teatro e animacao sociocultural

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  • Animador Sociocultural: Revista Iberoamericana vol.1, n.2, mai.2007/set.2007 Teatro e Animao Sociocultural Bento

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    TEATRO E ANIMAO SOCIOCULTURAL:

    PARCEIROS INEQUVOCOS EM ESTRATGIAS DE

    PARTICIPAO SOCIAL E DE DESENVOLVIMENTO

    CULTURAL Prof. Dr. Avelino Bento1

    Escola Superior de Educao do Instituto Superior Politcnico de Portalegre

    Portugal

    Recebido em 23 de janeiro de 2007

    Aprovado em 20 de maro de 2007

    Resumo Esta reflexo tem dois sentidos. O primeiro desenvolve preocupaes

    socioculturais que devero existir no espao da educao no-formal e informal e o segundo acentua a ideia da urgncia de uma mudana cultural que legitime, social e culturalmente, a igualdade de oportunidades, a incluso social e a multiculturalidade. Propomos assim reflectir sobre as prticas das expresses artsticas, especialmente do Teatro, e das relaes deste com a Animao Sociocultural. uma reflexo que pretende enunciar, por um lado, a pertinncia de uma educao artstica no-formal e informal na Escola e na Comunidade e, por outro, a urgncia de uma parceria que configure novas dinmicas no desenvolvimento cultural e na participao social. Dessacralizar o peso acadmico e escolstico das prticas artsticas fazer com que se integrem profundamente nas comunidades, atribuindo-lhes uma importante relao com a espontaneidade, o vivido e a aprendizagem permanente das populaes. Para alm da Escola referimo-nos, fundamentalmente, aos potenciais grupos socioculturais emergentes nas comunidades: dos empregados de servios aos empregados especializados, dos jovens aos reformados, dos analfabetos aos diplomados, dos desempregados aos excludos socialmente. Palavras-chave: Teatro; Animao Sociocultural The theatre and sociocultural animation: unequivocal partners in strategies of social participation and cultural development

    This reflection has two senses. The first develops sociocultural concerns that

    should exist in the space of informal and non-formal education and the second emphasizes the idea of the urgency of a cultural change that may legitimate, socially

    1 . Professor Coordenador, doutorado em Cincias e Tecnologia da Comunicao.

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    and culturally speaking, the equality of opportunities, the social inclusion and the multiculturality. We envisage to reflect upon the practice of artistic expressions, especially the Theater, and the relations of this with the Sociocultural Animation. It is a reflection that intends to enunciate the relevancy of an informal and non-formal artistic education at school but, especially, in the Community, at the same time that it also intends to enunciate the urgency of a partnership that may frame new dynamics in the cultural development and in the social participation. To create a discourse of desacralization of the academic and scholastic weight of the artistic practices is to make these integrate deeply in the communities, giving them an important relation with the spontaneity, the experienced and the permanent learning of the populations. Besides School we refer, basically, to the potential emergent sociocultural groups in the communities: from third sector employees to skilled employees, from young to retired people, from illiterates to graduates, from unemployed to the socially excluded. Keywords: Theater; Sociocultural Animation

    Esta reflexo tem dois sentidos:

    No primeiro desenvolve preocupaes que devero existir no espao da

    educao no-formal e informal, se tivermos em conta as directrizes emanadas do

    Relatrio para a UNESCO da Comisso Internacional sobre a Educao para o Sc.

    XXI, coordenado por Delors, J. (1996:77), que refora essas dimenses da educao em

    quatro pilares fundamentais, aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver

    juntos e aprender a ser, implicando ao mesmo tempo os Estados e as Organizaes

    para um processo colectivo de educao ao longo da vida.

    No segundo, retomando os princpios anteriores, acentua a ideia da urgncia de

    uma mudana cultural que legitime, social e culturalmente, a igualdade de

    oportunidades, a incluso social e a multiculturalidade. Uma mudana cultural que apele

    tambm para o fortalecimento de valores como a solidariedade e a paz.

    Os pressupostos acima referidos levam-nos a tentar desmistificar a ideia de que,

    na sociedade contempornea, o ser humano mostra incapacidades profundas para se

    enfrentar a si prprio e enfrentar o outro, assim como para se confrontar com o cultivo

    de outros valores, como destaca Prez Serrano, G. (2002:17).

