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CAETANO BRANQUINHO COELHO BARSOTELI EDUARDO LÁZARO DE FREITAS PEREIRA AÇÃO-ESCOLA: PARA UMA NOVA DEFINIÇÃO E PRÁTICA DE ESCOLA EM BASES DE UM PARADIGMA ANARQUISTA FRANCA 2015

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Page 1: TCC FINALIZADO

CAETANO BRANQUINHO COELHO BARSOTELI

EDUARDO LÁZARO DE FREITAS PEREIRA

AÇÃO-ESCOLA: PARA UMA NOVA DEFINIÇÃO E PRÁTICA DE

ESCOLA EM BASES DE UM PARADIGMA ANARQUISTA

FRANCA 2015

Page 2: TCC FINALIZADO

CAETANO BRANQUINHO COELHO BARSOTELI

EDUARDO LÁZARO DE FREITAS PEREIRA

AÇÃO-ESCOLA: PARA UMA NOVA DEFINIÇÃO E PRÁTICA DE

ESCOLA EM BASES DE UM PARADIGMA ANARQUISTA

Trabalho de Conclusão de Curso, apresentado ao curso de Letras do Centro Universitário Municipal de Franca - Uni-FACEF - para obtenção do título de licenciatura. Orientação: Profa. Dra. Sheila Fernandes Pimenta e Oliveira

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FRANCA 2015

CAETANO BRANQUINHO COELHO BARSOTELI

EDUARDO LÁZARO DE FREITAS PEREIRA

AÇÃO-ESCOLA: PARA UMA NOVA DEFINIÇÃO E PRÁTICA DE

ESCOLA EM BASES DE UM PARADIGMA ANARQUISTA

Trabalho de Conclusão de Curso, apresentado ao curso de Letras do Centro Universitário Municipal de Franca - Uni-FACEF - para obtenção do título de licenciatura.

Franca, 20 de outubro de 2015

Orientadora: ____________________________________________ Nome: Profa. Sheila Fernandes Pimenta e Oliveira Instituição: Uni-FACEF - Centro Universiário de Franca

Examinador (a):_________________________________________ Nome: Instituição:

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We don’t need no education. We don’t need no

thought control.

Roger Waters - Pink Floyd

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RESUMO

Este trabalho tem como objetivo propor uma nova definição e prática de escola,

a partir dos princípios da filosofia anarquista, que aqui nos serve, também, para

articular uma análise crítica à escola como instituição a serviço da sociedade

capitalista e do Estado, estruturas rejeitadas veementemente pelos princípios

anarquistas, que postulam novas formas de comportamento e prática social,

baseados em pressupostos antiautoritários, solidários e liberais. A análise

crítica da escola como instituição leva em conta sua história, seus motivos e

suas funções sociais no decorrer do tempo, sempre analisados em face às

propostas antitéticas dos anarquistas. Tais propostas anarquistas visualizam a

nova escola com base num estilo de organização de autogestão, e assume o

estabelecimento dessa nova escola como atitude de resistência ao sistema

consolidado, ainda que misto ao mesmo. Para a análise crítica da escola como

instituição, recorremos, também, às inspeções feitas por Foucault sobre a

disciplina, e de Harris sobre a socialização em grupos, teoria fundamental para

a compreensão da natureza da formação de grupos. Com isso, propomos, em

última instância, medidas práticas para uma nova aplicação de pedagogia

anarquista na instrução em grupos: uma ação-escola.

Palavras-chave: Anarquismo. Instituição Escolar. Disciplina. Grupos.

Autogestão.

Page 6: TCC FINALIZADO

ABSTRACT

This work aims to propose a new definition and practice of school based on the

principles of anarchist philosophy, which here also serves us to articulate a

critical analysis of the school as an institution, in service of capitalist society and

the state, vehemently rejected structures by anarchist principles, which

postulate new forms of behavior and social practice, based on solidarity, anti-

authoritarian and liberal assumptions. A critical analysis of the school as an

institution takes into account its history, its motives and its social functions

throughout time, being analyzed in relation to anarchist’s antithetical proposals.

Such anarchists proposals envision the new school on the basis of self-

management style of organization, and assumes the establishment of this new

school as an attitude of resistance against the consolidated system, although

mixed to it. For critical analysis of the school as an institution we make use of

the inspections made by Foucault on discipline, and by Harris about group

socialization, a fundamental theory for understanding the nature of the

formation of groups. Thus, we propose, ultimately, practical steps for a new

application of anarchist pedagogy in groups: an action-school.

Keywords: Anarchism. School Institution. Discipline. Groups. Self-

Management.

Page 7: TCC FINALIZADO

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO.................................................................................... 7

2 O ANARQUISMO ............................................................................... 9

2.1 O QUE É O ANARQUISMO .................................................................... 10

3 A ESCOLA ......................................................................................... 17

3.1 UMA BREVE HISTÓRIA DA ESCOLA .................................................... 17

3.2 O QUE FAZ A ESCOLA .......................................................................... 22

3.3 O QUE É A ESCOLA .............................................................................. 27

3.4 TEORIA DA SOCIALIZAÇÃO DE GRUPOS ........................................... 31

3.4.1 “Um por todos, todos por um” .............................................................. 32

3.5 A DISCIPLINA ......................................................................................... 41

3.5.1 A disciplina como fim de si mesma ...................................................... 41

3.5.2 A disciplina como ritual......................................................................... 46

4 UMA NOVA DEFINIÇÃO DE ESCOLA ...................................... 52

4.1 A AUTOGESTÃO .................................................................................... 54

4.1.1 O princípio da autogestão .................................................................... 55

4.1.2 Autogestão pedagógica ....................................................................... 59

4.2 OS LIMITES DE UMA EDUCAÇÃO ANARQUISTA ................................ 63

4.3 A QUESTÃO DA EDUCAÇÃO INDIVIDUALISTA ................................... 66

4.4 UMA EDUCAÇÃO EM VISTA DA SOCIALIZAÇÃO DE GRUPOS ......... 68

4.5 UMA NOVA CARA PARA A ESCOLA .................................................... 71

4.6 OS NÍVEIS DE UMA EDUCAÇÃO LIVRE ............................................... 74

5 PESQUISA-AÇÃO: AÇÃO-ESCOLA .......................................... 79

6 CONCLUSÃO .................................................................................... 87

REFERÊNCIAS ........................................................................................... 90

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1 INTRODUÇÃO

Pretende-se, com este trabalho, constituir uma nova definição de

escola e uma consequente nova prática escolar. Procuramos, primeiramente,

erigir pilares filosóficos que propiciarão sustentáculo ideológico para se pensar

em uma nova escola, e que se justificarão ao longo do trabalho. Estes pilares

filosóficos derivam-se do anarquismo, paradigma que compreenderemos de

acordo com seus princípios, levando em consideração suas definições mais

básicas segundo Kropotkin (2007), Bakunin (1999), Chomsky (2005) e Ward

(2004), e também em vista da atualidade no choque com o sistema capitalista e

com a estrutura estatal da sociedade na qual nos inserimos.

Para isso, realizaremos uma crítica à concepção atual de escola,

através de uma investigação histórica empreendida por Reimer (1971) e

Matthews (2004), analisando a evolução da escola e da ideia de educação ao

longo do tempo, bem como uma crítica - embasada nos autores - ao que se

espera da escola enquanto instituição social e quais funções a mesma

desempenha em nossa sociedade e como isso afeta os indivíduos.

Revela-se igualmente importante para este trabalho a

compreensão de alguns fenômenos naturais associados à escolarização, como

a formação de grupos, que investigaremos em luz da psicologia social de

Harris (2009), na concepção de sua teoria de socialização de grupos; e a

disciplina, examinada segundo a investigação crítica e histórica de Foucault

(1977) em torno dos processos de controle individual e coletivo presente em

instituições como a escola.

Levantar-se-á, ainda, como antítese à concepção tradicional de

instituição escolar, a alternativa da autogestão, como discutida por Gallo

(1995), e que é derivada diretamente do pensamento anarquista, nos servindo

como pilar para uma nova concepção escolar que, como será exposto, deverá

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ser necessariamente anarquista, isto é, resistente à estrutura atual do sistema

social.

A compreensão crítica da instituição escolar nos permitirá

enxergar além de seu formato atual, ainda que o fenômeno de grupos -

explicado a partir da teoria da socialização de grupos - e o fenômeno da

disciplina - entendido em sua natureza originária - sejam constituintes

inescapáveis de uma nova definição e prática escolar, ainda que

autogestionária segundo o paradigma anarquista.

Pretende-se, é importante frisar, não endossar a disciplina, mas

relativizar suas causas e seus efeitos, de modo a constituir uma concepção de

prática escolar que não subjugue as vontades individuais às coletivas, mas que

leve em consideração a inevitável instrução coletiva à qual devemos nos

submeter tanto por razões de organização social quanto por razões naturais da

constituição humana e efetividade do aprendizado, pois pretendemos entender,

também, como a coletividade é um fenômeno inevitável e que deve ser

equacionado junto à perspectiva de uma educação libertária que vise livrar o

indivíduo de forças maiores e conferir ao mesmo a oportunidade para

desenvolver seus interesses e aptidões individuais ao mesmo tempo em que

exerce solidariedade em relação ao seu grupo.

Assim, aterrissaremos numa nova definição de escola,

emprestando a noção de teias de aprendizagem de Illich (2007), e numa nova

prática escolar que proporemos, segundo o todo teórico levantado, com base

na metodologia da pesquisa-ação, como definida por Thiollent (1988), de forma

a delinear as etapas e as ações que irão estruturar a nova escola pensada,

através do exercício de uma ação-escola, que nos levará do campo conceitual

ao campo prático, interno ao sistema e misto ao mesmo, e que aos poucos

pretenderá constituir eixos e pontos de resistência e práticas de uma educação

verdadeiramente anarquista.

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2 O ANARQUISMO

Elege-se o anarquismo como paradigma deste trabalho, não

apenas por simpatia aos preceitos e princípios de tal ideologia/filosofia, mas,

também por uma questão de coerência de pensamento. Como se intenta uma

proposta alternativa de escola, educação, ensino, através da análise crítica de

uma instituição escolar que, atualmente, e desde muito tempo, liga-se aos

interesses do poder, o anarquismo surge como uma possibilidade de reflexão.

Assim, é possível pensar o anarquismo como uma crítica social

que, sem dúvida, enviesa-se para o lado da negação daquilo que é

estabelecido como ordem atualmente e há tempos: a subordinação às

autoridades, às instituições de controle social, à hierarquia, ao Estado, à

exploração econômica, à política, à forma como as relações são organizadas e

contratadas.

É somente através da negação de todo este fundamento

autoritário e capitalista que se pode pensar numa mudança radical da escola. E

é no anarquismo que encontramos as bases para que essa mudança possa ser

efetivamente articulada.

A defesa que o anarquista russo Piotr Kropotkin faz a respeito da

importância do anarquismo, argumentando a causa, especifica mais dela:

[...] A anarquia foi compreendida por seus fundadores como

uma grande ideia filosófica. Ela é, com efeito, mais do que uma

simples causa de tal ou qual ação. Ela é um importante

princípio filosófico. É uma visão de conjunto que resulta da

autêntica compreensão dos fatos sociais, do passado histórico

da humanidade, das verdadeiras causas do progresso antigo e

moderno. Uma concepção que não se pode aceitar sem sentir

modificarem-se todas as nossas apreciações, grandes ou

pequenas, dos grandes fenômenos sociais, bem como das

pequenas relações entre nós todos em nossa vida cotidiana.

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Ela é um princípio de luta de todos os dias. E se é um princípio

nessa luta, é porque resume as aspirações profundas das

massas, um princípio, falseado pela ciência estatística e

pisoteado pelos opressores, mas sempre vivo e ativo, sempre

criando o progresso, malgrado e contra todos os opressores.

Ela exprime uma ideia que, em todos os tempos, desde que

existem sociedades, buscou modificar as relações mútuas, e

um dia as transformará, desde aquelas que se estabelecem

entre homens encerrados na mesma habitação, até aquelas

que pensam estabelecer-se em grupamentos internacionais.

Um princípio, enfim, que exige a reconstrução de toda a ciência

física, natural e social (KROPOTKIN, 2007, p. 34-35).

É perceptível como a importância do anarquismo para Kropotkin é

de caráter não só ideário, mas de fenômeno natural em ação, que desaponta

notadamente de tempos em tempos, desde épocas imemoriais, e

constantemente, no dia-a-dia, como uma pulsão em direção ao progresso, ao

desmantelamento de estruturas opressoras e relações de poder: é um estado

de espírito humano, um estado de espírito que buscar a reconstrução daquilo

que não é dado por satisfeito.

Assim, a definição de anarquismo se torna um tanto quanto

complicada levando em conta a concepção acima. E é procurando expandir

essa concepção que o trabalho segue.

2.1 O QUE É O ANARQUISMO

De acordo com Ward (2004), a palavra “anarquia” vem do grego

anarkhia, significando o contrário de autoridade ou ausência de governante, e

foi usado num sentido pejorativo até 1840, quando foi adotado pelo anarquista

francês Pierre-Joseph Proudhon para descrever sua ideologia política e social.

Para os anarquistas, segundo Ward (2004), o próprio Estado é o

inimigo, e continuam a concluir o mesmo após cada desenlace de cada

revolução, ao longo dos séculos XIX e XX. E isso não se deve, afirma o autor,

ao fato de que o Estado vigia e pune aqueles que se rebelam contra ele, mas

ao fato de que todo Estado, necessariamente, protege os privilégios dos mais

fortes.

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O movimento anarquista divide-se em várias vertentes. A vertente

mainstream, por assim dizer, é o anarco-comunismo, às vezes, também

chamada de anarco-coletivismo, que argumenta que a propriedade da terra, os

recursos naturais e os meios de produção deveriam ser mantidos em controle

mútuo por comunidades, e difere-se do socialismo estatal, por se opor a

qualquer autoridade central; já o anarco-sindicalismo enfatiza a ação de

operários mediante greves, a fim de expropriar das mãos dos capitalistas o

controle da indústria e de sua administração; o anarco-individualismo, por sua

vez, alega que a proteção de nossa própria autonomia e a associação com

outros, a partir de interesses em comum, promove o bem geral (WARD, 2004).

Além dessas principais vertentes, ainda há o anarco-pacifismo,

que enfatiza o antimilitarismo, o anarquismo verde e o anarco-feminismo,

autoexplicativos: todos ramos de uma mesma estrutura, e se interligam pela

rejeição de uma autoridade, seja esta a do Estado, a do empregador, a das

hierarquias administrativas ou das instituições estabelecidas, como a Escola e

a Igreja (WARD, 2004). Quanto ao chamado anarco-capitalismo, uma

contradição em termos, uma ressalva se faz necessária por Chomsky (2005, p.

123): “Anarquismo é necessariamente anticapitalista no sentido de que ‘opõe-

se à exploração do homem pelo homem’”, afirmando também que:

Um anarquista consistente deve se opor à propriedade privada

dos meios de produção e da remuneração que é componente

desse sistema, em razão de ser incompatível com o princípio

de que o trabalho deve ser um empreendimento livre e sob o

controle do produtor (CHOMSKY, 2005, p. 123).

A respeito da crítica anarquista ao Estado, Ward cita uma

declaração do anarquista alemão Gustav Landauer:

O Estado não é algo que pode ser destruído por uma

revolução, mas é uma condição, um certo relacionamento entre

seres humanos, um modo de comportamento humano; nós o

destruímos ao contratarmos outras relações, ao nos

comportarmos diferentemente (LANDAUER Apud WARD,

2004, p. 8).

Além da crítica à autoridade governadora, a solidariedade, ou

ajuda mútua, é outro importante princípio anarquista. Elemento nuclear de uma

economia anarquista (a mutualista), a solidariedade deveria, segundo o

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anarquista Kropotkin (2007, p. 37), ser “passada ao estado de hábito social”.

Para o autor, a anarquia organiza-se na solidariedade, assim como o Estado

organiza-se no egoísmo, sendo solidariedade e egoísmo princípios contrários

para o anarquista russo. Ainda, de acordo com o mesmo, o homem é um ser

essencialmente sociável, cuja vida se compõe de fios inumeráveis que se

continuam visível e invisivelmente na vida dos outros: “Não há linha de

demarcação entre um homem e outro, nem entre o indivíduo e a sociedade:

não há meu e teu moral, assim como não há teu e meu econômico”

(KROPOTKIN, 2007, p. 50).

No entanto, a oposição de Kropotkin (2007) ao egoísmo é

ressalvada pelo mesmo, reconhecendo que o egoísmo nada mais é do que o

desejo do homem de satisfazer todas as suas necessidades. Nesse sentido,

Kropotkin assevera que somos e devemos ser todos egoístas, e que tanto

quanto as necessidades físicas - que não devem ser poupadas -, o homem

também sente necessidades morais. Para o autor, o homem não se alimenta

apenas de pão, mas também de moralidade. Nessa concepção, o homem livre

não deve abdicar nem da satisfação física, nem da satisfação moral:

[...] O homem deve gozar não apenas fisicamente mas também

moralmente, e se uma boa alimentação lhe é necessária, o

sentimento da solidariedade, o amor pelos camaradas, a

satisfação interior são-lhe ao menos igualmente necessários

(KROPOTKIN, 2007, p. 51).

Ainda assim, Kropotkin (2007) apanha-se no esforço de

esclarecer a controvertida concepção de solidariedade e seu relativo sinônimo,

o altruísmo, em confronto com a concepção de egoísmo. De acordo com o

anarquista, há quem diga que o homem é egoísta por natureza, e que o próprio

altruísmo é uma derivação do egoísmo, sendo a solidariedade fundada sobre

um cálculo de interesse. Admitindo essa condição, Kropotkin (2007), no

entanto, arremata definitivamente a imperatividade da solidariedade ao

racionalizar a respeito das transformações sofridas pela intenção originalmente

egoísta, que se torna, naturalmente, altruísta: afirma ele que uma amizade

pode ser, possivelmente, constituída pelo prazer que experimentamos ao

conversar com uma pessoa inteligente, pela ajuda que esta pessoa poderia nos

oferecer em algumas circunstâncias ou por outro motivo qualquer. Depois de

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um tempo, entretanto, este motivo pode perder sua eficácia, desaparecendo, e

assim passamos a gostar de nosso amigo por ele mesmo: “O efeito torna-se

independente da causa”, afirma Kropotkin (2007, p. 51), e “o sentimento

enraíza-se em nós, e gostamos porque gostamos. É a perfeição do

sentimento”.

Por fim, Kropotkin, defendendo o comportamento altruísta,

desfecha a questão da solidariedade com a seguinte máxima: “Visto que é

preciso ser egoísta, sejamo-lo como homens razoáveis, sejamo-lo por uma

razão evidente!” (KROPOTKIN, 2007, p. 52). O autor possibilita inferir um

sentido utilitário de seu pensamento altruísta, isto é, que toda boa ação se

caracteriza conforme o tamanho do benefício que pode ser proporcionado a um

indivíduo e, em extensão, à coletividade. De fato, agindo assim, ainda que,

inicialmente, por interesse próprio, os efeitos da ação determinarão o valor da

mesma, e, por consequência, sua relevância moral. Através deste cômputo,

altruísta em última instância, a solidariedade parece ser uma operação

realizável.

