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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

EDVALDO DE OLIVEIRA SANTOS JÚNIOR

A CONTRIBUIÇÃO DOS CONTOS DE FADAS

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE EDUCAÇÃO

DVALDO DE OLIVEIRA SANTOS JÚNIOR

BUIÇÃO DOS CONTOS DE FADAS PARA A FORMAÇÃO DO EDUCADOR PROFESSOR

NATAL 2017

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

DVALDO DE OLIVEIRA SANTOS JÚNIOR

PARA A FORMAÇÃO DO

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EDVALDO DE OLIVEIRA SANTOS JUNIOR

A CONTRIBUIÇÃO DOS CONTOS DE FADAS PARA A FORMAÇÃO DO EDUCADOR PROFESSOR

Trabalho de Conclusão do Curso Pedagogia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN – em Cumprimento à Exigência Legal – como Requisito para a Obtenção do Grau de Licenciado em Pedagogia.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Alessandra Cardozo de Freitas.

NATAL 2017

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SUMÁRIO

AGRADECIMENTOS _______________________________________________________3

RESUMO _________________________________________________________________4

1 INTRODUÇÃO ___________________________________________________________5

CAPÍTULO I

1.1 BREVE HISTÓRICO DOS CONTOS CLÁSSICOS _____________________________8

1.2 CONTOS DE FADAS: CONSIDERAÇÕES GERAIS ___________________________11

1.3 O CONCEITO DE FICÇÃO _______________________________________________13

CAPÍTULO II

2.1 - CONTOS DE FADAS E EDUCAÇÃO _____________________________________15

2.2 CINDERELA E PELE DE ASNO: PARTICULARIDADES _____________________ 17

2.3 CONTOS DE FADAS E A RELAÇÃO PROFESSOR-ALUNO __________________19

2.4 A FADA: O PAPEL DO PROFESSOR E A RELAÇÃO COM O ALUNO _________ 20

2.4.1 Doador ______________________________________________________________ 20

2.4.2 Auxiliador ___________________________________________________________ 22

CAPÍTULO III

3.1 CONTOS DE FADAS E PEDAGOGIA DO OPRIMIDO ________________________23

3.2 CONTOS DE FADAS E AVALIAÇÃO EDUCACIONAL ______________________ 27

IV CONCLUSÃO _________________________________________________________ 30

REFERÊNCIAS ___________________________________________________________ 34

V ANEXOS ______________________________________________________________ 35

Anexo A CINDERELA _____________________________________________________ 35

Anexo B PELE DE ASNO ___________________________________________________ 40

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AGRADECIMENTOS

Agradeço ao único DEUS verdadeiro e Pai de Jesus Cristo, meu Senhor, por ter me

concedido graça e bom entendimento em tudo.

A minha Esposa, filho e filhas por fazerem parte de minha vida

A Professora Doutora Alessandra Cardozo de Freitas, minha orientadora e

professora em três períodos letivos, com quem aprendi Literatura e também a

usufruir dos bons textos.

“Não Basta sentir-se atraído por esse ato; também é preciso ter a coragem de leva-lo adiante”

Wolfgang Kayser

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RESUMO

Esta pesquisa, inscrita no gênero monografia, constitui uma investigação bibliográfica de caráter exploratório e abordagem qualitativa cujo objetivo é identificar como os contos de fadas clássicos podem contribuir para a formação do educador professor, emergindo como mediadores na formulação e reelaboração de sua prática pedagógica. O processo de produção deste documento constou de leituras interpretativas e análise de livros de contos de fadas, crítica literária, História Cultural francesa, Folclore russo e trabalhos acadêmicos. Procedeu-se a análise dos contos de fadas Cinderela e Pele de Asno buscando-se captar, no domínio da linguagem estética, através das narrativas das relações entre personagens e suas funções, aspectos do processo educativo e ensino-aprendizagem.

Palavras-chave: Contos de fadas. Formação do educador. Processo educativo.

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1 INTRODUÇÃO

A presente monografia pretende apresentar uma investigação de como os contos de

fadas podem contribuir para a formação do educador professor e em suas relações sociais

eeducativas com o aluno, a partir da análise das relações entre personagens dos contos de

fadas clássicos, tendo como fundamentação teórica o pensamento de Robert Darnton sobre a

História Cultural francesa e aporte do materialista histórico de Karl Marx, notadamente, o

pensamento de Paulo Freire e Antonio Gramsci em educação.A relevância da discussão em

torno da formação do educador professor para a educação formal justifica a busca e

estabelecimento de instrumentos de análise que ampliem o debate em torno da temática,

possibilitando melhor compreensão da importância do trabalho pedagógico e das relações

sociais de ensino e aprendizagem em sua complexidade.

Esta produção tem sua relevância para a educação por introduzir um gênero de ficção

literária, de viés marcadamente infantil, como instrumento no debate em educação, como uma

forma de propor orientação ao educador em formação, na perspectiva de afirmação de que o

educador também participa do processo de educação e se educa enquanto educa, sendo, no

processo educativo, na relação social de educação, educador e educando. Dessa forma, sem

negar a importância do gênero conto para a atividade com os alunos, nos níveis do Ensino

Básico da educação, afirma sua relevância também para os professores, como forma de

fornecer-lhes também maior compreensão da importância de seu fazer.

Para efeito deste trabalho procedeu-se uma pesquisa bibliográfica de abordagem

qualitativa e caráter exploratório adotando-se procedimentos de leitura interpretativa e análise

de livros voltados para a história e a críticadoscontos clássicos, em cuja perspectiva se

inscrevem Nelly Novaes Coelho e o folclorista russo Vladimir Propp, do texto de Juan José

Saer sobre ficção e crítica literária, e ainda, trabalhos acadêmicos que sugerem a utilização

dos contos clássicos nos processos de ensino, aprendizagem e desenvolvimento da linguagem

utilizando gêneros textuais. Partindo-se da análise dos contos Cinderela e Pele de Asno,

compilados por Charles Perrault, buscou-se identificar nas formas de relações sociais

apresentadas nessas narrativas, aspectos das relações sociais de ensino e aprendizagem,

entendendo-se que nos contos clássicos essa forma de relação não possui a mesma

complexidade vista em nossos dias.

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Entretanto, alguns questionamentos de cunho epistemológico perpassam esta

produção, além de seu problema central de estudo: se a ficção é utilizada para tratar de

questões

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diversas, abstratas e complexas, porque não deveriam sê-lo para tratar também de temas

pertinentes à educação, dado o grau de complexidade desses temas? Se psicólogos

psicanalistas se utilizam das narrativas dos contos para propor símbolos representativos da

experiência emocional humana como fase oral, auto erotização e luto, por exemplo, porque os

pedagogos não deveriam fazê-lo para ilustrar nuances de processos educativos que estão ali

presentes, ainda que despojadas de sua complexidade? Eos contos de fadas tinham mesmo

função educativa. Também se deve enfatizar que o educador professor deve construir e

ressignificar conhecimentos, de forma criativa, a partir da experiência humana acumulada.

Assim, se em outros campos do conhecimento humano os contos de fadas têm sido utilizados,

no sentido de ressignificar as relações dos homens com o mundo, também os pedagogos

educadores devem usá-los na produção de conhecimentos que possibilitem ao educador

professor ressignificar, reformular e reelaborar suas práticas pedagógicas.

O presente estudocomeçou a ser pensado a partir de um trabalho avaliativo curricular

de menor expressão, em perspectiva interdisciplinar, em que foram utilizados textos do

gênero romance, retirados do livro “Mansfield Park” (1814) da escritora e romancista inglesa

Jane Austen1. A atividade constou da produção de um plano de aula com interdisciplinaridade

entre Língua Portuguesa e Geografia, em que, textos do romance foram utilizados para ensino

de conceitos basilares em Geografia, quanto à forma de conceituação e organização do espaço

geográfico, conforme o movimento humano. Dessa forma, em “Mansfield Park”, foram

identificados textos para serem trabalhados os conceitos geográficos de espaço, de lugar, de

paisagem, de território e de região.

Reflexões a partir dessa atividade curricular foram estendidas paraestudos

semelhantes, voltados para outras áreas do conhecimento e explorando outros gêneros

literários, em que o essencial fosse captar o movimento humano histórico em uma dada

organização social. Prevaleceram as inquietações que impulsionaram o olhar do autor para o

âmbito da Educação, em que se pudesse privilegiar o importante trabalho do educador

professor, uma vez que os estudos anteriores estavam voltados para atividades com educandos

discentes. Dessa forma, optou-se pelos contos de fadas por apresentarem em suas narrativas

relações sociais análogas àquelas existentes nos processos educativos.

1 AUSTEN, Jane. 1775-1817. Mansfield Park. Tradução e notas: Alda Porto. São Paulo: Martin Claret, 2012, p.

99. (Coleção Jane Austen, Vol.3).

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Organizou-se o presente estudo em três capítulos, de forma que no primeiro capítulo,

fosse apresentado histórico breve sobre os contos clássicos de forma geral. Em seguida são

apresentadas considerações gerais sobre os contos clássicos em relação com outros campos de

conhecimento com um adendo breve sobre o conceito de ficção. No segundo capítulo são

analisadas as relações entre os contos de fadas e a educação, como forma de adentrar no

assunto central que é a instrumentalidade dos contos na formação do educador professor,

educador educando, como proposta de formulação e reelaboração de sua prática. O terceiro

capítulo, apresenta uma leitura do capítulo três do livro “Pedagogia do oprimido” de Paulo

Freire, propondo-se uma correlação com os contos de fadas Cinderela e Pele de Asno, com o

objetivo de se apreender e laborar os conceitos e categorias contidos naquele capítulo do livro.

Encerrando o capítulo, são feitas analogias entre os contos trabalhados e avaliação

educacional procedida pela conclusão do trabalho.

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CAPÍTULO I

1.1BREVE HISTÓRICO DOS CONTOS DE FADAS CLÁSSICOS

Os contos de fadas clássicos como conhecemos hoje, foram compilados, na Europa

Ocidental, pelo escritor e poeta Charles Perrault, os irmãos filósofos e historiadores alemães

Jacob Ludwig Karl Grimm e Wilhelm Karl Grimm, e o também escritor e poeta dinamarquês

Hans Christian Andersen. Perrault é considerado o primeiro escritor iniciador do gênero conto

de fadas, sendo também o primeiro a efetuar adaptações nos contos de tradição oral quando

inseridos no mundo da escrita.

O cortesão Perrault publicou sua primeira coletânea de contos, denominada “Contos

de mamãe ganso”, em 1697.Reconhecendo o forte conteúdo das histórias, efetuou adaptações

com o intuito de torna-las suaves para que pudessem ser narradas nos salões literários de

Paris, frequentados, comumente, pelas jovens mulheres elegantes. Não se sabe informar com

convicção como Perrault teve acesso às histórias. O mais provável é que o acesso foi possível

graças à babá de seu filho. Contudo, o certo é que suas histórias procederam da tradição oral

do povo comum. Darnton (1986, p. 24) acrescenta que:

[...] ele retocou tudo, para atender ao gosto dos sofisticados frequentadores dos salões, précieusese cortesãos aos quais ele endereçou a primeira versão publicada de Mamãe Ganso, seu Contes de ma mère l’oye, de 1697. (Grifos do autor).

Os irmãos alemães Jacob e Wilhelm Grimm conseguiram suas histórias com

Jeannette Hassenpflup, ainda segundo Darnton (1986, p. 24) “vizinha e amiga íntima deles

em Cassel; e ela ouviu as histórias de sua mãe, que descendia de uma família francesa

huguenote.”Já os huguenotes, quando fugiram da perseguição de Luís XIV, trouxeram seu

repertório de contos para a Alemanha “Mas não os recolheram diretamente da tradição

popular oral.” (DARNTON, 1986, p. 24. grifos nossos).

Não é tão difícil perceber que os contos clássicos sofreram adaptações conforme a

organização da sociedade em que eram introduzidos e reproduzidos. No entanto, no caso dos

irmãos Grimm, valores defendidos pelos próprios escritores ou mesmo concepções de mundo

desses, podem ter sido causa de atenuação da rudeza das histórias com vistas a reduzir ou

evitar o negativo impacto moral em suas convicções, como se pode entender a partir das

considerações de Corso (2006, p. 29):

A transformação dos contos de fadas em relatos bem comportados e menos grotescos não é absolutamente fruto de arroubos pedagógicos recentes. Por exemplo, já no início do século XIX, ao longo das sucessivas edições das compilações dos

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irmãos Grimm, é possível acompanhar o progressivo abrandamento das tramas e das personagens, como a transformação da mãe em madrasta.

Para sustentar sua afirmação, a autora recorre à procedente citação de Warner2 (1999, p. 244)

transcrita abaixo:

Em seu idealismo romântico, os Grimm literalmente não toleravam que uma presença materna fosse equívoca ou perigosa, e preferiram bani-la completamente. Para eles, a mãe má precisava desaparecer para que o ideal sobrevivesse e permitisse que a Mãe florescesse como símbolo do eterno feminino, a terra natal, e a família em si como o mais elevado desiderato social

Entretanto, apesar das muitas e contínuas adaptações, a estrutura dos contos

permaneceu a mesma. Essa afirmação parte da constatação de Vladimir Propp, após análise de

100 textos narrativos de uma coletânea de 600 contos publicada por Aleksandr Afanássiev

intitulada “Contos de fadas russos”, com 8 volumes. As conclusões de Propp sobre a forma e

estrutura dos contos de fadas se aplicam a todos os contos, inclusive os analisados nesta

pesquisa, e estão publicadas em seu livro “Morfologia do conto maravilhoso”.