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    com este enquadramento que nos propomos falar das prticas das expresses

    artsticas, especialmente do Teatro, e das relaes deste com a Animao Sociocultural,

    onde se perspectiva, por um lado, a pertinncia de uma educao no-formal e informal

    na Escola e na Comunidade e, por outro, a urgncia de uma parceria que configure

    novas dinmicas no desenvolvimento cultural e na participao social.

    Faz sentido, antes de nos debruarmos sobre o teatro e a animao, convocar a

    perspectiva democratizadora da arte. Esta, do ponto de vista da fruio e criao

    contemporneas, no pode ser entendida como um privilgio nem to pouco como um

    luxo! O seu objectivo primeiro fazer com que as pessoas, no contacto com a

    diversidade de linguagens expressivas e artsticas, adquiram um desenvolvimento

    harmonioso e global. Nos dias de hoje, esta questo no apangio de uns, mas um

    direito de todos! Esta concepo leva a que os programas de poltica cultural, mas

    tambm os de animao sociocultural, no ignorem as actividades artsticas. , de facto,

    pelo seu intermdio, que as capacidades da pessoa so desenvolvidas, de maneira

    singular por vezes, face descoberta da expresso individual e percepo que se tem

    da comunicao colectiva.

    Se nos referimos s actividades de expresso artstica, no seu conjunto, para

    afirmarmos a legitimidade que cada pessoa tem para criar, usufruir e divulgar um

    objecto artstico. Todavia, separamos as actividades artsticas profissionais das

    actividades artsticas no profissionais, uma vez que os objectivos as diferenciam em

    grande parte. Associamos s primeiras o processo de democratizao cultural atravs de

    uma ampla divulgao cultural, ao mesmo tempo que se acentua o processo de criao

    de igualdade de oportunidades de modo a que a obra de arte, ou o espectculo artstico,

    chegue ao maior nmero de pessoas. s segundas, as actividades artsticas no

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    profissionais, encaminhamo-las, atravs do processo de democracia cultural, para as

    estratgias da animao sociocultural, transformando esta, como refere Patrcia Stokoe,

    citada por Ander-Egg, E. (1991:222), em formas de educao pela arte que tendem a

    promover certas qualidades humanas como o desenvolvimento da sensibilidade, da

    capacidade de expressar, investigar, experimentar e transformar.

    Com a perspectiva que acabmos de referir, no se trata de difundir nem dar a

    conhecer, em profundidade, obras e produtos culturais que enriqueam o conhecimento

    e o gosto esttico, transformando as populaes num pblico experts. Essa tarefa cabe

    actividade artstica profissional realiz-la, atravs de uma correcta divulgao cultural

    suportada por polticas culturais eficazes. De facto, na perspectiva que referamos, trata-

    -se antes de tudo de animar e sensibilizar as comunidades para a participao. o

    corolrio de uma participao social activa. Com efeito, animao como tecnologia,

    como tcnica, como estratgia, como engenharia, como arte, como atitude ou como

    processono incentiva particularmente ao consumo, mas apela especialmente

    participao das populaes nos processos de aco cultural. A singularidade da

    participao est na simultaneidade de dois objectivos: o de contribuir para o

    desenvolvimento individual e o de cumprir uma funo social colectiva.

    por esta razo que as expresses artsticas, em contexto de animao

    sociocultural, traduzem a essncia da vida das pessoas, isto , ajudam a identificar a

    origem ou a fonte da sensibilidade, da imaginao e da criatividade. preciso ento

    estimul-las e desenvolv-las. Para alm desta funo, a actividade artstica em contexto

    de animao sociocultural subverte todo o tipo de limitaes. esta subverso que a

    torna um instrumento de dimenso cultural bastante consistente ao servio da pessoa,

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    das populaes e das comunidades e que se traduz atravs do desenvolvimento esttico,

    emocional, intelectual, expressivo e social do indivduo e do grupo.

    Valorizar as oportunidades de auto-expresso e de criatividade depende da

    forma como se criam os espaos das actividades artsticas em contexto de animao

    sociocultural. Esta realidade est hoje, ainda, dependente dos contextos sociolgicos.

