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Autores: António Moreira, Carlos Santos, Luís Pedro, Pedro Almeida. / Conceção e elaboração: Universidade de Aveiro. / Coordenação geral do Projeto: Isabel P. Martins e Ângelo Ferreira. / Cooperação entre o Ministério da Educação de Timor-Leste, o Instituto Português de Apoio ao Desenvolvimento, a Fundação Calouste Gulbenkian e a Universidade de Aveiro. / Financiamento do Fundo da Língua Portuguesa.

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Page 1: Tecnologias Multimédia 12º - Manual do Aluno

República Democrá ca de Timor-LesteMinistério da Educação

Manual do AlunoTEMAS DELITERATURA ECULTURA12. ano de escolaridade

Page 2: Tecnologias Multimédia 12º - Manual do Aluno
Page 3: Tecnologias Multimédia 12º - Manual do Aluno

Projeto - Reestruturação Curricular do Ensino Secundário Geral em Timor-Leste

Cooperação entre:Ministério da Educação de Timor-Leste | Camões - Instituto da Cooperação e da Língua | Fundação Calouste Gulbenkian | Universidade de Aveiro

Financiamento do Fundo da Língua Portuguesa

Manual do AlunoTEMAS DE LITERATURA ECULTURA12.o ano de escolaridade

Page 4: Tecnologias Multimédia 12º - Manual do Aluno

Este manual do aluno é propriedade do Ministério da Educação da República Democrática de Timor-Leste, estando proibida a suautilização para fins comerciais.

Os sítios da Internet referidos ao longo deste livro encontram-se ativos à data de publicação. Considerando a existência de alguma volatilidade na Internet, o seu conteúdo e acessibilidade poderão sofrer eventuais alterações. Caso tenha sido inadvertidamente esquecido o pedido de autorização de uso de algum material protegido por copyright, agradece-se que seja comunicado, a fim deserem tomadas as providências adequadas.

TítuloTemas de Literatura e Cultura - Manual do Aluno

Ano de escolaridade12.o Ano

AutoresAna Margarida RamosAna Paula AlmeidaPaulo Alexandre PereiraSara Reis da Silva

Coordenadora de disciplinaAna Margarida Ramos

Colaboração das equipas técnicas timorenses da disciplina Este manual foi elaborado com a colaboração de equipas técnicas timorenses da disciplina, sob a supervisão do Ministério da Educação de Timor-Leste.

IlustraçãoMasi Olarinda - ConspiraçãoMaria Gabriela Carrascalão

Design e PaginaçãoEsfera Crítica Unipessoal, Lda. Sofia Simõe

1ª Edição

Conceção e elaboraçãoUniversidade de Aveiro

Coordenação geral do Projeto Isabel P. MartinsÂngelo Ferreira

Ministério da Educação de Timor-Leste

2014

ISBN978 - 989 - 753 - 121 - 7

Impressão e AcabamentoCreativa Design Consultant, Lda.

Tiragem5000 exemplares

Page 5: Tecnologias Multimédia 12º - Manual do Aluno

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Índice

Unidade Temática

1 Estéticas da brevidade – O Conto

Introdução ao estudo do conto

Conto O Anjo de Timor, de Sophia de Mello Breyner AndresenIntroduçãoO ContoGuião de Leitura Para além do textoPara reter… Verifica se sabes…

Conto O Fazedor de Luzes, de Mia CoutoIntroduçãoO ContoGuião de LeituraPara além do textoPara reter…Verifica se sabes…

Conto O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá, de Jorge AmadoIntroduçãoO ContoGuião de LeituraPara além do textoPara reter…Verifica se sabes…

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O Romance como género narrativo

1. Introdução

2. Paratextos

3. Guião de Leitura1. Personagens2. Espaço3. Tempo4. Ação5. Narrador6. Temas, motivos e códigos ideológicos7. Linguagem e estilo

4. Análise intensiva de excertos do romance

70

74

7777838788899092

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Unidade Temática

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Relações interartísticas

PalavrasAtividade 1Atividade 2

ImagensAtividade 3Atividade 4Atividade 5Atividade 6Atividade 7Atividade 8Atividade 9Atividade 10Atividade 11Atividade 12Atividade 13Atividade 14Atividade 15Atividade 16Atividade 17Atividade 18Atividade 19Atividade 20Atividade 21Atividade 22Atividade 23Atividade 24Atividade 25Atividade 26Atividade 27Atividade 28

MelodiasAtividade 29Atividade 30Atividade 31Atividade 32Atividade 33

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Unidade Temática

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Agradecimentos

Os autores do manual agradecem

Aos interlocutores timorenses, nomeadamente ao grupo de professores que integram as equipas homólogas nas várias missões em Timor-Leste, o acolhimento do trabalho e as sugestões. O nosso reconhecimento, pelo trabalho desenvolvido e empenhamento revelado, aos professores Afonso Napoleão da Silva Soares, Bendito dos Santos Madeira, Esaú de Araújo, Eugénio do Sagrado Coração Sarmento, Francisco da Costa Fernandes, Julião Freitas, Leoneto Pinto, Maria Marciana da Costa Ximenes, Rui Soares, Sabino Ernesto e Teresa Adriana Freitas Soares.

Aos professores Maria Marciana da Costa Ximenes e Leoneto Pinto, os contributos na elaboração dos guiões de leitura da primeira unidade do manual, assim como o trabalho de divulgação e formação que desenvolveram em Timor-Leste, no seguimento da formação recebida em Portugal.

A Maria Madeira e a Maria Gabriela Carrascalão, a gentileza da cedência e o envio dos materiais e autorização para a sua reprodução neste manual.

A Maria Gabriela Carrascalão, a honra da cedência da imagem de um dos seus quadros para capa do volume.

A Hercus Santos, a autorização para a inclusão dos seus textos neste manual, bem como o apoio prestado.

Aos herdeiros de Sophia de Mello Breyner e Jorge Amado, e respetivas editoras, a autorização para o uso integral dos textos escolhidos.

A Mia Couto e à sua editora, a autorização para o uso integral do seu conto.

A Graça Morais, a cedência de algumas imagens que ilustram o conto “O Anjo de Timor”.

A Sérgio Domingues Marques, a ilustração do escritor Jorge Amado.

Sem a generosa colaboração de todos eles, a realização deste Manual (e respetivo guia do professor) não teria sido possível.

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Apresentação

No seguimento das aprendizagens realizadas no 10º e 11º anos, este Manual segue o programa da disciplina de Temas de Literatura e Cultura do 12º ano, dando continuidade e visando o aprofundamento dos temas e géneros estudados anteriormente. Assim, o Manual dá especial destaque ao modo narrativo, propondo o estudo de três contos e a leitura integral de um romance, de modo a ilustrar as convenções compositivas de uma forma narrativa de maior extensão sintagmática. Valorizando a literatura timorense e a literatura sobre Timor-Leste, pretende-se que os textos escolhidos promovam a identificação dos alunos com os universos de referência neles evocados/recriados, tomando em consideração a sua proximidade espacial e temporal com os autores e narrativas selecionados. Nesta medida, optou-se, no caso do conto, por diversificar os contextos de produção dos textos selecionados (Portugal, Moçambique e Brasil), sendo que o texto de Sophia de Mello Breyner elege como tema e universo de referência Timor-Leste. No caso do romance, e atendendo ao previsível contexto de operacionalização do Manual, selecionou-se a obra inaugural de Luís Cardoso, Crónica de uma travessia. A época do Ai-Dik-Funam, pela identificação que pode estimular junto do público visado, além de contribuir para a divulgação, no campo literário timorense, de um dos autores mais relevantes da literatura nacional. Com vista à valorização da leitura integral, incluíram-se versões completas dos textos, com a respetiva autorização dos titulares dos direitos autorais. Por outro lado, seguindo as orientações programáticas, o Manual procura também estimular a atenção dos alunos para outras manifestações artísticas, nomeadamente para as artes plásticas, a fotografia, a música, o artesanato ou o cinema, na tentativa de averiguar relações e afinidades interartísticas, ressalvando sempre a singularidade inalienável de cada processo criativo. Nesta medida, a terceira e última unidade do Manual procura desenvolver a sensibilidade estética dos alunos, ao mesmo tempo que estabelece pontes com textos, géneros e temáticas já anteriormente estudados. Na seleção do elenco dos textos e documentos incluídos no Manual, foram tidos em conta, como aconteceu nos anos anteriores, critérios de atualidade, representatividade e consenso crítico, privilegiando realidades e temáticas consonantes com os centros de interesse dos alunos e julgadas aptas a potenciar as suas competências problematizantes e judicativas, mas também a consolidar a sua relação com a literatura e a cultura timorense e lusófona. Como habitualmente, incluem-se, para cada uma das unidades, atividades variadas, tendentes ao desenvolvimento de competências nas áreas nucleares da oralidade, da leitura e da escrita. Não foram esquecidas sugestões com vista a uma desejável diversificação de metodologias de ensino, integrando-se, sempre que possível, atividades de tipo colaborativo, como a realização pontual de trabalhos de projeto, em modalidades várias de execução. Os guiões que acompanham os textos não pretendem constituir explorações definitivas nem questionários estáticos. São, antes, roteiros possíveis de leitura que integram sugestões de atividades e pistas de reflexão que, em nenhuma circunstância, devem inibir a autonomia e criatividade pedagógica ou substituir-se ao professor. A diversificação e o nível variável de complexidade das tarefas propostas, bem como a inclusão de atividades complementares de aprofundamento, possibilitam uma seleção em função da sua pertinência e adequação, junto do público específico a que se destinam, sem nunca comprometer a desejável liberdade de concretização metodológica do docente. Pretende-se, em suma, que as atividades de leitura, organizadas a partir dos textos facultados e dos respetivos guiões de análise, propiciem um espaço de diálogo crítico e formativo, participado e estimulante, supondo sempre o envolvimento colaborativo de professor e alunos.

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Apresentação | 7

Uma nota final para esclarecer que os autores do presente Manual optaram, à semelhança do que se verificara já nos anteriores, por adequar todos os textos ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, familiarizando os alunos com a norma que se encontra em vigor, no sistema educativo português, desde o ano letivo de 2011-2012, sem que, no entanto, estes deixem de contactar com as distintas variedades que a caracterizam e enriquecem. Nessa medida, apesar de, nos textos de autoria brasileira e africana, terem sido introduzidas as alterações ortográficas prescritas pelo Acordo, mantêm-se, naturalmente, inalteradas todas as características (lexicais ou sintáticas, por exemplo) da variante respetiva.

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m e t a s d e a p r e n d i z a g e m

– caracterizar o conto literário contemporâneo como género autónomo, distinguindo-o do conto tradicio-nal, mas nele rastreando processos e traços estilísti-cos evocativos dessa memória oral – identificar as diferentes categorias da narrativa, procedendo à sua análise para cada um dos contos estudados, determinando os efeitos da brevidade e condensação diegéticas:– identificar personagens e proceder à sua caracterização;– sintetizar a ação e explicar o seu desenvolvimento;– localizar a ação no espaço e no tempo;– identificar o narrador e caracterizá-lo quanto à participação e focalização.– identificar o tema principal dos contos lidos, esclarecendo a sua concretização técnico-narrativa– caracterizar, no plano retórico-estilístico, os contos lidos e analisados– deduzir mensagens explícitas e implícitas nos textos lidos– comparar textos lidos, identificando semelhanças e proximidades semântico-formais, propondo a sua organização segundo ciclos temáticos ou morfológicos– emitir a opinião sobre textos lidos, de forma crítica e judicativamente fundamentada

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Unidade Temática 1 Estéticas da brevidade – O Conto

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Unidade Temática 1 | Estéticas da brevidade – O Conto

Introdução ao estudo do conto literário

Os textos informativos a seguir apresentados incidem na reflexão sobre o conto como género literário. Lê-os atentamente, retendo as informações mais importantes.

iO conto

O substantivo conto deriva do verbo contar, forma de computare, que em latim significa ‘contar’ em sentido

numérico, isto é, ‘computar’, ‘calcular’. Desse significado original de enumerar objetos passa-se por ampliação para o de

expor acontecimentos reais ou fictícios. Esta aceção parece ser tão antiga como a primeira, já que toda a narração, seja

crónica de historiadores ou relato maravilhoso, incorpora desde tempos muito longínquos o significado de enumerar

acontecimentos reais ou fictícios. […]

Não devemos esquecer que o conto é um objeto vivo e, ainda que as suas propriedades gerais possam

oferecer um modelo que permita reconhecê-lo, o conto, como a vida, escapa aos limites que tendem a condicionar a

sua liberdade.

Com frequência, uma parte da crítica tem proposto definições comparativas ou intermédias, considerando o

conto como um género menor ou subgénero. Não obstante, desde as suas origens anónimas e de transmissão oral até

à sua emergência como forma literária original e madura no século XIX, o conto conquistou uma identidade própria e

ocupa um lugar relevante no panorama da literatura contemporânea. […]

Pela sua versatilidade, o conto aproxima-se de outras formas narrativas caracterizadas pela brevidade, como a

lenda, o mito, a fábula ou a alegoria. As diferenças entre o conto e as outras formas de narrativa breve baseiam-se em

questões de natureza temática, terminológica ou de disposição estética. No entanto, o conto pode aproximar-se tanto

dessas formas, que em alguns casos, chega a confundir-se com elas ou a alimentar-se da sua seiva. […]

O conto, tal como o concebemos na atualidade, é uma narração que parte de uma situação ou experiência-

limite ou de um facto extraordinário que funciona como núcleo significativo, cuja intensidade produz no leitor um efeito

estético único e singular. Isto não exclui uma composição fundada em dois ou mais acontecimentos ou histórias, sempre

e quando se verifique uma solidariedade absoluta entre esses elementos e a totalidade.

A invenção de um conto implica uma intuição que se converte em imagem narrativa, na qual todos os elementos estão

rigorosamente estruturados, no propósito de se atingir uma concentração que potencie a tensão do acontecimento.

Desta exigência estrutural decorre um dos aspetos que definem o conto: a brevidade da sua trama.

Não há uma medida exata que determine a medida de um conto, como não existem esquemas temáticos nem

ritmos uniformes para aplicar a nenhum texto narrativo. Na prática, encontramos desde contos breves, brevíssimos,

microcontos, até narrações mais extensas que se aproximam dos limites da novela curta.

A trama breve e a estrutura fechada procedem da intenção comunicativa que se estabelece entre o escritor

e o leitor: o escritor propõe-se criar um efeito narrativo, cuja duração coincida com a atenção do leitor. Esta brevidade

obriga a centrar o interesse no conflito que desencadeará a ação que se encaminha para um desenlace, prescindindo

de comentários ou descrições desnecessários.Teresa Martín Taffarel, El Tejido del Cuento (traduzido e adaptado)

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O Conto | 11

iO conto

1. Constituindo, tal como o romance, a novela ou a epopeia, um género do modo narrativo, o conto é normalmente definido e analisado em conexão com aqueles géneros narrativos e em particular. Deste modo, não é raro centrar uma reflexão sobre o conto predominantemente na sua configuração de relato pouco extenso (cf. o termo inglês “short story”), atitude inspirada na aludida relação com a dimensão normalmente muito mais ampla do romance.2. É necessário sublinhar que a extensão, só por si, não se afigura um decisivo fator distintivo, no plano teorético como no das decorrentes implicações operatórias; a verdade, porém, é que essa é uma característica historicamente verificável e suscetível de condicionar a construção do conto. Como observa H. Bonheim, “não há dúvida de que esta limitação de extensão arrastou outras limitações que tendem a ser observadas: um reduzido elenco de personagens, um esquema temporal restrito, uma ação simples ou pelo menos apenas poucas ações separadas, e uma unidade de técnica e de tom (…) que o romance é muito menos capaz de manter” (Bonheim, 1982: 166). […]3. A extensão do conto tem que ver também com as suas origens socioculturais e com as circunstâncias pragmáticas que envolvem a sua comunicação narrativa. Considerado por A. Jolles (1972) uma forma simples (a par da saga, do mito, da lenda, etc.), o conto enraíza-se em ancestrais tradições culturais que faziam do ritual do relato um fator de sedução e de aglutinação comunitária: das narrativas das Mil e uma noites à encenação dos encantos da comunicação narrativa no conto “O Sésamo” de M. Torga, passando pelas jornadas do Decameron, pelas fábulas, pelos contos de fadas, etc., o conto esteve originalmente ligado a situações narrativas elementares: nelas, um narrador, na atmosfera quase mágica instaurada pela expressão “Era uma vez…”, suscitava num auditório fisicamente presente o interesse por ações relatadas num único ato de narração e que não raro tinham, para além dessa função lúdica, uma função moralizante. Pode dizer-se que o conto literário herdou alguma coisa destas dominantes pragmáticas: exemplifique-se no que à mencionada função moralizante diz respeito com o título Contos exemplares de Sophia de Mello Breyner, de certo modo herdeiros, no que toca à “exemplaridade”, dos Contos e histórias de proveito e exemplo (1575) de Gonçalo Fernandes Trancoso. Pode dizer-se também que estas raízes socioculturais são remotamente responsáveis por uma certa subalternização que pode afetar o conto, em confronto com o romance, género que se reclama de uma cultura regida pela díade escrita/leitura, com tudo o que ela implica, e já não da oralidade que muitas vezes preside ao conto popular.4. Como observa Bonheim, as categorias da narrativa que de modo mais notório são atingidas pela reduzida extensão do conto são a ação, a personagem e o tempo. No que à primeira diz respeito, importa notar que o conto tende à concentração dos eventos: sendo normalmente linear, sem consentir a inserção das intrigas secundárias que o romance admite, a ação do conto baseia precisamente nessa concentração e nessa linearidade a sua capacidade de seduzir o recetor, sedução mais intensa e conseguida quando (como ocorre no conto de temática policial, inaugurado por E. A. Poe) existe uma intriga com um mistério a resolver. Noutros casos (p. ex., em contos de Tchekov) é um simples incidente do quotidiano, com algum significado humano, que suporta o desenrolar da ação.Esse significado humano encontra-se, naturalmente, na personagem e torna-se semanticamente impressivo desde que articulado em função da estrutura do conto. A personagem tende a ser, neste caso, não uma figura complexa mas um elemento estático, eventualmente identificando-se com a categoria do tipo; por força do pendor sintético próprio do conto, a personagem pode mesmo fundir-se com o espaço, componente diegético a que não é possível atribuir um destaque descritivo muito acentuado. […]5. O percurso das personagens na ação do conto é naturalmente balizado pelo tempo. Não é obrigatório que o tempo da história relatada pelo conto seja reduzido, embora muitas vezes isso aconteça, p. ex., em “O gordo e o magro” e em “O atraiçoado” de Tchekov, limitados ao decurso de alguns minutos; no entanto, assim como o moderno romance e novela (p. ex., Ulisses de J. Joyce, Um dia na vida de Ivan Denisovitch de A. Soljenitsine e Vinte e quatro horas na vida de uma mulher de S. Zweig) podem concentrar as suas ações na brevidade de um dia, também o conto pode incluir um tempo diegético alargado: o conto “O fogo e as cinzas” de Manuel da Fonseca incide, em parte de forma retrospetiva, sobre um lapso temporal bastante alargado, vindo desde a juventude do protagonista-narrador até ao tempo da sua velhice. Neste caso, o narrador trata de organizar o tempo de forma consideravelmente económica; por isso, predominam no conto ve-

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12 | Estéticas da brevidade

ilocidades narrativas tão redutoras como o sumário e a elipse, desvalorizando-se simultaneamente a pausa descritiva; do mesmo modo, o conto é levado a instaurar uma frequência de tipo singulativo, em sintonia com a singularidade das ações representadas.6. A economia temporal própria do conto acaba, pois, por se revelar uma sua decisiva característica distintiva. Dificilmente o conto concretiza uma representação que privilegie uma duração temporal moldada pelas sinuosas elucubrações paten-teadas pela vida psicológica da personagem romanesca; para que isso aconteça, o relato exige a lentidão de movimentos e o alargamento sintagmático próprios do romance psicológico. Em vez disso, o tempo do conto deve entender-se como resultado desse fracionamento de que fala M. Moisés, conexionado-o com uma unidade de ação: “O conto constitui uma fração dramática, a mais importante e decisiva, duma continuidade em que o passado e o futuro possuem significado menor ou nulo” (Moisés, 1982: 21). Curiosamente, os escritores interrogam-se por vezes acerca desse fracionamento que motiva um volume de contos e não um romance: “Qual a razão por que o continuum narrativo que um autor traz dentro de si […] se rompe umas vezes ao fim de quinze páginas e outras somente ao fim de trezentas?” (A. Abelaira, Quatro paredes nuas, p. 202). Assim se levanta uma questão com importantes repercussões no plano operatório; de facto, se o conto per-segue a unidade de efeito reclamada por Poe, essa unidade, apreendida em cada relato em função da específica e tensa articulação das categorias narrativas dominantes no género narrativo em apreço, pode projetar-se a um outro nível: o da coesão temático-ideológica que eventualmente presida à coletânea de contos. […]

“Conto”, in Carlos Reis, Ana Cristina M. Lopes, Dicionário de Narratologia (adaptado)

iConto

Género do modo narrativo onde convive com outras categorias históricas como o romance, a novela ou a epo-peia. É esta convivência com outros géneros dentro do mesmo modo a principal responsável por uma certa miscigenação das propriedades discursivas que se verifica em alguns contos. Genericamente caracteriza-se pela ocorrência de algumas das seguintes características: curta extensão sintagmática, unidade e linearidade de ação ou sequência de microações, reduzido número de personagens, geralmente uma centralizadora que dá unidade ao conto, brevidade temporal servida por momentos anisocrónicos onde o sumário e a elipse estão presentes e raramente ocorre a pausa descritiva, discurso que assenta, de um modo geral, em momentos de cena onde a descrição, a narração e a dissertação tendem a anular-se, limitação espacial de modo a permitir uma maior concentração diegética; todas estas componentes concorrem para facili-tar uma certa propensão pragmática que subjaz à enunciação do conto e se prende com a ancestralidade das suas origens. […] O conto tem origem na tradição oral numa prática comunitária ao serão e é motivado por circunstâncias sociocul-turais, ideológicas e pragmáticas, por forma a dar continuidade à moral vigente e manter coesa determinada coletividade. Essa tradição oral mergulha nos mitos, lendas e contos da cultura quer dos povos orientais que chegaram ao Ocidente me-dieval via rotas das especiarias […], quer do património cultural greco-romano também reabilitado pela cultura medieval europeia […] ou ainda no direto contributo da civilização árabe no sul da Península Ibérica […]. Quase todos os estudiosos do conto consideram que é nesta prática oral profundamente enraizada que o escritor vai mergulhar […]. As tendências modernas do conto revelam características comuns às rotas do romance, merecendo especial destaque o conjunto das seguintes características: a análise psicológica (Henry James, Clarice Lispector), a ambiguidade (Luigi Pirandello), a anedota humorística ao serviço de um certo ceticismo (Tchekhov, Machado de Assis), a acusação do ruído do mundo contemporâneo (William Faulkner), as problemáticas de cunho existencialista (Ernest Hemingway), a tendência para o experimentalismo (João Guimarães Rosa), a interpenetração lírica, sobretudo no caso dos portugueses com uma forte propensão para a poesia (Mário de Sá-Carneiro, José Régio, Branquinho da Fonseca, Miguel Torga, Manuel da Fonseca, Maria Judite de Carvalho, José Gomes Ferreira, Urbano Tavares Rodrigues).

Henriqueta Maria Gonçalves, “Conto”, in Biblos (adaptado)

Page 15: Tecnologias Multimédia 12º - Manual do Aluno

O Conto | 13

iA estrutura do conto

O conto parte da noção de limite e o primeiro limite que salta à vista é o físico (a brevidade). Daí que a maioria

das tentativas de definição do conto literário se tenha baseado, de forma mais ou menos rigorosa, na extensão ou

assente na ideia de que a sua característica fundamental é a brevidade. […]

Tal definição, contudo, conviria a outras espécies narrativas que, de modo algum, são contos. A brevidade não é uma

característica do conto literário, mas antes uma consequência natural da sua estrutura. […]

Enquanto o romance atua por acumulação, isto é, através do somatório progressivo de efeitos, pontos de

vista e ângulos de visão, e é aqui que radica a sua verdadeira essência, o conto pode ser definido como um processo de

concentração.

O contista trabalha em profundidade, verticalmente, sem digressões nem amplificações, numa luta constante

contra o tempo e o espaço para oferecer-nos, numa rigorosa depuração, os elementos que sejam realmente significativos.

O importante é o argumento, o fragmento de vida que vai desfilar perante nós sem dilações nem preâmbulos.

Não é, pois, uma diferença de extensão a que separa o conto do romance, mas antes a sua diversidade inerente

de procedimentos. […]

O conto é, antes de tudo, argumento. A sua trama deve possuir suficiente intensidade para ser captada, de

imediato, como uma síntese significativa. […] Tem que ferir a sensibilidade de um só golpe; atrair a atenção do leitor

desde o primeiro momento, desde as primeiras linhas. Nisto consiste a intensidade, uma das suas características

fundamentais, na “eliminação – nas palavras de Cortázar – de todas as ideias ou situações intermédias, de todas

as frases de transição que o romance permite ou inclusivamente exige”. De um romance podem recordar-se cenas,

momentos, situações, etc., embora nem sempre o argumento. Um conto, pelo contrário, recorda-se inteiro ou não se

recorda. […]

Se quiséssemos utilizar um símile musical, diríamos que o conto poderia equiparar-se ao poema sinfónico,

enquanto o romance se aproxima mais da sinfonia, cuja maior extensão e diversidade de movimentos, análogos aos

capítulos do romance, permitiriam a audição fragmentária, a insistência num movimento determinado ou a recordação

de um único fragmento. […]

Deste ponto de vista, podemos considerar o conto como uma estrutura fechada significativa, entendendo por

significação precisamente essa qualidade de romper os seus próprios limites para iluminar uma realidade, síntese da

vida na sua totalidade, que transcende a história que se conta.

O esforço em modular esta significação é o que se denomina tensão narrativa, definida como um dos impulsos

mais nítidos de aproximação à simultaneidade da realidade vivida.

Todas estas características assinaladas – intensidade, tensão e significação –, estabelecidas na comparação do

conto com outra espécie narrativa próxima e com ele tantas vezes confundida que é o romance, nos foram aproximando,

de maneira quase inconsciente mas inevitável, da poesia.

Toda a sua intensidade poética e força emotiva é fruto da sua estrutura limitada. Arte delicada que exige

tanta habilidade técnica ao contista como ao poeta para escrever um soneto, o conto é o resultado de uma montagem

minuciosa regida por leis precisas impostas pela sua própria natureza. […]

Concebido na sua génese e desenvolvimento com a intuição lírica da poesia, ainda que encarnado na

forma narrativa própria do romance, o conto pode ser definido, em função da sua especificidade de género literário

independente, como uma estrutura fechada significativa. E é nesta significação (abertura), à qual se subordinam num

perfeito jogo de equilíbrio todos os elementos, que reside toda a sua grandeza e força poética.

Juan Paredes Núñez, Algunos aspectos del cuento literario (Contribución al estudio de su estructura). (traduzido e adaptado)

Page 16: Tecnologias Multimédia 12º - Manual do Aluno

14 | Estéticas da brevidade

Atividade

1.1. Lê atentamente as afirmações a seguir apresentadas e classifica-as como verdadeiras ou falsas, esclarecendo as razões da tua resposta e transcrevendo dos textos passagens justificativas. a) A etimologia do termo conto reenvia para a sua natureza de relato enumerativo. b) A par da novela e do romance, o conto é um género integrável no modo narrativo. c) O conto encontra-se separado de todas as outras formas de narrativa breve por fronteiras nítidas. d) O conto literário ou de autor autonomiza-se como género literário no século XV. e) A brevidade define, por si só, o género contístico. f) O conto é uma forma literária com origens ancestrais, embora historicamente tenha sido objeto de incessantes transformações. g) O conto é, de entre os diferentes géneros literários, aquele que revela maior estabilidade nos seus traços caracterizadores. h) A subalternização do conto por parte de alguma crítica é explicável pelo facto de o género ter sido originalmente comunicado por via oral-auditiva. i) O conto tende a multiplicar as intrigas laterais, abdicando da unidade de ação. j) É escassa a representatividade do conto na literatura contemporânea.

1.2. Como a leitura dos textos permite deduzir, o conto é frequentemente definido por comparação e contraste com outros modos ou géneros literários, designadamente a poesia lírica ou o romance. Evidencia as afinidades e diferenças detetáveis entre – o conto e o romance; – o conto e a poesia lírica.

1.3. Constituindo uma forma sintagmaticamente breve, o conto observa procedimentos tendentes à economia de meios expressivos, o que pressupõe a condensação das diversas categorias da narrativa. Baseando-te na informação facultada pelos textos apresentados, completa o quadro seguinte, depois de o copiares para o teu caderno, esclarecendo o modo como a curta extensão, obrigatória no género, afeta as categorias da ação, do tempo, do espaço e da personagem.

Categorias da narrativa Processos de concentraçãoAçãoTempoEspaçoPersonagem

1.4. “A trama breve e a estrutura fechada procedem da intenção comunicativa que se estabelece entre o escritor e o leitor: o escritor propõe-se criar um efeito narrativo, cuja duração coincida com a atenção do leitor.” a) Reflete sobre esta afirmação, tentando relacionar a imposição de brevidade com o princípio da “unidade de efeito”, salientado por vários estudiosos da escrita contística. b) Pelo espaço que no conto é reservado ao implícito e ao não-dito, parece-te ser este um género que exige um particular investimento interpretativo por parte do leitor? Justifica a tua resposta.

Page 17: Tecnologias Multimédia 12º - Manual do Aluno

O Conto | 15

Conto O Anjo de Timor de Sophia de Mello Breyner Andresen

Introdução

Sophia de Mello Breyner foi sempre conhecida como uma mulher de causas. Algumas delas deixaram marcas profundas na sua escrita. Lê este breve excerto escrito por ocasião de uma homenagem realizada à escritora portuguesa:

Atividade

1.1. Identifica as duas causas defendidas pela autora e caracteriza-as de forma sumária.

1.2. O que têm em comum? Justifica a tua opinião.

1.3. Lê com atenção este ensaio, da autoria de Sandra Manuela Bastos, sobre o conto que vais estudar. Procura, a partir da sua leitura, identificar: a) a motivação da autora para a escrita do conto; b) a relação existente entre a autora e Timor-Leste; c) os temas dominantes no conto; d) alguns dos símbolos que estruturam o conto; e) o significado das cores dominantes nas ilustrações.

O combate pela dignidade foi o que sempre moveu Sophia. Escreveu-o em 1991 num abaixo-assinado a favor da causa timorense: “A muitos Timor parecerá pequeno e distante. No entanto, é em Timor que neste momento se trava a luta pela dignidade humana”. E voltou a surgir claramente em 1998 quando redigiu o texto de introdução a um abaixo-assinado apelando à interdição das minas antipessoais, lançado pela Cruz Vermelha durante a Expo’98, altura em que declarou ao Público que aceitara o convite porque “o problema das minas é um dos grandes horrores da nossa época”, acrescentando que “Hoje em dia, aceito muito poucas coisas, e só as que são importantes para muita gente”.

In http://www.cm-lisboa.pt/archive/doc/sophiaLayout_completo.pdf

Sophia de Mello Breyner, Itália, década de 90 do séc. XX

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16 | Estéticas da brevidade

O Anjo de Timor Publicado pela Cenateca – Associação de Teatro e Cultura – em 2003, O Anjo de Timor foi a última história (para a infância?) escrita por Sophia de Mello Breyner Andresen a ser publicada em vida. Em nota prévia, fica a explicação de que “A presente história foi oferecida por Sophia a Nuno Higino em 1992, quando a situação de Timor era trágica e co-meçava a ser conhecida internacionalmente: ‘Para o Padre Higino Cunha em agradecimento do seu lindíssimo poema.’”Sophia não terá ficado indiferente à repressão e violência sofrida pelo povo maubere, às mãos do governo e exército indonésios, desde a anexação de Timor-Leste à Indonésia em 1976, como 27ª província deste país, e que culminou em 1991 com o violento massacre levado a cabo pelas forças indonésias no cemitério de Santa Cruz, cujas imagens, divul-gadas pelas televisões de vários países, originaram um repúdio de nível internacional e a intensificação dos esforços pela libertação e autodeterminação do povo timorense. Também não terá sido indiferente à autora de O Búzio de Cós a prisão, em novembro de 1992, de Xanana Gusmão, dirigente do Conselho de Resistência Nacional. Embora publicado uma década mais tarde, num momento em que Timor-Leste dá os primeiros passos enquan-to nação independente, desde 20 de maio de 2002, O Anjo de Timor corresponde assim a uma espécie de apelo pessoal ou oração transformados em conto “infantil”. De resto, com uma habilidade alicerçada em equilíbrio, em harmonia, em fluidez, Sophia deu corpo à sua oração para Timor, construindo-a em íntima relação dialógica com a mensagem bíblica do nascimento de Jesus. Esta é a história de um jovem liurai – chefe ou rei timorense – que parte em busca de conhecimento do mundo, do outro e de si e que, encontrando um mercador ocidental, ouve falar de um povo que, num lugar distante, ama um Deus único, acreditando que “um dia, desceria à terra para salvar todos os homens”. Na impossibilidade de chegar a esse lugar, o liurai regressa a casa. Durante um sonho, uma voz pede-lhe que espere por um sinal de Deus, ao que o liurai acede, até que um dia, já envelhecido, um anjo lhe revela a mensagem do nascimento de Jesus e de como os pastores e os reis magos do Oriente se preparam para ir adorar o Deus-menino com cânticos e oferendas. O velho liurai, na impossibilidade de os acompanhar, pede ao anjo que leve a sua caixa de sândalo com as pedras de brincar ao caleic quando era pequeno. O anjo de Timor cumpre o pedido do velho chefe timorense, oferecendo o brinquedo ao Menino Jesus e formulando um apelo de paz para o povo de Timor. O Anjo de Timor é, sobretudo, uma fórmula de excelência, a fórmula de Sophia: a comunhão entre, por um lado, uma linguagem simples e inimitável – caracterizada por uma “contenção de tom”, por uma “discreta fluidez” e por uma “simplicidade muito pura da expressão”, nas palavras de Jorge de Sena –, linguagem esta que quase pede para ser lida em voz alta, e, por outra parte, uma temática de valorização da justiça, da generosidade, do direito à liberdade e à paz, mas, sobretudo, de uma tentativa de retorno à origem e à inocência. Destaque-se, também, o papel fundamental conferido aos elementos naturais (característico da autora), como o vento, as árvores, o mar, a noite, as estrelas, que testemunham a demanda inicial do liurai e o reencontro consigo mesmo no silêncio e na solidão. Nesta fórmula de excelência, quase mágica, O Anjo de Timor revela a possibilidade de se transformar numa história universal, que, embora com os ingredientes de um conto infantil, toca os corações dos adultos sensíveis e não indiferentes. Porque o liurai não é apenas um homem, mas todo um povo que acredita e busca a liberdade, a paz e a justiça. Porque a mensagem do anjo é de alimento de esperança, de amor. E porque a oferta do liurai ao Menino Jesus é a restituição da infância e da inocência (para que precisaria um recém-nascido de ouro, incenso e mirra?). Antes de terminar, uma referência à qualidade gráfica de O Anjo de Timor, que contou com as ilustrações da pintora Graça Morais, das quais se destacam a subtileza do traço e a força da cor, com o predomínio dos tons quentes de Timor, como o ocre da terra, o verde das montanhas, os azuis do mar, os amarelos do sol e o vermelho-sangue da guerra. De resto, em formato de “álbum”, o livro apresenta-se impregnado de Timor, uma vez que as próprias ilustrações ocupam um espaço privilegiado que não se limita à capa e/ou à contracapa. As diversas aguarelas de Graça Morais distribuem-se por várias páginas, ocupando o espaço quase total das mesmas, num acompanhamento ávido do texto, como que o transformando, também, em história que se vê.

Susana Manuela Bastos, Malasartes [Cadernos de Literatura para a Infância e a Juventude], 14

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O conto

A presente história foi oferecida por Sophia a Nuno Higino em 1992, quando a situação em Timor era trágica e começava a ser conhecida internacionalmente: “Para o Padre Higino Cunha em agradecimento do seu lindíssimo poema.” Quando surgiu a possibilidade de a Cenateca editar este livro, Sophia e seus filhos acederam de imediato ao convite. A mesma disponibilidade manifestou Graça Morais para a ilustração. Porque este é o momento mais alto da atividade editorial da Cenateca, expressamos às duas a nossa comovida gratidão.

O ANJO DE TIMOR Há muitos muitos anos, em Timor, vivia um liurai muito poderoso e muito bom. Na sua juventude

resolveu ir correr mundo, para se tornar mais sábio. Foi viajando de barco, de ilha em ilha, até chegar a uma terra muito distante. Ali, um dia, conheceu um mercador vindo de muito longe, dos países do lado do Poente e que, também ele, andava há longos anos a caminho. Esse mercador disse-lhe que, numa das suas viagens, tinha ouvido contar que, ainda muito mais longe, para além das montanhas, oceanos e dos imensos desertos de areia, vivia um povo que adorava um Deus único e todo-poderoso, criador do Universo e de todas as suas criaturas. E esse povo acreditava que o seu Deus, um dia desceria à terra para salvar todos os homens. – Quero ir ao país onde mora esse povo, disse o timorense. Quero ouvir mais notícias do Deus que um dia viverá entre nós. – Ai, é impossível, respondeu o mercador. Esse país fica tão longe que mesmo se viajasses a tua vida inteira não conseguirias lá chegar. E assim ficaram toda a noite, mas, no dia seguinte, o mercador partiu de barco para a sua terra. Quando o barco desapareceu ao longe, o liurai pensou: – Já vi tantos lugares e tantos povos, mas não posso encontrar o povo que adora o Deus único, porque mesmo que viajasse a vida inteira não conseguiria lá chegar. Por isso, de que me serve viajar mais? E voltou para a sua terra. Foi uma viagem longa, comprida e difícil. Quando chegou à sua casa era alta noite e já todos dormiam. Estava tão cansado que, mal entrou, adormeceu estendido no chão. E enquanto dormia, ouviu em sonhos uma voz que lhe disse que esperasse, esperasse sempre, pois um dia, a meio da noite, Deus lhe mandaria um sinal. Na manhã seguinte, a família do liurai recebeu-o com grande alegria porque a viagem durara anos e anos, e já ninguém sabia se ele era vivo ou morto. Os seus pais mandaram chamar parentes e amigos e nessa tarde todos cantaram e dançaram para festejar o seu regresso. Mas quando todos partiram e os que moravam com ele adormeceram, o liurai foi sentar-se à porta da sua casa, à espera do sinal de Deus. Ali ficou mudo e atento e só passado o meio da noite foi dormir.

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Daí em diante, foi sempre assim. Durante o dia o liurai encontrava-se com os seus amigos e parentes e presidia à vida e aos trabalhos da população. Era um chefe amado e respeitado porque era bom, justo e sábio. Mas à noite, quando todos tinham adormecido, sentava-se de novo sozinho, à porta da sua casa, à espera de um sinal de Deus. Escutava os barulhos da noite, o suspiro do vento nas árvores, a voz do mar ao longe, respirava os perfumes da noite – cheiro da terra, aroma das flores, aroma do sândalo, cheiro distante do mar. Olhava sem fim o brilho das estrelas. À medida que os anos passavam, ia envelhecendo, mas todas as noites se sentava à entrada de sua casa, à espera do sinal de Deus. Poisava sempre ao seu lado a pequena caixa de sândalo onde estavam guardadas as pedrinhas com as quais na sua infância jogava o hanacaleic. E, de vez em quando, abria pequenas poças na terra e, como na sua infância, brincava com as pedras do caleic. Mas às vezes tinha medo da noite e sentia-se sozinho, como se Deus não o estivesse a ver. Então dizia: – Meu Deus, não me abandones. Vê-me. E numa noite assim, quando ele se sentia tão cansado e tão só, mais uma vez levantou a cabeça e olhou para as estrelas. Então viu levantar-se do Oriente uma grande estrela claríssima e luminosa que, muito devagar, atravessava o céu. E o Universo inteiro ficou mudo de felicidade. Mas de súbito uma voz altíssima cantou: – Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa-vontade. E o liurai viu na sua frente um jovem todo vestido de luz. E reconheceu que ele era o mensageiro de Deus, porque na sua cara brilhava uma alegria imensa. E o jovem disse: – Sou o Anjo de Timor. Alegra-te liurai, porque o Deus que tanto tens esperado se fez homem e desceu hoje à terra. É uma criança recém-nascida e está deitado num curral de animais, em cima de um molho de palha. Mas todos os anjos lhe cantam louvor e em breve chegarão os pastores para os adorar. E dentro de poucos dias chegarão os três reis magos do oriente que vêm seguindo a estrela. Eles, de joelhos, adorarão o menino e cada um lhe há de oferecer um presente. Gaspar traz uma caixa com oiro, Melchior uma caixa com mirra e Baltazar uma caixa com incenso. – Quero ir com eles, exclamou o chefe timorense. – É impossível. Belém fica tão longe que nem que caminhasses a tua vida inteira lá chegarias. – Então, anjo, tu que és mais rápido do que o pensamento, leva o meu presente ao Menino. É uma caixa de sândalo que tem lá dentro as pedras com que eu brincava ao caleic quando era pequeno. O Anjo tomou a caixa nas mãos e disse: – Ainda bem que te lembraste de Lhe mandar um brinquedo. Quando os reis magos chegarem a Belém, eu estarei com eles e poisarei a tua caixa em frente ao Menino! Mas o Anjo desapareceu, o liurai encostou-se a um pilar da sua casa e adormeceu na paz do Senhor. A partir de então, sempre que se celebra o Natal, o Anjo de Timor ajoelha-se ao lado dos reis magos, em frente do presépio que há no céu, e oferece ao Menino o presente do velho liurai. Este Natal, de novo, o Anjo de Timor se ajoelhou e ofereceu uma vez mais a caixa de sândalo e as pedras do caleic: – Menino Deus, Príncipe da Paz, Deus todo Poderoso, lembra-te do povo de Timor que por Ti foi confiado à minha guarda. Escuta as suas preces, vê o seu sofrimento. Vê como não cessam de Te invocar, mesmo no meio do massacre. Senhor, libertai-os do seu cativeiro, dai-lhes a paz, a justiça, a liberdade. Dai-lhes a plenitude da Vossa Graça. Glória a Ti, Senhor!

Sophia de Mello Breyner Andresen, O Anjo de Timor

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Guião de Leitura O Anjo de Timor

1. Realiza uma pesquisa sobre a vida e obra de Sophia de Mello Breyner e redige um texto onde dês conta dos aspetos que te pareceram mais relevantes.

2. Que acontecimentos terão impulsionado a autora a escrever este conto? Justifica a tua resposta, identificando, no conto, a alusão a factos concretos.

3. Atendendo ao que leste sobre a sua vida, como entendes a sua tomada de posição em favor da causa timorense?

4. Por que motivos terá a autora escolhido um liurai, convertendo-o na personagem principal do conto?

5. Procura explicar, por palavras tuas, o título do conto e a sua relação com o conteúdo.

6. Atenta na viagem realizada pela personagem. a) Que motivações conduziram o liurai a partir? b) Atingiu os seus objetivos? c) Quando e por que motivos regressou a casa? d) Que descoberta marca a viagem realizada? e) Qual a sua importância e que consequências tem na sua vida?

7. Caracteriza psicologicamente o liurai, tendo em conta a sua evolução ao longo do tempo.

8. Como reage a família ao regresso do liurai?

9. Por que razão não se sente a personagem principal completamente feliz com o regresso a casa e com o reencontro com a família?

10. O que distingue a sua atitude da dos restantes membros da família? Justifica a tua resposta.

11. Uma vez em casa, o liurai inicia uma espécie de ritual. a) Em que consiste e para que serve? b) Quanto tempo dura?

12. Identifica marcas da passagem do tempo no conto.

13. Como reage o liurai ao aparecimento do anjo?

14. De que mensagem foi portador o ser divino e qual o seu significado?

15. O liurai não acompanha o anjo no final da narrativa. a) Por que razões não pôde acompanhá-lo? b) Como soluciona o problema da distância?