Dessa forma, as considerações anteriores nos remetem ao fato de que, entendendo os

escritores dos contos clássicos como homens de seu tempo, ao fazerem adaptações aos contos

também introduziram neles suas visões de mundo. Em alguns casos, esse procedimento

implicava também em acréscimos de objetos que, originalmente, não estavam presentes nas

versões camponesas das narrativas. Na versão produzida por Perrault sobre a menina que foi

enviada pela mãe à sua avó com pão e leite, a personagem infante aparece com um capuz. O

conto ficou conhecido como “Chapeuzinho Vermelho” ou também “Capuzinho Vermelho” e

a versão de Perrault foi a primeira em que a peça de vestuário acessória apareceu, já que,

segundo Darnton (1986, p. 25), “[...] não existe na tradição oral francesa [...]”. Ainda,

conforme esse mesmo historiador, eram inexistentes também, no conto citado, a garrafa que a

menina transportava, a advertência da mãe quanto ao não se desviar do caminho, “[...] as

duas pedras colocadas na barriga do lobo [...]” (DARNTON, 1986, P. 25. Grifos nossos) e o

caçador que as colocara lá.

Entretanto, no simbolismo praticado pelos psicanalistas, o chapeuzinho e a garrafa

tem acentuada importância na análise dos significados dos objetos para o desenvolvimento

emocional das crianças. Esse fato mostra a relevância do conhecimento das transformações ou

adaptações das histórias de fadas através dos séculos, modificações essas reconhecidas por

Darnton (1986, p. 26) na procedente afirmação:

2 In WARNER, Marina. Da fera à Loira: sobre Contos de Fadas e Seus Narradores. São Paulo: Companhia das

Letras, 1999.

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[...] os contos populares são documentos históricos. Surgiram ao longo de muitos séculos e sofreram diferentes transformações, em diferentes tradições culturais. Longe de expressarem as imutáveis operações do ser interno do homem, sugerem que as próprias mentalidades mudaram.

Propp, em tese, parece concordar com a afirmação precedente ao considerar que,

“[...] o conto conservou vestígios de organizações sociais hoje desaparecidas” (PROPP,

2002, p.9).E nesse sentido que os contos parecem enunciar o movimento humano dinâmico na

história, e, ao serem ressignificados apontam para possibilidades de reelaboração do

conhecimento por eles transportados. Dessa forma, na continuidade desse movimento, os

contos de fadas tanto comportaram a vida de crueldade e dureza dos camponeses, declarando

a condição de existência destes, quanto a vida de relativo luxo, alegria e conflitos dos reis e

rainhas, princesas e príncipes, cortesãos, nobres, servos e livres do povo comum. Então, se a

bela adormecida para os cortesãos e cortesãs dormia e foi despertada de seu sono com um

príncipe ajoelhado a seus pés e depois ambos têm um enlace amoroso, a versão para os

camponeses era um tanto diferente, conforme conta Darnton (1986, pp. 27-28):

Numa versão primitiva da “Bela Adormecida” (conto tipo 410), por exemplo, o Príncipe Encantado, que já é casado, viola a princesa e ela tem vários filhos com ele, sem acordar. As crianças, finalmente, quebram o encantamento, mordendo-a durante a amamentação, e o conto então aborda seu segundo tema: as tentativas da sogra do príncipe, uma ogra, de comer sua prole ilícita.

Essa versão primitiva da “Bela Adormecida” contida na sinopse antecedente,

certamente causaria um grande mal-estar se contada no palácio de Luís XIV ou num salão de

Paris, dada sua imoralidade grosseira, capaz de supor que o filho, casado, de um rei,

cometeria um adultério de tamanha morbidez, e que seu ato impuro resultaria em muitos

filhos bastardos. E em verdade, Perrault jamais a contaria naqueles espaços porque, como

homem de seu tempo, vivia dentro das limitações do contexto social de seus dias.

Contudo, não há absurdo em supor que nas narrativas adaptadas à moral e aos bons

costumes, escritas pelo poeta francês, houvesse alguma forma de crítica velada às exigências

impostas ao sexo feminino na sociedade francesa de seus dias. Basta analisar sua versão bem

comportada de “Cinderela”, em que a jovem vai ao baile contrariando a vontade de sua

madrasta e sobressai à suas irmãs postiças. Pele de Asno também age de forma a não se

conformar com a vontade do soberano rei, seu pai, de desposá-la, resistindo-o até finalmente

fugir de seus domínios. Assim, não se pode afirmar que não esteja presente nessas narrativas

críticas à uma ordem social estabelecida, e nem inferir que as histórias de fadas em sua

trajetória de sentidos, significações e ressignificações está eivada de proposições de

conformação feminina à ordem vigente.

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1.2 - CONTOS DE FADAS: CONSIDERAÇÕES GERAIS

Os contos de fadas, em função caráter ficcional e plurissignificativo, têm inspirado

diversas produções, inclusive acadêmicas, em variadas áreas do conhecimento e da indústria

cultural editorial e cinematográfica. As narrativas, que inicialmente sofreram adaptações por

parte de Charles Perrault, Hans Christian Andersen e dos irmãos Jacob e Wilhelm Grimm, ao

serem copiadas das tradições orais das quais faziam parte, foram também ressignificadas com

o advento e o desenvolvimento tecnológico dos processos de editoração, do cinema e da

indústria cinematográfica em geral, que ampliaram as inscrições da ficção em outros

segmentos como o texto em articulação com o desenho impresso e os filmes baseados em

obras impressas.

O caráter ficcional é, provavelmente, o que justifica o emprego do gênero conto pela

Psicanálise para facilitar a compreensão de fenômenos complexos e abstratos do

desenvolvimento emocional humano nos primeiros anos de vida. Ao utilizar as narrativas de

contos fantásticos como metáforas aos conflitos do desenvolvimento infantil, os freudianos

não apenas potencializaram o simbolismo como forma de explicação de nossas angústias

pessoais nas fases mais tenras da vida: também contribuíram, paralelamente, para a

consolidação dos contos clássicos como gênero de literatura infantil. Nessa perspectiva, a

obra do psicólogo psicanalista judeu austríaco Bruno Bettelheim “A psicanálise dos contos de

fadas”(1977), é considerada a principal expoente nesse processo de segmentação da literatura

no século XX, como se pode supor a partir da afirmação de Corso (2006, p.26):

A obra de Bruno Bettelheim foi a pedra fundamental da produção analítica sobre os contos de fadas, ensinando-nos os mecanismos de sua eficácia na vida das crianças. Podemos inclusive dizer que seu texto foi decisivo para a legitimação dos contos de fadas enquanto dignos de fazer parte da formação das crianças contemporâneas. [...] Bettelheim elevou os contos de fadas ao estatuto de recomendáveis, o que certamente também contribuiu de alguma forma para sua sobrevivência e popularidade.

Isso não quer dizer que Bettelheim não teve um precursor. Esse processo pode ter se

iniciado com a publicação, por Charles Perrault, de uma versão do conto “Pele de Asno”

especifica para crianças, inserida na coletânea “Contos de mamãe Gansa” (1697). A

influência do psicólogo austríaco foi significativa em razão da fundamentação teórica em

Psicanálise, ciência relativamente nova que alcançou forte reconhecimento no século XX.

Assim, os contos de fadas, compilados com algumas adaptações, passaram a ser

recomendados especificamente para um público infantil. Ainda que essas adaptações não

justificassem tal segmentação.

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Os contos eram utilizados quando se buscava atribuir significado a alguma nuance

da experiência humana, cuja complexidade tornaria difícil a assimilação ou compreensão por

parte dos grupos humanos, independentemente de faixa etária. Mesmo porque as histórias de

fadas não eram pensadas para uma faixa etária específica, mas como forma de compartilhar a

experiência humana concreta em determinada organização social.

Certamente, os múltiplos significados que se permitem os textos literários,

consentem com abordagens lúdicas dos conhecimentos básicos em Geografia, por exemplo,

como sendo o movimento humano histórico como definidor dos conceitos basilares dessa

ciência. Vista pela perspectiva dos conceitos geográficos basilares, a casa de Pele de Asno

teve dois sentidos e conceitos em dois momentos distintos: num primeiro momento, enquanto

sua mãe, a belíssima rainha, era viva, a residência real era-lhe um conceito de lugar. Ali vivia

com seu pais e os criados que serviam-lhes, tinha seu aposento individual para estar e voltar

após cada passeio e descansar como toda princesa. Assim, desenvolvia uma relação de

afetividade com o espaço, da forma como Pena (2012) propõe:

[...] o lugar pode ser definido como o espaço percebido, ou seja, uma determinada área ou ponto do espaço da forma como são entendidos pela razão humana. Seu conceito também se liga ao espaço afetivo, aquele local em que uma determinada pessoa possui certa familiaridade ou intimidade, como uma rua, uma praça ou a própria casa.

Num segundo momento, após a morte de sua mãe e o nascimento da incestuosa

paixão de seu pai, o rei, por ela, princesa e sua filha, as relações de Pele de Asno com o

espaço se modificaram da mesma forma que as relações com seu pai. O palácio se

transformou em um território onde sua existência passa a ser atormentada pelo assédio do rei,

que tem todo o poder sobre todos os criados e ambientes do espaço físico. Ali já não é mais

seu lugar de descanso e não há mais a relação de afetividade com o palácio [característica do

conceito de lugar]. O palácio transformou-se em espaço de domínio único e exercício de

poder de seu pai, o rei, e para evitar danos à sua integridade física e moral a princesa teve de

se retirar. O palácio, da perspectiva de Pele de Asno, passa do conceito de lugar para o de

território, conforme define Pena (2012):

[...] a conformação de um território obedece a uma relação de poder, podendo ocorrer tanto em elevada abrangência (o território de um país, por exemplo) quantoem espaços menores (o território dos traficantes em uma favela, por exemplo).

Essa brevíssima exemplificação de ensino da Geografia através de contos de fadas,

desenvolvida nos parágrafos anteriores, preenche, em alguma maneira, antiga reivindicação

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de geógrafos como Milton Santos3 (1988, p.21) para quem o ensino da Geografia deveria

pautar-se pela ênfase ao conjunto das relações humanas [o movimento humano] em todas as

suas formas, inclusive as relações de poder, como fatores de transformação do espaço

geográfico. Os exemplos elaborados neste estudo evidenciam que esse empreendimento é

totalmente viável, ainda no plano ficcional literário através das histórias de fadas.

Os contos clássicos preenchem essa concepção de ensino por valorizarem o

movimento humano, ainda em sua forma básica de conflitos familiares. Dessa forma, as

necessidades socioeducativas com as quais o educador professor terá de se confrontar,

justificam todo o esforço do aproveitamento das múltiplas possibilidades das histórias

fantásticas que permitem sua inserção em propostas de ensino em variados campos de

conhecimento científico.

1.3 - O CONCEITO DE FICÇÃO

É bem provável que em meio à multiplicidade de significados atribuídos aos contos

de fadas exista também equívocos múltiplos com relação ao trato com a ficção por parte de

estudiosos, especialmente aqueles que se mantêm alheios à crítica literária. Entendendo assim,

faz-se necessária uma discussão, ainda que breve, dessa categoria essencial no estudo da

Literatura e uma das características principais do texto literário. Contudo, seu conceito não

fica circunscrito à Literatura, conforme o entendimento de Amarilha (2012, p. 84):

[...] o conceito de ficção é extensivo a todas as formas culturais que se utilizam da representação para criar um mundo paralelo ao mundo factual. Assim sendo, incluem-se no mundo da ficção: a Literatura, o cinema, os quadrinhos, os desenhos animados etc.

A ficção pode ser entendida como uma outra maneira de formular e reelaborar a

experiência humana concreta, desatrelando-a de conceitos de verdadeiro ou falso. Na ficção a

realidade é tratada como realidade, sem qualquer sujeição ao que se quer entender como

verdade. É provável que, em função dessa característica, não se vincule tão facilmente a essa

ou aquela ideologia. É nessa perspectiva que o escritor e ensaísta argentino Juan José Saer

ensejava uma compreensão de que;“[...] a ficção não é a exposição romanceada de tal e qual

ideologia, e sim um tratamento específico do mundo, inseparável da matéria de que trata.”

(SAER, 2012, P. 3. Grifos nossos). Ele é autor também da procedente afirmação: “A ficção se 3 O geógrafo torna-se um empiricista, e está condenado a errar em suas análises, se somente considera o lugar,

como se ele tudo explicasse por si mesmo, e não a história das relações, dos objetos sobre os quais se dão as

relações humanas, já que objetos e relações mantêm ligações dialéticas, onde o objeto acolhe as relações

sociais, e estas impactam os objetos. [In, SANTOS, Milton. Metamorfoses do espaço habitado, fundamentos

teórico e metodológico da Geografia. São Paulo: Hucitec, 1988]

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mantém à distância tanto dos profetas do verdadeiro quanto dos eufóricos do falso.” (SAER,

2012, p.3)

Na ficção, o empírico e o imaginário se misturam em maior ou menor grau, e isso em

todo o tipo de ficção [incluindo aqueles citados por Amarilha (2012, p.84)]. Contudo, isso não

acena para a possibilidade de existência da separação entre verdadeiro e falso, e sim que a

ficção por sua própria condição comporta aquelas duas instâncias da experiência humana.