    Falarmos em meios rurais ou meios urbanos no nos parece to surrealista como alguns

    nos querem fazer crer. Por exemplo, quem conhece a matriz sobre as divergncias

    entre as festas do meio rural e as festas do meio urbano elaborada por Ander-Egg, E.

    (1991:243) v, de facto, apesar da globalizao que se vai implantando, que os rituais e

    as festas dos meios rurais e urbanos primam ainda por diferenas acentuadas e

    determinam porventura percursos e opes individuais.

    A importncia e o significado cultural do teatro em contexto de animao

    sociocultural so mostrados em duas dimenses fundamentais: uma, de tipo individual,

    que se faz a partir dos processos de desinibio, da melhoria da expresso oral e da

    capacidade de utilizar a memria em processos de maturidade, de afirmao da

    personalidade mas, tambm, como um modo de ultrapassar receios e inibies. Outra,

    de tipo social, ou o ponto de vista colectivo, que mostra claramente como as actividades

    teatrais so um meio de sensibilizao cultural, de encontro e de partilha.

    A eficcia da animao sociocultural a partir de um objecto artstico como o

    teatro resulta, por um lado, dos aspectos globais da criatividade e, por outro, dos

    aspectos da gesto cultural que, por sua vez, articulam factores da dinmica

    sociocultural com factores da criao artstica. De facto, o elemento fundamental que

    permite a utilizao do teatro em contexto de animao sociocultural a criao!

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    Sendo a criao um tema essencialmente cultural, como refere Picart, T. P.

    (1989:74), tornou-se hoje uma preocupao nas discusses europeias a propsito da

    modernidade tecnolgica e econmica e da modernidade democrtica e social e, por

    arrastamento, afirmamos ns, a propsito da contemporaneidade do processo criativo e

    de um dos seus corolrios, a criao e produo artsticas contemporneas.

    A questo que para ns essencial e que responde problematizao

    permanente sobre a criao tem a ver, por um lado, com as potenciais condies dadas

    pela animao sociocultural na alterao ou construo de outros hbitos e outras

    prticas e, por outro lado, pelas condies excepcionais que o teatro tem para renovar a

    criatividade e intensificar a criao, possvel sobretudo, pela dimenso de arte viva, total

    e plural que o teatro tambm tem.

    A animao sociocultural afirma-se na sociedade como um processo de

    alternativa face classificao das relaes sociais em geral e das relaes

    socioculturais em particular. Afirma-se tambm pelo trabalho de facilitador do

    animador que incentiva a revelao de capacidades de expresso e de aco. No centro

    destas duas componentes, isto , entre a classificao das relaes e o trabalho de

    facilitador do animador, existe uma figura que a animao sociocultural no pode

    ignorar: o mediador!

    Com efeito, animador e mediador no so a mesma face de uma moeda, todavia,

    cada um deles um lado da mesma moeda. O primeiro aquele que faz, de acordo com

    a Secretaria de Estado de Juventude e Desportos francesa, citada por Besnard, P.

    (1980:76), uma animao global e tcnica; coordenao de actividades;

    administrao e gesto; pesquisa e criao; formao; responsabilidade geral

    (orientao, inspirao) enquanto que o segundo, do ponto de vista do 5 me Congrs

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    International de Sociologie du Thtre (1997:10), aquele que coloca o homem

    perante as contrariedades do seu meio ambiente, da sua poca e perante os seus

    prprios limites, por outras palavras, quem re-estabelece o equilbrio entre utopia e

    realidade, entre poder e saber.

    Enquanto o animador ter de ser forosa e exclusivamente uma pessoa, com

    perfil e competncia, o mediador poder oscilar entre o ser tambm uma pessoa ou ser

    algo que funcione como um meio de passagem ou uma ponte entre duas margens.

    Esta ideia que nos leva a considerar o teatro um mediador privilegiado tem ressonncia

    com outra de Pierre Bolle citado por Besnard, P. (1980:76), que coloca o teatro como

    um dos privilegiados mediadores: em todo o caso um dos ltimos espaos de

    expresso e de subverso - e por isso de aco - junto do simples cidado, ao mesmo

    tempo que um instrumento de tomada de conscincia e de conhecimento - logo de

    compreenso - sem limites.

