscritos Junho de 2007

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NDICEPREFCIO ... PRLOGO / ADVERTNCIA ...

1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11.

IR GUERRA REGRESSO DA NDIA, PARTIDA PARA ANGOLA .. NO JURES CAMARADA ... A LENDA DO MONOMOTAPA .. A DEFESA DE CABORA BASSA DO CORAO DE FRICA PRISO DA MACHAVA . LONGOS CORREDORES DO SILNCIO . DO CHILE TRAFARIA COM LGRIMAS ... A LENDA DOS MACONDES ... JUNTO FOGUEIRA DO GUERRILHEIRO............... NA VSPERA DE ACONTECIMENTOS IMPORTANTES .

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A Helder Costa, construtor e amigo deste livro de memrias, romance de muitas vidas.

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A todos os que fizeram a Revoluo de Abril e acabaram com a Guerra Colonial.

PREFCIO5

Armando de Sousa Teixeira, cidado do Barreiro, militante do Partido Comunista e veterano antifascista , tambm, veterano nas lides da escrita. Nesse campo de luta pois como bem sabido, a escrita uma arma e das mais eficazes, tem publicada, sob o ttulo geral, Barreiro, uma Histria de Trabalho, Resistncia e Luta, uma extensa e apaixonada monografia da vila/cidade onde nasceu, cresceu e se fez homem. So j quatro volumes (Partes, como lhes chama), todos publicados na Coleco Resistncia das Edies Avante!, cobrindo o perodo de 1926 a 1969, sendo o ltimo dos quais (1963-69) dado estampa em 2005. Nos dois anos seguintes, dedicou o seu esforo e capacidades ao trabalho que aqui estamos prefaciando, com todo o gosto, admirao e estima. Creio que se torna fcil imaginar como porqu e desde quando o tema da Guerra Colonial vinha obcecando o autor, por ser uma importante parte da sua vida, sem dvida, mas tambm pela razo bsica de ser um dever a cumprir, memria a no deixar morrer esquecida. Talqualmente a conscincia lhe impusera fazer em relao ao Barreiro, baluarte mtico da resistncia antifascista. Ambas as vivncias foram entendidas por Armando Teixeira desde sempre (desde o 25 d Abril, seguramente, para fixar uma data), como experincias colectivas dramticas de amplitude, no mnimo, nacional, cuja importncia e significado no podiam ficar confinados no limbo do esquecimento. No decurso das trs dcadas do regime democrtico, foi crescendo a evidncia de que a Guerra Colonial se estava a converter num dos maiores buracos negros da Histria de Portugal e dos portugueses. Se outra razo no houvesse, esse facto seria suficiente para decidir o autor a levantar o seu testemunho e contribuir para que alguma luz penetre no buraco da memria, onde a burguesia restauracionista do 25 de6

Novembro, esconde a derrota do sonho imperial e a m conscincia das suas responsabilidades. Armando Teixeira escreve como homem de esquerda. Comunista por livre opo, militante do PCP por coragem e coerncia, mesmo antes de ser arrastado no vrtice da guerra nas colnias, jovem estudante recrutado por fora de lei. Raiava a dcada de 70. Ter justificao destacar opes ideolgicas e/ou polticas, no acto de apreciar produes literrias, histricas ou sociolgicas? Apetece responder como em relao afirmao peremptria sobre o fim da distino entre esquerda e direita. Quem isso afirma , sem dvida alguma, um sujeito de direita. Com efeito, do alto dos meus 80 anos de horizonte, pode detectar-se em todas as atitudes, aces e reaces do sujeito humano diria, quase de imediato de onde parte a motivao ideolgica determinante: o individualismo, o egosmo/hedonismo, caracterizam inconfundivelmente o sujeito que se situa na direita reaccionria; na esquerda, as decises capitais resultam da ateno pelo interesse colectivo, pela realidade social da existncia humana. Armando Teixeira confirma-se, nesta obra que temos presente, um autor de esquerda. Assumido. Nem outra coisa seria de esperar. Os seus personagens manifestam abertamente a averso ao regime, guerra que lhes est sendo imposta, assim como a muitos outros milhares de jovens portugueses. As denncias da PIDE, dos seus crimes e dos seus torcionrios, do terror que espalham pelas populaes, dos massacres de nacionalistas nas colnias, ocupam dezenas de pginas. O militarismo e a insensibilidade das altas patentes aparece verberado em mltiplos pargrafos. As revelaes destes e outros aspectos, as crticas e constantes denncias que se cruzam no texto, ainda hoje continuam a ser 30 anos aps as independncias das colnias politicamente incorrectas! Razo decisiva para se reconhecer a actualidade da presente obra e saudar a sua utilidade no combate poltico contra as foras7

obscurantistas e branqueadoras do passado colonial fascista que, infelizmente, dominam o governo e a sociedade portuguesa neste ano democrtico de 2007. Nesta obra de revisitao/acusao da Guerra Colonial, o autor adoptou uma estrutura mista, onde um esqueleto ficcional serve de suporte para a composio das vrias faces da morte. Trata-se de uma modalidade narrativa com forte tradio na literatura universal, em particular quando o escritor/narrador procura evitar que os traos autobiogrficos se sobreponham demasiado, e que assim, de algum modo, venham a alterar o quadro geral que pretendia desenhar. Respeitando essa inteno, deixo ao leitor, que nisso estiver interessado, a tarefa de adivinhar qual dos personagens fictcios que surgem no texto mais se aproxima do militar incorporado compulsoriamente, de nome real Armando Sousa Teixeira cidado militante que desde o primeiro momento como tantos outros em anos sucessivos se viu confrontado com o dilema: Ir, ou no ir guerra? Para o nosso heri real/fictcio e em muitos outros semelhantes casos o dilema foi resolvido de acordo com a orientao do PCP clandestino: levar a luta poltica, a luta pela libertao e independncia dos povos colonizados, para dentro das fileiras das Foras Armadas. Essa foi, indiscutivelmente, a linha poltica correcta consoante se veio a demonstrar, quer na dinamizao do 25 de Abril, quer na rpida soluo do conflito. A crnica acompanha a trajectria de um grupo de jovens estudantes mobilizados para frequentar o curso de quadros milicianos de exrcito. Estava-se numa fase j adiantada da guerra incio da dcada de 70. No centro de instruo em Mafra, manifestava-se de forma clara o sentimento de rejeio. Os mais preparados politicamente logo a levaram a cabo aces de protesto e propaganda contra a doutrina colonial fascista que tiveram repercusses no meio militar e no s. Marcharam esses8

milicianos, graduados em oficiais ou sargentos, para os trs teatros de operaes, Angola, Guin, Moambique. O narrador acompanha-os. Entretanto, deve fazer-se notar que o autor no se prende a um relato do tipo testemunho cronolgico. Longe disso. Logo no captulo 2, por exemplo, leva-nos at chamada ndia Portuguesa (os pequenos territrios de Goa, Damo e Diu), para presenciar a capitulao de Dezembro de 1961, perante as foras da novel Repblica Indiana. O regresso dos militares feitos prisioneiros, em Maio de 1962, transformados por Salazar em bodes expiatrios da derrota, funcionou como aviso e prenncio do que fatalmente iria acontecer nos territrios africanos. Outros acontecimentos desses anos so mencionados, tais como o comeo da luta de libertao em Angola (4 de Fevereiro de 1961), a crise acadmica de Maro de 1962, etc. Na realidade, o ciclo de Fim do Imprio e do Regime Fascista que o sustentava, estende-se entre 1961 e 1974. esse o perodo de 13 anos e 3 meses, que mereceu a especial ateno e o estudo cuidado do episodiador, assegurando-lhe lugar de destaque no conjunto da historiografia da Guerra Colonial e sua poca. Na organizao da obra o autor revela outra inconfundvel caracterstica do trabalhador intelectual de formao marxista. Refiro-me ao pendor didctico: ao empenho e engenho em ajudar os outros a aprender. No se trata, entenda-se, de ensinar, mas sim de fornecer elementos e materiais de reflexo, relatar casos e episdios que contenham significado implcito. Exactamente ao invs do intelectual burgus, nomeadamente o historiador acadmico professoral, cujo mtodo , por norma, a petio de princpio, isto , demonstrar aquilo que j vem expresso na premissa inicial, desprezando a evidncia dos factos, ignorando-os ou afeioando-os. De acordo com o seu propsito didctico, o autor intercala dezenas9

de resenhas de carcter histrico, algumas extensas de dez pginas, referncias e apontamentos estruturados sobre o passado colonizador nas trs zonas de frica onde a guerra procura eliminar os movimentos de libertao. Junta relatos de inmeras emboscadas e operaes, de massacres e excessos cometidos pela tropa portuguesa e d claro sinal do clima de descrena e cansao que, nesses anos finais, alastra entre o pessoal mobilizado e mesmo entre os profissionais de quadro permanente. Confere a devida importncia omnipresena da PIDE na vida portuguesa da poca fascista, quer no pas europeu, quer nas colnias em guerra. Um estado dentro do Estado, como bem observa, cuja memria parece tambm atirada para o buraco negro do olvido, por estes democratas da 25. hora que desfrutam o poder por que outros lutaram abnegadamente, despidos de ambio pessoal. Contra esta onda contra-revolucionria e restauracionista que varre o a pas desde o mal-agourado Novembro de 1975 que criou na sociedade e no nosso povo um profundo cepticismo traumtico em relao aos polticos e ao futuro que prometem - o livro agora publicado, A Guerra Colonial e Outras Memrias Maiores que o Pensamento, reconforta a alma. Em tempo de escurido, de forma modesta e aparente singeleza, o narrador vem provar que a resistncia tirania foi possvel e nunca esmoreceu em condies de mxima represso. Nos tempos presentes, quando se perfilam em Portugal e no mundo, novas e tremendas ameaas liberdade dos povos, aos direitos do trabalho e prpria condio humana, invocar essa memria j constitui, por si s, um acto de resistncia. Um precioso capital de coragem herdmos desse combate, tantas vezes herico, contra a opresso fascista. Dos comunistas em primeiro lugar, justo assinalar. (Mais que justo, pois repara muita injustia). Mas todos, que fazemos um povo, devemos ter orgulho nesse10

passado pois parte e esprito da nossa Histria. E, permitam-me, no devemos esconder esse orgulho. A esquerda poltica/ideolgica na sua ingnita modstia, no tem por hbito exibir pergaminhos nem reclamar o que lhe devido. Para ficar devidamente rematado o presente prefcio, muito eu gostaria de o ver acrescentado e decerto comigo, todos os leitores de uma nota biogrfica por pequena que seja do cidado Armando Sousa Teixeira, comunista de sempre, mobilizado para uma Guerra Colonial, que nunca aceitou como causa sua. Ficaramos todos com mais uma razo de orgulho. Lisboa, Maio 2007 Varela Gomes

PRLOGO (ADVERTNCIA)