Portanto, deve-se acreditar na ficção como ficção mesmo e não como verdade ou falsidade,

mesmo que ela exista e se faça crível em meio à tensão conflituosa entre esses dois conceitos.

Assim, é nesse contexto que os contos de fadas, como ficção literária, também se situam, não

sendo portadores de verdades e nem de falsidades, mas tratando esse e outros conflitos

humanos no campo da imaginação.

CAPÍTULO II

2.1 CONTOS DE FADAS E EDUCAÇÃO

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A relação entre contos de fadas e educação existe na própria essência dos contos e

também da educação. Os contos clássicos apresentam a primeira instituição de educação

despojada de qualquer compromisso ideológico formalizado: a família. O lugar comum e

dimensão social das histórias de fadas clássicas são as relações sociais da família nuclear,

incluindo seus conflitos e suas ansiedades mais básicas. Contudo, como não se trata de uma

regra geral para o gênero conto, a tradição escrita ocidental dos contos clássicos, classificou

esses contos como contos da infância e do lar, sendo “O rei sapo ou Henrique de ferro”

considerada a primeira dessas histórias.

A essência dos contos e da educação é uma só: as relações sociais, compreendidas

por Marx (1998, p. 101) como sendo a essência do homem, conforme se entende, a partir da

seguinte afirmação: [...] a essência humana não é algo abstrato, interior a cada indivíduo

isolado. É, em sua realidade, o conjunto das relações sociais. Dessa forma, as relações

sociais são também, utilizando-se uma linguagem distensa, a “matéria prima” utilizada na

produção das narrativas dos contos, sendo também a dimensão em que são produzidas, e,

ainda, na qual a educação, como prática social, está inserida e encontra o movimento de sua

funcionalidade.

Certamente outras formas de ralações sociais estão presentes nos contos, como as

relações de produção [Chapeuzinho vermelho leva pão e leite para sua avó], contudo, não tão

presentes no plano da expressãocomo os relacionamentos familiares. Também os nexos entre

família e educação aparecem claramente expostos nas narrativas quando, principalmente as

mães e as madrastas, instruem seus filhos [na maioria das vezes filhas], já que a presença

masculina é comum na mediação dos relacionamentos fora do núcleo familiar, como em A

Bela e a fera, por exemplo, quando o pai da heroína Bela é constrangido pela fera a entregar-

lhe sua filha, ficando como mediador da estranha união.

As histórias de fadas também expõem a necessidade de mediadores externos à

família nos processos educativos. Esse reconhecimento encontra legitimação na personagem

que caracteriza as narrativas como sendo histórias de fadas: as fadas. Elas aparecem como

entes místicos com presença física e exercem função de educadores e orientadores na

resolução dos conflitos familiares dos heróis ou instrutores dos vilões concedendo-lhes lições

ou fazendo com que sofram as consequências de seus atos. São as fadas que comumente

outorgam dádivas com as quais submetem os heróis a provas, como será visto no conto

Cinderela [que recebe os sapatos de vidro e também o tempo determinado para expô-los].

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Certamente, não veremos nas histórias fantásticas a instrução formalizada de nossos

dias, com todo o aparato político ideológico como salas de aula, livros didáticos, planos de

instrução pública, planos de aula, referenciais curriculares etc. Mas a ficção [aqui, a literária]

não precisa estar a serviço de nenhuma ideologia. Contudo, reconhece-se neste trabalho a

educação e a instrução como práticas sociais, ainda que permeadas por muitos interesses e

mediadores políticos ideológicos. Dessa forma, o conceito de educação como prática social

também é reconhecido nas histórias de fadas aqui analisadas, estando, portanto, na essência

do tratamento dado aos contos clássicos, tendo sido esses contos, mediadores na prática social

dos camponeses franceses, conforme a seguinte proposição de Darnton (1986, p. 77-78)

[...] os contos diziam aos camponeses como era o mundo; e ofereciam uma estratégia para enfrenta-lo. [...] Sem fazer pregações nem dar lições de moral, os contos franceses demonstram que o mundo é duro e perigoso. Embora, na maioria, não fossem endereçados às crianças, tendem a sugerir cautela.

Também está caracterizada nos contos analisados uma forma de instrução e educação

reconhecidamente individual, ainda muito presente no contexto educacional reproduzido nos

contos clássicos, publicados por Perrault no fim do Séc. XVII (1697), em que os filhos eram

educados e instruídos pelos preceptores e as filhas por amas de leite ou outra mulher que

exercesse o ofício de educadorainstruindo-as na vida do lar.É sempre conveniente lembrar que

o conceito de educação presente nas narrativas é o de instrução moral, principalmente nos

contos em que a centralidade da história recai sobre as personagens femininas.

Nessa análise, outro ponto considerável é que educação e instrução, nos contos de

fadas analisados, aparecem como instâncias inseparáveis e complementares. Não são, dessa

forma, tratadas separadamente, ainda que isso não seja evidenciado em conversações

especulativas dos personagens. Curioso é que essa matéria seria abordada por Gramsci em seu

princípio educativo (2006, p. 43-44), como podemos entender de sua crítica transcrita abaixo:

Não é completamente exato que a instrução não seja também educação: a insistência exagerada nesta distinção foi um grave erro da pedagogia idealista, cujos efeitos já se veem na escola reorganizada por essa pedagogia. Para que a instrução não fosse igualmente educação, seria preciso que o discente fosse uma mera passividade, um “recipiente mecânico” de noções abstratas, o que é absurdo, além de ser “abstratamente” negado pelos defensores da pura educatividade precisamente contra a mera instrução mecanicista.

No princípio educativo do filósofo e crítico literário italiano educação e instrução são

tão inseparáveis quanto o são também ação e reflexão [constituidores da palavra verdadeira]

na concepção de Freire sobre educação, e essas dicotomias pressupõem deficiência na prática

educativa do educador professor. Assim, na “prática” da fada para com Cinderela é possível

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se perceber a ausência de ambas as dicotomias tratadas nas obras dos teóricos marxistas

referenciados neste estudo. A educação existe com a instrução e a ação não está destituída da

reflexão.

É possível que a análise da importância dos contos para a educação dos camponeses

passe pela seguinte compreensão de Gramsci acerca da formação de intelectuais “orgânicos”

dessa camada social:

[...] a massa dos camponeses, ainda que desenvolva uma função essencial no mundo

da produção, não elabora seus próprios intelectuais “orgânicos” e não “assimila”

nenhuma camada de intelectuais “tradicionais”, embora outros grupos sociais

extraiam da massa dos camponeses muitos de seus intelectuais e grande parte dos

intelectuais tradicionais seja de origem camponesa. (GRAMSCI, 2006, P. 16)

Entende-se que, como não elaborou intelectuais “orgânicos”, por todo o tempo a

tradição oral mediou as relações mais simples e de menor elaboração dos camponeses, e nesse

contexto a figura do contador narrador de histórias de fada conduziu os processos educativos

de reelaboração da experiência nessa camada da sociedade. Se se pensar dessa forma, pode-se

encontrar uma explicação para que as histórias de uma massa ignorante tenha sucumbido à

negação imposta pelas camadas sociais representadas politica e socialmente. Finalmente,

pode-se pensar essa negação a partir da assimilação de sua tradição oral de histórias

fantásticas por uma forma de apropriação escrita de sua produção, sob a forma de adaptação.

2.2- CINDERELA E PELE DE ASNO

Cinderela é mais uma das narrativas em que o casamento compreende o componente

da estrutura do conto entendido como “recompensa do herói”. Também a madrasta má

reaparece como o anti-herói. Darnton (1986, p. 50) apresenta a seguinte explicação:

[...] a demografia do Antigo Regime tornava as madrastas figuras extremamente importantes na sociedade das aldeias. Perrault fez justiça ao assunto em “Cinderela”, mas negligenciou o tema correlato da subnutrição, que se destaca nas versões camponesas do conto.

Além de ser um dos mais conhecido dos contos populares é possível que “Cinderela”

seja o mais antigo. Há menção de uma versão chinesa desse conto datada do século IX, relata

Darnton (1986, p.36):

Raymond Jameson estudou o caso de uma Cinderela chinesa do século IX. Ela recebe suas chinelas de um peixe mágico, em vez de uma fada madrinha, e perde

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uma delas numa festa de aldeia, em vez de um baile real, mas tem uma semelhança inconfundível com a heroína de Perrault.

“Cinderela” também guarda versões com a temática da crueldade requintada, não

encontrada na versão de Perrault, conforme citação procedente de Darnton (1986, p. 28):

Num dos primeiros contos do ciclo de Cinderela [...], a heroína torna-se empregada doméstica, a fim de impedir o pai de força-la a se casar com ele. Em outro, a madrasta ruim tenta empurrá-la para dentro de um fogão, mas, incinera, por engano, uma das mesquinhas irmãs postiça.

Nessa versão, há um fato que assemelha ainda mais esse conto com o conto Pele de

Asno, que é o tema do incesto, um tema ligado ao sexo que faz com que os críticos mais

incisivos reprovem a história para as crianças. E assim, também os contistas escritores

introduzem suas adaptações rompendo com a amoralidade das narrativas, fazendo-as assumir

a moralidade vigente em cada organização social, ou ainda, a moral do próprio escritor.

Quanto a Pele de Asno, pode se dizer que é aquele dentre os contos de fadas

populares mais impopular entre pais e educadores, em razão da centralidade na possibilidade

do incesto entre o rei, pai da heroína e sua filha princesa Pele de Asno, ainda que outros temas

estejam também presentes, como o tema da reconciliação entre os dois. Para além dessa

consideração, o conto se põe no interior de uma estranha contradição: alguns estudiosos

criticam escritores dos contos por introduzirem adaptações moralizantes nas histórias. No

entanto, por questões morais reprovam a narrativa de Pele de Asno. E curiosamente, o assunto

da relação incestuosa que Pele de Asno evita fugindo do reino de seu pai, é de impressionante

atualidade, se considerarmos a crueldade de nossos dias em que crimes sexuais de natureza

incestuosa são praticados, mesmo com filhos do sexo masculino. Assim, o conto constitui

uma orientação para moças e moços que percebam o assédio sexual por parte de seus pais ou

algum outro parente próximo, ainda um padrasto.

O que se verifica é que nada há de imoral no conto Pele de Asno, que apresenta uma

sequência de narrativas muito ricas em ensinamentos e, no entanto, é pouco encontrado em

trabalhos acadêmicos. Alguns estudiosos têm resistências a esse conto em razão de aparecer,

além do incesto possível, mas não efetivado, também o tema da superioridade de raça, já que

o conto ressalta a cor da pele da princesa como nos trechos abaixo:

Gostava de ser jovem, rubra e branca, cem vezes mais elegante que qualquer outra. Esse doce prazer a sustentava e a levava até o outro domingo.

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Era belo o vestido, mas a beleza do rosto, seu contorno puro, sua brancura impecável, seus traços finos, seu jovem frescor, o deixaram cem vezes mais arrebatado. (TATAR, 2013, p. 233-234)

Contudo, aí está um texto que coloca em debate a questão da superioridade étnica.

Não há senão, finalmente, uma oportunidade de se mostrar como textos veiculam concepções

de mundo com certa sutileza lúdica. Também não é possível prever se, numa possível

administração desse conto para crianças, os infantes perceberiam ou não essa sutil

provocação. A propósito, é dessa imprevisão que emergem as inquietações dos educadores

com os sentidos possíveis que as crianças podem atribuir na leitura dos contos de fadas. Tais

inquietações não se justificam porque os contos pressupõem uma forma específica de relação

social, e, na narrativa de Pele de Asno as relações ocorrem num contexto familiar, o que num

primeiro momento pode orientar as discussões com os infantes. Por fim, educadores não

devem temer a curiosidade dos educandos e sim orientar essa curiosidade, pois que ela existe

para que a aprendizagem se realize e o conhecimento se efetive.

2.3CONTOS DE FADAS E RELAÇÃO EDUCADOR PROFESSOR-ALUNO

Mesmo nas relações socioeducativas elementares representadas nas histórias

fantásticas, alguns procedimentos recomendáveis na relação de um educador/a professor/a

com o aluno/a, ainda em nossos dias, estão nas narrativas como a prescrição de um ritual. E

tudo começa com a necessária aproximação da fada madrinha da pessoa de Cinderela e da

mesma forma de Pele de Asno. Essa aproximação das fadas é seguida de uma necessária

entrada no mundo de suas “afilhadas”. Como entrada no mundo, entende-se a proximidade,

entrada e participação da realidade daquelas que seriam o alvo do processo educativo

instrutivo.

No caso específico de Cinderela a fada não apresenta questionamentos quanto a suas

competências ou habilidades para adquiri-las. A fada lhe concede a possibilidade de ir ao

baile, porém, ao determinar o cumprimento de horário como prova não questiona sua

capacidade de cumpri-lo. Ao entregar à Cinderela o par de sapatos de vidro, a possibilidade de

ela não saber andar com os sofisticados calçados não foi considerada nem mesmo como

antecipação de expectativa. Também não lhe foi perguntado pela fada se sabia andar com os

sapatos delicados que lhe foram concedidos como doação. Outrossim, a educadora de

Cinderela demonstra confiança quanto às possibilidades e competências de sua auxiliada. E

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bem claro está na narrativa que os sapatinhos de vidro eram objetos ímpares. Portanto, a fada

não procedeu, em sua relação com Cinderela, com pressuposição de incapacidade da heroína.