16. Qual o significado simbólico da oferta do liurai?

17. Se estivesses no lugar do liurai, que ofertas farias? Porquê?

18. Como reage o anjo à prenda do liurai? Porquê?

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19. Identifica, no texto, a frase que exprime a conquista da paz e tranquilidade por parte do liurai. Explica-a por palavras tuas.

20. Atenta no parágrafo seguinte e completa o quadro, depois de o copiares para o teu cader-no, de acordo com as sensações experimentadas pelo liurai ao longo das noites de espera: “Escutava os barulhos da noite, o suspiro do vento nas árvores, a voz do mar ao longe, respirava os perfumes da noite – cheiro da terra, aroma das flores, aroma do sândalo, cheiro distante do mar. Olhava sem fim o brilho das estrelas.” (l. 31)

A que conclusões chegas?

Visão Audição Olfato Gosto Tato

21. Que relação encontras entre a oferta do liurai e a situação de Timor-Leste na época em que o conto foi escrito?

22. O texto procura veicular uma forte mensagem de esperança. Identifica-a e explica o seu significado.

Para além do texto

1. O ensaio seguinte propõe uma leitura do conto de Sophia de Mello Breyner Andresen estudado. Lê-o com atenção, procurando identificar, na reflexão da autora, a) O tema central e os temas secundários; b) O destinatário preferencial do conto; c) A relação com outros textos de Sophia; d) A relação com o contexto timorense, mas também com as suas tradições e rituais; e) O tratamento dado à questão religiosa.

Viagem e discursos do sagrado em O Anjo de Timor,

de Sophia “Há muitos, muitos anos, em Timor, vivia um liurai muito pode-

roso e muito bom. Na sua juventude, resolveu ir correr mundo, para se tornar mais sábio.” (O Anjo de Timor, p. 8). Com este incipit tornamo--nos, leitores jovens e adultos, companheiros de viagem de um che-fe tribal timorense. No entanto, neste conto de Natal de Sophia de Mello Breyner Andresen, a viagem física não assume papel relevante na economia da diegese, mas constitui tão-somente o leitmotiv para uma outra viagem, que é a viagem de regresso ao tempo inicial cristão, proposta no final do conto por um narrador heterodiegético. Tratando--se de uma viagem simbólica, o tempo será necessariamente cíclico, mítico, portanto. Para que este tempo mítico se realize, necessário se

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torna o rito e este rito concretiza-se pela mudança do aspeto temporal, anunciada já no antepenúltimo pa-rágrafo do texto, pela expressão “A partir de então” (p. 33) e afirmada no penúltimo parágrafo pelo uso do deítico temporal (“Este Natal”, p. 33) e pela mudança do tempo verbal. Sai-se de um imperfeito que domina toda a narração e entra-se num presente que realiza, num “aqui” e num “agora” mais próximos do leitor, esse tempo mítico. Se nos fixarmos no conceito de viagem, deparamo-nos imediatamente com uma definição ambivalente: por um lado, viagem no sentido de simples translação no espaço; por outro, e decorrente, ou não, do primeiro sentido, viagem como ação que se traduz em renovação, em crescimento, em aprendizagem, em conhecimento, e através da qual o sujeito se constrói e reconstrói pela absorção do mundo das experiências vividas. Viagem entendida desta forma é o que encontramos em O Cavaleiro da Dinamarca. E, porque fazemos juntamente com o Cavaleiro um longo itinerário com coordenadas espaciais e temporais bem delimitadas, estamos na presença daquilo a que talvez se possa chamar uma viagem artístico-literária, pois a viagem física evoca e (re)visita sempre, nesta obra, um faustoso cenário humanista e renascentista, e é com as personagens e com os artefactos desse período histórico que a personagem principal reedifica os seus valores morais. Todas as viagens iniciáticas são necessariamente viagens simbólicas, pois o que está em causa é a reedificação do sujeito em termos de valores. O espaço por onde viaja torna-se apenas pretexto para uma viagem mais longa, cujo ponto de fuga é sempre centrípeto, rumo ao centro de si mesmo. Da mesma forma, e ainda dentro das viagens simbólicas, o destino não será a Terra Santa, local de encontro com o Menino redentor, mas o reencontro do próprio “eu” peregrino. Assim, em O Anjo de Timor, e numa primeira etapa desta viagem iniciática, o liurai separa-se fisicamente da sua terra, lança-se numa ânsia de conhecimento cujas intempéries – próprias dos trabalhos da viagem, do cansaço físico e do abatimento psicológico – não fazem esmorecer. Separa-se também daqueles que constituem o seu suporte emocional, afasta-se das realidades tangíveis e cognoscíveis e inicia a viagem inaugural que lhe permitirá o encontro com o “outro”, com o desconhecido – e, assim, tornar-se-á mais sábio. Passam-se os meses e os anos, atravessa terras desconhecidas, e encontra, por fim, aquele que lhe dirá que longe, muito longe, existe um povo que adora um Deus poderoso, o qual lhes enviará um salvador. O mercador acrescenta que, por muito que viaje, jamais encontrará esse povo. De notar que esta personagem, o mercador, assume um papel duplo na narrativa: se, por um lado, se constitui como adjuvante da personagem principal, dando-lhe a conhecer a existência de uma crença, por outro lado, assume o papel de opositor à empresa inicial do jovem chefe tribal – conhecer mundos e tornar-se mais sábio. O liurai, antes de ter supostamente encontrado o que procurava, resolve inverter o rumo e regressar a casa, numa desistência aparente, pois, efetivamente, havia já encontrado, de forma ainda que inconsciente, aquilo que buscava em terras longínquas. Ao contrário daquilo a que assistimos em boa parte dos outros textos para a infância escritos por Sophia de Mello Breyner Andresen (e no caso de este livro poder ser considerado como dirigido a esse público), em O Anjo de Timor não encontramos como personagem principal uma criança, mas sim um liurai que, sendo, todavia, jovem, possui grandes responsabilidades perante o seu povo e a sua pátria. É a consciência disso que faz com que empreenda a longa viagem, que é simultaneamente afastamento e reencontro com o povo de quem é líder espiritual e administrativo. O motivo do Anjo é recorrente na literatura de todos os tempos e pode assumir duas faces: o Anjo como oponente à realização da ação, como Prova a ser superada pela personagem-herói, e o Anjo como adjuvante.

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Neste conto, encontramos um Anjo que corta toda a série de silêncios imperfeitos em que se inscrevera o liurai, presentifica o tempo (nascimento de Jesus) e o espaço (Belém) míticos, e nos diz que a viagem de reencontro com os valores cristãos é feita na casa, por uma espera paciente, por uma crença inderrubável de que a Boa Nova se tornará realidade. Esta personagem, o Anjo de Timor, possibilita, então, a rememoração, a comemoração do nascimento desse Salvador, e, em simultâneo, e porque se trata de um segmento narrativo in illo tempore, ritualiza-o, reatualiza-o, indica o caminho, transporta o homem para a dimensão sagrada que comporta, transforma a palavra em verbo e, desta forma, a liturgia pode cumprir-se. Neste conto de Natal, de esperança no futuro, descobrimos na personagem principal não a crença dogmática judaico-cristã, mas a emet hebraica, ou seja, a fé entendida, em primeira instância, como “fidelidade”, “convicção firme”, “confiança” na palavra de Deus. Portanto, a fé constitui a primeira etapa para se obter a Graça que, no fundo, já é esperada (Hebreus, 11:6). E, por isso, o liurai “todas as noites se sentava à entrada de sua casa, à espera de um sinal de Deus” (p. 22). A longa espera do liurai e a disposição firme da sua vontade, condições sine qua non para a concessão do benefício, traduzem-se na sua profissão de fé. Mas uma outra profecia, contida no Livro dos Salmos, se cumpre neste conto de Sophia: “Os reis de toda a terra Te hão de adorar”. Sendo o liurai um régulo, ou seja, um pequeno rei, descendente dos datos, ou nobreza, também a ele seria anunciada a vinda do Salvador, não pelo Anjo Gabriel, mas pelo Anjo de Timor. E, se na narrativa cristã, os três Reis Magos ofereceram presentes valiosos, porque simbólicos e espirituais, ao Menino (ouro, incenso e mirra – entenda-se: realeza, fé e poder curativo, este último usado, mais tarde, depois da crucificação de Cristo), o liurai timorense presenteou o rei dos cristãos com uma lembrança igualmente simbólica: o caleic. Com esta oferenda, atualiza-se a lenda de Timor que, mais do que um mito, ou precisamente por ser um mito, expressa o desejo utópico de um mundo unido e pacificado, como podemos ler numa das versões da lenda da criação de Timor: “As águas subiram, inundaram a terra, aproximaram-se dos céus onde deixaram sementes de Caleic, germinando trepadeiras, amarrando o mar e a terra ao infinito. Foi o tempo em que tudo estava ligado, o universo em gestação. Os seres misturavam-se e percorriam lugares outrora restritos apenas a alguns. A água fizera o que os homens alguma vez ousaram, diluindo as fronteiras terrestres. Ninguém estava classificado consoante os locais onde habitava ou de acordo com os seres que digeria.” (“O Crocodilo que se fez Ilha”, do original de Luís Cardoso, publicado no suplemento da revista Visão, n.º 480, de 16-05-02). Em todo o conto de Sophia, assistimos à reiteração de discursos sagrados, quer pertencentes à tradição judaico-cristã, quer à tradição popular timorense, obrigando a um tratamento narratológico do tempo de forma linear, sem sequências encaixadas, para que o tempo da narração possa ser revertido, regressando, assim, circularmente, a si mesmo: “Este Natal, de novo, o Anjo de Timor se ajoelhou e ofereceu uma vez mais a caixa de sândalo e as pedras do caleic...” (p. 36).

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2. Atenta no poema que se segue, também da autoria de Sophia de Mello Breyner Andresen.

Tão Grande Dor“Tão grande dor para tão pequeno povo” palavras de um timorense à RTP

Timor fragilíssimo e distanteDo povo e da guerrilhaEvanescente nas brumas da montanha

“Sândalo flor búfalo montanhaCantos danças ritosE a pureza dos gestos ancestrais”

Em frente ao pasmo atento das criançasAssim contava o poeta Rui CinattiSentado no chãoNaquela noite em que voltara da viagem

TimorDever que não foi cumprido e que por isso dói

Depois vieram notícias desgarradasRaras e confusasViolências mortes crueldadeE ano após anoIa crescendo sempre a atrocidadeE dia a dia – espanto prodígio assombro –Cresceu a valentiaDo povo e da guerrilhaEvanescente nas brumas da montanha

Timor cercado por um bruto silêncioMais pesado e mais espesso do que o muroDe Berlim que foi sempre faladoPorque não era um muro mas um cercoQue por segundo cerco era cercado

O cerco da surdez dos consumistasTão cheios de jornais e de notícias

Mas como se fosse o milagre pedidoPelo rio da prece ao som das balasAs imagens do massacre foram salvasAs imagens romperam os cercos do silêncioIrromperam nos ecrãs e os surdos viramA evidência nua das imagens

Sophia de Mello Breyner Andresen

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2.1. Procura identificar as semelhanças com o conto estudado quanto ao tema e, sobretudo, quanto à motivação para a escrita. A que conclusões chegas?

2.2. Como explicas a alusão ao poeta Ruy Cinatti? Relembra o que estudaste sobre este poeta no ano passado. Que pertinência tem a sua menção no texto?

2.3. A situação de Timor-Leste é comparada com uma outra realidade histórica. Identifica e explica as semelhanças existentes. Pode ser necessário realizares alguma pesquisa para apoiar a tua reflexão.

2.4. A enumeração “Sândalo flor búfalo montanha / Cantos danças ritos” (v. 5) procura realizar uma caracterização sumária, funcionando quase como uma metonímia do país. Como explicas a escolha dos nomes que constam desta breve seleção?

2.5. O poema dá conta da alteração de uma situação vivida pelo país. Identifica-a e explica em que consiste.

2.6. Identifica os recursos expressivos presentes nos seguintes versos e explica a sua função estilística:

a) “Tão grande dor para tão pequeno povo” (v. 1) b) “Timor fragilíssimo e distante” (v. 2) c) “Depois vieram notícias desgarradas / Raras e confusas” (v. 14) d) “Violências mortes crueldade” (v. 16) e) “As imagens do massacre foram salvas / As imagens romperam os cercos do silêncio” (v. 32)

2.7. Explica, por palavras tuas, as expressões seguintes:

a) “Tão grande dor para tão pequeno povo” (v. 1) b) “Timor fragilíssimo e distante” (v. 2) c) “E a pureza dos gestos ancestrais” (v. 7) d) “A evidência nua das imagens” (v. 35)

2.8. Procura imagens, nomeadamente fotografias, que sejam capazes de ilustrar o poema ou, pelo menos, alguns dos motivos nele tematizados.

3. Hercus Santos, um jovem escritor timorense, regressa à temática religiosa, de cunho cristão, no conto Viemos Adorá-lo, texto onde se pressentem afinidades com o conto de Sophia. Lê com atenção esta narrativa breve e procura responder ao guião de leitura proposto:

VIEMOS ADORÁ-LO Muito, muito antigamente, na terra de Timor, havia um “dadolin” que se contava de geração em geração, sobre um rei poderoso que iria nascer para governar e salvar todos os homens de qualquer tipo de escravidão. Eis o “dadolin”: Um rei das Alturas Todo-poderoso e sagrado Santo é o seu nome É Rei de todos os tempos Faz-se Homem

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E que vai descer para governar Que vai descer para salvar todos os povos De qualquer tipo de sofrimentos.

Vinde a Ele Todos os que estais fatigados e oprimidos Ele vos aliviará.

Quando este Rei vier, não haverá mais ninguém que seja escravizado. Cada homem se restaurará à verdadeira dignidade humana. Não sabemos quem é que começou a contar ou quem é que criou o “dadolin”. Disseram que este “dadolin” já estava escrito quando começou a Criação do Mundo e espalhou-se por todo o território. Muita gente não dava nenhuma importância a este “dadolin”. Sobretudo os reis que gostavam muito de poder. Eles não queriam que os seus poderes ou as suas boas posições na sociedade fossem substituídos por alguém. Por isso, nos seus reinos eles proibiam toda a gente de falar sobre o “dadolin”. Eles até matavam os que dele falavam. O povo estava em silêncio e quase se perdeu a vontade de saber novidades sobre o novo Rei. Para o povo, mais valia pensar como é que se ia sustentar a vida e como encher a barriga, do que pensar numa coisa que levaria para a morte. Entre a multidão que não ligava ao “dadolin”, três reis sábios procuravam saber o sentido daquele poema. Os três reis sábios eram os reis de “Loro Monu”, “Rai Klaran”, e de “Loro Sa’e”. Os três reis enviaram um dos seus homens em que tinham mais confiança. E, em segredo, percorreram o território de Timor para procurar saber onde e quando é que este grande Rei iria nascer. Depois de um ano, os homens de confiança regressaram para os seus superiores sem nenhuma novidade. Os três reis mandaram outra vez cada um dos seus melhores guerrilheiros com a ideia de que estes já tinham experiência de guerra e teriam capacidade para procurar uma informação mais concreta e rápida. Antes de os guerrilheiros partirem dos seus reinos, eles fizeram uma cerimónia de “biru”, receberam “malus” do seu “uma lisan” e “huta” nas suas testas com o significado de que eles teriam sucesso na sua missão. Eles procuraram de lugar em lugar, subindo e descendo a montanha, passaram os rios, mas não encontraram nada. Os três guerrilheiros regressaram, então, cada um para o seu reino, sem notícia alguma. Num suco que ficava longe da cidade, morava um velho “Lia-na’in”. Ele tinha ouvido que três reis estavam à procura de notícias do novo Rei, pois estava escrito no “dadolin” a vinda do novo Rei. O “lia-na’in” não era qualquer “lia-na’in”, mas sim um “lia-na’in” especial. Disseram que descendia do senhor da estrela, da lua, da pedra, da natureza e seria o senhor “aparecido”. Por isso ele tinha um grande poder. Toda a gente sabia bem que o velho “lia-na’in” era então uma pessoa sagrada. Ele mandou os três homens para a casa dos três reis para informar de que ele estava disposto a ajudar. Os três reis ao saberem desta notícia ficaram muito alegres. Apesar de terem estudado muito e lerem vários livros, os três reis não descobriam o sentido do “dadolin”; não havia nenhuma explicação nos livros. Os três reis chegaram à conclusão de que a inteligência humana não basta para descobrir o segredo da vida. Mas a experiência da vida é que pode ensinar muitas outras coisas. O “lia-na’in” tinha muita idade. Ele sabia muitas coisas. E por isso é que eles deixaram os seus reinos para o encontrar.

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26 | Estéticas da brevidade

O “lia-na’in” recebeu-os muito bem. Pediu-lhes para se sentarem perto da fogueira onde estavam as coisas sagradas. Depois o “lia-na’in” pôs “bua malus” em cima da pedra sagrada e voltou o olhar para cada um deles e perguntou: – Os senhores são reis, porque é que ainda querem saber sobre o novo Rei? Respondeu o rei do “Loro Monu”: – É verdade. Sou rei do “Loro Monu”. No meu reino há uma gripe que ataca toda a população. Como rei, eu tenho a obrigação de cuidar da população. Disse o rei da “Rai Klaran”: – No meu reino, morrem muitas pessoas. O povo vai desaparecer. Queixou-se o rei “Loro Sa’e”: – As almas lançaram uma maldição sobre o meu reino. A maldição dá-se quando o povo chora e o som não sai. Gritam, choram mas a voz não se ouve. O velho “lia-na’in” estava então muito assustado ao ouvir as dificuldades dos três reis. Respirou profundamente e disse-lhes: – Bom. As questões dos senhores são muito complicadas. Esperemos que haja possibilidades de encontrar as soluções. Recebam o “malus” e “bua”, mastiguem e depois deem-me para eu ver. Os três reis mastigaram “bua” e “malus” e depois entregaram o “mama” para o “lia-na’in”. O velho “lia-na’in” verificou com muita atenção o “mama” de cada um. Depois de os verificar, ele pô-los em cima da pedra sagrada e disse: – Vi os vossos três “mama” que indicam o mesmo sinal. Isto é, uma estrela vai indicar-vos o caminho para que possais encontrar o novo Rei. É verdade que só este Rei vai libertar os homens de todos os sofrimentos. E Ele pode também ajudar os vossos reinos. Os “mama” são redondos mas esta parte dos “mama” dos senhores – ele apontou para os “mama” – sobressai. Isso é um sinal de que quando os senhores partirem de casa, vão encontrar imediatamente a estrela. Vejam! O velho “lia-na’in” põe os “mama” na sua palma e aconselhou: “Três “mama” da mesma cor. Cor vermelha clara, significando que a estrela não é uma estrela qualquer. A estrela que vai guiar os senhores para encontrar o novo Rei é uma estrela mais brilhante do que as outras. Sigam esta estrela; não sigam outra! Levem também os meus presentes para oferecer ao menino.” O velho “lia-na’in” deu um “tais mane”, uma parte de sândalo muito perfumado e um “belak” de ouro. Depois de receberem os presentes do senhor, nessa mesma noite, os três reis sábios regressaram aos seus reinos. No meio do caminho, assustaram-se por verem uma estrela mais brilhante do que as outras. Eles pensaram logo nas palavras do velho “lia-na’in”. Não perguntando mais nada, seguiram a estrela. Chegaram a uma colina, no curral dos cabritos, e a estrela desapareceu. Espantados, questionaram-se sobre a razão desse misterioso desaparecimento num lugar tão pobre. Será que um grande Rei ia nascer fora da cidade e não num palácio? De repente, ouviram a voz do menino chorando. Assustaram-se mais ainda e ficaram com muito medo de que talvez esta voz fosse a voz das almas ou dos fantasmas. Com muita atenção, eles aproximaram-se desta voz. Entre árvores e ervas em que se escondiam, não tão perto, nem tão longe, eles puderam ver claramente um homem que estava a tapar um menino com fraldas de pano muito delgado, numa área fria como aquela, e o homem pôs o menino numa manjedoura. O menino continuava a chorar. Talvez por causa do frio ou porque ele já previa que a vida humana não o favoreceria.

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O Conto | 27

Um dos três reis que recebeu o “tais-mane” teve compaixão daquele menino. Por isso ele pegou no “tais-mane” e aproximou-se para dá-lo ao pai do menino. – Tape-o com este “tais-mane”. – exclamou este. O pai do menino assustou-se muito. Tirou a catana aproximou-se da sua mulher e do seu filho. – O que é que o senhor quer? – disse o homem com a catana na mão, preparando-se para algum perigo. Os dois reis que estavam escondidos saíram do esconderijo: – Viemos adorá-lo. – responderam, ajoelhando-se e oferecendo os presentes, um “tais-mane”, uma parte do sândalo muito perfumado e um “belak” de ouro. – Adorá-lo? – questionou, assustado, o chefe de família, aclamando de seguida. – Não nos façam mal! Eu conheço muito bem os senhores. Os senhores são reis! – É verdade. Nós já vimos a estrela do seu menino. De acordo com um “lia-na’in”, que nos disse que quando víssemos uma estrela mais brilhante do que as outras, significaria que esta estrela ia guiar-nos para um rei que vem libertar-nos de qualquer tipo de escravidão. Ele vai ajudar-nos e também aos nossos reinos. O nosso reino é deste mundo mas o seu Reino não é deste mundo. Ele é o caminho, a verdade, a vida e o verdadeiro Rei. Por isso viemos adorá-lo.

Hercus Santos, Viemos Adorá-lo

Notas vocabularesDadolin: Poema tradicional de Timor.

Lia-na’in: Ancião que tem como função dirigir a oração em “uma-lisan”.

Biru: Amuleto.

Malus: Folhas de bétel.

Bua: Areca.

Huta: Quando um ancião cospe “mama” na testa de uma pessoa, tem como objetivo dar-lhe proteção.

Mama: Massa que se faz na boca mastigando folhas de bétel, um pedaço de areca e um pouco de cal.

Tais-mane: Pano de fabrico tradicional para o homem.

Belak: Medalhão timorense.

Uma-Lisan: Casa sagrada (casa onde se guardam os objetos sagrados).

Loro Monu: Parte oriental de Timor-Leste.

Rai Klaran: Parte central de Timor-Leste.

Loro Sae: Parte Ocidental de Timor-Leste.

3.1. Identifica a temática central do conto.

3.2. Explica o título do conto, relacionando-o com a mensagem principal.

3.3. O conto apresenta elementos da narrativa tradicional, nomeadamente em termos de organização. Procura preencher o quadro que se segue, depois de o copiares para o teu caderno, com as informações mais relevantes sobre a estrutura da narrativa:

Situação InicialProblemaComplicações resultantes do problemaElemento pacificadorSituação final

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28 | Estéticas da brevidade

3.4. Explica o uso do itálico no final do conto.

3.5. No texto, os elementos da cultura tradicional timorense, em termos de rituais e de práticas, cruzam-se com o universo religioso do Cristianismo. De que forma é que o autor do texto propõe essa associação?

3.6. Explica, por palavras tuas, o simbolismo presente na escolha de três reis diferentes para representar o território timorense e o seu povo.

3.7. Como interpretas o simbolismo das ofertas ao Menino Deus?

3.8. Que elementos confirmam a existência de relações intertextuais com o conto de Sophia?

Para Reter

A motivação da autora para a escrita do conto.

O significado do título do conto.

O tema do conto e alguns dos seus motivos.

A identificação das personagens e do seu simbolismo.

O simbolismo da viagem do liurai.

O tratamento do tempo e o significado do envelhecimento progressivo do herói.

A caracterização do estilo da autora.

A mensagem do conto e o seu significado, tendo em conta a situação vivida por Timor-Leste.

Verifica se Sabes

... resumir a intriga do texto.

... identificar a personagem principal e proceder à sua caracterização.

... identificar as motivações da partida do liurai e as razões do seu regresso.

... localizar a ação no espaço e no tempo e explicar a sua importância.

... explicar a mensagem central do conto e relacioná-la com o contexto histórico que deu origem ao texto.

... identificar a presença do mesmo tema em outros textos literários.

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O Conto | 29

Conto “O Fazedor de Luzes”, de Mia Couto

Introdução

Mia Couto em primeira pessoa:

“Nasci na Beira em 1955, sou filho de uma família de emigrantes portugueses que chegaram a Moçambique no princípio dessa década de 50. O meu pai era jornalista e era poeta. Ele publicou cinco ou seis títulos em Moçambique, uma poesia pouco íntima, mas também dois dos livros foram livros que tentaram ser livros de preocupação social, em relação ao conflito da situação existente em Moçambique. Mas eram livros em que a consciência política era mais antifascista, liberal, democrática, mas não questionando ainda a questão colonial. A família do meu pai é gente que enriqueceu um pouco no período da guerra, com garagens, e tinham portanto negócios ligados a automóveis. Eram do Porto.

O meu pai foi para África porque acho que ele queria seguir a carreira jornalística e não havia muita hipótese de emprego nessa altura em Portugal, penso que foi por isso. Mas havia também uma sensação de que eles precisavam de mais espaço, precisavam de começar uma coisa nova. A minha mãe vem duma aldeia de Trás-os-Montes, não tem história porque ela não conheceu a mãe nem o pai. A mãe morreu no parto duma próxima irmã. Ela ficou órfã, abandonada, depois foi acolhida por um padre que se apresentou como sendo tio delas. Então até o nome dela foi reescrito, foi inventado para ela não ter uma ligação com a sua mãe – uma “senhora do pecado”. Penso que ela queria muito sair dali quando era nova, o meu pai passou... “distraído”, ela agarrou-o e foram para o Porto. Depois foram de Portugal para Moçambique e nascemos nós, três irmãos, eu sou o do meio. Fernando Amado, dois anos mais velho, e o mais novo, que tem uma diferença de sete anos de mim, chama-se Armando Jorge. [...] O meu pai, com um grupo de alguns portugueses que tinham sido deportados de Portugal por motivos políticos, formaram associações do tipo cineclubes, centros culturais onde se faziam debates de certas coisas. O meu pai trabalhava em três jornais, o Notícias da Beira, o Diário de Moçambique e o Notícias de Lourenço Marques.

O conto “O Fazedor de Luzes” foi publicado numa obra que agrupa diversos textos escritos por Mia Couto e dispersos por jornais e revistas nos últimos anos. Apesar de todos os contos incluídos em Na Berma de Nenhuma Estrada e outros contos serem relativamente breves, são caracterizados por uma forte intensidade narrativa. Os contos de Mia Couto, e este em particular, retratam, com recurso a processos de ordem figurativa, realidades e práticas africanas, crenças, valores e mitos com uma linguagem muito pessoal, em que se aliam os elementos do português falado em Moçambique e as recriações linguísticas propostas pelo autor. Mia Couto* nasceu na Beira, em Moçambique, em 1955. Publicou os primeiros poemas no Notícias da Beira, com 14 anos. Em 1972, foi para Lourenço Marques estudar medicina. Apesar de ter formação superior em Biologia, área na qual exerce a sua atividade, foi, igualmente, diretor da Agência de Informação de Moçambique, da revista Tempo e do jornal Notícias de Maputo, exercendo funções frequentes no âmbito do jornalismo. A sua obra**, que abarca o conto, o romance, a crónica e a poesia, foi galardoada com o Prémio Vergílio Ferreira em 1999. As suas obras, com um sucesso crescente, têm vindo a ser traduzidas em diversas línguas e a ser alvo de estudos cada vez mais profundos. Este autor é já uma referência incontornável da literatura lusófona.

* Mia Couto é o pseudónimo de António Emílio Leite Couto. A origem do seu nome “Mia” tem a ver com o carinho e a empatia que, desde a infância, sentiu pelos gatos.** De que destacamos os seguintes títulos: Raiz de Orvalho (1983); Vozes anoitecidas (1987); Cada homem é uma raça (1990); Cronicando (1991); Terra Sonâmbula (1992); Estórias abensonhadas (1994); A varanda do Frangipani (1996); Contos do nascer da terra (1997); Vinte e Zinco (1999); O gato e o escuro (2000); O último voo do flamingo (2000).

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30 | Estéticas da brevidade

[...] A Beira era uma cidade muito conflituosa porque a fronteira entre os brancos e os negros era uma fronteira muito misturada, muito “atravessada”. E eu recordo-me – toda a minha infância é uma infância de viver no meio de negros, brincar, com eles, os meus amigos, as pessoas que eu posso referenciar da minha infância, com a exceção dos meus irmãos e mais alguns, todo o resto é uma infância toda vivida ali. [...] Vivemos em quase todas as partes da Beira. O meu pai mudava constantemente de bairro. Mas era constante essa mistura. Porque a Beira é uma cidade conquistada ao pântano. Então, à medida que era possível secar uma região e construir casa de cimento isso fazia-se. Mas estavam lá as casas dos negros locais. Então, sempre do outro lado da rua havia africanos com casa de caniço. Não tanto esta arquitetura arrumada, de urbanização feita com plano, como aconteceu em Lourenço Marques. Vivi muito nessas zonas suburbanas, periféricas. [...] Os brancos da Beira eram profundamente racistas. Quando eu saí da Beira para Lourenço Marques, em 1971, parecia-me que estava noutro país, porque na Beira havia quase apartheid em certas coisas. Não podiam entrar negros nos autocarros, só no banco de trás... Enfim, era muito agressivo. No Carnaval os filhos dos brancos vinham com paus e correntes bater nos negros... Recordo-me duma história: eu tinha um senhor que me dava explicações de matemática, privadas, e ele era pai dum coronel que tinha feito um massacre em que tinham sido mortos 125 ou 130 camponeses. E ele tinha fotografias do massacre dentro de casa, como uma glória! Eu só andei uma semana naquelas explicações. Nós chamávamos-lhe o “Bengalão”, porque ele tinha uma bengala grande, e quando começava a sessão de estudo ele mandava sair as mulheres – as meninas – e ficava só com rapazes, e dizia: “Cuidado, porque o pretinho está-nos a ouvir, é preciso impedir isso. Na escola eu tenho que baixar as notas dos negros para eles nunca ficarem à vossa frente, vocês têm que me ajudar nesta luta...” – e aquilo era uma coisa que para mim soava horrível. [...] Eu guardo na minha infância, assim, uma coisa muito esbatida, um ponto de referência, as histórias que me eram contadas, dos velhos que moravam perto, vizinhos do outro lado da rua, de um outro mundo, e eu recordo esse mundo encantado até algumas histórias, sobretudo como eles me deixaram uma marca. Os meus dois irmãos também escreviam, com 16, 17 anos, e o meu irmão Carlos mais cedo, até. O meu pai tinha muito esta coisa que eu era o filho que lhe ia continuar a veia. [...] Em 83, publiquei o meu primeiro livro. Como uma espécie de contestação contra o domínio absoluto da poesia militante, panfletária. Para se ser revolucionário era preciso falar de marxismo, nos operários, e eu resolvi fazer um livro de poesia íntima, intimista, lírico. E o Orlando Mendes, que faleceu agora, fez-me um prefácio bonito, explicando que era uma coisa “nova”, no sentido de que se pode fazer uma poesia de vanguarda sem se falar muito em política. O livro esgotou-se rapidamente, não é o mérito daquele livro, quase todos eles se esgotavam. Influências? Do Craveirinha, sim, um pouco do Craveirinha. Mas eu apaixonei-me mais pela linha dos brasileiros, pelo João Cabral de Melo Neto, pelo Carlos Drummond de Andrade. Quando comecei a descobrir o mundo da poesia pensava que os brasileiros tinham valores maiores. Talvez fosse uma resistência minha. Achava que havia uma certa injustiça praticada no relevo que se dava aos poetas portugueses em relação aos brasileiros, quando estes tinham superado os próprios portugueses. Sim, mas também tive a influência de alguns poetas portugueses, como Sophia de Mello Breyner, o Eugénio de Andrade, o Fernando Pessoa.”

Mia Couto, in Patrick Chabal, Vozes Moçambicanas

Atividade1. Elabora um breve resumo do texto que acabaste de ler, fixando os elementos mais marcantes da biografia do autor.

2. De que forma os antecedentes familiares de Mia Couto poderão ter influenciado o seu percurso? Justifica.

3. Que recordações da infância mais marcaram o escritor? Por que motivos?

4. Como se iniciou Mia Couto na escrita literária? Que autores mais o influenciaram?

5. Redige algumas perguntas que gostasses de colocar a Mia Couto numa entrevista.

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O Conto | 31

O FAZEDOR DE LUZES

Estou deitada, baixo do céu estreloso, lembrando meu pai. Nesse há muito tempo, nós nos dedicávamos, à noite, a apanhar frescos. O céu era uma ardósia riscada por súbitos morcegos, desses caçadores de perfumes. – Pai, eu quero ter uma estrela! – Estrela, não: é muito custosa de criar. Eu insistia. Queria possuir uma estrela como as outras meninas tinham brinquedos, bonecos, cachorros. Aqui, no rés da terra, eu não podia ter nada. Ao menos, lá no infirmamento, se autenticassem minhas posses. – Mas, pai: o senhor diz que faz criação de estrelas. – Fazia, tive de entregar todas. Eram dívidas, paguei com estrelas. – Eu sei que sobrou uma. Meu pai não respondia nem sim nem talvez. Era um homem vagaroso e vago, sabedor de coisas sem teor. Dedicava-se a serviços anónimos, propício a nenhum esforço. Dizia: – Sou como peixe, ninguém me viu transpirar. E me alertava: veja o musgo, que é o modo do muro ser planta. Quem o rega, quem o aduba? Nada, ninguém. Há coisas que só paradas é que crescem. – É, minha filha: aprenda com o mineral. Ninguém sabe tanto e tão antigo como a pedra. Cuidava-me sozinha, órfã eu, viúvo ele. Ou seria ele o órfão, sofrendo do mesmo meu parentesco, o falecimento de minha mãe? Perguntas dessas são incorrigíveis: quem sabe é quem nunca responde. Na realidade, meu nascimento foi um luto para meu pai: minha mãe trocou de existir em meu parto. Me embrulharam em capulana com os sangues todos misturados, o meu novinho em gota e o dela já em cascata para o abismo. Esse sangue transmexido foi a causa, dizem, de meu pai nunca mais compridar olho em outra mulher. Em minha toda vida, eu conheci só aquela exclusiva mão dele, docemente áspera como a pedra. Aquele côncavo de sua mão era minha gruta, meu reconchego. E mais um agasalho: as estranhas falas com que ele me nevoava o adormecer. – Você escuta os outros se lamentarem de seu pai. – Não escuto, não – menti. – Dizem eu não faço nada na vida, não faço nem ideia. E prosseguia, se perdoando: – Mas eu, minha filha, eu existo mas não sei onde. Nessa bruma que fica lá, depois do estrangeiro, nessa bruma é que você me vai encontrar a mim, exato e autêntico. Lá fica minha residência, lá eu sou grande, lá sou senhor, até posso nascer-me as vezes que quiser. Eu não tenho um aqui. – Não diga assim, pai. – Havia de ver, minha filha, lá eu não sou como neste lado: não cedo conversa a um qualquer. Pois nesse outro mundo, filhinha, eu tenho o mais requerido dos serviços: sou fabricador de estrelas. Sim, faço estrelas por encomenda. – Verdade, pai? – Verdade, filha. Pergunte a Deus, sou até fornecedor do Paraíso. Voltávamos ao quintal, deitávamos a assistir ao céu. Eu já adivinhava, meu velho não suportava silêncio. E, num gesto amplo, ele cobria o inteiro presépio do horizonte:

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– Tudo isso fui eu que criei. Eu estremecia, gostosa de me sentir pequenina, junta a esse deus tão caseiro. E lá, pai, eles nos veem a nós? Nada, filha, não nos veem. A luz daqui está suja, os homens poeiraram isto tudo. – Mas ela nos vê, lá nessa estrela onde foi? O pai não respondia. Ele que tinha palavra para tudo, tropeçava sempre no mesmo silêncio. Minha mãe: dela não mencionava nunca nada. Ela não era nem criatura, nem coisa, nem causa. Nem sequer ausência. E não sendo nem sujeito nem passado, ela escapava a ser lembrada. Meu velho fugia a sete corações do assunto da saudade. Como daquela vez que a mão, veloz, enxugou o rosto. – Você nunca olhe o céu enquanto estiver chorando. Promete? – Então, me dê uma estrela, pai. – Nada, as estrelas não podem ser dadas. Nunca veja a noite por través da lágrima – insistiu ele, sério. Depois, quando se ergueu lhe veio uma tontura, sua mão procurou apoio no meio de dançarinas visões. Eu o amparei, raiz segurando a última árvore. – Está doente, pai? – Qual doente?! É a terra que não gosta que eu saia de cima dela. A terra é uma mulher muito ciumenta.E outras vezes ele voltou a tontear. Até que uma noite, após estranho silêncio, ele me disse, esquivo, quase tímido: – Vá lá. Escolha uma... – Posso, pai? E fingi apontar uma estrela, entre os mil cristais do céu. Ele fez conta que anotava o preciso lugar, marcando no quadro negro o astro que eu apontara. Me ajeitou a mão na minha fronte e me puxou para o seu peito. Senti o bater do seu coração: – Escolheu bem, filha. E explicou: aquela que eu indicara seria a luz onde ele iria morrer. Ninguém lembra o escuro onde nasceu. Todos viemos de fonte obscura. Por isso, ele preferia a claridade dessa estrela ao escuro de um qualquer cemitério. Então, por primeira vez, meu pai fez referência àquela que me anteriorou: – É nessa estrela que ela está. Agora, deitada de novo nas traseiras da casa, eu volto a olhar essa estrela onde meu pai habita. Lá onde ele se inventa de estar com sua amada. E em meus olhos deixo aguar uma tristeza. A lágrima transgride a ordem paterna. Nesse desfoco, a estrela se converte em barco e o céu se desdobra em mar. Me chega a voz de meu pai me ordenando que seque os olhos. Tarde de mais. Já a água é todas as águas e eu me vou deitando na capulana onde as primeiras mãos me seguraram a existência.

Mia COUTO, “O fazedor de luzes” in Na berma de nenhuma estrada e outros contos

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O Conto | 33

Guião de Leitura O Fazedor de Luzes

1. Identifica o narrador e classifica-o quanto à sua participação na ação.

2. Enumera as personagens do conto e esclarece as relações familiares e afetivas que mantêm entre si.

3. Uma outra personagem, apesar de não intervir na narrativa, condiciona sempre a vida e o comportamento das outras duas. Aponta-a, explicando o seu ascendente sobre elas.

4. O conto apresenta elementos relativos a dois momentos temporais distintos. Identifica--os e caracteriza-os, tendo em conta a posição do narrador face a cada um deles.

5. Localiza a ação no espaço. Que elementos textuais encontras para apoiar a tua opinião?

6. Qual a condição socioeconómica das personagens? Justifica com elementos do texto.

7. O pai da narradora surge como uma figura muito peculiar, apresentando-se de forma distinta aos seus próprios olhos e aos olhos dos outros. Completa o esquema que se segue, depois de o copiares para o teu caderno, procedendo ao levantamento das características da personagem sob estes dois (e diferentes!) pontos de vista:

Autoimagem do pai O pai aos olhos dos “outros”

8. Por que ponto de vista o vê (ou o prefere ver) a narradora? Justifica devidamente a tua opinião.

9. O conto refere rumores ou histórias que circulavam entre os habitantes da aldeia sobre o pai da narradora. Em que consistiriam? Tinham ou não, no teu entender, fundamento?

10. Efetua o levantamento dos vários pedidos (verdadeiras súplicas) da estrela feitos pela narradora. 10.1. Como explicas a sua insistência e as recusas sucessivas do pai?

10.2. Finalmente, como interpretas a oferta da estrela no final do conto?

11. Justifica o silêncio que o pai mantém com a filha face ao assunto da morte da mãe? 11.1. Em que circunstâncias esse silêncio é quebrado? Por que motivo?

12. Nos diálogos que mantém com a filha, o pai estabelece uma diferença muito clara entre si e os “outros homens”, assim como entre “aquele lugar” onde ele se sente mal e o “outro lugar” onde ele é importante e ao qual pertence. Explica esta diferença, assim como as razões que justificam esta forma particular de pensar.

13. O texto vai apresentando indícios da doença do pai que preparam o leitor para a sua morte. Procede ao seu levantamento.

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34 | Estéticas da brevidade

14. O pai prepara a sua filha (ainda criança) para o seu desaparecimento iminente. A que metáfora recorre para lhe explicar a morte?

15. A oferta final da estrela concretiza-se por meio de um jogo curioso de “faz de conta” em que ambas as personagens fingem acreditar nas ações que realizam, de forma a suavizarem a tragicidade do momento que as espera. Transcreve o parágrafo onde o narrador dá conta dessa realidade.

16. Atenta no último parágrafo do texto. Situa-o no tempo. Explica o seu sentido implícito.

17. A escrita de Mia Couto é assiduamente metafórica. Retira do texto alguns exemplos (os mais expressivos) deste recurso.

18. Atenta, agora, nos seguintes exemplos de neologismos criados por Mia Couto ou influenciados pela variante particular do português falado em Moçambique. Explica o processo de formação e o sentido dessas palavras.

estrelosoinfirmamento

anterioriou

19. Procede ao levantamento, no conto, de outros neologismos e/ou expressões particulares do português de Moçambique.

20. Esclarece o alcance do título do conto.

21. Explica o sentido da frase seguinte e dá conta da expressividade dos recursos nela utilizados: “Em minha toda vida, eu conheci só aquela exclusiva mão dele, docemente áspera como a pedra.” (l. 23)

22. Transcreve alguns momentos do conto onde as personagens deem conta do afeto que nutrem umas pelas outras. Como é que esses sentimentos surgem expressos no texto?

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O Conto | 35

Para além do texto

1. Imagina uma carta escrita pela narradora à mãe ausente. De que lhe falaria? Que tom a caracterizaria? Redige essa carta imaginada.

2. Imagina o que poderiam ter dito sobre o pai da narradora os vizinhos que o conheciam. Elabora um diálogo entre dois desses vizinhos.

3. O céu e as estrelas aparecem, neste conto, com um simbolismo particular. Esclarece-o e dá conta, depois de consultares um Dicionário de Símbolos, da simbologia que lhe pode estar associada.

4. Perdidos os pais, a narradora ficou órfã ainda criança. Escreve uma ou duas entradas do seu diário pessoal, dando conta da forma como vivia e enfrentava essas perdas.

5. Imagina que a narradora tinha encontrado por acaso uma fotografia da mãe enquanto jovem. Descreve essa fotografia, a partir do ponto de vista da filha.

6. Redige um pequeno conto onde inventes uma viagem fantástica da narradora à estrela onde os seus pais “viviam”. Usa a tua imaginação e cria uma verdadeira fábula.

Para Reter

Alguns elementos biobliográficos relevantes sobre Mia Couto.

O significado do título do conto.

O tema do conto e alguns dos seus motivos.

A identificação e classificação do narrador.

A importância da relação afetiva e familiar estabelecida pelas personagens principais.

O tratamento do tempo e as suas consequências na construção do conto e do seu significado.

O relevo do narrador e da posição por ele adotada para o desenrolar da ação.

O significado simbólico dos pedidos da estrela feitos pela narradora.

O tratamento literário do tópico da morte.

A importância da infância e o seu significado no texto.

A linguagem metafórica do conto.

A “moral” do conto ou o seu significado final.

Verifica se Sabes

... explicar o título do conto e identificar a quem se refere.

... resumir a intriga do texto.

... identificar as personagens e proceder à sua caracterização.

... esclarecer a relação existente entre as personagens.

... identificar o sentimento que domina o conto e explicar a sua presença.

... localizar a ação no espaço e no tempo e explicar a sua importância.

... distinguir os dois momentos temporais referidos no texto.

... explicar a importância do tempo na construção da intriga e no desenrolar da ação.

... refletir sobre o tratamento de que o conceito de “morte” é objeto no conto.

... identificar e explicar alguns neologismos presentes no texto que singularizam a escrita deste autor.

... caracterizar o estilo e os processos de escrita de Mia Couto.