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Um livro sobre a guerra colonial passados mais de trinta anos, porqu? As memrias esvaem-se, as mgoas persistem, as lembranas sublimam-se e o esquecimento favorece o cerceador branqueamento da Histria. Nunca tarde para perceber,... que cada um pode tanto em sua casa que mesmo depois de morto so precisas quatro pessoas para o levar!. Estes ensinamentos da nossa histria, foram propositadamente ignorados nos anos 60 e 70, quando o regime fascista-colonialista de Salazar e depois Caetano, atirou para a fogueira africana mais de um milho de jovens portugueses, tentando alien-los partida com os clichs da defesa da Ptria, e da vitria ser rpida, numa guerra que sabiam nunca ir ganhar. Negavam desta forma o direito inalienvel dos povos autctones de Angola, Guin e Moambique decidirem do seu futuro livre e independente. Do cortejo de horrores e crimes praticados durante 13 anos, ficaram sequelas que o tempo no conseguiu sarar. As memrias da realidade, a fico baseada em factos reais, o romance, no sero suficientes para contar a ferida em flor aberta, perene, teimosamente persistente, definitiva. Ho-de passar muitos anos at a sociedade portuguesa conseguir dirimir os traumas do perodo mais aceso do velho conflito colonial, quando os nacionalistas africanos resolveram pegar em armas. Para isso preciso conhecer melhor a histria do colonialismo portugus e os seus fundamentos, necessrio perceber a poca do incio dos anos 60 e as posies dos vrios sectores e foras polticas intervenientes. fundamental sobretudo saber dos seus principais protagonistas, dos seus incriminveis mentores, compreender a guerra por dentro, viv-la com as12

angstias, as tristezas, os medos, as solidariedades, a nobreza de carcter, a amizade, a cobardia, o terror, a revolta e a coragem, dos homens a quem vestiram uma farda e fizeram soldados. este, alm do mais, o desiderato deste livro; ajudar a recuperar o sentido da histria-ptria, e, ouro sobre azul, a melhor compreender os conturbados e complexos tempos que correm. * O legtimo desejo de independncia dos povos das colnias portuguesas e o consequente eclodir das revoltas nacionalistas, seguindo o curso natural da histria j escrita noutros pases da frica e da sia, foi ignorado e afogado em sangue nos trs territrios africanos de Angola, Guin e Moambique. O exemplo da luta do povo vietnamita contra a superioridade francesa, e mais recentemente do povo argelino que pegara em armas em 1954, contra os mesmos incorrigveis franceses, inspirou os movimentos de libertao nos territrios africanos sob domnio portugus. A luta de novo tipo, baseada na tctica da guerrilha e dos combatentes invisveis, que faziam emboscadas, flagelaes e punham minas nas picadas, movimentando-se em pequenos grupos como peixe na gua entre as populaes alvo de intensa aco poltica, anulava toda a vantagem branca assente no poderio militar clssico. Foi a posse de espingardas e canhes que derrotou e submeteu os primitivos aborgenes, mas agora, a simples compreenso desta guerra revolucionria e o entendimento das lies e consequncias retiradas do Vietnam (os poderosos franceses tinham sido derrotados e expulsos da antiga colnia em 1954) teria evitado o sofrimento de milhes de portugueses e a morte e o estropiamento de dezenas de milhares.13

Os fascistas e militaristas, prceres de Salazar e de Caetano, procuraram elidir as questes fundamentais, iludindo os portugueses, deturpando, mentindo e falsificando criminosamente a realidade africana. Primeiro desencadearam a histeria colectiva da punio exemplar dos terroristas que teriam iniciado a guerra vindos do exterior, atacando os inocentes fazendeiros e seus negros fiis. Como se no existissem 400 anos de dominao, escravatura, explorao e opresso! Depois alimentaram a intoxicao popular com a tese repetida at exausto nos jornais, na rdio e na televiso (tambm no cinema!...) dos conflitos serem alimentados do exterior por diablicas foras comunistas, que queriam destruir a civilizao crist e ocidental. Como se Agostinho Neto, Amilcar Cabral e Eduardo Mondlane e seus seguidores, no tivessem nascido, crescido e despertado politicamente no solo africano de Angola, Guin-Bissau e Moambique! A Histria no se repete mas os tiranos, os reaccionrios e os defensores do neocolonialismo e do imperialismo parecem renascer das cinzas. Em Portugal tempo da Histria os julgar! * Quando em 1961 a guerra colonial comeou em Angola, o Avante!, rgo central do Partido Comunista Portugus, em simultneo com a denncia das carnificinas ento perpetradas, colocou desde logo a necessidade de um amplo movimento anticolonialista associando todas as foras antifascistas. Apelou simultaneamente organizao da resistncia contra o aparelho militarista e recusa da ida guerra da juventude portuguesa: (...) continua a espalhar-se nos quartis a onda de agitao e descontentamento contra a guerra. Os que regressam de frica os14

desmobilizados, os feridos e tambm os presos transmitem aos seus camaradas todo o horror da guerra colonial e o anseio de lhe pr fim. Os protestos, as lutas e deseres multiplicam-se (...). A amargura, o descontentamento e a revolta que se acumulam no peito de todos os soldados e marinheiros, procura um caminho para se manifestar. preciso ajud-los a lutar e a organizar-se! Avante!, n. 322, de Outubro de 1962. A recusa podia revestir diversas formas, nomeadamente: fuga tropa, recusa ao embarque ou desero no prprio teatro de guerra. O regime da ditadura fascista procurava punir severamente estas atitudes e inscreveu no RDM (Regulamento de Disciplina Militar) a pena de morte para a desero no campo de batalha, que depois estendeu desero em misso no estrangeiro. Em Portugal, at ao 25 de Abril de 1974, a pena de morte existiu! Concomitantemente todo o aparelho repressivo militarista era reforado, tornando-se a Casa de Recluso da Trafaria, o Presdio Militar de Elvas, o Batalho Disciplinar de Penamacor, autnticas prises polticas por onde passaram milhares de refractrios, de objectores, de presos por revolta ou protesto. Alm disso foram aprofundadas as ligaes entre os altos comandos das Foras Armadas e a PIDE/DGS, constituindo um feroz, promscuo e indecoroso aparelho destinado a dissuadir, amedrontar ou punir os vares lusitanos com idade para serem mobilizados como carne para canho, que ousassem levantar a cabea.

*

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Na determinao emergente da sua orientao de resistncia ao fascismo e ao colonialismo, sob todas as formas, os comunistas desde sempre equacionaram uma importante nuance: os seus militantes, ou de uma forma mais geral os antifascistas mais esclarecidos, deviam ir guerra e uma vez a, desempenhar um papel difcil e arriscado de esclarecimento junto dos restantes soldados ( o povo fardado!...) a quem a verdade histrica e a realidade dos factos era subtrada, deturpada e mentida. Tarefa complicada sem dvida, o aparelho militar fascista e a PIDE procuravam detectar e reprimir qualquer forma de protesto. Mas no eram igualmente complicadas quaisquer formas de resistncia nas fbricas, nas empresas, nas escolas, nas ruas? Desde cedo se travaram acesas discusses volta deste tema, entre quem argumentava no valer a pena fazer nada contra a poderosa mquina militarista, e os que estavam convencidos que da sua aco, de preferncia em grupo, dependia a acelerao do fim da guerra. Multiplicaram-se ao longo dos anos os exemplos de que valia a pena lutar contra a guerra por dentro, mesmo no terrvel ambiente classificado por alguns de infernal mquina de triturao, que tudo pervertia e at fazia assassinos, os melhores, entre os jovens fardados. Ineludivelmente muitos e terrveis crimes foram cometidos em treze anos de chacinas, massacres, torturas e morte. Mas certamente muitos se evitaram quando a presena de jovens esclarecidos (oficiais, furriis e soldados) ou de homens mais maduros, profissionais do quadro permanente no desumanizados, obstou o crime horrendo, o tratamento desumano de prisioneiros, a violao de mulheres, o assassnio gratuito. Houve deseres espectaculares em grupo e at de pelotes completos, organizadas com coragem e determinao no teatro de guerra, cujas tiveram um significado poltico e psicolgico relevante. As suas16

histrias eram contadas e repetidas em todas as frentes, s vezes mitificadas, alimentando um imaginrio muito generalizado de resistncia e revolta, contra um autoritarismo execrvel e um conflito incompreensvel e inaceitvel. * incontornvel, por outro lado, ainda que pouco (re)conhecido, o papel desempenhado pelos jovens militares milicianos sados da luta antifascista nas fbricas, nas escolas e nas ruas. A sua opinio crtica, fundada na discusso cada vez mais ampla nas academias, nos locais de trabalho, no movimento democrtico, nas colectividades e associaes; as suas manifestaes e lutas, assumindo com destaque o No Guerra Colonial!, e o, Abaixo o Fascismo!, tiveram um efeito importante no alerta e na tomada de conscincia dos militares do quadro que desenvolveram passo-a-passo, o Movimento de Capites, primeiro, e o Movimento das Foras Armadas, depois, culminando no derrubamento do regime em 25 de Abril de 1974. Essa influncia exerceu-se muito mais pela aco significante de quem estava na guerra, do que pelo exemplo meritrio dos muitos milhares que l no foram. Gerou-se alis no princpio da dcada de 70 uma situao muito curiosa. As famlias tradicionais e nacionalistas afectas ao regime, tentavam por todos os meios (cunhas, trfico de influncias, suborno, compadrio, neputismo, trfico de favores) safar os rebentos das guerras em frica que estavam a doer. Os comunistas, seus inimigos figadais, anti-patriotas por definio, a soldo de potncias estrangeiras, com profundos sentimentos anti-guerra, iam para a dita, ajudando por dentro a subverter o sistema!17

Estas profundas contradies no seio do regime, que via os seus filhos dilectos nas Universidades (onde s chegavam 4% de estudantes vindos das classes trabalhadoras) a discutirem o derrube do fascismo e o fim da guerra colonial, minaram profundamente a base de apoio do salazarismo/caetanismo. A represso desencadeada por Marcelo Caetano e o seu ministro da Educao Hermano Saraiva, sobre a Academia de Coimbra, em 1969, e em Lisboa em 1970/71 (j com Veiga Simo), com a incorporao forada de centenas de dirigentes e activistas do Movimento Associativo Estudantil, lanou nos quartis e nas frentes de guerra muitas sementes de discusso, de contestao e de revolta. * Assume particular relevo no contexto repressivo em Portugal e nas Colnias o papel da PIDE/DGS, em estreita ligao com os meios militaristas, fichando, vigiando, perseguindo, excluindo, despromovendo, castigando e qui matando, alguns jovens generosos e idealistas que levavam no processo militar confidencial circulando entre reparties, o ttulo de P.A. (politicamente activo). Uma questo central da guerra em frica, foi a transformao da polcia poltica em polcia de informaes militares, por falncia dos servios de informao que tinham essa incumbncia, e por comodismo oportunista e conivente dos altos comandos que obtinham as informaes necessrias de forma mais rpida e eficaz. Espancamentos brutais, torturas at morte, colaborao e incentivo em massacres e morticnios, assassnios seleccionados (Eduardo Mondlane e Amilcar Cabral). Em frica como em Portugal, a PIDE/DGS humilhou, perseguiu, prendeu, torturou e matou milhares de compatriotas angolanos,18