Ademais, outro caro princípio anarquista, essencial para a sua

definição, é o da liberdade. Sem dúvida alguma, a liberdade é um bem

desejável e reivindicado por qualquer ideologia política que seja. Mas o que

normalmente vemos são discursos e realidades em que a liberdade é um bem

restrito a poucos e conquistada na base da sujeição de muitos. Remetendo

mas substituindo os conceitos da famosa frase de George Orwell em A

Revolução dos Bichos: todos os seres humanos são livres, mas alguns são

mais livres que os outros.

Um dos principais anarquistas da história, Mikhail Bakunin,

possui uma das mais notáveis definições de liberdade anarquista:

[...] O homem isolado não pode ter a consciência de sua

liberdade. Ser livre, para o homem, significa ser reconhecido,

considerado e tratado como tal por um outro homem, por todos

os homens que o circundam. A liberdade não é, pois, um fato

de isolamento, mas de reflexão mútua, não de exclusão, mas

de ligação; a liberdade de todo indivíduo é entendida apenas

como a reflexão sobre sua humanidade ou sobre seu direito

humano na consciência de todos os homens livres, seus

irmãos, seus semelhantes (BAKUNIN, 1999, p. 47).

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De fato, o anarquista russo admite uma liberdade, nas

concepções anarquistas, que somente se valida no âmbito social, defendendo

que a liberdade individual, ela própria, se define segundo a liberdade coletiva.

De acordo com Chomsky (2005), muitos estilos de pensamento e

ação, ao longo dos tempos, foram denominados “anarquistas”. Seria um

esforço sem esperanças, segundo o autor anarquista, tentar englobar todas

essas tendências conflitantes em alguma teoria ou ideologia geral.

Chomsky (2005) afirma ser difícil elaborar as doutrinas do

anarquismo numa específica e determinada teoria da sociedade e da mudança

social. Verifica-se que, diferente do socialismo, do comunismo e do capitalismo

com as suas variantes liberais, o anarquismo, na visão do historiador

anarquista Rudolf Rocker, citado por Chomsky, não é

um sistema social fixo e fechado dentro de si mesmo, mas, ao

invés, uma definitiva tendência no desenvolvimento histórico da

humanidade, o que, em contraste com a tutela intelectual de

todas as instituições clericais e governamentais, luta pelo

desenrolar sem obstáculos da liberdade de todos os indivíduos

e forças sociais da vida. Até mesmo a liberdade é apenas um

conceito relativo e não um absoluto, já que tende a sempre se

alargar e a afetar círculos mais amplos de maneiras múltiplas.

Para o anarquista, liberdade não é um conceito filosófico

abstrato, mas a possibilidade concreta e vital para que o ser

humano traga à tona o desenvolvimento total de suas

potências, capacidades e talentos com os quais a natureza o

dotou. Quanto menos esse desenvolvimento natural do homem

for influenciado pela tutela política e eclesiástica, mais eficiente

e harmoniosa se tornará a personalidade humana (ROCKER

apud CHOMSKY, 2005, p. 118).

Segundo Chomsky (2005), muitos questionam o valor de se

estudar uma “tendência no desenvolvimento histórico da humanidade” que não

articula uma teoria social específica e detalhada. De fato, muitos comentadores

dispensam o anarquismo, de acordo com o autor, ao acusá-lo de utópico,

amorfo, primitivo ou de qualquer modo incompatível com as realidades de uma

sociedade complexa. Mas muitos podem argumentar, segundo Chomsky, de

uma maneira bem diferente: de que a qualquer momento na história nossa

preocupação deve ser a de desmantelar as formas de autoridade e opressão

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que sobrevivem desde uma era em que elas devem ter sido justificadas em

termos de necessidade de segurança ou sobrevivência ou desenvolvimento

econômico, mas que agora contribuem para - ao invés de aliviar - o déficit

cultural e material.

Dessa forma, assevera Chomsky (2005) que não haverá doutrina

fixa de mudança social para o presente e o futuro, e nem um específico e

inalterável conceito de objetivos para onde a mudança social deveria tender.

Certamente, continua o autor, que nosso entendimento da natureza humana ou

do alcance de formas sociais viáveis é ainda tão rudimentar que qualquer

doutrina de longo alcance deve ser tratada com grande ceticismo, da mesma

forma que o ceticismo se eleva quando escutamos que a “natureza humana”

demanda essa ou aquela forma de opressão e governo autocrático.

Não obstante, Chomsky (2005) defende que, num tempo

particular, há todas as razões para se desenvolver, conforme permite a nossa

compreensão, uma percepção específica desta “definitiva tendência no

desenvolvimento histórico da humanidade” que seja apropriada ao momento.

Uma vez apresentada uma perspectiva sobre o anarquismo, que

não o toma como teoria sólida e específica, deve-se admitir o anarquismo mais

como uma filosofia, ainda que a mesma seja resoluta em seus princípios e

tenha seus pontos de crítica bem definidos e inalienáveis, de modo que o

paradigma anarquista não é, de forma alguma, vago em suas proposições. E,

muito embora os anarquistas não tenham, até hoje, mudado a sociedade da

forma como eles esperavam ser possível, o mesmo é verdade para os

defensores de qualquer outra ideologia do século passado, seja socialista ou

capitalista (WARD, 2004).

O que prevalece, no entanto, conforme dito por Rocker e atestado

por Chomsky, é o anarquismo como “definitiva tendência no desenvolvimento

histórico da humanidade”; o anarquismo, por assim dizer, como um estado de

espírito que sobreviveu e sobrevive nos pequenos atos e contribuições

libertárias que visaram e visam livrar o homem de sua condição infame de

subalternidade, de exploração capitalista, de escravidão, de opressão, de

desigualdade social, e de privação de sua liberdade, aliviando, assim, mesmo

Page 17: TCC FINALIZADO

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em face de sucessivas desgraças sociais e misérias cotidianas, uma enorme

carga de sofrimento humano.

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3 A ESCOLA

Para que se possa articular uma crítica à escolarização e à

instituição escolar tal como ela é conhecida e, em vista do paradigma

anarquista, propor uma alternativa à mesma, é imperativo que se compreenda

não só a história da escola (como ela se deu da forma como é), como também

sua função e do que é constituída.

Assim, analisam-se os componentes naturais que fundamentam a

configuração escolar, como a instrução em grupos e a disciplina, bem como a

ideia antitética à concepção escolar atual, e que se inscreve no paradigma

anarquista - a autogestão.

É, portanto, examinando a escola como instituição, sua atuação e

importância sociais, seus propósitos de existência e sua configuração normal,

bem como sua configuração alternativa, que proporemos uma nova definição e

prática escolar.

3.1 UMA BREVE HISTÓRIA DA ESCOLA

Para Reimer (1971, p. 37), “a escola é um estágio numa

sucessão de instituições especializadas”. De acordo com o autor, ritos pré-

históricos, mitos e xamãs, templos e castas sacerdotais, escolas suméricas,

gregas, alexandrinas e romanas, ordens monásticas, universidades ancestrais,

escolas medievais e públicas, todas desempenham um papel na história do

sistema escolar internacional que temos hoje. Até onde se tem registro, o

homem, segundo Reimer (1971), envolve-se em atividades especializadas que

têm algo a ver com o que ocorre nas escolas, cultivando lugares especializados

na prática de rituais, e desenvolvendo cargos para o desempenho dos

mesmos, como os xamãs, que, segundo Reimer (1971, p. 38), “combinava o

papel do professor com o do padre, do mágico, do ator, do artista, do poeta e

do idealista”.

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Os ritos pré-históricos, de acordo com Reimer, compartilham

certos elementos com o atual currículo escolar: além de terem uma

demarcação etária específica, encenando os mitos relacionados ao

nascimento, à adolescência (puberdade) e à morte, eles também explicavam e

celebravam tanto os acontecimentos comuns quanto os aspectos incomuns do

mundo, promovendo atividades para períodos ociosos que sucediam a caça ou

a colheita (REIMER, 1971).

A divisão entre a pré-história e a história, como afirma Reimer

(1971), é marcada pela invenção da escrita, correspondendo, respeitadas as

proporções, com o tempo de estabelecimento de cidades e religiões. A escrita,

de acordo com Matthew (2004), se desenvolveu na Suméria (atualmente Iraque

e Kuwait) e no Egito, dando surgimento aos primeiros especialistas letrados: os

escribas. Estes, segue o autor, eram responsáveis por manipular a forma da

escrita a fim de monitorar riquezas, controlar o tamanho de exércitos e registrar

transações monetárias.

De acordo com Reimer (1971), a educação origina-se nos

templos e nas cortes, e seus primeiros praticantes são padres especialistas.

Segundo o autor, a própria escrita provavelmente foi inventada por tais

especialistas, sendo os padres e os xamãs centrais não só para a evolução de

professores e escolas, como também do homem. “Cérebro, mão e língua;

horda, vila e cidade; mágica, religião, arte e ciência - estes são os marcos do

desenvolvimento físico, social e espiritual do homem” (REIMER, 1971, p. 39).

Os escribas, segundo Matthews (2004), que também os chama

de intelectuais, existiam para servir aos interesses do poder, e a escolarização

foi, originalmente, planejada para que eles e outros funcionários pudessem

ocupar cargos administrativos e sacerdotais (padres). De acordo com o autor, a

relação interpessoal entre os estudantes e as figuras de autoridade que os

instruíam sempre esteve ligada ao funcionamento do poder. Matthews ainda

afirma que a contabilidade, a matemática, a química, a astronomia e uma

considerável quantidade de literatura preocupada com temas religiosos

surgiram destes primeiros ambientes intelectuais especializados - e que,

juntamente com todas essas atividades culturais, sempre existiu a ênfase sobre

Page 20: TCC FINALIZADO

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a moralidade e as boas maneiras, sendo a renúncia raiz do trabalho e

essencial à escolarização. Da mesma forma, continua o autor, no oriente médio

escolas hindus ressaltavam a pureza mental e a autodisciplina tanto como

virtudes religiosas como escolares.

Segundo Reimer (1971), uma das origens da escola moderna

como ela é conhecida remonta à Suméria, onde salas de aulas construídas

para acomodar aproximadamente treze crianças, dada às limitações do tijolo

sumérico e da arquitetura, possivelmente determinaram o parâmetro de

tamanho das salas de aula nos tempos atuais.

Na Grécia, de acordo com Matthews (2004), se inicia a tradição

educacional no ocidente, sendo a educação grega preocupada, originalmente,

com o ideal do nobre guerreiro. Aos poucos, segue o autor, essa cultura

heroica foi se tornando também uma cultura de escribas. Por sua vez, em

Esparta, a educação era essencialmente de caráter militar, tendo como

principal objetivo o treinamento de soldados. Já a efébia de Atenas, segundo

Matthews (2004), antes uma escola para futuros soldados organizada pelo

Estado, perdeu seu foco militar e deixou de ser compulsória, começando a

ensinar filosofia e retórica para os ricos que nunca precisariam trabalhar.

À época, muitas cidades gregas e em especial Atenas, conforme

observa Matthews (2004), estavam desenvolvendo uma vida politicamente

ativa. Essa Atenas mais democratizada, segundo o autor, desenvolveu formas

de educação coletiva responsáveis por pavimentar o caminho para o

estabelecimento da escola como instituição. De acordo com Reimer (1971),

conforme Atenas se tornava mais democrática, os pupilos passaram a exceder

seus mestres em número, gradualmente substituindo as relações de tutoria por

instruções em grupo.

Os sofistas, assegura Matthews (2004), respondendo à

necessidade de um novo ideal de educação e começando a ensinar

estudantes, a fim de modelarem cidadãos bem-sucedidos (intelectuais,

cientistas e racionais), iam de cidade em cidade à procura de pupilos,

literalmente vendendo suas habilidades e se tornando, assim, os primeiros

professores pagos. Foram eles que, segundo Matthews (2004), estabeleceram

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21

as fundações para a educação helenística, uma educação mais bem

desenvolvida que consistia na formalização de um curso complexo de estudos

tomado dos sete aos vinte anos de idade. Nesse período, de acordo com

Reimer (1971), as crianças primeiramente aprendiam leitura, escrita e

números, e mais tarde eram ensinadas ginástica, música e os clássicos da

literatura, geometria e ciência.

Conforme Roma estendia seu império, a influência Grega,

garante Matthews (2004), aumentava, e eventualmente as escolas romanas

foram criadas com o propósito de treinar administradores e funcionários do

Estado, mas, ainda assim, não havia política escolástica como a que viria a ser

desenvolvida pelo estado-nação moderno. O cristianismo, desenvolvido no

meio da civilização greco-romana, e sua prática intelectual, viriam a incorporar

tanto o intelectualismo grego quanto a severidade romana, afirma Matthews.

As primeiras escolas cristãs, segundo Matthews (2004), foram as

catequéticas dos primeiros séculos d.C.; eram instituições de alto aprendizado,

voltadas a um público mais velho. Preocupavam-se, principalmente, em instruir

indivíduos pagãos em crenças cristãs, tendendo aos seus batizados. Já as

escolas monásticas, originalmente criadas para futuros monges, apareceram,

de acordo com Matthews, no século IV, pouco antes da Idade Média, e se

tornaram as primeiras escolas genuinamente cristãs. Escolas catedráticas

ficaram para um desenvolvimento posterior, e o enriquecimento de seu

programa, afirma o autor, culminou no aparecimento das universidades durante

o período medieval.

Do século XI para frente, a Igreja começou a se preocupar com o

desenvolvimento de um efetivo programa educacional, tendo a educação, com

o crescimento do cristianismo, adquirido um escopo fundamentalmente moral

(MATTHEW, 2004). A escolarização jesuíta, segundo Reimer (1971),

desenvolveu um currículo e um método educacional deliberadamente

designado ao preparo do homem, não só para uma vida ordinária, como

também para uma vida de metas e desafios sem precedentes.

Matthews (2004) assegura que os liceus dos séculos XVI e XVII

(pós-Idade Média) já eram fisicamente separados das igrejas e constituíam um

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22

produto da renascença e da reforma protestante. O humanismo da renascença,

segundo o autor, estimulou um grande interesse na atividade intelectual e no

aprendizado clássico, ao passo que a reforma protestante moveu-se para além

do tradicionalismo e do formalismo dos tempos medievais. Com a invenção da

prensa móvel de Gutenberg (o nascimento da imprensa), Matthews afirma que

a impressão de mais e mais Bíblias fez com que a educação universal e o ideal

humanista se tornasse rapidamente um ideal cristão, de modo que as escolas

provincianas e as escolas básicas cristãs foram fundadas principalmente para

combater a ignorância acerca de Deus e o ócio dos pobres.

De acordo com Reimer (1971), os sistemas escolares passaram a

tomar forma com o desenvolvimento do estado-nação. Assim, ainda que

escolas públicas primeiro surgissem nos Estados Unidos, os primeiros

sistemas integrados de escola, segundo o autor, desenvolveram-se na França

e na Prússia, tendo a escolarização prussiana se tornado um importante

modelo internacional. Afirma Reimer que, na Prússia, e mais tarde na

Alemanha, o desenvolvimento do sistema de educação, adjacente ao

desenvolvimento do estado-nação, foi deliberadamente designado para ser um

de seus pedestais.

Um dos aspectos do sistema alemão, segundo Reimer (1971),

era o ensinamento do alto-alemão, a língua da escola e a língua unificada do

Estado. Um currículo comum, avaliativo e integrado foi outro aspecto

característico designado a servir às necessidades militares, policiais e de mão

de obra da nação. Mas o mais importante de tudo, conforme o autor, foi a

cuidadosamente pensada filosofia da educação desenvolvida e refletida nas

organizações escolares, na logística, no currículo, no recrutamento de

professores, nos métodos de ensinamento e nos rituais escolásticos, e que se

destinou a desenvolver uma cidadania ajustada às especificações da

arquitetura do estado-nação Alemanha. Afirma Reimer (1971) que nenhum

outro sistema nacional fora tão sistematicamente desenhado quanto o alemão,

mas que todas as nações, ao copiarem em maior ou menor grau as principais

características desse sistema, adotaram, efetivamente, seus objetivos e seus

métodos.

Page 23: TCC FINALIZADO

23

Nos Estados Unidos, de acordo com Reimer (1971), o conceito

moderno de escola pública foi formulado por um educador chamado Horace

Mann. Nas escolas de Mann, prossegue Reimer, o comparecimento era

obrigatório, pois pessoas de diferentes origens, valores e credos deveriam ser

conduzidas à escola para partilharem de uma mesma concepção. Essa

ideologia escolar, segundo Reimer, contribuiu para a popularização de escolas

públicas entre privilegiados e desprivilegiados. Para os últimos, assevera o

autor, as escolas mantiveram a promessa de oportunidade igual; para os

primeiros, a promessa de progressão ordenada sob o controle da elite.

Reimer, a respeito da filosofia da educação que vê a escola como

uma instituição a serviço dos objetivos nacionais e da importância que se foi

dando à escola ao longo do século, ainda afirma que:

A popularidade de tal filosofia em um século que viu o número

de nações no mundo mais do que triplicar não é surpreendente.

A proliferação de estados-nação é claramente um dos maiores

fatores no crescimento do sistema escolar internacional.

Independentemente das razões, entretanto, o efetivo

desenvolvimento de tal sistema é um incrível fato da história

humana. [...] As escolas modernas se tornaram parte do

programa oficial de quase todas as nações. Cada estado deve

possuir uma universidade, cada cidade seu colégio, cada aldeia

sua escola primária. Todas as nações miram nas nações

líderes por modelos de currículo, organização e padrões

escolásticos (REIMER, 1971, p. 44).

De acordo com Matthews (2004), a escola primária se tornou a

meta de praticamente todos os governantes na era pós-Segunda Guerra

Mundial, tendo a educação superior sofrido, também, um significativo

crescimento nas nações industrializadas, de modo que mais e mais dinheiro

veio sendo gasto em vista de uma escolarização que produz massas de

pessoas, não indivíduos autônomos. Comenta o autor que a escolarização é

um tipo de propaganda sociológica, visando à integração do indivíduo no grupo

social - e que assim estudantes transitam de série em série, e a escolarização

como técnica de controle social se perpetua.

3.2 O QUE FAZ A ESCOLA

A escola, tomando em conta a concepção do senso-comum, deve

educar. Este é, sem dúvida, o dever inconteste da instituição escolar como a

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24

conhecemos atualmente e, como vimos, desde os seus primórdios. De acordo

com Reimer (1971), diferentes escolas fazem diferentes coisas, mas cada vez

mais, ao redor do globo, escolas de todas as nações, de todos os tipos, de

todos os níveis, combinam quatro funções sociais distintas: o cuidado em

custódia, a seleção do papel social, a doutrinação, e, finalmente, a educação

normalmente entendida em termos de desenvolvimento de habilidades e

conhecimento. Para o autor, a combinação destas quatro funções torna a

escola demasiadamente cara, e é o conflito destas quatro funções que torna a

educação escolar ineficiente.