    De facto, num processo de animao sociocultural, a mediao teatral poder

    hoje, como defesa perante os pragmatismos da globalidade, reformular o reencontro

    com o humanismo e com os valores da universalidade. Poder faz-lo atravs de

    abordagens mltiplas, complementares e inter-dependentes que a criao artstica

    propriamente dita sugere e que a criao teatral especificamente prope. Sero

    contedos do envolvimento do teatro com o mundo, com o conhecimento e o saber,

    com a arte e a vida, que daro significado a esta relao privilegiada do teatro com a

    animao sociocultural.

    O conjunto destas abordagens ao teatro e com o teatro privilegia o encontro entre

    os homens e faz do teatro uma forma de arte, justamente porque se baseia na

    comunicao e no imediato, mas tambm porque sistematiza e torna coerentes essas

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    mesmas abordagens, relacionadas que esto com os aspectos culturais, artsticos,

    educativos e sociais prprios da animao sociocultural.

    Ventosa, V. (1993) na sua tese de doutoramento sobre a Animao Sociocultural

    no Conselho da Europa considera que as experincias e as relaes do teatro com a

    animao sociocultural, estudadas no mbito do Conselho da Europa, no s se

    manifestam como um instrumento privilegiado de animao sociocultural, como

    acentuam os elementos bsicos que caracterizam a animao sociocultural, quer na sua

    evoluo histrica, quer no seu desenvolvimento prtico.

    Tambm para Jean Duvignaud (1973) h um conjunto de aspectos da prtica

    social do teatro que formam uma totalidade viva e que contribuem para agitar, em

    muitos casos, a prpria sociedade e as instituies. Ao mesmo tempo, esses aspectos

    permitem estabelecer esta ligao entre a esttica e a vida social, a criao artstica e a

    trama da existncia colectiva. So estes factos sociais e estas aprendizagens que

    valorizam os objectivos e as etapas da animao sociocultural quando o teatro o

    mediador, quer levando os participantes aco, desenvolvendo os seus processos de

    autonomia, quer como prtica comunicacional, logo social e cultural, assumindo-se

    como um dos meios privilegiados de animao sociocultural.

    Naturalmente que falamos de coisas distintas quando fazemos animao teatral

    e quando fazemos animao sociocultural. Os objectivos da animao teatral esto

    associados construo de um potencial projecto artstico-teatral que se poder ou no

    concretizar em espectculo, enquanto que os objectivos da animao sociocultural,

    desenvolvida atravs do teatro, esto associados s questes gerais e especficas do

    desenvolvimento cultural, social, educativo e artstico. O ponto verdadeiramente comum

    entre ambos os processos a capacidade que tm de criar novos interesses e mobilizar

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    para novas dinmicas de participao social e cultural. Assim, a animao sociocultural

    desenvolvida pelo animador generalista que, pontualmente, poder recorrer-se dos

    animadores especialistas. Mas quem faz a animao teatral o animador teatral.

    Explicitando melhor, em ambos os tipos de animao o teatro utilizado como um

    meio. utilizado como um meio porque na animao teatral o animador teatral coloca a

    tnica nos processos, como relembra Ventosa, V. (1993:164) e na animao

    sociocultural, dizemos ns, no desenvolvimento tout court que o animador generalista

    coloca a tnica.

    Hoje, mais do que nunca, o campo da interveno artstica est

    significativamente ampliado, indo da criao produo e da animao educao.

    Nesta perspectiva podemos ento assumir que o animador teatral tambm desenvolve

    uma tarefa sociocultural para alm da artstica. Por outro lado, no correcto pensar-se

    que um animador generalista no possa actuar como um especialista apenas porque est

    condicionado s generalidades da sua formao. Com efeito, ao ser-se animador

    generalista, no se pode deixar de ser especialista em gesto, organizao, coordenao

    e conduo de grupos, de projectos ou de tarefas. Parafraseando Ventosa, V.