guineenses e moambicanos, porventura numa escala muito maior e com uma ferocidade e um zelo torcionrio sem limites, com o beneplcito e o apadrinhamento dos responsveis da estrutura colonialista e militar. Argumentavam estes (e ainda hoje o fazem alguns experts) que desta forma se poupavam muitas vidas de soldados portugueses. Perverso racista de quem tem uma discriminatria concepo nazi das vidas humanas de brancos e negros que teriam sido poupadas, se a guerra no tivesse sido prolongada durante tanto tempo. A maioria dos notrios facnoras da PIDE, fugiu logo aps a revoluo vitoriosa de 25 de Abril de 1974. Escapuliram-se cobardemente justia democrtica e foram oferecer os prstimos frica do Sul racista que os integrou de bom grado no seu aparelho repressivo. Muitos desses criminosos voltaram depois a Portugal e juntaram-se aos seus pares, gozando hoje de confortveis reformas da Funo Pblica. Significa que entre ns o crime compensa, se compararmos com as penses miserveis de alguns estropiados e traumatizados da guerra, ou com o degradante complemento de reforma dos ex-combatentes que ainda assim o actual poder poltico quer retirar! * No se ganha pela aco militar, mas perde-se pela inaco militar ensinava-se na Academia Militar, no Instituto de Altos Estudos Militares ou no CIOE (Centro de Instruo de Operaes Especiais). Nos meios profissionais desde meados dos anos 50, comeou a preparao para uma guerra de novo tipo, a chamada guerra subversiva. Salazar dera orientaes nesse sentido, fizeram-se cursos tcnicos e tirocnios nos Estados Unidos e em Inglaterra, a guerra colonial foi calculadamente19

preparada! Quando o cansao de muitas comisses comeou a deixar marcas no corpo militar, o pensamento evoluiu para a filosofia do ganhar tempo, para que o poder poltico encontrasse uma soluo. Mas que soluo? Para o regime colonial-fascista o paradigma a defesa da Ptria una e indivisvel. Era assim para Oliveira Salazar, Amrico Toms, Marcelo Caetano, Silva Cunha, Franco Nogueira, Kalza de Arriaga, Silva Pais, Mrio de Figueiredo, e uma multido de tteres do regime, muitos destes nas Foras Armadas. As razes da intransigncia eram de ordem poltica e ideolgica, naturalmente; devido a interesses econmicos e empresariais, por certo, por questes de classe e de interesses individuais, evidentemente. A natureza do regime ditatorial no permitia vacilaes, a lgica do sistema econmico capitalista num pas simultaneamente colonizador e colonizado, no permitia sadas do tipo neocolonialista, que outros pases tinham prosseguido (Inglaterra, Frana, Blgica, Holanda). A estratgia militar era refm das contradies do sistema poltico e das suas prprias perverses (com uma mo d, com a outra mata!). S uma profunda e radical alterao poderia quebrar as cadeias, e isso alguns oficiais subalternos comearam a perceber, tambm com a ajuda e o exemplo de milicianos empenhados. Com determinao e sentido histrico, um grupo crescente de oficiais oriundos de uma academia que alargara a base social de recrutamento, organizou-se para pr cobro ao estado a que isto chegou. O derrube do regime fascista no glorioso dia 25 de Abril de 1974, pelos valentes capites com o apoio popular, honrando as melhores tradies patriticas das Foras Armadas, redimiu a instituio militar que assim recuperava o seu desgnio ao servio do povo portugus.20

* A guerra um lugar donde nunca se volta escreveu um jornalista recentemente. Para as centenas de milhares de portugueses mais ou menos traumatizados na alma e no espirito, frica jamais ser esquecida. Para os milhares de feridos e estropiados, com as marcas irreversveis no corpo, a guerra colonial no acabar nunca!... Que este livro de memrias ajude muitas conscincias pesadas e sonos atormentados a recuperar um pouco de paz. Essa seria a nica, verdadeira e mais paradoxal das vitrias dos ex-mancebos que nunca voltaram da guerra. Que este livro de inquietaes, na tentativa de ajudar a compreender a guerra colonial, nos permita compreender melhor o mundo de ontem e de hoje e bem assim, a derrotar todos os senhores da guerra, do passado ou da contemporaneidade. Construda a partir das vivncias prprias e de outras de amigos e camaradas que percorreram caminhos simultneos, a narrativa baseia-se em factos reais e datados, servindo a componente ficcional para a verdade ser mais segura e atingir maior profundidade. Episdios significativos da guerra colonial pretendem transmitir todo o drama individual e colectivo de homens que foram vertidos num caldeiro da histria, onde se queimavam os ltimos cartuchos de interesses retrgrados e opressores de um colonialismo serdio e reaccionrio. Nos flashes das histrias contadas no ficam bem, naturalmente, os mercenrios contratados como assassinos profissionais para espalharem o terror a troco de um soldo de sangue (pra-quedistas de21

Jorge Jardim, Katangas, Flechas, etc..). Pesada ser tambm a factura das chamadas tropas especiais, concebidas e treinadas para formatar alienadas "mquinas de matar, perpetrando matanas descabeladas, auto-convencidos os mancebos-guerreiros que assim salvavam a honra da Ptria. Entre dspotas e tiranos havia muitos militares honrados, na tradio daqueles que heroicamente se revoltaram e lutaram contra a ditadura fascista, ao longo de dcadas de terrvel opresso nas Foras Armadas. Simbolicamente convidmos para prefaciar esta obra um desses hericos militares resistentes, o coronel Joo Varela Gomes. Em ltima anlise, foi por sua inspirao que se desenvolveu o Movimento que derrubaria o regime e poria fim ao terrvel conflito que exauriu a Nao, apoucou a Ptria e enlutou a alma dos portugueses. Contribuir para o fim do trabalho de luto e para o apaziguamento de Portugal com a sua histria, seria a melhor de todas as compensaes pelos muitos anos de trabalho de construo desta obra. Ajudar compreenso plena do que foi a Guerra Colonial pelas novas geraes, que tm o direito a conhecer a tragdia autntica vivida e sofrida pelos seus pais e avs, para assim melhor entenderem o Mundo de hoje, ser a nossa maior satisfao. Certamente ser tambm uma boa forma de agradecimento a tantos amigos e camaradas que nos apoiaram e ajudaram nesta obra. Barreiro, Maio de 2007 Armando Sousa Teixeira

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1. IR GUERRA

O 28 RONCEIRO

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Horas de jantar, num tempo fresco de Outono recente arrastando as primeiras nuvens cinzentas e tristes que empalidecem a cidade inquieta. Pouca gente na rua, quase ningum na pequena leitaria de bairro, mesmo em frente da paragem do elctrico. Os segundos escoam-se lentamente numa eternidade que a ansiedade inventa, momentos de tenso expressos no olhar perscrutador sobre os raros passantes, espera do sinal prcombinado. Embora no seja novato naquelas andanas, aguarda com inquietao o encontro marcado para aquele local e hora. O "28" chega vagarento e ronceiro, faiscando na catenria breve estalido e soando o "tlim-tlim" caracterstico de passageiro em sada. Passam cinco minutos da hora combinada, uma rpida mirada ao retirante idoso e uma vontade enorme de entrar no "amarelo" e voltar para casa depois de um dia longo e cansativo. O condutor interroga com os olhos: " Entras ou no?"- arranca desiludido. Aquela a nica carreira que por ali passa, ficar na paragem no prudente, no v andar algum "bufo" nas imediaes. preciso voltar no recurso, a nova ligao importante, h iniciativas dependentes daquela conversa. Seria bom entrar na leitaria ali a dois passos, s l esto dois sujeitos sentados e o estmago avisa que o almoo j foi digerido h muitas horas, mas as moedas no bolso so conta para a viagem de regresso. Um dos clientes de vez em quando olha para a rua por cima da pgina do jornal. Bom, no vale a pena inventar fantasmas s porque o encontro falhou na primeira tentativa, o importante organizar o tempo que resta num priplo atento pelas ruas das redondezas. A rua do Poo dos Negros animadssima durante o dia, sempre com muita gente azafamada, varinas e vendedeiras com preges e dixotes, discusses frequentes por "d c aquela palha", inconsequentes na linguagem verncula animando a freguesia: freguesas! H bom tomate saloio!24

Olh desavergonhada, a querer roubar-me os "tomates"!?... Olh coiro! Tomates no me faltam l em casa, sua invejosa! Vida tpica de um bairro popular da Lisboa do incio da dcada de 70, capital de um imprio de "faz de conta", sorvedouro de homens e de recursos, onde indisfarvel a tristeza nos olhares reprimidos dos que sabem ver para alm da baa de Cascais. Por mares que voltam a ser o sal das nossas lgrimas, partem soldadinhos e grumetes com destino certo e futuro incerto. Voltaro a ver as praias de Portugal? Na hora em que a noite chega, a rua entristece-se, inspita, mal iluminada, desoladora; o eterno mistrio das trevas, amarfanhando os dias e tecendo as sombras da desconfiana e dos medos. Sacudir as teias preciso, a longa caminhada pelo quarteiro vai servindo para pr os pensamentos em ordem e para sistematizar as informaes recolhidas na reunio do organismo durante toda a manh. Rua dos Poiais de S. Bento, meia dzia de transeuntes com direces definidas. Sons inteligveis chegam por uma janela entreaberta num rs-do-cho alto. Pelo som, o telejornal est a comear. No dir que a situao na Guin est muito complicada, o PAIGC detm a iniciativa estratgica no terreno e com a utilizao de msseis terra-ar, abateu alguns avies e helicpteros das foras portuguesas que perderam a vantagem area. Grave desastre ocorreu no abandono de Madina do Bo, com dezenas de mortos durante a travessia do rio Corubal, e uma companhia de "comandos" foi quase dizimada na regio de Gadamael. O populismo do governador do monculo, Antnio de Spnola, vai caindo em descrdito, porque no aparecem as obras prometidas para o desenvolvimento da regio e para o propalado bem-estar das populaes. Calada de S. Bento, duas ou trs pessoas na paragem ascendente da carreira dos Prazeres. Uf! Custa a subir a ladeira ngreme at esquina25

donde se divisa o vetusto e imponente palcio com o mesmo nome e onde apareceram ultimamente algumas vozes dissonantes, da chamada ala liberal. Contradies do sistema; em Lisboa como na guerra na longnqua e torturada frica. Pela porta de uma taberna escura, com escassos clientes mas com a moderna televiso a preto e branco no canto de uma parede, ouvem-se as palavras do noticirio oficial: " O senhor presidente do Conselho fala hoje ao Pas... No deve ser com certeza para dizer que em Angola o MPLA mantm a iniciativa em diversas zonas, embora se v ressentindo do esforo de mais de dez anos de guerra continuada e da aco divisionista e mesmo provocatria de outros grupos de guerrilha. Jonas Savimbi parece ter feito no Leste um acordo preferencial com a PIDE, e passou a atacar o movimento histrico com o seu grupo tribal denominado UNITA. Do ponto de vista militar a situao pode considerar-se de impasse, no sendo todavia de excluir tentativas de cariz neocolonialista apoiadas na vizinha e poderosa frica do Sul onde perdura o famigerado "apartheid". Av. D. Carlos, circulam alguns carros arrastando as folhas amarelo-douradas dos pltanos frondosos do largo da Esperana, despindo-se gradualmente para o longo sono invernal, aproximando-se inexoravelmente da cidade. Era de jurar que aquele veculo preto de estilo oficial j passara h bocado no sentido contrrio...!? Bom! Carros pretos h muitos, mas hoje precisamente, na reunio matinal, durante o "minuto conspirativo", falouse na necessria ateno a carros pretos utilizados pela PIDE! Foi interessante a reunio, sobretudo no ponto referente luta contra a guerra colonial. Informaes sobre o descalabro da operao N26

Grdio", no norte de Moambique, congeminada pelo militarista governador e comandante-chefe, Kalza de Arriaga, falam num rotundo fracasso poltico e numa tragdia humana, com populaes civis sacrificadas, centenas de soldados portugueses mortos e feridos, condenaes de Portugal na ONU, e a Frelimo a estender a sua aco cada vez mais para Sul, abrindo uma nova frente em Manica-Sofala (distrito da Beira) A pretenso de limpar o Norte a pente fino e ganhar guerrilha militarmente, acabou afogada em sangue (milhares de nativos mortos ou presos na ilha do Ibo e na Machava) e terminou mergulhada em corrupo (a "auto-estrada" de Palma ao longo do rio Rovuma, ficou-se nos primeiros quilmetros e muito dinheiro foi desviado para bolsos assaz patriticos!).