O cuidado em custódia, segundo Reimer (1971), determina que

crianças devem ser cuidadas. Os cuidados custam muito dinheiro, e é para

onde vai grande parte do orçamento das escolas. Já que o cuidado em

custódia, de acordo com o autor, é o serviço mais tangível provido pelas

escolas, e uma vez que os pais são naturalmente preocupados com a

qualidade dos cuidados, essa função tem prioridade reivindicada nos recursos

escolares. Assim, na visão de Reimer, a escola se qualifica como uma

instituição total, entendendo-se “total” pela extensão do controle - de corpo,

mente e espírito - exercido pela instituição sobre os indivíduos, uma vez que,

muito embora não possua guarda sobre os indivíduos de forma integral e

irrestrita, como acontece nos asilos, nas prisões e nos exércitos, além dos

internatos (um tipo de instituição escolar), a escola está presente na vida dos

indivíduos desde uma tenra idade, e os acompanha durante seus anos

formativos, exercendo sobre eles uma influência que nenhuma outra instituição

exerce. Foucault (1977), a respeito disso, trata da docilização dos corpos, tema

que é retomado no capítulo atual.

A respeito da segunda função social exercida pela escola, a da

seleção do papel social, Reimer (1971) observa que a seleção no mercado de

trabalho não é uma questão de mera escolha pessoal, mas do quão bem

alguém se dá na sua vida escolar. Nos dias de hoje, diferente de alguns anos

atrás, uma graduação no ensino superior ainda não é garantia de um bom

emprego, quanto menos ter apenas a formação do ensino médio completa. De

acordo com o autor, é o desempenho escolar que muito provavelmente

determinará onde o estudante poderá viver, com quem ele poderá se associar

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e todo o resto de seu estilo de vida. O sistema escolar, afirma Reimer, tornou-

se, em menos de um século, o principal mecanismo de distribuição de valores

entre os indivíduos, substituindo, de certa forma, instituições como a da família

e a da Igreja. No entanto, Reimer faz uma ressalva quanto à valoração de

indivíduos numa sociedade capitalista, declarando que é mais adequado dizer

que as escolas confirmam, ao invés de substituir a distribuição de valores

exercida por instituições mais antigas. Para o autor, a família, a religião e a

propriedade (o poder econômico) detêm importante influência no acesso e no

sucesso dos indivíduos dentro da escola, de modo que a escolarização altera

pouco ou nada o valor das distribuições - preservando, desta forma, o valor

tanto dos já privilegiados quanto dos já desprivilegiados.

De acordo com Reimer (1971), as escolas definem o mérito de

acordo com a estrutura da sociedade à qual a escola está a serviço. A estrutura

de nossa sociedade caracteriza-se pelo consumo de produtos

institucionalizados, sendo a educação um desses produtos, oferecida,

oficialmente, de forma única e exclusiva pela instituição escola. Na opinião de

Reimer, o que as escolas definem como mérito é, principalmente, a vantagem

de se ter pais alfabetizados, livros em casa, a oportunidade de viajar e,

acrescentaríamos, todo um vantajoso background socioeconômico. Assim,

reproduzindo o sistema meritocrático da sociedade, que beneficia aqueles que

já nascem beneficiados e prejudicam aqueles que já nascem prejudicados, a

escola nada mais é do que uma instituição que valida, legitima, carimba e

outorga esses méritos já trazidos de casa pelo estudante, e praticamente nada

alterados por seu contato com o produto da educação institucionalizada.

A terceira função da escolarização, segundo Reimer (1971), é a

doutrinação. Mas “doutrinação” é uma palavra negativamente carregada. Existe

uma tendência, como observa o autor, de se considerar más as escolas

reputadas como doutrinadoras, enquanto que as boas escolas são aquelas que

ensinam valores básicos. Mas todas as escolas, segundo Reimer, ensinam o

valor da infância, o valor da competição e o valor de ser ensinado - ao invés de

aprender por si mesmo - o que é bom e o que é verdadeiro. De fato, todas as

escolas doutrinam, e de maneiras ainda mais efetivas do que é normalmente

considerado. Afirma o autor que quando as crianças se iniciam na escola, elas

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26

já aprenderam a usar seus corpos, a usar a linguagem e a controlar suas

emoções - e tudo isso, é de se convir, ao dependerem, em relativa medida,

apenas delas mesmas, sem precisarem ser ensinadas, de nenhuma forma

sistemática, por seus pais. Na escola, elas são introduzidas à sistematização

do ensino, e passam a ser efetivamente ensinadas, aprendendo que é melhor

dependerem de professores - um valor que perdura durante toda a sua vida

escolar, até a adolescência e até mesmo, em muitos casos, dentro da

universidade. “O ‘o quê, quando, onde e como’ se aprender é decidido por

outros, e as crianças aprendem que é bom depender dos outros para o seu

aprendizado” (REIMER, 1971, p. 20).

As crianças não aprendem somente os valores escolares, de

acordo com Reimer (1971), mas aprendem a aceitar estes valores e, assim, a

serem bem-sucedidas no sistema; aprendem o valor da conformidade. Outros

valores implícitos nos aspectos mais comuns do currículo escolar, afirma o

autor, são as prioridades dadas às matérias escolares, como a prioridade dada

à matemática sobre a música, à física sobre a poesia, apenas para citar alguns

exemplos. Há, obviamente, boas razões para que essas prioridades sejam

assumidas, mas estas não são as reais razões pelas quais essas prioridades

são assumidas; as verdadeiras razões são derivadas da sociedade como ela é,

no seu modelo político e econômico de poder, ignorando reivindicações por

desejos de aprendizagem que diferem daquilo que é demandado pelos

modelos sociais em vigor. Além do mais, a hierarquia é outro valor implícito que

não se ensina diretamente, mas que é, ainda assim, apreendido na vivência do

currículo escolar, de modo que a escola, refletindo os valores dominantes e a

estrutura dominante social, reproduz a realidade estratificada, fazendo parecer

natural e inevitável a dependência por hierarquias (REIMER, 1971).

Finalmente, na perspectiva de Reimer (1971), as escolas também

oferecem, como quarta e última função social, o ensinamento de habilidades

cognitivas e a transmissão do conhecimento. A respeito da capacidade para se

ensinar e a respeito do resultado que pode surgir de um ensinamento, Reimer

afirma:

É claro que professores excepcionais podem ensinar e

estudantes excepcionais podem aprender no confinamento da

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27

escola. Na medida em que os sistemas escolares se

expandem, reivindicando uma proporção aumentada de seus

recursos, absorvendo mais estudantes e professores e mais do

tempo de cada um deles, algumas experiências

verdadeiramente excepcionais estão fadadas a acontecer nas

escolas. Elas ocorrem, contudo, apesar e não em virtude da

escola (REIMER, 1971, p. 21).

A escola assume como um de seus principais propósitos o

ensinamento de habilidades, em especial linguísticas e matemáticas. A defesa

mais comum que se faz sobre escolas, segundo Reimer (1971), é a que se

configura na forma da seguinte pergunta: “Onde mais as crianças aprenderiam

a ler?”. A alfabetização, garante o autor, é na verdade um fato independente da

escola, e ainda afirma que há sempre mais membros alfabetizados numa

sociedade do que pessoas que tenham frequentado a escola. Ademais, de

acordo com Reimer, há ainda crianças que, a despeito de frequentarem a

escola, não sabem ler, e que, em geral, crianças de pais alfabetizados

aprendem a ler mesmo que elas ainda não frequentem a escola, ao passo que

crianças de pais analfabetos frequentemente fracassam em aprender a ler até

mesmo nas escolas.

De acordo com Reimer (1971), de um modo geral, em sociedades

escolarizadas, a maioria das crianças aprendem a ler na escola; mas,

considerando quando elas normalmente aprendem a ler e quando elas

começam a frequentar a escola, este fato não poderia ser diferente. No

entanto, segundo o autor, até mesmo numa sociedade devidamente

escolarizada, poucas crianças aprendem a ler fácil e bem, embora quase todas

aprendam a falar fácil e bem - uma habilidade aprendida independentemente

da escola. Aquelas crianças que aprendem a ler bem, leem por seu próprio

prazer, o que sugere que um bom domínio de leitura - como outras habilidades

- é o resultado de prática, afirma Reimer. Ainda, de acordo com o autor, dados

em matemática apoiam ainda menos a escola, uma vez que iletrados, no

contato com a economia monetária do dia-a-dia, aprendem a contar, adicionar,

subtrair, multiplicar e dividir, enquanto que poucas pessoas, numa sociedade

escolarizada, aprende muito mais do que isso.

Outro argumento em favor da escola, afirma Reimer (1971), é a

de que a escola ensina a gramática da língua e as teorias da matemática, das

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28

ciências e das artes. Sem dúvida ela as ensina, mas a verdadeira questão,

pondera o autor, é se essas coisas são aprendidas na escola mais do que elas

seriam aprendidas de qualquer outro jeito. Para o autor, aqueles estudantes

que são interessados por esses assuntos os aprendem, e aqueles que não são

interessados, não. Se o interesse por esses assuntos, questiona Reimer, é

estimulado pelas escolas, é duvidoso.

Novamente de acordo com Reimer (1971), o efeito pernicioso das

escolas sobre o aprendizado cognitivo é mais bem visualizado ao

contrastarmos o impacto da escolarização sobre as crianças privilegiadas e

sobre as desprivilegiadas. Prossegue o autor que os desprivilegiados, aqueles

cujos ambientes familiares - e, acrescentaríamos, também a sua vizinhança -,

carecem dos recursos especializados providos pela escola, exibem

desempenhos relativamente mal-sucedidos nas escolas e são marcados com a

experiência do fracasso, uma convicção de inadequação e um desgosto pelos

mesmos recursos especializados de aprendizado do qual são privados. Por

suas vezes, os privilegiados, segundo Reimer, cujos ambientes familiares - e

vizinhanças - são abundantes em termos de recursos especializados para o

aprendizado, e que aprenderiam por eles mesmos a maioria do que é ensinado

nas escolas, gozam de um relativo sucesso dentro do ambiente escolar, e se

engancham num sistema que os recompensa por aprender sem o exercício do

esforço ou da iniciativa. Assim, segundo o autor, os pobres são privados tanto

da motivação quanto dos recursos, que as escolas reservam para os

privilegiados. Os privilegiados, em contrapartida, são ensinados a preferirem os

recursos escolares aos seus próprios, e a dispensar o aprendizado

automotivado pelos prazeres de ser ensinado.

3.3 O QUE É A ESCOLA

Para Matthews (2004), qualquer instituição que vise estruturar e

regulamentar a vida de um indivíduo, em certa medida, está em conflito com

este indivíduo. A questão curiosa é que nem sempre o indivíduo está em

conflito com a instituição. De acordo com o autor, isso se deve ao fato de que

os efeitos da subordinação são ignorados pelo indivíduo. Assim, é possível

considerar que a subordinação é, essencialmente, assumida pelo indivíduo

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29

como condição sine qua non para que se tenha acesso ao produto oferecido

pela instituição - no caso da escola, a educação, seja esta educação verificada

em termos concretos, de absorção e prática do saber, ou em termos

simbólicos, de aquisição de um diploma. No entanto, não nos parece que a

subordinação é aceita apenas em virtude do produto permutado; a bem da

verdade, parece-nos que a subordinação, como sustenta Gallo (1995) ao tratar

do infrapoder - questão que este trabalho aborda em seguinte -, é um dado

adquirido despercebidamente, na pré-formação do indivíduo, como parte do

costume disciplinar presente em nossa sociedade. Em linhas gerais, Matthews

afirma o seguinte a respeito da subordinação:

Estudantes são ensinados, através do processo de

escolarização, a serem conformistas, carentes de imaginação,

dóceis, e várias outras coisas que são consideradas virtudes no

mundo do trabalho. Continue assim e você poderá nunca se

sentir bem consigo mesmo, mas você será congratulado por

figuras de autoridade pelo resto de sua vida. Acredito que os

sentimentos antagônicos que as pessoas têm a respeito da

escola refletem o que as escolas estão tentando fazer com

você (MATTHEWS, 2004, p. 03).

De acordo com Reimer (1971), pode-se definir a escola como

uma instituição que demanda frequência integral de grupos etários específicos

em salas de aula supervisionadas por professores para o estudo conforme um

currículo graduado (dividido em graus). Quanto mais essa definição se

enquadrar numa determinada instituição, mais essa instituição corresponderá

ao estereótipo da escola. As alternativas de educação são, geralmente,

definidas com base no afastamento desse estereótipo. Contudo, adverte

Reimer que a não ser que essas alternativas se distanciam o suficiente desse

estereótipo, de modo a escapar da “atração gravitacional” do sistema escolar,

elas serão absorvidas e assimiladas pelo sistema.

Ao especificar uma idade requerida para a frequência, as escolas

institucionalizam a infância. Em sociedades escolarizadas, a infância é

considerada um fenômeno universal. Mas crianças, no sentido moderno, não

existiam há trezentos anos e ainda não existem em sociedades e tribos

pequenas (REIMER, 1971). Baseando-se na pesquisa do historiador Philipe

Aires em seu livro Centuries of Childhood [História Social da Criança e da

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30

Família], Reimer comenta que, antes do século XVII (quando as versões de

escolas existentes não eram voltadas para os mais novos), as crianças se

vestiam como adultos, eram expostas ao sexo, à doenças e à morte, e, em

geral, não possuíam um status especial. A subcultura da infância não existia. A

igreja medieval considerava que crianças, batizadas na primeira infância,

atingiam a idade da razão aproximadamente aos sete anos, o que significava

que, desta idade em diante, elas eram responsáveis por seus atos, não apenas

perante os homens, mas também perante a Deus (REIMER, 1971).

Todas as culturas, é claro, distinguem crianças e jovens

sexualmente imaturos de adultos; todas as culturas possuem ritos de entrada

na fase adulta (geralmente, quando se atinge a puberdade); todas as culturas

fazem alguma distinção entre o que os adultos e os não-adultos podem fazer.

Isso não significa, no entanto, que todas as culturas têm uma subcultura infantil

(REIMER, 1971).

De acordo com Harris (2009), entretanto, crianças, de fato,

possuem uma cultura, que apreende elementos da cultura adulta mas que é,

por si só, uma cultura. No entanto, e de acordo com a teoria de socialização de

grupos de Harris (que este trabalho trata detalhadamente mais à frente), é

preciso um grupo para algum senso de identidade coletiva (de grupo) ser

formada. Dessa forma, em sociedades tribais, em que as crianças têm papeis

menos distinguíveis dos adultos e convivem com um número muito menor de

outras crianças, o senso de cultura infantil é inexistente, e, por isso, só poderia

mesmo ser fomentado numa sociedade que incentivasse as diferenças entre

adultos e crianças.

E, de fato, em nossa sociedade, de acordo com o que comenta

Reimer (1971), há uma cultura infantil baseada nas diferenças impostas sobre

as crianças: não se espera que trabalhem, exceto em seus estudos; crianças

não são responsáveis por incômodos, danos ou crimes que cometem contra a

sociedade; crianças não são consideradas política e legalmente; espera-se que

crianças brinquem, divirtam-se e que se preparem para a vida adulta, e assim

se espera que compareçam à escola, e que a escola é responsável por elas,

por guiá-las e, temporariamente, assumir o papel de seus pais.

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31

O tratamento de crianças anterior à invenção da infância, no

entanto, era indesejavelmente brutal, e, de acordo com Reimer (1971), no caso

da infância, a escola provavelmente serviu a um propósito útil, já que muitas

das proteções trazidas às crianças são importantes e necessárias, mas, apesar

destas, muitas das proteções e indulgências às crianças são também más,

como o prolongamento da idade da infância/adolescência a fim de que sejam

mantidas nas escolas e sejam impedidas de participar integralmente na

produção econômica da sociedade.

Uma vez que o conhecimento se torna um produto, de modo a

atender as demandas da era tecnológica, o currículo graduado segue uma

matriz de pacotes de conhecimento cada um com seu tempo e espaço

determinados. Nesta circunstância, o ensino se torna um problema quando os

estudantes passam a depender dele para o aprendizado. A frequência à sala

de aula se torna um problema quando suas paredes estéreis impedem a

infiltração da vida normal. E o currículo se torna um problema conforme se

aproxima de uma universalidade internacional (REIMER, 1971).

O currículo graduado, segundo Reimer (1971), pode ser a

característica mais significante da escola, especialmente em termos do papel

da escola na sociedade. Assevera o autor que isso se deve ao fato de que o

currículo é a pedra angular de um sistema baseado na infância

institucionalizada, no ensino e na frequência obrigatória. O currículo, segundo

Reimer, confere a estrutura para estes elementos, unindo-os de um jeito que

determina o impacto único da escola nos estudantes, nos professores e na

sociedade. Em si mesmo, a ideia central do currículo é simples e inevitável: o

aprendizado deve ocorrer em alguma sequência, e deve haver alguma

correlação entre as diferentes sequências de aprendizado (REIMER, 1971).

Para que o ensino funcione efetivamente como ele é programado

para funcionar, Reimer (1971) afirma ser necessária a integração do currículo

ao sequenciamento de graus previsto pelo sistema escolar. É este currículo

sequenciado que cria o sistema escolar propriamente dito. Assim, de acordo

com o autor, o currículo central das escolas secundárias é ditado pelos padrões

necessários para a admissão no colegial. O currículo deve direta ou

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32

indiretamente determinar o horário de comparecimento, os parâmetros da sala

de aula, as qualificações dos professores e os requisitos para a admissão no

grau superior. Até mesmo as propostas de reforma escolar sobreviveriam caso

não ameaçassem a progressão de seus graduados aos degraus superiores de

seu sistema (REIMER, 1971).

É através do currículo padronizado, que, por sua vez, consolida a

escola em seu modelo de sistema, que, então, adquire um monopólio

internacional sobre os acessos a empregos e funções políticas e sociais, que a

escolarização determina sua estrutura interna e suas operações

características, bem como a relação entre as escolas e a relação entre a

instituição escolar e as demais instituições (REIMER, 1971).

3.4 TEORIA DA SOCIALIZAÇÃO DE GRUPOS

Como visto, a evolução da democracia grega foi um dos fatos que

contribuíram para o desenvolvimento de formas de educação coletiva,

antecedendo o estabelecimento da escola como instituição. O crescimento do

número de pupilos na Grécia antiga, obrigando seus mestres a desenvolverem

técnicas de instruções em grupo, precedeu as salas de aulas como as

conhecemos atualmente. E tão logo que educar coletivos de pessoas, massas

e massas de alunos tenha se tornado um desafio especial para estados-

nações, na sua constituição da cidadania e dos valores nacionais, a

escolarização compulsória se consolidou, exigindo o comparecimento de

crianças e jovens nas salas de aula e lançando mão de métodos de controle e

disciplina desenvolvidos, supostamente, para assegurar um aprendizado

universalizado e bem-sucedido.