    (1993:165), falamos do animador que chega animao partindo do teatro e do

    animador que aprofunda o teatro partindo da animao. Na primeira situao

    encontram-se as pessoas de teatro com uma enorme vontade ou atitude de animar, de

    fazer animao. Na segunda situao encontramo-nos perante o animador que tenta ter

    xito na sua funo sociocultural recorrendo s tcnicas teatrais.

    H trs razes que nos levam a pensar que o teatro pode ter um perfil ou

    estatuto para assumir a tarefa atrs referida. A primeira seria entend-lo como uma

    obra de arte global, traduo literal de Gesamtkunstwerk que, do ponto de vista da

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    esttica wagneriana, conforme Wagner, R. [1850;1910] citado por Pavis, P. (1998:221),

    o espectculo que assenta numa sntese entre: (...) a msica, a literatura, a pintura, a

    escultura, a arquitectura, a cenografia, etc. ou, traduzido um pouco precipitadamente

    por Pavis, P. (1998:461), como teatro total, cuja representao pretende rentabilizar

    todas as formas artsticas possveis, de maneira a produzir um espectculo amplo e

    aberto na direco de todos os sentidos. A segunda razo seria consider-lo como arte

    total ou espectculo integral, associado ao desejo de tratar o teatro em si e no como

    subproduto literrio, conforme Artaud, A. [1964 a] citado por Pavis, P. (1998:4611).

    Artaud admite que o teatro no se deve confundir com a msica, a pantomima ou a

    dana, nem sobretudo com a literatura. Finalmente, a terceira e ltima razo, a nossa,

    seria consider-lo como arte plural, onde as opes artsticas, estticas, polticas,

    religiosas e sociais so factores determinantes de liberdade, de democracia e de

    desenvolvimento.

    Pretendemos, a partir deste conceito, arte plural, problematizar duas das

    abordagens e/ou formas de expresso do teatro que, do nosso ponto de vista,

    sistematizam a sua funo essencial, a criao e a fruio. Como o objectivo desta

    reflexo levar o nosso discurso pedaggico para o compromisso e para o

    envolvimento da educao no-formal e informal com o teatro, portanto para as

    questes da dinmica e da participao social e cultural inseridas em contexto

    comunitrio, aproveitaramos a oportunidade para apresentar, sintetizando, os dois

    aspectos em que o teatro se apresenta: o ponto de vista do espectculo e o ponto de vista

    educativo. Falamos de Arte Dramtica e de Expresso Dramtica e das suas possveis

    divergncias e/ou convergncias, segundo Bento, A.(2003:75). Porventura nesta dupla

    distribuio espao-temporal que o teatro cria a sua dupla natureza: a fico e a

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    realidade. Porventura, tambm, nesta dupla natureza do teatro que se manifestam as

    diferenas que tornam possvel reivindicar a existncia destas duas componentes ou

    abordagens ou, ainda, destas duas formas de expresso do teatro que se afirmam atravs

    do representar e do fazer, ou seja, atravs, respectivamente, da arte dramtica e da

    expresso dramtica.

    Foi na sequncia de estudos aprofundados em sede de doutoramento e na nossa

    prpria prtica de actor-encenador, animador cultural e professor, que aqueles conceitos

    surgiram. Foi feita, sobre os mesmos, uma anlise histrica a partir de meados do Sc.

    XIX que nos levaram a concluir estar o primeiro, a arte dramtica, associada formao

    de actores e, por consequncia realizao do espectculo, e o segundo, a expresso

    dramtica, associada vivncia de jogadores e, por consequncia a uma experincia

    educativa. Uma panplia de autores, como Barret G.(1986:92), Chancerel L. (1936),

    Courtney, R. (1980), Landier, J-C (1994:6), Leenhardt, P. (1971), Nvoa, A. (1989),

    Pavis P. (1983:286 - 1998:265), Poveda, L. (1995), Rebello, L. F. (1967:85), dicionrios

    de referncia e instituies como os Conservatrios de Arte Dramtica de Paris e de

    Lisboa, fundamentaram esta nossa concluso.

    A existncia de diferenas epistemolgicas entre os conceitos leva a que haja um

    mundo com prticas to diversificadas ao servio da arte, da educao e da animao,

    reflectindo por isso diferenas nas prticas scio-educativas e socioculturais.