Na leitaria esto as mesmas pessoas de h meia hora atrs: o velhote na mesa do fundo atento s notcias, e o fulano de gabardina a ler o jornal voltado para a rua. Estranho! No muda de pgina nem olha para a televiso, colocada num canto superior do estabelecimento. O noticirio acabou e aparece no ecr a figura crispada do presidente do Conselho para mais uma mensagem ao Pas. O tom de preocupao que o ar autoritrio no consegue disfarar, a imagem do fracasso da demagogia liberalizante, praticada pelo homem que substituiu o velho ditador, e das imensas contradies em que o regime se atolou. O aumento da represso nos incios da dcada fez cair a mscara da primavera marcelista, relevando do incremento da luta poltica da Oposio Democrtica e do envolvimento de cada vez mais sectores contra o regime ditatorial. Marcelo Caetano fala da recepo concedida pelo Papa aos lderes27

africanos dos movimentos de libertao: circulam falsidades dando como libertada uma parte do territrio da Provncia Ultramarina da Guin e falando de uma auto-proclamada Repblica Popular da Guin, que teria a capital em Madina do Bo. Tal atoarda fruto da propaganda insidiosa do inimigo a soldo de potncias estrangeiras, da incompreenso de quem tinha a obrigao de no receber terroristas e de saber que nenhuma parcela das terras portuguesas e crists de frica, ser alienada. Essa falsa repblica sem Madina e sem Bo... Madina do Bo, no Nordeste da Guin-Bissau fora abandonada em Fevereiro de 1969, numa operao que custou 44 mortos portugueses na travessia do rio Corubal. O PAIGC reuniria a a primeira Assembleia Popular e proclamaria a independncia da Repblica Popular da GuinBissau, em Setembro de 1973.

IR OU NO IR ? Se calhar esto a pensar que eles me apanham l,

no!?... clamava exaltado no calor da discusso, o jovem moreno e bem vestido, na tropa h seis meses. Existe um grande descontentamento nos milicianos, preciso unir esforos para acabar com a guerra! contrapunha mais calmo e idealista, o rapaz magro e alto, envergando roupa de tons escuros. Desculpa! Atirador de armas pesadas, na Guin, no sei se esto a perceber!?... Se no estivermos entre a juventude fardada no terreno duro, ajudando na consciencializao, quem o far? aduzia o moo de testa alta e cabelo tipo escova de arame, convicto da orientao poltica traada.28

Isso utopia! N! Desta vez no me convencem! Quando chegar a vossa vez, quero ver como !... mantinha-se renitente e agressivo o jovem bem ginasticado, mostrando j ter reflectido demoradamente sobre o assunto. Fora incorporado a meio do curso mdio de engenharia (chumbara um ano!...) como acontecia a milhares de outros jovens estudantes, e, aps ter feito a especialidade em Vendas Novas, mostrava muita relutncia em aceitar a mobilizao para a Guin. No era fcil convencer quem, sentindo o cheiro a plvora, aceitasse de bom grado ir para o teatro de guerra tentar desmistificar o conceito de defesa da ptria, o embuste da superioridade rcica e a mentira do falso desgnio histrico! preciso pr fim guerra! propugnavam as foras polticas mais consequentes. Este sentimento corria os quartis, paradas, casernas, no pas de marinheiros que tardava em concluir a tarefa iniciada na era de Quinhentos de dar novos mundos ao mundo. O mesmo sentimento alastrava nas reparties, nos aquartelamentos, nos postos avanados, na distante, misteriosa e martirizada frica: "Tem havido movimentaes no seio dos jovens oficiais do quadro permanente, motivadas por razes corporativas, mas a coisa pode radicalizar--se!... o camarada Joo, bigode farfalhudo e sotaque nortenho, sabia do que falava. * Chegara ao grupo discretamente, a pele muito morena e a saia curta mostrando pernas bem torneadas com pegas brancas e sapato raso. Aquela forma de estar, algo distante e compenetrada, mas simptica e graciosa, acendeu paixes e afivelou rivalidades. Viram ontem o primeiro-ministro atirar-se ao Papa?!... Grande bronca! - regozijava-se a jovem de cabelo em franja sobre os olhos29

escuros e sorridentes. A sua tez bronzeada fazia intuir da origem em terras do Sul. Portugal a ltima potncia colonial europeia, teimando numa poltica de agresso aos povos africanos que at o Papa condena! ponderava o jovem alto, de barbicha, um aspecto tristonho e srio. As freiras do nosso lar foram a correr para a capela rezar! acrescentava a outra jovem de cabelo curto e olhos cintilantes, risonha e muito extrovertida. C para mim a malta devia denunciar a porra da guerra, abertamente! E se for preciso fazem-se umas aces directas!... entusiasmava-se o Paco de cabelo muito comprido, cigarro nervoso entre os dedos, sorriso trocista e provocador nos lbios finos, voltando-se particularmente para a escassa plateia feminina. Calma a! A nossa preocupao fundamental a resoluo dos problemas estudantis! contrapunha o estudante de pra e bigode com um tique de dirigente associativo e o ar convicto das razes idealizadas. No ps Maio francs de 1968, as divergncias ideolgicas acentuaram-se no meio estudantil, a educao tradicionalmente individualista das camadas mdias que tinham acesso universidade, propiciava radicalismos. A ditadura cometeu nessa altura dois erros capitais: Depois da feroz represso sobre o movimento associativo estudantil em 1969/70, incorporava o regime. Ir ou no ir era a questo! Sabes, o Reinaldo deu o salto durante o fim-de-semana! Disse-me o pai! Era de prever! Afirmou convictamente que para a Guin no ia!30

agora

compulsivamente

no

SMO

(Servio

Militar

Obrigatrio) milhares de jovens estudantes que tinham aprendido a odiar

os dois jovens tinham-se encontrado tacitamente na cantina do grande instituto, como acontecera de outras vezes, normalmente acompanhados. Naquele incio de noite estavam s os dois. Escuta, ainda no respondeste ao meu pedido... quilo de que te falei sobre a ponte unindo as duas margens havia atrapalhao, ansiedade, mas tambm o calor da paixo nas palavras do jovem vestido de tons escuros. Sabes? Eu eu, no tenho experincia! No quero precipitar as coisas e depois d-me algum tempo para pensar. O sorriso bonito naquela cara morena ainda mais acendia a chama, mas o momento era de grande frustrao. A luta era feita de vitrias e derrotas, de avanos e de recuos, como aprendera naquelas andanas da poltica desde muito novo.

CINCO MIL ANOS DE ATRASOO propsito de realizar umas Jornadas do Ensino Mdio de Engenharia levou uma delegao de estudantes e de antigos alunos a uma audincia com o Ministro da Educao, trs vezes marcada e trs vezes adiada at final concretizao. Cumprimentos da praxe, sala sumptuosa de moblias de estilo e cadeires de pele, uma penumbra agradvel num tempo de quase vero. Fazem favor de se sentar, estejam vontade enquanto recebo um telefonema de Coimbra. Ora essa, senhor ministro, no temos pressa!... Ficaram respeitosamente em p volta da mesinha de madeira trabalhada, de perna curta, ladeada por dois sofs baixos de pele castanha

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e uma cadeira de espaldar alto, no topo. Uma envolvncia algo atemorizadora para os novatos naquelas andanas, a entreolhar-se admirados com o que estavam a ouvir: ... Uma actuao firme, sem vacilaes! Fazem greve em Julho, no h exames em Setembro! a voz nasalada do governante soava distinta e propositadamente para ser escutada, acompanhada de abundantes gestos. A crise acadmica na Universidade de Coimbra, iniciada com a proibida interveno do presidente da Associao Acadmica durante a recepo ao Presidente da Repblica, no incio do ano lectivo de 1969/70, tivera uma evoluo surpreendente e uma radicalizao inesperada. Milhares de estudantes em desobedincia civil, enfrentaram durante meses as foras repressivas da Polcia, da GNR e da PIDE, lutando pelas liberdades fundamentais e por um ensino democrtico, contra a ditadura poltica. Dias inesquecveis na baixa coimbr e dentro da prpria universidade, Ensino e da a fazer frente aos ces-polcia e aos "polcias-ces", Universidade, boicotando os exames e repudiando as desafiando e desorientando a ordem estabelecida, exigindo a reforma do tentativas de aliciamento demaggico da parte do Ministrio da Educao e do Governo. "IBM" e os seus companheiros puseram a cidade em polvorosa. O Pas animou-se em expectativa, o fascismo estremeceu em raivosa impotncia. Ao fim e ao cabo, eram os filhos das melhores famlias em p--de-guerra! Pois que sejam todos incorporados! Perdem o ano, vo para a tropa! Vai fazer-lhes muito bem! uma ltima frase veemente, telefone pousado. O Ministro da Educao, a que os estudantes chamavam32

satiricamente o "meio-istro" ou, "meio-nistro", devido sua baixa estatura, congemina em voz alta percorrendo o vasto gabinete com as mos na cabea, teatralmente: Ah! Aqueles vossos colegas de Coimbra! So cinco mil anos de atraso civilizacional para o Pas!... voltou-se para os estupefactos interlocutores olhando-o timidamente, ainda em p beira dos sofs. Sim! Porque cinco mil estudantes da Academia de Coimbra em greve aos exames, vezes um ano perdido, so cinco mil anos! Aproximara-se finalmente da sua cadeira e fixava os circunstantes como que a saborear o efeito da sua extraordinria discorrncia. Mas fazem o favor de se sentar, ainda esto de p?! Faz favor, senhor ministro...! o decano Vieira fazia as honras do grupo, mexendo-se incomodado. Sentem-se! a voz autoritria soava a falsete e perdia a postura por uns momentos. Os quase siderados visitantes, enfiaram-se nos sofs baixos e fofos, ficando enterrados quase ao nvel do cho. Do alto do espaldar da sua cadeira especial, recuperando a pose teatral a uma altura superior de todas as cabeas, mesmo do estudante barbudo que tinha mais de um metro e oitenta, o "mini-istro", outra forma de piropo estudantil, concluiu triunfante: Cinco mil anos de atraso para Portugal! Os vossos colegas de Coimbra so responsveis perante a Histria por cinco mil anos de atraso civilizacional! Com tantos atrasos as Jornadas de Engenharia ficaram para as calendas, o ministro da Histria cairia pouco depois e iria aparecer o ministro da reforma e dos gorilas. Entretanto centenas de estudantes de Coimbra comearam a ser chamados para a tropa.