Antes de entrarmos nos méritos disciplinares, cuja compreensão

detalhada é relevante para elucidar as maneiras através das quais a disciplina,

por mais abominável que seja, considerando-a no prisma do paradigma

anarquista, parece, efetivamente, produzir uma educação bem-sucedida (pelo

menos segundo a expectativa macrossocial de um sistema capitalista), é, em

primeiro lugar, preciso compreender quais os verdadeiros desafios que grupos

impõem, já que grupos são a exata causa para que mecanismos dominadores

como os da disciplina tenham sido desenvolvidos.

Page 33: TCC FINALIZADO

33

Parece-nos moral, numa perspectiva anarquista, privilegiarmos a

liberdade individual do estudante em detrimento de sua submissão às

necessidades de qualquer coletivo de pessoas, ou, para ser mais exato, de

uma casta superior (o professor, a escola). Mas, como veremos mais adiante,

um balanço é feito a partir da filosofia anarquista, que propõe a solidariedade

como núcleo de uma nova proposta educacional. Porém aqui adiantamo-nos,

pois a solidariedade não parece ser um fenômeno dado gratuitamente nos

agrupamentos de pessoas, e por alguma razão a colaboração entre indivíduos

em busca de um objetivo em comum - a educação, o conhecimento - não se

reflete na sala de aula, tendo, para isso, de serem controlados, disciplinados e

doutrinados ao gosto de seus superiores.

Assim, faz-se necessário entender o que o fenômeno grupo

realmente é, como se constitui, quais as suas particularidades, quais as suas

flexões e inflexões, e como a necessidade de controle, em vista do

estabelecimento de uma massa uniforme de indivíduos a serviço da sociedade,

pode ter causado o aparecimento das técnicas de dominação que a proposta

anarquista pretende desmantelar.

O começo deste entendimento é um começo que pretende

entender a criança e sua convivência com os próprios pais, para mais adiante

tratar de como essa criança desenvolve-se em luz da convivência com seus

pares, em luz de sua experiência em grupo.

3.4.1 “Um por todos, todos por um”

De acordo com Harris (2009), a criança é mais influenciada pelo

convívio com seus pares - normalmente outras crianças do mesmo sexo e

idade - do que por seus pais. Para ela, é questionável o quão efetiva é a

educação parental, o estilo de criação e a transmissão cultural de pais para

filhos durante o desenvolvimento da personalidade da criança até a fase adulta,

já que as consequências de tais práticas parentais são praticamente nulas e

sequer rivalizam com a influência que o meio social (exterior ao lar) exerce

sobre os indivíduos.

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34

Segundo Harris (2009), isso acontece em razão da propensão

natural do indivíduo a adquirir traços comportamentais caros ao meio em que

se encontra. Portanto, dentro do núcleo familiar, a criança pode muito bem

aparentar possuir uma personalidade que reflete a educação que seus pais

exercem sobre ela, mas apenas dentro do núcleo familiar. É provado, de

acordo com a autora, que os ditames comportamentais dos pais não se

replicam em outros contextos sociais - como, por exemplo, o da escola. Não

são raros os casos em que pais se revelam surpresos ao descobrirem,

geralmente através de reuniões de pais, que seus filhos se comportam de

maneira x na escola, apesar de apresentarem um comportamento y dentro de

casa, sob a supervisão parental.

A razão pela qual a propensão de se adequar a grupos sociais

existe é, de acordo com Harris (2009), puramente evolutiva. Segundo a

pesquisadora, é vantajoso, de um ponto de vista evolucionista, adaptar-se aos

comportamentos estimados por seu grupo no contexto em que se insere, pois

um grupo mais robusto e unido fortalece as chances de sobrevivência de cada

um de seus indivíduos, através da proteção comunal do um-por-todos-todos-

por-um. Harris cita a observação de Charles Darwin de que “Um selvagem

arriscará sua própria vida para salvar um membro de sua comunidade”

(HARRIS, 2009, p. 101).

E as razões para tamanho sacrifício, numa perspectiva

evolucionista, são bastante claras, afirma Harris (2009, p. 101): “Um indivíduo

que sacrifica sua vida para proteger seu grupo está protegendo a vida de seus

irmãos, irmãs e crianças - pessoas com as quais ele compartilha cerca de 50%

de seus genes”. Mas o sacrifício individual em prol do grupo não se resume

apenas a uma questão de propagação de genes, ainda que a adaptabilidade

evolutiva também se defina em razão da propagação exitosa dos mesmos.

Qualquer agrupamento que se preze, independentemente de compartilharem

genes ou não, adquirirá para si uma identidade de grupo e conduzirá seus

indivíduos a atuarem de acordo com os interesses coletivos, e qualquer

dissidência individual ocasionará na expulsão ou punição do indivíduo pelo

grupo.

Page 35: TCC FINALIZADO

35

A razão disso é explicada por Harris a partir do que chama,

genericamente, de categorização. Os cérebros humanos são equipados para

nomear, classificar, categorizar, dividir pessoas ou coisas em grupos. Seria

ineficiente, segundo a autora, ter de aprender a lidar com cada objeto, cada

animal, cada pessoa individualmente, e que, por isso, colocamos tudo em

categorias, ou em conceitos. Tratando das consequências da categorização,

Harris afirma:

Essa é uma das consequências da categorização: ela nos faz

ver itens dentro de uma categoria como se fossem mais

parecidos do que realmente são. Ao mesmo tempo, nos faz ver

itens em diferentes categorias como mais diferentes do que

realmente são (HARRIS, 2009, p. 123).

Assim, a categorização faz com que as diferenças entre grupos

humanos aumentem, ao passo que as diferenças dentro dos grupos diminuam.

A tendência para que membros de um mesmo grupo se tornem mais parecidos

com o tempo, segundo Harris (2009), é chamada de assimilação. De acordo

com a autora, os grupos humanos demandam algum tipo de conformidade, o

que é especialmente verdadeiro quando um grupo contrastante avizinha-se, e

especialmente verdadeiro para as características que fazem os dois grupos se

diferenciarem (ou acreditarem que se diferenciam).

Dessa forma, a atuação de indivíduos em favor de seus grupos

ocorre porque o indivíduo está propenso a assumir as características do grupo

em que se insere em virtude do fenômeno de assimilação da identidade

coletiva ao seu comportamento individual. Portanto, quando crianças agem de

uma maneira x em casa e y no ambiente escolar, ela está apenas

desempenhando o comportamento adequado a cada um dos contextos sociais,

a cada um dos grupos. Da mesma forma, esta mesma criança pode

desempenhar um comportamento z, diferente do x (familiar) e y (escolar) caso

se encontre convivendo em um contexto social diferente dos dois supracitados;

provavelmente um contexto com demandas comportamentais e identidade de

grupo diferentes daqueles exigidos pelos pais e pelos colegas (não

professores) no ambiente escolar.

A identidade de grupo (e, consequentemente, a individual) que

uma criança adquire no ambiente escolar não é transmitida pelos professores.

Page 36: TCC FINALIZADO

36

O professor, normalmente, emite, em maior ou menor semelhança, os mesmos

modelos comportamentais emitidos pelos pais, e é natural que crianças se

comportem, de acordo com as normas estabelecidas pela escola e reforçadas

pelos professores quando estão na frente dos mesmos. A identidade de grupo

estimada pela criança e atuada em sua personalidade, na verdade, é aquela

carregada pelos seus pares, afirma Harris (2009); isto é, as outras crianças,

mais especificamente as que compartilham a mesma faixa etária, mais

especificamente as que são do mesmo sexo, mais especificamente as que

possuem a mesma etnia, mais especificamente as que possuem o mesmo

background socioeconômico, mais especificamente aquelas que dão mais valor

aos estudos ou menos valor aos estudos. É um fenômeno inegável dentro da

sala de aula: a separação por grupos, ou, mais popularmente, por “panelinhas”.

Um grupo, dentro de uma sala de aula, forma-se à medida que

uma quantidade suficiente de indivíduos que compartilham características

semelhantes são colocados em confronto com outros indivíduos que

compartilham características semelhantes entre si, mas diferentes da primeira

porção de indivíduos, resultando, assim, numa cisão em grupos, com duas

identidades diferentes, a partir do fenômeno de assimilação entre indivíduos

semelhantes.

Salas de aula já são divididas por séries, normalmente de acordo

com a faixa etária de seus alunos, o que automaticamente os leva a

diferenciar-se dos outros alunos pertencentes a séries inferiores ou superiores.

Além do mais, é comum a separação sortida por classes, pertencentes a uma

mesma série; uma divisão totalmente artificial mas que, ainda assim, cria o que

Harris (2009) chama de fenômeno de contraste de grupos, o que explica o

sentimento de pertencimento a um grupo independentemente das razões

artificiais para que a cisão entre os grupos tenha acontecido, e que leva os

indivíduos a se diferenciarem ainda mais das pessoas de outros grupos e se

identificarem ainda mais com aqueles pertencentes ao seu grupo. O contraste

de grupos causa o aumento na diferenciação entre grupos apenas pelo simples

fato de que são grupos diferentes. Caso as classes escolares sejam separadas

por critérios de desempenho, o contraste pode ser ainda mais robusto, e os

estudantes com desempenho escolar inferior (os “não-nerds”, que dão menos

Page 37: TCC FINALIZADO

37

valor aos estudos), tendem a dar cada vez menos valor aos estudos,

acontecendo o mesmo no caso contrário, em que estudantes com desempenho

escolar superior (os “nerds”, que dão mais valor aos estudos) continuam a dar

cada vez mais valor aos estudos e apresentar desempenhos satisfatórios.

Outra divisão comumente testemunhada é entre os sexos:

garotos e garotas tendem a andar separados uns dos outros. São grupos

distintos que naturalmente assumem a identidade comumente atribuída a cada

gênero. O contraste de grupos, teorizado por Harris (2009), mais uma vez

explica a situação. Enquanto indivíduos adaptam sua personalidade à

identidade do grupo, através de um processo de assimilação, o fenômeno de

contraste entre grupos agrava ainda mais a diferenciação entre indivíduos de

diferentes grupos, uma vez que, contrastando garotas e garotos, as

particularidades comumente atribuídas a cada um dos sexos durante a

juventude se tornam salientes:

Quando uma categoria social particular é saliente e você se

categoriza como um membro dela - é aí que o grupo terá a

maior influência sobre você. É nesse momento que as

similitudes entre os membros de um grupo estão mais

propensas a aumentar e as diferenças entre os grupos a subir

(HARRIS, 2009, p. 132).

A identidade de grupo, portanto, só se torna saliente na presença

de outros grupos. Assim, numa sala cheia de adultos, por exemplo, um adulto

não irá se identificar como adulto enquanto não houver um grupo contrastante

no mesmo ambiente; ele provavelmente adequará seu comportamento social

de acordo com outras categorias sociais salientes naquela sala (categorias de

diferenciação de grupo como, por exemplo, classe social, etnia, nacionalidade,

grau acadêmico etc.). Mas, basta colocar algumas de crianças nesta mesma

sala para que a categoria social “adulto” se torne saliente e este adulto passe a

se identificar, em contraste com as crianças, como um adulto, e a assumir para

si um comportamento social mais definidamente adulto (HARRIS, 2009).

Harris (2009) afirma que, quanto maior for uma sala de aula, mais

sensível ela é a fragmentar-se em categorias sociais, em grupos: os nerds, os

preguiçosos, os bad-boys, as patricinhas, os palhaços etc. De acordo com a

pesquisadora, o mau desempenho escolar está associado a questões de

Page 38: TCC FINALIZADO

38

heterogenia, isto é, quanto mais diferenciada for a sala de aula, mais dificultosa

será a tarefa do professor, mais fadado ao fracasso estará aprendizado. Em

salas menores, a quantidade pequena de alunos implica numa não

fragmentação em grupos, implica em união e no bom convívio entre os alunos,

na ajuda mútua e na sensação de pertencimento a um grupo consistente:

assim, é perfeitamente exitosa a separação de estudantes em classes

homogêneas, de acordo com o desempenho escolar, mas apenas para aqueles

que já apresentarem um bom desempenho escolar, pois os que apresentam

desempenho inferior, no convívio com seus semelhantes, continuarão

estimando a cultura da não valorização do estudo.

Segundo Harris (2009), escolas particulares não produzem bons

resultados pelo fato de serem particulares ou porque nelas o ensino é de

melhor qualidade: apresentam porque, em escolas particulares, a maioria dos

alunos vêm de um background socioeconômico privilegiado, que possibilita aos

seus pais o luxo de pagar uma escola para seus filhos e que, muito

provavelmente, em virtude de pertencerem a uma classe de maior acesso à

cultura, trazem de casa e da vizinhança a valorização do aprendizado. Aqueles

poucos estudantes oriundos de backgrounds socioeconômicos inferiores, que,

por meio de bolsas ou esforço financeiro de seus pais, conseguem ingressar

numa escola particular, muito provavelmente levam consigo uma valorização

mais baixa do aprendizado, mas, para garantirem a sua sobrevivência, ou ao

menos o seu sucesso pessoal dentro daquele grupo, no convívio com aquelas

crianças, ajustam-se à cultura de seus pares e são influenciados por eles

apenas pelo fato de que estes são a maioria, a porção dominante que define a

identidade do grupo.

Portanto, ainda que estas crianças menos favorecidas venham de

realidades diferentes, de vizinhanças mais pobres e continuem a se comportar,

nestes contextos sociais, como crianças menos favorecidas e pobres, nada

impede que, no contexto social da escola particular, elas se comportem

exatamente como a maioria e aprimorem seu desempenho escolar, já que

muito provavelmente não há, dentro da escola particular, um número suficiente

de indivíduos com o mesmo histórico socioeconômico desprivilegiado para que

se formem grupos e assim se dê o processo de diferenciação (HARRIS, 2009).

Page 39: TCC FINALIZADO

39

Em seu livro, Harris (2009) aponta exemplos de como a

existência de grupos de crianças imigrantes oriundas de um mesmo país e que

estudam o idioma de sua nova terra em uma mesma escola, na verdade,

provoca um efeito contraproducente ao aprendizado individual de cada um:

porque crianças imigrantes de um mesmo país tendem a se agrupar uns com

os outros e se diferenciarem ainda mais das crianças pertencentes a outros

grupos (os falantes da língua por eles desconhecida, no caso); e, apesar de

receberem aulas naquela nova língua e terem a oportunidade de conviverem

com pessoas dessa língua, insistentemente mantêm-se agrupadas com seus

semelhantes, que já falam sua língua, o que, consequentemente, não os leva a

praticar a nova língua que devem aprender.

Os resultados são mais positivos em casos estudados de

crianças imigrantes que se encontram sozinhas em escolas de outros países,

falantes de línguas que não a dela. Nessa imersão radical, a criança se vê

isolada e obrigada a se adequar a categorias sociais que lhe parecem salientes

de acordo com suas próprias características (sexo, idade etc.); mas o fato

inalienável de cada grupo em que essa criança se force a fazer parte é a

língua: sempre diferente da que ela fala. Assim, a criança exibe um

aprendizado muito mais veloz e eficiente da língua estudada do que se tivesse

semelhantes, falantes de sua língua natal, para poder com eles se agrupar

(HARRIS, 2009).

Harris (2009), teorizando a respeito de classes com

desempenhos bem-sucedidos em escolas, conta-nos a respeito da classe da

Srta. A, cujos alunos acompanharam a professora por consecutivos anos

letivos e se destacaram com notas acima de todas as outras classes dessa

mesma escola durante todos os anos que estiveram sob a tutela desta

professora. A hipótese de Harris é a de que, de alguma forma, apesar da

possível distinção em grupos que poderia haver dentro dessa classe, a Srta. A

conseguiu ofuscar as diferenças entre meninos e meninas, nerds e não-nerds,

e demais categorias sociais, e dar uma identidade una à sala, de modo que

todos adquirissem um sentimento de grupo e se unissem em prol de um único

objetivo, talvez o de ser a melhor classe da escola.

Page 40: TCC FINALIZADO

40

Assim, de alguma forma especial, a Srta. A conseguiu, por meio

da socialização de grupo, eliminar os revezes dessa propensão natural humana

e revertê-la em favor de todos, coletiva e, quiçá, individualmente. Mas o que a

Srta. A criou, a bem da verdade, foi um “inimigo em comum”. De acordo com

Harris, comentando a respeito de experimentos de socialização de grupos, dois

grupos só se unem em vista de um inimigo em comum, isto é, de um terceiro

grupo que ameace igualmente os dois primeiros ou de um objetivo em comum

que somente a união dos grupos permita alcançá-lo. Basta isso para que

distinções se confundam e os dois grupos adquiram uma identidade igual,

lutando por uma mesma causa. A façanha da Srta. A pode muito bem ter sido a

de colocar um reforço sobre essa meta em comum que todos,

independentemente de suas diferenças, deveriam atingir - o que os fizeram,

independentemente de outras propensões de grupo, identificam-se solidamente

como “A Classe da Srta. A”.

Harris (2009) ainda expõe como escolas exclusivamente para

meninas permitem com que garotas exibam melhores desempenhos em

disciplinas normalmente atribuídas à habilidade masculina, como a matemática,

que comumentemente se destaca mais entre meninos em escolas mistas. Uma

vez convivendo apenas entre meninas, e não tendo a pressão dos atributos da

categoria social contrastante, a dos meninos, as meninas são mais livres para

se associarem a atividades que, num confronto com meninos, seriam

reprimidas por puro efeito de contraste e assimilação de grupo (contrastariam

as características comumente aos meninos - o interesse por matemática - e

assimilariam as características comumente das meninas - a supor, o interesse

pelas ciências humanas).

Neste sentido, e levando em conta todos os dados, a segregação

por sexo, classe, etnia e background socioeconômico parece trazer melhores

resultados para o aprendizado das crianças. No entanto, a parte

desprivilegiada sempre será desprivilegiada, e os resultados escolares dos

alunos continuarão aproximadamente os mesmos: meninos continuarão de

destacando mais que meninas em ciências exatas; brancos continuarão de

destacando mais que negros em avaliações escolares, ricos se darão melhor

do que pobres etc. A solução, portanto, não é a segregação. Ainda assim,

Page 41: TCC FINALIZADO

41

entretanto, exemplos como o da classe da Srta. A parecem nos indicar

soluções que fortalecem mais ainda a concepção de massa em detrimento da

individualidade de cada um, em favor de um aprendizado generalizado.

Hairrs (2009) sugere que, assim como a Srta. A possivelmente

fez, crie-se categorias artificiais e inofensivas para a formação de grupos

escolares, e que ofusquem as distinções entre sexo, etnia, background

socioeconômico em prol de uma identidade geral compartilhada, normalmente

em busca de uma meta em comum, com um mesmo “inimigo em comum”.

Mas reverter os revezes da socialização em grupos em benefício

do aprendizado generalizado pode nem sempre ser fácil, quanto menos

funcionar verdadeiramente, afinal, produzir resultados em massa não é

sinônimo de aprendizado que recompense os alunos individualmente. Se se

unirem para se tornarem a melhor classe de um colégio, e tirarem notas que,

somadas, os farão alimentar um orgulho cada vez maior por sua classe, por

seu grupo, e consequentemente se sentirem mais e mais motivados a se

comportarem como “bons estudantes” quando em convívio com outros “bons

estudantes”, qual será o verdadeiro lucro intelectual obtido em suas vidas

individuais após saírem da escola, após deixarem de pertencer à “Classe da

Srta. A”?