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Conto O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá, de Jorge Amado

INTRODUÇÃO

1. O autor1.1. A partir da leitura do texto que se segue, realiza uma entrevista ao autor deste conto. (Para mais informações, poderás consultar o sítio http://gmas.no.sapo.pt/atrio.htm)

Jorge Amado nasceu em 1912, no sul do estado brasileiro da Baía, mas viveu quase toda a sua infância em Ilhéus. Iniciou a sua carreira profissional como jornalista na década de 20 e, em 1931, publicou a sua primeira obra, O País do Carnaval. Nesse mesmo ano, matriculou-se, a pedido do pai, na Faculdade de Direito, no Rio de Janeiro e, em 1935, casa-se com Matilde Garcia Rosa de quem teve a primeira filha, Lida, que morreu, em 1950, com apenas quinze anos. A militância política de esquerda levou-o à prisão em 1936 e 1937. O ano em que se divorcia, 1941, é também o ano em que parte para o primeiro exílio – dois anos na Argentina

e no Uruguai. Depois de intensa atividade política, entre 1945 e 1948, é de novo obrigado a exilar-se. Passa a viver em Paris, com Zélia Gattai, com quem se casara em 1945, e com o filho João Jorge nascido em 1947. A filha Paloma nasce neste período de exílio na Europa que termina em 1952. A partir de 1963, fixou residência em Salvador, embora se tenha mantido fiel, durante toda a vida, ao hábito de viajar, sobretudo pelo Brasil, Estados Unidos e Europa. Este agitado percurso de vida não o impediu de criar uma obra variadíssima e notável de que se destacam os títulos: Jubiabá (1935), Capitães da Areia (1937), Gabriela, Cravo e Canela (1958), Os velhos Marinheiros (1961), Dona Flor e seus Dois Maridos (1966) e Tieta do Agreste (1977). Alguns dos seus livros tornaram-se particularmente conhecidos do grande público pela adaptação ao cinema, a séries de televisão e a telenovelas. Entre as inúmeras distinções que recebeu, são de destacar o Prémio Estaline em 1951, a comenda da Legião de Honra Francesa (1983), o Prémio Camões, em 1994, e o doutoramento honoris causa pela Sorbonne, em 1998. Morreu a quatro dias de completar oitenta e nove anos (2001) em São Salvador da Baía, cidade que a sua obra imortalizou.

1.2. Os paratextos

ilustração original de Sérgio Domingues Marques

Entendendo o paratexto como: “Aquilo que rodeia ou acompanha marginalmente um texto e que tanto pode ser determinado pelo autor como pelo editor do texto original. O elemento paratextual mais antigo é a ilustração. Outros elementos paratextuais comuns são o índice, o prefácio, o posfácio, a dedicatória ou a bibliografia. O título de um texto é o seu elemento paratextual mais importante e mais visível, constituindo, como observou Roland Barthes, uma espécie de ‘marca comercial’ do texto.”

E-Dicionário de Termos Literários, coordenado por Carlos Ceia

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O Conto | 37

1.2.1. procede a uma análise pormenorizada

a) da capa, contracapa e lombada do livro b) do título c) do subtítulo d) do prefácio ou das explicações prévias e) da “trova” f) dos títulos dos capítulos g) das ilustrações

2. O contoO Gato Malhado e a Andorinha Sinhá: Uma História de Amor constitui um conto literário infantojuvenil que, situando-se no domínio da fantasia animal, apresenta um fundo tendencialmente moralizante e veicula valores de nenhum (ou de todos) os tempos. Esta narrativa foi produzida em 1948, em Paris, mas, apenas em 1976, o filho do autor a reencontrou.

O GATO MALHADO E A ANDORINHA SINHÁ: UMA HISTÓRIA DE AMOR

A história de amor do Gato Malhado e da Andorinha Sinhá eu a escrevi em 1948, em Paris, onde então residia com minha mulher e meu filho João Jorge, quando este completou um ano de idade, presente de aniversário; para que um dia ele a lesse. Colocado junto aos pertences da criança, o texto se perdeu e somente em 1976, João, bulindo em velhos guardados, o reencontrou, dele tomando finalmente o conhecimento. Nunca pensei em publicá-lo. Mas tendo sido dado a ler a Carybé por João Jorge, o mestre baiano, por gosto e amizade, sobre as páginas datilografadas desenhou as mais belas ilustrações, tão belas que todos as desejam admirar. Diante do que, não tive condições para recusar-me à publicação por tantos reclamada: se o texto não paga a pena, em tro-ca não tem preço que possa pagar as aguarelas de Carybé. O texto é editado como o escrevi em Paris, há quase trinta anos. Se fosse bulir nele, teria de reestruturá-lo por completo, fazendo-o perder sua única qualidade: a de ter sido escrito simplesmente pelo prazer de escrevê-lo, sem nenhuma obrigação de público e de editor.Londres, agosto de 1976J.A.

Jorge Amado (1912-2001) “Flama”, A. 27, nº 1173 (28 ago.1970), “Flama/Manchete”

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Esta história é um presente para meu filho João Jorge, em seu primeiro aniversário. Paris, 25 de novembro de 1948.

Ao concordar, em agosto de 1976, com a publicação desta velha fábula, ao nome de meu filho João Jorge, a melhor pessoa que eu conheço, quero acrescentar nesta página de dedicatória os de meu afilhado Nicolas Bay, Ditto Nikili e Niki, tão belo quanto inteligente, e os dos meus netos Bruno, Mariana, Maria João Pinóquio Leão e Cecília, que não a podem ainda ler e por isso mesmo; como não a podia ler João quando eu a escrevi. Os nomes dos netos e o nome da avó, dona Zélia, que sempre obtém o que quer quando assim decide. Quero dedicá-la ademais a alguém que não conheço pessoalmente; imagino seja homem e não mulher mas em verdade não sei. Trata-se de leitor que há muitos anos, talvez uns vinte, me envia a cada dois ou três meses, regularmente, álbuns de recortes sobre as mais diferentes matérias, tudo quanto lhe pareça de interesse a meu ofício de romancista. Assina-se com diversos nomes e se atribui variadas profissões; um de seus múltiplos pseudônimos é Jarbas Carvalhal, do clã dos Carvalhal. Além de mim, conquistou ele outros admiradores: Mirabeau Sampaio é seu fã incondicional e quanto a João Jorge, desde menino devora os grossos álbuns de recortes. Dedicando este livro, iluminado por Carybé, ao amigo numeroso e anônimo, quero nele simbolizar meus leitores brasileiros e estrangeiros, de tantos países e idiomas, agradecendo-lhes a fiel estima, honra e orgulho de minha vida de escritor. Londres, agosto de 1976.

“O mundo só vai prestar Para nele se viver No dia em que a gente ver Um gato maltês casar Com uma alegre andorinha Saindo os dois a voar O noivo e sua noivinha Dom Gato e dona Andorinha.”

(Trova e filosofia de Estêvão da Escuna, poeta popular estabelecido no Mercado das Sete Portas, na Bahia.)

Era uma vez antigamente, mas muito antigamente, nas profundas do passado quando os bichos falavam, os cachorros eram amarrados com linguiça, alfaiates casavam com princesas e as crianças chegavam no bico das cegonhas. Hoje meninos e meninas já nascem sabendo tudo, aprendem no ventre materno, onde se fazem psicoanalisar para escolher cada qual o complexo preferido, a angústia, a solidão, a violência. Aconteceu naquele então uma história de amor.

Madrugada A Manhã vem chegando devagar, sonolenta; três quartos de hora de atraso, funcionária relapsa. Demo-ra-se entre as nuvens, preguiçosa, abre a custo os olhos sobre o campo, ai que vontade de dormir sem desperta-dor, dormir até não ter mais sono! Se lhe acontecer arranjar marido rico, a Manhã não mais acordará antes das onze e olhe lá. Cortinas nas janelas para evitar a luz violenta, café servido na cama. Sonhos de donzela casadoira, outra a realidade da vida, de uma funcionária subalterna, de rígidos horários. Obrigada a acordar cedíssimo para apagar as estrelas que a Noite acende com medo do escuro. A Noite é uma apavorada, tem horror às trevas.

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Com um beijo, a Manhã apaga cada estrela enquanto prossegue a caminhada em direção ao horizonte. Semiadormecida, bocejando, acontece-lhe esquecer algumas sem apagar. Ficam as pobres acesas na claridade, tentando inutilmente brilhar durante o dia, uma tristeza. Depois a Manhã esquenta o Sol, trabalho cansativo, tarefa para gigantes e não para tão delicada rapariga. É necessário soprar as brasas consumidas ao passar da Noite, obter uma primeira, vacilante chama, mantê-la viva até crescer em fogaréu. Sozinha, a Manhã levaria horas para iluminar o Sol, mas quase sempre o Vento, soprador de fama, vem ajudá-la. Por que o bobo faz questão de dizer que estava passando ali por acaso quando todos sabem não existir tal casualidade e sim propósito deliberado? Quem não se dá conta da secreta paixão do Vento pela Manhã? Secreta? Anda na boca do mundo. A respeito do Vento circulam rumores, murmuram-se suspeitas, dizem-no velhaco e atrevido, capadócio a quem é perigoso dar ousadia. Citam-se as brincadeiras habituais do irresponsável: apagar lanternas, lamparinas, candeeiros, fifós para assombrar a Noite; despir as árvores dos belos vestidos de folhagens, deixando-as nuinhas. Pilhérias de evidente mau gosto; no entanto, por incrível que pareça, a Noite suspira ao vê-lo e as árvores do bosque rebolam-se contentes à sua passagem, umas desavergonhadas. A caçoada predileta do Vento é meter-se por baixo da saia das mulheres, suspendendo-as com malévola intenção exibicionista. Truque de seguríssimo efeito nos tempos de antanho, traduzindo-se em risos, olhares oblíquos e cobiçosos, contidas exclamações de gula, ahs! e ohs! entusiásticos. Antigamente, porque hoje o Vento não obtém o menor sucesso com tão gasta demonstração: exibir o quê, se tudo anda à mostra e quanto mais se mostra menos se quer ver? Quem sabe, as gerações futuras lutarão contra o visível e o fácil, exigindo, em passeatas e comícios, o escondido e o difícil. Um tanto quanto louco, decerto; não vamos esconder os defeitos do Vento. Mas por que não falar também de inegáveis qualidades? Alegre, ágil, dançarino de fama, pé-de-valsa celebrado, amigueiro, sempre disposto a ajudar os demais, sobretudo em se tratando de senhoras e donzelas. Por mais cedo fosse, mais frio fizesse, estivesse onde estivesse, cruzando distantes e íngremes caminhos, pela madrugada arribava ele em casa do Sol para cooperar com a Manhãzinha. Sopra que sopra com a imensa bocarrona de ar. Apenas porém a brasa crescia em labareda, o Vento deixava por conta da Manhã atiçar a chama com o abanador das brisas e começava a recordar aventuras, a contar de coisas vistas nas caminhadas sem destino: nevados topos de montanhas muito acima das nuvens ou abismos tão profundos que jamais a Manhã conseguiria enxergar. Bisbilhoteiro e audacioso, rei dos andarilhos, rompendo fronteiras, invadindo espaços, vasculhando esconderijos, o Vento carrega um alforje de histórias para quem queira ouvir e aprender.Fanática por uma boa história, a Manhã se atrasa ainda mais, atenta ao falatório do Vento, casos ora engraçados, ora tristes, alguns longos, prolongando-se em capítulos de folhetim. Pouco dada ao trabalho, a Manhã deixa-se ficar embevecida a escutar. Risonha, melancólica, debulhada em lágrimas – quanto mais comovente, melhor a novela – causando irremediável transtorno aos relógios, obrigados a diminuir o ritmo dos pêndulos e ponteiros, na dependência da chegada da Manhã para marcar as cinco horas em ponto. Muitos relógios enlouqueceram, não voltaram jamais a marcar a hora certa, atrasados ou adiantados, trocando o dia pela noite. Outros detive-ram-se de vez e para sempre. Certo relógio universalmente famoso, colocado na torre da universalmente famosa fábrica dos universalmente famosos relógios (os mais pontuais do mundo), ele próprio campeão olímpico da hora exata, suicidou-se, enforcando-se nos ponteiros, por não mais suportar a lentidão da Manhã e o atraso ge-ral da produção. Era um relógio suíço com exemplar senso de responsabilidade e imenso patriotismo industrial. Não só os relógios, também os galos perdiam a cabeça, embrulhando o canto, anunciando a aparição do Sol enquanto a Manhã ainda o acendia, atenta às tiradas do Vento. Viviam de crista baixa, desmoralizados. Relógios e galos fizeram uma denúncia ao Tempo – senhor de todos eles –, protesto em oito itens e vinte e seis

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razões irrespondíveis, mas o Tempo é infinito, não ligou muito – essa coisa de uma hora a mais, uma hora a menos é tolice com a qual não paga a pena preocupar-se quando se tem a eternidade pela frente. Até serve para quebrar a monotonia. Ademais, o Tempo não escondia certa fraqueza pela Manhã. Risonha e inconsequente, jovem e aloucada, pouco afeita a regras e códigos, ela o fazia esquecer por alguns momentos a suprema chateação da eternidade e a bronquite crônica. Dessa vez, porém, a vadia ultrapassou todos os limites da tolerância. O Vento tentara dividir o longo enredo em dois ou três episódios mas ela exigira a narrativa detalhada e inteira, até o lance final. Já o Sol abrasava quando se despediram. Vestida de luz branca com salpicos de flores azuis e vermelhas, a Manhã atravessa por entre as nuvens, distraída, pensativa, refletindo sobre o caso que o Vento viera de lhe contar. Sonhadora ao recordar detalhes, ligeiramente melancólica. Um autor erudito falaria em confusão de sentimentos. Gostaria de não ser a Manhã, a própria, com obrigações estritas, para estender-se nos campos da madrugada a pensar nas intenções do Vento. Por que escolhera ele exatamente aquela história? Haveria uma moral a retirar do relato? Ou o Vento o fizera apenas pelo gosto da narrativa, gratuitamente? A Manhã suspeita de intenção oculta, razão secreta a se denunciar no olhar entornado do parceiro, em inesperado suspiro na hora do desfecho. Suspira o Vento por ela, como rumorejam as comadres? Pensa pedir sua mão em casamento? Casar com o Vento não é má ideia, se bem a Manhã prefira um milionário. O Vento a ajudaria a apagar as estrelas, a acender o Sol, a secar o orvalho e a abrir a flor denominada Onze Horas que a Manhã, só de ranheta, para contrariar, abre todos os dias entre as nove e meia e as dez. Se casasse com o Vento sairia com o marido mundo afora, sobrevoando o cimo altíssimo das montanhas, esquiando nas neves eternas, correndo sobre o dorso verde do mar, saltando com as ondas, repousando nas cavernas subterrâneas onde a escuridão se esconde durante o dia para descansar e dormir. Livre e inconstante, solteirão profissional, pensaria o Vento realmente em se casar? Contavam-se às dezenas as paixões, os casos, as aventuras, os escândalos em que ele se vira envolvido. Citam-se raptos, perseguições, maridos em cólera, juras de vinganças. A Manhã balança a cabeça: o Vento não pensa em casar coisa nenhuma, são outras suas intenções, nefandas intenções, como se dizia naquele tempo de atraso e cafonice.Mesmo assim, vale a pena sonhar. Envolta em tais pensamentos vai a Manhã devaneando, esquecida das horas. Os relógios, todos eles, parados à espera; os galos, sem exceção, roucos de tanto cantar anunciando o Sol e cadê o Sol? Ao canto dos galos os homens acordam, confirmam na montra dos relógios as cinco horas precisas, para constatar em seguida a ausência do Sol. No céu a luz fosca da madrugada se confunde com a gaze cinzenta da cauda da noite. Terá chegado o fim do mundo? Um deus-nos-acuda nunca visto. Tantas queixas recebidas, tão grande atraso, o Tempo sente-se obrigado a ralhar com a Manhã, se bem, ao lhe chamar a atenção e ameaçar castigo, esconda um sorriso cúmplice no rosto solene de barbas e rugas. A Manhã confessa a verdade, num gorjeio de pássaro: – Meu Pai, fiquei ouvindo o Vento contar uma história. Perdi a hora. – Uma história? – interessou-se o Tempo, sempre em busca do que lhe fizesse menos pesada a eternidade, droga de eternidade! – Conta-me e, se for realmente uma boa história, não só te desculparei como te darei uma rosa azul que medrou há muitos séculos e hoje não se encontra mais pois tudo mudou, minha filha, mudou para pior, nada é mais como antes, acabaram-se as boas coisas da vida, ah! – um saudosista, o Tempo.Senta-se a Manhã aos pés do Mestre, agita as fraldas do vestido de claridade, começa a contar. No meio da história o Tempo adormece mas a Manhã não se interrompe pois ao debulhar a narrativa parece-lhe escutar a voz cariciosa do Vento, vê a expressão de súplica nos olhos malandros. Vento vagabundo e sem pouso, onde andará? Em que recanto do mundo, bisbilhotando, desnudando árvores, varando nuvens, perseguindo a Chuva

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em correrias pelo céu para derrubá-la por fim no pasto verde? Íntimos, demasiadamente íntimos, o Vento e a Chuva, companheiros de vadiagem. Somente companheiros? A Manhã franze a testa, de repente preocupada.

Parêntesis (A história que a Manhã contou ao Tempo para ganhar a rosa azul foi a do Gato Malhado e da Andorinha Sinhá; ela a escutara do Vento, sussurrada com enigmática expressão e alguns suspiros — a voz plangente. Eu a transcrevo aqui por tê-la ouvido do ilustre Sapo Cururu que vive em cima de uma pedra, em meio ao musgo, na margem de um lago de águas podres, em paisagem inóspita e desolada. Velho companheiro do Vento, o eminente Sapo Cururu contou-me o caso para provar a irresponsabilidade do amigo: desperdiça-se o Vento em fantasias em vez de utilizar as longas viagens pelo estrangeiro para estudar comunicação, sânscrito ou acupuntura, assuntos de nobre proveito. O Sapo Cururu é Doutor em Filosofia, Catedrático de Linguística e Expressão Corporal, cultor de “rock”, membro de direito, correspondente e benemérito de Academias nacionais e estrangeiras, famoso em várias línguas mortas. Se a narração não vos parecer bela, a culpa não é do Vento nem da Manhã, muito menos do sapiente Sapo Cururu, doutor honoris causa. Posta em fala de gente não há história que resista e conserve o puro encanto; perdem-se a música e a poesia do Vento.)

A estação da primavera Quando a primavera chegou, vestida de luz, de cores e de alegria, olorosa de perfumes sutis, desabro-chando as flores e vestindo as árvores de roupagens verdes, o Gato Malhado estirou os braços e abriu os olhos pardos, olhos feios e maus. Feios e maus, na opinião geral. Aliás, diziam que não apenas os olhos do Gato Ma-lhado refletiam maldade, e sim todo o corpanzil forte e ágil, de riscas amarelas e negras. Tratava-se de um gato de meia-idade, já distante da primeira juventude, quando amara correr por entre as árvores, vagabundear nos telhados, miando à lua cheia canções de amor, certamente picarescas e debochadas. Ninguém podia imaginá-lo entoando canções românticas, sentimentais. Naquelas redondezas não existia criatura mais egoísta e solitária. Não mantinha relações de amizade com os vizinhos e quase nunca respondia aos raros cumprimentos que, por medo e não por gentileza, alguns passantes lhe dirigiam. Resmungava de mau humor e voltava a fechar os olhos como se lhe desagradasse todo o espetáculo em redor. Era, no entanto, um belo espetáculo, a vida em torno agitada ou mansa. Botões nasciam perfumados e desabrochavam em flores radiosas, pássaros voavam entre trinados alegres, pombos arrulhavam amor, ninhadas de pintos recém-nascidos seguiam o cacarejar de orgulhosa galinha, o grande Pato Negro fazia a corte à linda Pata Branca, banhando-a na água clara do lago. Folgazões, os cachorros divertiam-se saltando sobre a grama. Do Gato Malhado ninguém se aproximava. As flores fechavam-se se ele vinha em sua direção: dizem que certa vez derrubara, com uma patada, um tímido lírio branco pelo qual se haviam enamorado todas as rosas. Não apresentavam provas, mas quem punha em dúvida a ruindade do gatarraz? Os pássaros ganhavam altura ao voar nas imediações do esconso onde ele dormia. Murmuravam inclusive ter sido o Gato Malhado o malvado que roubara o pequeno Sabiá, do seu ninho de ramos. Mamãe Sabiá, ao não encontrar o filho para o qual trazia alimento, suicidou-se enfiando o peito no espinho de um mandacaru. Um enterro triste, e naquele dia muitas pragas foram pronunciadas em intenção do Gato Malhado. Provas não existiam, mas que outro teria sido? Bastava olhar a cara do bichano para localizar o assassino. Bicho feio aquele. Os pombos iam amar longe dele: havia quase certeza de que fora ele quem matara — para comer — a mais linda pomba-rola do pombal, e, desde então, certo pombo-correio perdeu a alegria de viver. Faltavam

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provas, é verdade, mas — como disse o Reverendo Papagaio — quem podia tê-lo feito senão aquele sinistro personagem, sem lei nem Deus, tipo à toa? As maternais galinhas ensinavam aos pintos cor de ouro como evitar o Gato Malhado em cujas mãos criminosas — segundo afirmavam — muitos outros pintainhos haviam perecido (isso sem falar nos ovos que ele roubava dos ninhos para alimentar seu ignóbil corpanzil). Tampouco o Pato Negro queria saber dele, pois o gatarrão não amava a água do lago, tão querida do casal de patos. Os cachorros o haviam procurado para com ele correr e saltar. Mas ele os arranhara nos focinhos e os insultara, eriçando o pelo, xingando-lhes a família, a raça, os ascendentes próximos e distantes. Um gato mau. Mau e egoísta. Deitava-se pela manhã sobre o capim para que o Sol o esquentasse, mas, apenas o Sol subia no céu, ele o abandonava por qualquer sombra cariciosa. Ingrato. Durante muito tempo, uma Goiabeira de tronco carunchoso alimentou a ilusão de que o Gato Malhado a amava e disso se vangloriou perante todas as árvores do parque. Só porque ele vinha, flexível, corpo sensual, rascar-se contra seu tronco nodoso no meio das tardes solarengas. A Goiabeira, que passava por ser uma original, sentiu-se vaidosa com a preferência de um tipo tão difícil e discutido. Procurou um cirurgião plástico, limpou-se de todos os nós que lhe enfeavam o tronco, fez-se bela para o Gato Malhado. E, de tronco liso e limpo, o esperou. Mas quando ele viu que não podia coçar--se naquele tronco sem nós nem reentrâncias, voltou as costas à Goiabeira e jamais sequer novamente a mirou. Durante algum tempo, devido a esta aventura, a Goiabeira foi a vítima predileta das pilhérias (de mau gosto) dos habitantes do parque. Até a Velha Coruja, que morava na jaqueira, riu quando lhe contaram a história. Devo dizer, para ser exato, que o Gato Malhado não tomava conhecimento do mal que falavam dele. Se o sabia, não se importava, mas é possível que nem soubesse que era tão malvisto, pois quase não conversava com ninguém, a não ser, em certas ocasiões, com a Velha Coruja. Aliás, a Coruja, cujas opiniões eram muito respeitadas devido à sua idade, costumava dizer que o Gato Malhado não era tão mau assim, talvez tudo isso não passasse de incompreensão geral. Os demais ouviam, balançavam a cabeça e, apesar do respeito que tinham à Coruja, continuavam a evitar o Gato Malhado. Assim vivia ele quando a primavera entrou pelo parque adentro, num espalhafato de cores, de aromas, de melodias. Cores alegres, aromas de entontecer, sonoras melodias. O Gato Malhado dormia quando a primavera irrompeu, repentina e poderosa. Mas sua presença era tão insistente e forte que ele despertou do seu sono sem sonhos, abriu os olhos pardos e estirou os braços. O Pato Negro, que casualmente o olhava, quase caiu de espanto porque teve a impressão de que o Gato Malhado estava sorrindo. Fixou o olhar, chamou a atenção da pequena Pata Branca: – Não parece que ele está rindo? – Santo Deus! Está rindo mesmo... Jamais o tinham visto rir. A pequena Pata Branca necessitou botar a mão sobre o coração, tão espantada estava com aquele riso na boca feroz do Gato Malhado. Ria pela boca, e, o que era ainda mais inexplicável, ria pelos olhos pardos também. De repente rebolou-se na grama como se fora um jovem gato adolescente, soltou um miado que mais parecia um gemido. Foi uma emoção geral pelo parque. A Galinha Carijó, que passava perto com sua doirada ninhada de pintos, gritou: – Ui! — e desmaiou nos braços dos filhos. O galo Don Juan de Rhode Island veio correndo ver o que tinha acontecido. De todas as galinhas de seu harém, a Carijó era a preferida. Ajudou-a a levantar-se e ia lançar seu canto de guerra e de protesto, igual a uma clarinada, quando mais uma vez o Gato Malhado rebolou-se sobre a grama e miou outro miado... Ai, meu Deus, um miado romântico. Impossível!

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Don Juan de Rhode Island engasgou-se e um silêncio total cobriu todo o parque naquela hora da chegada da primavera. Não se ouvia nem mesmo o arrulhar amoroso dos pombos tal o espanto universal provocado pela surpreendente atitude do Gato Malhado. – Creio que ele enlouqueceu... — diagnosticou um Pé de Mastruço que tinha fama de ser bom médico. – Ele está é preparando alguma nova maldade... — sussurrou a Galinha Carijó, refeita do faniquito, arrastando consigo para longe os pintainhos e Don Juan de Rhode Island. Enquanto isso, o Gato Malhado levantou-se, estirou os braços e as pernas, eriçou o dorso para melhor captar o calor do sol subitamente doce, abriu as narinas para aspirar os novos odores que rolavam no ar, deixou que todo o rosto feio e mau se abrisse num sorriso cordial para as coisas e os seres em torno. Começou a andar.Aconteceu então uma debandada geral. O grande Pato Negro arrastou a pequena Pata Branca para o fundo do lago e assim, num mergulho em que bateu todos os seus recordes anteriores, atravessou para a outra margem onde pôs sua mulherzinha a salvo. Os pombos recolheram-se todos ao pombal, silenciando os arrulhos de amor nos galhos das árvores onde nasciam e se multiplicavam brotos verdes no mesmo minuto transformados em folhas cheias de sombra. Os cães pararam de correr e pular, fizeram como se estivessem muito ocupados em desencavar ossos escondidos. Os botões que começavam a virar flores suspenderam momentaneamente seu trabalho, e uma rosa que, apressada, já se abrira, deixou cair todas as pétalas sobre o chão. Menos uma que ficou volteando no ar, ao sabor da brisa. Toda essa correria fez um certo ruído, despertando a atenção do Gato Malhado. Olhou espantado. Por que fugiam todos se era tão belo o parque naquela hora da chegada da primavera? Não havia tempestade, não corria o vento frio derrubando as folhas, a chuva não desabava em lágrimas sobre os telhados. Como fugir e esconder-se quando a primavera chegava trazendo consigo a doçura de viver? Será que a Cobra Cascavel havia voltado, havia ousado retornar ao parque? O Gato Malhado procurou-a com os olhos. Se fosse ela, dar-lhe-ia nova lição para que jamais ali viesse roubar ovos, tirar pássaros dos ninhos, comer pintos e pombas-rolas. Mas não, a Cascavel não estava. O Gato Malhado refletiu. E compreendeu então que fugiam dele, há tanto tempo que não o ouviam miar nem sorrir que agora se amedrontavam. Foi uma triste constatação. Primeiro deixou de sorrir, mas, depois, encolheu os ombros num gesto de indiferença. Era um gato orgulhoso, pouco lhe importava o que pensassem dele. Até piscou — num gesto um pouco forçado — um olho malandro para o Sol, e esse gesto, ainda mais inesperado, fez com que uma enorme Pedra, que há muitíssimos anos residia nas proximidades do lugar onde o Gato estava, rolasse correndo para o mato. O Gato Malhado aspirou a plenos pulmões a primavera recém-chegada. Sentia-se leve, gostaria de dizer palavras sem compromisso, de andar à toa, até mesmo de conversar com alguém. Procurou mais uma vez com os olhos pardos, mas não viu ninguém. Todos haviam fugido. Não, todos não. No ramo de uma árvore a Andorinha Sinhá fitava o Gato Malhado e sorria-lhe. Somente ela não havia fugido. De longe seus pais a chamavam em gritos nervosos. E, dos seus esconderijos, todos os habitantes do parque miravam espantados a Andorinha Sinhá, que sorria para o Gato Malhado. Em torno era a primavera, sonho de um poeta.

Novo parêntesis, para apresentar a Andorinha Sinhá (Quando ela passava, risonha e trêfega, não havia pássaro em idade casadoira que não suspirasse. Era muito jovem ainda, mas, onde quer que estivesse, logo a cercavam todos os moços do parque. Faziam-lhe declarações, escreviam-lhe poemas. O Rouxinol, seresteiro afamado, vinha ao clarão da lua cantar à sua janela. Ela ria para todos, com todos se dando, não amava nenhum. Livre de todas as preocupações voava de árvore

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em árvore pelo parque, curiosa e conversadeira, inocente coração. No dizer geral não existia, em nenhum dos parques por ali espalhados, andorinha tão bela nem tão gentil quanto a Andorinha Sinhá.)

Continuação da estação da primavera Em torno era a primavera, o sonho de um poeta. O Gato Malhado teve vontade de dizer algo semelhante à Andorinha Sinhá. Sentou-se no chão, alisou os bigodes, apenas perguntou: – Tu não fugiste com os outros? – Eu? Fugir? Não tenho medo de ti, os outros são todos uns covardes... Tu não me podes alcançar, não tens asas para voar, és um gatarrão ainda mais tolo do que feio. E olha lá que és feio... – Feio, eu? O Gato Malhado riu, riso espantoso de quem se havia desacostumado de rir, e desta vez até as árvores mais corajosas, como o pau-brasil — um gigante —, estremeceram. “Ela o insultou e ele a vai matar”, pensou o velho Cão Dinamarquês. O Reverendo Papagaio — reverendo porque passara uns tempos no seminário onde aprendera a rezar e decorara frases em latim, o que lhe dava valiosa reputação de erudito — fechou os olhos para não testemunhar a tragédia. Por duas razões: por ser emotivo, não lhe agradando ver sangue, menos ainda de andorinha tão formosa, e por não desejar servir como testemunha se o crime chegasse à justiça, maçada sem tamanho, tendo de decidir entre dizer a verdade e arcar com as consequências da ira do Gato Malhado — processo por calúnia, umas bofetadas, o bico arrancado, quem sabe lá o quê — ou mentir e ficar com fama de covarde, de cúmplice do assassino. Situação difícil, o melhor era não testemunhar. Em troca rezou pela alma da Andorinha Sinhá, ficando em paz com a sua consciência, uma chata cheia de exigências. A própria Andorinha Sinhá sentiu que exagerara e, por via das dúvidas, voou para um galho mais alto onde ficou bicando as penas num gesto de extrema faceirice. O Gato Malhado continuava a rir, apesar de se sentir um tanto ofendido. Não porque a Andorinha o houvesse tachado de mau e sim por tê-lo chamado de feio, e ele se achava lindo, uma beleza de gato. Elegante também. – Tu me achas feio? De verdade? – Feiíssimo... — reafirmou lá de longe a Andorinha. – Não acredito. Só uma criatura cega poderia me achar feio. – Feio e convencido! A conversa não continuou porque os pais da Andorinha Sinhá, o amor pela filha superando o medo, chegaram voando e a levaram consigo, ralhando com ela, pregando-lhe um sermão daqueles. Mas a Andorinha, enquanto a retiravam, ainda gritou para o Gato: – Até logo, seu feio... Foi assim, com esse diálogo um pouco idiota, que começou toda a história do Gato Malhado e da Andorinha Sinhá. Em verdade a história, pelo menos no que se refere à Andorinha, começara antes. Um capítulo inicial deveria ter feito referência a certos atos anteriores da Andorinha. Como não posso mais escrevê-lo onde devido, dentro das boas regras da narrativa clássica, resta-me apenas suspender mais uma vez a ação e voltar atrás. É, sem dúvida, um método anárquico de contar uma história, eu reconheço. Mas o esquecimento pode ir por conta do transtorno que a chegada da primavera causa aos gatos e aos contadores de histórias. Ou, melhor ainda, posso me afirmar um revolucionário da forma e da estrutura da narrativa, e que me dará de imediato o apoio da crítica universitária e das colunas especializadas de literatura.

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Capítulo inicial atrasado e fora de lugar Andorinha Sinhá, além de bela, era um pouco louca. Louquinha fica-lhe melhor. Apesar de ainda frequentar a escola dos pássaros — onde o Papagaio ditava a cátedra de religião — tão jovem que os respeitáveis pais não a deixavam sair à noite sozinha com os seus admiradores, mas já era metida a independente, orgulhando-se de manter boas relações com toda a gente do parque. Amiga das flores e das árvores, dos patos e das galinhas, dos cães e das pedras, dos pombos e do lago. Com todos ela conversava, um arzinho suficiente, sem se dar conta das paixões que ia espalhando ao seu passar. Mesmo o Reverendo Papagaio, que fazia grande propaganda das próprias virtudes, considerado por todos um pouco eclesiástico devido ao tempo passado no seminário, mesmo ele a olhava, durante as aulas, com uns olhos entornados. Apesar de todas essas relações e admirações, uma sombra anuviava a vida da Andorinha Sinhá, razão de ser deste atrasado capítulo inicial, pois a sombra era exatamente o Gato Malhado. Ou melhor: o fato dela nunca ter conseguido conversar com o Gato. Aquele sujeito caladão, orgulhoso e metido a besta, bulia-lhe com os nervos. Habituara-se a vir espiá-lo quando ele dormia ou esquentava sol sobre a grama. Escondida no ramo de uma árvore, mirava-o durante horas perdidas, cismando nas razões por que o feioso não mantinha relações com ninguém. Ouvia falar mal dele, mas fitava o seu nariz róseo, de grandes bigodes, e — ninguém sabe por quê — duvidava da veracidade das histórias. Assim são as andorinhas, o que se pode fazer?, não há forma de fazê-las compreender a verdade mais rudimentar, a mais provada e conhecida, se elas se metem a duvidar. São cabeçudas e se deixam guiar pelo coração. O Gato Malhado era a sombra na vida clara e tranquila da Andorinha Sinhá. Por vezes estava cantando uma das lindas canções que aprendera com o Rouxinol, e, de súbito, parava porque via (às vezes adivinhava) o grande corpo do Gato que passava em caminho do seu canto predileto. Ia então pelos ares, seguindo-o devagar, e, em certa tarde, divertiu-se muito a atirar-lhe gravetos secos sobre o dorso. O Gato dormia, ela estava bem escondida entre as folhas da jaqueira, rindo a cada graveto que acertava nas costas do Gato, levando o preguiçoso a abrir um olho e mirar em torno. Mas logo o cerrava, pensando tratar-se de alguma brincadeira idiota do Vento. De há muito, o Gato Malhado aprendera que não adianta correr atrás do Vento para dar-lhe com a pata. O melhor era deixá-lo cansar-se da brincadeira. Mas naquele dia, como a coisa continuasse, resolveu ir embora. A Andorinha Sinhá retirou-se também, contente com a peça que pregara ao temido Gato Malhado. Foi nesse dia que ela teve a célebre conversa com a Vaca Mocha. Falo na Vaca Mocha logo no capítulo inicial da história, por se tratar de uma figura das mais importantes do parque. Tinha quase tanto prestígio quanto a Velha Coruja. Tratava-se de uma pessoa tranquila, mesmo um pouco solene, muito circunspecta, por todos os títulos respeitáveis, descendente de um touro argentino e se chamava Rachel Púcio. No entanto, possuía um temperamento vingativo, humor variável. Muito boa para com aqueles a quem amava — com o casal de patos, por exemplo, mantinha relações de muita amizade —, brusca e violenta com a gente de quem não gostava: a Mosca Varejeira, os cães e, mais que todos, o Gato Malhado. Não gostava do Gato Malhado porque, sendo ela uma figura assim tão altamente respeitável, com sangue portenho, considerara-se terrivelmente ofendida pelo mísero felino em certa distante ocasião. Acontece que, apesar de sua circunspeção, a Vaca Mocha era dada à ironia. Foi assim que, certa vez, tendo encontrado o Gato Malhado no curral, onde fora com certeza na esperança de roubar um pouco de leite, disse-lhe, num misto de desprezo e pilhéria, e em mescla de espanhol e português: – Un tipo tan chiquito y ya de bigotes!

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O gato, em evidente imperdoável desrespeito, teve a ousadia de responder-lhe: – Uma sujeita tão grandona e sem porta-seios! A Vaca Mocha armou-lhe um coice bem armado, mas o gato ia longe, rindo para dentro seu riso malvado. Todo o parque considerou que a Vaca Mocha fora terrivelmente insultada, e, à noite, vieram muitas famílias visitá-la para apresentar-lhe sua solidariedade, pois ela estava inconsolável e chorava sem cessar. À frente de todos veio o Reverendo Papagaio, que nessa noite se embriagou e divertiu toda a assistência com as anedotas que aprendera na cozinha do seminário. Até a Vaca Mocha parou de chorar para rir e depois voltou a chorar outra vez, mas agora de tanto e tanto rir. Quando a Andorinha lhe disse em que espécie de diversão empregara sua tarde, a Vaca Mocha lastimou que, em vez de gravetos, a Andorinha não houvesse jogado calhaus enormes bem no crânio do gato, liquidando-o de uma vez. Mas quando Sinhá se horrorizou com tal possibilidade sangrenta e lhe confessou que jogara os gravetos como um pretexto para puxar conversa com o gato, aí foi a vez da Vaca demonstrar seu assombro: – Hablar com el Gato? Piensas, loquita, en hacerlo realmente? Por Diós, no seas tonta! Falar espanhol dava-lhe status e cansaço, que cansaço! Continuou em português. – Então tu não sabes que ele é um gato, um gato mau, e que jamais uma andorinha pode — sem com isso comprometer a honra da família — manter relações, sequer de simples cumprimentos, com um gato? Que os gatos são inimigos irreconciliáveis das andorinhas, que muitas e muitas parentas tuas pereceram entre as garras de gatos como aquele? Malhados ou não? Prosseguiu com o sermão. Como pensava ela, louca andorinha, em rasgar uma velha lei estabelecida, em passar por cima de regras consagradas pelo tempo, em fazer tal insulto aos seus amigos, dar tamanho desgosto aos seus pais? – Mas ele não me fez nada... – É um gato, e ainda por cima, malhado! – Só por ser um gato, ainda por cima malhado? Mas ele tem um coração como todos nós... – Coração? — indignou-se a Vaca Mocha, de fácil indignação como estamos aos poucos constatando. — Quem lhe disse que ele tem coração? Quem? – Bem, eu pensei... – Você viu o coração dele? Diga! – Ver não vi... – Então? Ainda falou longamente. Contou a história do que o Gato lhe fizera e mais uma vez derramou algumas lágrimas ao recordar o insulto. Novos conselhos, advertências; dar conselhos era uma das especialidades da Vaca Mocha. Regras de bom viver, cheias de salutar moralidade e de algum ranço. Explicou como deve comportar-se uma jovem andorinha donzela, o que pode fazer e o que lhe estava vedado. Principalmente não deve falar com gatos, muito menos com o Gato Malhado... A Andorinha ouviu, atenta como a boa educação ordena, e ficou triste. Não devia conversar com o Gato, fizera muito mal em pensar em tal coisa. A Vaca devia ter razão, possuía experiência e uma voz empostada e nobre. Só que a Andorinha, cabeça dura, não compreende por que cometerá um pecado se conversar com o Gato. Em todo caso, jurou à Vaca jamais jogar gravetos sobre o dorso amarelo e preto do Gato Malhado e nem sequer pensar em conversar com ele. Mas juramento de andorinha não vale muito, não se lhe deve dar crédito exagerado. Muito menos a juramento de andorinha jovem, de cabeça ardente e espírito um pouco aventureiro. De mim, desconfio que, ao

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jurar, ela já sabia ser incapaz de cumprir a jura. Continuou a ir espiar o Gato. Não mais lhe jogou gravetos, mas, ai!, não devido ao juramento e, sim, com medo de que ele fosse embora pensando tratar-se de pilhéria do Vento. Ia espiá-lo todos os dias até que naquele dia da chegada da primavera... E aqui termina o capítulo inicial e voltamos à história, lá adiante, onde a deixamos por erros de estrutura ou por moderna sabedoria literária.

Fim da estação da primavera Os pais de Sinhá iam ralhando com ela. Mas estavam tão comovidos com o próprio heroísmo — tiveram coragem de afrontar o Gato Malhado para salvar a filha — que não ralharam demasiado. A Andorinha Pai dizia à Andorinha Mãe: – Nós amamos nossa filha, nós a salvamos. A Andorinha Mãe respondia: – Nós somos bons pais, protegemos nossa filha. E se olhavam, admirando-se mutuamente. Proibiram terminantemente a Andorinha de novamente aproximar-se do inimigo feroz. Se os juramentos da Andorinha jovem não têm nenhum valor, bruscas proibições só fazem aguçar-lhe o interesse e a curiosidade. Não que Sinhá fosse uma dessas andorinhas às quais basta que se diga “não faça isso” para que imediatamente o façam. Ao contrário, terna e obediente, amava os pais. Era bem-comportada, amável e bondosa. Mas gostava que a convencessem das coisas com boas e justas razões, e ainda ninguém lhe havia provado ser um pecado ou um crime manter relações cordiais com o Gato Malhado. Assim, quando deitou a gentil cabecinha sobre a pétala de rosa que lhe servia de travesseiro, havia decidido continuar a conversa no outro dia: – Ele é feio, mas é simpático... — murmurou ao adormecer. Quanto ao Gato Malhado, também ele pensou na arisca Andorinha Sinhá, naquela primeira noite da primavera, ao repousar a cabeça no travesseiro. Aliás, eis uma coisa que ele não possuía: travesseiro. Além de mau e feio, o Gato Malhado era um pobre de Job; repousava a cabeça em cima dos braços. Sendo de pouco luxo, não reclamava. Falta sentia de outras coisas: de afeição, de carinho e de salsichas vienenses.Recolheu-se tarde. Antes, andara pelo parque, ao léu. Arranhara a casca de troncos de árvores, miara sem motivo evidente, sentira desejo de voltar a vagabundear nos telhados como praticara na distante adolescência. O cheiro bom da terra penetrara-lhe pelas narinas e seus grandes bigodes moveram-se inquietos. Sentira-se muito moço, até teve vontade de correr com os cães. E o teria feito, com certeza, se os cachorros não se houvessem afastado, cheios de receio, quando ele os procurou. Tal fora o seu estado de lassidão e de indefinido desejo que murmurou para si mesmo: – Creio que estou doente. Colocou a pata sobre a testa e concluiu: – Estou ardendo em febre... Quando, ao cair da noite, voltava para sua cama — um velho trapo de veludo —, olhou uma flor e nela viu refletidos os rasgados olhos da Andorinha. Febril, foi ao lago beber água e na água também enxergou a Andorinha, que sorria. E a reconheceu em cada folha, em cada gota de orvalho, em cada réstia de sol crepuscular, em cada sombra da noite que chegava. Depois a descobriu vestida de prata na lua cheia para a qual miou um miado dolorido. Ia alta a noite quando conseguiu dormir. Sonhou com a Andorinha, era a primeira vez que ele sonhava havia muitos anos.