    Consubstanciaramos nesta frase o sentido fundamental do teatro: A expresso

    dramtica e a arte dramtica, no seu percurso, traduzem o fazer e o representar que o

    teatro nos mostra e nos proporciona. O teatro , afinal, a essncia da linguagem das duas

    componentes postas aqui em reflexo. Assim, segundo Pavis, P (1998:51), a arte

    dramtica um gnero dentro da literatura e uma prtica vinculada interpretao do

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    actor que encarna ou mostra uma personagem perante um pblico. A expresso

    dramtica , segundo Barret, G. e Landier, J-C (1994:6), o campo vasto da expresso e

    comunicao artstica, ldica e social. Por sua vez, a arte dramtica , na perspectiva de

    P. Pavis, o espao de juno e de relao entre o texto dramtico, o actor, a encenao e

    o pblico. A expresso dramtica vai na direco do objectivo do desenvolvimento

    pessoal e social que, em termos educativos, um dos objectivos gerais da Escola

    segundo Barret, G., mas que poder e dever ser tambm um dos objectivos da

    Comunidade tendo em conta a educao ao longo da vida. Por outro lado, a arte

    dramtica reenvia-nos, atravs da sensibilizao das prticas, criao e fruio dos

    objectos artsticos.

    Associamos este questionamento permanente a quatro dimenses que caminham

    juntas e em oposio a cada uma das abordagens ao teatro que tentamos definir.

    Referimo-nos relao que a realidade e o fazer tm com a expresso dramtica e

    relao que o representar e a fico tm com a arte dramtica. Neste sentido,

    interpretamos como elementos divergentes, as estratgias e, como elementos

    convergentes, os fins. As estratgias e os fins passam pela valorizao da dimenso da

    pessoa humana, quer como sujeito da criao, quer como sujeito da fruio da

    actividade artstica em geral e da teatral em particular.

    No fundo, a dupla natureza do teatro est aqui, no seu movimento de construo:

    do viver a realidade ao fazer a fico. Ao constatar esta dupla natureza do teatro,

    aceita-se, naturalmente, a existncia ou coexistncia das vrias abordagens realidade

    sociocultural e/ou educativa da comunidade.

    As abordagens e formas de expresso diferentes, relativas ao teatro, que temos

    vindo a enunciar, ao permitirem que no se abdique de realidades pedaggicas e

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    cientficas diversificadas, exigem, para si prprias, dinmicas diferentes que justificam a

    necessidade de espaos, tempos, formaes e objectivos tambm diferenciados. A

    expresso dramtica, pelo valor essencial da gestualidade. A arte dramtica, pelo

    valor essencial da oralidade. Enquanto o ponto comum entre as duas abordagens est

    no objecto que se produz: o jogo (o teatro na essncia), o ponto divergente est no

    objectivo a que se propem: processo (vivido) e produto (espectculo). De facto, estas

    actividades tm o Teatro na sua essncia, mas so duas diferentes abordagens

    criatividade e criao. So estas realidades que nos tem motivado a aperfeio-las na

    rea da educao formal, ao mesmo tempo que as integramos nas dinmicas educativas

    no-formais e informais, nomeadamente nas dinmicas associativas e comunitrias

    institudas ou a instituir.

    Perante este raciocnio pode-se afirmar que a expresso dramtica uma

    actividade pr-teatral. Sobretudo, porque no tem o fim de apresentar um espectculo,

    ou seja, no est nos seus objectivos, nem na sua filosofia, contribuir para a produo

    artstica. Tem como objectivo somente fomentar o esprito artstico e o prazer da

    descoberta e, por isso, esgota-se no momento em que acaba. Como promove uma

    pedagogia da aco e do vivido, transforma o indivduo em sujeito e objecto da sua

    prpria aprendizagem, fazendo-o participar num processus permanentemente em

    situao. Ou seja, num aqui e agora em que as relaes e as interaces so

    determinantes no processo de consciencializao, tanto na perspectiva do saber-ser,

    como na perspectiva do saber-fazer. A arte dramtica tem como objectivo

    fundamental a produo artstica e concentra toda a sua energia, jogo e esttica, num

    produto final, num espectculo, na apetncia de agradar a um destinatrio: o pblico.