Em conclusão, o estudo da socialização de grupos nos permite

inferir ao menos cinco entendimentos em relação ao ensino escolar: 1) educar

massas é uma tarefa ingrata; é indispensável que, para um bom aprendizado

individual, uma sala de aula seja cooperativa, mas conter as fragmentações em

grupo, propensas a ocorrer naturalmente, é um serviço hercúleo e muitas

vezes impraticável; 2) criar um grupo homogêneo, nem que, para isso, seja

necessário a categorização artificial de uma sala de aula, a fim de que

assumam uma identidade de grupo e passem a cooperar com o aprendizado,

de fato produz um ensino mais exitoso; 3) a união de um grupo prevê,

necessariamente, a assimilação entre os membros desse grupo, e, talvez, o

sacrifício de desejos e interesses individuais, o que impossibilitaria a ideia de

uma educação que estime a individualidade do estudante, visto que ou se

educa individualmente, ou coletivamente; 4) uma autoridade, como a da Srta.

Page 42: TCC FINALIZADO

42

A, pode, de fato, vir a calhar na necessidade de se formar um grupo

homogêneo, que lidere e imponha as condições para que todos os indivíduos

hajam de modo coordenado; e 5) a disciplina, isto é, o conjunto de normas e

costumes devidamente impostos, também se faz necessária para que se ponha

indivíduos díspares em coordenação, sendo o professor uma autoridade a

administrar, mas não a criar os mecanismos de uma disciplina, que, como

veremos, são complexos.

3.5 A DISCIPLINA

Explicar o fenômeno da disciplina nos ajuda a entender as suas

causas, mas, mais ainda, o seu mecanismo. E entender minuciosamente o

mecanismo da disciplina requer olhar atento e perscrutante para as suas

práticas.

No contexto geral que pretendemos esboçar, examinar

microscopicamente a disciplina pode se revelar como um esforço

recompensador, de modo que entenderemos, para além da perspectiva

histórica, e levando em consideração a investigação do fenômeno de grupos

realizado neste trabalho, qual a sua razão. Foucault (1977), fundamentação

teórica deste estudo, atenta menos para o sentido da disciplina e mais para a

precaução que do conhecimento dela tomamos.

É, portanto, a partir desta precaução que poderemos entender o

porquê da disciplina, se é ou não é dispensável na organização social que

temos atualmente, e, mais importante, se a disciplina deve ou não deve ser

aparato de nossa proposta de repensar a escola.

3.5.1 A disciplina como fim de si mesma

A disciplina nas escolas sempre foi parte fulcral do sistema como

ele é conhecido. Foucault (1977), em seu trabalho histórico sobre a violência

nas prisões, dedica parte de sua análise a escrutinar a disciplina, que ele

define por “métodos que permitem o controle minucioso das operações do

corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma

relação de docilidade-utilidade” (FOUCAULT, 1977, p. 126).

Page 43: TCC FINALIZADO

43

Esta submissão chamada de disciplina é, ao mesmo tempo,

processo - composto por métodos - e finalidade - não se chega a lugar nenhum

se não à própria submissão mais perfeita à disciplina. No entanto, a disciplina

como componente do currículo escolar sempre foi enfatizada como um método

produtivo, a fim de se alcançar um aprendizado mais totalizado, como se o

conhecimento pudesse ser mais bem assimilado na medida em que a

submissão à disciplina fosse mais bem efetuada.

A relação de docilidade-utilidade dos corpos, um dos aspectos da

disciplina, configura-se de maneira a tornar os corpos passíveis ao controle e

simultaneamente úteis a alguma finalidade intentada. Segundo Foucault (1977,

p. 126), “é dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que

pode ser transformado e aperfeiçoado”. A transformação e o aperfeiçoamento

do corpo são propósitos de utilização que miram unicamente no alcance de

uma disciplina cada vez mais apurada, de corpos cada vez mais controláveis e

em estado de prontidão:

Houve, durante a época clássica, uma descoberta do corpo como

objeto e alvo de poder. Encontraríamos facilmente sinais dessa grande

atenção dedicada então ao corpo – ao corpo que se manipula, se

modela, se treina, que obedece, responde, se torna hábil ou cujas

forças se multiplicam (FOUCAULT, 1977, p. 125).

O aprendizado da disciplina é proveitoso exclusivamente para o

aprendizado da disciplina, da parte de quem a sofre. Da parte de quem a

submete, a disciplina é proveitosa como método de controle - e não só em

escolas, como observa Foucault (1977, p. 126): “Muitos processos disciplinares

existiam há muito tempo: nos conventos, nos exércitos, nas oficinas também”,

sendo que, no decorrer dos séculos XVII e XVIII, tornaram-se fórmulas gerais

de dominação (FOUCAULT, 1977). A disciplina como fim de si mesma,

portanto, prescinde qualquer produto externo a ela, que derive diretamente de

sua prática, o contrário de outra forma de dominação, a vassalidade, da

seguinte maneira distinguida por Foucault:

Diferentes da vassalidade que é uma relação de submissão altamente

codificada, mas longínqua e que se realiza menos sobre as operações

do corpo que sobre os produtos do trabalho e as marcas rituais da

obediência (FOUCAULT, 1977, p. 127).

Page 44: TCC FINALIZADO

44

A disciplina, ao invés de uma prática produtiva que conduza ao

aprendizado intelectual, bem como físico e que, de alguma forma, sirva para

finalidades diversamente aplicáveis, é, para Foucault, uma anatomia política e

uma mecânica do poder, definindo como se pode ter domínio sobre os corpos

“não simplesmente para que façam o que se quer, mas para que operem como

se quer, com as técnicas, segundo a rapidez e a eficácia que se determina”

(FOUCAULT, 1977, p. 127).

Entendida como um método para que se aumentem as forças do

corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminua essas mesmas forças

(em termos políticos de obediência), a disciplina dissocia o poder do corpo,

tornando-o mais apto e capaz e, ao mesmo tempo, mais dócil e impotente,

acentuando sua dominação (FOUCAULT, 1977). A disciplina, segundo

Foucault, define uma nova microfísica do poder, que denuncia um novo regime

punitivo, focado nas minúcias, nos detalhes, numa tática de controle assim

definida pelo autor:

Pequenas astúcias dotadas de um grande poder de difusão, arranjos

sutis, de aparência inocente, mas profundamente suspeitos,

dispositivos que obedecem a economias inconfessáveis, ou que

procuram coerções sem grandeza [...] (FOUCAULT, 1977, pag. 128).

É imperativo que, na minuciosa investigação da disciplina

(porquanto minuciosa é a disciplina), não nos atenhamos demasiadamente ao

sentido da mesma, pois devemos, de acordo com Foucault, procurar nela

menos um sentido e mais uma precaução que vise à coerência de uma tática.

Comparando o apreço da disciplina pelo minúsculo à ênfase ao detalhe

identificado já nas tradições da teologia e do asceticismo, Foucault diz que

“Para o homem disciplinado, como para o verdadeiro crente, nenhum detalhe é

indiferente, mas menos pelo sentido que nele se esconde que pela entrada que

aí encontra o poder que quer apanhá-lo” (FOUCAULT, 1977).

Para a procedência da disciplina, entretanto, faz-se necessária

uma série de técnicas que visem a distribuição do indivíduo no espaço. A

primeira delas, como aponta Foucault, é a da clausura, que objetiva cercar o

indivíduo num local específico e heterogêneo a todos os demais. Nos colégios,

prevalece o modelo do convento, sendo o internato o regime de educação mais

Page 45: TCC FINALIZADO

45

perfeito existente. Ademais ao princípio da clausura, a disciplina exige também

o que Foucault chama de quadriculamento, uma forma de controlar a massa de

indivíduos e suas potenciais dispersões em grupos e subgrupos, vigiando-os e

utilizando-os. Assim, cada indivíduo tem seu lugar determinado

antecipadamente, e cada lugar, um indivíduo, de modo controlado e a evitar as

dispersões livres em grupos, distribuindo-os, rigorosamente, em células pré-

determinadas e úteis: “É preciso anular os efeitos das repartições indecisas, o

desaparecimento descontrolado dos indivíduos, sua circulação difusa, sua

coagulação inutilizável e perigosa [...]” (FOUCAULT, 1977, p. 131).

Não só se fazem necessárias as divisões pré-determinadas e

rigorosas de indivíduos em diferentes células úteis e vigiáveis, como os

espaços aos quais estes indivíduos são repartidos também são pré-

determinados, segundo Foucault, para que satisfaçam a necessidade de vigiar,

de romper comunicações perigosas, e de criar um espaço útil: são, como

define o autor, as localizações funcionais. Além disso, na disciplina, os

elementos utilizados e vigiados, isto é, os indivíduos, são intercambiáveis, uma

vez que se definem pelo lugar que ocupam na série. Nesse sentido, Foucault

discute a respeito da separação seriada de indivíduos em classes - assim

desdobrada principalmente depois de 1762 -, onde os indivíduos se colocam

uns ao lado dos outros sob os olhares do mestre. Assim, determinando lugares

individuais, a organização serial do espaço escolar tornou possível o controle

de cada um e o trabalho simultâneo de todos, fazendo o espaço escolar

funcionar como uma máquina de ensinar, mas também de vigiar, hierarquizar e

recompensar:

A ordenação por fileiras, no século XVIII, começa a definir a grande

forma de repartição dos indivíduos na ordem escolar: filas de alunos na

sala, nos corredores, nos pátios; colocação atribuída a cada um em

relação a cada tarefa e cada prova; colocação que ele obtém de

semana em semana, de mês em mês, de ano em ano; alinhamento das

classes de idade umas depois das outras; sucessão dos assuntos

ensinados, das questões tratadas segundo uma ordem de dificuldade

crescente. E nesse conjunto de alinhamentos obrigatórios, cada aluno

segundo sua idade, seus desempenhos, seu comportamento, ocupa

ora uma fila, ora outra; ele se desloca o tempo todo numa série de

casas; umas ideais, que marcam uma hierarquia do saber ou das

capacidades, outras devendo traduzir materialmente no espaço da

classe ou do colégio essa repartição de valores ou dos méritos.

Movimento perpétuo onde os indivíduos substituem uns aos outros,

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46

num espaço escondido por intervalos alinhados (FOUCAULT, 1977, p.

134).

Ademais às táticas espaciais (de clausura, de localizações

funcionais e de séries), a disciplina também apreende a dimensão temporal, a

fim de reger através dela mais um grau de dominação e aperfeiçoamento da

vigilância e da utilidade dos corpos. A rigorosidade temporal nas escolas

remonta à velha herança das comunidades monásticas, em que cada hora da

vida de um monge correspondia a um lugar e uma tarefa determinadas

(REIMER, 1971). Além disso, de acordo com Foucault, sob a regência do

tempo, o poder disciplinador impõe uma regulamentação que é, ao mesmo

tempo, a lei de construção de uma determinada operação: assim, verifica-se na

instituição disciplinadora o quadro geral de atividades a serem executadas, de

acordo com o relógio; a elaboração temporal de um ato que demanda a

sustentação de cada movimento em direção, amplitude e duração numa ordem

de sucessão, dividida em etapas; a relação entre corpo e gestos, em que a

disciplina do primeiro confere a base para a eficiência dos últimos, repudiando

os gestos ociosos e inúteis; a relação entre o corpo e o objeto manipulado, de

modo a tornar destra a execução de tarefas instrumentais; e, por fim, a

utilização exaustiva do tempo, impondo normas temporais, estabelecidas por

sinais, apitos e comandos que possibilitam a realização de todas as operações

supracitadas ao intensificar a utilização do tempo, acelerando o processo de

aprendizagem e ensinando a rapidez como uma virtude (FOUCAULT, 1977).

Como vemos, a disciplina cria as condições para que o poder se

introduza nos mais meticulosos detalhes, estabelecendo entre eles relações de

dependência em vista de uma atitude geral, de uma compostura padrão, por

uma pose e por ações virtuosas firmadas no tempo e no espaço. O

enredamento dos processos disciplinares doma a agilidade e a destreza dos

indivíduos, tornando-os produtores cada vez mais eficazes de se produzirem

enquanto sujeitos da disciplina. A correlação entre os minuciosos processos

disciplinares não conduz, contudo, à produção de efeitos sobre o processo de

aprendizagem, cujos méritos não emergem das práticas disciplinares em

qualquer exame que se faça da mesma. A disciplina, em outras palavras, só

produz a disciplina.

Page 47: TCC FINALIZADO

47

3.5.2 A disciplina como ritual

Não obstante a disciplina ser o fim de si mesma, ela pode conferir

a ilusão de que ela mesma é a condição imprescindível para que se atinja um

aprendizado eficiente dentro da sala de aula. A disciplina, nesta concepção,

gera um efeito mistificado, que não emerge como valor direto dela mesma, mas

que, dissimuladamente, fabrica a aceitação de quem por ela está submetido.

Neste sentido, a disciplina pode ser entendida como um ritual - uma prática

cujos fundamentos são puramente místicos, e cujos efeitos, dissimulados, mas

que, não obstante, alimenta uma expectativa de utilidade.

Segundo Reimer (1971), a escola mesma é um ritual,

estabelecendo uma ponte entre a teoria social e a prática social. A teoria social

da escola pressupõe que escolas educam, e assim o estabelecimento do

currículo escolar assume a educação como a finalidade central, entretanto, a

disciplina, componente deste mesmo currículo escolar, está relacionada não à

aprendizagem, mas à docilidade dos estudantes, ao controle individual e

coletivo dos mesmos, a fim de que se disponham da mesma maneira perante o

conteúdo oferecido em sala de aula. Em termos psicológicos, de acordo com

Reimer, o ritual torna possível viver na dissonância cognitiva que emerge da

discrepância entre ideais e ações, teoria e prática. Para ilustrar essa condição

na escola, Reimer traça um paralelo com o ritual cristão:

As discrepâncias entre o preceito cristão e a prática cristã são bem

conhecidas, graças aos padres e ministros. O cristão deve fazer com

os outros o que ele gostaria que os outros fizessem com ele mesmo.

Ele deve dar ao outro o dobro do que pedem. Ele deve compartilhar

tudo que tem e ir atrás daqueles com problemas para auxiliá-los em

suas necessidades. Na prática, a maioria dos cristão são homens de

negócios, profissionais ou trabalhadores que labutam duro, cuidam do

que é seu e de seus próximos, e consideram os pobres como

indolentes e não merecedores, e se mantêm o mais distante que

podem de prisões, favelas e instituições de caridade. As discrepâncias

entre o ensino e a prática são reconciliadas pela participação nos

rituais de comparecimento à igreja, no batismo, na comunhão, na

oração e no sepultamento cristão (REIMER, 1971, p. 30).

Uma das explicações fornecidas por Reimer para este fenômeno

é a de que pessoas são falíveis, de que suas intenções importam mais do que

suas ações e de que os rituais provêm um meio de expressar aquilo que está

em seus corações (REIMER, 1971). No ritual cristão, o comparecimento à

Page 48: TCC FINALIZADO

48

igreja compara-se ao comparecimento à escola, cerimoniosamente tratado

através da chamada escolar e devidamente registrado no diário de classe,

entre outros tipos de cerimônias e rituais presentes no meio escolar que

reforçam a intenção de que se está sendo educado, ainda que, de fato, muito

se deva à teoria do que deveria ser aprendido.

A respeito do exame escolar, Foucault denuncia seu caráter

ritualístico e cerimonioso, apontando o exame, além disso, como forma de

controle normalizante e vigilância que permite qualificar, classificar e punir.

Para Foucault, o exame põe em funcionamento relações de poder que

permitem obter e construir o saber (FOUCAULT, 1977). Essa construção do

saber tem por objetivo justamente a normalização do aprendizado, o

nivelamento das mentes e a consolidação de um conteúdo depositado sobre o

aluno que, além de consolidar aquilo mesmo que foi-lhe transmitido como

essencial para o seu avanço pessoal dentro do contexto escolar, legitima sua

sujeição aos processos disciplinares supostamente condutores do saber e

testa-o em luz deste mesmo saber, definitivamente amarrando um ao outro os

processos disciplinares e o saber pretendido, criando uma ilusão de causa e

efeito, através de um procedimento totalmente ritualístico.

Na escola, portanto, a rigorosidade disciplinar cria a ilusão de

eficácia prática, de causa e efeito, de dedicação e resultado. Quanto maior for

a dedicação, isto é, a sujeição à disciplina, maior será a sensação de que algo

está sendo colocado em prática e de que um resultado está sendo produzido, e

mais convicta será a expressão da intencionalidade de aprender. Reimer ainda

argumenta que, refletindo a estrutura de classes presente na sociedade, a

escola, ao perfazer semelhante divisão entre os estudantes, distribuídos em

séries distintas e de maneira hierarquizada, cria a ilusão do progresso

(REIMER, 1971). E, assim como afirma Foucault, a divisão seriada define os

indivíduos, que passam a competir por um passo adiante na escada escolar, a

fim de preencherem uma ocupação no degrau acima da série, assumindo uma

nova definição a cada ano escolar, a cada progresso intitulado - um processo

ritualístico que não possui valor intrínseco, mas que confere a sensação de

valoração crescente, de capacitação em andamento, de resultado obtido e

avanço efetuado. Em outras palavras, é um processo que permite a expressão

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49

da intenção de educar, prevista na teoria social escolar, mas que efetivamente

não se traduz na prática e não possui correlação direta com o aprendizado

verdadeiro.

De acordo com Foucault, o processo seriado, que para Reimer

apresenta-se na forma de um ritual, gerando a ilusão do progresso, deve

decompor o tempo bem como o espaço em relação à execução de

determinadas atividades, a fim de capitalizar o tempo dos indivíduos ao inverter

em lucro ou em utilidade sempre aumentadas o movimento temporal

(FOUCAULT, 1977).

Disso surge o ensinamento divisório, estratificado, estruturado em

classes (séries) que se sucedem e alimentam o avanço progressivo dos

indivíduos na esteira. Pois, segundo Foucault, na capitalização do tempo,

procedendo da organização seriada, é errado mostrar a um soldado, bem como

a um aluno, todos os exercícios ao mesmo tempo, visto ser ineficaz; deve-se,

ao invés, decompor o tempo em sequências, separadas e ajustadas, de modo

a estabelecer um desenvolvimento contínuo mas segmentado. Além disso, é

imperativo que o ensino parta do elementar, dos componentes de base para o

comportamento útil, e que estes componentes se combinem numa

complexidade crescente, efetuando um treinamento geral que se desdobra

sucessivamente em direção ao estabelecimento da docilidade. E, para marcar

a finalização destes segmentos, é efetuada a prova - ou o exame -, que, além

de sua dimensão ritualística, atende a três funções: indicar se o indivíduo

atingiu o nível regulamentado, garantir que sua aprendizagem está em

conformidade com a dos outros, e diferenciar as capacidades de cada

indivíduo. Por fim, de acordo com Foucault, hão de se estabelecer séries de

séries, prescrevendo a cada indivíduo, de acordo com seu nível, os exercícios

que lhe convém; e, dentro destes exercícios, outras séries são comportadas,

impondo exercícios mais específicos e formando ramificações e subdivisões,

“de maneira que cada indivíduo se encontra preso numa série temporal, que

define especificamente seu nível ou sua categoria” (FOUCAULT, 1977, p. 144).