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Devo concluir que o Gato Malhado, de feios olhos pardos, de escura fama de maldade, havia se apaixonado? Agora que ele e a Andorinha dormem, que só a Velha Coruja está acordada, permito-me filosofar um pouco. É um direito universalmente reconhecido aos contadores de histórias e devo usá-lo pelo menos para não fugir à regra geral. Desejo dizer que há gente que não acredita em amor à primeira vista. Outros, ao contrário, além de acreditar afirmam que este é o único amor verdadeiro. Uns e outros têm razão. É que o amor está no coração das criaturas, adormecido, e um dia qualquer ele desperta, com a chegada da primavera ou mesmo no rigor do inverno. Na primavera é mais fácil, mas isso já é outro tema, não cabe aqui. De repente, o amor desperta de seu sono à inesperada visão de um outro ser. Mesmo se já o conhecemos, é como se o víssemos pela primeira vez e por isso se diz que foi amor à primeira vista. Assim o amor do Gato Malhado pela Andorinha Sinhá. Quanto ao que se passava no pequeno porém valoroso coração de Sinhá, não esperem que eu explique ou desvende. Não sou tão tolo a ponto de achar-me capaz de entender o coração de uma mulher, quanto mais de uma andorinha. Nenhuma dessas considerações perturbou naquela noite o Gato Malhado. Em verdade ele não se julgava ainda apaixonado. Tal ideia nem lhe ocorreu. Quando era jovem, apaixonava-se todas as semanas, em geral às terças-feiras, e desapaixonava-se às sextas, pois era um gato preguiçoso, e tirava o sábado, o domingo e a segunda para descansar. Despedaçara inúmeros corações de gatas de todas as cores, de uma coelha cinzenta e de uma raposa adolescente. Mas isso fazia tanto tempo que ele nem mais se recordava dos nomes e das situações. Vivia no seu canto, eu já expliquei, tranquilo, preguiçando ao sol, gozando a doce carícia da brisa, o frescor das noites de verão, o frio gostoso do inverno. Agora vinha a primavera perturbar a sua paz. No dia seguinte, ao acordar e lavar a cara, pensou na Andorinha recordando o sonho a acompanhá-lo pela noite: ele e Sinhá discutindo de boniteza e feiura. Riu-se: “Ontem eu estava doente” e resolveu não pensar mais na Andorinha. Dirigiu-se ao seu canto predileto para calentar sol sobre o velho trapo de veludo. A vida se desenvolvia pelo parque. Bem, ali está o Gato Malhado. Deitado, como sempre, ao comprido para que o sol gostoso da primavera o envolva por inteiro. Mas, o que é estranho, não consegue fechar os olhos como o faz habitualmente. A experiência lhe ensinara que, de olhos fechados, goza-se muito mais o calor do sol e a frescura da brisa. No entanto, naquele segundo dia de primavera, tinha os olhos abertos, e, ademais, voltados para a árvore onde, na véspera, estivera a Andorinha Sinhá. Quando percebe o que está sucedendo, fica furioso. Desvia o olhar e, assobiando devagarinho, busca outras paisagens. Olha os cachorros que correm, os idiotas não sabem fazer outra coisa, as árvores cheias de folhas, olha até o Papagaio ocupado a rezar suas orações matinais. O Papagaio mantinha uma das mãos sobre o peito e os olhos entornados para o céu. O Gato, ao ver o seu ar untuoso, quase clerical, não se contém e mostra-lhe a língua. O Papagaio, alarmado com o gesto inesperado e ameaçador, interrompe as suas orações e cumprimenta: – Bom-dia, meu caríssimo doutor Gato Malhado. Como vai a saudinha? Graças a Deus, bem? O Gato nem se digna de responder. Além de tudo, seu olhar já está de novo fixo na árvore onde a Andorinha pousara na véspera. Enquanto ele espia na esperança de vê-la, explico o porquê do gesto feio do Gato. Não significa, como se pode pensar, desrespeito à religião. É que o Gato Malhado não gosta de gente hipócrita. E o Papagaio era a hipocrisia em pessoa. A Coruja — que conhecia a dedo a vida de todos os habitantes do parque — tinha contado ao Gato que o mestre Papagaio, sob toda aquela capa de religiosidade, não passava de um devasso. Fizera propostas indecorosas à pequena Pata Branca, à Galinha Carijó, a uma Rolinha à qual ensinara o catecismo, e que, à própria Coruja, sem respeitar-lhe a idade, murmurara duvidoso convite. E o caso do Pombogaio? Ah! esse caso do

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Pombogaio merece ser contado. Um dia a Pomba-Correio teve um filho estranho: um pombo que falava a língua dos homens. Além de tolo, o Pombo-Correio vivia em longas viagens, levando toda a correspondência do parque. Oficialmente o filho era dele, mas a Coruja dizia que ali havia coisa. Quem, além do Papagaio, conhecia e falava no parque a língua dos homens? Os cachorros a entendiam, mas não a praticavam. Ademais, o Papagaio não saía da casa da Pomba-Correio, na ausência do marido, sob o pretexto de levar-lhe “alimento espiritual”. Por sorte, o Pombo-Correio era criatura de boa índole. O Gato Malhado não tinha má vontade com os devassos. Nunca tomava parte nas murmurações do parque sobre as aventuras do Galo, inveterado e invejado polígamo, maometano que, a cada dia, acrescentava nova franga ao seu sortido harém. Tanto os pombos, monógamos por convicção, quanto o Pato Preto, monógamo por força das circunstâncias, já que no parque só existia uma pata, uns e outros se mostravam muito escandalizados com a vida devassa do Galo. Também a Vaca Mocha: balançava a cabeça numa condenação muda. Só o Gato não dava nenhuma importância ao fato. Não era contra os devassos. Mas, sim, contra os hipócritas, os mascarados como o Papagaio. Por isso lhe mostrou a língua, gesto insultuoso e condenável. Contei tudo isso na esperança de que nesse meio tempo a Andorinha Sinhá viesse pousar na árvore em frente ao Gato. Mas ela não veio, a ingrata!, e vamos reencontrar o nosso amigo Malhado já sem nenhuma alegria, num estado de espírito muito diferente daquele em que o deixamos. Perdera o ar brincalhão com que acordara, a leveza que sentia desde a véspera, os grandes bigodes estavam caídos, desmoralizados, murchos. Isso era um triste e perigoso sinal em se tratando do Gato Malhado. Seus bigodes eram o índice do seu humor.Fita mais uma vez a árvore, tantas vezes já o fizera antes... Não vê a Andorinha, a sombra da árvore cobre-lhe o corpanzil. Os olhos pardos escurecem. Por que sente o coração dorido? No entanto, é primavera em torno. Acontece-lhe então levantar-se. Por que o faz nem ele mesmo seria capaz de explicar. Talvez para ficar ao sol. Levanta-se e sai andando. E, de repente, nota que seus pés — será que ele já não os governa? — o haviam levado, sem ele sentir, para junto da distante árvore onde mora a família da Andorinha Sinhá. Devo esclarecer que esta árvore ficava do outro lado do parque. Os pais de Sinhá haviam saído em busca de alimento. A Andorinha tinha visto o Gato vir vindo e o esperava sorridente. Gato Malhado para em baixo da árvore, espia, descobre a Andorinha. Foi então que percebeu onde havia chegado, sem se dar conta. Dana-se. Que faço eu aqui? Resolve voltar rapidamente (diabo! seus pés, de tão pesados, pareciam ter chumbo grudado), mas a Andorinha falou com sua doce voz: – Não me diz bom-dia, seu mal-educado? – Bom-dia, Sinhá... — havia até certo acento harmonioso na voz cava do Gato. – Senhorita Sinhá, faça o favor. E, como ele fizesse uma cara triste (era ainda mais feio quando ficava triste), ela concedeu: – Vá lá... Pode me chamar de Sinhá se isso lhe dá prazer... E eu lhe chamarei de Feio. – Já lhe disse que não sou feio. – Puxa! Que convencido! É a pessoa mais feia que eu conheço. Junto de você, minha madrinha Coruja é prêmio de beleza... Afinal, que fazia ele ali?, pensava o Gato Malhado. Aquela jovem Andorinha, apenas uma adolescente, não o trata com o devido respeito (será mesmo que ele desejava que ela o tratasse com respeito?), insulta-o, agride-o, chama-o de feio. Era o resultado de ter ele dado confiança a uma jovem andorinha qualquer. Que era ela senão uma estudante, aluna de religião do Papagaio, que podia ter na cabeça, que espécie de conversa podia manter com ele, um gato sério, viajado, que se considerava um ser superior, mais culto do que toda a gente do parque e que se achava — principalmente — um gato bonito? Resolveu retirar-se e nunca mais voltar a falar àquela desrespeitosa andorinha (ah! seus pés como chumbo, como se tivessem toneladas de chumbo...). Faz um esforço:

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– Até logo... — Está aí, se ofendeu... Ainda é mais convencido do que feio... Por que diabo ele começa a achar graça? Agora não eram apenas os pés que já não lhe obedeciam, também a boca se abria em riso quando ele queria ficar sério, com um ar zangado. Uma vasta conspiração contra o Gato Malhado. A Andorinha continuava, num palrar incessante, linda adolescente dos campos, cuja juventude domina tudo em derredor: – Não precisa ir embora. Não lhe chamo mais de feio. Agora só lhe trato de formoso. – Não quero também... – Então como vou lhe chamar? – Gato. – Gato não posso. – Por quê? Será que ela entristecera? Agora sua voz já não é brincalhona. O Gato Malhado repete a pergunta: – Por que não pode? – Não posso conversar com nenhum gato. Os gatos são inimigos das andorinhas. – Quem lhe disse? – É verdade. Eu sei. O Gato fez a cara mais triste do mundo. A Andorinha Sinhá, que amava a alegria e não podia ver ninguém triste, continuou: – Mas nós não somos inimigos, não é? – Nunca. – Então nós podemos conversar. Mas logo acrescentou: – Vá embora que Papai vem aí. Depois eu vou na ameixeira conversar com você, Feião... O Gato ri e trata de sumir entre as moitas de capim que crescem por ali. Estava novamente alegre. Enquanto atravessa agilmente por entre o mato, vai recordando o diálogo com a Andorinha, a voz melodiosa volta a ressoar em seus ouvidos. Ela não podia conversar com um gato. Os gatos são maus, alguns foram apanhados em flagrante almoçando andorinhas, havia alguma verdade nisso. Como era possível ser assim tão mau? Como almoçar um ser tão frágil e formoso como a Andorinha Sinhá? Deita-se sob a ameixeira que está em flor. Logo depois a Andorinha chega, fazendo círculos no ar, num voo que é improvisado e lindo bailado primaveril. De longe, o Rouxinol, que a acompanha com os olhos, começa a cantar e sua melodia de amor enche o parque. O Gato bate palmas quando ela pousa num galho baixo. Continuam a conversa interrompida. Não vou mais reproduzir os diálogos. E tomo tal resolução porque eram todos um pouco parecidos e somente aos poucos, com o correr do tempo, se fizeram dignos de uma história de amor. Quem sabe, talvez mais adiante eu reproduza um, se houver ocasião. Por ora, apenas quero dizer que eles conversaram durante toda a primavera, sem que jamais faltasse assunto. Foram se conhecendo um ao outro, cada dia uma nova descoberta. E não apenas conversaram. Juntos, ele correndo pelo chão de verde grama, ela voando pelo azul do céu, vagabundearam por todo o parque, encontraram recantos deliciosos, descobriram novas nuances de cor nas flores, variações na doçura da brisa, e uma alegria que talvez estivesse mais dentro deles que mesmo nas coisas em derredor. Ou bem a alegria estava presente em todas as coisas e eles não a viam antes. Porque — eu vos digo — temos olhos de ver e olhos de não ver, depende do estado do coração de cada um. Quero acrescentar, finalmente, que já não se tratavam de você.

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Quando, pela manhã, se viam pela primeira vez naquele dia, ele lhe perguntava: – Que fizeste de ontem para hoje? Hoje estás ainda mais linda do que ontem e mesmo mais linda do que estavas essas noites no sonho em que te vi... – Conta-me o teu sonho. Eu não te conto o meu porque sonhei com uma pessoa muito feia: sonhei contigo... Riam os dois: ele, o seu riso cavo de gato mau; ela, o seu argentino riso de andorinha adolescente. Assim aconteceu na primavera.

A estação do verão Este é um capítulo curto porque o verão passou muito depressa com o seu sol ardente e suas noites plenas de estrelas. É sempre rápido o tempo da felicidade. O Tempo é um ser difícil. Quando queremos que ele se prolongue, seja demorado e lento, ele foge às pressas, nem se sente o correr das horas.Quando queremos que ele voe mais depressa que o pensamento, porque sofremos, porque vivemos um tempo mau, ele escoa moroso, longo é o desfilar das horas. Curto foi o tempo do verão para o Gato e a Andorinha. Encheram-no com passeios vagabundos, com longas conversas à sombra das árvores, com sorrisos, com palavras murmuradas, com olhares tímidos, porém expressivos, com alguns arrufos também... Não sei se arrufos será a palavra precisa. Explicarei: por vezes a Andorinha encontrava o Gato abatido, de bigodes murchos e olhos ainda mais pardos. A causa não variava: a Andorinha saíra com o Rouxinol, com ele conversara ou tivera aula de canto — o Rouxinol era o professor. A Andorinha não compreendia a atitude do Gato Malhado, aquelas súbitas tristezas que se prolongavam em silêncios difíceis. Entre ela e o Gato jamais havia sido trocada qualquer palavra de amor, e, por outro lado, a Andorinha, segundo disse, considerava o Rouxinol um irmão. Um dia — dia em que a aula de canto se prolongara além do tempo costumeiro —, quando os bigodes do Gato estavam tão murchos que tocavam o solo, ela lhe pediu explicação daquela tristeza. O Gato Malhado respondeu: – Se eu não fosse um gato, te pediria para casares comigo... A Andorinha ficou calada, num silêncio de noite profunda. Surpresa? – não creio, ela já adivinhara o que se passava no coração do Gato. Zanga? – não creio tampouco, aquelas palavras foram gratas ao seu coração. Mas tinha medo. Ele era um gato, e os gatos são inimigos irreconciliáveis das andorinhas. Voou rente sobre o Gato Malhado, tocou-o de leve com a asa esquerda, ele podia ouvir as batidas do pequeno coração da Andorinha Sinhá. Ela ganhou altura, de longe ainda o olhou, era o último dia de verão.

Parêntesis das murmurações (Murmurava a Vaca Mocha no ouvido do Papagaio: “Onde já se viu uma coisa igual? Uma andorinha, da raça volátil das andorinhas, namorando com um gato, da raça dos felinos? Onde já se viu, onde já se viu?” E o Papagaio murmurava no ouvido da Vaca Mocha: “Onde já se viu, Padre Nosso Que Estais no Céu, uma andorinha andar pelos cantos escondida com um gato? Ave Maria Cheia de Graça, andam dizendo, andam dizendo, eu não acredito, eu não acredito, Creio em Deus Padre, mas pode ser, mas pode ser, Salve Rainha, Mãe de Misericórdia, que ele anda querendo casar com ela. Deus me Livre e Guarde, ora se tá querendo, ora se, Amém.” E o Pombo dizia à Pomba, numa murmuração: “Onde já se viu uma andorinha, linda andorinha, louca andorinha, às voltas com um gato? Tem uma lei, uma velha lei, pombo com pomba, pato com pata, pássaro com pássaro, cão com cadela e gato com gata. Onde já se viu uma andorinha noivando com um gato?” E a Pomba murmurava ao Pombo, num cochicho: “É o fim do mundo, os tempos são outros, perdeu-se o respeito a todas as leis.” Murmurava o

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Cachorro no ouvido da Cadela: “Pobre Andorinha, passeia com o Gato, mal sabe ela que ele deseja apenas um dia almoçá-la.” A Cadela respondia, balançando a cabeça: “O Gato é ruim, só quer almoçar a pobre Andorinha.” E o Pato dizia à Pata Pepita: “Reprovo o desairoso proceder dessa tonta Andorinha. É perigoso, imoral e feio. Conversa com o Gato como se ele não fosse um gato. Logo com o Gato Malhado, criminoso nato, lombrosiano.” E a Pata Pepita assim respondia ao Pato Pernóstico: “Pata com pato, pomba com pombo, cadela com cão, galinha com galo, andorinha com ave, gata com gato.” E as árvores murmuravam, ao passar do Vento: “Onde já se viu? Onde já se viu? Onde já se viu?” E as flores coravam e sussurravam ao ouvido da Terra: “Andorinha não pode, não pode casar, com gato casar!” E em coro cantavam: “É pecado mortal!” O pai da Andorinha ouviu os rumores, a mãe da Andorinha os rumores ouviu. O pai da Andorinha disse zangado à mãe da Andorinha: “Nossa filha vai mal, nossa filha anda às voltas com o Gato Malhado.” A mãe respondeu: “Nossa filha é uma tola, precisa casar.” O pai perguntou: “Casar, mas com quem?” A mãe respondeu: “Com o Rouxinol que já me falou.” E o parque inteiro tal coisa aprovou: “Que bom casamento para a Andorinha. O Rouxinol é belo e gentil, sabe cantar, é da raça volátil, com ele bem pode a Andorinha casar. Casar só não pode com o Gato Malhado; andorinha com gato, quem no mundo já viu?” E o Papagaio dizia: “Três Vezes Amém.”)

A estação do outono No outro dia o outono chegou, derrubando as folhas das árvores. O Vento sentia frio, e, para esquentar--se, corria zunindo pelo parque. O outono trazia consigo uma cauda de nuvens e com elas pintou o céu de cores cinzentas. Não era só a paisagem que se modificava com o correr das estações, como certamente percebeu o culto e talentoso leitor. Também a atitude dos habitantes do parque, em relação ao Gato Malhado, havia sofrido sensível mudança. Não que houvessem deixado de ter-lhe raiva, não que lhe houvessem perdoado os agravos antigos. Mas já não sentiam medo dele, como o provavam as murmurações sobre o seu caso com a Andorinha, murmurações que de tímidos cochichos transformaram-se em obstinado rumor. Recordemos que antes, nas páginas iniciais desta história, tremiam todos, apenas o Gato Malhado abria um olho. Como explicar então que não mais o temessem, que comentassem quase abertamente seus passeios com a Andorinha? É que o Gato, durante a primavera e o verão, vivera alegre e satisfeito. Não ameaçara os demais viventes, não despedaçara flores com patadas, não encrespara os pelos do dorso à aproximação de estranhos e não repelira os cães eriçando os bigodes, insultando-os entre dentes. Tornara-se um ser brando e amável, era o primeiro a cumprimentar os outros habitantes do parque, ele que antigamente quase nunca respondia aos medrosos «bons-dias» que lhe dirigiam. Aventurar-me-ei mesmo a afirmar que ele cultivou, naquela época, bons e generosos sentimentos. E baseio esta audaciosa afirmação no fato, entre outros de menor importância, de ter-se arriscado para expulsar do parque a Cobra Cascavel quando ela apareceu durante o verão. Todo mundo se havia escondido. Até mesmo o Cachorro Dinamarquês que vivia rugindo bravatas. O Gato atacou a Cascavel, conseguiu furtar o corpo ao seu bote mortal, e deu-lhe tantas taponas na cabeça, que ela fugiu para muito longe; jamais voltou ao parque. Só a Andorinha elogiou o feito do Gato. Todos os demais acharam que ele enfrentara a cobra apenas para mostrar-se, fazer bonito, bancando o valente.A Vaca Mocha chegou mesmo a lastimar que a cobra tivesse errado o bote. O Papagaio classificou o acontecimento como «exibicionismo primário». A verdade é que o Gato continuava com fama de sujeito mau e intratável.

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Os habitantes do parque, todavia, haviam concluído, ante a atual amabilidade do Gato Malhado, que, se bem ele fosse muito mau, já não era muito perigoso. Devia estar ficando velho, sem forças, e por isso procurava reabilitar-se. Perderam-lhe o medo. O Papagaio, interesseiro, chegara a alimentar ilusões de amizade. Pensou tornar-se íntimo do Gato e utilizá-lo contra seus inimigos, o Pato, por exemplo, que falava horrores dele pelas costas. O Gato tolerou a aproximação do Papagaio (não estava aquele hipócrita de alguma forma ligado à Andorinha, já que lhe ensinava religião?), mas evitou qualquer familiaridade. Diante disso, o Papagaio, ofendido, espalhou no parque cruel teoria explicativa da atual gentileza do Gato: mudara de atitude por sofrer doença incurável; estando às portas da morte, buscava o perdão dos seus pecados. Não se deve tomar essas coisas como prova de maldade geral. A fama ruim do Gato Malhado era antiga e arraigada. Como poderiam eles compreender que o Gato mudara desde que a Andorinha entrara em sua vida? Como entender que sob a casca grossa, sob o pelo eriçado do Gato pulsava um terno coração? Tão terno, que aquele primeiro dia de outono foi encontrar o Malhado escrevendo um soneto. Coberto com um pesado manto de lã (o Gato era muito friorento), contava sílabas nos dedos e procurava rimas num grosso dicionário, de autoria do afamado Gramático Tamanduá: prêmio nacional de literatura e membro da Academia de Letras. Sim, até um soneto ele escreveu. Possuo cópia dessa única produção literária do Gato Malhado, criatura séria que sempre vivera longe dessas frioleiras. Foi-me dada pelo Sapo Cururu — que nas horas vagas dedica-se à crítica literária — como exemplo de péssima poesia lírica, no que lhe cabe razão. Aliás, o ilustre Sapo descobriu monstruoso plágio na curta produção poética do Gato, e ninguém põe em dúvida afirmação do Sapo Cururu, autoridade inconteste. Para que o próprio leitor possa julgar do valor do soneto e das acusações de plágio lançadas contra o Gato Malhado, eu vou transcrever a citada peça lírica. Não o posso fazer, contudo, no corpo da história, pois afinal isso aqui não é um caderno de poemas — muito menos de sonetos plagiados e péssimos — e, sim, uma história que o Vento contou à Manhã e que a Manhã contou ao Tempo, para ganhar uma rosa azul. Abro assim novo parêntesis, desta vez poético. Apenas uma coisa eu peço: ao julgar o soneto do Gato, pense o leitor na boa intenção a tanger a lira do vate, deixando de lado sua falta de vocação e habilidade literárias. Não apenas com um manto contra o frio cobria-se o Gato Malhado naquela manhã de lírica inspiração; cobria-se também com o manto do amor. A poesia não está somente nos versos, por vezes ela está no coração, e é tamanha, a ponto de não caber nas palavras.

Parêntesis poético:

SONETO DO AMOR IMPOSSÍVEL Para a minha adorada Andorinha Sinhá (A Andorinha Sinhá A Andorinha Sinhô A Andorinha bateu asas e voou.

Vida triste minha vida, não sei cantar nem voar, não tenho asas nem penas, não sei soneto escrever.

Muito amo a Andorinha, com ela quero casar. Mas a andorinha não quer.

Comigo casar não pode porque sou gato malhado, ai!) Gato Malhado

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Post scriptum Para dar ao leitor base concreta para um julgamento sem vacilações, abro em seguida outro parêntesis, desta vez, crítico. Pode o leitor estranhar que seja a história tão interrompida por parêntesis, deixando-se o autor ficar no bem-bom, quem sabe a dormir a sesta ou a namorar, mas em verdade sai ganhando, pois, em lugar de enfastiar-se com tacanhas letras e fútil narrativa, ilustra-se lendo peça profunda devida à pena do eminente Sapo Cururu, membro da Academia e do Instituto, crítico universitário, professor de Comunicação. Com o Mestre, a palavra.

Parêntesis críticoESCRITO, A PEDIDO DO AUTOR, PELO SAPO CURURU,Membro do Instituto (“A peça poética em discussão é carente de ideias profundas e peca por inúmeros defeitos na forma. A linguagem não é escorreita; a construção gramatical não obedece aos cânones dos excelsos vates do passado; a métrica, cujo rigor se impõe, vê-se tratada a trancos; a rima, que deve buscar-se seja milionária, é paupérrima nas apoucadas vezes em que nos dá o ar da sua graça. “Imperdoável, sobretudo, porém, o fato criminoso evidenciado no primeiro quarteto do aludido soneto de autoria do Gato Malhado, claro e clamoroso plágio de inconveniente canção carnavalesca que assim se escreve: “A baratinha Yayá, A baratinha Yoyô, A baratinha bateu asas e voou.” “O plagiário — a quem acabo de pegar pelas ouças para colocá-lo perante o tribunal da opinião pública como ladrão que o é, e dos mais réprobos por furtar ideias — não satisfeito em plagiar, fê-lo copiando versos de baixa extração, versos da populaça indigna. Se as forças do seu intelecto revelavam-se frágeis para conceber primorosa obra poética, então, pelo menos, plagiasse os grandes mestres, como por exemplo Homero, Dante, Virgílio, Milton ou Basílio de Magalhães.SAPO CURURU, doutor”)

Continuação da estação do outono Criticado, discutido e julgado o soneto do Gato Malhado, volvamos à nossa história. O que equivale, aliás, a continuar com o soneto, pois não o citei por acaso e, sim, porque ele teve que ver com o desenrolar dos acontecimentos. Passou-se assim: no último dia de verão, após aquela cena entre a Andorinha e o Gato, este teve uma longa conversa com a Coruja. De todas as criaturas do parque, a Coruja era a única que estimava o Gato Malhado, como já foi dito. Naquela noite, após o ocorrido, a Andorinha não voltara. O Gato tentou compreender o que estava se passando com ela, entre que sentimentos contraditórios se debatia. Envolto em tristeza e solidão, resolveu ir conversar com a Coruja. Esta acordava do seu sono de anciã e abria os olhos para a Noite, sua amiga querida. O Gato sentou sobre um galho da jaqueira, ao lado da Coruja, e falaram primeiro de coisas indiferentes. Porém, a Coruja, sendo adivinha, percebera o que trouxera o Malhado até ali. Foi franca: não só lhe contou as murmurações do parque (que puseram o Gato quase louco de furor) como lhe deu, por fim, sua opinião: – Amigo velho, não há que fazer. Como pudeste imaginar que a Andorinha viesse te aceitar como marido? Nunca houve caso... Mesmo se ela te amasse — e quem te afirma que ela te ame? — jamais poderia casar contigo.

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Desde que o mundo é mundo, às andorinhas é proibido casar com gatos. Essa proibição é mais do que uma lei e está plantada com fundas raízes no coração das andorinhas. Dizes que ela gosta de ti, que se dependesse de sua vontade... Pode ser, acredito mesmo que sim. Mais forte que ela, porém, é a lei das andorinhas. Porque está dentro dela desde o seu mais velho avô, desde a primeira andorinha. E para romper uma lei é preciso uma revolução... Completou, balançando a cabeça: – Aliás, era até bom que acontecesse uma revoluçãozinha... Estamos necessitando. O Gato Malhado não disse nada. Nem mesmo que gostava da Andorinha e que sonhara tê-la ao seu lado no pedaço roto de veludo. Esquecera que as andorinhas dormem em ninhos sobre as árvores, enquanto os gatos dormem pelo chão sobre trapos abandonados. Despediu-se da Coruja sem comentar suas palavras. Chegando em casa, começou a escrever o célebre soneto. Em sua elaboração levou toda a noite e parte da manhã seguinte. Tudo que conseguiu realizar foi a peça já julgada e condenada. Não obstante, naquele primeiro dia de outono encontrou a Andorinha. Ela estava séria, não sorria, não exibia a leve alegria de sempre, aquele ar de disponibilidade que era o seu maior encanto. Também o Gato Malhado não conseguia esconder a tristeza, pesavam-lhe no coração as palavras da Coruja. Andaram em silêncio, percorrendo lugares onde haviam ido na primavera e no verão. Uma ou outra vez trocavam palavras soltas, mas tinham ambos o ar de quem quer evitar um assunto que se impõe. Chegou a hora da Andorinha partir. O Gato entregou-lhe o soneto. Ela voou, muitas vezes voltou a gentil cabecinha para vê-lo, tinha lágrimas nos olhos. No dia seguinte — ai, foi o dia mais longo do outono — ela não apareceu. Inutilmente ele rondou nas proximidades da árvore onde ela residia, não a viu. Nessa noite lembrou-se das murmurações do parque e então correu com o Pato Preto, meteu um susto quase mortal no Papagaio (que rezava suas orações noturnas), ar- ranhou o focinho do Cão Dinamarquês, furtou ovos no galinheiro e — cúmulo da maldade — não os furtou para comê-los e, sim, para largá-los no campo. O temor ao Gato Malhado voltou a habitar o parque, e as murmura-ções ruidosas amorteceram-se em cochichos segredados. No terceiro dia do outono, o Pombo-Correio atirou-lhe de longe (cadê coragem para aproximar-se?) uma carta. O Gato a leu tantas vezes que até a aprendeu de memória. Uma carta triste e definitiva enviada pela Andorinha Sinhá. “Uma andorinha não pode jamais casar com um gato.” Dizia também que eles não deviam mais se encontrar. Em compensação falava que jamais fora feliz, exceto no tempo em que vagabundeava com o Gato Malhado pelo parque. E terminava: “da sempre tua Sinhá”. Ela tinha jurado não mais o ver. Mas, como já disse e agora repito, juramento de andorinha não merece confiança. Voltaram a passear pelo parque, a ir aos recantos que haviam descoberto durante a primavera. Só que agora quase não conversavam, era como se uma invisível cortina os separasse. Foi assim que passaram todo o outono, um tempo cinzento em que as árvores iam se despindo das folhas e o céu ia se despindo do azul. Como o Gato Malhado voltara a ser temido e novamente vivia isolado de todos, sem conversar com ninguém, não sabia que na casa da Andorinha trabalhavam seis aranhas costureiras que preparavam o enxoval da jovem noiva. O casamento do Rouxinol com a Andorinha Sinhá estava marcado para o começo do inverno. No derradeiro dia do outono, dia húmido e enevoado, percorrido por um vento que soluçava de frio, a Andorinha quis ir a todos os lugares que haviam aprendido a amar na primavera e no verão. Estava estranhamente faladora e ruidosa, terna e cheia de dengue, como se houvesse aberto de repente a cortina que a separava do Gato Malhado, como se houvesse de súbito transposto a distância que entre eles tinha se delimitado. Era a

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mesma Andorinha Sinhá da primavera e do verão, um pouco louca, e o Gato Malhado a contemplava comovido.Andaram até que a Noite chegou. Então ela lhe disse que aquela tinha sido a última vez, que ia casar-se com o Rouxinol porque, ai!, porque uma Andorinha não pode casar-se com um Gato. Como já o fizera certo dia, voou sobre ele num voo rasante, tocou-lhe com a asa esquerda — era a sua maneira de beijar — e ele não pôde desta vez ouvir o bater do pequeno coração da Andorinha, tão fracos eram os seus latidos. Pelos ares ela se foi, não olhou para trás.

A estação do inverno Este devia ser um capítulo longo porque o começo do inverno foi um tempo de sofrimento. Mas por que falar de coisas tristes, por que contar as maldades do Gato Malhado cujos olhos andavam escuros de tão pardos? Disso falavam as cartas enviadas pelos habitantes do parque, cartas que o Pombo-Correio levava a outros parques distantes. As notícias chegaram até o longínquo esconderijo da Cobra Cascavel, e mesmo ela tremeu de medo. Diziam da maldade do Gato, mas diziam também de sua solidão. Jamais o Gato Malhado voltara a dirigir a palavra a quem quer que fosse. Tão grande solidão chegou a comover a Rosa-Chá, que confidenciou ao Jasmineiro, seu recente amante: – Coitado! Vive tão sozinho, não tem nada no mundo... Enganava-se a Rosa-Chá quando pensava que o Gato Malhado vivia solitário e não tinha nada no mundo. Bem ao contrário, ele tinha um mundo de recordações, de doces momentos vividos, de lembranças alegres. Não vou dizer que fosse feliz e não sofresse. Sofria, mas ainda não estava desesperado, ainda se alimentava do que ela lhe havia dado antes. Triste no entanto, porque a felicidade não pode se alimentar apenas das recordações do passado, necessita também dos sonhos do futuro. Um dia, de brando sol hibernal, realizou-se o casamento da Andorinha com o Rouxinol. Houve grande festa, mesa de doces e champanha. O casamento civil foi em casa da noiva, o Galo era o juiz e fez um discurso eloquente sobre as virtudes e os deveres de uma boa esposa, especialmente sobre a fidelidade devida ao marido. Da fidelidade do marido à esposa ele não falou. Era maometano e não hipócrita: todos sabem que o galo Don Juan de Rhode Island possui um harém. O casamento religioso foi na laranjeira, a linda capela do parque. O reverendo Padre Urubu veio de um convento distante para celebrar a cerimônia religiosa. O Papagaio serviu de sacristão e, à noite, embriagou-se. O sermão do Urubu foi comovente. A mãe da Andorinha chorou muito. No momento em que o cortejo nupcial, numa revoada, saía da capela, a Andorinha viu o Gato no seu canto. Não sei que jeito ela deu no voar que conseguiu derrubar sobre ele uma pétala de rosa, das rosas vermelhas do seu buquê de noiva. O Gato a colocou sobre o peito, parecia uma gota de sangue. Para que essa história terminasse alegremente, o meu dever seria descrever a festa dada à noite pelos pais da Andorinha Sinhá. Talvez mesmo contar algumas das anedotas com que o Papagaio divertiu os convidados. Tinham comparecido todos os habitantes do parque, menos o Gato Malhado. A Manhã descreveu a festa inteirinha ao Tempo, dando detalhes dos vestidos, das comilanças, da mesa de doces, da ornamentação da sala. Mas tudo isso o leitor pode imaginar a seu gosto, com inteira independência. Apenas direi que era maviosa a orquestra dos pássaros e que o seu melodioso rumor chegava até o Gato Malhado, solitário no parque. Já não havia futuro com que alimentar seu sonho de amor impossível. Noite sem estrelas, a da festa do casamento da Andorinha Sinhá. Apenas uma pétala vermelha sobre o coração, uma gota de sangue.

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A noite sem estrelas A música doía-lhe no coração. Canção nupcial para os noivos; para o Gato Malhado, canto funerário. Tomou da pétala de rosa, olhou mais uma vez o parque coberto pelo inverno, saiu andando devagar. Conhece um lugar longínquo, onde vive apenas a Cobra Cascavel, que ninguém aceita nos parques nem nas plantações. O Gato tomou a direção dos estreitos caminhos que conduzem à encruzilhada do fim do mundo. Quando passou em frente à casa da festa, viu os noivos que saíam. A Andorinha também o viu e adivinhou o rumo de seus passos. Qualquer coisa rolou então dos céus sobre a pétala que o Gato levava na mão. Sobre o vermelho de sangue da pétala de rosa brilhou a luz da lágrima da Andorinha Sinhá. Iluminou o solitário caminho do Gato Malhado, na noite sem estrelas. Aqui termina a história que a Manhã ouviu do Vento e contou ao Tempo, que lhe deu a prometida rosa azul. Em certos dias de primavera a Manhã coloca sobre o luminoso vestido essa rosa azul de antigas idades. E então se diz que faz uma esplêndida manhã toda azul.

AMÉM (concluiu o Papagaio)

Paris, novembro de 1948

3. Guião de Leitura O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá

1. Primeira Leitura do Conto. Assinala a opção correta:

1. Em que cidade escreveu Jorge Amado esta história? a) Paris b) Londres c) São Salvador

2. Esta obra foi escrita no ano de: a) 1948 b) 1958 c) 1976

3. Um destes capítulos não faz parte da obra. Qual? a) Parêntesis crítico b) Parêntesis poético c) Parêntesis das anunciações

4. O que significa pilhéria no português padrão do Brasil? a) aborrecimento b) parolice c) piada

5. O adjetivo sinistro significa: a) solitário b) cruel c) bondoso

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6. Uma destas personagens não faz parte da obra. Qual? a) O gato Finlandês b) A Pomba Rola c) A Pata Branca

7. Na estação da primavera, o único habitante que não teve medo do Gato Malhado foi: a) o Papagaio b) o Rouxinol c) a Andorinha Sinhá

8. A Andorinha Sinhá dava-se: a) bem com todos os habitantes do parque b) mal com a Vaca Mocha c) mal com o Papagaio

9. O primeiro encontro entre o Gato e a Andorinha aconteceu: a) no verão b) na primavera c) no outono

10. Durante a primavera, o Gato e a Andorinha: a) passearam pelo parque b) separaram-se c) zangaram-se

11. A única amiga do Gato no parque era: a) a Velha Coruja b) a Pata Negra c) a Vaca Mocha

12. Na estação do verão, o Gato Malhado: a) não passeou com a Andorinha Sinhá b) expulsou a Cobra Cascavel do parque c) pediu a Andorinha subtilmente em casamento

13. No último dia de outono, a Andorinha: a) anunciou o seu casamento com o Rouxinol b) disse aos pais dela que amava o Gato Malhado c) marcou um encontro com o gato

14. O casamento religioso da Andorinha com o Rouxinol realizou-se na: a) macieira b) laranjeira c) goiabeira

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2. A ação

A ação desenrola-se ao longo de nove segmentos do livro a que poderemos chamar capítulos, nome que o próprio autor utiliza com frequência.2.1. Identifica os títulos dos capítulos que apresentam a ação.

2.2. Indica a ordem pela qual os acontecimentos são narrados, que é diferente da ordem pela qual aconteceram.

Relembra...Tempo da história e tempo da narrativa (ou do discurso) – analepse e prolepse – o tempo da história reporta--se à localização temporal das ações narradas; o tempo da narrativa diz respeito ao momento em que, na narrativa, são referidos os acontecimentos. Se o narrador refere factos anteriores aos que, em determinado momento, está a narrar, estamos perante uma narrativa retrospetiva ou analepse; se, pelo contrário, o nar--rador antecipa factos futuros (sonhos, profecias, …) temos uma prolepse.

2.3. Comenta tal “(des)ordem”, bem como a inserção de alguns parêntesis.

2.4. Resume a intriga, registando a situação inicial e os acontecimentos que se sucederam até ao desenlace.

2.4.1. Relaciona esses momentos com a estação do ano em que ocorreram.

2.5. Explica por que motivo a estação do verão é “um capítulo curto”.

Relembra...Ao modo subjetivo como as personagens vivem o fluir do tempo, chamamos tempo psicológico. Pelo contrário, o tempo cronológico é objetivo e representa os diferentes momentos em que ordenadamente se vão situando os acontecimentos.

2.5.1. Apresenta a justificação do narrador para que o capítulo do inverno também não seja muito longo.

2.6. Dá a tua opinião fundamentada sobre se o desenlace da intriga é expresso ou apenas sugerido.

Relembra...Narrativa Aberta – o desenlace da intriga não é definitivo, podendo o destino das personagens não ser irreversível.Narrativa Fechada – o leitor fica a conhecer a sorte final de todas as personagens e as derradeiras consequências da diegese.

2.7. Reescreve o desenlace, dando continuidade ao capítulo Noite sem Estrelas.

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3. As personagens

3.1. Preenche o seguinte quadro, distinguindo personagens principais, secundárias e figurantes. Não te esqueças de o copiar para o teu caderno.

Personagens principais ou protagonistas Personagens secundárias Figurantes

3.2. Caracteriza os protagonistas com base nas informações do narrador e nos comportamentos e atitudes das personagens, revelados no decorrer dos acontecimentos e nos diálogos. 3.2.1 Comprova que os seus retratos se fundamentam em relações de antagonismo.

3.3. Relê o capítulo referente à primavera.

3.3.1. Descreve o comportamento do Gato em relação aos habitantes do parque.

3.3.2. Refere as opiniões, os rumores e os juízos de valor que derivam desse comportamento.

3.3.3. Com a chegada da primavera, o Gato Malhado mudou a sua maneira de ser. Identifica o primeiro sinal visível dessa alteração, bem como o fator que lhe deu origem.

3.3.4. Conta como reagiram os outros seres do parque à sua transformação.

3.3.5. A figura da Andorinha Sinhá despertava diferentes sentimentos nos restantes seres do parque. Enumera-os.

3.3.6. Explica por que motivos Sinhá não partilha da “opinião geral” sobre o Gato Malhado.

3.3.7. Transcreve a passagem do texto que comprova o seu posicionamento crítico, embora tendo consciência de que as suas conversas com o Gato não são bem vistas pelos restantes habitantes do parque.

3.4. Propõe um substantivo que ilustre as relações existentes entre as seguintes personagens: a) Gato Malhado e Andorinha Sinhá b) Gato Malhado e Velha Coruja c) Gato Malhado e Vaca Mocha d) Andorinha Sinhá e seus pais e) Andorinha e Rouxinol f) Gato Malhado e Papagaio.

3.5. Sugere uma alcunha para a Coruja, a Vaca, o Papagaio, o Rouxinol e a Cobra, tendo em conta as suas características. Fundamenta as tuas sugestões.

3.6. Recorda as conversas tidas entre a Andorinha Sinhá e a Vaca Mocha e o Gato Malhado e a Velha Coruja. 3.6.1. Resume o conteúdo de ambas, explicitando as circunstâncias em que ocorreram.

3.6.2. Analisa comparativamente o retrato psicológico das personagens Velha Coruja e Vaca Mocha, tendo em conta as filosofias antagónicas que defendem.

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4. O Espaço

4.1. Recolhe palavras e expressões utilizadas pelo narrador para transmitir sensações de movimento, cor, cheiro e som, ao longo das quatro estações do ano. A turma pode ser dividida em 4 grupos e cada um dos grupos terá de preencher o espaço correspondente neste esquema, depois de o copiar para o caderno:

primavera verão outono inverno

4.2. Relaciona o meio ambiente e o estado de espírito do Gato Malhado e da Andorinha Sinhá.

4.3. Associa o “acontecimento” que, na primavera, provocou uma alteração no humor e no comportamento do Gato.

4.4. Elabora um esquema que contemple a identificação entre a natureza e o estado de espírito dos protagonistas.

4.5. Ilustra, através de fotografias ou desenhos legendados, as emoções vivenciadas pelas personagens em cada uma das estações do ano.

5. O Tempo

5.1. Indica o tempo que medeia entre a situação inicial e o desenlace da história.

5.2. Relaciona as quatro estações e o desenrolar da ação.

5.3. Comenta, sob o ponto de vista do narrador, a noção de tempo no excerto:

“É sempre rápido o tempo da felicidade. O Tempo é um ser difícil. Quando queremos que ele se prolongue, seja demorado e lento, ele foge às pressas, nem se sente o correr das horas. Quando queremos que ele voe mais depressa que o pensamento, porque sofremos, porque vivemos um tempo mau, ele escoa moroso, longo é o desfilar das horas”. 5.3.1. Identifica os capítulos e aponta os motivos que testemunham esta vivência subjetiva do tempo cronológico.

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6. O Narrador

6.1. Comenta a relação que o narrador estabelece com o leitor.

6.2. O narrador demonstra parcialidade relativamente às personagens. 6.2.1. Enumera as personagens em relação às quais o narrador emite, inequivocamente, um juízo de valor depreciativo.

6.3. No casamento da Andorinha, houve um discurso e um sermão. Identifica as personagens que os proferiram e indica a parte do casamento a que cada um corresponde. 6.3.1. Que imagem apresenta o narrador do Galo Don Juan de Rhode Island? E do sacristão Papagaio?

6.4. Classifica o estatuto do narrador, retirando do texto exemplos ilustrativos.

7. Recursos técnico-expressivos

7.1. Faz corresponder aos excertos transcritos as figuras de estilo e comenta o seu valor expressivo. Realiza este exercício no teu caderno.

Excertos Figuras de estilo

“… e uma rosa que, apressada, já se abria, deixou cair todas as pétalas sobre o chão”.

Hipérbole

Metáfora

Comparação

Personificação

“De repente rebolou-se na grama como se fora um jovem gato adolescente, soltou um miado que mais parecia um gemido”.

“[O dia era] percorrido por um vento que soluçava de frio”.

“… quando os bigodes do Gato estavam tão murchos que tocavam o solo”.

“[A pétala] parecia uma gota de sangue.”

“Apenas uma pétala vermelha sobre o coração, uma gota de sangue”.

7.2. Relê o capítulo A noite sem estrelas. 7.2.1. Clarifica o sentido das expressões “canção nupcial” e “canto funerário”. 7.2.2. Demonstra que A noite sem estrelas constitui o epílogo da história.

8. Apreciação Global

8.1. Antes de iniciar a obra, o autor transcreve uma trova de um poeta popular da Baía. Relê a trova e procura explicar: 8.1.1. a razão da transcrição destes versos; 8.1.2. a intenção do autor ao contar esta história; 8.1.3. a reflexão que é apresentada sobre o(s) problema(s) sugeridos pela obra.

8.2. Relaciona a mensagem desta trova com a fala da Velha Coruja “-Aliás, era tão bom que acontecesse uma revoluçãozinha… Estamos necessitando”.

8.3. O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá – Uma História de Amor aproxima-se do género fabulístico. Justifica essa afinidade.

8.4. Como interpretas a mensagem desta fábula?

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8.5. Associa o valor simbólico aos seguintes elementos da intriga:

Elementos Simbologia

Parque A juventude e a beleza.