É relevante para o trabalho educativo instrutivo que o educador professor mantenha

expectativas positivas quanto a emergência de aprendizagens com relação ao educando.

Infelizmente, não é incomum nas atuais escolas, educadores professores tecerem expectativas

negativas com relação às competências dos educandos, antes mesmo de lhes apresentarem

alguma tarefa. Difícil é dizer de forma afirmativa, qual a origem de tal conduta. Alguns

comportamentos desse tipo parecem estar fundamentados em prescrições de atividades para

determinadas faixas de idade ou nível de ensino e conhecimento, formuladas por algum

campo do conhecimento científico. Contudo, o aprendizado de alguma habilidade ou o

desenvolvimento de alguma competência pode ocorrer num momento em que o educando

tenha necessidade ou vontade de adquiri-la. Dessa forma, não há conceito científico que

justifique a pressuposição da incapacidade de um educando por parte do educador que o

educa e instrui.

2.4A FADA: PAPEIS DO EDUCADOR PROFESSOR NA RELAÇÃO COM O ALUNO

2.4.1 Doador

No conto popular Cinderela, é atribuída à fada a personagem de “doador místico”,ou

agente místico que entrega um objeto místico ao herói ou à heroína, na classificação de Antii

Aarne e StithThompsom. No mesmo conto é também atribuído à fada a personagem “auxiliar

sobrenatural”, um agente místico que auxilia o herói.A compreensão que se pode aplicar,

neste contexto, ao educador professor educando quanto ao seu papel diz respeito ao caráter

simbólico representado por sua influência e sua representação social na vida do aluno. A

influência do educador professor tem seu significado místico quando de sua ausência da

realidade concreta de seu aluno, e, nesse sentido, ela é simbólica.

O objeto mágico presente no conto de Cinderela que melhor ilustra o ato de doação é

o sapatinho de vidro, doação da fada madrinha para Cinderela. O sapatinho de vidro constitui

o modificador determinante do destino4 de Cinderela. Ele não é o algo transformado a partir

de um ser ou algo anterior, como a abóbora transformada em carruagem ou os camundongos

transformados em cavalos. O sapatinho de vidro é representativo da doação peculiar da fada,

4 O termo é utilizado neste estudo com o sentido de devir ou vir a ser e não como um ponto estático alcançado.

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específico de seu próprio ser, à semelhança da maneira que o professor retira algo de si

mesmo, de seu mundo, para possibilitar a transformação do aluno ou modificar seu

destino.Contudo, deve-se compreender, para efeito deste estudo, que o sapato de vidro se

produz à partir do diálogo da fada com Cinderela e em contextualização com sua “realidade

fictícia”. Ou seja, significa o fazer da fada em consonância com a condição da heroína e não

vem à existência como forma de imposição da fada.

O sapatinho de vidro não fazia parte do mundo de Cinderela, mas do mundo da fada,

se o pensarmos como doação ou dádiva mística. Nesse sentido, a questão é que um

instrumento novo é introduzido no mundo de Cinderela, modificando seu mundo e

possibilitando seu destino. E isso tendo origem num ato de doação da Fada madrinha, no

sentido de acrescer algo conforme as circunstâncias exigiam. Por metáfora, entendemos que o

conhecimento novo com sua instrumentalidade deve ser introduzido no mundo do aluno,

mesmo não fazendo parte dele, mas da perspectiva do educador professor, se efetivamente as

circunstâncias mostram que é algo determinante para seu destino, mesmo não sendo prescrito

ou normatizado pela orientação política.

Nas análises de Psicanalistas como Bruno Bettelheim os sapatinhos de vidro são

símbolos da virgindade. Contudo, na hermenêutica bíblica, o calçado, que reveste o pé, que é

a base do corpo, e auxilia o andar [entendido como conduta], simboliza o conhecimento,

como a base de toda a forma de relação social e conduta segura. Provavelmente, no contexto

do conto, representava um conhecimento mais refinado, pois Cinderela tornou-se diferenciada

pela conduta e forma agradável de conviver com as outras personagens da narrativa, após

instruída e colocada à prova pela fada madrinha.

O outro significado que se pode atribuir, aqui, é que a administração dos bens

espirituais ou culturais, representados pelo conhecimento científico, constitui também um ato

de doação do docente. Entretanto, o ato de doação na prática pedagógica, não consiste apenas

de transmissão de conhecimentos sistematizados e impostos como visão de mundo do

educador professor, mas também de estabelece-los perante o aluno como elemento importante

na elaboração de estratégias de adaptação e enfrentamento de circunstâncias da vida em

sociedade, da vida no mundo e da vida do mundo. A condição de doador é, portanto,

provavelmente, a que identifica a docência como um ato de amor, sendo também o ato de

amor um ato transformador, o ponto modificador da vida do aluno. É importante considerar

que essa relação professor-aluno representada metaforicamente nos contos analisados,

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aparecem numa forma não intensamente politizada, ou seja, sem uma impregnação política,

não marcada por documentos oficiais normativos e prescritivos, característica de nosso

contexto social.

2.4.2 Auxiliador

Nos contos analisados tanto as fadas auxiliam quanto são auxiliadas. Entretanto,

observe-se que, primeiramente, elas auxiliam, e com essa ação conseguem também o auxílio

das heroínas Cinderela e Pele de Asno. Dessa forma, quando Cinderela auxilia a fada, esta já

havia desempenhado todo um trabalho para promover sua ida ao baile. Observe-se que,

mesmo aqui, há a relação de cumplicidade entre auxiliar e auxiliado em que um auxilia ao

outro. Como forma de exemplificar utiliza-se aqui fragmento da seguinte narrativa de Saint-

Exupéry (2009, p. 66):

Eu procuro amigos. Que quer dizer “cativar”? - É algo quase sempre esquecido – disse a raposa. -Significa “criar laços”... -Criar laços? -Exatamente – disse a raposa. – Tu não és ainda para mim senão um garoto inteiramente igual a cem mil outros garotos. E eu não tenho necessidade de ti. E tu também não tens necessidade de mim. Não passo a teus olhos de uma raposa igual a cem mil outras raposas. Mas, se tu me cativas, nós teremos necessidade um do outro. Serás para mim único no mundo. E eu serei para ti única no mundo...

O diálogo entre o Pequeno Príncipe e a Raposa é bem apropriado para se entender

como deve ocorrer a aproximação e um início de relacionamento entre educador educando e

educando educador. Tanto foi assim no conto Cinderela quanto na narrativa de Pele de Asno.

Assim, se efetivou a relação entre auxiliares nos dois contos. O diálogo precedente, extraído

da fábula “O Pequeno Príncipe”, não somente ilustra como deve se dar a aproximação, mas

também sua importância para todo o processo educativo, para sua continuidade. Ilustra ainda,

que processos educativos dependem do estabelecimento de vínculos, especialmente aqueles

processos entre educador e o educando infantil.

No capítulo 3 do livro “Pedagogia do oprimido” do educador Paulo Freire, essa

forma de aproximação é conceituada como “aproximação simpática”. Alguns dos conceitos e

as categorias ali mencionados são tratados no capítulo 3 deste trabalho, na seção “Contos de

fadas e Pedagogia do oprimido”. Por fim, os contos Cinderela e Pele de Asno, sugerem bem

que a relação de auxilio mútuo entre educador e educando fica na dependência da

cumplicidade estabelecida pelos “laços” ou vínculos que se formam quando da aproximação.

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CAPÍTULO III

3.1CONTOS DE FADAS E PEDAGOGIA DO OPRIMIDO

Neste tópico será desenvolvida uma breve articulação entre os contos analisados

neste trabalho e os conceitos Freire (2005, pp. 89 –139) expostos no capítulo 3 do livro

“Pedagogia do oprimido”. Certamente outras articulações são possíveis com relação a outros

contos clássicos. Uma abordagem lúdicada obra desse educador brasileiro se entende como

necessária e relevante pelo fato de muitos alunos de graduação em Pedagogia demonstrarem

dificuldades de apreensão de seus conceitos e categorias, o que em muitos casos, conduz a

uma compreensão distorcida e consequente rejeição de sua obra, que se evidencia em críticas

discriminatórias que não geram conhecimento novo, bom e proveitoso para a educação dos

educadores.Os conceitos e categorias de Freire serão grifados para facilitar a identificação.

A grosso modo, mas apropriado ao diálogo com a ficção, a fada elabora todas as suas

ações fundamentando-as na demanda de Cinderela, no “conteúdo programático” entregue a

ela pela própria heroína: o desejo de ir ao baile, de participar de uma atividade social de

congraçamento, tido como algo de relevância social e, portanto, bastante concorrido. Na

concepção de educação freireana, o conteúdo [...] se organiza e se constitui na visão de

mundo dos educandos, em que se encontram seus “temasgeradores” (FREIRE, 2005, P. 119).

O estar no baile, se inseriu no processo que culminaria na mudança da condição social de

Cinderela, no qual seu devenir5 seria determinado, sua adversidade teria um fim, não sem

antes passar pelas provas a que foi submetida.Atenta ao desejo de Cinderela de ir ao baile, a

fada aplica toda a criatividade que favoreça e concretize o desejo da heroína e, reverta sua

condição de oprimida pela madrasta e as irmãs postiças.

A partir dessa perspectiva, pode-se propor que a ação da fada apresenta um

procedimento que se remeteao modelo freireano, em que, mais do que possibilitar a ida de

Cinderela ao baile promovido pelo rei a seu filho, estaria o interesse de investigar as

5 Expressão utilizada pelo educador Paulo Freire com o significado de devir ou vir a ser.

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condições em que suas impossibilidades se produziam. Nesse sentido, a fada se insere no

contexto em que se dá o soluçar, as ânsias e a negação da dignidade de Cinderela

“Eu gostaria tanto de...eu gostaria tanto de...” Cinderela soluçava tanto que não conseguia terminar a frase.

A madrinha, que era fada, disse a ela: “Você gostaria muito de ir ao baile, não é?”

“Ai de mim, como gostaria”, Cinderela disse, suspirando fundo.

“Pois bem, se prometer ser uma boa menina eu a farei ir ao baile.” (TATAR, 2013, p. 50-51)

Antes de prosseguir com essa análise, convém lembrar que o trabalho de Freire foi

proposto e empreendido considerando um coletivo adulto num processo de alfabetização. Ou

seja, sua proposta era de alfabetização de adultos. As analogias feitas neste estudo consideram

um processo educativo, inicialmente, de caráter individual. Contudo, um coletivo foi

modificado, nesse caso, a família da qual Cinderela era parte integrante. Outro dado

interessante é que em sua metodologia Freirerecomenda utilizar um membro da comunidade

para se ter acesso a todo o coletivo, e esse procedimento de “aproximação simpática” foi

cumprido pela fada nos dois contos analisados.

Prosseguindo com a análise de Cinderela,e ainda referendando Freire, a investigação

dos temas geradores compreenderia suas relações com o pai, a madrasta, suas irmãs postiças e

sua relação com a fada e o mundo. Na narrativa, todo o desenrolar da história de seus

relacionamentospermite supor seu universo temático, em que estão envolvidos vários temas

geradores. No conto, esses temas aparecem, por vezes declarados e outras vezes suprimidos.

Por exemplo: a heroína não relata seu sofrimento à fada madrinha, somente afirma seu desejo

de ir ao baile real. Ou seja, ocorre uma omissão, considerando o contexto do conto. Todas

essas proposições constituem o conteúdo programático de Cinderela, ainda havendo silêncio,

como se entende da sugestão procedente:

Ainda quando um grupo de indivíduos não chegue a expressar concretamente uma temática geradora, o que pode parecer inexistência de temas, sugere, pelo contrário, a existência de um tema dramático: o tema do silêncio. Sugere uma estrutura constituinte do mutismo ante a força esmagadora de “situações limites”, em face das quais o óbvio é a adaptação. (FREIRE, 2005, p.114)

O “tema do silêncio” tornou-se subjacente ao tema “ir ao baile”, sendo-lhe anterior

como se lê no fragmento extraído do conto em que: “A pobre menina suportava tudo com

paciência. Não ousava se queixar ao pai que a teria repreendido, porque era sua mulher

quem dava ordens na casa.” [TATAR, 2013, P. 47(grifosnossos)]. Ao proceder a

investigação, juntamente com Cinderela [uma vez que a metodologia de investigação

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conscientizadora na educação problematizadora acontece com educador educando + educando

educador e sendo ambos investigadores], a fada potencializa a emergência de outros temas,

além do “tema do silêncio”. Na “palavra geradora” [...] eu queria ir [...] está latente e a

emergir o “tema da negação”, ou seja, “queria ir” porque lhe foi negado ir, e dessa forma “ir”

tornou-se uma “situação limite”, pois que se lhe impuseram um impedimento.

A temática da negação é ampla na narrativa de Cinderela. Pela intolerância, sua

madrasta negava [...] as boas qualidades da enteada, [...] que era a doçura em pessoa e de

uma bondade sem par.”Negava-lhe também a condição digna no espaço físico que era

concedida à suas filhas e irmãs postiças da pobre menina, pois, “Depois que terminava seu

trabalho, Cinderela se metia num canto junto à lareira e se sentava no meio das cinzas.”