Ainda sobre a procedência seriada, Foucault afirma:

Esse é o tempo disciplinar que se impõe pouco a pouco à prática

pedagógica - especializando o tempo de formação e destacando-o do

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50

tempo adulto, do tempo do ofício adquirido; organizando diversos

estágios separados uns dos outros por provas graduadas;

determinando programas, que devem desenrolar-se cada um durante

uma determinada fase, e que comportam exercícios de dificuldade

crescente; qualificando os indivíduos de acordo com a maneira como

percorrem essas séries [...] Forma-se toda uma pedagogia analítica,

muito minuciosa (decompõe até aos mais simples elementos a matéria

de ensino, hierarquiza no maior número possível de graus cada fase do

progresso) [...] (FOUCAULT, 1977, p. 144).

O processo seriado, com todas as suas divisões e subdivisões, é

uma forma de organização que da própria disciplina nasce. A necessidade de

tornar os corpos dóceis e úteis, cada vez mais aptos à dominação, demanda

uma arrumação nesse modelo; arrumação que se inscreve no espaço e no

tempo, e que se beneficia do caráter contínuo deste último para ritualizar o

processo e transformá-lo em progressão segmentada, fabricando a ilusão de

que se está indo para algum lugar, de que a avaliação (através de provas e

exames) está de fato qualificando o quão merecedor cada indivíduo é de subir

mais um degrau na escada, avançar mais uma etapa na série, e carimbar seu

ganho em termos de progresso.

A repartição em grupos, devidamente definidos pelo lugar que

ocupam na série (um lugar espacial bem como temporal), são categorias que

preponderam sobre os indivíduos e os forçam a se definir segundo a definição

de seus próprios grupos. Assim, e em consonância com a teoria de

socialização de grupos de Harris (2009), a disciplina nada mais intentaria do

que unificar os indivíduos, a fim de que o aprendizado se torne mais exitoso na

medida em que a maior parte dos indivíduos se prestem aos minuciosos

processos disciplinares com cada vez mais afinco. Neste sentido, a disciplina,

antes entendida como fim de si mesma (a manipulação de corpos para

desenvolver corpos cada vez mais manipuláveis), pode ser, ao contrário,

entendida como um firmamento necessário para que a força coletiva

(sobrepondo-se à vontade individual, por definição dissidente e desobediente,

ou seja, indisciplinada) produza resultados exemplares, ainda que estes

mesmos resultados sejam medidos segundo os mesmos critérios e parâmetros

utilizados para avaliar a admissão dos indivíduos nas séries, o que não deixa

de gerar suspeitas quanto à objetividade e à pureza destas avaliações e o que

elas verdadeiramente demonstram.

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51

Assim, afigura-se uma disciplina útil que produz efeito para além

dela mesma. O aspecto ritualístico da submissão disciplinar, como afirmado por

Reimer, é capaz de gerar a impressão dissimulada de que a disciplina está

diretamente relacionada a uma educação mais eficaz, estabelecendo uma

ponte entre a teoria social escolar e sua prática. Mas, de fato, ainda que como

efeito indireto, a disciplina dá as condições para que resultados homogêneos e

bem-sucedidos sejam obtidos: é o caso da classe da Srta. A, discutida por

Harris (2009). Não há como saber o quão rígida era a imposição disciplinar

neste caso em questão, mas é certo que um dos êxitos da disciplina é

justamente a uniformidade coordenada por seus métodos. Como aponta

Foucault, a microfísica do poder que se inaugura no interior dos procedimentos

disciplinares, permitindo a dominação do que é mais diminuto na composição

da prática da disciplina, extrai poder dos dominados, transformando-os em

corpos dóceis, e acumula poder nas mãos dos dominantes - que se organizam

hierarquicamente, sendo o professor apenas mais um dominado na escala

global da estrutura escolar.

O benefício de uma coletividade bem assentada, em total

detrimento da individualidade de seus membros, é a da formação de um grupo

resoluto, menos suscetível a diferenciações internas e possíveis fragmentações

em subgrupos, mais homogêneo e, consequentemente, mais fácil de ser

manipulado, mais coeso em sua formação, mais uno em resultados. De fato,

um exército de homens, treinados sob princípios altamente disciplinares,

parece-nos o exemplo mais brilhante de união de grupo, batalhando em

harmonia, com precisa articulação interna e em busca de um resultado em

comum nitidamente delineado. O problema insolúvel é que, de acordo com a

teoria de Harris (2009), grupos necessariamente criarão cisões uma vez que

houver dentro deles categorias sociais díspares - e, como causa desta exata

disparidade em categorias sociais, acha-se a frouxidão disciplinar, a

possibilidade de dispersão dos indivíduos, de livre-associação a novos grupos.

Assim, a individualidade do aluno será sempre desrespeitada, quando a

necessidade for a de se produzir resultados coletivos, a partir de um

conhecimento unificado e de um grau seriado e progressivo que os alunos

devem atingir, e que só pode ser condicionado através de procedimentos

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disciplinares, da ritualística que dociliza tendências individuais e coordena um

elemento em função do outro, um indivíduo em função de todos e todos em

função de um, gerando uma harmonia produtora.

Dessa forma, faz-se necessária uma alternativa para a educação.

Uma que leve em conta as inevitabilidades da instrução em grupo ao mesmo

tempo em que procure estimar o aluno em sua individualidade e dê a ele a

liberdade de perseguir seus interesses próprios, superando, de uma vez por

todas, o caráter disciplinar, baseado na dominação e na exploração do

indivíduo, que a instituição escola carrega desde tempos antigos, e que está

inteiramente a serviço da sociedade como ela é. Para isso, é necessário

adentrar finalmente no paradigma anarquista, visto que este contém as bases e

os princípios para pensarmos não só num ideal de educação (reflexo de um

ideal de sociedade) que abarque todos os desejos de mudança, mas também

em alternativas práticas para que as transformações necessárias sejam

realizadas.

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53

4 UMA NOVA DEFINIÇÃO DE ESCOLA

Pensar numa nova definição de escola é pensar numa nova ação-

escola. Após realizarmos uma crítica à escola como instituição e aos métodos

utilizados por essa instituição para o controle da massa de estudantes, a fim de

inseri-la ao modelo da sociedade capitalista e autoritária, é momento de

tomarmos conta da principal alternativa anarquista para uma administração

escolar - a autogestão -, e, em seguida, propor expedientes práticos que nos

possibilitarão, de fato, a criar uma nova definição de escola.

As condições populacionais e sistêmicas de nossa sociedade não

nos propiciam a pensar a educação numa configuração de mestre-pupilo,

configuração esta que tem todas as características de uma educação exitosa

em termos de desempenho individual. No entanto, não pretendemos, aqui,

sequer propor uma educação que eleve o desempenho individual de seus

estudantes, uma vez que a concepção de desempenho é abstrata a priori,

dependendo dos critérios e dos métodos usados para medir esse próprio

desempenho.

E, como vimos, a educação só se transforma em grandeza

mensurada pela necessidade de se avaliar e de promover indivíduos na escala

progressiva que é da natureza institucional escolar. Negamos tudo isso de

maneira categórica. Pois, assumindo uma postura autogestionária para

pensarmos em uma nova definição de escola, e sem dúvida partindo dela,

devemos pensar a escola como ambiente horizontal, em que se fomente

cooperação ao invés de competição; em solidariedade em vez de egoísmo,

como é proposto no paradigma anarquista.

É preciso, no entanto, considerar muito atentamente o aspecto

social da escola. Uma vez descartada, por razões que não convêm mais

repetir, a configuração mestre-pupilo, precisamos continuar pensando, sim, na

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escola em seu formato de instrução em grupo. Grupos são inevitáveis, e

mesmo numa suposta cultura em que o autodidatismo fosse um valor

incentivado, precisaríamos, ainda, de guias, orientações, métodos e referências

de estudo que, sem o preparo e a ajuda, ainda que indiretos, de outros

indivíduos, não possibilitaria qualquer aprendizado dito “autodidata”. O

conhecimento, seja ele qual for, não brota do nada absoluto, mas do contato do

indivíduo com coisas e outros indivíduos, em contextos espaciais e temporais.

Assim, temos de admitir a aprendizagem em grupo como

configuração inconteste de uma nova definição de escola. Por razões

evolucionistas, a formação de grupos é um fator irredutível das relações

humanas, e o paradigma anarquista leva em conta essas relações coletivas

como base para definir conceitos de solidariedade, liberdade e autogestão.

Por outro lado, compreendendo melhor as particularidades do

fenômeno grupo e seus processos, é razoável - ainda que jamais justificável no

paradigma que defendemos - a prática disciplinar de nossa sociedade. Na

socialização de grupos, membros de uma mesma categoria social tendem a se

assimilar mais com membros da mesma categoria social, à medida que se

contrastam dos membros de outras categorias sociais.

Na sala de aula, estes processos de assimilação e contraste são

o que fundamentam a necessidade de uma disciplina, que não é apenas o

reflexo da autoridade, da hierarquia, da estrutura estratificada, mas o aparato

que assimila estes elementos e os fazem funcionar harmoniosa e

produtivamente, dominando e explorando os indivíduos humanos que,

deixados livres num recinto, agrupar-se-iam entre si de maneira dispersa e

conflitiva, gerando mais atritos entre eles mesmos do que entre eles e a

instituição que ambiciona dominá-los; mas, ao mesmo tempo, permitindo a eles

a possibilidade de poder para confrontarem essa mesma instituição se se

organizassem adequadamente.

Inicialmente, parece-nos difícil propor uma definição de escola,

quanto menos uma ação-escola, que seja, ao mesmo tempo, autogestionária

(como veremos em detalhes), destacando o valor da coletividade, e

individualista, no sentido de poder satisfazer às necessidades individuais de

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cada aluno e permitir que sejam livres para estudar aquilo que lhes apetecem.

Da mesma forma, torna-se nebuloso visualizarmos um cenário em que um

grupo possa ser instruído e orientado sem o uso da disciplina e, ainda assim,

não sofrer contingências de estudantes que simplesmente não estarão

dispostos ou não se sentirão beneficiados pela proposta de estudo do

programa.

Mas nem tudo é perfeito, nem todas as teorias políticas e sociais,

nem todos os paradigmas ideológicos e conceitos filosóficos. Nada é capaz de

encerrar nossa sociedade num modelo de organização à prova de eventuais

vicissitudes e resultados indesejáveis. Contudo, este fato não é motivo para

recuarmos em nossa proposta, afinal, a educação como ela é hoje tampouco

se apresenta bem aos olhos dos cidadãos, e ainda que nem todos sejam

capazes de enxergar e questionar as bases dessa educação e o que há de

errado com ela, ela é, incontestavelmente, falha, imperfeita, injusta e desigual.

A proposta de uma nova definição de escola, bem como a de uma

nova ação-escola, poderá ser efetuada, portanto, de acordo com o sustentado

adiante.

4.1 A AUTOGESTÃO

No paradigma anarquista, investigam-se, portanto, as soluções

ideais e práticas, em busca de uma nova configuração do ensino, de uma nova

escola. Para isso, é indispensável uma a escola pensada como resistência,

resistência à sociedade tal como ela é. Não somos ingênuos ao ponto de

esperar que mudanças estruturais ocorreram de cima para baixo. A sociedade

capitalista, inerentemente desigual, reproduzir-se-á eternamente até a sua

autoaniquilação. Uma resistência preferencialmente anarquista, portanto mais

prática em métodos de subversão e coesa em discurso anticapitalista e

antitotalitarista, é, assim, agudamente pertinente aos propósitos de

reestruturação (não apenas reforma) escolástica.

Não somos ingênuos, igualmente, de pensar que uma sociedade

anarquista deva antes tomar forma para que os princípios anarquistas sejam

colocados em prática. Uma esperança nessa proporção é, realmente, uma

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mera utopia, e uma razão para que não façamos nada. Contudo, respeitadas

as devidas proporções na constituição do sujeito, do tempo e do espaço, face

ao paradigma anarquista, a ação é urgente, e embora o desenho de um plano

seja complexo, ações experimentais e imediatas já podem ser elaboradas e

praticadas de dentro do sistema, tendo, no entanto, o cuidado necessário e o

pertinaz compromisso de resistir aos mecanismos do sistema, inteligentes e

impiedosos na assimilação e no abatimento de qualquer insurreição que

ameace sua ordem. A presente proposta sugere um sistema misto que, passo

a passo, vá experimentando os processos e os resultados de novas formas de

organização escolar e, posteriormente, social.

Dessa forma, o início de uma mudança deve se dar de forma

pragmática, localizada e no interior do sistema, talvez sem o aparente caráter

de uma revolução. Assim, revela-se pertinente a ideia da autogestão, um dos

pilares anarquistas mais básicos e fundamentais para a instituição de uma

realidade justa, igualitária e livre.

4.1.1 O princípio da autogestão

A proposta anarquista, como foi vista, não procura apenas a

extinção do Estado, como também a de qualquer estrutura ou ação política

baseadas nas relações de poder e consequente dominação (GALLO, 1995).

Assim, o anarquismo também se coloca contra as teorias libertárias

capitalistas, que embora possam igualmente advogar o extermínio do Estado,

continuam se organizando através do livre-mercado e de suas inevitáveis

estratificações econômicas e sociais, gerando exploração e dominação, isto é,

relações de poder.

Mas se engana quem pensa que o anarquismo, ao querer acabar

com o Estado, também quer acabar com a política. Os anarquistas negam, sim,

a permanência da política clássica, baseada no poder e na dominação, mas

clama por uma nova política, fundada em outras bases. No entanto, se

tomarmos a política como a construção de uma hegemonia (construção da

massa), certamente, segundo Gallo (1995), são ingênuas as propostas

libertárias, uma vez que a hegemonia se constrói justamente através das

medidas de força e das relações de poder. Numa leitura segundo a análise de

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Foucault (1977), então, a hegemonia se construiria através da imposição da

disciplina, uniformizando os corpos por meio de procedimentos de docilização e

utilização.

Contudo, a política fundada em outras bases que pretende o

paradigma anarquista nada mais é, segundo Gallo (1995, p. 100), que “a

política como relacionamento social entre os indivíduos no sentido da

construção e da manutenção de uma comunidade solidária”. De fato, uma outra

política, que busca estabelecer um acordo horizontal entre os indivíduos, ao

invés de uma imposição vertical, vinda de cima para baixo e intentando uma

construção hegemônica através de processos exploradores e disciplinadores.

Esta nova política, baseada na igualdade e na solidariedade e não

na injustiça e na exploração, é essencial à proposta anarquista, e faz surgir

aquela que é, na visão libertária, a resposta para o problema da organização

social uma vez que o Estado (o mandante todo-poderoso) deixa de existir: a

autogestão. De acordo com Gallo (1995), e a respeito das ideias do anarquista

francês Pierre-Joseph Proudhon, o princípio da autogestão se constitui no

plano microssocial, enquanto que, no nível macrossocial, o que se constitui é o

princípio federativo:

A autogestão e o federalismo propõem-se justamente a

organizar socialmente uma comunidade, sendo a política uma

decorrência da estruturação social e não o contrário: o

processo acontece de baixo para cima (GALLO, 1995, p. 102).

Assim, o federalismo nada mais é do que a associação de

instâncias sociais autogeridas; um pacto concreto e firmado num contexto de

democracia direta, participativa, que procura unir desde uma associação de

bairro até associações de municípios e unidades maiores (todas autogeridas),

de modo a se aglutinarem em círculos concêntricos cada vez mais

abrangentes, estruturando o poder político (as relações sociais) não de

maneira centralizada, no governo de um país, mas de maneira diluída entre os

indivíduos que o constitui, a fim de que este poder diminua de intensidade

quanto mais abrangente for a federação de associações (GALLO, 1995).

No que tange às relações econômicas, imprescindíveis para a

concepção de uma nova organização política e social, o paradigma anarquista

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fornece, como já citado, o mutualismo, que é, segundo Proudhon e como

afirmado por Gallo (1995), a aplicação da autogestão no âmbito da economia,

tanto no aspecto de produção quanto de distribuição, através da ampla

participação comunitária. Além do mais, Gallo (1995) afirma que, de acordo

com Proudhon, é a própria estrutura econômica vigente, até mais do que a

organização social, a principal responsável por perpetrar a exploração dos

indivíduos, de modo que qualquer organização sustentada por princípios de

autogestão tenha de, necessariamente, resistir às implicações do sistema

econômico circundante, a fim de livrar os indivíduos da exploração capitalista.

A respeito da organização econômica e social autogerida, Gallo ainda

acrescenta:

[...] A autogestão com os indivíduos tomando às próprias mãos

a administração de seus negócios, seja a fábrica, seja a escola

ou a associação de bairro, vem opor-se à ferrenha

hierarquização da sociedade capitalista, que objetiva a

submissão do indivíduo aos poderes centralizadores no Estado

(GALLO, 1995, p. 108).

De acordo com Gallo, o próprio aparelho reprodutor de um sistema

econômico-social de produção cuida para que as relações determinantes no

nível macrossocial sejam também reproduzidas no nível microssocial. Em

outras palavras, perpetra-se a reprodução da produção, de modo que a escala

micro reflita a escala macro e vice-versa. Assim, nas escolas, um campo

microssocial, realiza-se aquilo que reflete o modo como o Estado gere a

sociedade, e que é o preciso contrário da autogestão, a heterogestão,

reproduzindo o mesmo modelo de gerência presente nos campos

macrossociais. Ainda sobre a reprodução da heterogestão, afirma Gallo (1995,

p. 152): “Esta heterogestão da sociedade é reproduzida, então, na

singularidade básica de cada indivíduo enquanto heteronomia inconsciente que

sustenta seu pensamento e sua ação”.

Com base no pensamento de autonomia política do filósofo

Cornelius Castoriadis, Gallo estende o entendimento sobre a heterogestão

sustentando que toda sociedade instituída exerce o que se chama de

infrapoder, uma espécie de poder que se instaura na pré-formação do

indivíduo, de tal modo que, por si mesmo, ele faça o que gostariam que fizesse,

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sem qualquer necessidade de dominação ou poder explícito para manipulá-lo,

de modo que, para o sujeito submetido a essa formação, haja a aparência da

mais completa espontaneidade, que, na realidade, manifesta a mais total

heteronomia (GALLO, 1995). Ora, parece óbvio que a instituição microssocial

que dá mais condições para a instauração do infrapoder é a escola, que cuida,

justamente, da formação ou pré-formação do indivíduo desde sua idade tenra.