Habitantes do parque A tradição, as convenções sociais, o preconceito e a intolerância.

Gato A passagem do tempo e as mudanças da/na vida.

Andorinha O mundo. A reverência à Natureza.

Lei das andorinhas Os seres humanos na sua diversidade, incluindo a mesquinhez, o preconceito e a intolerância.

Estações do ano Símbolo da beleza, da alma, da vida, do amor.

Rosa O homem excêntrico que não compreende as convenções nem a hipocrisia.

Vermelho A gota que morre quando se evapora. Símbolo de sofrimento, de dor.

Lágrima Vivo, diurno, simboliza a vida e a coragem. Escuro, noturno, expressa a morte, o fim e a ausência de esperança

8.6. O Gato apaixonado escreveu o “Soneto do Amor Impossível” transcrito no Parêntesis Poético. O Sapo Cururu fez a crítica do poema, a pedido do narrador (Parêntesis Crítico). É uma crítica favorável? Na tua opinião, as observações do Sapo têm fundamento? Justifica devidamente a tua resposta. 8.6.1. Reescreve o “Soneto do Amor Impossível”, cumprindo os preceitos enunciados no Parêntesis Crítico pelo Sapo Cururu.

8.7. Explica em que consiste a lei das andorinhas. 8.7.1. No plano humano, esta lei é metáfora de que género de situações?

8.7.2. Em trabalho de grupo, promove um debate sobre a lei das andorinhas, apresentando diversos argumentos a favor e contra a sua manutenção.

8.8. Completa o esquema que se segue, depois de o copiares para o teu caderno:

O AMORVence Mas não Vence

As diferenças de:- …………………….- …………………….- …………………….- …………………….

- ……………………

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64 | Estéticas da brevidade

Para além do texto

1. Os pais da Andorinha Sinhá não queriam o namoro com o Gato Malhado. Ora, o Gato raptou-a. Imagina a carta que o Gato escreveu aos pais da Andorinha, impondo as suas condições para a trazer de volta.

2. Reproduz o modelo do convite que os pais da Andorinha poderão ter enviado aos animais do parque para o casamento da filha.

3. Elabora a ementa do casamento do Rouxinol com a Andorinha, tendo em conta as singularidades das personagens envolvidas.

4. Ilustra a festa dada pelos pais da Andorinha, referindo-te, na generalidade ou especificamente, a cada um dos seguintes aspetos: a decoração da sala e as indumentárias festivas das personagens.

5. Supõe que os animais do parque decidem protestar contra a alegada maldade do Gato Malhado. Elabora os cartazes a afixar nas árvores do parque.

6. Imagina, para posterior leitura dramatizada na aula:6.1. O discurso de Don Juan de Rhode Island, sobre a fidelidade da mulher ao marido;

6.2. A resposta a esse discurso, dada por uma galinha feminista do seu harém.

7. “O Gato tomou a direção dos estreitos caminhos que conduzem à encruzilhada do fim do mundo”. Desenha um mapa com a localização exata da “encruzilhada do fim do mundo”.

8. Conta o que aconteceu ao Gato Malhado, depois de ter chegado ao “fim do mundo”.

9. Sob a presidência da Velha Coruja, imagina que o parlamento dos animais do parque reúne para proceder à abolição da lei das andorinhas. Em trabalho de grupo, redijam as diversas intervenções e dramatizem o evento.

10. Pesquisa informação sobre outros protagonistas que vivenciaram um “amor impossível”, alvo de recriminações por parte da família e/ou sociedade. Expõe, de seguida, oralmente o resultado do teu trabalho de pesquisa.

11. Recolhe notícias de jornal que relatem casos em que as convenções e o preconceito se impõem e partilha-os com a escola, através do jornal de parede.

12. Relê o segmento do texto intitulado “Parêntesis das murmurações” em voz alta, distribuindo as falas das personagens pelos diferentes elementos da turma. O professor poderá fazer o papel do narrador e as restantes falas das personagens poderão ser distribuídas por vários alunos.

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O Conto | 65

13. Consulta algumas das sugestões de leitura que se seguem. Seleciona um dos textos literários da lista. Propõe, de seguida, uma leitura intertextual na qual surjam evidenciados os aspetos distintos e os aspetos similares entre este e o conto de Jorge Amado.

a) Conto “Mago” (in Bichos), de Miguel Torga

b) O Gato Dourado, de Matilde Rosa Araújo

c) O Gato e o Escuro, de Mia Couto

d) “Kiki, o gato” (in Era uma Vez…), de Papiniano Carlos

e) O gato Fellini de “O País dos Contrários” (in Estranhões & Bizarrocos), de José Eduardo Agualusa

f) “A Gata Branca” (in O Reino Perdido), de Álvaro Magalhães

g) História de uma Gaivota e do Gato que a ensinou a voar, de Luís Sepúlveda

h) O Gato, a Doninha e o Coelho, de La Fontaine (Liv. XII, 5)

i) A Andorinha e outras aves, de Esopo

j) “Os gatos e as asas” e “Os cães e os gatos” (365 Histórias, org. de José Viale Moutinho)

Para Reter

... significado do título e do subtítulo do conto

... o tema, o assunto e alguns dos motivos do conto

... a arquitetura da ação

... as personagens e a sua dimensão simbólica

... o(s) espaço(s) físico, social e psicológico

... o tratamento do tempo e a sua relação com/implicações na ação

... a linguagem e o estilo do autor

... simbologia de alguns elementos

... aspetos relativos à crítica social

Verifica se Sabes

... explicar o título e o subtítulo

... sintetizar a intriga

.... identificar os principais momentos da ação

... listar todas as personagens intervenientes

... caracterizar as protagonistas

... situar a ação no espaço e no tempo, salientando a relevância desta última categoria

... identificar e explicar o significado simbólico de alguns elementos

... explicitar a mensagem fundamental do conto

... aludir a outros textos nos quais surgem ficcionalizadas temáticas similares

... caracterizar a linguagem e o estilo de Jorge Amado

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m e t a s d e a p r e n d i z a g e m

– distinguir os géneros narrativos do conto, novela e romance– analisar elementos paratextuais, antecipando assuntos, temas e tópicos– interpretar a mensagem global de um texto e selecionar informação específica– exprimir, de forma fundamentada, oralmente e por escrito, ideias e pontos de vista pessoais– estabelecer analogias entre diferentes textos, comparando as ideias e os valores expressos– reconhecer o valor simbólico da palavra inserida no seu contexto sociocultural– ler e interpretar uma novela ou um romance– sintetizar a intriga e segmentar as sequências narrativas, esclarecendo as modalidades da sua articulação– identificar e distinguir os espaços físico, social, cultural e psicológico– diferenciar o tempo histórico, o tempo da história e o tempo psicológico– determinar a modalidade de construção, o relevo, a função e a composição das personagens– identificar as funções do narrador– detetar a relação narrador/narratário– identificar marcas distintivas da escrita do autor presentes no texto

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Unidade Temática 2 O Romance como género narrativo

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Unidade Temática 2 | O Romance como género narrativo

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Crónica de uma travessia, de Luís Cardoso

1. Introdução

Crónica de uma Travessia, o romance de estreia de Luís Cardoso, publicado em 1997, constitui, nas palavras de Daniel Lacerda, “uma crónica autobiográfica, centrada na metáfora da travessia, quer dizer num itinerário marcado pela insularidade das ilhas (Timor, Ataúro e Lautém) e terminando no recolhimento do espaço longínquo (na geografia e na civilização) metropolitano”. (in “Luís Cardoso, primeiro escritor timorense, autor de Une Île au loin”, Latitudes, nº 8, mai 2000, p. 31). Tratando-se de um romance de substrato

autobiográfico, onde se entretecem a crónica privada do narrador e da sua família e a história coletiva da jovem nação timorense, Crónica de uma Travessia convoca uma moldura histórica que não dispensa a menção a acontecimentos e personagens referenciais que marcaram a trajetória de Timor-Leste, desde o tempo colonial e subsequente invasão indonésia, apresentando afinidades com a modalidade do romance histórico em primeira pessoa. Trata-se, no entanto, de uma crónica pontuada pela omnipresente subjetividade do eu-narrador, cujo olhar ambivalente, hesitante entre a ancestralidade e a aculturação metropolitana, constitui o filtro quantitativo e qualitativo do mundo narrativamente representado.

Atividade

1. Partindo destas palavras e da análise atenta do título e subtítulo, tenta justificar:

a) a classificação do romance como crónica. Relembra a etimologia e aceção original do termo (que deriva do grego krónos – tempo – e que designava originalmente um relato linear e cronologicamente ordenado de factos históricos) e confronta-a com a organização retrospetiva, não linear, do tempo no romance.

b) o modo como autobiografia (do narrador) e biografia (da figura paterna) se articulam, no romance, com a memória da experiência histórica do povo timorense. [relembra, a este propósito, os traços distintivos dos diversos géneros autobiográficos que estudaste no ano anterior e toma em consideração as palavras de Luís Cardoso em entrevista concedida ao jornal Expresso, em 1998: “[Este livro] é o meu retrato e o de todos os timorenses que atravessaram um tempo difícil, desde os tempos do encantamento até aos dias da ira. Escrevi-o tentando ser o mais íntimo possível, contando a história de Timor através de uma história pessoal, uma vivência igual a tantas que muitos timorenses poderiam contar” […] “Neste sentido o livro é uma dupla viagem: a viagem da pátria a Timor e a viagem de pai para filho”.]

c) o valor documental-testemunhal da perspetiva autodiegética adotada no romance. [Na mesma entrevista, esclarecendo as razões que o conduziram a eleger a narração de primeira pessoa, refere Luís Cardoso: “É uma forma de ser mais honesto com o leitor. Podia ter colocado outro narrador, mas quis ser eu próprio a contar um tempo que observei com os meus próprios olhos. Aliás, a literatura timorense baseia-se na oralidade,

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na figura do contador de histórias, que é uma pessoa que vem das montanhas e que, além de contar a sua própria vida, o seu quotidiano e os seus mitos, vai criando outras estórias. Quis precisamente pegar neste jogo”.]

d) a relevância diegética e o valor simbólico do termo travessia, relacionando-o tanto com a estrutura episódica do romance, que acompanha as sucessivas deslocações geográficas do protagonista, como com o potencial transformador da viagem e a maturação individual do narrador, como ainda com as derivas da sua memória autobiográfica. [Nota: O dicionário define travessia quer como “ato ou efeito de atravessar uma região, um continente, um mar, etc.”, quer como “viagem ou espaço percorrido de um ponto a outro”.]

As seguintes passagens do romance poderão ajudar-te a clarificar o valor polissémico do signo travessia:

capítulo 1: “Era uma quinta-feira quente, aquele dia do mês de junho de 1990. Como fazia todas as manhãs, atravessei o rio de barco. Um costume adquirido para saborear um gosto antigo”. “Ele, o velho, teria certamente de levar toda uma vida para fechar os olhos. Meio século. Sozinho, no meio do mar, fez então outra travessia. A da sua memória, árida e seca como a planície de Beloi com os seus ai-loks e os espinhos que se lhe espetavam no peito”.

capítulo 6: “E quando chegou o fim do ano letivo, Venâncio ainda não tinha encontrado a felicidade, perdendo-se nos meandros dos complexos. Descobriu o de Caronte. Pediu uma bolsa de estudos, atravessando então os sete mares para ir tirar na cidade de Évora o curso de Regente Agrícola”.

e) a importância simbólica do subtítulo especificador – A Época do Ai-Dik-Funam – retomado no fecho da narrativa: “Nas ruas de Lisboa, os jacarandás floriam como se a natureza não perdesse nunca a memória das cores. Como archotes, velavam pelo canto dos loricos, cacoaques e outros pássaros feridos, na época de ai-dik--funam”.

2. Os textos seguintes apresentam, problematizando-as, algumas das convenções do romance histórico, detendo-se, em particular, no diálogo entre História e ficção que caracteriza o subgénero. Lê-os atentamente.

Tentar definir o romance histórico leva-nos obrigatoriamente para o campo da História e da ficção, uma vez que o subgénero supõe a existência de referentes extratextuais verificáveis que sustentam parte da rede de significações do texto ficcional. Uma definição de índole narratológica do conceito de romance histórico deve partir da ponderação entre o romance como género e a História como fenómeno capaz de ser textualmente representado, relacionando-se a especificidade do subgénero também com a propensão narrativa da historiografia. Roberts (1991: 3), advogando que a carga negativa que rodeou o subgénero se prende com uma visão pejorativa do hibridismo que o singulariza, afirma que o romance histórico se caracteriza pela consciencialização da diferença temporal entre o processo presente da representação e a realidade pretérita representada, que é atualizada pela poética da ficção, abarcando a definição também os binómios facto/ficção e passado/presente.

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McEwan (1987: 25 e 184) caracteriza igualmente o subgénero como híbrido, defendendo, ao abordar o conceito de “romance não ficcional”, que o termo sinónimo faction (fact + fiction) é insatisfatório, pois todo o romance é ficção, ou seja, apesar de os acontecimentos históricos fazerem parte da intriga, esta é fruto da imaginação criativa do romancista […]. Para além de marcadores da passagem do tempo, os episódios históricos, tal como as personagens com referentes ou ecos históricos e as referências a figuras históricas, estabelecem uma relação profunda entre a ação do romance e o período e os factos históricos ficcionalizados, exigindo o contrato de (co)interpretação do leitor informado competência literária e cultural no que diz respeito ao contexto histórico da ação, para que possa ser feita uma leitura profunda dos subtextos históricos/historiográficos que também constituem o universo ficcional, uma vez que a presença da História no romance não pode ser totalmente ignorada, em prol de uma leitura da obra como fruto apenas do poder criativo que dá lugar à ficção. […] A natureza híbrida veicula assim a dimensão dupla do romance histórico, como a própria designação indica: uma narrativa ficcional em que os elementos espácio-temporais específicos de uma dada época são predominantes, surgindo da fusão ou do jogo premeditado de interpenetração destas duas esferas […]. A representação da consciência e do tempo históricos como realidades extraficcionais e passíveis de serem ficcionalizadas e caracterizadas é o ponto de partida crucial para a definição da ficção histórica, questão intimamente relacionada com as fronteiras que separam a realidade da ficção e com “o que só os romances podem dizer” (Scarpetta, 3-2002: 30) […].

Rogério Miguel Puga (2006). O essencial sobre o romance histórico. (adaptado)

Demasiado próximas, as relações entre História e Literatura têm suscitado as mais diversas interpretações, podendo-se até afirmar, com Rui Estrada, que “A história é assim o limite da literatura (…) [e] que as âncoras interpretativas da história estão sujeitas às mesmas dificuldades hermenêuticas inerentes aos textos literários”. Perante estas considerações, torna-se claro que, se a definição de romance enquanto género estava longe de ser uma classificação baseada em critérios uniformes, o romance histórico (género ou subgénero, pouco importa) encontra ainda mais dificuldades em se estabelecer coerentemente. Qualquer tipologia esbarra com inúmeros problemas decorrentes de, por um lado, perigosas afinidades com outros discursos, e, por outro, com transformações que fazem vacilar a classificação predefinida. Um dos discursos mais próximos poderá ser o da biografia. Desde o classicismo que a biografia e a História pertenciam a domínios semelhantes. […] No romance histórico de início de novecentos onde abundam as biografias de caráter encomiástico destinadas a exaltar as virtudes dos antepassados, as diferenças ente a História e a biografia eram, por vezes, pouco significativas. […] À medida que o século XX se aproxima do fim, a biografia assume características próprias passando por uma interpretação criativa da vida das personagens ou, até, recriando aspetos mais obscuros ou mais convencionalmente escamoteados. […] As definições de romance histórico têm sido várias, mas, em geral, todas elas assentam no recurso ao real e à sua representação e na distância temporal entre o tempo da escrita e o do desenrolar da diegese. No entanto, é discutível se essas características, só por si, podem ser suficientes para a constituição de um género autónomo, na medida em que, do ponto de vista estritamente linguístico ou de composição narrativa, não há diferenças notáveis a assinalar. […] No romance contemporâneo, a evocação dos tempos idos pode revestir-se de diversas formas, havendo a salientar a biografia, a alteração da pessoa narrativa, a modificação de perspetiva, a alteração pura e simples dos fenómenos, a anulação do tempo e a emergência do duplo.

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Em todos estes casos, deparamo-nos com um modo de inserir o passado que se pode afastar da conscienciosa construção oitocentista e que se aproxima de obras anteriores, embora haja, evidentemente, propósitos claros de transgressão que passam por uma herança positivista e romântica impossíveis de esquecer.

Maria de Fátima Marinho, Um poço sem fundo. Novas reflexões sobre Literatura e História

2.1. Partindo da leitura atenta dos excertos acima reproduzidos, tenta inventariar as propriedades temáticas e técnico-narrativas do romance histórico, preenchendo o quadro seguinte, no teu caderno, com passagens justificativas selecionadas:

Traços caracterizadores do romance histórico Passagens justificativas

coexistência de História e ficção

relação entre passado e presente

presença de marcadores referenciais (datas, episódios e personagens históricas)

importância da competência literária e cultural do leitor

interseções entre romance histórico e biografia

processos inovadores na ficção histórica contemporânea

2.2. Discute a pertinência das passagens dos textos críticos a seguir reproduzidas, aplicando-as aos excertos de Crónica de uma Travessia que as acompanham, tentando determinar a relação do romance de Luís Cardoso com os códigos convencionais da ficção histórica.

“Apesar de os acontecimentos históricos fazerem parte da intriga, esta é fruto da imaginação criativa do romancista”.

Francisco herdou do pai o porte atlético, e em Dare fez-se mais basquetebolista que seminarista. Era o único que conseguia afundar. Tal sina haveria depois de o acompanhar na política. Em Moçambique, fez-se oficial miliciano, regressando então para Timor com a auréola de combatente de terroristas. Instrutor militar e discursante oficial no dia da raça, despojou do palanque os da raça que, preteridos, diziam que a oratória era uma encomenda perfeita dum general com monóculo teutónico. Finda a tropa, foi envergar a farda da alfândega, juntando-se assim ao seu vizinho da terra de Laclubar, Domingos Oliveira. Este tinha uma pose e textura mediterrânicas, bem ao jeito do seu apelido. A farda branca dava-lhe o ar de guerreiro árabe de camelo e chá servido no deserto. O rosto grande e redondo fazia-me lembrar o retrato de Abraão pronto a sacrificar o único filho por mandato divino. Adormeceu à sombra do seu apelido. Nunca ninguém deu nada por ele. Até que um dia, apareceu com os estatutos da UDT na mão e escrevia os comunicados do partido rebuscados da oratória dos grandes clássicos de filosofia, mediterrânicos. Estava finalmente acordado da sua longa sesta um dos grandes pensantes timorenses. Guardara-se para momentos úteis. Juntou-se-lhe o Francisco Lopes da Cruz e, acolitados por Paulo Pires, o tal que eu pensava ser pintor, constituíram a trindade UDTista oriunda da Soibada. Xavier do Amaral foi escolhido como o rosto do Partido Nacionalista pelo perfil rústico e ancestral mais a auréola culta ocidental. Faltava-lhe a consistência ideológica. Nicolau Lobato juntou-se-lhe conferindo responsabilidade e lucidez ao líder. Ramos-Horta deu-lhe visibilidade internacional. Estava constituída a troika nacionalista de Soibada.

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Osório Soares, continuando na sua senda de construir moinhos de vento, para ser armado cavaleiro, fundou o partido integracionista, arregimentando família e demais parentes, desterrados, mortos e vivos. Com o cunhado Domingos Pinto, também vindo de Macau, formou a dupla da APODETI. O tempo corria veloz de mais e a corrente secular soltou o nódulo e escorregou por um longa ribanceira. Todos queriam correr o mais depressa possível, mais do que o tempo providenciava, para agarrar a época certa. De grupos diversos e adversos, passaram a organizações contendoras. Como foi possível estarem escondidas tamanhas contradições? Como foi possível a árvore de Samoro ter produzido três ramos tão antagónicos?

Luís Cardoso, Crónica de uma Travessia (cap. 7)

“À medida que o século XX se aproxima do fim, a biografia assume características próprias passando por uma interpretação criativa da vida das personagens ou, até, recriando aspetos

mais obscuros ou mais convencionalmente escamoteados”. Falaram-me dele como sendo bravo e possuidor do matam-élic, feitiço que lhe permitia transfigurar-se em diferentes animais para iludir a perseguição dos militares. O tal José Alexandre, cabeludo guarda-redes da Académica, poeta de sonetos e que fora seminarista em Dare. Era ele o tal Xanana Gusmão que coman-dava a guerrilha e incendiava os corações nas montanhas e as almas dos jovens nas praças. Já tinha visto fotografias suas com o rosto de Che Guevara e pose de profeta. Foram-me dados alguns dos seus discursos, todos eles com uma oratória e construção literária que me fazia lembrar o meu colega Venâncio quando se dispunha falar sobre Pessoa, na altura em que este não era excluído do seu património cultural. Mesmo assim, a minha desconfiança e incredulidade nos líderes ex-seminaristas não foi posta em causa com este novo ressurgimento. Antes pelo contrário. Temia que o aparecimento dum novo iluminado pudesse conduzir o povo para um extermínio coletivo. Como aqueles profetas que vão até ao fim no seu encantamento, arras-tando uma multidão de desesperados. Nunca morrem sozinhos. E Dare já tinha oferecido outros iluminados que depois perderam o brilho e deixaram o povo à mercê da escuridão. Mas o facto de ter obrigado os mili-tares indonésios a deslocarem-se para as montanhas para um acordo de cessar-fogo criava expectativas de melhores dias. Punha assim fim à suicidária palavra de ordem: – Negociações, nunca!

Luís Cardoso, Crónica de uma Travessia (cap. 10)

2. Paratextos

a) Capa1. Observa com atenção as capas de duas edições portuguesas do romance de Luís Cardoso:

1.1. Redige um texto cuidado, onde procedas à análise e interpretação deste relevante elemento paratextual, tendo em atenção, entre outros aspetos, os seguintes:– cores dominantes e seu significado simbólico;– motivos selecionados;– informações textuais presentes na capa;– tratamento visual dado à mancha gráfica.

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1.2. Compara-as, agora, com a edição em inglês. – Que diferenças são imediatamente detetáveis? – A que se deverá, em teu entender, a opção por grafismos tão distintos?1.3. Escolhe a tua capa preferida e explica as razões da tua escolha.1.4. Em trabalho de grupo, e com recurso a fotografias, desenhos ou pintura, constrói uma capa alternativa para o romance de Luís Cardoso. Explica, num texto breve, as escolhas realizadas.

b) Prefácio1. Lê, com atenção, o prefácio de José Eduardo Agualusa ao romance de estreia de Luís Cardoso:

COMO SE FOSSE UM PREFÁCIO Conheci o Luís Cardoso em 1981, no Instituto Superior de Agronomia. Naquela época, Timor era ainda

um lugar fora do mundo. Os guerrilheiros de Xanana Gusmão morriam nas montanhas sem que ninguém o soubesse – pior, sem que ninguém quisesse saber. Por vezes o Luís falava do futuro como se houvesse futuro. Aquela espécie de esperança, feroz, determinada, à revelia do mais elementar bom senso, parecia-me uma doença. Ele, porém, defendia as suas posições com a paciente gentileza de um príncipe oriental, de tal maneira que a mim só me restava fingir que acreditava nele. Passaram-se quinze anos e o tempo deu razão àquela esperança. Hoje, Timor ocupa as atenções de uma parte importante do mundo, e quando um guerrilheiro dispara a sua arma, nas montanhas, o eco desse tiro ouve-se em Jacarta. Ao publicar esta Crónica de Uma Travessia, Luís Cardoso acrescenta uma dimensão inédita ao combate pela liberdade de Timor: o resgate da memória. Num país quase sem literatura escrita, o passado é um tempo em combustão, frágil, volátil, que rapidamente se consome. Crónica de Um Travessia combina o registo memorialista – este é um texto assumidamente autobiográfico, portanto realista – com o exuberante universo mágico em que se move o povo timorense e que em grande medida alimenta a sua literatura oral.

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foto de João Paulo Esperança

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Pode parecer, assim, a quem leia este livro, que Luís Cardoso se filia na escola latino-americana do chamado realismo mágico. Não viria mal ao mundo se assim fosse. No entanto, mais do que ser contaminado por propostas literárias oriundas de outros espaços, o que aconteceu a este romancista de Timor foi nunca se ter deixado vencer pelo exílio. Luís Cardoso escreve como escreve, porque continua habitado por Timor, e no seu país são indefinidas as fronteiras entre mito e realidade, estória e História, entre o sonho e a vida. Para mim foi ainda surpreendente, ao ler este livro, descobrir um território culturalmente integrador, construído a partir de inúmeros encontros (imigrantes cabo-verdianos, degredados políticos portugueses, ex-militares guineenses e angolanos), espaço refundador da lusofonia, e um suave elogio à mestiçagem.Timor precisava deste livro.

José Eduardo Agualusa

1. Realiza uma pesquisa sobre o autor do prefácio que acabaste de ler. a) O que te chamou mais a atenção relativamente ao seu percurso? b) Por que razão terá sido ele a escrever o prefácio a este romance? Justifica a tua opinião.

2. Explica, por palavras tuas, e atendendo ao seu conteúdo, o título deste prefácio.

3. Explica a ideia contida na frase “quando um guerrilheiro dispara a sua arma, nas montanhas, o eco desse tiro ouve-se em Jacarta” (l. 7).

4. José Eduardo Agualusa destaca, ainda, como qualidade da obra que apresenta, a da fixação de uma memória escrita. Como justifica o autor a importância dessa memória no contexto timorense?

5. Em que medida, segundo Agualusa, este romance valoriza a herança cultural tradicional timorense, sem deixar de dialogar com a lusofonia? Justifica a tua opinião.

6. Atenta na seguinte definição de “prefácio” retirada do E-Dicionário de Termos Literários (http://www.edtl.com.pt/index.php):

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Termo para designar um discurso produzido a propósito de um texto que antecede e introduz. O prefácio inclui-se na matéria paratextual de uma obra, isto é, no conjunto de discursos da responsabilidade do próprio autor, do editor ou de terceiros que acompanha materialmente o texto prefaciado enquanto livro. A variedade designativa destes paratextos é enorme. Com frequência, os termos “prefácio”, “prólogo”, “proémio”, “advertência” ou equivalentes confundem-se no sentido genérico de texto preambular. É por isso importante especificar as propriedades que dão consistência ao texto prefacial, definindo-o enquanto género. [...] Embora mantendo uma estrutura que lhe dá consistência, o prefácio sofre, ao longo dos tempos, uma dinâmica de atualização que acompanha a própria história literária. [...] Tradicionalmente, o prefácio figura entre as partes eventuais de um livro, justificando-se em obras já destinadas à publicação. É um pré-texto, surgindo por isso no início da obra, onde, não raras vezes, passa despercebido à maioria dos leitores. [...] No que se refere ao núcleo informacional, o prefácio não pretende resumir nem desenvolver os conteúdos presentes na obra que antecede. Apresenta-a, podendo indicar o assunto, os objetivos e o contexto de produção da obra, a metodologia seguida e algumas estratégias de leitura assim como comentários que não integrariam de modo coerente o texto principal. Deste modo, no prefácio

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O Romance como género narrativo | 75

a) De entre as funções do prefácio referidas na definição transcrita, identifica as que se encontram presentes no texto de José Eduardo Agualusa. b) Que ideias indicia este paratexto relativamente ao conteúdo da obra que apresenta? c) O autor do prefácio exprime pontos de vista pessoais relativamente a Timor-Leste e ao autor do romance que sofreram alterações com a passagem do tempo, a evolução do mundo e o curso dos acontecimentos. Com a ajuda de um esquema semelhante ao que aqui reproduzimos, procede ao levantamento da opinião pessoal de José Eduardo Agualusa sobre a realidade de Timor-Leste e elabora um texto breve onde sintetizes as transformações ocorridas. Não te esqueças de copiar o quadro para o teu caderno.

Luís Cardoso Timor-Leste

Em 1981

Na altura da publicação do romance

3. Guião de Leitura Crónica de uma Travessia

I – Personagens

A

1. Identifica as personagens centrais do romance Crónica de uma Travessia, de Luís Cardoso.

2. A par das personagens às quais o olhar do narrador concede destaque inegável, e que integram a crónica familiar, o romance alude ou retrata esquematicamente muitas outras que raramente chegam a transcender a condição de figurantes. Tenta justificar esta abundância de personagens secundárias e de figurantes, atendendo à crónica de uma época que o romance pretende assumidamente reconstituir.

3. Ao passo que o narrador-protagonista, emissor de um discurso pessoal e expressamente subjetivo, constrói gradualmente um autorretrato individualizante, o pai parece, pelo contrário, ser objeto de um tratamento tipificante, ao aproximar-se a sua trajetória de

é legítimo transgredir, por exemplo, as normas de objetividade características da redação científica, pelo que vários destes textos se assumem como discursos de grande valor literário, didático e/ou polémico. Por este motivo, e também porque não são necessariamente da responsabilidade do autor da obra, os prefácios são, na sua maioria, textos assinados. [...] Sendo de autoria variável, o prefácio assume sobretudo uma função de apresentação/comentário da obra, mantendo-se, tradicionalmente, à parte da estrutura interna desse texto. Quanto ao destinatário do prefácio, ele é também o leitor do texto principal. O prefácio postula uma leitura iminente da obra sequente, pelo que inclui com alguma frequência comentários preparatórios da leitura que ajudam a determinar, à partida, o seu leitor ideal. Este é, em suma, o horizonte de expectativa do prefácio: um discurso explicativo/justificativo de autoria variável que envolve o seu locutor e que se constitui, na maioria dos casos, como metatexto. [...]

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76 | O Romance como género narrativo

desenraizamento da de muitos outros timorenses na diáspora. Discute esta afirmação, selecionando dados textuais que a apoiem.

B

1. O primeiro capítulo inicia-se justamente com a travessia do Tejo pelo narrador, em busca do pai que se perdera e deambulava pelas ruas do Seixal. Explicita o valor de antecipação simbólica presente nesta cena de abertura, considerando a importância de que, no romance, se revestem os temas da deriva, do nomadismo e da viagem.

2. No capítulo inicial, esboça-se o projeto de uma crónica familiar organizada a partir das deambulações geográficas do pai do narrador.2.1. Justifica, baseando-te em passagens do romance, esta intenção narrativa.

2.2. O filho traça um pormenorizado retrato inicial do pai. Retira do texto os elementos caracterizadores por ele apontados, completando o quadro seguinte, depois de o copiares para o teu caderno:

origens familiares

formação académica

atividades profissionais

simpatias políticas

relação com Portugal

retrato psicológico

2.3. Embora o pai seja, neste capítulo, objeto exclusivo do discurso do filho-narrador, este opta por adiar a revelação da sua identidade que ocorre apenas quando, enfim, declara: “Ele era o meu pai”. Explica o efeito deste procedimento de ocultação temporária do referente do discurso e justifica o facto de, no decurso do romance, nunca ser mencionado o nome próprio da figura paterna.

2.4. Ao longo do romance, o narrador adota em relação ao pai expressões designativas que não revelam o parentesco que os une, referindo-se-lhe, por exemplo, como “meu velho enfermeiro” ou “velho e desgastado enfermeiro”. Sugere razões explicativas para o uso destas formas de tratamento.

2.5. “Guardava religiosamente invólucros de cartuchos como troféus de guerra e pendurava-os no teto da minha casa para afastar o mau-olhado, demónios e assaltantes. Depois, quando ouvia a minha mãe cantarolar as monocórdicas e melancólicas canções que aprendera com os soldados do Império do Sol Nascente na altura em que se encontrava refém dos Japoneses na aldeia de Ulfu, também ele cantava outras em língua inglesa e era como se a guerra tivesse continuado em minha casa e perdurado nas suas cabeças”

2.5.1. Partindo da leitura do excerto acima transcrito, explica em que medida o horizonte de referência histórico, constituído pela trajetória política de Timor-Leste, se revela fundamental na conformação das personagens nele referidas. 2.5.2. Embora relativa à nação timorense, essa história é, no romance de Luís Cardoso, relatada em escala familiar. Justifica.

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O Romance como género narrativo | 77

2.6. Ao compor o retrato do pai, o narrador relata factos e reconstitui episódios que precedem o seu nascimento.

2.6.1. Explica este processo de representação narrativa do tempo. 2.6.2. Parece-te que esta recuperação do passado apresenta afinidades com a escrita biográfica? Justifica a tua resposta.

2.7. Por razões ligadas ao exercício da sua profissão de enfermeiro, o pai do narrador é compelido a uma constante itinerância. Aponta as reações da família a essa “dura tarefa do desterrado pela profissão”.

3. Na travessia para Ataúro, assume particular destaque a figura do cipaio africano Aldroado que comandava a embarcação. Retira do texto as palavras/expressões que ajudam a compor o seu retrato.

4. 4.1. Desde cedo, o narrador dá testemunho da mentalidade mágico-ritual expressa em várias manifestações da cultura timorense, como se deduz da sua referência ao rain-fila. Explica em que consiste esta crença.

4.2. Descreve a reação da mãe do narrador relativamente a este universo maravilhoso.

5.5.1. Caracteriza, recorrendo a indícios textuais, a relação entre o velho sokão e o prisioneiro Simão que seguia, sob sua vigilância, na embarcação.

5.2. A trágica história familiar do sokão é relatada neste capítulo. Sintetiza-a.

5.3. Como justificas a resistência do sokão em responder à pergunta que lhe foi formulada pelo primeiro-cabo, quando este pretendeu confirmar se o homem transportado na embarcação era o prisioneiro?

6. Relê a seguinte passagem:

“O sokão baixou a cabeça para não responder a uma pergunta para a qual não tinha achado resposta durante a travessia. Seria considerar-se a ele próprio um carcereiro. Simão também não respondeu. Na sua condição, não lhe cabia tarefa de responder. Tinha prometido a ele próprio e jurado no silêncio da travessia que doravante seria ele próprio a contar um novo tempo. No sítio da morte e do esquecimento, prometera ressuscitar.” 6.1. Demonstra que, para estas personagens que, de forma acidental e fugaz, se encontram numa travessia comum, a viagem é sinónimo de revelação espiritual e transformação interior.

7. No capítulo 2, é introduzida a personagem de Mário Lopes, o malae-metam originário de São Tomé e Príncipe. Procede à inventariação dos elementos que compõem o seu retrato e classifica o processo de caracterização predominante.

8. A figura da mãe do narrador, embora indiscutivelmente secundarizada em virtude do protagonismo concedido à figura paterna, parece ser a personagem em que, de modo mais evidente, se encontra corporizada a ancestral cultura timorense, designadamente na sua dimensão mágica/maravilhosa. Justifica esta afirmação.

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78 | O Romance como género narrativo

9. Caracteriza os dois professores destacados para o ensino da catequese e da escolaridade primária em Díli. Na tua opinião, até que ponto podem ser considerados personagens tipificadas?

10. Descrevendo as tarefas escolares desenvolvidas na escola de Dare, observa o narrador:

“As redações avançaram com as louvações à minha pátria distante simbolizada e guardada por dois anjos masculinos e mais feios do que as imagens sacras e cujos retratos estavam pendurados na parede frontal. Um, gordo e calvo, vestido de branco e ornamentado com rendas douradas. O outro era sério e soturno, vestido com um fato cinzento, o nariz pontiagudo desfilando ameaças e o cabelo alinhado como a tropa e os cipaios.”10.1. Tenta identificar as personagens a que, nesta passagem, o narrador alude em registo caricatural.

10.2. Comenta a ironia implícita na referência do narrador à sua “pátria distante”.

11. No capítulo 3, é apresentada a figura de um militar firaku, namorado da prima do narrador. Justifica a importância desta personagem secundária no percurso formativo do jovem, sobretudo no que diz respeito ao surgimento da sua paixão pela leitura.

12. Que traços do caráter do pai do narrador podem ser deduzidos através do episódio da escolha do vestuário, na cantina de Mário Lopes, como recompensa de passagem de classe? Justifica a tua resposta.

13. Identifica o recurso estilístico patente no seguinte comentário do narrador, explicitando o modo como ele concorre para a sua autocaracterização.

“Foi assim que deixei os meus parentes na ilha de Ataúro e voltei a atravessar o mar em direção a Díli. Era um dia de temporal e pude constatar quão previdente era o meu pai. Escolheu como complemento do meu vestuário sumaúma. Se tivesse sido chumbo de Macadede, eu ia ao fundo.”

14. No decurso da sua breve permanência com os parentes vindos de Manufahi, relatada já no capítulo 4, que relação estabelece o narrador com Manucoli, o velho guerreiro, e com o avô? Justifica, referindo-te a passos concretos do romance.

15. “Eu não era revoltoso. Além de magrinho, era medroso.”15.1. Identifica o processo de caracterização ilustrado pela frase transcrita.

15.2. É esta a modalidade de caracterização predominante no processo de construção gradual do retrato do narrador-protagonista? Justifica a tua resposta.

16. Neste capítulo, são esboçados os perfis físicos e psicológicos de vários dos mestres que ensinavam no colégio D. Nuno Álvares Pereira. Copia o quadro seguinte para o teu caderno e completa-o, selecionando do texto informação pertinente sobre cada um deles.

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Personagem Retrato

mestre Egídio

mestre Jaime

mestre Fernando Osório Soares

mestre Alberto

mestre Narciso Lobato

17. O narrador transita, posteriormente, para a Missão dos Salesianos, em Fuiloro, a fim de completar a quarta classe. Explica a importância de padre Júlio no acesso do narrador a um conhecimento efetivo dessa “pátria distante” que era Portugal.

18. No capítulo 5, confessando a sua paixão pelo futebol e a sua simpatia pela equipa da Académica, o narrador menciona uma personagem em particular: “Havia o José Alexandre Gusmão, guarda-redes, um ex-seminarista que escrevia sonetos e criava frangos na baliza”.18.1. Identifica a personagem mencionada.

18.2. Comenta a funcionalidade desta convocação de uma personagem referencial (isto é, historica-mente existente) na criação de um efeito de real.

19.19.1. A passagem do narrador pelo seminário de Dare implica o seu confronto com uma rotina diária e um ambiente escolar radicalmente distintos. Explica em que medida.

19.2. De entre os professores do seminário, destaca-se o francês padre Bernardo, em virtude da sua vida aventurosa. Sintetiza as impressões do narrador a seu respeito.

20. No capítulo 6, uma vez relatada a sua expulsão do seminário e o ingresso no liceu de Díli, o narrador detém-se na figura do coronel Alves Aldeia, governador de Timor. Traça o seu retrato físico e psicológico.

21. Justifica as referências, presentes neste capítulo, a Ramos-Horta e Mário Carrascalão.

22. De entre os colegas do narrador no liceu de Díli, destacam-se Venâncio e Adriano. Sintetiza o seu retrato físico e psicológico.

23. O capítulo 7 abre com as premonições sombrias do pai do narrador a propósito do futuro de Timor, na sequência do naufrágio do navio Arbiru. Explica de que modo as profecias paternas vêm a concretizar-se.

24. O narrador explica o estabelecimento do “embrião da formação partidária nacionalista” a partir das figuras de Ramos-Horta e Nicolau Lobato, descritas como “díspares nas suas personalidades”. Explica em que consistia essa disparidade.

25. “No fundo, [o pai] sonhava para mim um lugar no elenco administrativo. Coisas que passam pela cabeça de quem fez um barco e quer continuar a navegar no tempo, na rota submersa das caravelas.”25.1. Explicita o sentido deste comentário do narrador.

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26. O narrador alude, neste capítulo, à metamorfose operada em Venâncio, após o seu regresso da metrópole. Justifica essa transformação.

27. Relê o passo seguinte extraído do capítulo 8 do romance:

“Soube mais tarde que o meu velho enfermeiro ficara cativo nos calabouços da FRETILIN. Tinha a sua quota-parte de culpabilidade por ser aderente da UDT. Na ausência daqueles que atravessaram a fronteira, onde outrora ele fora investido em tarefas de salvaguardar vidas, pagava por ele, por eles e por ninguém. É essa a sina dos desafortunados.”

27.1. Comenta estas palavras do narrador, inferindo, a partir delas, o seu posicionamento político.

28. No mesmo capítulo, relata-se o encontro imprevisto do narrador com as personagens de Domingos e Mali Mau.28.1. Caracteriza-as, selecionando do texto as passagens relevantes.

28.2. No processo de gradual conhecimento recíproco, refere o narrador que “cada um mergulhava no passado para descobrir o presente de um e de outro”. Esclarece o sentido destas palavras.

28.3. Explica a asserção irónica do narrador, segundo a qual Domingos e Mali Mau “formavam um misto de maubere com cantor pop”.

28.4. Relativamente à permanência dos dois conterrâneos na metrópole, o narrador confessa que “temia pelo seu futuro”. Como justificas esse receio?

29. No capítulo 10, referindo-se ao pai, confidencia o narrador: “Ele passou a ser o meu herói. Não tanto pelos feitos heroicos ou pela dedicação à causa, mas sim por ter sobrevivido a uns e outros.”

29.1. Comenta este conceito de heroísmo encarnado pela figura do velho enfermeiro.

30. O declínio físico do pai do narrador é acompanhado pela sua alienação em relação a um presente de desenraizamento e deceção. Como explica o narrador, “A amnésia fez ressuscitar a memória não requisitada. Saudava os transeuntes, julgando serem parentes ou antigos pacientes e, como não era correspondido, dizia não compreender como os homens podem ser tão esquecidos ou perder tão facilmente a memória”. Como pode ser simbolicamente interpretada esta perda seletiva de memória do pai?

31. “Caminhava como se fosse o dono do tempo. Deve ser a única gratificação que a vida concede aos velhos. Tinha o passo lento dos búfalos que enterram as patas na lama, e o olhar sofredor e sacrificado dos animais de estimação e do estilu.”

31.1. Esclarece o sentido da metáfora animal associada ao pai do narrador.

32. Nas conversas entre o mestre Alberto e o pai do narrador, podia pressentir-se uma acusação dirigida à geração que herdara Timor-Leste e à qual pertencia o filho-narrador. Explica porquê.

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O Romance como género narrativo | 81

33.33.1. Como é, neste capítulo, caracterizado o guerrilheiro Xanana Gusmão?

33.2. Justifica a sua comparação com Che Guevara.

33.3. Como explicas as reservas expressas pelo narrador em relação ao surgimento deste “novo iluminado” com “pose de profeta”?

34. A propósito da morte do pai do narrador, relatada no último capítulo, relembra-se a divisa mate-bandera-hum pela qual tinha militado o velho enfermeiro. Explica a sua convocação nesta secção final do romance.

II – Espaço

1. Situa, no mapa de Timor--Leste, os acontecimentos narrativos referidos no ro-mance de Luís Cardoso, in-dicando o capítulo em que ocorrem. Que conclusões podes tirar da observação do mapa?

2. Logo no primeiro capítulo do romance, são descritos vários percursos físicos realizados pela família do narrador ainda durante a sua infância. Um dos mais marcantes é o que faz a ligação de Díli a Ataúro. a) Quantos elementos embarcam e quem comanda o beiro? b) De que significados se reveste esta viagem para os diferentes passageiros? c) Por que razão Simão faz lembrar, ao velho sokão, o seu filho? d) A chegada a Ataúro é marcada pela realização de um ritual específico. Em que consiste e qual é o seu significado? e) A travessia é feita durante a noite? Por que motivos prefere o sokão viajar nesse momento do dia? f) O momento do nascer do sol, que antecede a chegada, é descrito com particular detalhe. Que emoções e sentimentos dominam o narrador? Qual o significado simbólico do nascer do sol no contexto específico da viagem realizada? g) A ilha de Ataúro é referida, com recurso a uma metáfora, como “o sítio da morte e do esquecimento”. A que se deve esta associação? h) Procede a uma pesquisa sobre a ilha de Ataúro, procurando informações sobre as suas particularidades geográficas e naturais, mas também sobre os seus mitos e tradições culturais. Apresenta os resultados do trabalho realizado aos teus colegas e promovam a sua divulgação na escola e, se possível, na comunidade.