(TATAR, 2013, P. 47).Também a beleza de Cinderela era negada pois que, impedida de ir ao

baile, não seria conhecida pelos demais membros da sociedade e pelos cortesãos. Aqui, é

importante considerar o que Freire (2005, p. 115) assinala ao afirmar que “Os temas, na

verdade, existem nos homens, em suas relações com o mundo, referidos a fatos concretos.”

Sem a investigação, que acontece em conjunto com o investigador e os homens no mundo, e

no conto, acontece com a fada e Cinderela procedendo a investigação conjuntamente. Dessa

forma, é possível perceber que o “tema do silêncio” abriga a negação da “pronúncia do

mundo” à Cinderela.

Em Pele de Asno, conto que guarda algumas semelhanças com Cinderela, a heroína

também enfrenta uma “situação limite” em que o “tema do medo”está embutido no “tema

gerador” [opressão]. A “situação limite” de Pele de Asno exigiu de sua fada madrinha uma

sequência de “ações+reflexões” em que a estratégia de resistência ao opressor sofreu quatro

reelaborações de uma forma de mediação envolvendo o vestuário. Após a quarta reelaboração

no processo de superação da “situação limite”, a fada procede, juntamente com Pele de Asno,

uma “reunião de avaliação” em que propõe à princesa o “inédito viável” de que ela ainda

não havia se conscientizado, contrário à provável adaptação que começava a se mostrar como

solução “óbvia” que por pouco não prevaleceu quando “A princesa, admirando esse traje

deslumbrante, [um vestido...que o astro da noite não tenha mais esplendor...] chegou quase a

decidir dar seu consentimento.” Após instrução da fada, Pele de Asno decide por impor uma

nova condição ao rei e seu pai apaixonado: “[...] um vestido ainda mais brilhante e da cor do

sol.”

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Ante a “situação limite” imposta por seu pai, rei e governante, de querer casar-se

com a própria filha, intento insensato que a filha deveria recusar sem contradizer, a fada

propõe a Pele de Asno o “inédito viável” de sair do palácio real, situação que estava assim

configurada:

A princesa deveria dar ao rei a entender ao rei que estava disposta àquele casamento. Ao mesmo tempo, porém, sozinha e bem-disfarçada, deveria partir para alguma província distante para evitar um mal tão próximo e tão certo. (TATAR, 2013, p. 231)

Aqui também se vê a importância da avaliação dentro do processo de “investigação

das temáticas geradoras” com o sentido de propor correções ao processo. As correções

propostas na relação “dialógica” entre a fada e Pele de Asno visaram sempre a superação da

“situação limite” evitando-se a adaptação “óbvia” que consistiria em manter-se dentro da

“situação limite”, em que Pele de Asno existiria na condição de “quase coisificada”.Essas

proposições também se aplicam à análise de Cinderela.

Ao propor uma leitura de Cinderela e Pele de Asno na perspectiva da educação

problematizadora dialógica deve-se consentir com a análise de que fadas e heroínas estão em

constante diálogo e relação de consentimento e sujeição mútuas, num conceito em que Freire

(2005, p. 97) considerou a educação como um processo que ocorre “de um com o outro” e

“de A com B”. No conto Cinderela essa concepção é confirmada quando a jovem também

tem“autonomia” para fazer proposições como no fragmento procedente:

. E vendo a madrinha confusa, sem saber do que faria um cocheiro, Cinderela falou: “Vou ver se acho um rato na ratoeira. Podemos transformá-lo em cocheiro.”

“Boa ideia”, disse a madrinha, “vá ver.” (TATAR, 2013, p. 52)

Em Pele de Asno, também existe a proposição de que a fada se educa e se instrui

juntamente com a princesa, se se atentar para o seguinte fragmento da narrativa:

Aquela fada era muito sábia, mas ainda não aprendera que o amor arrebatado ignora ouro e prata quando quer ser saciado. A pele foi pronta e galantemente concedida, mal a infanta pediu. Quando recebeu a pele, a menina ficou aterrorizada e queixou-se amargamente de sua sorte. Sua madrinha apareceu e ponderou. “Quando fazemos o bem”, disse, “nunca devemos temer. ” (TATAR, 2013, p. 231)

Nas duas narrativas se vê a ação consentida das fadas, no sentido de liberar da

opressão as heroínas, de forma “problematizadora”. Ou seja, o “conteúdo” recebido de

Cinderela e Pele de Asno, pelas fadas, volta para as jovens na forma “problematizada”. Toda

a “metodologia de investigação dos temas geradores” ao revelar uma “situação limite” pela

“ação conscientizadora” buscava conduzir as heroínas à superação da condição de oprimidas,

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superando a “situação limite” e se “humanizando”. Observe-se que ao final dos contos

Cinderela e Pele de Asno são pessoas melhores, considerando o contexto das narrativas.Dessa

forma, os contos analisados propõem que uma “situação limite” supõe uma possibilidade de

que se tem consciência de forma imediata que é a adaptação, e outra que requer um esforço de

conscientização que é o “inédito viável”. Mas eles parecem apresentar o “inédito viável”

como melhor opção, ou pelo menos propor que os esforços para viabilizá-lo são

compensadores.

3.2CONTOS DE FADAS E AVALIAÇÃO EDUCACIONAL

Definitivamente, não há educação e instrução sem a pressuposição de avaliação de

todos os envolvidos no processo. Tanto educador educando quanto o educando educador são

avaliados em seus procedimentos em qualquer forma de educação. E nos dois contos aqui

estudados e tratados essa afirmação é válida e confirmada como pode ser visto neste tópico.

Dessa forma, pode-se afirmar com segurança que todo processo educativo instrutivo

pressupõe uma forma de avaliação. E tais são os nexos entre as histórias de fadas e educação

instrução que a ficção literária não renunciou a esse dimensionamento de processo.

Segundo Luckesi (2008, p. 92):

O termo avaliar [...] tem sua origem no latim, provindo da composição a-valere, que quer dizer”dar valor a...”. Porém, o conceito “avaliação” é formulado a partir das determinações da conduta de “atribuir um valor ou qualidade a alguma coisa, ato ou curso de ação...”, que, por si, implica um posicionamento positivo ou negativo em relação ao objeto, ato ou curso de ação avaliado.

Em Cinderela, a fada madrinha, já no início da abordagem, antecipa o “critério de

avaliação” ao propor à heroína: “[...] se prometer ser uma boa menina eu a farei ir ao

baile”.(TATAR, 2013, p. 51). E isso antes de submetê-la às provas. Se Cinderela era avaliada

em sua bondade, Pele de Asno, a julgar pela sequência de provas semelhantes, foi avaliada em

sua persistência, e entre uma e outra prova o processo era revisto. É relevante observar que os

processos a que as heroínas foram submetidas tinham o intuito de desenvolver e aperfeiçoar a

conduta de cada uma delas, além de verificar a emergência de potencialidades latentes sem

reprova-las.

Cinderela, ao retornar do baile real, se dirige à fada madrinha para agradecê-la e

combinar uma segunda ida ao baile seguinte. Ainda que não esteja formalizada como tal esse

encontro entre fada e Cinderela configura de alguma forma uma reunião de avaliação. Quanto

a Pele de Asno e sua fada os processos foram mais intensos dada a “situação limite”que se

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configurara. Foi submetida a 4 momentos de avaliação e ao final de cada um deles, em

nenhum momento se falou em fracasso ou erro, mas em correções seguidas de rumo,

conforme trechos da narrativa transcritos abaixo.

A princesa foi ter com o pai sem demora e, trêmula de medo, formulou seu desejo.

O rei, no mesmo instante, fez saber aos costureiros mais reputados que se não lhe

fizessem, e rápido, um vestido da cor do tempo podiam estar certos de ir parar no

cadafalso.

Mal a princesa formulara seu pedido, o rei disse a seu bordador: “Que o astro da noite não tenha mais esplendor, e que me seja entregue em quatro dias sem falta.”

O rico traje ficou pronto no dia marcado, tal como o rei especificara.

Mas, inspirada pela madrinha, disse ao rei apaixonado: “Só ficarei contente se tiver um vestido ainda mais brilhante e da cor do sol.”

O rei, que a amava de um amor desvairado, mandou vir imediatamente o rico lapidário e lhe ordenou que fizesse um vestido de um tecido magnífico de ouro e de diamantes, dizendo que, se não desse conta da encomenda, o faria morrer em meio a mil tormentos.

A infanta, por esses presentes ainda mais confundida, já não sabia o que responder ao rei seu pai. Mas depressa a madrinha a tomou pela mão: “Não hesite,” disse-lhe ao pé do ouvido, “você está no bom caminho. Afinal, não são assim tão grandes prodígios todos esses presentes recebidos. Veja, o rei tem aquele asno que não para de lhe encher as burras de escudos de ouro. Peça a ele a pele desse raro animal. Sendo ele a fonte de sua fortuna, ou muito me engano, ou isso você não terá.” (TATAR, 2013, p. 230-231)

Observe-se, nesse último parágrafo, a avaliação da fada sobre a sequência de provas

a que Pele de Asno foi submetida: [Não hesite...você está no bom caminho (TATAR, 2013,

p.231)]. A fada acompanhou todo o processo, orientando cada fase. E no momento em que

Pele de Asno pensava em ceder a fada fazia-a rever o processo e apresentava uma nova

estratégia. É provavelmente um dos melhores contos para se pensar processos de avaliação,

em função da noção de etapas de um processo, incluindo as “reuniões de planejamento.”Não

se labora com noções de “dar certo” ou “dar errado” mas, de superação da “situação limite”

buscando-se o “inédito viável”. Dessa forma, o apartar-se da casa paterna não significou o

“fracasso” ou “abandono” mas o “inédito viável”, a passagem para outra sequência, outra

fase do processo.É nesse sentido de sequência e permanência que Libâneo (2013,

p.195)parece compreender a avaliação, como se pode entender da seguinte afirmação:

A avaliação é uma tarefa didática necessária e permanente do trabalho docente, que deve acompanhar passo a passo o processo de ensino e aprendizagem. Através dela, os resultados que vão sendo obtidos no decorrer do trabalho conjunto do professor e dos alunos são comparados com os objetivos propostos, a fim de constatar progressos, dificuldades, a fim de reorientar o trabalho para as correções necessárias.

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Esse conto não termina com a frase “E foram felizes para sempre” ao final, e sim

com uma nova reunião entre Pele de Asno e a fada madrinha que “contou como tudo tinha se

passado...” (TATAR, 2013, p. 239), recapitulando algumas fases do processo entre

adversidade e prosperidade [superação da adversidade], inclusive aquelas após a partida de

Pele de Asno da casa do rei. É importante que o educando conheça todo o processo avaliativo

e a importância das fases das quais não tinha consciência, que para a princesa significou

aquelas em que esteve fora da casa paterna. E também o educador deve ver a ausência do

educando como momento do processo em que as decisões e fases devem ser refletidas e novas

formulações devem ser consideradas. Ou seja, o processo avaliativo está em curso. E também,

a vida do educando prossegue no mundo. Assim, se Pele de Asno, diferentemente de

Cinderela, não deve servir para as crianças como alguns sugerem, certamente é bem

recomendável para educadores professores que queiram pensar melhor processos avaliativos.

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IV CONCLUSÃO

Desde a sua concepção e na explicação de suas teorias a Psicanálise tem se utilizado

de tragédias gregas (Freud), histórias e símbolos míticos (Carl G. Jung), conseguindo se fazer

compreender e se estabelecendo como ciência. Para ilustrar e explicar o conflito íntimo

humano da busca de definição da (s) identidade (s) e formação da personalidade, Freud

buscou apoio da ficção na tragédia grega “Édipo Rei” do escritor e dramaturgo grego

Sófocles. Com suas teorias “do inconsciente coletivo e dos Arquétipos”, Jung utilizou

largamente o suporte oferecido pela mitologia para fundamentar sua concepção psicanalítica

de que os fatores externos, como símbolos e crenças, exercem também influência relevante na

formação e consolidação da (s) mesma (s) identidade (s), e também estão na base das

ansiedades humanas desde a infância, conforme situa Coelho (2012, p. 122).

[...] Jung aponta as raízes da simbologia presente nos mitos e contos de fadas e também a eles atribui não só a identidade de motivos que aparece nesses mitos e contos populares em todas as regiões do mundo, mas igualmente o fascínio que eles têm exercido sobre os homens de todos os tempos.

Não se pode afirmar que tais elaborações teóricas foram decisivas para a aceitação e

afirmação da Psicanálise como ciência, mas, certamente foram úteis em suas explicações

teóricas e consolidação.

Seguindo perspectivas semelhantes, o psicanalista Bruno Bettelheim, viu nos contos

de fadas clássicos de Perrault, dos irmãos Grimm e de Andersen, suportes para se explicar e

se compreender aqueles conflitos internos ao ser humano já estudados, analisados e teorizados

por Freud e Jung. O procedimento desses estudiosos dos fundamentos do comportamento

humano aponta para a consideração de que não há antagonismos ou contradições entre

Ciência e gêneros de ficção literária, e os bons resultados alcançados no entrelaçamento entre

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essas instâncias do conhecimento humano reside em uma constatação simples: ambas são

fatos sociais. Dessa forma, não há nenhuma deposição contrária a que a Pedagogia, como

Ciência da Educação, desenvolva abundante produção de conhecimento tendo aqueles

gêneros como suporte.