É possível, a partir da correlação com a definição de infrapoder -

ainda que o mesmo, como sustentado por Gallo, dispense métodos de

dominação e poder explícito -, assentarmos na disciplina, como entendida por

Foucault (1977), já que a imposição de atitudes e postura decompostas nunca

se dá por meio da força ou da ameaça, mas de um costume estabelecido sobre

as raízes de uma ilusão, a ilusão da educação, do aprendizado, do progresso,

como enfatiza Reimer (1971) ao falar dos rituais. Assim, e levando em conta a

natureza reprodutora do modelo de produção da economia vigente, o indivíduo

participante de uma realidade microssocial gerida de cima para baixo, em

camadas hierárquicas, isto é, heterogestionária, cultiva uma atitude que será

também exigida dele assim que sair da escola e adentrar o mercado de

trabalho, a fábrica, a empresa, a indústria, que da mesma maneira reproduzem

aquilo que, realizado na escala macrossocial, define o modo de produção do

sistema capitalista. Trocando em miúdos, o indivíduo é educado na disciplina,

numa estrutura heterogestionária, para aprender a disciplina e reproduzir

facilmente o comportamento disciplinado requerido por todo o regime.

Uma alternativa de resistência a este regime político e social

calcado na heterogestão não só se faz necessária e imperativa para uma

iniciativa de mudança, como é também normalmente prevista na perspectiva

histórica das relações sociais humanas, como bem explicita Gallo:

Enquanto vivemos historicamente uma sociedade [...] baseada

na heterogestão, podemos perceber momentos históricos em

que o projeto de construção da autonomia traduz-se

socialmente em experiências de organização da produção em

que procura-se um gerenciamento não separado da instância

mesmo do trabalho, mas realizado pelos próprios produtores; a

essas experiências convencionou-se chamar, principalmente a

partir da segunda metade do nosso século, de autogestão

(GALLO, 1995, p. 153).

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60

O caráter imediato da resistência autogestionária pode ser

depreendido da fala do anarquista russo Mikhail Bakunin, asseverando que a

autogestão não pode esperar pelo desaparecimento do Estado para ser posta

em prática, e que, ao invés, ela própria deve ser um instrumento na luta contra

esse Estado. Piotr Kropotkin, por sua vez, procurou fundamentar

cientificamente a organização autogestionária ao conduzir amplos estudos de

campo nas áreas de geografia, geologia, biologia e etnologia, demonstrando

que, na natureza, a solidariedade ou ajuda mútua (discutida anteriormente)

entre os indivíduos de uma espécie é fator fundamental na luta pela

sobrevivência da espécie, tendo, consequentemente, um importante lugar no

processo de evolução (GALLO, 1995). Como vimos, na teoriza de socialização

de grupos de Harris (2009), é propensão natural humana, por razões

evolutivas, a adequação do indivíduo ao grupo em que se insere, uma vez que

a proteção comunal, o um-por-todos-todos-por-um, é vantajosa para a

sobrevivência do grupo, para a continuidade da espécie.

Assim, a solidariedade parece ter tanto lugar no processo evolutivo

quanto a individualidade, sobre a qual se assenta a heterogestão capitalista,

sendo, pois, apenas uma questão de eleição do que é mais pertinente para

determinado modo de organização, se hetero ou autogestionário, e de

comprometimento com o modo de se relacionar política e socialmente. Mas, de

fato, e de acordo com a causa anarquista, só através da solidariedade da ação

comum do grupo os resultados podem ser melhores do que através da

exploração de poucos do trabalho de muitos (GALLO, 1995).

4.1.2 Autogestão pedagógica

De acordo com Gallo (1995), foi na escola onde se desenvolveram

as mais abrangentes - e com resultados muitas vezes espantosos -

experiências de autogestão. Estabelecendo os contornos da aplicação

autogestionária na pedagogia, Gallo afirma que:

A aplicação do princípio autogestionário à pedagogia envolve

dois níveis específicos do processo de ensino-aprendizagem:

primeiro, a auto-organização dos estudos por parte do grupo,

que envolve o conjunto dos alunos mais o(s) professo(res),

num nível primário e toda a comunidade escolar - serventes,

secretários, diretores, etc.-, num nível secundário; além da

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formalização dos estudos, a autogestão pedagógica envolve

um segundo nível de ação, mais geral e menos explícito, que é

o da aprendizagem sócio-política que se realiza

concomitantemente com o ensino formal propriamente dito

(GALLO, 1995, p. 167).

Sustentando o pensamento do sociólogo francês Georges

Lapassade, Gallo diz que, na autogestão, o professor renuncia sua autoridade

de transmissor de mensagens, interagindo com os alunos através dos meios de

ensino, deixando que eles escolham os programas e os métodos de

aprendizagem. Divide, ainda, a aplicação da autogestão à pedagogia em três

grandes tendências: a primeira, iniciada, segundo Lapassade, pelo pedagogo

soviético A. Makarenko, é denominada de autoritária, pois o professor, a

princípio, toma a iniciativa autoritária de propor ao grupo de alunos técnicas de

autogestão; a segunda, denominada de tendência Freinet, em nome do

pedagogo anarquista francês, tem como característica central a criação de

novos métodos e técnicas pedagógicas, sendo muito próxima à

individualização e à autoformação; a terceira tendência seria a libertária e

colocaria mesmo em prática a ideia anarquista em que os professores deixam

nas mãos dos alunos quaisquer orientações no sentido de instituir um grupo de

aprendizagem, limitando-se a ser consultores deste grupo (GALLO, 1995).

Como se pode constatar, as tendências enumeradas por

Lapassade e reproduzidas por Gallo têm como ponto em comum o

distanciamento, no sentido autoritário, entre professor e alunos, ainda que, no

princípio, a iniciativa seja preferencialmente autoritária da parte do professor,

mas visando, sem dúvida alguma, à diluição dessa autoridade entre o próprio

grupo de alunos. Na perspectiva de Bakunin, discute Gallo que não há

qualquer impedimento para a relação do professor com os alunos, já que não

se deseja uma libertação do aluno da responsabilidade do professor como se

isso fosse levar, necessariamente, o aluno a construir seu próprio

conhecimento de maneira eficaz; Bakunin atenta-se, entretanto, para a meta a

ser atingida, que é a da progressiva crítica da autoridade em nome da

liberdade constituída pelo grupo, de modo que as intervenções do professor se

ajustem no sentido de alcançar essa meta (GALLO, 1995).

Page 62: TCC FINALIZADO

62

De fato, o papel do professor, nesta concepção anarquista, é

diametralmente oposta ao papel que o professor desempenha e vem

desempenhando desde que a escola foi instituída. Como figura central da

heterogestão, o professor, segundo a crítica à escolarização realizada por

Reimer, desempenha três funções em uma - a de árbitro, juiz e advogado:

Como árbitro, o professor rege o que é certo e o que é errado,

distribui notas e decide quem será promovido. Como juiz, o

professor induz culpa naqueles que trapaceiam, negligenciam

suas tarefas escolares, ou que de outro modo falham em

atender as expectativas das normas morais da escola. Como

advogado, o professor ouve desculpas pelos fracassos para

atender os padrões tanto acadêmicos quanto morais e

aconselha o estudante a respeito das escolhas que deve fazer

dentro e fora da escola. Essa descrição só não soa estranha

porque os estudantes são consideradas pessoas sem direitos

civis. Imagine combinar o papel do policial, do juiz e do

advogado de defesa em um só [...]. Num sentido puramente

formal, o estudante nessa situação está desamparado,

enquanto o professor é onipotente (REIMER, 19771, p. 26).

É em direção ao desmantelamento dessa autoridade onipotente do

professor, centralizadora das funções de julgar, sentenciar e punir e

instrumento do infrapoder, que uma concepção pedagógica autogestionária

deve rumar. Com efeito, Bakunin acreditava nisso, tomando a educação por um

processo de crescimento, de desenvolvimento, que deve iniciar-se pela

autoridade (a iniciativa autoritária do professor) e paulatinamente negar esse

ponto de partida à medida em que se aproximar da meta de chegada; deve-se,

portanto, partir da autoridade para que seja possível chegar até a liberdade

(GALLO, 1995).

A importância dessa autoridade inicial, que aparentemente deveria

ser, por definição, rejeitada num paradigma anarquista, não é difícil de ser

compreendida, uma vez que é diferente, aqui, o professor que parte da

autoridade anexa à sua posição para se livrar dela junto ao grupo de

estudantes - isto é, um professor claramente a serviço da resistência e da

autogestão -, do professor que retém para si as três funções observadas por

Reimer e, de modo inflexível e permanente, estabelece uma relação autoritária

e disciplinadora com seus alunos - este, sim, um professor à serviço do sistema

capitalista vigente e heterogestionário. Assim, é de se convir que um aluno

Page 63: TCC FINALIZADO

63

simplesmente liberto da autoridade do professor, da mesma maneira ficaria à

mercê do sistema vigente, reproduzido em qualquer outra instância

microssocial disciplinadora e autoritária, baseada na exploração, configurando-

se, assim, esse próprio ato “libertário” como irresponsável. Compreende-se,

portanto, a importância de um espaço autogestionário necessariamente de

resistência, e do papel inicialmente dotado de poder de orientadores

(professores) que ajudarão os alunos e serão, no processo, ajudados pelos

mesmos em busca da construção de uma educação autogestionária, passo

fundamental para uma sociedade autogestionária e, quiçá, organizada num

modelo federativo. Na concepção de Bakunin, dita nas palavras de Gallo,

arremata-se o argumento sobre a concepção de educação antiautoritária que

da seguinte maneira defende a autoridade inicial:

Uma educação antiautoritária não significa abandonar as

crianças a sua própria sorte, esperando que supostas leis

naturais ajam no sentido de garantir-lhes um desenvolvimento

harmonioso rumo à liberdade, muito ao contrário, uma

educação antiautoritária implica numa sadia diretividade do

processo, partindo da autoridade mesma para construir

coletivamente uma liberdade que não é nenhum dom divino

nem da natureza, mas um bem conquistado única e

exclusivamente pela ação humana. Assim como a não-

diretividade implicaria na inocente submissão das crianças a

desejos externos mais fortes que o delas, gerando na verdade

indivíduos politicamente manipuláveis pela mídia, a pedagogia

antiautoritária de Bakunin busca fortalecer o desejo, a

consciência e a autonomia dos indivíduos, de modo que sua

ação social futura seja a confirmação de uma liberdade

conquistada e conscientemente assumida (GALLO, 1995, p.

173).

É de se deter, contudo, à distinção que Bakunin faz da autoridade

como princípio de partida para a educação do indivíduo criança e da autoridade

que é lançada sobre indivíduos adultos, que já passaram pela fase inicial de

formação e se encontram desenvolvidos racionalmente; neste caso, o uso da

autoridade deixa de ser natural para ser manipulação política (GALLO, 1995).

Mas, ainda no caso das crianças e dos jovens, de acordo com Gallo, a escola

deve engajar-se num processo de luta pela transformação da sociedade, que é

corrupta e injusta, pois sozinha e isolada, a escola estaria condenada ao

fracasso de um sonho passageiro.

Page 64: TCC FINALIZADO

64

Integralmente, por fim, segundo a concepção de Bakunin, a

educação anarquista abarcaria três níveis específicos, que são: 1) a educação

intelectual, de instrução científica e baseada na apreensão do saber científico

bem como na compreensão de seu método, de modo que todo indivíduo possa

ser um produtor de ciência; 2) a educação física, por sua vez dividida em três

aspectos: o físico propriamente dito, desenvolvido através de exercícios e

jogos que visem à solidariedade; o motor, baseado no desenvolvimento

sensório-motor da criança através da manipulação dos mais diversos tipos de

objetos e instrumentos; e o profissional, em que o indivíduo passa pelo

aprendizado de diversas atividades industriais; e 3) a educação moral,

consistindo numa crítica do modo de vida burguês e na proposta de uma ação

social diferenciada, não através de discursos, mas da vivência mesmo de uma

nova estrutura de coletividade participativa, situando-se, de vez, a autogestão

pedagógica, e procurando estabelecer, contra a “democracia” eletiva do

capitalismo, uma democracia direta, participativa, ao desenvolver atividades

com o grupo de alunos que fortaleçam sua capacidade de crítica e autonomia,

para sucessivamente ir aumentando sua participação nas reuniões

comunitárias (GALLO, 1995).

4.2 OS LIMITES DE UMA EDUCAÇÃO ANARQUISTA

Numa proposta de educação anarquista, como discutida por Gallo

(1995) na explanação que faz sobre a escola autogestionária, inevitavelmente

deve-se direcionar alguns valores em oposição a outros valores (o valor de

uma sociedade anarquista em oposição à sociedade capitalista), isto é, deve-

se doutrinar. A autogestão exige resistência, resistência ao sistema, subversão

de uma ordem. Assim, num paradigma anarquista, a educação jamais poderia

ser neutra, porque seria também vulnerável. Um problema se afigura na

medida em que, por um momento, adotamos uma postura niilista e deixamos

de lado os nossos valores, para concluirmos que ninguém tem o direito de

eleger os seus valores como superiores aos dos outros. O questionamento

filosófico, nesse estágio de reflexão, não permite estabelecer um juízo de valor

intrínseco ao que elegemos, e qualquer eleição de valores, seja ela anarquista,

socialista ou capitalista, terá inicialmente a mesma igualdade valorativa.

Page 65: TCC FINALIZADO

65

Gallo (1995) trata dessa questão ao trazer à tona a suposição de

uma educação neutra, explicando a distinção que o militante anarquista

Ricardo Mella faz entre explicar (a maneira neutra de transmitir conteúdos) e

ensinar (a maneira doutrinária de transmissão):

Pode-se, por exemplo, explicar o sistema geocêntrico em

geografia, demonstrando que ele não é correto, e ensinar o

sistema heliocêntrico, atualmente aceito. Isto é, a explicação

implicaria na compreensão de um determinado assunto, mas

sem implicar necessariamente numa concordância com ele; já

o ensino pressupõe que determinado assunto é explicado como

sendo necessariamente verdadeiro, exigindo, pois, a

concordância com ele. Em outras palavras, o ensino implica em

compreensão e aceitação, enquanto que a explicação pede

apenas a compreensão. Deste ponto de vista, Mella diz que

pode-se explicar dogmas religiosos, mas não se deve ensiná-

los. Do mesmo modo, uma coisa é explicar o que seja

democracia, socialismo ou anarquia, e outra muito diferente é

ensiná-las como verdades absolutas, apenas porque temos a

convicção de que realmente o sejam (GALLO, 1995, p. 204).

Assim, Gallo (1995) explica que, diante desta perspectiva

apresentada por Mella, a proposta de educação libertária, que pretende

suscitar nos jovens o desejo de saber por si mesmos e formar suas próprias

ideias, deveria, portanto, abdicar-se totalmente do caráter doutrinário, mesmo

que o preço a pagar seja que os jovens educados jamais concordem com suas

ideias.

No entanto, o autor rapidamente se opõe a essa concepção que,

embora lógica em sua argumentação, é impensável por razões consequenciais.

Com efeito, ainda que seja, até certo ponto, possível praticar uma educação

neutra (que explique e não eduque), esta prática estaria esvaziada de

responsabilidade social, assim que os efeitos da mesma pudessem ser

averiguados, pois defende Gallo (1995) que, deixada de ser tratada a questão

política na escola, fatalmente a criança e o jovem tomarão contato com ela na

igreja, no clube, em casa, na rua e, com mais intensidade ainda, através dos

meios de comunicação que, explícita ou implicitamente, encarregam-se disso.

Abdicando da formação política, o jovem torna-se presa fácil das

demais instituições sociais, normalmente em mãos de classes dominantes.

Portanto, uma escola na concepção libertária de Mella, segundo Gallo (1995),

Page 66: TCC FINALIZADO

66

seria uma escola necessariamente reacionária e conservadora, ou seja, uma

escola que elegeria, ainda que não reconhecendo, o valor capitalista como o

correto. Portanto, uma vez averiguadas as consequências de uma educação de

feição neutra, a neutralidade mesma da educação seria colocada em xeque.

Não há educação neutra, não há entremeio entre um valor e outro

valor. A problemática filosófica é insolúvel no que aspira a uma resposta ideal,

e a própria ação de abdicarmos de uma escolha nos implica uma escolha

realizada. Assim, ou se escolhe uma educação baseada na igualdade, ou se

escolhe uma educação baseada na exploração; ou se faz uma educação

anarquista resistente ao sistema, ou não se faz uma educação anarquista.

Essa insolubilidade filosófica é assumida por Gallo (1995) como

limite da educação anarquista. Mas assim como esse limite é o limite da

educação anarquista, ele também é, assim como igualamos o valor primordial

de cada escolha, o limite de qualquer educação que se defina como tal. Dessa

forma, para uma nova definição de escola, é preciso aceitar que,

necessariamente, a educação tem limites, e que ela deve, dessa forma, ser

necessariamente doutrinária.

Outro limite da educação, por fim, é o da dissidência. Na

educação atual, a dissidência do sistema, caracterizada pela desobediência às

normas escolares ou pelo não cumprimento das atividades curriculares, é um

comportamento passivo de ser punido pelo aparato disciplinador em serviço.

Numa educação anarquista, em que não há aparado disciplinador, a punição

seria repudiada, e um dissidente da doutrina escolar deveria ser aceito como

um fato insolúvel e uma marca da falibilidade prevista a qualquer método de

educação, além de um fato natural que está de acordo com os direitos do

indivíduo de agir livremente e se rebelar contra aquilo que lhe está sendo

ensinado.

Também Reimer (1971) concorda com o fato de que nenhum

programa educacional pode garantir que todos aprenderão o que precisa ser

aprendido, e muito menos que, se aprendido, o indivíduo agirá de acordo com

esse aprendizado. A oportunidade para tal aprendizado, porém, deveria ser

mantida em aberto, segundo o autor, e não somente durante a juventude do

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67

indivíduo, mas também ao longo da vida de cada pessoa. Uma das maiores

complicações da educação, continua, é o costume universal de acharmos que

sabemos melhor do que os outros o que é do interesse deles. As escolas são

quase que totalmente concentradas na disputa de ensinar às pessoas o que

outras pessoas querem que elas saibam, afirma Reimer.

Sob essa visão, não é de se espantar a tamanha aceitação que a

disciplina e o currículo padronizado possuem nas instituições escolares.

Reimer (1971) ainda segue dizendo que aqueles que decidem o que deve ser

aprendido na escola, fingem agir no interesse dos aprendizes. Mas, como

sabemos, aqueles que decidem o que deve ser aprendido agem, na verdade,

no interesse das classes sociais dominantes, o que indica, mais uma vez, uma

ação indispensavelmente resistente na constituição de uma educação

anarquista.

4.3 A QUESTÃO DA EDUCAÇÃO INDIVIDUALISTA

Por individualista, pretendemos afastar a noção contida na

concepção de egoísmo associada às práticas capitalistas pela crítica

anarquista. Por individualista, pretendemos, ao invés, discutir uma noção de

que o indivíduo é estimado pelas qualidades particulares que naturalmente traz

de outros ambientes que não a escola ou que produz no ambiente escolar. Um

ensino massificado, como é pretendido desde a consolidação dos estados-

nações, conforme visto na história da escola, é um ensino que

necessariamente reduz a individualidade do estudante e força-o a se adequar a

uma coletividade.