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3. Já no segundo capítulo, por ocasião da instalação em Ataúro, atenta na descrição da casa atribuída à família do narrador. a) Como é descrita fisicamente a casa? b) Que elementos perturbam o sossego da família na nova habitação? c) Como é que a mãe procura defender e proteger o narrador ainda criança? Em que se baseiam as suas ações? d) Explica a referência à lenda da Pontiana a propósito dos receios da mãe do narrador. Se não conheces a lenda, procura descobrir a história através do contacto com familiares mais velhos. e) Explica por palavras tuas, e no contexto em que surge, o que entendes pela afirmação seguinte, a propósito de Ataúro: “Era uma ilha cercada por pequenos medos.” f) O cariz singular da ilha é sugerido em momentos distintos. O seu isolamento, mas também as suas características particulares, geográficas, culturais e humanas, fazem dela um espaço especial e diferente de todos os outros conhecidos pelo narrador. Comenta a afirmação e justifica com exemplos concretos do romance.

4. A ilha de Ataúro é também o espaço onde decorre a primeira alfabetização e a evangelização do narrador. Qual a importância destas aprendizagens na construção da sua identidade?

5. O narrador reconta um episódio particularmente marcante da sua infância e que terá influenciado o seu gosto pela leitura. Que livro o marcou e a que se deveu o seu contacto com ele? Justifica.

6. A problemática da língua coloca-se logo desde o início da escolarização do narrador-pro-tagonista e a diversidade e a pluralidade linguísticas acompanhá-lo-ão noutros momentos e espaços de formação. Identifica-os e explica sucintamente os problemas suscitados.

7. Depois de terminada a segunda classe em Ataúro, para onde vai o narrador prosseguir os seus estudos? Que preparação exige esta nova mudança? a) O que têm em comum as duas travessias marítimas realizadas? E o que as distingue? b) Informa-te sobre as características e importância desse espaço de formação, em particular na história e na formação das elites timorenses.

8. Apesar de ser introduzido no colégio por elementos influentes, o narrador nunca se consegue adaptar verdadeiramente àquele novo espaço. Quais são as maiores adversidades que tem de enfrentar? Como as supera?

9. No final do ano letivo, e ao contrário do que esperava, não regressa a Ataúro. Onde tinha sido colocado o enfermeiro desta vez? De que características físicas se reveste o novo espaço que a família vai ocupar?

10. Por que razão o narrador não regressa, no final das férias, ao colégio de Soibada?

11. É durante o seu percurso de formação em Lautém, enquanto frequenta a quarta classe, que o narrador começa a construir uma determinada imagem mental da metrópole. a) Como imagina o narrador esse espaço tão distante? b) Que outros espaços do então império colonial português são identificados e a que imagens surgem associados?

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12. Concluída a escolaridade primária, o narrador volta a sair de junto da família. Para onde se dirige desta vez e com que propósito?

13. O processo de obtenção do bilhete de identidade, descrito logo no início do capítulo quinto, acaba por traduzir-se no encontro do narrador com as suas raízes. Explica de que forma o funcionário do arquivo revela o seu desprezo pelo narrador.

14. Bebora, o bairro onde se agrupam os naturais de Bobonaro, é descrito com pormenor, como uma espécie de cidade dentro da cidade de Díli. a) Que características o sigularizam? b) Quem são os seus habitantes e o que os leva à capital timorense? c) Que relações estabelecem com as origens? Seleciona uma frase do livro que ilustre essa relação.

15. Que ideias surgem associadas a Dare, o espaço de formação para onde é suposto ser encaminhado o narrador?

16. Díli, durante a adolescência e juventude do narrador, é um espaço marcado pela diversidade de ofertas, nomeadamente em termos de divertimentos. a) Enumera alguns dos espaços da cidade descritos no capítulo quinto, assim como as atividades aí praticadas. b) Ao domingo, as atrações são várias, realizando-se em espaços próximos. Quais são as mais concorridas? Porquê?

17. A entrada no seminário de Dare traduz-se numa espécie de ascensão social para os que aí têm lugar. Como explicas essa valorização do espaço do seminário?

18. Atenta na descrição física do seminário. a) Que elementos característicos desse espaço são destacados pelo narrador? b) A que comparação recorre com vista a descrever o espaço em questão?

19. A metrópole, a partir da década de 60 do século XX, durante a juventude do narrador, começa a surgir como um espaço mais “próximo” e menos exótico. a) Que fatores contribuem para essa “nova” perceção do território? b) Que bens e que valores chegam da metrópole a Timor e o que simbolizam? c) Qual a sua influência na vida quotidiana em Timor?

20. A transferência do pai do narrador para Díli, desde Lautém, permite uma nova descrição da cidade mais importante de Timor e de alguns dos seus elementos marcantes. a) A linha de costa, dominada pela marginal, estabelece um percurso especial. Identifica-o. b) Este é também o momento de mais uma mudança na formação do narrador. Em que consiste? E que portas lhe poderá abrir?

21. A partir de certo momento, a possibilidade de sair de Timor para continuar os estudos na metrópole começa a ganhar forma, sobretudo em resultado de uma política de formação e valorização dos cidadãos locais. Como idealiza o narrador essa hipótese?

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22. Quando o momento da sua partida chega, como é percecionada essa viagem? E como é que a família a entende? Que significado lhe atribui?

23. Na chegada a Lisboa, o narrador confronta as suas expetativas – resultantes de fotografias e documentários – com a realidade. Que conclusões tira? Justifica.

24. O capítulo oitavo começa com uma reflexão do narrador sobre o simbolismo e o significado pessoal atribuído aos aeroportos na sua história de vida. Explica, por palavras tuas, os sentimentos da personagem em relação a este cenário concreto.

25. A estadia em Portugal revela-se difícil, expondo sensações de inadaptação e de exclusão. Comenta a afirmação, a partir das reflexões do narrador no capítulo oitavo.

26. Para muitos dos timorenses a viver em Portugal, Lisboa e, em particular, o Vale do Jamor, funciona só como uma etapa de um percurso que desejam prosseguir até à Austrália. Explica as razões deste desejo.

27. Os timorenses habitantes do Vale do Jamor possuem características comuns. Identifica--as e procede à caracterização deste grupo, dando conta das atividades realizadas, com vista a diminuir a distância dos seus locais de origem.

28. A chegada do pai a Portugal, sem memória e sem saúde, obriga a uma nova reflexão sobre a relação com os espaços, reais e sonhados, próximos e distantes, que marcam as vidas do narrador e da família. Comenta a afirmação, dando conta de como reage à paisagem urbana de Lisboa o velho enfermeiro.

29. Nas descrições da estadia do pai em Portugal, são frequentes as comparações com o universo timorense. Identifica algumas delas e explica o seu significado.

30. No final do romance, e apesar de já possuir a autorização para partir para a Austrália, o velho enfermeiro acaba por morrer em Lisboa, adiando indefinidamente essa última travessia. Como pode ser interpretado este final do romance, atendendo à situação timorense vivida na época?

31. A fauna e a flora também são elementos determinantes na caracterização de alguns dos espaços onde decorre a ação. Procede ao levantamento de algumas das espécies animais e vegetais mais assiduamente referidas e explica sucintamente as suas características principais, bem como o simbolismo de que se revestem.

32. Vários espaços, incluindo o próprio território timorense, surgem associados ao conceito de exílio, glosado de diversas formas e com significados distintos ao longo do romance. Identifica alguns dos episódios que aludem ao exílio e/ou a espaços de exílio e reflete sobre o seu significado, tendo em conta a mensagem do romance.

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III – Tempo

1. Elabora uma tabela cronológica onde assinales os acontecimentos históricos referidos no romance em análise. Que conclusões tiras relativamente ao período histórico que contextualiza a narrativa?

2. Identifica os mais relevantes para o desenvolvimento da narrativa e procede a uma investigação breve de modo a caracterizá-los.

3. O tempo que o narrador passa no seminário em Dare coincide com a década de 60 do século XX. A que acontecimentos históricos se alude no romance, assim permitindo esta localização da ação no tempo?

4. À medida que o tempo passa, Timor começa a acusar os efeitos dos acontecimentos que, na metrópole, nas colónias e um pouco pelo mundo anunciam grandes mudanças. A enumeração de algumas personagens referenciais e a narração, ainda que breve, das suas ligações a Timor prepara já o breve momento da independência. a) Identifica as personagens referenciais mencionadas no capítulo sexto e redige breves notas biográficas de cada uma delas, situando-as cronologicamente.

5. Como entram no território os materiais e as ideias adversárias do regime ditatorial português? Que implicação acabam por ter no processo de formação do narrador?

6. A cultura pop, característica das décadas de 60 e 70 do século XX, também começa a infiltrar-se em Timor, sobretudo junto da geração jovem. a) Que elementos a identificam e distinguem? b) Em que áreas artísticas se revela mais visível e influente?

7. A referência ao desaparecimento do navio Arbiru, que fazia as ligações marítimas entre Díli e Hong-Kong e Singapura, fornece indicações adicionais que corroboram a localização da narrativa no tempo. a) Quando aconteceu esse episódio e qual a razão da sua relevância? b) Que ligação tem com a vida da família do narrador?

8. O capítulo sexto encerra com a referência a um episódio da história portuguesa contemporânea que se revelará da maior importância. Identifica-o e realiza uma pesquisa, mesmo se breve, sobre o seu significado.

9. Como é acompanhado, em Timor-Leste, o desenrolar dos acontecimentos revolucionários na metrópole e que alterações se verificam na vida quotidiana dos habitantes do território? Justifica.

10. Que acontecimento histórico justifica a referência explícita à passagem de ano entre 1978 e 1979?

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11. Já perto do final do romance, nas visitas que mestre Alberto realiza à casa do pai do narrador, ambas as personagens, apesar das origens distintas, estão de acordo relativamente a um particular episódio histórico timorense. a) Identifica-o. b) Explica o alcance da referência a esse momento concreto.

12. As referências à ação da resistência, depois da morte do primeiro líder, são cada vez mais insistentes. Quem assume a liderança e por que razão inspira renovadas esperanças junto dos timorenses?

13. Como explicas que o ritmo da narrativa se torne mais vivo e mais rápido à medida que a história avança e o narrador se aproxima da contemporaneidade?

IV – Ação

1. Atenta no primeiro capítulo e procura detetar as diferentes cenas que aí são narradas.

1.1. Qual a relevância da alusão à “primeira comunhão”?

1.2. Para que ação e, naturalmente, para que tempo e para que espaço remete?

1.3. Que importância poderá revestir a referência evocativa, longa e demorada, a parte do percurso vivencial do pai do narrador?

1.4. Em que medida os episódios relatados se cruzam (e implicam) com a História timorense?

1.5. Relaciona as ações relatadas neste capítulo com as contidas no último capítulo. O que concluis?

2. No segundo capítulo, como, aliás, em outros, são narrados vários momentos de intervenção da igreja católica na vida do protagonista-narrador. Que implicações têm na trajetória desta personagem, em particular, e na da comunidade, em geral?

3. Refere o episódio amoroso com que abre o terceiro capítulo. Qual o seu desfecho?

4. A que alude o narrador na seguinte afirmação: “Queria que eu conhecesse as minhas próprias entranhas antes de as abandonar definitivamente para submergir no reino cristão.”?

5. No capítulo quarto, o narrador relata mais uma viagem, desta vez, “na camioneta do China”. Quais as impressões dessa incursão que revela ter retido na memória?

6. O que sugere a expressão conclusiva do quinto capítulo “A minha corrida era outra”?

7. No sexto capítulo, pode ler-se um extenso relato da ação do governador coronel Alves Aldeia. Como a encara o narrador? Justifica com expressões retiradas do texto.

8. Como é entendida a partida para a metrópole de Abílio Araújo? E o regresso a Timor de Mário Carrascalão?

9. No sétimo capítulo, são diversas as referências a movimentações de índole política em Timor. A partir de passagens do texto, procura concluir acerca do modo como o narrador as perspetiva.

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10. Neste mesmo capítulo, como caraterizas a perspetiva sugerida pelo narrador relativamente à cidade de Lisboa?

11. Como encara o narrador as suas sucessivas idas ao aeroporto?

12. No capítulo oitavo, surge a referência a mais uma viagem, desta vez de comboio. Qual o seu destino? Como a sente o narrador? Justifica.

13. O encontro com Domingos e com Mali Mau revelou-se surpreendente. Em que medida?

14. Por que motivo o protagonista decide finalmente ir ao vale do Jamor? O que lhe proporcionou essa visita?

15. Como finaliza a “história” do pai do narrador?

16. Que tipo de desfecho apresenta a narrativa?

17. De que modo poderá ser entendido o último parágrafo?

V – Narrador

1. Sabendo que, quanto à presença, o narrador pode classificar-se como heterodiegético, (quando é uma entidade exterior à história, tendo uma função meramente narrativa e relatando simplesmente os acontecimentos), homodiegético (quando é uma personagem da história que revela as suas próprias “vivências”) e autodiegético (quando participa na história como protagonista, revelando as suas próprias “vivências”), procede à classificação do narrador na obra em análise. Justifica, recorrendo à transcrição de segmentos textuais.

2. No que diz respeito à ciência, o narrador pode ser omnisciente ou não omnisciente. Como se classifica no caso específico do romance em causa? Justifica.

3. E quanto à posição? Será objetivo ou subjetivo?

4. Refletindo acerca das características do ato de narração na obra em estudo, comenta a seguinte afirmação do escritor norte-americano Paul Auster, em entrevista ao Le Monde (26 de julho de 1991), a propósito do seu romance A Cidade de Vidro:

“Há uma coisa nos romances que me fascina: vemos um nome na capa, é o nome do autor, mas abre-se o livro e a voz que fala não é a do autor, é a do narrador. A quem pertence esta voz? Se não é a do autor enquanto homem, é a do escritor, isto é, uma invenção. Existem então dois protagonistas. […] Há na minha vida uma grande ruptura entre mim e o homem que escreve livros. Na minha vida sei mais ou menos o que faço; mas, quando escrevo, estou mais ou menos perdido e não sei de onde vêm essas histórias.”

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5. Comenta a afirmação que se segue, relacionando-a com o narrador e a perspetiva que adota na narrativa lida. Procura justificar as tuas afirmações, recorrendo a exemplos textuais:

“As funções do narrador não se esgotam no ato de enunciação que lhe é atribuído. Como protagonista da narração, ele é detentor de uma voz observável ao nível do enunciado por meio de intrusões, vestígios mais ou menos discretos da sua subjetividade, que articulam uma ideologia ou uma simples apreciação particular sobre os eventos relatados e as personagens referidas.”

(Carlos Reis e Ana Cristina M. Lopes, Dicionário de Narratologia).

VI – Temas, motivos e códigos ideológicos

As questões que se seguem exploram alguns dos temas e motivos principais do romance, assim como as ideias veiculadas através dos comentários e reflexões das personagens, em particular do narrador. No final da resposta ao questionário, escolhe um dos temas centrais e redige um comentário – com cerca de uma página – sobre o seu tratamento narrativo.

1. “A natureza retribui os sentimentos dos homens”. Explica esta aliança solidária entre homem e natureza, frequentemente expressa na narrativa de Luís Cardoso, extraindo do romance os episódios que, a este propósito, te pareçam mais representativos. Relaciona esta empatia entre homem e natureza com a cultura tradicional timorense.

2. O imaginário da ilha, que constituía já um vetor de sentido estruturante da poética de temática timorense de Ruy Cinatti, é retomado, no romance de Luís Cardoso, como geografia referencial e cenário simbólico. Recolhe as várias referências ao espaço insular nele presentes, esclarecendo o seu sentido e alcance.

3. A questão linguística é alvo de reflexão e comentário por parte do narrador, sobretudo durante o seu período de alfabetização. a) Que dificuldades relata no decurso desse processo? b) E que reflexões expende sobre a condição multilingue do cidadão timorense? c) No final do romance, durante a resistência armada à ocupação indonésia, a língua portuguesa volta a assumir funções relevantes. Identifica-as.

4. O imaginário quinhentista dos Descobrimentos portugueses é repetidamente convocado no romance. a) Inventaria as alusões a esse período da história de Portugal. b) Relaciona essas referências com a linha temática da travessia desenvolvida no romance.

5. A identidade híbrida de várias personagens do romance explica que elas habitem uma espécie de terceiro espaço simbólico, situado a meio caminho entre o seu Timor natal e uma distante pátria metropolitana. Justifica esta afirmação, selecionando as passagens do romance que melhor te pareçam traduzir esta ambivalência.

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O Romance como género narrativo | 89

6. O processo de formação do narrador é determinado, desde muito cedo, pela importância do gosto pela leitura e pela escrita. Identifica alguns episódios marcantes ocorridos durante os primeiros anos da sua infância e escolaridade que ilustram este gosto especial.

7. Nas palavras de Jorge Vaz de Carvalho, o subgénero do romance de aprendizagem

“representa a aprendizagem e aperfeiçoamento de um protagonista, desde a juventude ao estado adulto, através de um conjunto sucessivo de experiências vivenciais, árduo processo em que é posto à prova para que alcance certa maturidade, entendida como desenvolvimento das suas qualidades humanas, a consciência de si e do seu lugar na sociedade”

(Jorge Vaz de Carvalho, Jorge de Sena: Sinais de Fogo como romance de formação.).

a) Partindo destas palavras, discute, justificadamente, as afinidades de Crónica de uma Travessia com o subgénero do romance de formação.

8. Parte significativa da ação do romance desenvolve-se durante a ocupação colonial portuguesa. a) Que elementos marcam, na perspetiva do narrador, esse tempo? b) E que evolução é sentida ao longo da passagem dos anos e da sua crescente consciencialização da condição do território?

9. A educação é um dos temas dominantes no romance, sobretudo se tivermos em conta que grande parte da narrativa diz respeito ao processo de crescimento e de aprendizagem do narrador. a) Que valores e que práticas educativas marcam os diferentes espaços de formação que o narrador vai frequentando? b) Como interpretas a descrição de alguns rituais de ensino que envolvem práticas de humilhação dos alunos?

10. Outro tema assíduo – e particularmente próximo da questão educativa – tem a ver com a presença da religião católica em Timor, os valores defendidos e a ação desenvolvida, assim como a relação estabelecida com o universo tradicional. Que posições sobre a atuação da igreja católica são enunciadas pela voz narrativa? Em que se baseiam?

11. O universo cultural tradicional, em particular o dos rituais e crenças animistas, está presente em vários momentos da narrativa. Identifica alguns deles e explica o seu significado simbólico.

12. Como interpretas e explicas a alusão intertextual, no capítulo sétimo, aos versos de Os Lusíadas relativos a Timor? Qual o seu significado, atendendo a que o romance descreve o fim do ciclo imperial português?

13. É, também, este o momento de afirmação das três vias possíveis para o futuro de Timor, assim como do nascimento dos três principais partidos, cuja génese o narrador descreve de forma consideravelmente pormenorizada. Identifica cada um deles e os seus principais líderes, bem como os ideais por eles preconizados.

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90 | O Romance como género narrativo

14. Como explica o narrador o processo e as razões da adesão do pai, o velho enfermeiro, aos ideais da UDT?

15. Em mais do que um momento, o narrador compara o debate político em Timor-Leste com os jogos de futebol. A que se deve esta recorrente analogia? Que semelhanças aproximam dois universos aparentemente tão distintos?

VII – Linguagem e estilo

1. Copia o quadro que se segue para o teu caderno. De seguida, faz corresponder os excertos presentes na coluna da esquerda aos recursos técnico-expressivos referidos na coluna da direita:

Excertos Recursos técnico-expressivos1. “Os jacarandás tinham inundado a cidade de Lisboa com uma cor lilás litúrgica” (cap. 1)

A - Comparação

2. “os olhos de Mário Lopes que se destacavam da têmpora saliente, de rosto grande e lábios carnudos, encimado por uma calva reluzente, salpicada por cabelos raros alvos e encarapinhados” (cap. 2)

B - Enumeração

3. “A minha prima ficou como uma rosa murcha” (cap. 3) C - Onomatopeia

4. “Angola grande dos diamantes das Luandas e do petróleo de Cabinda. São Tomé e Príncipe do Mário Lopes e do cacau. Guiné e o arquipélago dos Bijagós. Cabo Verde e a morna do Mindelo. A Madeira e o arquipélago dos Açores. Brasil e o grito do Ipiranga.” (cap. 4)

D - Hipérbole

5. “(…) assustado com os sucessivos tlintlins das bicicletas dos chinas que desfilavam pataratas, outra condição social.” (cap. 5)

E - Sinestesia

6. “embora os pares timorenses continuassem agarradinhos, mesmo no auge das voltagens de rebentar os tímpanos.” (cap. 6)

F - Metáfora

7. “(…) salgados os corpos com os ventos marítimos, se depois não poderiam testar os músculos secos e tesos em terra quente e húmida.” (cap. 7)

G - Pleonasmo

8. “O avião era um pássaro de ferro que só aterrava de vez em quando assustando os cabritos, rolas e gafanhotos.” (cap. 8)

H - Eufemismo

9. “O vale do Jamor era mais de desamor, (…).” (cap. 9) I - Adjetivação múltipla

10. “Eu pensava no destino daqueles velhos, que atravessaram continentes, fugindo da morte matada para virem morrer de morte velha (…).” (cap. 10)

J - Jogo de palavras

11. “Um lençol branco, como uma bandeira despida de cores e de símbolos, cobria-lhe o corpo nu e moreno.” (cap. 11)

K - Paralelismo de construção

2. Identifica as figuras de estilo patentes nos excertos que se seguem. Procura explicar, de seguida, os seus significados e os seus efeitos expressivos.2.1. “Dare era para mim aquela casa de telhado de zinco que avistava da ilha de Ataúro e refletia os raios de sol como um farol.” (cap. 5).

2.2. “Díli não era uma cidade branca. Era reluzente com os telhados de zinco para torrar o ar. À tardinha fechava-se como uma concha brilhante, e o entardecer era enternecedor com a ilha de Ataúro recolhida como uma sentinela no horizonte.” (cap. 6).

2.3. “Domingos era forte e baixote, tinha um rosto redondo e sorria sempre. Era daquelas pessoas que escondem as lágrimas com sorrisos. Mali Mau era magro, direito como uma mandioca seca, fitava-me com os olhos atentos, distantes.” (cap. 8).

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O Romance como género narrativo | 91

3. Como podes constatar, os diálogos são relativamente raros no romance em análise. No capítulo 8, existem, porém, alguns segmentos dialogais. Centra-te no primeiro e explica a sua relevância para a ação.

4. Análise intensiva de excertos do romance

Com vista a aprofundar as competências de análise e interpretação textual, propomos-te, agora, a leitura intensiva de alguns excertos selecionados do romance em estudo.

Atividade 1

1. Lê com atenção o seguinte excerto do primeiro capítulo do romance Crónica de uma travessia, de Luís Cardoso.

1.1. Localiza o excerto transcrito na estrutura da narrativa.

1.2. Este excerto descreve um momento particular do dia. Identifica-o e, de acordo com o texto, explica o seu simbolismo.

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E lá longe, em faixas brancas, a luz rompia a negrura das sombras. Acordou Simão. Era um ato único, para quem como ele, para ali ia morrer; deveria contemplá-lo sem respirar, assim como se fosse o seu próprio nascimento. Primeiro, ouviu um ruído contínuo no fundo do mar. Esperou então ver cavalos-marinhos, como os cavalos selvagens que a trote e de crinas levantadas percorriam as cercanias da sua terra de Fohorém. Depois as águas inquietas revolviam-se, tornavam-se espessas e entravam em ebulição. Via abrir-se um cone no mar e as águas afastarem-se para se postarem como paredes rígidas. Uma bola de fogo subia em rotações enrolando-se sobre si própria em novelos de ouro. As vagas aspiravam um cabeça reluzente que se esforçava por vir à tona. O céu desfazia-se em esforços mostrando sulcos do rosto dorido como uma mulher no momento do parto. Eis que finalmente, no horizonte, por sobre uma bandeja azul, um belak de ouro brilhante oferecia-se aos viandantes em troca da silenciosa noiva, a noite que os acompanhara na travessia. Ali está ele! Voltou a murmurar as mesmas palavras que pronunciara no dia em que subiu o monte Tatamailau para ver o nascimento do Sol. Mas naquele instante estava mesmo perto da ilha, e o sol iluminava-a por comple-to. As rochas nuas e negras que se colavam no dorso da montanha, descendo a pique até ao mar, refletiam violentamente o brilho do Sol. A carapaça da tartaruga, de que então imaginara fosse feita a ilha, ganhava mais consistência. Mesmo à sua frente o mar batia raivosamente nas rochas, amaldiçoando aquela velha carcaça que se atrevia a entrepor-se no caminho. A intrusa era ela mesma, a ilha, no coração do mar. Si-mão contemplava a terra seca ainda com restos de capim. As árvores, enegrecidas pela queimada anterior, faziam-lhe lembrar viúvas que para ali tivessem vindo reclamar ao mar que lhes devolvesse os maridos, ou corpos de antigos prisioneiros, que, na ânsia de regressar às suas terras e não o podendo fazer, se tivessem deixado imolar pelo fogo para que os do lado de lá pudessem sentir o odor das suas carnes queimadas. Gai-votas esvoaçavam por cima do mastro do beiro, deixavam-se ficar suspensas, esquecendo-se de continuar o rumo, tendo perdido momentaneamente a memória de voar e esperavam que alguém lhes fosse recordar que um pássaro só ocupa um determinado espaço no instante equivalente ao bater de asas. Os animais marinhos que os tinham acompanhado durante toda a noite, voltaram a mostrar os seus dorsos e seguiam em fila ondilínea paralela à costa.

Luís Cardoso, Crónica de uma travessia

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92 | O Romance como género narrativo

1.3. Relê o segundo parágrafo do texto. 1.3.1. Que vocábulos são usados para exprimir a gradual passagem do tempo e o movimento descrito? Como se designam?

1.3.2. Para além do sentido da visão, crucial para a apropriação dos acontecimentos e para a sua descrição, há outro sentido que marca presença neste parágrafo. Identifica-o e explica a sua utilização.

1.3.3. “O céu desfazia-se em esforços mostrando sulcos do rosto dorido como uma mulher no momento do parto.” (l. 9) Identifica o recurso expressivo presente nesta frase e explica o seu uso, atendendo à mensagem veiculada.

1.3.4. A que se refere o narrador quando recorre à metáfora da “bandeja azul” (l. 10)?

1.3.5. Explica o simbolismo da alusão ao belak como oferta aos viandantes.

1.3.6. Identifica o recurso estilístico utilizado na expressão “silenciosa noiva” (l. 11). Qual o seu efeito expressivo?

1.3.7. A descrição do fenómeno natural aqui presente é marcada pela interferência de elementos do maravilhoso e/ou do fantástico. Como interpretas esta visão do real?

1.4. O momento da narrativa aqui transcrito compreende a chegada do narrador e da família a Ataúro. 1.4.1. Que imagens são usadas para identificar e caracterizar a ilha? Qual o seu significado?

1.4.2. Por que razão é a ilha considerada uma intrusa?

1.5. A paisagem da ilha, em particular a mais próxima da costa, é também alvo de uma personificação particular. 1.5.1. Identifica os elementos naturais personificados.

1.5.2. Explica, por palavras tuas, as associações estabelecidas pelo narrador.

1.6. O texto transcrito, dominado pela descrição, distingue-se pela presença de inúmeras comparações e metáforas que mobilizam uma leitura personificante ou animizada dos espaços. 1.6.1. Identifica algumas das analogias presentes no excerto.

1.7. No extrato, o narrador procura construir uma determinada imagem da ilha de Ataúro. Indica se se trata de uma visão positiva ou negativa e relaciona-a com a vivência do narrador nesse espaço.

1.8. Procede a um levantamento dos elementos simbólicos, fortemente ligados à tradição timorense, a que se alude neste segmento textual e realiza um trabalho de pesquisa e de divulgação sobre o seu significado. De preferência, procura ilustrar, com fotografias, imagens ou desenhos o teu trabalho.

1.9. Realiza uma pesquisa ou conversa com familiares e amigos mais velhos sobre a utilização dada à ilha de Ataúro ao longo da História. A que conclusões chegas?

1.10. No excerto, também é sugerida a existência de uma relação muito próxima entre os vários elementos da natureza, paisagem, geografia, flora e fauna. Redige um texto onde dês conta do relevo e significado da natureza na cultura timorense.

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O Romance como género narrativo | 93

Atividade 2

Lê atentamente o excerto do capítulo dois de Crónica de uma travessia, de Luís Cardoso:

Destinaram-nos uma casa grande feita de paredes de bambu com teto de capim onde algumas cobras faziam ninhos e grandes correrias em perseguição das ratazanas que às vezes buscavam proteção debaixo da minha esteira e deixavam marcas na minha carne. Minha mãe, supersticiosa, desconfiava serem feridas provocadas pelas garras da Pontiana*. De noite, montava sentinela junto da minha cama, acendia uma vela e rezava o terço e, como isso não bastasse, socorria-se também dum prego longo e afiado mais um fruto de limão azedo. Esperava pela meia-noite, quando era a altura do canto da pomba cinzenta, que ela suspeitava ser o momento da transfiguração do pássaro da noite em dama da morte. E como nada me acontecia, apagava a vela, o terço, ia-se embora deixando-me em cada mão o prego, o limão e a tarefa de caçar a Pontiana transfigurada em ratos. Era uma casa grande com muitos quartos, como se o construtor adivinhasse que os enfermeiros tives-sem sempre muitos filhos e poucos morressem à nascença. Mesmo assim, alguns quartos continuavam va-zios e escuros, onde ninguém entrava e a minha mãe suspeitava ouvir ruídos, vozes e lamentos de parentes falecidos que se aproveitavam de ser defuntos para virem reclamar benesses e dividendos. Ela socorria-se também da vinda mensal do padre para encher estes mesmos aposentos de catecúmenos vindos de Maqui-li, Macadade, Beloi e Biqueli, os quais, ocupando-os, enxotavam dali as almas-penadas.[...] A escola era também uma casa grande ocupada com carteiras e cujo chão estava coberto com uma longa esteira que me parecia ser um tapete voador quando havia tremores de terra. Meu pai comprou-me uma ardósia com o respetivo ponteiro e desejou-me que não me faltasse nunca a saliva. Foi-me ensinado primeiro a catequese em tétum, depois o hino nacional em português e finalmente algumas canções sacras em latim. Mais tarde a escrever o alfabeto, os números e a tabuada. As palavras na cartilha, r-o-ro-l-a-la e dizia lakateu em tétum porque era o lakateu que lá estava configurado. Era o lakateu que eu guardava na minha cabeça e no meu bolso, apanhado em perseguições dolorosas na altura das chuvadas, e que de asas molhadas e cansadas desistia facilmente. G-a-ga-l-o-lo e dizia manu-aman em tétum porque era o manu-aman que estava pintado sem as cores festivas das lutas de galo aos domingos no bazar. [...] Embora nas aulas de Desenho e Redação, os temas tivessem como referência animais domésticos, foram lentamente substituídos pela pera e pela maçã e outros frutos distantes e paradisíacos que nos ensalivavam a boca mas que só constavam nos manuais de leitura e nas referências bíblicas. As redações avançaram com as louvações à minha pátria distante simbolizada e guardada por dois anjos masculinos e mais feios do que as imagens sacras e cujos retratos estavam pendurados na parede frontal. Um, gordo e calvo, vestido de branco e ornamentado com rendas douradas. O outro era sério e soturno, vestido com um fato cinzento, o nariz pontiagudo desfilando ameaças e o cabelo alinhado como a tropa e os cipaios. Fui informado que eles eram representados pelo sargento branco e ruivo, comandante do quartel, que eu temia por ser parecido com o rain-nain**, confirmando as profecias da minha mãe que dizia que os malaes vinham do fundo da terra em erupção de fogo. E o meu medo avolumava-se de cada vez que o via de caçadeira na mão, atrás das pombas cinzentas e verdes, que procuravam refúgio na ilha depois das queimadas que todos os anos assolavam as outras circundantes e formavam um anel de fogo.

Luís Cardoso, Crónica de Uma Travessia

* Espírito de Sedução ** Espírito da terra.

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I – Ação

1. Resume a ação principal do excerto.

2. Identifica ações consideradas secundárias e refere o processo pelo qual as sequências narrativas se articulam.

II – Espaço e Tempo

1. Localiza a ação nos seus espaços físicos.1.1. Retira do texto os elementos objetivos que caracterizam a casa.

1.2. Como interpreta o narrador a grandeza da sua casa?

1.3. Completa, no teu caderno diário, o seguinte esquema:

A CASA

Personagens Sensações incómodas que a casa provoca Soluções encontradas

Mãe

Filho

2. Indica a função da outra “casa” que o narrador frequenta.2.1. Quais são as semelhanças entre as duas casas?

3. Considerando indícios textuais, procura caracterizar o espaço social onde se movimentam as diversas personagens.

4. Tendo em conta que o espaço psicológico é perspetivado em função das vivências emocionais das personagens, infere os sentimentos do narrador em relação à casa e à escola.

5. Ordena as frases, de acordo com a sequencialização dos acontecimentos do texto:5.1. Os retratos “pendurados na parede frontal” (l.30) eram admirados e temidos pelo narrador.

5.2. Os temas preferenciais das aulas de Desenho e Redação consistiam na representação de animais domésticos e frutos.

5.3. A casa onde a família se instalou era grande.

5.4. À meia-noite, a mãe “apagava a vela, o terço” (l. 8) e abandonava o quarto.

5.5. O narrador aprendia a catequese, o hino nacional, algumas canções, o alfabeto, os números e a tabuada.

6. Retira do excerto informantes temporais que indiciem o tempo histórico da narrativa.6.1. Em relação a essa época, que opiniões exprime o narrador?

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O Romance como género narrativo | 95

III – Personagens

1. Apresenta as personagens intervenientes neste excerto.1.1. Distingue as principais das secundárias.

2. Traça o retrato psicológico da mãe do narrador, referindo o processo de caracterização predominante.

3. “As redações avançaram com as louvações à minha pátria distante simbolizada e guardada por dois anjos masculinos e mais feios do que as imagens sacras e cujos retratos estavam pendurados na parede frontal”.3.1. Identifica o país e as figuras a que se referem as expressões sublinhadas.

3.2. Explicita a opinião que a criança narradora manifesta pelo país e pelas personalidades em causa.

4. Enumera as matérias/disciplinas que constituem o currículo escolar.

5. Comenta a atitude crítica do narrador relativamente ao mesmo.

6. Justifica os motivos que poderão estar na origem de algumas dificuldades, por parte do narrador, na realização das suas aprendizagens.

IV – Narrador e narratário

1. Classifica o narrador quanto à presença e ponto de vista/perspetiva. 1.1. Fundamenta a tua classificação, transcrevendo elementos do texto que a comprovem.

2. Refere se o narratário deste excerto é ou não identificável. Justifica.

V – Modos de expressão e de representação

1. Transcreve exemplos de descrição e de narração.

2. Supondo que a Pontiana existe…2.1. faz um desenho que a represente;

2.2. atribui-lhe características excêntricas, mas simpáticas;

2.3. escreve um diálogo breve, usando as marcas do discurso direto, que reproduza o primeiro encontro de Pontiana com a mãe do narrador.

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Atividade 3

Lê com atenção o seguinte excerto do sexto capítulo do romance Crónica de uma travessia, de Luís Cardoso.

Em criança foi-me dito para nunca me aproximar do sítio onde nascia o arco-íris. Era suposto ser o local onde adormecia a jiboia que depois de um faustoso manjar bocejava para as nuvens coloridas de sangue que desenhavam no espaço o trajeto percorrido ao longo da curva reptilínea. Eu tinha medo da cidade de Díli que crescera como a jiboia depois de ter engolido um búfalo. Arrastava o grosso ventre na periferia. Quando passava pela cidade sentia-me como um cabrito-montês pronto a ser deglutido como sassati no meio daqueles prédios que se amontoavam no centro onde funcionavam a administração, as escolas, as lojas dos chinas e se estendia o jardim público florido de acácias rubras, que ornamentavam o monumento em honra dos Descobrimentos guardado por peças enferrujadas de artilharia Em criança foi-me dito para nunca me aproximar do sítio onde nascia o arco-íris. Era suposto ser o local onde adormecia a jiboia que depois de um faustoso manjar bocejava para as nuvens coloridas de sangue que desenhavam no espaço o trajeto percorrido ao longo da curva reptilínea. Eu tinha medo da cidade de Díli que crescera como a jiboia depois de ter engolido um búfalo. Arrastava o grosso ventre na periferia. Quando passava pela cidade sentia-me como um cabrito-montês pronto a ser deglutido como sassati no meio daqueles prédios que se amontoavam no centro onde funcionavam a administração, as escolas, as lojas dos chinas e se estendia o jardim público florido de acácias rubras, que ornamentavam o monumento em honra dos Descobrimentos guardado por peças enferrujadas de artilharia apontadas para as velhas barcaças japonesas da Segunda Guerra Mundial, inertes e vencidas. O velho e desgastado enfermeiro foi deslocado da vila de Lautém para tarefas de estancamento do sangue no hospital de Lahane. Trabalhava no sanatório onde paravam os esvaziados de pulmão que para ali foram dester-rados depois de terem tentado dissimular com a masca o cuspo vermelho durante longos anos. Morava em Vila Verde, próxima do pântano de Kaikoli, atapetado de gramíneas gigantes, onde estava enterrada a central elétrica e onde, segundo constava, ancoravam espíritos que sequestravam pessoas quando tentavam atravessá-lo encur-tando o caminho do mercado. E pelo escoadouro subterrâneo enviavam-nos para o mar. Era uma cidade barulhenta de carros de obras públicas com atrelados de ferro sulcando a periferia. Os carros da Sociedade Agrícola Pátria e Trabalho que transportavam os firakus ululantes que iam para a fábrica de descasque e moagem do café vindo das terras dos calades de Ermera. Mas, sobretudo, era uma cidade ocupada por lojas dos chinas, que adormeciam na hora da sesta com as portas abertas, e por magalas que, sem guerra, deambulavam pelas praias e pelas ruas alcatroadas sem saber o que fazer do tempo. A tropa portuguesa trajava à civil para ir à cidade como quem faz eternas romarias à Senhora dos Remédios. E não era para menos, afastados que estavam da guerra nos outros territórios. A estrada marginal estendia-se duma ponta à outra da cidade, desde o farol de ferro branco, onde estavam instaladas as residências das autoridades militares e civis, passando pelo porto de Díli que cheirava a sândalo pronto a ser embarcado em forma de caixotes, até Lecidere, o farol de círio branco, a residência oficial do bispo. Continuava depois por outra, de terra batida, que atravessava a ponte de Bidau onde se falava o dito português local, até à praia da Areia Branca para onde fugiam os amantes clandestinos; mulher que de lá regressasse não era tida em boa conta. E eu fingia ignorar o rosto romântico daquelas minhas conterrâneas que pululavam de motorizada em motorizada, agarradas àqueles jovens que porventura deixavam namoradas em Lisboa como se fossem eles os últimos camelos do deserto. Díli não era uma cidade branca. Era reluzente com os telhados de zinco para torrar o ar. À tardinha fechava-se como uma concha brilhante, e o entardecer era enternecedor com a ilha de Ataúro recolhida como uma sentinela

no horizonte.

Luís Cardoso, Crónica de uma Travessia

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3.1. Situa o texto transcrito na estrutura global da narrativa.

3.2. Identifica o seu emissor, relacionando o seu protagonismo com a expressa natureza autobiográfica do romance de Luís Cardoso.

3.3. Explica o modo como, logo desde a abertura, o texto tematiza a importância da memória. Relaciona os temas centrais da memória/evocação com o género da crónica consignado no título do romance.

3.4. A explicação fantástica da formação do arco-íris, com que se inicia o capítulo, documenta a constante interferência do mito e do maravilhoso no quotidiano timorense. Justifica esta afirmação e identifica, neste excerto, uma outra passagem em que ela se torna evidente.

3.5. 3.5.1. Esclarece as circunstâncias que antecedem a ida do narrador para Díli, relacionando-as com o motivo simbólico da travessia que emerge repetidamente no romance. 3.5.2. Descreve os sentimentos que a paisagem urbana de Díli suscita no narrador. Seleciona expressões ilustrativas dessa visão subjetiva da cidade e comenta o seu valor expressivo. 3.5.3. Identifica os processos estilísticos que comunicam a imensidão ameaçadora do espaço urbano, bem como o seu crescimento caótico.

3.5.4. O cenário urbano conserva indícios materiais relativos a diferentes etapas da trajetória histórica e política de Timor-Leste. Procede ao levantamento dessas referências, identificando o momento histórico a que se reportam.

3.6. Identifica o referente da expressão “o velho e desgastado enfermeiro”. Explica o emprego desta perífrase designativa, relacionando-a com outras ocorrências similares ao longo do romance.

3.7. “Era uma cidade barulhenta de carros de obras públicas com atrelados de ferro sulcando a periferia” (l. 24). 3.7.1. Identifica o modo de expressão literária que, a partir deste segmento textual, irá predominar no excerto, justificando a tua resposta. 3.7.2. Que impressões dominam a descrição de Díli colonial? Exemplifica com expressões textuais pertinentes. 3.7.3. “A tropa portuguesa trajava à civil para ir à cidade como quem faz eternas romarias à Senhora dos Remédios” (l.28 ). Explica a ironia implícita neste comentário do narrador.

3.8. “E eu fingia ignorar o rosto romântico daquelas minhas conterrâneas que pululavam de motorizada em motorizada, agarradas àqueles jovens que porventura deixavam namoradas em Lisboa como se fossem eles os últimos camelos do deserto” (l. 35). 3.8.1. Comenta, com base no passo transcrito, o relacionamento que se estabelecia entre as jovens timorenses e os militares em missão, destacados no território, referindo-te, em particular, ao alcance estilístico da comparação animal nele presente.

3.9. “Díli não era uma cidade branca. Era reluzente com os telhados de zinco para torrar o ar. À tardinha fechava-se como uma concha brilhante, e o entardecer era enternecedor com a ilha de Ataúro recolhida como uma sentinela no horizonte.” (l. 38) 3.9.1. Aponta as sensações predominantes no excerto acima transcrito.

3.9.2. Identifica os recursos estilísticos nele presentes, esclarecendo o seu valor semântico.

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– descodificar os nexos relacionais entre distintas modalidades de criação artística– contactar com a obra de autores, artistas plásticos, músicos, dramaturgos, etc. do espaço lusófono – reconhecer a dimensão estética, lúdica e interventiva da palavra, da música, da pintura, da escultura, do cinema, do teatro, etc.– valorizar as dimensões simbólicas, históricas e socioculturais da literatura, em particular, e da arte, em geral– apreender criticamente os sentidos da mensagem de um objeto artístico– captar os mundos imaginários sugeridos pela experiência estética e pela linguagem metafórica– identificar e comentar o valor expressivo de diversos recursos estilísticos– descodificar sentidos implícitos – expressar e partilhar ideias, sentimentos e emoções

m e t a s d e a p r e n d i z a g e m

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Unidade Temática 3 Relações interartísticas

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Unidade Temática 3 | Relações interartísticas

PALAVRAS

Atividade 1

1. Atenta nas frases que se seguem:

“Uma casa sem livros é como um corpo sem alma” (Cícero, 106 a.C. - 43 a.C.)

“Um bom livro é um bom amigo” (Jacques-Henri de Saint-Pierre, 1737 - 1814)

“Um livro é uma janela pela qual nos evadimos” (Julien Green, 1900 - 1998)

1.1. Oralmente, troca impressões com os teus colegas de turma sobre as frases transcritas, atribuídas a autores cronologicamente bastante distantes entre si, e salienta a ideia comum que as três encerram.

2. Seleciona uma das seguintes propostas de escrita:2.1. Elabora uma composição na qual destaques a importância dos livros na sociedade atual.

2.2. Redige um breve texto narrativo cujo protagonista seja um livro.

2.3. Escreve um texto no qual explicites o valor que os livros têm para ti. Realça a obra que leste e que mais te marcou até à data, não esquecendo de apresentar as razões da tua escolha.