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SEM MADINA E SEM BOA notcia chegou trgica, chocante. O Rolando tinha sofrido um acidente com uma granada e viera evacuado para o Hospital Militar sem ver dos dois olhos. Embarcara para a Guin h menos de trs meses, como furriel sapador de minas e armadilhas, uma especialidade tramada que fazia temer pelo futuro, mas logo assim em to pouco tempo!?... Cansado de um dia cheio de actividades ligadas ao movimento estudantil e resistncia antifascista, Joo, aguardando a chamada para fazer o servio militar segundo a orientao partidaria to discutida, na qual o Rolando tambm tinha participado, resolveu que a solidariedade era mais urgente. Pelo caminho, no elctrico subindo compassadamente a Calada da Estrela, ia recordando a reunio em que tantas dvidas se tinham manifestado sobre o papel da juventude mais consciente no teatro de guerra, junto do povo fardado, ajudando a engrossar a corrente contra a criminosa imoralidade da situao. O responsvel do organismo socorrera-se da histria durante a participao da Rssia na I Grande Guerra, quando o Partido Comunista da Unio Sovitica, na clandestinidade, defendera a ida guerra dos seus militantes para, por dentro, minarem a confiana dos soldados no Czar, preparando assim as condies para a Revoluo Russa de 1917. Cego! Informara o comum amigo e avisador. Uma angstia feita suor frio, tolhia os passos e os pensamentos ao atravessar o pequeno jardim ao lado da Baslica, conhecido h muitos anos das caminhadas rua acima para o Instituto, espreitado entre as copas das rvores e o varandim de ferro. Isso bom de dizer quando se tem uma especialidade de34

secretaria, agora minas e armadilhas!?... dissera o Rolando pouco antes do embarque para a Guin. Como no havia ningum de guarda, foi entrando pelo terreiro, com mltiplos pavilhes disseminados, at encontrar um rapaz-cabo de bata branca: Boa noite! Onde posso encontrar um furriel ferido, evacuado hoje da Guin? Disseram-me que talvez aqui no Anexo! Aqui? No!... melhor procurar do outro lado da Avenida Infante Santo, a que esto esses casos! J escurecera naquele tempo de fim de Vero, tambm neste local no havia guardas, contudo logo entrada do 1. pavilho, vrios soldados em pijama regulamentar, e com ferimentos perceptveis sob ligaduras e pensos, estavam sentados em cadeiras de rodas. O corao doa com aquela viso terrvel, a emoo embargava a voz: Boa noite!... Onde posso encontrar um furriel vindo da Guin? Cego por uma granada!... H por a tantos! Veja na sala ao fim do corredor. Obrigado! As melhoras as ltimas palavras saram to sufocadas, revoltadas e envergonhadas, por estranhos e simultneos sentimentos , que se calhar nem foram ouvidas. No foi preciso perguntar a mais ningum. Ao fim do corredor a porta aberta da pequena enfermaria deixava ver um homem jovem, de cabelo encaracolado de um escuro caracterstico, sentado numa cadeira de rodas com uma tigela de sopa numa das mos e a colher na outra, fazendo esforos nervosos e inadaptados para levar a comida boca. Do guardanapo de proteco escorriam restos de caldo, enquanto mais adiante um soldado maqueiro dava a sopa a outro jovem militar acamado e sem mos, com cotos ligados altura dos cotovelos. Por instantes ficou paralisado, com uma absoluta angstia de ver o35

amigo naquele estado, as lgrimas saltavam e sentia uma vontade inadivel de fugir daquela viso trgica e fingir que nunca tinha existido. O maqueiro atarefado no dera pela intruso, ningum dera pela sua presena, como custaram a dar aqueles trs passos at pousar a mo no ombro do amigo: Rolando! Ah! s tu!... Ento rapaz, que te aconteceu!? Coisas da guerra. Quando chegaste? Como ests? Cheguei ontem noite. Os mdicos j me viram!... o jovem muito moreno, a quem no crculo prximo chamavam cigano, tambm estava emocionado e interrompera a tentativa de engolir a sopa. Sem nada dizer, comovido at ao limite das foras, tirou-lhe devagar a malga e a colher e lentamente para a mo no tremer, comeou a dar-lhe a sopa, salgada de certo pelas lgrimas que caam silenciosas. Ah! Ainda bem que chegou! familiar? No consigo fazer tudo, estou sozinho!... o soldado maqueiro justificava-se no meio da curiosidade constrangida. Sim! Bem!... Sou amigo como se fosse irmo, entrei porque no encontrei ningum de guarda. A esta hora est tudo ocupado, se soubesse a quantidade de gente ferida! O furriel no dos piores em comparao!... apontava com a cabea na direco do ferido sem mos que quebrou o silncio, agressivo: V! D-me l o resto dessa merda! quanta raiva e desespero naquele soldado desconhecido. Era preciso quebrar a tenso: Ento o que te disseram os mdicos Rolando? Vou ser operado. H esperana em conseguir recuperar da vista direita.36

Bom! Isso uma boa notcia. Quando a operao? E a outra? Vo ser necessrias vrias operaes para limparem todos os gros de areia, e so muitos! A granada ofensiva rebentou no terreno de areia minha frente. A outra vista no tem recuperao. Ora bem! Como diz o povo No completou a frase. Com a mo no ombro do amigo, que tinha os dois olhos completamente vendados por compressas, sentiu quo ridculas poderiam ser mais palavras. No quero mais sopa, obrigado! s comera quatro ou cinco colheradas, devia estar com vergonha da sua situao. Talvez mais tarde, com outros recursos consigam recuperar a outra!... Talvez! Que mais poderia dizer?

No pequeno ecr toca o hino nacional e agita-se a bandeira a marcar o fim da conversa em famlia. O homem da gabardina j no est na mesa da leitaria. Passa tempo demais em relao s normas de segurana, a rua est agora quase deserta, aproxima-se o "28", vagaroso, rangente. A cidade vai sossegando sob a paz aparente de um manto difano que encobre angstias e incertezas, tempo de voltar para casa. Os pensamentos correm velozes disfarando a inquietao do desencontro: "Que teria acontecido?" Indisfarveis e reveladoras da incapacidade de resolver a questo colonial, foram as palavras do professor, filho dilecto do regime: "...sem Madina e sem Bo...". Sem vergonha! Apetece gritar ao homem que espalhara iluses at entre alguns sectores da Oposio Democrtica, com37

a chamada primavera marcelista, quando chegara cadeira do poder de onde cara Salazar. Mas os tempos estavam a mudar, a demagogia e o paternalismo no conseguiam esconder a realidade interna de acesa luta poltica e a verdade do agravamento da situao nas trs frentes de guerra. O "amarelo" arranca com um tlim-tlim desnecessrio, no h veculos vista. De repente estaca com outros "tlim-tlim" instantes, um carro preto vindo da esquina prxima, atravessou-se bruscamente na sua frente! Sai gente agitada do veculo, homens de gabardina e de pistola em punho: ordens, gritos, corridas curtas at ao elctrico: ele! Agarrem-no! ele!

ALERTA CAMARADA!A paixo pela morena rolia ganhara razes. Afastada a concorrncia, os dois jovens partiram descoberta do carinho e da ddiva mtua na exuberncia dos 20 anos. Por vezes esqueciam as preocupaes: J tomaste uma deciso? Posso saber qual a tua resposta? o jovem esperava de propsito nos degraus sada da cantina do IST onde muitas vezes jantavam. A experincia de uma primeira ocupao (mal) remunerada e precria, no Instituto Nacional de Estatstica, ali perto, permitia manter o contacto e conquistar o namoro: Sabes? Tens-me feito passar por uma grande aflio!... No pensava to cedo... Posso interpretar como uma afirmativa? Queres ser minha

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namorada? Sim...! Mas olha, a srio! Claro que a srio! Gosto muito de ti! Haveremos de ser felizes, prometo-te! Desceram a escadaria de mo dada, enlevados e trmulos de emoo. Deram a volta ao quarteiro, alheados de tudo o que se passava em redor e o regresso ao ponto de partida, permitiu aprofundar o primeiro dilogo na nova condio de partilha de sentimentos. Os coraes abriam-se de forma sincera, sem lamechices, e o mundo revelava-se sorridente, tudo volta parecia perfeito e calmo. O silncio no pequeno e maltratado jardim das traseiras da Associao de Estudantes, aparentava ser um paraso em que a felicidade era abarcada pelas mos entrelaadas, sem mais nada. Nascia e crescia um sentimento muito forte que em breve iria ser posto prova.

Um a um todos foram chamados para a tropa. Primeiro o jovem de cabelo tipo escova-de-arame foi para as Caldas da Rainha, depois o que tinha um ar de intelectual-triste foi para Tavira. Safava-se o rapaz magro de cabelo muito comprido, porque nascera em Ceuta e tinha nacionalidade espanhola. O jovem alto e magro, que vestia roupa escura foi o ltimo a ser chamado, o edital publicado na Cmara Municipal no fim do Vero de 1971, ditava a incorporao em Mafra, no COM, em princpios de Outubro. Aproveitavam o fim-de-semana para se juntarem e trocarem impresses sobre as experincias das respectivas recrutas: Aquilo nas Caldas uma misria de comida. Fala-se em fazer um levantamento de rancho, logo que acabe a semana de campo vamos para o barulho!39

Em Tavira obrigam-nos a andar pelas salinas com lama at aos tomates. O pessoal anda revoltado com a dureza da instruo, qualquer dia organizamos uma bronca! L em Mafra andam mansinhos desde que morreram trs cadetes na lagoa durante a instruo. E morreu mais um no turno passado, do 2. ciclo, durante exerccios com fogo real. E se denuncissemos tudo isto e muito mais sobre a guerra colonial? Assim nasceu um jornal, necessariamente clandestino, o Alerta Camarada!, feito em moldes rudimentares num dos clebres duplicadores manuais, nos incios da dcada de 70. Durante muitos meses, levou as notcias, os comentrios, os relatos, o apelo luta contra o militarismo e contra a guerra, a tantos e tantos quartis onde se industriava a juventude portuguesa para ser carne para canho. At que todos os seus mentores, seguindo uma orientao conscientemente assumida, partiram para a guerra.

VIVER E MORRER NO TEMPOAo fim de trinta anos continuava com dificuldade em acertar o passo, vacilante, trpego, de mo dada com o mido-neto que no parava de tagarelar. Saa me, pois o pai, o seu Joo Silveira, era moo de poucas falas como ele: Av, porque viemos aqui ao cemitrio? Vim visitar um amigo que j no vejo h muitos anos. Mas os mortos no se vem av!... Pois no! Mas quando so nossos amigos como se estivessem aqui connosco, traz-mo-los no corao.

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Como se chama o teu amigo? Pinto, Jos Pinto! V se descobres um gaveto com um capacete militar desenhado na pedra. Av, estas gavetas so todos mortos? sem esperar pela resposta o mido muito mexido, ia pinoteando medida que passava os olhos pelos inmeros compartimentos dispostos em vrios nveis, com fotografias uns, com nomes gravados outros, muitos com flores artificiais, alguns com fantasias bizarras. Era o culto dos mortos num pas de catlicos supersticiosos. este aqui, av? Tem um capacete como nos filmes de guerra. Mas no tem nenhum nome?!... Pois no, ele no quis! Nem tem uma cruz como os outros!?... Raio de ganapo! pensou. Traquinas e esperto como poucos, apenas com cinco anos sabia ler e utilizar o computador -vontade, melhor que ele prprio, para quem o microprocessador era uma ferramenta de sobrevivncia na invalidez provocada por um estilhao de mina, alojado junto da coluna vertebral. Av, como morreu o teu amigo na guerra? Tambm estiveste na guerra, no foi av? Foi, foi!... Para mim a guerra nunca acabou!...