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    Este resultado, o espectculo teatral, permite questionar a relao que se estabelece

    entre os indivduos e o seu meio sociocultural.

    A expresso dramtica apela, num primeiro instante, ao Ser, capacidade do

    indivduo ou dos indivduos (participantes da aco) se mostrarem tal como so, na sua

    espontaneidade e autenticidade, num processo de relao e interaco. Por sua vez, a

    arte dramtica, a partir do espectculo, apela aos indivduos (pblico) para que se

    identifiquem com as personagens e com a histria. Esta cumplicidade (comunho) entre

    o actor e o pblico permite, no momento do espectculo, ir ao encontro da Histria e do

    entendimento de uma outra realidade, de um outro espao-tempo e tambm de outros

    comportamentos e atitudes da Pessoa. com a identificao destes comportamentos que

    o Homem e a Mulher contemporneos aceitam e compreendem a Histria e as suas

    relaes sociais.

    Nos dois casos, o corpo indispensvel. Ou seja, enquanto na expresso

    dramtica o corpo representa o medium que regista as sensaes, as emoes e

    capaz de as transmitir, na arte dramtica o corpo representa o instrumento sobre o qual

    assenta a representao. Enquanto na expresso dramtica o corpo representa o centro

    de mudana entre o mundo interior e o mundo exterior e a dimenso do aqui e agora,

    que suporta, segundo Barret, G. (1986), uma Pedagogia da Situao, do vivido e da

    aco, na arte dramtica o corpo representa o intermedirio em que o autor e o

    encenador confiam. Finalmente, enquanto na expresso dramtica o corpo , ainda, o

    elemento de contacto entre os participantes, na arte dramtica o corpo o invlucro e o

    contedo da personagem que o pblico quer ver.

    So visveis, do ponto de vista epistemolgico, algumas convergncias e

    divergncias entre expresso dramtica e arte dramtica. Apercebemo-nos que cada

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    uma destas abordagens tem caractersticas especficas que determinam, tambm,

    intervenes especficas para espaos-tempos tambm especficos.

    Dessacralizar o peso acadmico e escolstico das prticas que temos vindo a

    referir fazer com que ambas se integrem profundamente nas comunidades, atribuindo-

    lhes uma importante relao com a espontaneidade, o vivido e a aprendizagem

    permanente das populaes. Para alm da Escola referimo-nos, fundamentalmente, aos

    potenciais grupos socioculturais emergentes nas comunidades: dos empregados de

    servios aos empregados especializados, dos jovens aos reformados, dos analfabetos aos

    diplomados, dos desempregados aos excludos socialmente. Referimo-nos queles que

    querem fazer expresso dramtica por necessidade de convvio, de socializao, de

    desenvolvimento da criatividade, de ocupao dos tempos livres e, tambm, por direito

    de incluso social. Provavelmente, no querem produzir nenhum produto artstico para

    ser visto, admirado, no se querem expor. Tambm no querero dar satisfaes de

    qualquer resultado e tm essa legitimidade reconhecida pela expresso dramtica.

    Outros, apostam na ocupao de tempos livres conducentes criao de produtos

    artsticos e/ou espectculos para a comunidade e, por essa circunstncia, optam pela arte

    dramtica. No estratificamos aqui prticas amadoras ou profissionais, mas

    cartografamos apenas necessidades de ordem espiritual, cultural e comunitria.

    Pode-se resumir assim a oposio das concepes de aprendizagem nas duas

    abordagens ao teatro. A arte dramtica preocupa-se com as aprendizagens extrnsecas,

    que consistem em adquirir algumas capacidades expressivas e teatrais com vista a uma

    representao (importncia dos signos). A expresso dramtica tem como fim primeiro

    a aprendizagem intrnseca, que consiste em desenvolver capacidades expressivas e

    comunicacionais, conducentes auto-realizao (importncia do sentido).

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    autor do livro Teatro e Animao - outros percursos do desenvolvimento sociocultural no Alto Alentejo e de outras publicaes. Tem publicado nestes ltimos 30 anos artigos em revistas nacionais e internacionais.