3. Recorda os teus conhecimentos sobre aspetos da materialidade do livro, associando as palavras da coluna da esquerda ao respetivo significado presente na coluna da direita. Resolve o exercício no teu caderno:

1. Lombada2. Prefácio3. Portada ou página de rosto4. Sinopse 5. Bibliófilo 6. Índice7. Opúsculo8. Capa 9. Prontuário10. Adenda ou apêndice11. Bibliografia12. Manual13. Contraportada14. Posfácio15. Contracapa16. Glossário17. Pilha18. Biblioteca19. Orelhas, abas ou badanas20. Cólofon ou colofão21. Epígrafe22. Dedicatória23. Dicionário

a) Face posterior externa de um livro.b) Coleção de livros ou local onde se encontram armazenados c) Pequeno livrod) Referência tipográfica registada na última página de um livroe) Livro que reúne uma coleção alfabetada dos vocábulos de uma língua, com o respetivo significado ou tradução para outro idiomaf) Primeira página impressag) Face anterior externa de um livroh) Livro escolari) Parte lateral de um livro, que une a capa e a contracapaj) Texto final de um livro, com alguns esclarecimentosk) Cada uma das partes da capa e da contracapa de um livro que dobram para dentrol) Conjunto de livros amontoadosm) Pessoa que tem muita estima por livrosn) Texto em que o autor oferece a sua obra a alguém, geralmente numa página isolada do livroo) Sumário do conteúdo de um livrop) Acrescentamento, suplemento no fim de um livroq) Verso da portadar) Texto introdutório no início do livro, para apresentá-lo ou explicá-los) Lista, alfabeticamente ordenada, dos termos técnicos utilizados num livro e respetivos significadost) Listagem de obras consultadas ou sobre um determinado assuntou) Livro em que se expõem de forma breve e simples determinadas matérias e assuntosv) Relação dos capítulos, temas, palavras ou autores contidos num livro, com indicação da(s) página(s) em que surgemx) Frase ou citação colocada no início de um livro ou de um capítulo

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Relações interartísticas | 101

Atividade 2

1. Lê o excerto do prefácio incluído no livro Mar Meu, de Xanana Gusmão:

1.1. Refere a forma de poder que é atribuída à palavra e à poesia.

1.2. Explica as seguintes sequências:

a) “… pela mão de um homem se escreve Timor”; (l. 7) b) “… este homem (…) desqualificou as paredes…”. (l. 15)

1.3. Esclarece a expressividade dos verbos utilizados na frase: “Reclama o simples direito de ter um mar, um céu que, sem temor, embale Timor”. (l. 14)

1.4. Relaciona, quanto ao nível gráfico e de conteúdo, os dois últimos nomes da frase anterior.

1.5. Retira do excerto expressões relativas às atitudes de Xanana para conseguir, através de “um simples verso”, refazer o “Universo”.

2. Observa a reprodução da capa do livro Mar Meu – Poemas e Pinturas:2.1. Relaciona a sua apresentação com o título do livro.

2.2. Explora a expressividade do título principal.

2.3. Pesquisa informações sobre a vida e a obra dos dois escritores – Xanana Gusmão e Mia Couto – e apresenta as possíveis aproximações que se podem estabelecer entre ambos.

[...] Neste estilhaçar de tempo e mundo que lugar tem a solidariedade? Quanto nos pode ocupar a injustiça que ocorre distante quando, tantas vezes, fechamos os olhos àquela que tem lugar no nosso próprio lugar?Timor parece erguer-se como prova contrária a estes sinais de decadência. Afinal, há alma para sustentar causas, erguer a voz, recusar alheamentos. Uma nação distante se reassume como nosso lar, nossa razão, nosso empenho. O sangue que se perde em Timor escorre de nossas próprias veias. As vidas que se perdem em Timor pesam sobre a nossa própria vida. Foi assim que li os versos de Xanana. E naquelas páginas confirmei: pela mão de um homem se escreve Timor. Um livro de Xanana Gusmão não poderia ser apenas um livro. Por via da sua letra se supõe falar de um povo, uma nação. Há ali não apenas poesia mas uma epopeia de um povo, um heroísmo que queremos partilhar, uma utopia que queremos que seja nossa. [...] Quando perguntaram a Ho Chin Minh* como ele, em regime prisional, tinha produzido tão belos poemas de amor, ele respondeu: “Desvalorizei as paredes”. A estratégia da poesia será, afinal, sempre essa: a de desqualificar o escuro. Numa cela isolada, um homem escreve versos. Reclama o simples direito de ter um mar, um céu que, sem temor, embale Timor. Neste simples ato, este homem de aparência frágil desqualificou as paredes, convocou a nossa solidariedade e negou o isolamento. De novo, o tempo se abraça ao mundo e, no espreitar do novo milénio, nos chega mais um pretexto para acreditarmos que a justiça se faz por construção nossa. Afinal, um simples verso refaz o universo.

Mia Couto

* Líder vietnamita que desempenhou um papel preponderante na guerra entre o Vietname do Norte e o do Sul (1954-1975).

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102 | Relações interartísticas

IMAGENS

Atividade 3

1. Explica o provérbio chinês: “Uma boa imagem vale mais do que mil palavras”.

2. Observa o quadro, da autoria da pintora timorense Maria Madeira:

Maria Madeira, Rekonsiliasaun

2.1. Descreve-o, enumerando os elementos que o constituem.

2.2. Analisa a importância dos principais elementos plásticos – cores, traços, formas, texturas, …

2.3. Comenta a intenção subjacente à conjugação de palavras com imagens.

2.4. Esclarece a metáfora contida na representação de um tais rasgado.

2.5. Dá a tua opinião sobre a mensagem que se pretende transmitir, justificando.

2.6. Sugere um título para a imagem, apresentando as razões da tua escolha.

2.7. Desenvolve as ideias contidas nos fragmentos:

“Nenhuma iniciativa de renovação pode dar frutos se não for realizada num clima de caridade” e “Se passarmos o nosso tempo a criticar os erros do passado corremos o risco de perdermos o futuro”.

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Relações interartísticas | 103

Construir imagens (desenho, pintura, fotografia, colagem, vitral, tapeçaria, …)* O ENQUADRAMENTO

– A imagem constrói-se nos limites que determinam a escala do que é representado – panorama ou objeto em grande plano

– O efeito de profundidade é assegurado pela disposição das personagens ou dos objetos (do primeiro plano ao último plano), criando assim a perspetiva.

– As linhas

– As horizontais alargam o espaço

– As curvas sugerem o movimento (a desordem, a harmonia, …)

– As cores

– Os efeitos de harmonia são produzidos pelo degradé ou pela associação de cores complementares

– Os efeitos de contraste são criados pela utilização de cores diferentes ou pelos jogos de luz

– “A preto e branco” traduz uma escolha estética ou uma vontade de situar a ação no passado

– Os pontos fortes

– São as tonalidades claras ou escuras que contrastam com a dominante cromática ou os elementos situados na interseção das linhas de força; estes atraem o olhar e orientam a interpretação.

* baseado em Damien Bressy, http://pedagene.creteil/.iufm.fr/ressources/image

Ler imagens Ler um texto pressupõe a descodificação das palavras, das frases, procurando significados implícitos por trás das vozes e das entoações de quem lê. Do mesmo modo, ler uma imagem subentende um ato que descobre, decifra ou interpreta a linguagem e as mensagens contidas numa pintura, numa fotografia, … Há um vasto património visual – pintura, escultura, fotografia, arquitetura, etc. – que se constitui como marca de um tempo, incorporando símbolos de determinadas vivências. Estas e outras formas artísticas, tal como a literatura, permitem-nos compreender o mundo em que vivemos e em que nos realizamos, bem como as civilizações. As imagens podem ser lidas “literalmente”, como uma simples descrição ou enumeração dos seus elementos, ou com cariz subjetivo que depende do contexto, da(s) intencionalidade(s) com que são utilizadas e das possíveis sugestões que a interpretação da mensagem veicula. A imagem é uma linguagem visual, um meio de expressão que, pelos materiais, pelas técnicas ou pelas funções, contém traços comuns.

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104 | Relações interartísticas

Atividade 4

1. “Koalia Neneik Deit – Falar Baixinho – Quietly Speaking” é o título genérico de uma exposição de Maria Madeira, realizada na Casa Europa, em Díli, em abril de 2010. 1.1. Discute o sentido do título, procurando antecipar a temática da exposição.

1.2. Procura justificar os motivos pelos quais o título aparece escrito em três línguas.

2. Reflete sobre o valor das palavras, das imagens e do silêncio, a partir de algumas das frases da pintora que acompanham os quadros da referida exposição:

Embora às vezes eu só fale baixinho, muitas vezes a minha voz baixinha e solitária, é ouvida ruidosa e eternamente.

De facto, a minha cultura é oral, mas visualmente, muitas vezes fala baixinho.

E no meu silêncio sentido, a minha voz é muitas vezes ensurdecedora.

[...]

Eu estou, visual e ruidosamente, a fazer a diferença.

Maria Madeira, Catálogo da Exposição Koalia Neneik Deit

Atividade 5

1. Observa atentamente o quadro.

2. Ordena de forma sistemática as tuas observações:Geral – descrição em traços largos, tendo a preocupação com a concretização de vários planos observados, e transmitindo a apreensão global da imagem.Particular – descrição em busca do pormenor, tendo a preocupação com a definição do campo de observação (direita, esquerda, inferior, superior, planos), e detendo-te em cada um dos elementos

que compõem a(s) paisagem(ns).

3. Promove um debate sobre os modos possíveis de superar sentimentos de destruição e de sofrimento, e as formas de restaurar a esperança e garantir a reconstrução.

Maria Madeira, Gleno

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Relações interartísticas | 105

Atividade 6

1. Analisa o tríptico de retratos, assinados por Maria Madeira:

1.1. Efetua essa análise, tendo em conta: a) os elementos utilizados na construção da imagem; b) as opções cromáticas; c) a notação de alterações graduais do primeiro para o terceiro retrato; d) a correspondência com as etapas da vida.

1.2. Atribui um subtítulo a cada um dos retratos, justificando as tuas sugestões.

1.3. Narra a história de vida, de uma pessoa ou de um país, que o tríptico em análise sugere visualmente.

Atividade 7

1. Lê a imagem, tendo em conta a sua composição, construção e função.Pronuncia-te sobre o seu valor simbólico e intensidade emocional. 1.1. Comenta o facto de o quadro em questão não possuir um título.

1.2. Sugere um título expressivo para esta composição plástica e justifica a tua opinião de forma fundamentada.

Maria Madeira, Laiha Títulu

Retrato I Retrato II Retrato III

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106 | Relações interartísticas

Atividade 8

A lusofonia além da festa24 de outubro de 2011 Foi em pleno Festival da Lusofonia que as exposições da timorense Maria Madeira e da guineense Manuela Jardim abriram portas nas casas-museu da Taipa. Em comum têm o valor etnográfico e a ligação com Portugal [...].

“Passos Familiares” é uma exposição de altos e baixos. São cerca de 20 quadros, cabem todos numa sala só, mas contam histórias de esperança, de tristeza, de choque e de amizade. Maria Madeira deixou Timor em 1975 como refugiada. Viveu em Portugal até 1983, quando se mudou para a Austrália. Espera regressar a Timor--Leste em 2013, onde quer ficar permanentemente e trabalhar como artista e professora de Artes. “É para mim uma grande honra fazer parte dos países de língua portuguesa, é um grande orgulho”, diz de sorriso nos lábios. A exposição abriu no sábado mas já desde sexta-feira que a autora por ali anda, a gozar o festival. “Tenho cá estado todos os dias, adoro!”, conta. Começa por guiar o PONTO FINAL até ao quadro “Velas”, que é isso mesmo, uma composição em tons laranja com velas a arder. Algumas estão cobertas com o tecido tradicional timorense, o tais. Dali vem uma mensagem de esperança e celebração da paz: “Quando não há nenhuma luta ou problema, os jovens timorenses vão à praia, acendem velas e deixam-nas na água a navegar. É um sinal de agradecimento pela paz”. Timor-Leste é das nações mais jovens do mundo, mas essa independência teve um custo que Maria Madeira não esquece. “Os timorenses são um povo traumatizado e para quem ter paz é um milagre”, diz. O uso do tais, explica, é uma forma de dizer ao mundo que aquela é a sua cultura. A separar a paz da tortura apenas duas ou três telas. Os quadros em tons rosa deixam sentimentos dúbios: se por um lado têm uma certa aura romântica, com as marcas de batom a ensaiar beijos, por outro, os fios de tinta vermelha que por eles escorrem deixam adivinhar algo de errado. A instalação “Beije e não fale” é constituída por quatro quadros que refletem sobre a condição da mulher timorense. E têm origem numa história de arrepiar: “Quando estive em Timor pela primeira vez [depois de fugir] fiquei num quarto que tinha batom à volta da parede. Achei aquilo muito estra-nho e até pensei que fosse das crianças a brincar”. Uns meses depois, tendo ganhado confiança com o vizinho, perguntou-lhe qual a origem daquelas marcas vermelhas. “Ele disse-me que aquele era um quarto de tortura. As mulheres eram obrigadas a beijar a parede quando eram abusadas pelos militares indonésios”, conta. Maria Madeira considera importante que se fale sobre a tortura e o abuso sexual de que as mulheres timorenses foram vítimas. “Fala-se sempre do herói, dos homens que lutaram, mas a mulher também sofreu, também lutou pela libertação.” Hoje, confessa, a situação é “muito melhor”. “Ainda temos dificuldades mas por pior já não vamos passar. Já há esperança, sempre esperança”, reconhece.

Macau, bambu e arroz Na visita guiada por “Passos Familiares”, Maria Madeira faz questão de apontar dois quadros que realçam a ligação com Macau. “A primeira impressão que tive de Macau foram os prédios, com esses andares todos”, conta a artista de 42 anos. Em Timor, lembra, “não há prédios”. Ainda assim encontrou semelhanças entre os dois territórios, esses dois pontos lusófonos na Ásia: o arroz e o bambu. Madeira reparou que os andaimes de apoio à construção dos prédios em Macau são feitos em bambu, material muito comum em Timor-Leste. A gastronomia também lhe transmitiu um sentimento de proximidade: “Fiquei feliz por ir a qualquer restaurante e poder comer arroz, porque sou fã número um de arroz”. Desta ligação nasceu “Vizinhos”, composto por

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Relações interartísticas | 107

um prédio, imaginado em Macau, onde nas janelas foram coladas imagens de campos de arroz e de canas de bambu de Timor. “Ambiente Familiar” é também sobre Macau. O azul repleto de linhas que emoldura o quadro representa novamente o tais, a presença de Timor. Que aqui não é toda uma nação, mas a própria pintora Maria Madeira, que chegou a esta terra estranha e se surpreendeu pelo tanto português que por aqui encontrou. “Não sabia que havia tantos portugueses em Macau, fiquei muito espantada. Senti-me em casa quando li nomes como Avenida Almeida Ribeiro, foi bom ler o português aqui.” “Ambiente Familiar” reflete esse sentimento. À primeira vista é apenas um mapa de Macau desenhado à mão, onde se podem ler os nomes das principais avenidas. Mas um olhar mais atento revela por baixo o mapa de Portugal. A sobreposição de ambos é uma metáfora para o que a autora pensa de Macau. “Não falo chinês e os chineses não falam inglês, mas bastou eu dizer os nomes das ruas e eles perceberam. Macau tornou-se muito familiar por causa da língua portuguesa”, conta.

Vestir o pano guineense Na casa ao lado está Manuela Jardim, autora de uma exposição que é fruto de um projeto de investi-gação sobre os panos d’obra da Guiné-Bissau. A artista, que também faz parte do serviço educativo do Museu Nacional de Etnologia português, usa os panos como inspiração para as suas obras, que reproduzem os padrões e a textura do tecido. Os panos d’obra, oriundos de Cabo Verde e da Guiné-Bissau, “são extremamente ricos em termos etnológicos” porque “nos dão uma leitura social e política de uma época”. Tradicionalmente azuis, ab-sorveram a influência das sedas do Oriente e ganharam também bordados a cor. Ainda hoje elaborados, contam com vários séculos de existência: “São panos que já existiam no século XV, eram muito apreciados pela socie-dade guineense e também pelos navegadores portugueses”. Os motivos são “sempre geométricos” e há quem veja neles “uma influência árabe”. A chegada dos portugueses está contada em algodão e comprova-se pela presença da simbologia associada às caravelas. Mas não é só do passado longínquo que os panos d’obra falam. Nas colagens de Manuela Jardim vê-se um rosto familiar: Amílcar Cabral, uma das figuras mais emblemáticas da política guineense. “Em 1994, quando se deram as primeiras eleições, fizeram-se panos com a imagem de Amíl-car Cabral e com outros heróis da altura da guerra. Quis reproduzir esse elemento político. Porque além do fator social, os panos também refletem o contexto político”, explica a artista. No entanto, é na dimensão social que reside o grande fascínio dos panos d’obra, que os guineenses vestem do nascimento à morte: “Quando a criança nasce enrolam-na numa tira de pano chamada bandarém; depois, quando a jovenzinha de 12 ou 13 anos começa a namorar, tem direito a um pano chamado dana-rosto; quando casa recebe outro pano e quando está grávida outro diferente”. Isto acontece, explica, “para que a sociedade perceba que a pessoa está a atravessar aquela fase da vida”. A morte não é exceção: “Há uma grande tradição de enterrar com panos. Primeiro com brancos, depois com coloridos e finalmente com o canjandé, que é o maior e envolve totalmente o corpo”. Segundo Ma-nuela Jardim, o pano d’obra “é literalmente um apêndice físico e afetivo do corpo humano na cultura guineense”. “Agora perguntar-me-á: ‘toda a gente veste o pano?’ Não será tanto assim, estes panos são caros e é a sociedade mais abastada que os ostenta”, explica a investigadora. Os panos continuam a ser um sinal de estatuto social e é importante que sejam únicos no desenho e na elaboração. É por isso que são encomendados a um artesão, que se encontra pessoalmente com os clientes. Por vezes, estes até lhe entregam o desenho feito à mão. Depois disso, “para que ninguém conheça o segredo, o artesão desloca-se para o mato para fazer a composição final”.

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108 | Relações interartísticas

África moderna No primeiro andar da exposição encontra-se uma “África moderna”. A inspiração dos panos está lá, mas mistura-se com elementos contemporâneos como chips de computadores e CD. O suporte é o papel reciclado, todo feito à mão. A opção não foi ao acaso. Manuela Jardim procurava um material que mantivesse a sensação rugosa dos panos, que eram feitos de algodão grosso. Não encontrou no papel liso nem na tela esse “lado humano” dos panos. Por isso escolheu amassar o papel e refazê-lo manualmente. Responsável pelo serviço educativo do Museu Nacional de Etnologia, onde dirige workshops com crianças, Manuela Jardim dá muita importância à dimensão ecológica que está na base desta reciclagem e à utilização de materiais que, de outra forma, seriam desperdício. O uso que faz destes materiais vai a par das tendências que observa nos artistas africanos. “Todo o processo e mentalidade criativa em África recicla-se. O dinheiro não é muito, as pessoas não têm possibilidade de chegar aos materiais, mas criam na mesma”, explica a artista plástica. “Esse processo criativo fascina-me.” As exposições nas Casas-Museu da Taipa podem ser vistas até ao dia 20 de novembro. A entrada é gratuita. I.S.G.

http://pontofinalmacau.wordpress.com/2011/10/24/a-lusofonia-alem-da-festa/

Parte I

1. Enumera os temas que singularizam a pintura de Maria Madeira.1.1. Apresenta as motivações da pintora para a abordagem desses assuntos.

2. Refere os fatores que, segundo Maria Madeira, aproximam Timor-Leste e Macau, dois territórios cultural e geograficamente distantes.

3. O artigo de “Ponto Final” destaca alguns dos trabalhos que compõem a exposição “Passos Familiares”. Copia e completa o quadro no teu caderno diário, com base em informações textuais:

Títulos Descrição sumária Acontecimento(s) inspirador(es) Mensagem(ns)

“Velas”“Beije e não fale”“Vizinhos”“Ambiente familiar”

4. Consideras o título da exposição adequado? Justifica.

Beije e não fale (pormenor)

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Relações interartísticas | 109

Parte II1. Enumera os temas, as motivações e as técnicas que caracterizam a pintura de Manuela Jardim. 2. Refere algumas das características do pano d’obra que constitui a inspiração primordial de “África Moderna” – origens, influências, motivos, cores e simbologias. 3. À luz da descrição que é feita desta exposição, explica o sentido da afirmação “Todo o processo e mentalidade criativa em África recicla-se”.

Parte III1. Pesquisa informação sobre as duas artistas plásticas mencionadas e redige os respetivos curricula vitae.

O que é o Curriculum Vitae?O curriculum vitae (forma abreviada – CV) é um texto essencialmente informativo, que contém um conjunto de elementos sobre uma pessoa, em geral candidata a um emprego, um curso, etc. Estrutura O Curriculum Vitae apresenta-se dividido em rubricas, com informações bem destacadas, de leitura fácil, das quais devem constar:I – Dados pessoais Identidade (nome completo, filiação, data e local de nascimento, estado civil)Contactos (morada, telefone, endereço eletrónico)II – Formação académicaFormação escolar com referências aos graus e médias obtidosIII – Formação complementarFormação obtida fora do contexto escolar, como formação profissional, cursos de especialização, de línguas, etc.IV – Experiência profissional Estágios, postos de trabalho ocupados, etc., com indicação das respetivas datas de duração. V – Obras publicadas (se for caso disso)VI – Informações complementares Outro tipo de informações relevantes sobre capacidades e aptidões, tendo em conta os interesses do destinatário.

2. Aponta as afinidades e as dissemelhanças que podem detetar-se na vida e na obra das duas pintoras.3. As duas artistas encontram inspiração na panaria tradicional. Realiza um trabalho de pesquisa sobre o pano d’obra e o tais que te permita preencher a tabela-síntese, depois de a copiares para o teu caderno. Poderás consultar o catálogo The Art of Futus – From Light to Dark, disponível no link http://unesdoc.unesco.org/images/0018/001831/183129m.pdf:

Pano d’obra TaisOrigensTécnicas de tecelagem Fibras e tonalidades Motivos e padrões Finalidades

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110 | Relações interartísticas

Atividade 9

1. M. Gabriela Carrascalão é outro dos nomes femininos que se associam às belas-artes leste-timorenses da contemporaneidade. Para além da pintura, dedica-se também à escrita de poesia.

1.1. Elabora a descrição escrita e pormenorizada do seguinte quadro da sua autoria:

O TEXTO DESCRITIVO – Descrever permite mostrar o que se vê.

Planificação– Observa atentamente a imagem a descrever.– Repara como a composição da imagem se organiza: planos horizontais e/ou verticais.– Regista as cores predominantes, os contrastes, as harmonias, …– Anota as sensações sugeridas: visuais (as formas, as cores, os movimentos), olfativas e térmicas (os odores, as temperaturas, …), auditivas (os sons).– Indica as emoções sugeridas.

Textualização – Parte de um plano geral e, em seguida, descreve os pormenores mais significativos.– Explora as características/propriedades dos diferentes sentidos – visão, audição, olfato, paladar, tato –, escolhendo as palavras que exprimam as sensações sugeridas: de força ou de fragilidade, de silêncio ou de agitação, de texturas húmidas ou secas, cores quentes ou frias, áreas de sombra ou de luz, …– Exprime as emoções através da pontuação e do vocabulário. – Associa as formas, as cores, as texturas, os pesos, as dimensões, as metáforas, as comparações, …– Expõe uma visão de conjunto.– Aprecia globalmente as características do que vês.

Revisão – Lê o texto atentamente, verificando se corresponde à impressão que a imagem te causou ou ao que esta representa, e se organizaste os planos do geral para o particular, do mais próximo para o mais distante, do ascendente para o descendente.– Verifica a organização e a correção linguística.

M. Gabriela Carrascalão, Why must one pray for freedom

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Relações interartísticas | 111

A DESCRIÇÃO– aparece em forma de texto (geralmente curto) ou de sequência descritiva;

– é tendencialmente estática, proporcionando momentos de suspensão temporal ou pausas na progressão linear dos eventos;

– desempenha uma função dilatória: a digressão em torno de uma personagem ou de uma paisagem retarda a ocorrência

de determinados eventos;

– estabelece uma interação contínua e fecunda com os eventos, ganhando um papel de relevo na construção e na compre-

ensão global da história;

– é nos momentos descritivos que, regra geral, surgem os indícios, elementos que asseguram a previsibilidade das ações

das personagens;

– assegura plena compatibilidade entre o desenrolar das ações, os atributos das personagens e os condicionamentos do

meio;

– recorre, com frequência, a determinadas construções linguísticas – conectores, com uma função coesiva, coordenando

a temporalidade e o desenvolvimento dos momentos; circunstantes, que localizam o objeto descrito; verbos de estado e

verbos de ação; imperfeito do indicativo (mas também o presente e o futuro); predicados qualitativos e predicados funcio-

nais; decomposição do objeto descrito em subtemas; figuras de estilo (comparações, metáforas, sinédoques, metonímias).Síntese elaborada com base em Carlos Reis e Ana Cristina M. Lopes, Dicionário de Narratologia

Atividade 10

1. Uma imagem, um poema – muitos são os poetas que se inspiram em pinturas para escrever alguns dos seus títulos. 1.1. Escolhe um dos seguintes quadros de M. Gabriela Carrascalão que te agrade especialmente e, inspirando-te nele, constrói um poema. Poderás descrevê-lo, interpretá-lo ou simplesmente exprimir as emoções que a pintura te suscitar.

2. Propomos-te a realização de um concurso de poesia organizado a partir de um tema – os títulos dos quadros de M. Gabriela Carrascalão. Esta atividade pode ser desenvolvida na turma ou, melhor ainda, na escola. Na elaboração do regulamento do concurso, não poderás esquecer os seguintes pontos: a) obrigatoriedade de respeito pelo tema predefinido; b) garantia de anonimato dos concorrentes; c) definição do prazo de entrega; d) constituição do júri; e) data de divulgação dos resultados / entrega de prémios.

M. Gabriela Carrascalão, Moonlight Dancing

M. Gabriela Carrascalão, Juramento Soco Laran

M. Gabriela Carrascalão, Detalhes do Tais

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112 | Relações interartísticas

Atividade 111. Faz uma leitura silenciosa do poema de M. Gabriela Carrascalão:

2. Identifica as duas personagens do poema. 2.1. Refere as circunstâncias do seu encontro e a relação que se estabelece entre ambas.

3. Transcreve os verbos e os adjetivos que caracterizam a ação da personagem feminina.

4. Que papel desempenha a ambientação circundante na sua ação? Através de que elementos? Que efeitos exercem sobre a personagem masculina?

5. “O mancebo desafia / dança seu corpo / serpente sensual... / seus seios acaricia ...”. (v. 24)

Identifica as figuras de estilo presentes nestes versos e comenta o seu valor expressivo.

6. Analisa a expressividade do recurso a onomatopeias, reticências e pontos de exclamação.

7. Explicita o destaque atribuído, pela separação em nova estrofe, dos três últimos versos do poema.

8. Procede à subdivisão do poema e realiza uma leitura expressiva do texto a várias vozes, em colaboração com os teus colegas.

9. Seleciona um dos três quadros da atividade 10 que possa ilustrar a mensagem deste poema. Fundamenta a tua escolha, relacionando os títulos – do poema e do quadro – e destacando as aproximações evidentes entre si.

Loi Sa’e

é aparição!donzela dengosa,Vaidosa!o monte desce,silhueta ondulante,a lua iluminaé convite para o amor!O batuque gritade ritmo marcante....mais alto...Loi Sa’e geme...o mancebo encantaDança!...ao ritmo do batuqueLoi Sa’e, luz da luatoda ela se mexe ,é o eco do bamboleioseu corpo serpenteando...é som do roçar dos taisxiu! xiu! assa xiu ! assa xiu!Loi Sa’e, luz da luaDos suspiros em ais!Loi Sa’e...O mancebo desafiadança seu corposerpente sensual...seus seios acaricia ...ao ritmo do batuqueLoi Sa’e!À luz da luaO mancebo espia

donzela dengosa!Tebe à luz do luar!É noite para amar!

M. Gabriela Carrascalão, Timor das Acácias Feridas

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Relações interartísticas | 113

Atividade 12

1. A autora alia o poema “Alma Timor” à tela “Why must one pray for freedom”, analisada na atividade 9. 1.1. Sem leres ainda o texto, antecipa os motivos que poderão estar na origem dessa associação.

2. Faz uma leitura silenciosa do poema:2.1. Este poema, de matriz interventiva, constitui uma acusação e um apelo. Justifica.

2.2. A agonia de Timor é apresentada em diferentes momentos/estados. Transcreve os vocábulos que os traduzem.

2.3. Que motivos se encontram na origem do “sangue que corre” (v. 17) e da “bala que mata” (v. 18)?

2.4. Como reage o mundo? E Timor?

2.5. Explica as razões pelas quais o sujeito poético opta pelo emprego de maiúsculas no último verso.

2.6. Relaciona o último verso do poema com o seu título.

3. Realiza uma nova leitura do poema, em parceria com os teus colegas de turma.

Alma TimorCai uma gota... e outra...outra gota cai! escorrecomo um rio que desliza...no leito turbulentode voz roucaum gemer... lamurianteum murmurar agonizanteouve-se um estrondo.... e outro ...mais outroa gota continua a cair,junta-se outraDeus nosso Senhor...Porquê?A gota cai, é sangue que corre...é a bala que mata ...é o Timor que morre!..E o Mundo apático!...não move!

Cai uma gota, oiço um estrondoe outro ... mais outro....Nem um grito, nem um gemer...Timor ... Morre!!!!Não vês! Howard, Evans, Downer!!!Espantalho materialista...vê!Olha à tua volta...A gota que cai é do Timor...É sangue...que trocaste por petróleo!...Vê...o Timor Morre!!!!Sua Alma... viva continuaforte, cheia de dignidade,É Alma que luta,Que vive e dá vida a Timor,É voz que te perseguee que grita!...Enquanto há um Timor!TIMOR NÃO MORRE!

M. Gabriela Carrascalão, Timor das Acácias Feridas

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114 | Relações interartísticas

Atividade 13

1. Lê atentamente outro poema da mesma autora:

2. Demonstra como, neste texto, se reitera a mensagem do poema anterior.

3. Neste poema, alude-se à cumplicidade entre a natureza e Timor. De que forma?

4. O poema encontra-se dividido em dois momentos – ontem e hoje. Caracteriza-os.4.1. Destaca o facto que determina a diferenciação entre os dois tempos.

5. Explicita os múltiplos sentidos atribuídos ao verbo “florir”, sugeridos pela sua proximidade fonética com o verbo “ferir”.

Timor das Acácias Feridas Ontem...Em Timor as Acácias floriramde flores encarnadas...Floriram de flores brancas, amarelasesvoaçantes, dengosas, tagarelas,alegres cantando a liberdade!

Em Timoras Acácias floriramde flores alegres de viversorrindo e desafiandoo sol, o vento, o mar....e o canto do lakateu

Em Timoras acácias floriramde flores...mas hoje floriramde flores vermelhas …tintas de sangue do TIMOR…que geme , suplica e gritapela liberdade perdida...

Em Timor as acácias floriram...Floriram?...Não! Não, irmão!...Em Timor...As acácias não mais floriramporque em Timor...Nem mesmo as acáciastêm liberdade de florir!!!!

M. Gabriela Carrascalão, Timor das Acácias Feridas

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Relações interartísticas | 115

Atividade 14

M. Gabriela Carrascalão, Confusão

1. Lê a imagem, anotando as observações, as sensações, os sentimentos e as interpretações que a mesma te sugerir.

2. Relaciona a imagem com os poemas “Alma Timor” e “Timor das Acácias Feridas”, assinados pela artista plástica.

3. Redige um texto expressivo e criativo, a partir do título do quadro – Confusão – e da observação minuciosa que efetuaste do quadro.

i A escrita expressiva e criativa é uma manifestação de diferentes sensibilidades e subjetividades, permitindo desenvolver um processo de reconhecimento de si próprio e do outro, partilhando experiências e olhares do mundo e sobre o mundo. O texto criativo pode ser motivado por estímulos pictóricos ou musicais, imagens ou situações, sensações ou memórias, e escreve-se para criar realidades imaginárias, brincando com as palavras, com rima ou sem ela, com recursos estilísticos (aliterações e assonâncias, metáforas e antíteses, hipérboles e personificações, …), e utilizando a pontuação de forma sugestiva.

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116 | Relações interartísticas

Atividade 15

1. A arte encontra diferentes formas de linguagem para se manifestar.1.1. Estabelece pontos de contacto entre o poema e o quadro.

1.2. Justifica o primeiro verso das estrofes em função do título do poema.

2. O poema constrói-se de acordo com uma progressão lógica associada às fases do dia.2.1. Recorrendo a exemplos textuais, evidencia essa progressão.

2.2. Relaciona cada fase do dia com os verbos utilizados em cada uma das estrofes.

2.3. Demonstra como a progressão textual acompanha a intencionalidade do sujeito poético.

2.4. Comenta o uso da pontuação nesta composição poética.

Oh! LiberdadeSe eu pudessepelas frias manhãsacordar tiritandofustigado pela ventaniaque me abre a cortina do céue ver, do cimo dos meus montes,o quadro roxode um perturbado nascer do sola leste de Timor

Se eu pudessepelos tórridos sóis cavalgar embevecidode encontro a mim mesmonas serenas planícies do capime sentir o cheiro de animaisbebendo das nascentesque murmurariam no arlendas de Timor

Se eu pudessepelas tardes de calmasentir o cansaçoda natureza sensualespreguiçando-se no seu suore ouvir contar as canseirassob os risosdas crianças nuas e descalçasde todo o Timor

Se eu pudesseao entardecer das ondascaminhar pela areiaentregue a mim mesmono enlevo molhado da brisae tocar na imensidão do marnum sopro da almaque permita meditar o futuro da ilha de Timor

Se eu pudesseao cantar dos grilosfalar para a luapelas janelas da noitee contar-lhe romances do povoa união inviolável dos corpos para criar filhose ensinar-lhes a crescer e a amara Pátria Timor!

Xanana Gusmão, Mar Meu – Poemas e Pinturas

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Relações interartísticas | 117

Atividade 16

1. Observa atentamente a imagem e lê o poema:

Timor,no poder do sagrado da natureza.

O sagrado da terra e do céu, das montanhas,das florestas, das ribeiras,das lagoas, do mar,dos animais,das estrelas,da lua,do sol.

Timor,onde o poder sagrado emana de tudo que é visível e invisível,onde o sagrado de todas as coisas habita na “Uma Lulik”,onde os antepassados são considerados sagrados.

Timor,onde a relação entre a vida dos homens vivos e mortos é inseparável,o mundo físico influencia o mundo espiritualou vice-versaum influencia o outro.

Timor,o mundo sagrado do sol nascente.

Hercus Santos

1.1. Salienta a coincidência na intencionalidade da mensagem patente nas duas modalidades de expressão artística.

1.2. Faz a legenda dos elementos que constituem a imagem, com recurso exclusivo a vocábulos ou expressões do poema.

2. Explica os versos: “onde a relação entre a vida dos homens vivos e mortos é inseparável, / o mundo físico influencia o mundo espiritual / ou vice-versa” (v. 20).

3. Define, por palavras tuas, o significado de “Uma Lulik”.

Luca, Uma Lulik

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118 | Relações interartísticas

Atividade 17

SEXTA-FEIRA, 20 DE ABRIL(Entre náufragos)

Voamos outra vez, agora com destino a Timor Lorosae, e novamente sobrevoando ilhas. Estas, porém, parecem mais secas, menos exuberantes, de um verde esparso e fatigado. Passamos sobre o cone de um vulcão. Um lago de um amarelo muito intenso brilha dentro dele como num copo. Visto daqui é impressionante. Díli, Timor. Somos atendidos na Polícia de Fronteiras por um simpático funcionário americano. Para aqueles mais ingénuos, ou menos avisados, que acreditavam ter aterrado num país lusófono, foi um choque – o primeiro. A impressão inicial, ainda no autocarro que nos conduz ao hotel, é de um extremo desalento. Díli lembra uma cidade de náufragos. As pessoas reorganizam o quotidiano com os salvados do grande desastre. Estão sentadas nas traseiras de vivendas carbonizadas, em barracões construídos de improviso nos quintais, ou em tendas na praia. Vagueiam às dezenas, sem rumo aparente, entre ruínas. Os carros não possuem matrículas ou possuem-nas – mas soam como fantasias impossíveis. Fixo uma: macho. Para conduzir um veículo naquele estado, não duvido, é necessário alguém muito macho. Macho ou fêmea, tanto faz, mas muito macho. O nosso hotel está situado diretamente sobre o mar, em frente à praia de Díli, com uma vista privilegiada sobre o porto e a cidade. Esta é a perspetiva otimista. Trata-se na realidade de uma larga plataforma de ferro, ancorada a alguns metros da praia, e sobre a qual se equilibram várias dezenas de contentores. A vista é deprimente. Não posso deixar de me lembrar de Luanda. Foi na capital de Angola que vi pela primeira vez contentores a servirem de habitação. Um contentor com uma janela rasgada à força na lâmina de ferro pode ostentar com orgulho o seguinte letreiro – salão de beleza. Três contentores empilhados são um shopping center. Quatro, um grande hotel. Para alcançar o meu quarto, no terceiro piso, subo à força de braços por uma escada metálica, presa no aço dos próprios contentores. Existe no entanto um acesso mais seguro através de escadas convencionais. Para minha surpresa o quarto dispõe de ar condicionado e de dois beliches muito confortáveis. […]

(deus on) No avião, com destino ao aeroporto de Denpasar, a capital de Bali, vendo pela janela sucederam-se lá muito em baixo as ilhas cor de esmeralda – contas de coral de um colar imenso –, volto a pensar na decisão de Luís Cardoso, e nas palavras de paz e de esperança que escutamos de Xanana Gusmão, Ramos Horta e Dom Basílio do Nascimento. Timor é um território pequeno e, nesta fase, carente de quase tudo. Possui no entanto o principal para que possa vir a ser um país viável: as pessoas, uma mão-cheia de dirigentes políticos de grande qualidade. Os recursos petrolíferos, ainda não explorados, o café e o turismo podem, se bem geridos, transformar o território num pequeno oásis de prosperidade. Reparo numa inscrição nas asas do aparelho: no Step. Na posição em que me encontro, porém, a palavra surge torcida e do avesso, de forma que posso ler claramente – e com surpresa! – deus on. Parece-me um sinal auspicioso. Deus está finalmente on sobre os céus de Timor. Reclino a cadeira e durmo.

José Eduardo Agualusa, Na Rota das Especiarias – Diário de uma Viagem a Flores, Bali, Java e Timor Lorosae

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Relações interartísticas | 119

1. Nesta viagem, José Eduardo Agualusa começa por apresentar uma comparação entre ilhas. Como as caracteriza?

2. Díli motivou impressões de desalento no escritor-viajante. Justifica-as.2.1. Interpreta a alusão metafórica entre parênteses que subintitula o primeiro fragmento textual: “(Entre náufragos)”.

2.2. Que semelhanças existem entre Díli e Luanda, a capital do seu país de origem?

3. No momento da partida, a perspetiva do viajante é francamente otimista. Porquê?

4. “Deus está finalmente on sobre os céus de Timor”. Imagina-te na pele de um visitante a Timor em 2030. Regista, sob a forma de um diário de viagens, as impressões que este país, que constitui atualmente ainda a possibilidade de “um oásis de prosperidade”, poderá causar. Sugerimos que, para enriquecer o teu relato, incluas desenhos que ilustrem e complementem as tuas palavras.

5. Comenta os desenhos de João Queiroz que acompanham o registo escrito da viagem, tendo em conta as informações que acrescentam ao texto verbal.

Na Rota das Especiarias, desenhos de João Queirós

i O diário de viagem agrupa relatos de experiências em torno de viagens. Os primeiros registos aparecem a partir do século X, no Japão, como testemunho das viagens a que se submetiam padres e oficiais. Incluíam, frequentemente, prosa narrativa e descritiva, bem como poesia, e era um género altamente reconhecido pelo seu valor histórico e literário. O diário de viagem, muito comum nos séculos XV-XVIII, trazia informações sobre a geografia específica, possibilidade de rotas, fauna e flora, mas também curiosidades sobre os povos nativos e a expressão de sentimentos associados a cada uma das experiências. Os Descobrimentos Portugueses, por exemplo, geraram um conjunto de textos, entre os quais os diários, incluídos naquilo a que se convencionou denominar “literatura de viagens”.

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120 | Relações interartísticas

Atividade 18

1. Lê o seguinte poema:

Paisagem No fundoAlém da fortaleza sonhadora,das acácias em flor,a cidade espalhada em colinas,da cascata de vidros nas encostas,do voo disparado daqueles patose do calor da tua mão,no fundo, feito paisagem indiferente,o ruído do mar.Monótono, constante, distraído,marcando-me o compasso ao pensamento.E o pôr do sol, as nuvens cor de fogo,a cinza abrasada, um dongo na baía,a fortaleza debruçada, além, como espreita para além do mar…Toda a beleza cálida me fere, só porque o mar, monótono, indiferente,repete aquelas frases, cáusticas, brutais,que eu trouxe no meu peito com vinte anosos versos de combate,o meu olhar altivo,as horas de visãoe os passos muito incertos e tão fortesque eu sentia no rumo do futuro.

Há uma sombra no céue uma névoa nos meus olhos.As janelas apagam-se em penumbra,o dongo atravessou a água mansae a tua mão aquece a minha mão. E a tua mão aquece a minha mão. Crispas os dedos, sentes esta angústia: a beleza completa-se com dor.Ao fundo, o mar, o mar que nos embala e nos conforta,o mar…Ó meu amor, e diz,eu ouço, ele diz,que a alma não está gasta,a ânsia não está morta,se os olhos são capazes de chorar!

Cochat Osório,

http://poeticasemportugues.blogspot.com/search/label/Cochat%200s%C3%B3rio%28Timor%29

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Relações interartísticas | 121

1. Identifica os elementos da natureza que compõem a paisagem descrita no poema.1.1. Associa a cada um desses elementos um adjetivo que se coadune com a mensagem do poema.

2. Transcreve expressões textuais que exprimam as diversas sensações com a ajuda deste esquema, depois de o copiares para o caderno:

Visuais Auditivas Táteis

3. Refere os sentimentos que a contemplação desta paisagem desperta no sujeito poético.3.1. Que circunstâncias de vida estarão na origem desses sentimentos?

3.2. Identifica o recurso estilístico presente no verso “e os passos muito incertos e tão fortes”, e comenta o seu valor expressivo.

4. Comprova que o poema se organiza em função de uma analepse.4.1. Esclarece os efeitos contrastantes (antes e agora) sugeridos na descrição do mar.

4.2. Menciona os traços da personalidade do sujeito poético em ambos os momentos.

4.3. Em que medida se pode afirmar que a passagem do tempo não atenuou as convicções do sujeito poético?

5. Explica a dimensão metafórica dos versos “Há uma sombra no céu / e uma névoa nos meus olhos” (v. 37)

6. Pesquisa o significado do termo écfrase. 6.1. Parece-te que este poema apresenta uma dimensão ecfrástica? Justifica.

7. Seleciona uma fotografia ou um desenho que possa ilustrar o cenário descrito no poema.7.1. Associa-lhe uma legenda expressiva.

8. Interpreta a mensagem contida no verso “a beleza completa-se com dor” (v. 34).

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122 | Relações interartísticas

Atividade 19 (outras paisagens...)

1. Transcreve os elementos textuais que caracterizam o espaço físico desta (outra) paisagem.

2. Atenta nas crianças e retrata-as de acordo com o olhar do sujeito poético.

3. O sujeito poético visualiza artisticamente “as ilhas” e “Cada criança”. Que sentimentos estão implícitos nesta transfiguração poética?

4. Relaciona o título com a mensagem do poema.

5. Comenta a expressividade visual da mancha tipográfica desta composição poética.

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Porta de SolIDas colinas de colmocom portas de solDescem criançasnuas e magrascomo violasAs costelas dentro das cordasTodas primogénitasdo mesmo ventreE filhas Do mesmo vulcão E da mesma violaDa mesma rocha E do mesmo grito

IIA ilha roda no rosto da criançaCom a “vareta presa” na roda do vento

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IIINem sempreA criança respiraum pulmão roto de mapasE assimcomo as ilhasAo pôr do SolSe alimentam de fonemasCada criança É ditongo de leitecom sangue nas vogais

Corsino Fortes, A Cabeça Calva de Deus

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Relações interartísticas | 123

Atividade 20 (outras paisagens...)