Essa afirmação conclusiva anterior quanto à Pedagogia como Ciência, requer uma

formulação complementar. Antes que a Ciência ou o conhecimento científico fosse concebido

ou legitimado como tal, os mestres da antiguidade, chamados sábios, já utilizavam,

largamente, gêneros inscritos nas tradições oraisem processos de educativos formulando seus

ensinamentos. Posteriormente, com o desenvolvimento da escrita, esses gêneros são

incorporados pelas tradições escritas e continuaram a ser integrados aos processos educativos,

em práticas de ensino. Essas proposições consideradas, e pensando-se a educação e todos os

processos nela envolvidos como objeto de estudo da Pedagogia, entende-se que não há o que

obstaculizar ao se pensar os gêneros literários, aqui, os contos de fadas, como mediadores na

compreensão e reelaboração do trabalho pedagógico, especialmente, quando essa prática está

neles formulada de alguma forma, como se buscou mostrar neste trabalho. Assim, não se

percebe, nessa análise, qualquer inadequação em que o educador professor se veja e se

perceba a si e a seu trabalho refletido em contos populares, mesmo que para isso a superação

de algum paradigma se imponha como em seguida se considera.

Quando um educador professor tem diante de si uma obra, que seja um texto ou um

livro inserido no conceito de ficção, certamente, a melhor pergunta a fazer a si próprio não é:

o que posso ensinar com isto? Mas, o que posso aprender com isto ou aprender ensinando

isto? Pois, se considerar que um determinado gênero textual é “para criança”, ou é “para

adolescente” ou ainda “para o aluno” e, portanto, não é algo que deva ter acesso a menos que

esse acesso seja para utilizar em sua prática de ensino, estará neutralizando uma possibilidade

de aprendizado pessoal, além de estar negando aquilo que é do mundo daqueles que chama de

alunos ou educandos.

Se se entende o conceito de ficção como pronunciado por Saer (2012, p. 3), sendo

“um tratamento específico do mundo, inseparável da matéria de que trata” [Grifos

nossos],está se acatando a ficção como um modo específico de tratar algo, e, então uma forma

de dialogar com algo, o que implica em uma forma de linguagem. Nesse sentido, se tem uma

outra forma de expressão do mundo que permite pensar de outra maneira e elaborar a

experiência de outro modo. Dessa forma, quando se propõe, pela ficção literária, e no caso

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específico deste trabalho pelos contos de fadas populares, a elaboração de uma experiência

formativa como educador, propõe-se pensar uma forma de fazer algo de outro modo. Fazer

como educador e educando ao mesmo tempo, buscando educar-se para educar.

Outra compreensão é que ao participar dos contos de fadas, fruindo-os como

literatura infantil, como “material para criança” ou “para pré-adolescentes” e ainda “para

adolescente” [ mesmo isso não sendo verdadeiro ], também se participa daquilo que se usa

para “trabalhar com criança” e então se tenta participar da compreensão desses membros da

sociedade.

O que se pretende aqui é propor, mesmo utilizando-se apenas dois contos de fadas,

lançar um outro olhar sobre um gênero para a partir daí se elaborar uma experiência educativa

de outro modo, refletindo-a de uma forma em que o educador se veja e se perceba como

educador e como educando, afinal as histórias de fada foram escritas para educadores e

educandos, para adultos e para crianças e adolescentes. Isso implica em rompimento com um

olhar crítico discriminador para se lançar um olhar quebusque captar o movimento humano e

percebê-lo em sua dinâmica. Mesmo porque a o caráter ficcional da obra literária consente

com a busca de compreensão da realidade em seu movimento. Dessa forma, a realidade que o

educador professor pode compreender com seu olhar é a realidade da experiência educativa

que os contos populares conseguem expor com certa especificidade, ora explicitando o fazer

do educador educando, ora explicitando o fazer do educando educador e o fazer de ambos um

com o outro.

Foram analisadas nesta pesquisa algumas formas de relações sociais de ensino e

aprendizagem em que se buscou identificar e situar algumas faces do processo educativo.

Contudo outros contos e outros gêneros podem ser analisados dada a riqueza de suas

contribuições. Se para os contos não valem o didatismo e o moralismo, valem, porém, o rigor

metodológico da pesquisa científica e a humildade de construir conhecimentos formulando

aprendizagens pessoais e coletivas significativas. As histórias de fadas não esgotam o

fenômeno humano, tampouco um estudo incipiente poderia dar conta da riqueza dos contos.

Contudo, pôde-se constatar a existência de uma bibliografia considerável sobre o assunto

além de uma vasta produção acadêmica em campos diversificados do conhecimento

científico.

Outro passo considerável e que seria de grande relevância para pesquisa nessa

proposta é a verificação das relações dos educadores professores com contos de fadas,

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identificando os sentidos atribuídos pelos docentes ao gênero e o tipo de uso que porventura

façam das obras desse segmento. Também seria importante investigar as expectativas dos

educadores com relação aos resultados de aprendizagens propostas no uso dos contos

populares, o que não é possível apenas com a pesquisa bibliográfica.

Com relação ao estudo relacionando os contos com as categorias de Paulo Freire,

especificou-se bem que somente foi considerado um capítulo do livro “Pedagogia do

oprimido”. Contudo reconhece-se a necessidade de maior aprofundamento, quem sabe,

evoluindo para outros capítulos até esgotar o livro. Esta possibilidade se apresenta como

viável em próximos trabalhos seguindo esta mesma proposta. Finalmente, correlações

possíveis de mesmo cunho, com outros autores que pensaram a educação [L. S. Vygotsky, por

exemplo] com o mesmo sentido de facilitar compreensão de alguma parte complexa da obra

de algum deles, também podem vir a ser elaboradas pois as muitas possibilidades de sentidos

e significados dos contos consente com isso.

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TATAR, Maria. Contos de fadas. Tradução Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

ANEXOS

(A)

CINDERELA OU SAPATINHO DE VIDRO

Era uma vez um fidalgo que casou em segundas núpcias com a mulher mais soberba e mais orgulhosa que já se viu. Ela tinha duas filhas de um temperamento igual ao seu, sem tirar nem pôr. O marido por seu lado, tinha uma filha que era a doçura em pessoa e de uma bondade sem par. Nisso saíra à mãe, que tinha sido a melhor criatura do mundo.

Assim que o casamento foi celebrado, a madrasta começou a mostrar seu mau gênio. Não tolerava as boas qualidades da enteada, que faziam suas filhas parecerem ainda mais detestáveis. Encarregava-a dos serviços mais grosseiros da casa. Era a menina que lavava as vasilhas e esfregava as escadas, que limpava o quarto da senhora e das senhoritas suas filhas. Quanto a ela, dormia no sótão, numa mísera enxerga de palha, enquanto as irmãs ocupavam quartos atapetados, em camas da última moda e espelhos onde podiam se ver da cabeça aos pés.

A pobre menina suportava tudo com paciência. Não ousava se queixar ao pai que a teria repreendido, porque era sua mulher quem dava ordens na casa. Depois que terminava seu trabalho, Cinderela se metia num canto junto à lareira e se sentava junto das cinzas. Por isso, todos passaram a chama-la Gata Borralheira. Mas a caçula das irmãs, que não era tão estúpida quanto a mais velha, começou a chama-la Cinderela. No entanto, apesar das roupas suntuosas que as filhas da madrasta usavam, Cinderela, com seus trapinhos, parecia mil vezes mais bonita que elas.

Ora, um dia o filho do rei deu um baile e convidou todos os figurões do reino – nossas duas senhoritas entre os convidados, pois desfrutavam de certo prestígio. Elas ficaram entusiasmadas e ocupadíssimas, escolhendo as roupas e os penteados que lhes cairiam melhor. Mais um sofrimento para Cinderela, pois era ela que tinha de passar as roupas das irmãs e engomar seus babados. O dia inteiro as duas só falavam do que iriam vestir.

“Acho que vou usar meu vestido de veludo vermelho com minha renda inglesa”, disse a mais velha,

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“Só tenho minha saia de todo dia para vestir, mas, em compensação, vou usar meu mantô com flores douradas e meu broche de diamantes, que não é de se jogar fora.”

Mandaram chamar o melhor cabeleireiro das redondezas, para levantar-lhes os cabelos em duas torres de caracóis, e mandaram comprar moscas do melhor fabricante. Chamaram Cinderela para pedir sua opinião, pois sabiam que tinha bom gosto. Cinderela deu os melhores conselhos possíveis e até se ofereceu para penteá-las. Elas aceitaram na hora. Enquanto eram penteadas, lhe perguntavam: “Cinderela, você gostaria de ir ao baile?”

“Pobre de mim! As senhoritas estão zombando. Isso não é coisa que convenha.”

Qualquer outra pessoa teria estragado seus penteados, mas Cinderela era boa e penteou-as com perfeição. As irmãs ficaram quase dois dias sem comer, tal era seu alvoroço. Arrebentaram mais de uma dúzia de corpetes de tanto apertá-los para afinar a cintura, e passavam o dia inteiro na frente do espelho.

Enfim o grande dia chegou. Elas partiram, e Cinderela seguiu-as com os olhos até onde pôde. Quando sumiram de vista, começou a chorar. Sua madrinha, que a viu em prantos, lhe perguntou o que tinha: “Eu gostaria tanto de...eu gostaria tanto de...” Cinderela soluçava tanto que não conseguia terminar a frase.

A madrinha, que era fada, disse a ela: “Você gostaria muito de ir ao baile, não é?”

“Ai de mim, como gostaria”, Cinderela disse, suspirando fundo.

“Pois bem, se prometer ser uma boa menina eu a farei ir ao baile.”

A fada madrinha foi com Cinderela até o quarto dela e lhe disse: “Desça ao jardim e traga-me uma abóbora.”

Cinderela colheu a abóbora mais bonita que pôde encontrar e a levou para a madrinha. Não tinha a menor ideia de como aquela abóbora poderia fazê-la ir ao

GUSTAVE DORÉ, 1867

A fada madrinha de Cinderela prepara a abóbora para ser transformada em carruagem

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baile. A madrinha escavou a abóbora até sobrar só a casca. Depois bateu nela com sua Varinha e no mesmo instante a abóbora foi transformada numa bela carruagem toda dourada. Em seguida foi espiar a armadilha para camundongos, onde encontrou seis camundongos ainda vivos. Disse a Cinderela que levantasse um pouquinho a portinhola da armadilha. Em cada camundongo que saia dava um toque com sua varinha, e ele era instantaneamente transformado num belo cavalo; formaram-se assim três belas parelhas de cavalos de um bonito cinza-camundongo rajado. E vendo a madrinha confusa, sem saber do que faria um cocheiro, Cinderela falou: “Vou ver se acho um rato na ratoeira. Podemos transformá-lo em cocheiro.”

“Boa ideia”, disse a madrinha, “vá ver.”

Cinderela então trouxe a ratoeira, onde havia três ratos graúdos. A fada escolheu um dos três, por causa de seus bastos bigodes, e, tocando-o, transformou-o num corpulento cocheiro, bigodudo como nunca se viu. Em seguida ordenou à Cinderela: “Vá ao jardim, e encontrará seis lagartos atrás do regador. Traga-os para mim.”

Assim que ela os trouxe, a madrinha os transformou em seis lacaios, que num segundo subiram atrás da carruagem com suas librés, e ficaram ali empoleirado, como se nunca tivessem fito outra coisa na vida.

A fada se dirigiu então a Cinderela: “Pronto, já tem como ir ao baile. Não está contente?”

“Estou, mas será que vou assim, tão maltrapilha?” Bastou que a madrinha a tocasse com sua varinha, e no mesmo instante suas roupas foram transformadas em trajes de brocado de ouro e prata incrustados de predarias. Depois ela lhe deu um par de sapatinhos de vidro, os mais lindos do mundo.

Deslumbrante, Cinderela montou na carruagem. Mas sua madrinha lhe recomendou, acima de tudo, que não passasse da meia-noite, advertindo-a de que, se continuasse no baile um instante a mais, sua carruagem viraria de novo abóbora, seus cavalos camundongos, seus lacaios lagartos, e ela estaria vestida de novo com as roupas esfarrapadas de antes. Cinderela prometeu à madrinha que não deixaria de sair do baile antes da meia-noite.

Então partiu, não cabendo em si de alegria. O filho do rei, a quem foram avisar que acabara de chegar uma princesa que ninguém conhecia, correu para recebe-la; deu-lhe a mão quando ela desceu da carruagem e conduziu-a ao salão onde estavam os convidados. Fez-se então um grande silêncio; todos pararam de dançar e os violinos emudeceram, tal era a atenção com que contemplavam a grande beleza da desconhecida. Só se ouvia um murmúrio confuso: “Ah, como é bela!”

O próprio rei, apesar de bem velhinho, não se cansava de fita-la e de dizer bem baixinho para a rainha que fazia muito tempo que não via uma pessoa tão bonita e tão encantadora. Todas as damas puseram-se a examinar cuidadosamente seu penteado e suas roupas, para tratar de conseguir iguais já no dia seguinte, se é que existiam tecidos tão lindos e costureiras tão habilidosas.