*

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Dez quilmetros de picada para passar a pente fino, a coluna com a nova companhia pernoitara no aquartelamento mais prximo e logo pela manh ia atravessar o grande rio. A seco de sapadores levantara-se muito cedo e partira ainda de noite rumo margem onde a corrente forte estava a ser domada pela monumental barragem em finais de construo. luz dos faris comeavam os gestos mecanizados e prudentes, magnetmetros frente para detectar metais, as picas atrs a furarem o terreno, sobretudo nas zonas de areia solta, conduzidas por mos experientes de soldados em fim de comisso. Vamos l buscar os checas! Tratem-nos bem, so o nosso abono de famlia! dissera sorridente e aparentemente bem disposto o furriel Silveira, comandante da seco, quando iniciavam a tarefa de deteco de minas luz da Berliet de transporte, a chamada rebenta-minas. Pela ensima vez repetiam aquela operao e raramente tinham detectado engenhos explosivos, naturalmente porque o trilho era muito frequentado pela populao local e a tenso de guerra estava ali bastante apaziguada. H semanas que no havia flagelaes, emboscadas ou minas na picada, o pessoal seguia com relativa descontraco, olhando o raiar da nova aurora pondo riscos avermelhados num horizonte de breu, no tardava nasceria o Sol. Furriel! Furriel! Est aqui qualquer coisa, sinto um objecto rijo! Calma! No levantes a pica, espera! Calma carago! Afastem-se todos! breves e concisas palavras do furriel-comandante, sacudido por um imperceptvel tremor de quem adivinhava um destino ruim. Sempre comentara nas horas de cio volta de uns copos de whisky na palhota improvisada a que se convencionara chamar de messe de sargentos, o grande temor pelos ltimos dias de comisso, um mau pressgio acompanhando-o nos vinte e seis meses em que vrias vezes

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fora obrigado a mostrar a sua coragem e sangue frio, custa de uma grande concentrao e domnio do medo terrvel, viscoso, que lhe trespassava a medula e agora quase o vencia. Pinto! Chega aqui! Vamos tentar desmontar a menina!... chamava o seu melhor colaborador e amigo, o 1 cabo Jos Pinto. Este tinha sido o melhor aluno do seu curso de sapadores, com distino e elogios, acabando rapidamente na mobilizao para Moambique. Calma, p! Passa-me a pica, devagar, carago! o soldado tremia lvido e pegado ao cho com botas de chumbo. No foi detectada pelo magnetismo, deve ser de plstico! elucidava o furriel enquanto o soldado detector se afastava ainda a tremer. J vamos ver! Vou levantar a pica devagar, assim... O Pinto era um rapaz corajoso, leal e honesto, dizia sempre o que pensava com frontalidade, o que lhe valera srios aborrecimentos com a hierarquia,... que no tirava o cu das cadeiras e s sabia cagar sentenas!, como dizia publicamente e sem rodeios. Os seus vrios exemplos de coragem e nobreza de carcter, sempre tinham evitado a transformao das ameaas superiores em castigos: Eles sabem perfeitamente, quem faz a guerra so os soldados e os milicianos! Na sua simplicidade e grandeza de alma, vrias vezes dissera que se morresse na guerra, s queria ter um nome no tmulo (como cantava o Fernando Farinha) o nome de Portugal. Uf! J est! Afaste-se furriel, vou tentar des....... Buummm! O estrondo terrvel levantou uma gigantesca nuvem de poeira cobrindo o cu e relanando as trevas na hora em que o Sol despertava num horizonte de pequenos montes avermelhados e de arborizao pouco exuberante. Nascia tinto vermelho de sangue o dia 24 de Abril de 1974,43

em Moambique.

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2. REGRESSO DA NDIA, PARTIDA PARA ANGOLA

NO FIO DA NAVALHA

(I)

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Tarde de sbado, interregno no ciclo triturante de trabalho dirio na oficina-fbrica-obra-loja-repartio-escola, na babel de mesteres que fazem o burgo fervilhar como um formigueiro imenso em tempo de laborao. Pausa em dia de Primavera com o clima ameno da beira-Tejo, mas com as preocupaes de um mundo em tenso, nos fins da dcada de 50, e com as ralaes de um Pas padrasto a contas com a Histria. A barbearia do senhor Joaquim Faria enche-se de clientes esperando a vez ou simplesmente animando-se em conversas e altercaes ligeiras, num local privilegiado onde se l e discute O Sculo e a Vida Mundial. No estabelecimento da esquina da rua Aguiar, frente taberna do Arnaldo, juntam-se homens esclarecidos falando do Mundo e do Pas, mau grado o receio de a conversa ser escutada por ouvidos indiscretos. O dono da casa, oriundo do Alentejo litoral, h muitos anos radicado na vila operria, onde, como republicano e antifascista, se engajou na luta contra a ditadura, d o mote: O que representam Goa, Damo e Diu para ns? Vamos defender o qu a tantos milhares de quilmetros de distncia? Mas j l estamos h muitos sculos, temos o nosso direito histrico! objecta um bem intencionado interlocutor, lembrando as lies da escola primria. Direito histrico? Isso diz esse santarro de Santa Comba para nos enganar! Descobrimos o caminho martimo para a ndia mas j l existia uma civilizao! Deix-lo! Est l muita juventude a defender aquilo, no podemos abandon-los !... interpunha outro circunstante que tinha l um familiar, o sobrinho Alfredo. Ora amigos! Podemos fazer alguma coisa contra 300 milhes de indianos? So tantos que a cuspo corriam com os portugueses para o46

oceano! A conversa muito animada, perdeu de repente a chama quando entrou o Vaz, notrio situacionista, de quem havia fortes suspeitas de ser informador da polcia poltica. Na sala, estalou uma discusso sem nexo iludindo a presena indesejvel. Ento senhor Vaz, barba ou cabelo? Barba, se faz favor! Que me diz ameaa do pandita Nheru sobre o Estado Portugus da ndia? disparou queima-roupa o suspeito-debufo, refastelado na cadeira. Sabe, quando estou concentrado no meu trabalho no gosto de distrair-me com outros assuntos ! Ah, bom, desculpe, julguei ter ouvido falar da ndia quando entrei. Joaquim Faria maneja a navalha de barbear bem junto ao pescoo do farsante, um lampejo trgico passa-lhe pelo esprito: malandro, merecias que te cortasse o pescoo !. O barbeiro estava na poltica desde os tempos do MUNAF (Movimento de Unidade Antifascista) ainda durante a II Guerra Mundial, e, nessa azfama, travara anos depois os primeiros contactos com a polcia poltica, tendo passado alguns meses preso em Caxias. Embora sasse sem julgamento, fora avisado pelo senhor inspector para no se meter mais em polticas se quisesse manter a porta aberta. A barbearia era a sua sobrevivncia difcil, a PIDE rondava-lhe a casa, mas o pior era a rede de bufos sempre espreita: Pois, como lhe ia dizendo, quando atendo os fregueses no presto ateno s conversas! aplicava com zelo a pedra de estancar sobre um pequeno corte, demoradamente, provocando intenso ardor que fazia o linguareiro torcer-se todo na cadeira: Ahhh! Claro, claro!... e o cliente Vaz no abriu mais o bico at ao fim da operao de escanhoamento.47

PARTIDA PARA A NDIAs propostas de negociao pacfica feitas pela Unio Indiana sobre a futura integrao dos territrios de Goa, Damo e Diu, sob administrao portuguesa, respondeu Salazar em Junho de 1955 com o envio de mais um contingente de tropas e mais material de guerra. Alimentando um conflito votado ao insucesso com a jovem e poderosa nao indiana, procurando perpetuar um domnio colonial que os povos autctones repudiavam, o governo salazarista, qual falco em plena guerra-fria, insistia na via do confronto militarista. Na longnqua sia, de que deveria restar uma memria positiva, ficou uma lembrana trgica, prenncio de outras tragdias diminuindo Portugal aos olhos do mundo. Os governantes fascistas, escondendo do povo portugus a sua vocao belicista, usando a frrea censura dos jornais, preparavam mais mobilizaes numa altura histrica em que se registavam alguns sucessos nas relaes entre as grandes potncias: A realizao da Conferncia de Genebra entre a Frana, Inglaterra, Estados Unidos e Unio Sovitica, em 1955; a conferncia dos Povos Asiticos e Africanos, em Bandung, no mesmo ano; a Assembleia Mundial da Paz, em Helsnquia, com representantes de 68 pases; o fim das guerras da Coreia e da Indochina. No regimento de Artilharia 1, em vora, foram mobilizados 150 soldados para a ndia, que no regresso da licena regulamentar de 10 dias, se manifestaram ruidosamente contra a mobilizao: No queremos ir para a ndia! No queremos ir para a ndia! Como represlia, foram castigados com o corte de dispensas, e assim teve incio uma escalada repressiva exemplar. J em nmero de 300, juntaram-se na parada a protestar, pondo o quartel em estado de stio. O48

comandante, intimando toda a hierarquia, mandou fazer uma marcha acelerada, na qual quem ficava para trs era sovado a cavalo marinho. Exaustos e revoltados, quando a marcha acabou muitos soldados vieram para a varanda do quartel que d para a cidade, gritar: Estamos presos e maltratados porque no queremos ir para a ndia!. Juntou-se muita gente c fora e o oficial-de-dia tentou uma manobra dissuasiva dando ordem de priso a dois cabecilhas. Aumentou a revolta aos gritos de, Canalha! Cobarde! Se prendes dois, tens de prender todos! Perante o estado de rebelio, o comandante tenta uma manobra dilatria ao mandar chamar dois representantes dos soldados, prometendo liberar os detidos no dia seguinte, e se acalmassem daria mais alguns dias de licena. Os delegados trazem a notcia e encontram a turba exaltada: No amanh, hoje! hoje!. A gritaria durou muitas horas at exausto e quebra pelo cansao. No dia seguinte os dois soldados foram de facto libertados e recebidos em apoteose. Depois de mais alguns episdios repressivos, como uma busca s casernas enquanto os soldados estavam formados na parada, foram finalmente informados que a mobilizao no seria imediata, dependia de outros embarques prximos. Tal foi recebido como uma grande vitria pelos soldados de vora, gritando de regozijo continuaram a afirmar a no aceitao da mobilizao.