MonangambaNaquela roça grande não tem chuvaé o suor do meu rosto que rega as plantações:

Naquela roça grande tem café maduroe aquele vermelho-cerejasão gotas do meu sangue feitas seiva.

O café vai ser torrado,pisado, torturado,vai ficar negro, negro da cor do contratado.

Negro da cor do contratado!

Perguntem às aves que cantam, aos regatos de alegre serpenteare ao vento forte do sertão

Quem se levanta cedo? Quem vai à tonga?Quem traz pela estrada longaa tipoia ou o cacho de dendém?quem capina e em paga recebe desdémfuba podre, peixe podre,panos ruins, cinquenta angolares,“porrada se refilares”?

Quem?

Quem faz o milho crescere os laranjais florescer – Quem?

Quem dá dinheiro para o patrão comprarmáquinas, carros, senhorase cabeças de pretos para os motores?

Quem faz o branco prosperar,Ter barriga grande – ter dinheiro? – Quem?

E as aves que cantam, os regatos de alegre serpenteare o vento forte do sertãoresponderão:“Monangambééé…”Ah! Deixem-me ao menos subir às palmeirasDeixem-me beber maruvo, maruvoe esquecer diluído nas minhas bebedeiras“Monangambééé”

António Jacinto, in 50 Poetas Africanos (org. de Manuel Ferreira)

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124 | Relações interartísticas

1. Assinala com uma cruz a afirmação que te pareça mais correta:1.1. Monangamba trabalha e em troca recebe…

a) … muito dinheiro. b) … sobranceria e benefícios insignificantes. c) … elogios do patrão. d) … remuneração justa pelo seu trabalho.

1.2. A única referência eufórica no texto consiste na alusão …

a) … a máquinas, carros, senhoras. b) … ao vento forte do sertão. c) … à bebida. d) … aos elementos da natureza.

1.3. “O café vai ser torrado, / pisado, torturado” (v. 6) é uma expressão que…

a) … indica o processo de transformação do café. b) … simboliza o sofrimento do “contratado”. c) … mostra que o “contratado” é dono do café. d) … traduz o atraso da tecnologia em África.

1.4. “Quem faz o branco prosperar” (v. 27) sugere que…

a) … o patrão é muito pobre. b) … o branco é solidário. c) … o patrão tem um vasto património. d) … o patrão é um habitante de Portugal continental.

1.5. No final do poema, o sujeito poético manifesta o desejo de…

a) … ser livre. b) … ir para a taberna. c) … ir à caça. d) … ter férias.

1.6. Os recursos estilísticos presentes na expressão “aos regatos de alegre serpentear” (v. 31) são…

a) … metáfora e comparação. b) … personificação e metáfora. c) … personificação e comparação. d) … antítese e comparação.

2. Transcreve as expressões textuais que permitem identificar o espaço a que o poema faz referência.

3. Descreve o estado emocional do sujeito poético.

4. Enumera as tarefas desempenhadas por Monangamba, o “contratado”, na roça.

5. Sugere outro título para o poema, justificando a tua opção.

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Relações interartísticas | 125

6. Na Declaração Universal dos Direitos do Homem, lemos, no art.º 2: “Todos os seres humanos podem invocar os direitos e as liberdades proclamados na presente Declaração, sem distinção alguma, nomeadamente de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião política ou outra, de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra situação”.6.1. Expõe a tua opinião sobre a importância deste documento na defesa do respeito pela condição do ser humano.

7. Pesquisa informação sobre a vida e a obra de Corsino Fortes, de António Jacinto e outros poetas da comunidade da língua portuguesa.7.1. Organiza uma antologia poética por autor e país.

7.2. Em trabalho de turma, prepara um festival de poesia, declamando os poemas reunidos nessa antologia.

iDeclamação

Preparação Ensaio RealizaçãoLer silenciosamente;Compreender e interpretar a mensagem.

Ler em voz alta, exercitando a correspondência entre a expressão escrita e a execução oral.

Declamar o poema perante um público.

Aspetos a considerar na declamação

Dicção Entoação Posição da voz Expressão corporalpronúncia clara e correta dos sons vocálicos e consonânticos, interpretando o sentido dos vocábulos, a pontuação ou a sua ausência, as interjeições e as onomatopeias, os diversos sentimentos e estados, …

alto e/ou baixo; forte/fraco

rápido e/ou lento; ascendente/descendente; valorização das pausas

contração/descontração dos músculos faciais; ex-pressividade do olhar; posicionamento da cabeça; movimentos e gestos con-tidos/discretos ou expansi-vos/exuberantes.

Page 128: Tecnologias Multimédia 12º - Manual do Aluno

126 | Relações interartísticas

Atividade 21

1. Escreve um texto, em prosa ou em verso, sobre a tua cor preferida, referindo as memórias, as sensações e os sentimentos que a mesma evoca. Não te esqueças que uma atividade escrita deve ter em conta a planificação prévia (esquema das ideias e sua organização) e a revisão (leitura do texto e, caso seja necessário, correção e/ou reformulação de algumas partes).

iSimbologias cromáticas

Branco – síntese de todas as cores, simboliza a pureza de alma; é a cor da paz e da perfeição. Pode simbolizar a candura e a claridade mas, ao mesmo tempo, a palidez, a frieza e a esterilidade. Preto – cor que absorve as demais, é o símbolo da escuridão, da interrupção da vida, do sofrimento, da dor, do silêncio, do abismo, do medo. Vermelho – cor do fogo, do perigo e da paixão, simboliza a coragem e a vitalidade e, no Oriente, representa a felicidade. Laranja – cor do aconchego e do bem-estar, simboliza o otimismo, a generosidade e o equilíbrio.Amarelo – cor do sol e da luz, símbolo de riqueza e de alegria.Verde – relacionada com a natureza, princípio e fim de tudo, representa o equilíbrio, a juventude, a prosperidade e a esperança.Azul – cor da purificação e da busca da verdade interior; é a cor do mar e do céu e pode exprimir aproximação ou distanciamento. Simboliza a serenidade, a harmonia, o amor e a fidelidade.Anil – cor da espiritualidade em sintonia com a matéria; remete para a racionalidade e exprime reserva e introversão. Tal como o azul, simboliza a fidelidade.Violeta – cor energia cósmica, da alquimia, da magia, da espiritualidade, da intuição e da inspiração. É símbolo da transformação e da profundidade.Rosa– é o símbolo do amor e do coração, resultando da combinação da pureza do branco com a força do vermelho.Castanho – representa a terra, a solidez e a estabilidade.

Page 129: Tecnologias Multimédia 12º - Manual do Aluno

Relações interartísticas | 127

Atividade 22

1. Observa atentamente as duas telas, assinadas por dois artistas plásticos timorenses.

2. Procede à leitura das imagens, copiando para o teu caderno os seguintes parâmetros:

Aspetos da personagem (rosto, cabelo, olhar, vestuário, …)

Aspetos da técnica pictórica (contraste luz/sombra, relação cor/luz, …)

Quadro A

Quadro B

2.1. Destaca a expressividade dos constituintes plásticos – cores, traços, formas, texturas – de cada um dos retratos.

2.2. Estabelece as semelhanças e as diferenças entre as duas personagens retratadas.

2.3. Comenta os títulos atribuídos às pinturas, explorando as sensações e os sentimentos que sugerem.

3. Redige uma estória, cujo protagonista seja a figura de um dos dois retratos à tua escolha.

Quadro A – Abe, Katuas Quadro B – Natalino, Futuro Naroman

iEstória

Pretendendo marcar o caráter de ficcionalidade de uma narrativa, alguns escritores utilizam este neologismo, em oposição à história, que teria maior comprometimento com a realidade. Grosso modo, estória corresponderia ao inglês story, que se opõe a History, a historiografia, e costuma apresentar também o aspeto da brevidade (short story). No entanto, há que considerar ainda três outros traços que marcam este conceito: o cariz popular, a oralidade e uma certa aura de maravilhoso. Foi assim que o termo apareceu pela primeira vez, em 1962, aquando do lançamento do livro de contos de Guimarães Rosa – Primeiras Estórias. Nestes ressalta o esforço do escritor em valorizar a palavra, em criar uma linguagem adequada à representação do mundo mítico do sertão, para o que utiliza arcaísmos e termos de sabor popular, como estória.

Biblos – Enciclopédia Verbo das Literaturas de Língua Portuguesa, vol. 2

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128 | Relações interartísticas

Atividade 23

1. Observa a pintura, da autoria de Tony, e responde às questões, selecionando as opções corretas:

1.1. O quadro representa um ambiente:

a) interiorb) exteriorc) abstrato

1.2. O conjunto pictórico destaca:

a) máscaras do quotidianob) a graduação cromáticac) o universo identitário de um povo

1.3. Neste quadro, evidenciam-se:

a) rostos e figuras humanasb) símbolos da cultura de Timorc) a geografia do país

1.4. O pintor privilegiou:

a) o plano de fundob) o primeiro planoc) o lado direito

2. Sobre o quadro em causa, escreve três frases apreciativas, incluindo em cada uma delas as seguintes palavras – enquadramento, harmonia, realce.

3. Pronuncia-te sobre as figuras, os traços, as cores e os contrastes e explica em que sentido a imagem constitui um símbolo da identidade timorense.

4. Pesquisa informação sobre o pintor que assina esta tela.4.1. Redige a sua biografia.

4.2. Apresenta uma interpretação pessoal e fundamentada sobre a sua obra, tendo em conta os temas e os mundos sugeridos, bem como as cores predominantemente utilizadas e respetivas simbologias.

Tony, Tais ho Kalbauk

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Relações interartísticas | 129

Atividade 24

1. Se a leitura de imagens depende, em boa parte, do sentido da visão, conjetura sobre as formas como as pessoas invisuais poderão desfrutar das artes pictóricas.

2. Imagina as respostas possíveis para as perguntas “De que cor é o vento?”, “Porque é que a pintura é bela?” ou “O que se pode contar das nuvens e do sol?”.

3. Lê atentamente o seguinte texto:

Um percurso tátil “Diga-me de que cor é o vento”. Esta pergunta, feita por uma rapariguinha cega, fez-me um dia desejar

que as crianças cegas visitassem o museu em que trabalhava e encontrar, com elas, respostas para as suas perguntas difíceis: porque é que a pintura é bela? O que se pode contar das nuvens, do sol, do vento?

Descobrimos então que os nossos cinco sentidos balbuciam mal, enquanto elas, com os seus quatro sentidos, chegam a maravilhas que são tantas outras lições: encontrar o traço de um cheiro, ler um sorriso com as pontas dos dedos, ouvir a fadiga de uma voz ou a sua ternura. Raros são os museus que atraem os cegos. E muito raros são os que têm a sorte de aprender, graças a eles, a ver com os olhos fechados, a medir o volume de uma peça pelo barulho das chaves na algibeira, a descobrir que as crianças cegas são alegres, que não lhes interessa a nossa piedade – a que as encerra na sua cegueira – mas que é possível partilhar com elas alegremente a vida, tal como ela se nos revela: cheia de riscos a assumir e rica de experiências.

Esta é a história desta exposição construída como um puzzle, com escultores, animadores, cegos, arquitetos, investigadores, pais, médicos, cada um deles trazendo o que tinha: uma boa ideia, um jogo, uma indicação bibliográfica, um labirinto, uma caixa de velocidades desmontável, bolas de argila, texturas de fio, uma escultura, um conto, um riso, uma página de Braille, e o dinheiro que nos faltava apesar de todas as boas vontades (…).

Limitar esta exposição à visita de deficientes visuais seria trair o objetivo de uma Educação pela Arte, relativamente à integração social da globalidade das crianças.

Concebida para crianças, é uma exposição para todos (e não apenas para invisuais), aberta a experiências diversas sobre diversas formas de VER e constitui um estímulo à pesquisa interna do museu para a recriação de modelos de animação que garantam, cada vez mais, a acessibilidade das suas coleções. Tratando-se de uma exposição mista – as obras de Arte Contemporânea incluem-se num conjunto de outras secções – e intencionalmente articulada para um “percurso tátil”, entende-se que a pedagogia que a enforma e as explorações didáticas que a animam são fundamentais à desejável utilização do público”.

Catálogo referente à exposição “As Mãos Livres”, em Lisboa, em 1980,

(na sala de Exposições Temporárias do Museu Calouste Gulbenkian).

3.1. Tendo em conta o texto que acabaste de ler, explica a diferença entre os verbos OLHAR e VER.

3.2. Transcreve do dicionário a definição da palavra “deficiente” e debate, com os teus colegas, a abrangência desse conceito.

3.3. Reflete sobre estratégias possíveis para a construção de um mundo cada vez mais inclusivo.

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4. O cartaz publicitário que a seguir se reproduz pretende assinalar o Dia Internacional da Pessoa com Deficiência.

4.1. Justifica a necessidade (ou não) de se comemorar o Dia Internacional da Pessoa com Deficiência.

4.2. Esclarece a intencionalidade do recurso a sinais gráficos, como o parêntese, o apóstrofo e os pontos de exclamação, nas últimas frases: “Quanta (pa)ciência! Tanta (d) eficiência! Afinal é normal ser imperfeito… é d’Homem!”.

4.3. Pesquisa informações sobre uma das personalidades referidas no cartaz e apresenta-a à turma.

4.4. Comenta o slogan.

5. Imagina que, este ano, tu (e a tua equipa) foste incumbido da tarefa de elaborar o cartaz comemorativo deste dia. 5.1. Em trabalho de grupo, procedam à criação de um cartaz publicitário para assinalar a data.

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Relações interartísticas | 131

Atividade 25

1. Considera este outro cartaz publicitário:1.1. Procura identificar:

a) O produto que se pretende promover.b) O público-alvo ao qual se dirige.c) A(s) simbologia(s) do texto icónico.

1.2. Analisa e comenta a imagem, distinguindo os elementos que a constituem e o seu lugar (central, lado direito, lado esquerdo, …).

1.3. Como classificas esta publicidade? Comercial ou institucional? Justifica a tua resposta.

2. Verifica a validade da leitura que fizeste do anúncio, lendo atentamente a notícia:2.1. Tendo em conta as informações da notícia, refere:

a) O motivo da criação deste anúncio publicitário; b) O local e a data da realização do evento para o qual foi criado;c) O tema global da exposição e o subtema abordado por Timor-Leste;d) As razões que fundamentam as referidas temáticas.

3. Comenta as explicações fornecidas sobre o símbolo criado, avaliando a sua adequação e/ou pertinência.

4. Apresenta os benefícios que a realização deste evento traz para Timor e para o mundo.

Timor-Leste na Expo 2012 com a MyBrand 27 de junho de 2012, por Pedro Durães A MyBrand foi a agência responsável pelo desen-volvimento da marca com que Timor-Leste vai estar pre-sente na exposição internacional Expo 2012, que decorre na cidade de Yeosu, na Coreia do Sul. A exposição tem como tema A Vida do Oceano e da Costa, diversidade de recursos e atividades sustentáveis, tendo como objetivo “impulsionar um crescimento económico sustentado nos recursos do mar, respeitando o meio ambiente”. Nesse sentido, a participação do jovem país segue o mote Águas Cristalinas e Areias Brancas, sendo que o que foi pedido à agência passou por “criar uma marca para a presença de Timor-Leste que traduzisse/ilustrasse a lenda da formação de Timor-Leste e que fosse ao encontro do posicionamen-to que se pretendia”, ou seja, “mostrar que Timor-Leste é membro de pleno direito daquela comunidade de países e que é um país jovem, mas com história, com uma lenda profundamente enraizada no ambiente marítimo”, lê-se em comunicado.

Para isso, a agência criou um símbolo “que é uma estilização da forma do crocodilo” e “a sua utilização na diagonal remete para a forma da ilha. As formas circula-res presentes no símbolo representam as ondas do mar, remetendo para o tema central da exposição”, explica-se. “Ao nível formal, o símbolo faz ainda referência ao Kaibauk (um acessório tradicional Timorense) e ao Surik (a espada tradicional Timorense). As cores, encarnado e amarelo, fa-zem parte da bandeira de Timor-Leste e o azul fortalece a associação aos oceanos”, acrescenta-se. A Expo 2012 ter-mina a 12 de agosto.

http://www.meiosepublicidade.pt/2012/06/27/timor--leste-na-expo2012-com-a-mybrand/

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132 | Relações interartísticas

Atividade 26

1. Observa e descreve o cartaz que divulga a realização de uma exposição fotográfica:

1.1. Sugere os sentimentos das figuras representadas, tendo em conta as expressões faciais e/ou a postura corporal.

1.2. Propõe frases que exprimam os pensamentos das quatro pessoas, no momento da captura dos instantâneos.

1.3. Participa numa atividade de dramatização que dê vida, recrie a identidade e espelhe as emoções íntimas das personagens representadas na fotografia.

2. Comenta o tema da exposição – “Open your eyes, see and hear us” {“Abre os teus olhos, vê e ouve-nos”}.

Atividade 27

1. A Secretaria de Estado da Cultura, em parceria com o Ministério da Educação, organizou em 2010, um Festival da Cultura, pretendendo “assinalar o 35º aniversário da primeira Declaração de Independência da República Democrática de Timor-Leste”.1.1. Troca impressões com os teus colegas sobre o entendimento que cada um possui do termo cultura.

1.2. Enumera os diferentes domínios ou assuntos que, na tua opinião, devem integrar um Festival da Cultura. Justifica.

2. Discute as respostas do mural:– A cultura reforça a unidade nacional.– Conhece a tua cultura através da sua música.– A cultura influencia os pensamentos e as ideias das pessoas.– Uma nação forte é aquela que conhece e valoriza a sua própria cultura.

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Relações interartísticas | 133

3. Lê os verbetes de dicionário que se seguem e justifica os motivos pelos quais os dois conceitos se implicam reciprocamente:

cultura s.f. ação, efeito, arte ou maneira de cultivar; lavoura; vegetal cultivado; meio de conservar, aumentar e utilizar certos produtos naturais; aplicação do espírito a uma coisa; desenvolvimento dos conhecimentos e das capacidades intelectuais, quer em geral (_ geral) quer num domínio em particular (_ especializada: literária, artística, matemática, filosófica); maneiras coletivas de pensar e de sentir, conjunto de costumes, de institui-ções e de obras que constituem a herança social de uma comunidade ou grupo de comunidades; conjunto das ações do meio que asseguram a integração dos indivíduos numa coletividade; conjunto dos conhecimentos de alguém; sabedoria; apuro; elegância. (Do lat. Cultura -, “cultura da terra e do espírito”).

arte s.f. aplicação do saber à obtenção de resultados práticos (arte militar, por ex.); conjunto de processos, mais ou menos ordenados, para atingir um fim, o m. q. técnica; atividade que acrescenta algo à natureza (pon-te: obra de arte); atividade de produção de coisas belas; ofício; profissão; modo; forma; habilidade; talento; dom; astúcia; _ abstrata: arte não-figurativa; arte que procura suscitar sentimentos estéticos pelo puro jogo das formas e das cores, sem referência a objetos reconhecíveis como tais; _ figurativa: aquela que comporta a representação de objetos exteriores à obra de arte; _ mágica: arte de feiticeiro; magia; prestidigitação; ma-nigância; nobre _: pugilismo; sétima _: cinema; obra de _: trabalho artístico bem feito e que vale pela beleza, conceção, etc.; toda a construção (ponte, túnel, muro, aqueduto, etc.). (Do lat. arte – “saber, habilidade, arte”).

4. Em trabalho de grupo, organiza um microfestival da cultura na tua escola, a partir das ideias que surgiram nas respostas às questões 1.2. e 3.

Atividade 28

1. Indica os modos como e os lugares onde se pode conhecer e valorizar a cultura.

2. Lê atentamente a notícia:

Futuro Museu e Centro Cultural de Timor-Leste! A par da criação da Biblioteca Nacional e Arquivo de Timor-Leste, a Secretaria de Estado da Cultura está a desenvolver, em parceria com a UNESCO, o projeto de construção do Museu e Centro Cultural de Timor-Leste. “Pensámos que deveríamos aproveitar esta fase de construção e planear já este projeto” explica Virgílio Simith. A existência de locais adequados para o desenvolvimento de atividades culturais é fundamental para dinamizar a cultura e consequentemente contribuir para a afirmação da identidade nacional. A Secretaria de Estado da Cultura pretende, assim, dinamizar e promover a realização de novos eventos num espaço condigno e com as condições necessárias para “colocar a Cultura ao serviço da afirmação da Nação e do Estado timorense”, que é, de resto, uma das prioridades definidas pelo IV Governo Constitucional no seu programa para o período legislativo entre 2007 e 2012. Existem já alguns conteúdos para expor permanentemente no Museu Nacional, como a coleção geológica exposta no Palácio Presidencial, a coleção arqueológica que está espalhada por vários países e a coleção etnográfica, com cerca de 800 peças, que está guardada no Ministério da Educação. “Há coleções patrimoniais de alto valor que saíram de Timor-Leste, mas quando tivermos uma estrutura como o Museu e Centro

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“Uma nação forte é aquela que conhece e

valoriza a sua própria cultura.

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Cultural podem regressar ao país”, afirma o Secretário de Estado, acrescentando outras potencialidades da futura instituição: “é uma forma de atração turística, é um espaço de diversão e de investigação. Um espaço de pesquisa, não só para timorenses como também para estrangeiros, que passam, assim, a ter um local próprio, em Timor-Leste, para fazer os seus estudos. O Museu será um espaço de inspiração”. O projeto prevê, ainda, que o Museu e Centro Cultural albergue as futuras Escolas de Artes e Música, cujos estudos de viabilidade foram previstos no programa do IV Governo Constitucional. Tal como a Biblioteca Nacional e Arquivo, o Museu e Centro Cultural de Timor-Leste deverá ficar localizado em Aitarak Laran, em Díli.

http://zarpante.wordpress.com/2012/02/24/arte-e-cultura-de-timor-leste/

2.1. Menciona os projetos contemplados pelo IV Governo Constitucional para “colocar a Cultura ao serviço da Nação e do Estado timorense”.

2.2. Refere os conteúdos patrimoniais que se pensa poderão vir a integrar exposições permanentes do Museu Nacional. Onde e em que condições se encontram na atualidade?

2.3. Refere outras potencialidades previstas pelo Secretário de Estado para o Museu e Centro Cultural.

2.4. Explica o sentido da afirmação “O Museu será um espaço de inspiração” (l. 18).

3. Formula a tua opinião sobre este projeto.

4. Observa a seguinte imagem:

4.1. Organiza uma visita de estudo ao museu da resistência timorense. Caso não seja possível, concretiza uma visita virtual, consultando o sítio do museu online: http://amrtimor.org.

4.2. Elabora o respetivo relatório, tendo em conta as orientações que se seguem.

iRelatório

É a designação que se aplica a qualquer texto de caráter informativo, científico ou não, que tenha por objetivo fazer o relato de uma experiência, de um trabalho de investigação, de um colóquio, de uma sessão de trabalho, etc., e que introduza também uma apreciação crítica devidamente fundamentada. Não há uma limitação quanto ao volume deste tipo de texto, desde que sejam respeitadas as partes fundamentais referidas no modelo. Conforme se trate, por exemplo, de um relatório sobre o movimento mensal da biblioteca de turma, de uma visita de estudo ou de uma experiência realizada ao longo do ano letivo, o número de páginas pode variar.

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Modelo de Relatório1ª parte Informações essenciais:

- título- data- nome do autor - nome do(s) destinatário(s)

2ª parte Sumário/Índice (indicação da estrutura e da paginação)

3ª parte Texto, subdividido em:- objetivos do relatório- circunstâncias que envolveram a sua elaboração- ideia condutora

Corpo do trabalho, que inclui:- descrição do contexto situacional, da sucessão de acontecimentos e/ou observações - críticas objetivas- resultados e propostas de soluções

Conclusão – estabelecimento de um nexo entre o(s) objetivo(s) do relatório e os resultados obtidosNotas, bibliografia e índice

MELODIAS

Atividade 29

1. Visiona as seguintes ligações: http://www.youtube.com/watch?v=nxQHrRJOS50 http://www.youtube.com/watch?v=T2AcD0QXp5I

1.1. Elabora um breve artigo de apreciação crítica sobre um dos dois videoclips visionados.

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2. Imagina que queres organizar um festival de música timorense: a) escolhe um nome para o festival; b) inventaria os nomes dos músicos que escolherias convidar; c) elabora uma carta-tipo para formalizar o convite às bandas e/ou grupos musicais; d) elabora os documentos necessários para a divulgação do festival nos meios de comunicação social, …

Artigo O seu principal objetivo não é noticiar um acontecimento ou conjunto de acontecimentos mas comentar, relacionar os factos com os seus antecedentes, integrando-os num contexto mais amplo, interpretando e projetando o seu alcance através da formulação de hipóteses. Pode ser veículo de sensibilidades sociais, politicas e culturais, influenciando, desse modo, a opinião pública. Os artigos podem ser analíticos (definem e descrevem o assunto e têm em conta a forma e o objetivo que se tem em vista), classificatórios (ordenam aspetos de determinado assunto e explicam os seus constituintes) ou argumentativos (desenvolvem um argumento e apresentam factos que comprovam ou refutam o mesmo).

Artigo científicoTrata de questões científicas, apresentando resultados de estudos e pesquisas: - é publicado em jornais, revistas, anais ou outros órgãos de divulgação científica especializados; - adequa a linguagem ao público a que se destina – mais acessível para um público mais amplo, mais específica e mais apurada para um público especializado.Estruturalmente, apresenta (em particular, os mais longos): - identificação (título, autor, credenciais e procedência do autor, sinopse); - corpo do artigo (introdução, desenvolvimento, conclusão); - elementos referenciais (bibliografia, apêndice, anexos, agradecimentos, data).

Artigo de opinião crítica Veicula informações, abordagens atuais, perspetivas novas sobre os temas. Compreende uma abordagem objetiva (onde se descreve o assunto ou algo que foi observado) e uma abordagem subjetiva (apreciação crítica onde se evidenciam juízos de valor sobre o conteúdo, a disposição das partes, o método, a forma, o estilo, etc.). Pode ser polémico, sendo o seu autor, muitas vezes, responsabilizado pelo êxito ou fracasso de um filme, de uma exposição, de um espetáculo, de um livro, de um disco ou de um programa. Estruturalmente, apresenta: a introdução – o assunto é geralmente apresentado no primeiro parágrafo, partindo de algumas considerações mais genéricas, até chegar ao ponto que pretende enfatizar; deve demonstrar a importância da abordagem, os objetivos, o método ou o caminho da sua abordagem, para despertar o interesse do leitor;

a apresentação de ideias – as ideias são apresentadas como referência básica; para facilitar a descrição do assunto, procede-se à construção de argumentos por progressão, relacionando os diferentes elementos, encadeados em sequência lógica, de modo a haver sempre uma relação evidente entre um elemento e o seu antecedente;

a apreciação crítica – apresenta-se uma posição própria em relação ao assunto, exploram-se as ideias, concordando ou discordando, levando em consideração a validade ou aplicabilidade e tendo em conta a opinião de autores da comunidade científica/artística/cultural, especialistas na matéria em discussão;

as considerações finais – sintetizam-se as primeiras reflexões e constatações decorrentes do desenvolvimento do trabalho; contém, muitas vezes, um apelo ao leitor, procurando-se uma adesão à tese defendida.

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Relações interartísticas | 137

Atividade 30

1. Lê o texto informativo que se segue e prepara a apresentação oral de um trabalho (individual ou em grupo), subordinado ao tema “Breve História da Música Timorense”.

Na música tradicional de Timor-Leste, é possível identificar elementos distintamente autóctones, a par de influências de outras culturas musicais, nomeadamente a ocidental, em virtude da colonização portuguesa. Nos géneros tradicionais timorenses, a música e a dança interligam-se e constituem elementos fundamentais da expressão cultural. Baseado na tradição oral, transmitido de geração em geração, o repertório tradicional contempla quatro géneros bem definidos – tebe, tebedai, dansa e cansaun. O tebe, palavra que, em tétum, significa literalmente dançar, é um género tradicionalmente executado em todas as casas de Timor-Leste ao anoitecer, em festas de caráter animista (estilu), durante a época das colheitas ou, ainda, na abertura de uma casa sagrada (uma lulik). É uma dança em roda ou em meia-lua, composta por uma ou mais melodias, com variações e sem acompanhamento instrumental, executada por elementos femininos e masculinos entrelaçados alternadamente. O círculo ou a meia-lua alarga-se ou concentra-se, enquanto os dançarinos saltam, batendo, ritmada e entusiasticamente, os pés no chão em determinadas sílabas. Trata-se de um género que se destina a ser executado como um diálogo entre dois interlocutores (independentemente do sexo), implicando uma estrutura musical do tipo pergunta-resposta.O tebedai é também uma dança comum a toda a ilha de Timor, embora com variações, consoante a zona onde é executado. É um género exclusivamente rítmico, onde os elementos femininos tocam os babadok e os dadir com ou sem movimentos corporais. É composta, geralmente, por dois motivos rítmicos, repetidos alternadamente, tantas vezes quantas as desejadas. Por vezes, o tebedai feminino é acompanhado pelo bidu masculino, realizado por um ou mais homens, que se movem livremente à frente, ao lado ou atrás das mulheres, erguendo a espada e emitindo gritos guerreiros. O género dansa classifica uma dança em que o movimento coreográfico não é realizado em roda ou meia-lua. A melodia é acompanhada pelas violas dentro dos parâmetros de harmonia tonal, refletindo assim o processo de assimilação da tradição musical ocidental. É um género mais recente, que se foi difundindo pelo território e foi sendo adaptado para exprimir sobretudo atividades do quotidiano, como, por exemplo, a debulha do arroz ou a apanha do camarão. A forma mais difundida de dansa é a likurai, realizada por mulheres para, tradicionalmente, dar as boas-vindas aos homens regressados da guerra. Elas usavam o babadok, um pequeno tambor e, por vezes, carregavam cabeças de inimigos em procissão através da aldeia. Na sua versão atual, a likurai é usada pelas mulheres no namoro. A cansaun deve ser entendida como uma melodia com acompanhamento instrumental. Esta classificação é atribuída às canções populares executadas em Timor-Leste, já com influências ocidentais, embora possa também designar as canções tradicionais, que não são dançadas. Esta denominação é também aplicada às melodias originais acompanhadas, compostas por timorenses com textos originais em tétum ou em português, ou a melodias ocidentais a que foi adaptado um texto em tétum. Os instrumentos musicais, os trajes e os objetos de adorno desempenham igualmente um papel relevante na performance musical. Dos primeiros, salientam-se o babadok e o dadir (também dadil, gong ou gon). O babadok é um pequeno tambor de corpo cónico de madeira, com cerca de 30 a 50 centímetros de comprimento e com 15 centímetros de diâmetro, em geral tocado pelos elementos femininos que o percutem alternadamente com ambas as mãos. O dadir é um círculo de metal de aproximadamente 25 centímetros

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de diâmetro, que é percutido com uma baqueta de madeira, de altura indefinida e sem possibilidade de afinação. À semelhança do babadok, é também um instrumento tocado pelos elementos femininos. No repertório musical executado, surgem também as violas e as flautas de bisel soprano, instrumentos ocidentais introduzidos na performance timorense. No que concerne aos trajes, compõem-se de tais mane e tais feto, masculino e feminino, respetivamente. Os tais são panos multicoloridos fabricados artesanalmente em Timor-Leste, que os homens enrolam ao redor da cintura e que as mulheres colocam em volta do corpo, abaixo das axilas. Os homens colocam um lenço na cabeça sobre o qual aplicam a kaibauk, lua de metal com aplicações de pequenas lágrimas e espigas, sendo a maior e a mais ornamentada pertença do liurai, chefe ou rei tradicional timorense. A surik, espada guerreira, e o belak, disco de metal suspenso ao peito, completam o traje dos homens. As mulheres usam a kaibauk, além da ulum suku, para prender os cabelos, e do sasuit, pente de dentes largos. Usam, geralmente ao peito, o mortene, colar feito de materiais diversos, e à cintura, um pano branco. Por fim, a lokum ou kelui, uma pulseira de metal usada pelos homens no braço e pelas mulheres no antebraço. Todos os elementos atuam descalços e com uma salenda, xaile fabricado com o mesmo tipo de pano artesanal dos tais, colocada nos ombros.

A diáspora levou a música timorense a locais como a Austrália e Portugal, onde se criaram novos géneros musicais, resultantes da mistura da música timorense com estilos de Angola e Moçambique, outras ex-co-lónias portuguesas. Após 1975, a música timorense passou a estar fortemente associada ao movimento de independência. Por exemplo, a banda “Dili All Stars” lançou uma música que se tornou hino na luta pelo re-ferendo sobre a independência em 2000, enquanto as Nações Unidas comissionaram uma música chamada “Hakotu Ba” (por Lahane), apelando ao recenseamento da população para votar no referendo.

Entre os atuais músicos populares timorenses, encontra-se Teo Batiste Ximenes que cresceu na Austrália e usa ritmos tradicionais na sua música. Hoje em dia, fazem-se sentir influências externas e, à música timorense, não são alheios novos estilos populares internacionais como o rock, o hip hop e o reggae.

http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%BAsica_de_Timor-Leste (texto adaptado)

Atividade 31

1. O texto da atividade anterior alude aos diversos instrumentos musicais que fazem parte da tradição musical leste-timorense. 1.1. Em trabalhos de par, realizem uma pesquisa que sintetize as características de diversos instrumentos:

1. kakalo’uta2. titir3. lakado’u

4. kaerkeit5. kanobe6. lesun

7. fekula’a8. kokotere9. karau dikur

1.2. Exponham à turma as informações colhidas no vosso estudo, incluindo as características, imagens e exemplos da sonoridade dos instrumentos musicais referidos.

1.3. Elaborem um questionário de escolha múltipla sobre cada um dos instrumentos musicais estudados e, como se se tratasse de um concurso, troquem os questionários entre os grupos.

2. Planifiquem exercícios similares para outros aspetos associados à música como a indumentária e os adornos. 2.1. Organizem uma sessão de partilha com a comunidade escolar, organizada segundo o formato de um serão cultural, para a divulgação dos trabalhos realizados.

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Atividade 32

Prefácio Como forma de dar também a sua contribuição para as comemorações do primeiro aniversário da data festiva e histórica para a República Democrática de Timor-Leste de 20 de maio, vem o Instituto Camões – Centro Cultural Português promover, pela segunda vez, uma exposição coletiva de pintores timorenses, reunindo nomes já consagrados como Bosco, Maria Imaculada e Yahya, e jovens estreantes como Abé, Acelu, Ajón, Alinn, Azó, Chimeng, Corry, Ino, Júlio, Paulino, Sávio, Tito, Tony, que são o futuro das artes plásticas timorenses. Pretende-se também promover e apoiar aquela que julgamos ser a única escola de pintura em Timor--Leste, a “Arte Moris”. Com a venda deste catálogo – o primeiro a ser produzido no país com a reprodução de obras de pintores timorenses – e a comercialização dos trabalhos dos artistas procurar-se-á dar também um impulso ao desenvolvimento desta escola. A arte é um dos elementos fundamentais da cultura e da identidade nacional de um povo. Neste desafio enorme que representa a criação de um Estado timorense soberano e independente e a reconstrução nacional sobre os escombros da destruição trazida por um passado recente, a afirmação e o reforço dos elementos dessa identidade desempenham um papel essencial. Esperamos que esta exposição possa dar uma achega, por pequena que seja, com essa finalidade, constituindo, ao mesmo tempo, um estímulo para os artistas e criadores timorenses, em geral, e um exemplo para que outras iniciativas semelhantes se multipliquem num futuro próximo.

Maio de 2003Rui Quartin SantosEmbaixador de Portugal em Díli

Catálogo de Timór Arte Iha Tela, Espozisaun

Instituto Camões – Centro Cultural Português em Díli (maio 2003)

1. Refere as intenções que presidiram à realização da exposição e à publicação deste catálogo.

2. Explica a importância da comemoração do dia 20 de maio para o povo leste-timorense.

3. Comprova que a exposição Timór Arte Iha Tela contempla um retrato intergeracional das artes plásticas timorenses.

4. Rui Quartin Santos alude à única escola de pintura de Timor-Leste: Arte Moris.4.1. Pesquisa informação sobre a escola de arte mencionada.

4.2. Refere os traços que melhor a definem.

5. Consulta o sítio www.artemoris.org.5.1. Indica as diversas manifestações artísticas que a instituição acolhe.

5.2. Refere os aspetos socioculturais para os quais remete.

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6. Lê o seguinte texto e preenche o “bilhete de identidade” desta escola de arte:

A escola Ideias, cultura e experiência são partilhadas na Escola de Artes Livre. A Arte Moris oferece aos jovens talentos de Timor-Leste a oportunidade de explorarem a sua criatividade. Aos fundadores, o artista suíço Luca Gansser e a organizadora cultural Gabriela Gansser, juntaram-se o artista Yahya Lambertz e um grupo de estudantes com talento e futuro. Esta crescente família vive e trabalha num ambiente cujo foco é a autoestima individual e comunitária, bem como o desenvolvimento da expressão. Sendo um trabalho conjunto, deu-se a oportunidade aos artistas timorenses e internacionais de partilharem ideias. A Escola pretende ainda desenvolver a formação artística e mostrar como a arte pode ser usada como forma de sustento.

A escola localiza-se atualmente em Quintal KiiK, Díli, e proporciona um espaço de ensino a cerca de 80 estudantes, onde são desenvolvidas capacidades ao nível dos trabalhos manuais e das belas-artes. Os fundadores põem também em prática uma educação e uma consciência ambientais e coordenam a realização de eventos, onde os estudantes sejam capazes de expor as suas obras.

A visão da Arte Moris é uma visão dos artistas timorenses contemporâneos, reunindo a sua cultura, as suas experiências e as suas tradições em obras de arte feitas com meios e ideias vários. O encorajamento, a interação e a colaboração entre todos os participantes da Arte Moris exemplificam bem os bons resultados alcançados.

A escolha dos trabalhos artísticos para este catálogo reflete muitos aspetos da herança cultural de Timor--Leste, o ambiente político e social. Alguns desses trabalhos retratam temas tradicionais da vida nas aldeias, enquanto outros entram no campo das recentes convulsões sociais e políticas de Timor-Leste. A exposição revela não só a pesquisa pictórica dos estudantes, mas também a consciência pelos materiais reciclados.

O professor de Arte Moris, Yahya, e a colaboradora Maria Madeira fazem também parte desta exposição e agradeço a sua contribuição para que fosse possível apresentar, neste momento, uma nova e enérgica geração de jovens artistas, cheia de entusiasmo de se expressar e de representar o seu país através das artes.

Gabriela GansserDíli, 1 de abril de 2003

Catálogo de Timór Arte Iha Tela, Espoziaun

Instituto Camões – Centro Cultural Português em Díli (maio 2003)

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Atividade 33

1. Propomos-te a realização de um projeto de turma: a criação de um programa radiofónico cujo tema seja a Arte Moris, definindo previamente os subtemas e os diferentes domínios a abordar, a duração, as fontes, a divisão de tarefas, etc.

iA rádio na escola

Num tempo em que muito se fala e discute a globalização da informação e da comunicação e em que muitas discussões se centram nas novas tecnologias, nomeadamente nas vantagens e virtualidades da televisão e da internet, pode ser interessante refletir sobre as potencialidades do primeiro grande meio de comunicação de massas – a rádio. De facto, a radiodifusão foi o primeiro instrumento de difusão instantânea e de grande alcance e, nesse sentido, considera-se que foi o seu desenvolvimento que deu início às grandes transformações nos mass media. (…) Quando falamos no poder das imagens, a propósito da televisão, esquecemos que as imagens sonoras foram, durante décadas, uma poderosa forma de informar, comunicar, persuadir e manipular. (…) Oferecer aos alunos a possibilidade de serem comunicadores inverte a sua habitual condição de recetores de informação na sala de aula e, normalmente, isso é tomado como um desafio. Na verdade, é importante que tomem consciência de que aquela é a sua rádio e que o que for bem ou mal feito é da sua responsabilidade.

iGuião de um programa

Quando se faz o guião de um programa não é necessário escrever na íntegra os textos. Basta o início e o fim (as vulgarmente chamadas “deixas”), visto que se parte do princípio de que já estão gravadas e, para a montagem, só interessa conhecer o início, o fim e a duração. As diversas fontes sonoras a integrar no programa devem estar gravadas em suportes diferentes. Por exemplo: No caso de uma entrevista, que deve estar já trabalhada, ela deverá ser gravada numa cassete, para simplificar a montagem. As locuções devem ser gravadas noutra, uma vez que pode ser necessário cruzar um som com outro. Além disso, as faixas devem estar numeradas, ou seja, o primeiro excerto de uma entrevista será a faixa 1 da respetiva cassete… e assim sucessivamente. No caso de um pequeno noticiário, depois de escritas as notícias, recolhidas e tratadas as reportagens/entrevistas, faz-se também um alinhamento que hierarquize as notícias de acordo com a sua importância. Convém sempre fazer a audição prévia dos registos magnéticos (RM) para escrever o texto de lançamento da peça, tentando evitar repetir o conteúdo do início da gravação. Estes noticiários podem tornar-se mais vivos, se forem utilizadas trilhas sonoras (sons de fundo), sempre as mesmas, de forma a identificarem o som com o produto. O uso de cortinas (separadores) serve também para imprimir ritmo e dinâmica ao noticiário.

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EXEMPLO DE UM GUIÃOPrograma temático “A notícia”(pode ser a história de uma notícia, o seu percurso ou uma notícia imaginária)

Indicativo (que tem fim musical)Tempo 30’’Fazer fade out (significa baixar lentamente)Misturar com separador instrumental que se ouve em pleno alguns segundos e que serve, depois, de fundo sonoro ao poema.

Locução do poema: 1º RM – cassete y: “Amanhã aconteceu / Que é notícia? / Um hoje que nunca é hoje,” até “Forem só e o mesmo / ‘lidos’ no mesmo jornal!” (Alexandre O’Neill, Poesias Completas)Tempo 2’ aproximadamenteSubir faixa instrumental e mistura com outra que faz fade out.

RM com a primeira faixa de entrevista1º RM – cassete x: “um dia em conversa com…” até “nunca me esqueci desse exemplo”Tempo 3’Subir separador musical que cruza com som de teclados de máquina de escrever ou de computador, misturado com sons de noticiário de rádio e/ou de televisão. Estes sons podem funcionar, eles próprios, como um separador que dá passagem à fase seguinte.

Locução de texto introdutório ao RM, feito pelo pivô que está no estúdio.2º RM – cassete y – “no ateliê de jornalismo fomos ver e ouvir como se fazem as notícias” até “porque nem todos os acontecimentos são notícia”.Tempo 1’

Música: Sérgio Godinho – “Espalhem a Notícia” (faixa 6 do álbum Era Uma Vez Um Rapaz) – Duração 3’45’’

Ficha técnicaIndicativo – 30’’

Ana Aranha, O Desafio da Rádio (adaptado)

1. Partindo do exemplo apresentado, sugerimos as seguintes atividades: a) Realização de reportagens sobre as diferentes vertentes artísticas da Arte Moris – pintura, escultura, fotografia, música, teatro, … – e o seu tratamento num lapso de tempo previamente definido, justificando critérios de seleção. b) Realização de entrevistas às pessoas que, direta ou indiretamente, integram a instituição (artistas, colaboradores, professores, quadros dirigentes e administrativos, entidades políticas, elementos do público, …) e o seu tratamento num lapso de tempo previamente definido, justificando os critérios de seleção. c) Produção de um anúncio publicitário de 15’’ para promover um produto (a escola da Arte Moris, as obras de arte) e um outro para divulgar uma iniciativa (uma exposição, um concerto ou outro evento). d) Seleção musical ilustrativa da diversidade que caracteriza a escola. e) Conceção de concursos destinados aos ouvintes com perguntas sobre, por exemplo, instrumentos tradicionais timorenses ou factos da história da Arte Moris. f) Redação de um noticiário breve sobre as suas atividades ou iniciativas mais recentes.

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Referências Bibliográficas

Para além das obras elencadas, foram, ainda, selecionados e recolhidos excertos/textos de várias publicações periódicas, especialmente jornais e revistas, e de alguns sítios na internet.

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