O filho do rei conduziu Cinderela ao lugar de honra e em seguida a convidou para dançar: ela dançou com tanta graça que a admiraram ainda mais. Foi servida uma magnífica ceia, de que o príncipe não comeu, tão ocupado que estava em contemplar Cinderela. Ela então foi se sentar ao lado das irmãs, com quem foi gentilíssima, partilhando com elas as laranjas e os limões que o príncipe lhe dera, o que as deixou muito espantadas, pois não a reconheceram. Estavam assim conversando quando Cinderela ouviu soar um quarto para a meia-noite. No mesmo instante fez uma grande reverência para os convidados e saiu chispando.

Assim que chegou em casa foi procurar a madrinha. Depois de lhe agradecer, disse que gostaria muito de ir de novo ao baile do dia seguinte, pois o

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filho do rei a convidara. Enquanto estava entretida em contar à madrinha tudo o que acontecera no baile, as duas irmãs bateram à porta; Cinderela foi abrir.

“Como demoraram a chegar!” disse, bocejando, esfregando os olhos e se espreguiçando como se tivesse acabado de acordar; na verdade não sentira nem um pingo de sono desde que as deixara. “Se você tivesse ido ao baile”, disse-lhe uma das irmãs, “não teria se entediado: esteve lá uma bela princesa, a mais bela que se possa imaginar; gentilíssima, nos deu laranjas e limões.”

Cinderela ficou radiante ao ouvir essas palavras. Perguntou o nome da princesa, mas as irmãs responderam que ninguém a conhecia e conhecia e que até o príncipe estava pasmo. Ele daria qualquer coisa para saber quem era ela. Cinderela sorriu e lhes disse: “Então ele era mesmo bonita? Meu Deus, que sorte vocês tiveram! Ah, se eu pudesse vê-la também! Que pena! Senhorita Javotte, pode me emprestar aquele seu vestido amarelo que usa todo dia?”

“Com certeza”, respondeu a senhorita Javotte, vou fazer isso já, já! Emprestar meu vestido para uma Gata Borralheira asquerosa como esta, só se eu estivesse completamente louca.” Cinderela já esperava essa recusa, que a deixou muito satisfeita; teria ficado terrivelmente embaraçada se a irmã tivesse lhe emprestado o vestido.

No dia seguinte as duas irmãs foram ao baile, e Cinderela também, mas ainda mais magnificamente trajada que da primeira vez. O filho do rei ficou todo tempo junto dela e não parou de lhe sussurrar palavras doces. A jovem estava se divertindo tanto que esqueceu o conselho de sua madrinha. Assim foi que escutou soar a primeira badalada da meia-noite quando imaginou que ainda fossem onze horas: levantou-se e fugiu, célere como uma corça. O príncipe a seguiu, mas não conseguiu alcança-la. Ela deixou cair um de seus sapatinhos de vidro, que o príncipe guardou com todo cuidado.

Cinderela chegou em casa sem fôlego, sem carruagem, sem lacaios e com seus andrajos; não lhe restara nada de todo o seu esplendor

Senão o pé dos sapatinhos, o par do que deixara cair.

Perguntaram aos guardas da porta do palácio se não tinham visto uma princesa deixar o baile. Responderam que não tinham visto ninguém sair, a não ser uma mocinha muito malvestida, que mais parecia uma camponesa que uma senhorita.

Quando suas duas irmãs voltaram do baile, Cinderela perguntou-lhes se tinham se divertido novamente, e se a bela dama lá estivera. Responderam que sim, mas que fugira ao toque da décima segunda badalada, e tão depressa que deixara cair um de seus sapatinhos de vidro, o mais lindo do mundo. Contaram que o filho do rei o pegara, e que não fizera outra coisa senão contemplá-lo pelo resto do baile. Tinham certeza de que ele estava apaixonado pela linda moça, a dona do sapatinho.

Diziam a verdade, porque, poucos dias depois, o filho do rei mandou anunciar ao som de trompas que se casaria com aquela cujo pé coubesse exatamente no sapatinho. Seus homens foram experimentá-lo nas princesas, depois nas duquesas, e na corte inteira, mas em vão. Levaram-no às duas irmãs, que não mediram esforços para enfiarem seus pés nele, mas sem sucesso. Cinderela, que as observava, reconheceu seu sapatinho e disse, sorrindo: “Deixem-me ver se fica bom em mim.” As irmãs começaram a rir e a caçoar dela. Mas o fidalgo que fazia a prova do chinelo olhou atentamente para Cinderela e, achando-a belíssima, disse que o pedido era justo e que ele tinha ordens de experimentá-lo em todas as moças.

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Autor desconhecido

O Sapatinho de vidro é calçado em Cinderela

Pediu a Cinderela que se sentasse. Levou o sapato até seu pezinho e viu que cabia perfeitamente, como um molde de cera. O espanto das duas irmãs foi grande, mas maior ainda quando Cinderela tirou do bolso o outro sapatinho e o calçou. Nesse instante chegou a madrinha e, tocando com sua varinha os trapos de Cinderela, transformou-os de novo nas mais magníficas de todas as roupas.

As duas irmãs perceberam então que ele era a bela jovem que tinham visto no baile. Jogaram-se aos seus pés para lhe pedir perdão por todos os maus-tratos que a tinham feito sofrer. Cinderela perdoou tudo e, abraçando-as, pediu que continuassem a lhe querer bem.

Levaram Cinderela até o príncipe, suntuosamente vestida como estava. Ela lhe pareceu mais bela que nunca e poucos dias depois estavam casados. Cinderela que era tão boa quanto bela, instalou as duas irmãs no palácio e as casou no mesmo dia com dois grandes senhores da corte. (TATAR, 2013, p. 47, 48, 50-56, 58)

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(B)

PELE DE ASNO

Era uma vez um rei mais poderoso que já houve na terra. Amável na paz, terrível na guerra, não havia outro que se comparasse a ele. Seus vizinhos o temiam, seus súditos eram felizes. Em seu reino, à sombra de suas vitórias, as virtudes e as belas artes por toda parte floresciam. A esposa que escolhera, sua fiel companheira, era tão encantadora e tão bela, de índole tão serena e tão doce, que ser o esposo dela o fazia mais feliz do que ser rei. Do terno e casto enlace desse casal, que foi pleno de afeição e contentamento, nasceu uma menina. Eram tantas as suas virtudes que o rei e a rainha logo se consolaram de não ter mais filhos.

No vasto e rico palácio desse rei, tudo era suntuoso. Por toda a parte formigava uma profusão de cortesãos e camareiros. Os estábulos abrigavam cavalos grandes e pequenos de toda a sorte, cobertos com ricos arreios ornados de ouro e bordados. Mas o que surpreendia a todos que neles entravam era que, no lugar de mais destaque, um grande asno exibia suas enormes orelhas. Essa esquisitice pode surpreender, mas, uma vez conhecendo as virtudes superlativas do animal, já ninguém pensava que a honra era excessiva. Pois esse asno, a natureza o formara de tal maneira e tão imaculado, que, em vez de esterco, produzia belos escudos e luíses de ouro, que rutilavam ao sol e que, toda manhã, ao seu despertar, em sua baia iam recolher.

Ora, o céu, que por vezes se cansa de deixar as pessoas só contentes, sempre à sua felicidade mistura alguma desgraça, como a chuva ao bom tempo, e permitiu que uma doença grave assaltasse de repente a saúde da rainha. Buscou-se socorro em toda parte, mas nem os doutores com seu grego, nem os charlatães reputados, nem eles todos juntos, conseguiram extinguir o incêndio que a febre, cada vez mais alta, acendia.

Chegada a sua última hora, a rainha disse ao rei seu esposo: “Permita que antes de morrer eu lhe faça um pedido: se acaso desejar casar novamente quando eu já não estiver aqui...”

“Ah”, disse o rei, “essas inquietações são vãs, eu jamais pensaria nisso, fique tranquila.”

“Eu acredito”, respondeu a rainha. “Seu amor ardoroso é prova disso. Para ter plena certeza, porém, quero seu juramento de que não se casará. Eu o atenuo, contudo, com essa ressalva: se encontrar uma mulher mais bela, mais perfeita e mais sábia do que eu, aí sim estará livre para empenhar sua palavra e desposá-la.”

Sua confiança em seus encantos era tal que a fazia tomar esse compromisso como uma promessa do rei de jamais se casar. Assim o rei jurou, os olhos banhados de lágrimas, tudo o que a rainha desejou.

Ela morreu em seus braços e jamais um marido se entregou a tamanho desespero. Ao ouvi-lo soluçar dia e noite, pensou-se que seu luto não seria duradouro, e que ele chorava seu amor perdido como um homem que deseja liquidar o assunto o quanto antes.

A impressão não foi equivocada. Ao cabo de alguns meses o rei se dispôs a fazer uma nova escolha. Mas não era coisa fácil, era preciso manter o juramento, e a nova noiva devia ter mais prendas e graça que aquela recentemente sepultada..

Nem na corte, fértil em belezas, nem no campo, nem na cidade, nem nos reinos das redondezas foi possível encontrar mulher assim. Somente a infante era mais bela, e possuía certas sutis seduções de que a defunta carecera. O rei percebeu

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isso. E, inflamado por um amor extremo, acabou por meter na cabeça a ideia louca de que devia se casar com a filha. Encontrou até um casuísta que julgou a pretensão procedente. Mas a princesa, desolada de ouvir falar em tal amor, consumia-se noite e dia a lamentar e chorar.

Com a alma transbordando de dor, ela foi à procura de sua madrinha. Esta morava longe, numa gruta solitária ricamente ornada de nácar e coral. Era uma fada admirável, cuja arte ninguém igualava. (não preciso dizer o que era uma fada naqueles dias de antanho – isso com certeza sua ama contou para você desde os seus mais verdes anos).

“Sei o que a trouxe aqui”, disse a madrinha ao ver a princesa. “Sei da profunda tristeza que em seu coração se encerra. A meu lado, porém, não tem porque se inquietar. Nada lhe poderá fazer mal, contanto que siga meus conselhos. É verdade que seu pai quer desposá-la. Dar ouvidos a esse intento insensato seria um grande erro, mas você tem um meio de recusá-lo sem o contradizer. Diga-lhe que, antes que ao amor dele seu coração se entregue, há um capricho que ele deve contentar: um vestido que seja da cor do tempo. Apesar de todo o seu poder e de toda a sua riqueza, por mais que o céu favoreça suas intenções, o rei jamais poderá cumprir essa promessa.”

A princesa foi ter com o pai sem demora e, trêmula de medo, formulou seu desejo. O rei, no mesmo instante, fez saber aos costureiros mais reputados que se não lhe fizessem, e rápido, um vestido da cor do tempo podiam estar certos de ir parar no cadafalso.

O segundo dia ainda não raiara quando levaram ao palácio o vestido desejado. O mais belo azul celeste, mesmo quando está adornado por densas nuvens de ouro, não exibe cor mais opalina. Invadida pela alegria e pela dor, a infanta não soube o que dizer, nem como se furtar à palavra que empenhara. “Princesa,” sussurrou-lhe a madrinha, “peça-lhe um mais brilhante e menos comum, um que seja da cor da lua. Isso ele não conseguirá.”

Mal a princesa formulara seu pedido, o rei disse a seu bordador: “Que o astro da noite não tenha mais esplendor, e que me seja entregue em quatro dias sem falta.”

O rico traje ficou pronto no dia marcado, tal como o rei especificara. Nem a lua, quando em seu manto de prata, em meio à sua jornada sobre o tapete da noite, empalidece as estrelas com sua claridade mais viva, jamais teve tamanho fulgor.

A princesa, admirando esse traje deslumbrante, chegou quase a decidir dar seu consentimento. Mas, inspirada pela madrinha, disse ao rei apaixonado: “Só ficarei contente se tiver um vestido ainda mais brilhante e da cor do sol.”

O rei, que a amava de um amor desvairado, mandou vir imediatamente o rico lapidário e lhe ordenou que fizesse um vestido de um tecido magnífico de ouro e de diamantes, dizendo que, se não desse conta da encomenda, o faria morrer em meio a mil tormentos.

O rei não precisou se dar ao trabalho, pois o hábil artesão lhe fez chegar a obra preciosa naquela semana mesmo. Tão belo, tão vivo, tão radioso, que mesmo o louro amante de Climene, quando, em seu carro de ouro, percorre a abóbada celeste, não ofusca os olhos com mais brilhante clarão.

A infanta, por esses presentes ainda mais confundida, já não sabia o que responder ao rei seu pai. Mas depressa a madrinha a tomou pela mão: “Não hesite,” disse-lhe ao pé do ouvido, “você está no bom caminho. Afinal, não são assim tão grandes prodígios todos esses presentes recebidos. Veja, o rei tem aquele asno que não para de lhe encher as burras de escudos de ouro. Peça a ele a pele desse raro animal. Sendo ele a fonte de sua fortuna, ou muito me engano, ou isso você não terá.”

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Aquela fada era muito sábia, mas ainda não aprendera que o amor arrebatado ignora ouro e prata quando quer ser saciado. A pele foi pronta e galantemente concedida, mal a infanta pediu. Quando recebeu a pele, a menina ficou aterrorizada e queixou-se amargamente de sua sorte. Sua madrinha apareceu e ponderou. “Quando fazemos o bem”, disse, “nunca devemos temer.” A princesa deveria dar ao rei a entender ao rei que estava disposta àquele casamento. Ao mesmo tempo, porém, sozinha e bem-disfarçada, deveria partir para alguma província distante para evitar um mal tão próximo e tão certo.