O COLONIALISMO TEM OS DIAS CONTADOSNo discurso perante o IV Congresso da Unio Nacional, em 30 de

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Maio de 1956, Salazar dedicou grande espao aos problemas coloniais e declarou que o Continente Africano um complemento natural da Europa, necessrio sua vida, sua defesa, sua subsistncia. H muito que os salazaristas e os imperialistas mostram esta preocupao pelas colnias e particularmente pela frica. Ao mesmo tempo que intensificam a explorao das suas riquezas, pretendem integr-las nos seus planos de guerra e reprimir o desejo latente de libertao desses povos que dia a dia despertam para a luta (...) As tentativas para a reprimir de nada serviro. Quando um povo, mesmo enfraquecido pelo longo jugo colonial, decide lutar pela sua libertao arrasa todos os obstculos levantados sua frente. assim, de forma premonitria que o Avante! de Junho de 1956,analisa a questo colonial portuguesa, sob o ttulo: O Colonialismo tem os dias contados. Esta questo era desde h muito uma verdadeira pedra-de-toque da poltica pura e dura do regime salazarista, escondida atrs de frases grandiloquentes como: Portugal daqum e dalm mar, Ptria una e indivisvel do Minho a Timor, Uma Nao, muitos povos, etc. Ainda no final da dcada de 40, quando da negociao do plano Marshall, Salazar afirmara que ... a frica constitui para os pases que a colonizaram uma to vasta como legtima reserva, muito possivelmente a ltima que resta ( Europa) para que as sombras actuais no sejam nesta velha parte do mundo sede da verdadeira civilizao crepsculo definitivo. Jogava as colnias e as suas imensas riquezas, cobiadas pelos norte-americanos , como moeda de troca para as ajudas do mal amado amigo americano. Na dcada de 50, no campo democrtico, havia diferenas assinalveis entre sectores vacilantes com posies prximas de compromissos neocolonialistas ( que a ala mais liberal do regime tambm50

perfilhava) e as posies mais firme e consequentemente elaboradas. Por volta de 1954, o MUD Juvenil, expressou de forma clara o seu apoio ao princpio da autodeterminao e da escolha livre do prprio futuro pelos povos das colnias portuguesas, em iniciativas abertas e unitrias, acompanhadas de inscries murais em Lisboa, na Margem Sul e noutros pontos do Pas. De resto no era a primeira vez que o assunto era abordado pelas foras antifascistas em Portugal. O Partido Comunista Portugus tinha inscrito no seu programa para o derrube do fascismo, a Autodeterminao e a Independncia dos Povos das Colnias. O rgo central dos comunistas, j citado, h muito denunciava a poltica colonialista de Salazar e os seus preparativos para uma guerra cada vez mais inevitvel do ponto de vista do movimento independentista que varria frica. O regime salazarista, de costas para a Histria e numa corrida contra o tempo, instrua os meios humanos e adquiria os meios blicos para sufocar a libertao almejada pelos povos da ndia e de frica sob o jugo portugus. No referido discurso ao Congresso da Unio Nacional em 1956, o ditador classifica caluniosamente este anseio de libertao dos povos oprimidos e explorados, como, ... um movimento racista contra o branco, generoso portador da civilizao. Para os povos das colnias portuguesas esta civilizao significa o trabalho forado, salrios de 1$50 e 2$50 escudos por dia de trabalho, a segregao racial nos transportes, cinemas e lugares pblicos, as fomes e epidemias devastadoras, a ausncia de qualquer direito, social ou poltico, isto , significa a escravatura em pleno sculo XX! Conclui o j transcrito Avante!, de Junho de 1956 : (...) E preocupados pelo descontentamento que esta situao provoca (...) que os colonialistas portugueses e estrangeiros, organizam aquilo a que chamam defesa de frica (...). Mas a intensificao da explorao e dos perigos da guerra51

aumentam ainda mais a revolta dos povos africanos. (...). O colonialismo tem os seus dias contados, nem os discursos de Salazar, nem os planos e as medidas de guerra, nem a intensificao da represso e da explorao o podero salvar. Muitos anos de sangue e morte iriam correr at ao seu fim inexorvel, muito sofrimento iria ser causado juventude portuguesa que desde muito cedo dava sinais claros de insatisfao, como os valentes soldados de vora. A luta nos quartis iria durar todos os anos da guerra.

REGRESSO DA NDIANa tarde dos domingos de Inverno, depois da bola, quando o clube da terra jogava em casa, era tempo de visitar o primo Z, com quem tinha claras parecenas fisionmicas, mais do que com qualquer outro membro da famlia, posto que irmos no tinha. O Z vivia numa cadeira de rodas com grave deficincia neurolgica desde a nascena, na casa modesta da tia Clotilde, que correra seca e meca com o filho ainda beb, mas nenhuma rstia de esperana alterara o terrvel diagnstico de um clebre professor especialista: Trata-se de uma doena neurolgica congnita, em Portugal no existem meios para minorar estes problemas dissera o mais sapiente e honesto dos doutores, admitindo no entanto os progressos feitos nesse domnio em Inglaterra: Inglaterra? ... Mas senhor doutor, ns somos pobres! A tia Clotilde no tomou letra o diagnstico do professor neurologista, e desde ento todos os anos vai a Ftima, com que trabalhos e canseiras, numa f renovada e encomendada pelo proco Costa, vigrio da matriz:52

Clotilde, no percas a f na senhora de Ftima, um dia recebers a graa para o teu filho! Nunca aconteceu tal milagre e o primo Z, com uma relativa conscincia do mundo, cresceu e viveu uma vida inteira na sua cadeira, sem falar mas sorrindo docemente quando o primo Joo que com ele brincara em pequenos na casa dos avs paternos, o ia visitar casa trrea da rua Aguiar: Ento Z, hoje o nosso clube ganhou! Goo! gritava entusiasmado acenando com a cabea e apontando para a telefonia, num assomo de inteligncia que desenvolvera fragmentada no seu crebro afectado. A telefonia, um luxo para as classes trabalhadoras, naquele tempo dos princpios da dcada de 60, comprada a prestaes com muitos sacrifcios, era a sua companhia de muitas horas, sintonizada com as mos encarquilhadas e trmulas, para ouvir os relatos de futebol, entretanto j terminados. Na Emissora Nacional era tempo de notcias e o locutor com voz colocada, dava conta do discurso do senhor Presidente do Conselho sobre a situao no Estado Portugus da ndia: No prevejo possibilidades de trguas nem prisioneiros portugueses, como no haver navios rendidos, pois sinto que apenas pode haver soldados vitoriosos ou mortos. Pela solenidade da fala percebia-se a gravidade da situao e o carcter imperioso da afirmao. Em seguida o locutor dava conta da iniciativa patritica de, uma subscrio nacional para a compra de um porta-avies para enfrentar as hordas do pandita Nheru! Esses bandidos querem tirar-nos o que nosso, havamos de l ir todos defender! tia Clotilde, olhe que os indianos so muitos, 300 milhes!... contraditava com prazer o rapazotesobrinho, lembrando-se da afirmao53

do barbeiro, Joaquim Faria. Deix-lo! No podemos abandonar aquela terra portuguesa a esse pandita! A tia Clotilde no sabia estar a referir-se a um ttulo honorfico e religioso hindu, por isso lhe dava uma carga pejorativa, numa atitude tpica do seguidismo salazarista. No acha um bocado ridculo esta coisa do porta-avies?!... o moo espigadote sentia-se bem a contrariar a familiar mais velha. O locutor anunciava o acumulado na subscrio, dez mil e tal contos. Quanto custaria um porta-avies? Dez ou vinte milhes, talvez!... Ah, rapaz! Parece que ests do lado deles! * No voltaram as cantorias volta da fogueira na esquina do Arnaldo, na altura dos Santos Populares, apenas se conservava a tradio do crepitar de chamas pequenas queimando lenha e trastes velhos, sem o esplendor e o entusiasmo de outrora. Eram agora raros os saltadores exmios, restavam os ganapos e as mooilas, os jovens em idade de servido militar estavam saltando sobre perigos bem maiores, na ndia longnqua, de medos e angstias, ou nas terras misteriosas de sangue e morte, em frica. Quando os militares portugueses, comandados pelo general Vassalo e Silva, se recusaram ao sacrifcio pattico e inglrio que Salazar exigira aquando da invaso dos territrios de Goa, Damo e Diu pela Unio Indiana, em Dezembro de 1961, j muitos contingentes tinham embarcado para Angola, ... rapidamente e em fora, como mandara o ditador, a sufocar a revolta nacionalista do povo angolano. Em Maio de 1962, as tropas portuguesas na ndia, feitas54

prisioneiras depois da rendio assinada a 19 de Dezembro, iam finalmente regressar ao Pas, aps meses de cativeiro prolongado injustificadamente pela incapacidade do regime portugus em negociar na cena internacional, dado o seu isolamento. No dia 23, a famlia de Alfredo Jnior, oriunda da zona antiga da vila operria, ansiosa por abraar o ente querido, ausente h muito tempo, correu juntamente com muitas outras famlias, do cais da Rocha para o cais de Alcntara, e viceversa, conforme os boatos que iam surgindo, na ausncia de informaes oficiais. Os barcos Ptria e Vera Cruz, fundeados desde manh cedo ao largo de Cascais, com milhares de soldados a bordo (cerca de 4 mil!), s acostaram em Lisboa j de madrugada, sendo logo cercados por enormes contingentes da PSP e da PIDE. A me de Alfredo, as mes de todos os soldados que tinham sido enviados cais: Meu filho, meu querido filho! Quero ver o meu filho!... Temos ordens para no deixar passar ningum! gritava um polcia meio desorientado. Mas eu preciso de abraar o meu filho, j no o vejo h dezoito meses!... implorava uma velha me, leno modesto na cabea, vestes escuras e lgrimas doridas. S aps a desmobilizao nos quartis! esclarecia arrogante um oficial da Polcia, instado por um grupo de familiares. Gritos, apupos, grande algazarra entre as centenas de parentes, cada vez em maior nmero, vindos dos desenganos apesar da noite fria. Alguns em desespero tentam romper o cordo policial mas so impedidos cassetetada. um senhor vestido civilmente, de gabardina e chapu, que orienta as operaes:55

fora

para

defenderem

o

imprio

colonial

em

desmoronamento, foram brutalmente impedidas de se aproximarem do

Arrem em quem tentar passar! Ningum pode chegar junto daquela canalha! berrou alto, virando-se para o lado do rio onde os soldados desembarcados eram empurrados para camies militares em fila, debaixo da mira de dezenas de espingardas. Esses cobardes deviam ser todos fuzilados! acrescentou outro pide, acompanhando zelosamente o senhor inspector. Rompe o dia sobre a cidade com a brisa leve e fresca a afastar a neblina cobrindo o cais de Alcntara, onde os ltimos camies carregam os soldados proscritos para serem interrogados nas suas unidades, no mbito de um inqurito de traio Ptria, antes de voltarem para casa. Ao longe, centenas de familiares estoicamente resistentes a um dia de trapaas e enganos, acenam com lenos brancos, incutindo-lhes coragem para suportar aquele episdio ultrajante. Na cauda da multido que continuava a lamentar-se impotente, alguns jovens esgueiram-se lestos, fora do olhar policial, distribuindo dezenas de exemplares da Mensagem do Povo de Goa ao Povo Portugus, datada de 14 de Dezembro de 1961, onde se lia: Neste momento de grande expectativa em que se v prxima a nossa libertao de 450 anos de escravatura colonial portuguesa e a reunio com a ndia-me, no podemos esquecer o povo portugus que, por sua vez, est a lutar pela liberdade e justia contra o inimigo comum (...) Por isso, mais uma vez queremos assegurar ao povo portugus que a nossa luta no se dirige contra ele, mas contra o colonialismo e o fascismo. Como povo livre, estenderemos a vs, povo de Portugal, a nossa eterna amizade e solidariedade (). A famlia de Alfredo no abraou o ente querido mas leu o documento passado de mo em mo, percebendo finalmente porque o regime no queria que os familiares fossem buscar os seus filhos, salvos da cegueira e da arrogncia que obrigava ao sacrifcio extremo da56

juventude, em troca de uma decantada ptria pluricontinental, cada vez mais pobre e mais isolada no contexto internacional. Regressaram terra natal, compreendendo, talvez pela primeira vez, o profundo desprezo de Salazar pelo seu prprio povo.

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A

LUTA

DE

LIBERTAO

EM FRICA

A dcada de 50 do sculo XX, foi determinante para o nascimento e implementao dos Movimentos de Libertao Nacional em frica, nomeadamente nos territrios sob o domnio colonial portugus. Um conjunto de acontecimentos significativos contribuiu para a queda inexorvel dos imprios coloniais tornados empecilhos ao processo de desenvolvimento capitalista na Europa. A ocupao militar extensiva era demasiado dispendiosa. Em 1954, o Vietname de Ho Chi Min derrotou a Frana, potncia colonial, em Din Bin Phu, culminando a herica luta de libertao de mais de 10 anos do povo vietnamita. Nesse ano a Frente de Libertao da Arglia, FNL, inicia a primeira luta armada no Continente Africano, contra o ocupante francs. Por essa altura tambm a ndia apresentava as primeiras reivindicaes sobre os territrios de Goa, Damo e Diu, que considerava proclamavaportuguesa. No era esta, porm, a opinio dos meios de oposio ao regime, nomeadamente do PCP e do Movimento Democrtico, que tinham j formulado a exigncia de autodeterminao e independncia para as colnias!. Ou a realizao de um referendo em Goa, como escreviam nas paredes os activistas unitrios do MUD juvenil, em 1955. Significativa foi a realizao em 1956 em Bandung, na Indonsia, da I Conferncia do Movimento dos Pases No Alinhados, formado por pases que no pertenciam a qualquer dos blocos militares (NATO ou Pacto de Varsvia) onde se fez uma forte condenao do colonialismo.58

colonialmente

ocupados,

enquanto

Salazar

-os parte integrante da grande me-ptria

A Frana e a Inglaterra j tinham entretanto percebido como sopravam os ventos da Histria e que o colonialismo puro e duro era economicamente desvantajoso. Em 1958, De Gaulle conferencia com Sekou Tour sobre a prxima independncia da Guin-Conacri, e avana com a formao da comunidade de povos de Lngua Francesa, tal como a Inglaterra tinha criado a Commonwealth. Estavam lanadas as bases do futuro Neocolonialismo, privilegiando o domnio poltico e econmico sobre governos-fantoche da burguesia negra corrupta, garantindo com vantagens a predao das matrias-primas e a manuteno, com partilha reforada e enriquecimentos escandalosos, dos interesses econmicos das grandes empresas multinacionais. Em relao s colnias portuguesas, o Gana levantou a questo pela primeira vez na ONU em 1957, com grande receptividade da maioria das Naes Unidas, culminando a discusso na Declarao Universal contra o Colonialismo, a resoluo 1514 aprovada na Assembleia Geral de 13 de Dezembro de 1960. O texto inicial proposto para discusso em Setembro desse ano, pela Unio Sovitica, comeava assim: Que todos os povos do globo oiam as nossas palavras, todos vivemos num nico planeta. Neste planeta nascemos, trabalhamos, educamos os nossos filhos e lhes transmitimos tudo o que temos realizado na vida (...). Do que se passou nessa histrica assembleia, d notcia o Avante! de Outubro de 1960, comentando a situao nos seguintes termos: Na ltima Assembleia da ONU, os representantes dos pases socialistas, dos neutralistas e das jovens naes africanas, fustigaram as misrias do colonialismo portugus e ridicularizaram os estafados argumentos com que os representantes de Salazar tentaram defender a podrido da poltica colonial da fascismo portugus.59

Por detrs da fraseologia patrioteira dos salazaristas, que procuram inverter os factos, toda a gente v a realidade cruel: na frica e na sia, 12 milhes de homens e de mulheres das colnias portuguesas so submetidos mais dura escravido, mantidos na misria e na ignorncia mais profunda, esbulhados dos mnimos direitos e liberdades, dizimados por uma explorao desenfreada de um grupo de roceiros e monopolistas. s sentidas reivindicaes de liberdade e independncia dos povos coloniais, Salazar responde com a mais sangrenta represso, com o agravamento da explorao colonial, com o apertar das algemas da opresso colonialista. Os massacres dos povos de S. Tom, Goa, Bissau, Timor, Mueda, Scalo Bengo (Angola), Cabinda, ficaro assinalados na histria sangrenta do colonialismo portugus, como a mais severa condenao do seu domnio imperialista. A continuao desta poltica envergonha a conscincia nacional e enche de descrdito o Pas aos olhos dos outros povos. Em breve fariam prova estas palavras certeiras.

ANGOLA: 4 de Fevereiro de 1961 Ivuenu, ivuenu, turutuka dii... (oiam, oiam, voltaremos aqui...). A cano dos nacionalistas insurrectos que estiveram no Levantamento de 4 de Fevereiro de 1961, em Luanda, encerrava a mensagem premonitria da vitria final e era um grito de revolta contra a poltica colonialista portuguesa e o seu cortejo espantoso de crimes de quatro sculos de dominao. Os patriotas angolanos, Neves Bendinha, Paiva Domingos da60

Silva, Domingos Manuel Mateus, Imperial Santana, Raul Deo, Virglio Francisco, frente de cerca de 200 homens armados com catanas, tinham a perfeita conscincia das poucas ou nulas hipteses de xito contra a Polcia ou a Tropa armada de espingardas, mas decidiram avanar com as aces revolucionrias que dariam a conhecer ao mundo o drama do povo angolano. As notcias chegadas a Luanda sobre os brbaros bombardeamentos com napalm, perpetrados pela Fora Area Portuguesa sobre os camponeses revoltados na Baixa do Cassange, fazendo milhares de vtimas, (houve um piloto que se recusou e foi liminarmente afastado da Fora Area), a informao de que os presos polticos do chamado Processo dos Cinquenta, iriam ser transferidos para o Campo de Concentrao do Tarrafal, na Ilha de Santiago, em Cabo Verde, sobretudo a presena em Luanda de dezenas de jornalistas estrangeiros, na expectativa de ver chegar o paquete Santa Maria, que Henrique Galvo havia tomado e rebaptizado de Santa Liberdade, denunciando ao mundo o regime fascista e colonialista de Salazar, levaram os revoltosos a decidirem avanar em aces de grande bravura e sacrifcio colectivo. Contavam com o apoio espiritual de monsenhor Manuel Joaquim das Neves, um cnego mestio angolano, missionrio na arquidiocese de Luanda, que embora considerasse a aco prematura e mal preparada, abenoou os revoltosos, certamente por considerar que era a altura de denunciar a poltica colonial portuguesa de superexplorao e terra queimada. De resto, o prprio, tinha apoiado materialmente a aquisio das catanas e dos fardamentos, guardadas no campanrio da S Catedral. Na madrugada de 4 de Fevereiro, enquadrados em vrios grupos, os insurrectos atacaram os vrios pontos previamente delineados: Emboscada a uma patrulha da Polcia Mvel no bairro de61

Sambizanga (foram mortos 4 polcias); Assalto Casa de Recluso Militar, junto praia do Bongo, onde estavam muitos presos polticos; Cadeia da Administrao e da PIDE no bairro de So Paulo; Cadeia da 7. esquadra da PSP (estrada de Catete); Companhia Indgena; Emissora Oficial de Angola e no Bairro dos Correios no Musseque Rangel. Nenhum dos objectivos foi alcanado. Foram mortos 7 polcias portugueses e morreram nos assaltos, dezenas de autctones, sendo os restantes, com poucas excepes, feridos, presos, interrogados, torturados e eliminados pela PIDE no Forte de S. Pedro da Barra, ( dizia no ter tempo para instruir os processos legais!...). Logo no dia dos funerais dos polcias brancos, com milhares de colonos europeus no cemitrio de SantAna, comeou a terrvel rvanche, com a perseguio, espancamento e morte de gente negra, indefesa, que seguia num machimbombo (autocarro), ou de trabalhadores numa oficina perto. Depois foi um terrvel massacre, levado a cabo por gente desvairada, por foras tresloucadas de dio rcico e empurradas por facnoras profissionais: rusgas, espancamentos, correrias, mortes s dezenas, uma autntica eliminao selectiva, digna de verdadeiros herdeiros dos esclavagistas e negreiros do passado: Mata que turra!, Agarra que lumunba!, Mata esse preto, filho da puta!, eram os gritos das turbas exaltadas durante o dia. noite nos muceques, nas rusgas e cercos, era a limpeza tnica, deixando centenas de cadveres, empurrados logo de manh para as valas comuns. Estava iniciada a Guerra Colonial, o mais terrvel flagelo que ensombrou Portugal no sculo XX, dirigido por uma ditadura retrgrada que no quis negociar a

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tempo o legtimo direito dos povos africanos autodeterminao e independncia.

PARTIDA

PARA

ANGOLA

No Vero, quando a avenida da Praia era mais frequentada, o Joo Careca, do caf Beira-Mar, instalava um altifalante na esplanada transmitindo uma msica roufenha para animar os poucos clientes que apareciam para os caracis. Ao fim da tarde, na hora de ir comprar meio litro de tinto de fraca qualidade mas imprescindvel nas refeies do progenitor, sempre com conta e medida, ouvem-se os fados cantados por Fernando Farinha, repetidos todos os dias nos programas de discos pedidos que enchem as rdios populares. O clebre fadista, nascido no Barreiro e crescido no popular bairro da Bica em Lisboa, cantava com a sua voz timbrada de agudos a estrofe mais marcante:

se eu morrer na batalha s quero ter por mortalha a bandeira nacional, e na campa de soldado s quero um nome gravado o nome de Portugal Produzia uma forte impresso mstica, patritica mistura de emoes e de sentimentos de ddiva e de nobre sacrifcio, embargava-se a voz com um n na garganta que nem a lgrima furtiva pela face imberbe, conseguia desatar. Anos e anos na Escola Primria a ouvir falar da63

multicontinentalidade

da Nao, da sua grandeza Alm-Mar, tudo

somado tnhamos o tamanho de metade da Europa! Era obra, resultante dos feitos grandiosos dos reis-heris e dos heris que no foram reis, porque a famlia real era dinstica e divina. Fazia vibrar de emoo e orgulho, a ideia de defender a Ptria ameaada por perversas foras do mal, vindas de pases satnicos como a Repblica de Pankov ou a Rssia dos Bolcheviques, que nos queriam tirar as pertenas por direito sagrado. A mstica raiava o paroxismo quando se ouvia na Emissora Nacional, antes do noticirio rico em obras e inauguraes oficiais, um coro em crescendo entoando de forma compassada e profunda: Angola... nossa! Angola... nossa! Angola... nossa, gritarei carne e sangue da nossa grei... A sensao desagradvel, inquietante mesmo, quebrando a corrente emocional e patrioteira, deixando uma angustia de dvida e receio, vinha a seguir com o comunicado oficial do EstadoMaior General das Foras Armadas, sobre os militares mortos ao servio da Ptria, trs ou quatro todos os dias para no assustar muito. Acabou o noticirio, sada do caftaberna com a garrafa a meio daquele lquido escuro e viscoso, cheirando intensamente e com sabor agressivo experimentado em breve afloramento aos lbios, ouve-se uma msica caracterstica e uma voz afectada no aparelho roufenho: A verdade s uma, a rdio Moscovo no fala verdade! Um programa de Ferreira da Costa. Despertado o interesse e justificados os ralhos pelo provvel atraso no regresso a casa, sempre se ficava a saber alguma novidade, pela negao dos factos apresentados. A curiosidade fora espicaada.

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Tio Z, em que onda se ouve a Rdio Moscovo? Ora, rapaz! Para que queres tu saber isso? Para ouvir o que l dizem. O Ferreira da Costa, na Emissora Nacional, diz ser tudo mentira!... Esse gajo da situao, salazarista convicto. Mas perigoso ouvir!... Os bufos andam a escutar s portas! Tentava defender o mido, sobrinho por afinidade, numa atitude paternalista de quem est ciente ser o mundo perverso, mas a realidade inevitvel. L foi dizendo o local do quadrante na sua velha telefonia onde se sintonizava em onda curta. Vozes estrangeiras incompreensveis, idiomas complicados que a escola preparatria no ensinava, msicas estranhas que o velho vizinho, se