“Eis aqui”, continuou a madrinha, “um grande baú. Nele poremos todos os seus vestidos, seu espelho, artigos de toalete, seus diamantes e rubis. Dou-lhe ainda minha varinha. Se a segurar na mão, o baú a seguirá por onde você for, escondido embaixo da terra. E quando quiser abri-lo, tem apenas de tocar a terra com a varinha. No mesmo instante ele surgirá diante dos seus olhos. Para se tornar irreconhecível, a pele do asno será um disfarce perfeito. Esconda-se bem dentro dessa pele. É tão medonha que ninguém pensará que encerra algo de belo.”

GUSTAVE DORÉ, 1861

Iluminada pelo luar, Pele de Asno sai, em fuga, do palácio.

Ao alvorecer, mal a princesa, assim travestida, deixara a casa da sábia madrinha, o rei, que se preparava para a festa de suas núpcias triunfais, ficou sabendo que todos os seus planos haviam malogrado. Não houve casa, caminho, avenida que não fosse prontamente revistado. Mas de nada valeu tanta agitação, ninguém podia adivinhar o que fora feito da princesa. Uma decepção triste e negra tomou conta de tudo. Não haveria mais casamento, nenhum festejo, nenhum bolo, nenhum doce. Muitas damas da corte, desencantadas, perderam o apetite e

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recusaram o jantar. Mais triste ainda ficou o padre, pois o prato da coleta voltou vazio e sua ceia foi servida tarde demais.

Enquanto isso a infanta seguia seu caminho, o rosto sujo de lama. Estendia a mão a todos os passantes, a procura de um lugar onde pudesse se empregar. Mas os menos delicados e os mais infelizes, vendo-a tão asquerosa e tão imunda, não queriam escutar, muito menos levar para casa uma criatura tão suja. Assim ela andou muito, e continuou andando, e andou mais ainda. Finalmente chegou a uma granja cuja dona precisava de uma criada molambenta que soubesse somente lavar panos de chão e limpar o comedouro dos porcos.

GUSTAVE DORÉ, 1861

Puxada por uma ovelha numa modesta charrete, Pele de Asno vira-se para olhar, pela última vez, a sua casa.

Meteram-na num canto no fundo da cozinha onde os criados, essa cambada insolente, não faziam outra coisa senão zombar dela, importuná-la, arreliá-la. Pregavam-lhe as piores peças, provocando-a a troco de nada. Ela era o alvo de todas as suas brincadeiras e todas as suas piadas.

Aos domingos, tinha um pouco mais de paz, pois, tendo dado cota de manhã de seus pequenos serviços, podia ficar no seu quarto. Ali, com a porta bem fechada, limpava-se, abria o baú e arrumava seus potinhos com esmero sobre a mesa. Diante de seu grande espelho, alegre e satisfeita, vestia ora o vestido da lua, ora aquele em que o fogo do sol refulgia, ora o belo vestido azul que todo o azul do céu não podia igualar. Uma única coisa a entristecia, é que no assoalho tão estreito a cauda de seus vestidos não podia se espalhar. Gostava de ser jovem, rubra e branca, cem vezes

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mais elegante que qualquer outra. Esse doce prazer a sustentava e a levava até o outro domingo.

Ia me esquecendo de dizer que nessa granja eram criadas as aves de um rei magnífico e poderoso. Ali galinhas-d’angola, codornas, perdizes, galinhas d’agua, biguás, patos e mil outras aves das mais diferentes feições podiam encher nada menos que dez pátios inteiros.

O filho do rei costumava passar por esse local aprazível quando voltava da caça, para ali repousar, tomar uma bebida gelada com os senhores de sua corte. Nem o belo Céfalo o superava! Tinha um porte real, uma fisionomia marcial apta a fazer tremer os mais orgulhosos batalhões. Avistando-o muito de longe, Pele de Asno se enterneceu, e essa audácia a fez ver que, sob a sua sujeira e seus trapos, ainda guardava o coração de uma princesa. “Que ar imponente ele tem, ainda que não seja afetado. Como é amável”, pensou ela, “e como é feliz aquela a quem entregou seu coração! Se ele tivesse me honrado com um vestidinho à toa, eu estaria mais linda que com todos esses que tenho”.

Um dia o jovem príncipe, perambulando a esmo de um quintal a outro, passou pelo corredor escuro onde Pele de Asno tinha seu humilde quartinho. Por acaso, pôs o olho no buraco da fechadura. Sendo aquele um dia de feriado, ela se adornara com um rico traje, e seu soberbo vestido, tecido de ouro fino e incrustado de grandes diamantes, luzia mais que o sol em seu zênite. Contemplando-a, o príncipe ficou à mercê de seus desejos e foi tal seu alumbramento que mal conseguia recobrar o fôlego ao olhá-la. Era belo o vestido, mas a beleza do rosto, seu contorno puro, sua brancura impecável, seus traços finos, seu jovem frescor, o deixaram cem vezes mais arrebatado. Mas um certo ar de grandeza, mais ainda, um prudente e modesto recato, testemunhas seguras da beleza de sua alma, apoderaram-se de todo o seu coração.

Três vezes, no calor do fogo que o transportava, ele quis arrombar a porta. Mas, acreditando estar diante de uma divindade, três vezes seu braço foi detido pelo respeito.

No palácio, isolou-se, pensativo; dia e noite, só fazia suspirar. Não queria mais ir ao baile, embora fosse carnaval. Detestava a caça, detestava o teatro, não tinha mais apetite, tudo o desgostava. E o fundo de sua doença era um triste e mortal langor.

Procurou saber quem era aquela ninfa admirável que morava junto a um quintal no fundo de um corredor pavoroso, onde nada se enxergava em pleno dia. “É Pele de Asno,” disseram-lhe, “que de ninfa e de bela nada tem. Chamam-na assim por causa da pele que põe nos ombros. É um verdadeiro antídoto para o amor. Em uma palavra, o animal mais feio que se possa ver depois do lobo.” Por mais que falassem, o príncipe não podia acreditar. Os traços que o amor riscara, sempre presentes em sua memória, nunca seriam apagados.

Nesse meio tempo, a rainha sua mãe, que só tinha esse filho, chorava e se desesperava. Tentou força-lo a dizer qual era o seu mal. Ele gemeu, chorou, suspirou e nada disse. Disse apenas que desejava que Pele de Asno lhe fizesse um bolo com as próprias mãos. A mãe não entendeu o que o filho queria dizer. “Ora Madame!” Lhe disseram. Essa Pele de Asno é uma toupeira preta ainda mais sórdida e mais porca que o mais sujo desgraçado.” “Não importa”, disse a rainha, “é preciso satisfazê-lo, e é só nisso que devemos pensar.” Era tal o amor dessa mãe pelo filho que, tivesse ele pedido ouro para comer, teria recebido.

Assim, Pele de Asno pegou sua farinha, que havia mandado peneirar na véspera especialmente para tornar sua massa mais fina, seu sal, sua manteiga e seus ovos frescos. Para melhor fazer o bolo, foi se fechar em seu quartinho. Primeiro lavou as mãos, os braços e o rosto. Para tornar digno o seu trabalho, pegou um corpete de prata, atou-o logo e começou.

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Pele de Asno preparando o bolo para o príncipe

Dizem que, trabalhando um pouco afobada, deixou cair na massa, sem perceber, um de seus valiosos anéis. Mas os que afirmam saber o fim desta história garantem que foi de propósito que o anel foi deixado na massa. Palavra que, de minha parte, posso acreditar nisso perfeitamente. É que estou convencido de que, quando o príncipe a espiou pelo buraco da fechadura, ela soube muito bem o que estava acontecendo. Nesse ponto a mulher é tão esperta e seu olho tão rápido que não a podemos olhar um só momento sem que ela saiba que está sendo olhada. Tenho toda a certeza, posso até jurar, que ela sabia que o anel seria muito bem recebido por seu jovem amante.

Jamais se assou bolo tão apetitoso, e o príncipe o achou tão bom, que na sua gulodice, por um triz não comeu o anel também. Quando viu a esmeralda admirável e o círculo estreito do aro de ouro, que marcava a forma do dedo, a alegria invadiu seu coração. Guardou-o na sua cabeceira. Mas seu mal ia sempre aumentando, e os médicos, com seu douto saber, vendo-o emagrecer a cada dia, juraram por sua grande ciência que ele estava doente de amor.

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Como o casamento, por mais que o censurem, é um remédio notável para essa doença, decidiram casar o príncipe. A princípio, ele resistiu, depois disse: “Concordo, desde que me deem em casamento a pessoa em quem este anel servirá.” O rei e a rainha ficaram muito espantados com pedido tão esquisito, mas o estado do príncipe era tão grave que não ousaram dizer não.

E começou a procura daquela que o anel, fosse qual fosse a cor do seu sangue, deveria elevar a tão alta posição. As mulheres correram todas para apresentar seu dedo; ninguém queria perder a vez nem abrir mão do seu direito. Tendo corrido o rumor de que para pretender ao príncipe era preciso ter o dedo bem fino, foi a vez dos charlatães alardearem que o sabiam afinar. Uma mulher, seguindo um louco capricho, raspou o dedo como uma beterraba. Outra aparou-lhe um pedacinho. Uma outra acreditou que o melhor era apertar. E outra ainda, para torna-lo mais magro, usou uma poção que o fazia descamar. Não houve enfim estratagema a que as mulheres não recorressem para fazer o dedo se ajustar ao anel.

A prova começou com jovens princesas, as marquesas e as duquesas. Mas seus dedos, embora delicados, eram grossos demais e não entravam no anel. As condessas e as baronesas, e todas as nobres do reino, também vieram, uma a uma, se apresentar. Mais uma vez, tudo em vão.

Depois vieram as mocinhas do povo, muitas delas bem bonitas, em cujos dedinhos roliços o anel ás vezes parecia servir. Mas não, era sempre pequeno demais, ou redondo demais, e rejeitava a todas com o mesmo desdém.

Finalmente foi preciso submeter à prova as criadas, as cozinheiras, as copeiras, as camponesas, numa palavra toda arraia-miúda, cujas mãos vermelhas e escuras vinham tão cheias de esperança quanto as mãos delicadas. Muita moça se apresentou cujo dedo, gordo e empelotado, se enfiava no anel tão bem quanto uma corda no orifício de uma agulha.

Pensou-se então que a prova terminara, pois de fato só restava a pobre Pele de Asno no fundo da cozinha. Mas quem poderia acreditar que aquela moça se destinava a ser rainha? O príncipe disse: “E por que não? Tragam-na aqui.” Todos riram, e exclamaram em voz alta: “Que pretende ele fazendo entrar aqui esse estupor?”

Mas quando ela tirou dos ombros sua pele negra, e estendeu uma mãozinha que parecia de um marfim com um pouco de púrpura matizado, e o anel ajustou-se perfeitamente a seu dedinho, o pasmo e o assombro da corte desafiam a descrição.

Nesse arroubo, quiseram lavá-la ao rei. Ela pediu contudo que, antes de comparecer perante seu amo e senhor, lhe permitissem trocar de roupa. Da roupa que usava, verdade seja dita, estavam todos zombando. Mas dali a pouco Pele de Asno, suntuosamente trajada, chegou aos reais aposentos e atravessou as salas, exibindo ricas belezas jamais igualadas. Seu cabelo louro e sedoso era realçado por diamantes resplandecentes. Seus olhos azuis, grandes e doces, plenos de uma orgulhosa majestade, não fitavam nunca sem encantar. Seu talhe, enfim, era tão delgado e fino que com duas mãos era possível envolvê-la. Ante tamanho encanto e sua graça divina, as damas da corte, eclipsadas, viram perder o fulgor todos os seus ornamentos.

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ADOLPH GUSMAN (1821-1905)

Pele de Asno retira de sobre os ombros o vestido feito de pele de asno diante

do príncipe.

Em meio à alegria e ao alarido de toda aquela gente reunida, o bom rei não cabia em si de contente ao ver toda a beleza que a nora possuía. A rainha também estava maravilhada, e o príncipe, seu querido amante, a alma sufocada de prazer, sucumbia ao peso de seu arrebatamento.

Logo foram tomadas as providências para o casamento. O monarca convidou para a festa todos os reis das cercanias, que, engalanados com as mais brilhantes vestimentas, deixaram seus Estados para participar das bodas. Chegaram reis das regiões da aurora, montados em grandes elefantes. Das bandas mouras vieram outros que, mais negros e ainda mais feios, assustavam as criancinhas. Enfim, a corte ficou repleta de soberanos de todos os rincões do mundo.

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GUSTAVE DORÉ, 1861

O casamento de Pele de Asno: a pompa da celebração é evidenciada pela concorrência de soberanos em seus carros reais e muitos animais exóticos e míticos.

Nenhum rei, porém, nenhum potentado, apareceu com tanta magnificência quanto o pai da noiva. Por ela outrora apaixonado, ele com o tempo purgara o ardor que lhe consumiu o coração. Dele banira todo desejo criminoso, e, daquela chama odiosa, o pouco que restava em sua alma vinha apenas avivar seu amor paterno. Ao vê-la, exclamou: “Bendito seja o céu que permitiu que eu a reveja, minha querida filha!” E, chorando de alegria, correu para abraça-la ternamente. Quanto ao príncipe, ficou encantado por saber que seria genro de um rei tão poderoso.

Naquele instante chegou a madrinha, que contou como tudo tinha se passado e, com seu relato, acabou por cumular Pele de Asno de glória. (TATAR, 2013, p. 227-239)