Essa adequação, como explicitado por Foucault (1977), é

realizada através da disciplina, mediante seus variados e minuciosos

processos e mecanismos de docilidade. Sabemos também, por meio da teoria

de socialização de grupo desenvolvida por Harris (2009), que o ser humano

possui uma propensão natural a se identificar com grupos, assumindo a

identidade dos mesmos e se assimilando a outros membros de um mesmo

grupo mais do que verdadeiramente são semelhantes a eles. Com efeito,

aparenta-se a individualidade, na verdade, ser constituída pela soma das

personalidades sociais de um indivíduo e pelo que deixa filtrar de uma no

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68

contexto da outra - como bem observa Harris -, além do que cada indivíduo

carrega de genético.

Na prática, a individualidade do aluno pode ser verificada olhando

para as ações e reações do mesmo, no modo como se comporta na presença

de seus colegas, no modo como reage à exposição de determinado

conhecimento, no modo como age no exercício de determinado saber, e

naquilo que traz de espontâneo, de interesse próprio e aptidão natural para

aprender e executar. Observar essa individualidade num contexto de educação

em massa, de caráter disciplinador, é, muitas vezes, impraticável, visto exigir

do professor um olhar que transpasse justamente o que se espera que coloque

em prática no exercício de sua função. Além do mais, observar essa

individualidade quando o aluno está envolto de categorias sociais com as quais

ele irá necessariamente se adequar, fica ainda mais difícil.

Assim, distinguir os gostos e aptidões pessoais do aluno e

estimá-los adequadamente no exercício do ensino é um ideal que não parece

se verificar na prática, e que demandaria do professor um esforço

humanamente ineficaz. Gallo (2005), discutindo sobre os ideais pedagógicos

do educador Paul Robin, expõe o seguinte a respeito do perfil do educador na

consideração individual do aluno:

[...] O educador, se não é um déspota que imprime às crianças

o que ele bem entende, não importando se elas tenham ou não

condições de acompanhar, não é também um mero

observador, ou um joguete, um instrumento nas mãos de

déspotas em miniaturas que fazem o que querem. O educador,

consciente da liberdade das crianças, conhecedor que é dos

aspectos de seu desenvolvimento racional e psicológico por um

lado, sensório e motor por outro, deve ter o feeling de saber

adaptar às circunstâncias - condições de desenvolvimento das

crianças, seus desejos e os aspectos de sua vivência - a

aplicação dos instrumentos metodológicos de que dispõe para

possibilitar um desenvolvimento saudável e harmônico dessas

crianças. O ensino não é, de modo algum, não-diretivo, mas o

professor também não impõe, autoritária e arbitrariamente o

que bem entende (GALLO, 1995, p. 181).

Os ideais pedagógicos de Robin puderam ser testados na prática,

uma vez que o educador foi diretor do Orfanato Prévost, na França,

estabelecido no ano de 1861. E, de acordo com Gallo (1995), a respeito tanto

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69

de seus ideais quanto de sua experiência prática, registrada em literatura,

Robin pôde efetivamente realizar, se não uma autogestão pedagógica

precisamente, uma importante experiência de práticas libertárias na educação.

Ainda que não traga detalhes a respeito dessa estimação da individualidade de

seus alunos na prática, Gallo expõe que, de um modo geral, o balanço foi

positivo, já que, além deste ideal do feeling do professor sobre os desejos e os

aspectos da vivência do aluno, a pedagogia de Robin também pregava a

consciência sobre a coletividade.

Calcular o balanço ideal entre o individualismo e a coletividade é

deveras complicado. No paradigma anarquista, para além da crítica ao

individualismo capitalista, há o anarco-individualismo, que, como vimos, define-

se pela busca da autonomia pessoal e pela associação com outros indivíduos

com base em interesses comuns. Este simples teorema parece simplificar toda

a questão a ser calculada. De fato, se tomarmos a liberdade individual como

pedra angular da libertação proposta pelo anarquismo, ainda assim

chegaremos ao individualismo como fenômeno diretamente relacionado às

relações coletivas. Não podemos nos esquecer, a propósito, da definição de

liberdade para Bakunin: uma liberdade que necessariamente se define em

relação aos outros.

4.4 UMA EDUCAÇÃO EM VISTA DA SOCIALIZAÇÃO DE GRUPOS

Como demonstrado, a teoria de socialização de grupos de Harris

(2009) desvenda muitos segredos do comportamento humano social. Uma vez

que grupos são fenômenos inevitáveis, e são a precisa razão para que o

aparato disciplinador tenha sido instaurado, bem como a precisa razão que

explica o desempenho escolar, desde sempre, não produzir resultados

homogêneos, deparamo-nos com um problema localizado no entremeio de

duas condições: a condição de um grupo, como proposto por Harris, unificado

sob uma identidade em comum, a fim de se atingir um resultado pretendido e

igual para todos os alunos; e a condição de um grupo disperso, como temem

os propositores da disciplina, conforme Foucault (1977), em que alunos

fragmentam-se em grupos, de acordo com as categorias sociais mais salientes,

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70

perpetuando, assim, a condição privilegiada dos já privilegiados e a condição

desprivilegiada dos já desprivilegiados.

Em maior ou menor medida, as duas condições são condições da

escola atual. A disciplina, mais rigorosa antes do que é atualmente, afrouxa-se

o bastante para permitir que subgrupos, dentro de uma mesma sala de aula

(como visto, quanto maior for a classe, mais sensível ela é a subdividir-se),

surjam e condicionem aqueles menos favorecidos - pobres, negros, alunos com

algum tipo de déficit de aprendizado - a continuarem em suas condições

desfavorecidas, fiéis, por um fenômeno de assimilação natural, ao grupo com o

qual já se identificam desde antes de chegarem à escola. Os privilegiados, em

seus turnos, continuam gozando de seu privilégio, e procuram grupos com o

qual se assemelham. A disciplina, que deveria harmonizar e unificar todos os

corpos, tornando-os úteis na mesma medida, é também falha o bastante para

que nem todos trabalhem num processo em comum, com eficiência e utilidade

em comum.

É demonstrado por Harris (2009), no entanto, que salas menores

e homogêneas tendem a apresentar resultados melhores, ainda que, na teoria,

uma classe de alunos pobres continue a reproduzir aquilo que os alunos já

carregam com eles - provavelmente, a desvalorização do estudo, fruto de um

background cultural neles impresso e compartilhado entre seus pares.

Assim, e tendo em vista esse prospecto teórico, é razoável

levantarmos a questão de um estudo não individualista a rigor, mas

relativamente individualista, focado, ao invés, em categorias sociais específicas

e a partir de um ensino diretivo a princípio (a iniciativa da autoridade) que,

como primeiro passo fundamental, examine e proponha conteúdos e métodos,

baseados, é claro, num projeto autogestionário, de acordo com o que há de

mais pertinente, relevante e urgente nas necessidades de determinado grupo

de alunos.

Como esses grupos seriam formados e definidos, é uma questão

que pede outras considerações, que trataremos mais adiante. Por ora,

sabemos que, de fato, não seria inteligente nem precavido esperar que a

ordem natural dos fenômenos sociais se desenrole e que simplesmente

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71

pincemos grupos de alunos para um trabalho direto, uma ação pedagógica

prática no sentido de averiguar qual o conteúdo e a metodologia de ensino

mais bem adequados a eles.

Mas um primeiro caminho seria, muito provavelmente, e ao

contrário do conselho conformista de Harris (2009), eliminar qualquer distinção

artificial que se faça dentro do ambiente escolar. Assim, acabaríamos com as

classes e, em seguida, também com as séries, desestruturando radicalmente a

ilusão de progresso no aprendizado, como observada por Reimer (1971), e a

definição dos estudantes no tempo e no espaço, numa escala seriada, como

analisa Foucault (1977).

Com efeito, uma desestruturação de tal ordem geraria, imagina-

se, a verdadeira quebra da ocupação disciplinar de avaliar, classificar,

categorizar e manter o controle sobre quando e onde os alunos devem se

encaixar no tempo e no espaço. Assim, a dispersão de alunos em grupos seria

ainda mais fluída, acabando com as categorias artificiais de classe e série. Em

compensação, continuariam eles se agrupando conforme suas similitudes

naturais, as de sexo, etnia e background socioeconômico.

Conter os efeitos desses agrupamentos pode ser, de fato, um

beco sem saída. Mas assim como a disciplina que, em alguns casos, consegue

amortecê-los, também são passíveis de serem amortecidos uma vez que, no

ambiente escolar, a livre-associação por interesses individuais seja incentivada

a fim de que grupos de estudo e aprendizagem se formem em busca de um

objetivo em comum: aprender determinado assunto ou habilidade; discutir a

respeito de determinado assunto ou passatempo; articular determinado projeto

ou iniciativa; agir para determinado fim ou causa.

À frente dessas associações, professores - ou orientadores -

tomariam para si, de acordo com o princípio da educação antiautoritária como

proposta por Bakunin, a iniciativa da autoridade, conduzindo um ensino diretivo

e focado nas necessidades do grupo, que seriam, por extensão, as

necessidades individuais. O comportamento autogestionário seria incentivado e

ensinado pelo próprio professor, que, com o tempo, desvincular-se-ia da

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72

autoridade inicial até se tornar quase tão igual em poder decisório quanto os

alunos.

4.5 UMA NOVA CARA PARA A ESCOLA

De acordo com Reimer (1971), alternativas para a escola devem

ser mais econômicas do que as instituições escolares. Devem ser baratas o

suficiente para que todos possam compartilhá-la e mais efetivas para que

custos baratos não impliquem em menos educação. O monopólio, também,

deve ser evitado, declara o autor, da mesma forma como o sistema escolar não

deve ser substituído por outro e as alternativas devem ser plurais. Deveria

haver competição entre alternativas, mas não entre estudantes, e nem deveria

o sucesso de um estudante se dar à custa do fracasso de outro. Alternativas

para a escola não deveriam manipular o indivíduo, mas, ao contrário, preparar

indivíduos para gerir e recriar instituições, incluindo o governo.

A educação, continua Reimer (1971), não deveria ser separada

do trabalho e do resto da vida, mas integrada a eles. A educação não deveria

preparar os indivíduos para algo além ou ser um subproduto de algo mais.

Deveria, ao invés, ser uma atividade autojustificada destinada a ajudar o

homem a ganhar e manter controle sobre si mesmo, sua sociedade e seu

governo. Alternativas para a escola, acima de tudo, deveriam permitir a todos a

oportunidade de aprender o que precisam aprender, a fim de agirem

inteligentemente em favor de seus interesses.

Assim, pensar numa escola não institucionalmente, no sentido de

instituir uma ordem dominante, mas organizacionalmente, num sentido de

organização coletiva, funcional e harmoniosa, impõe-nos outro desafio, ainda

que tenhamos as diretrizes para superá-lo. Conforme Ward (2004), é possível

distinguir quatro princípios que moldariam uma suposta teoria anarquista de

organizações. Para o autor, as organizações deveriam ser 1) voluntárias; 2)

funcionais; 3) temporárias; e 4) pequenas. E afirma:

Elas deveriam ser voluntárias e funcionais por razões óbvias.

Não há sentido em advogar pela liberdade individual e pela

responsabilidade se nós estabelecermos organizações em que

a filiação seja obrigatória, ou que não possuam qualquer

propósito. Há uma tendência para que organizações continuem

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73

a existir após terem obsoletado suas funções. Elas deveriam

ser temporárias precisamente porque a permanência é um dos

fatores que dificultam as artérias de qualquer organização,

conferindo-a um investido interesse em sua própria

sobrevivência, ou em servir aos interesses de seus detentores

de cargos ao invés de desempenhar suas funções ostensivas.

Finalmente, elas deveriam ser pequenas porque em pequenas

organizações, cara-a-cara, as tendências burocráticas e

hierárquicas herdadas por todas as organizações têm menos

oportunidades de se desenvolverem (WARD, 2004, p. 31).

De fato, dentro de um paradigma anarquista, o primeiro item,

concernente à frequência voluntária, é ponto pacífico. No entanto, poderia se

levantar o argumento de que, uma vez livres da obrigação de frequentar a

escola, um grande número de jovens deixariam de frequentá-la e, por

conseguinte, tornar-se-iam presas do sistema, no contato constante com outras

instituições e manipulações político-ideológicas. Portanto, em consideração a

esse argumento, seria razoável admitir uma organização anarquista

compulsória, que obrigue, da mesma forma como a instituição escolar obriga

atualmente, a frequência de alunos em salas de aula.

Num ideal de sociedade anarquista, em que a escala

macrossocial já estaria organizada sob os preceitos autogestionários, a

obrigatoriedade escolar não seria uma necessidade, porquanto espera-se que

todos os indivíduos teriam a livre iniciativa de frequentar centros de

aprendizado, escolas ou não, e que independentemente da educação

direcionada, cultivariam um comportamento libertário sem o perigo de coação

ideológica, uma vez que instituições coercivas não mais seriam uma realidade.

Mas, mais uma vez, apanhamo-nos no entremeio de duas

condições, e diante delas propomos aqui uma não-sugestão, que não deixa de

ser, ainda assim, uma sugestão. Já que não estamos falando, ainda, de um

ideal de sociedade anarquista, que não entra nos méritos de uma ação urgente

principiada de dentro do sistema, precisamos considerar o que o sistema nos

oferece de recursos e condições justamente para criarmos um ponto de

resistência e articularmos uma oposição ao mesmo.

Assim, a não-sugestão sugestiva que propomos é a de não

deliberarmos se a obrigatoriedade é ou não necessária, mas aprendermos a

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74

utilizá-la como instrumento benéfico para os nossos fins. A obrigatoriedade,

como fato da escolarização institucionalizada de nossa sociedade, é uma

condição a ser revertida em nosso favor, de modo a nos aproveitemos dela

para gerar resistência e oposição. E que melhor forma de nos aproveitarmos do

comparecimento obrigatório de alunos às escolas se não a de instaurar os

eixos de resistência e oposição dentro das próprias escolas?!

É claro que pontos de resistência podem ser criados em centros

independentes, locais privados ou públicos, ou praticamente qualquer estrutura

à disposição para o início de um novo desenvolvimento educacional. Porém, é

inquestionável que os eixos seriam mais efetivos dentro das próprias escolas,

constituídos velada e obliquamente dentro da instituição, transversal ao

currículo da escola, e liderados por alunos bem como professores e demais

funcionários da escola, que devem ser, através de processos de

convencimento e ações práticas-ideológicas, incentivados a resistirem e

repensarem a prática pedagógica da estrutura curricular e toda a estrutura

institucional, transitando da heterogestão para a autogestão.

A respeito dos itens de organizações funcionais e temporárias,

há uma interdependência a ser considerada entre eles, uma vez que, como

mesmo sugeriu Ward, organizações funcionais devem agir em respeito àquilo

que estabelecem como propósito para além delas mesmas; organizações,

assim, devem constituir um arranjo de elementos e funções a fim de alcançar

um objetivo ou uma série de objetivos externos, e não a perpetuação de si

mesmas, como inconfessavelmente age a escola. Dessa forma, o caráter

temporário das organizações vem a calhar, uma vez que uma organização

deve ter consciência da finitude de sua função, e findar ou se modificar quando

seu propósito não mais importar.

Por fim, o princípio de que organizações anarquistas deveriam ser

pequenas remete aos efeitos da socialização de grupos nas mediações de uma

sala de aula, como bem posto por Harris (2009) anteriormente, afirmando que

em salas menores, a quantidade pequena de alunos implica numa não

fragmentação em grupos, implica em união e no bom convívio entre os alunos,

na ajuda mútua e na sensação de pertencimento a um grupo consistente. A

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75

ideia proposta de grupos formados por livre-associação de indivíduos,

baseados em interesses em comum, e direcionados por professores ou

orientadores, convoca-nos a pensar não na organização, como uma entidade

alternativa, necessariamente pequena em si mesma, mas pequena no sentido

de oportunizar, dentro dela mesma, agrupamentos pequenos e independentes,

sem dúvida autogestionários, que possam transitar entre eixos de resistência e

pontos de oposição à educação tradicional como bem quiserem.

Estes pequenos grupos, dessa forma, teriam a sua própria

disciplina, que seria mais conveniente chamar de autodisciplina, através da

cooperação solidária, da prática altruísta e da consciência coletiva, moralizante

mas não impositiva, e que, assim, atenderia aos interesses individuais em

comum de todos os seus membros, enquanto esses interesses permanecerem

os seus. A dissidência de um grupo, neste caso, não seria tratada com punição

nem condenaria os indivíduos ao ostracismo, mas seria fato natural da

natureza de grupos numa perspectiva anarco-individualista, e o indivíduo seria

livre para associar-se a outros grupos de estudo e aprendizagem, ou até a mais

de um simultaneamente, e abandoná-los quando bem entendesse.

4.6 OS NÍVEIS DE UMA EDUCAÇÃO LIVRE

Uma vez obrigados a comparecerem às escolas, crianças e

jovens seriam incentivados, através de iniciativas de resistência calcadas num

pensamento de autogestão, a se organizarem livremente e por espontâneo

desejo, adquirindo, assim, um novo costume, como asseverado por Reimer

(1971, p. 27) em oposição à frequência obrigatória: “Pessoas livres, escolhendo

livremente como indivíduos e em grupos voluntários entre uma ampla matriz

de alternativas, podem tomar melhores decisões”.

De fato, é um sonho libertário essa autonomia aprendida. E a

possibilidade de autogestão pedagógica se aciona justamente em virtude deste

sonho, alcançável uma vez principiada a resistência. Mas, para pensar em

liberação de pessoas, especialmente em crianças e jovens, primeiro devemos

pensar em etapas.

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76

Assim, e sem entrar no mérito não urgente da frequência

compulsória, organizações escolares deveriam necessariamente cuidar, em

relação a crianças e jovens, dos três níveis de educação anarquista como

propostos por Bakunin e visto anteriormente: a educação intelectual, educação

física e educação moral. Nesta última é que a concepção autogestionária, os

valores de coletividade participativa e o desenvolvimento autônomo de todos os

envolvidos seriam estabelecidos com devida ênfase.

De acordo com Gallo (1995), a respeito dos ideais pedagógicos

de Paul Robin - alguns deles já discutidos mais acima -, o primeiro período da

educação deveria se dirigir à criança como ser isolado, buscando trabalhá-la

em sua individualidade, para favorecer o desenvolvimento de suas diversas

faculdades físicas, intelectuais etc.. Essa primeira fase da educação, segundo

Robin e conforme explicitado por Gallo, deve ser espontânea, pois a crianças

tem uma curiosidade insaciável e enorme capacidade de assimilação de

informações, ainda que sem uma ordenação lógica racional. E, embora

respeitando a liberdade e a espontaneidade das crianças, o professor tem um

papel fundamental a desempenhar em seu processo de educação.

Assim, em vista de uma proposta autogestionária e de livre-

associação em grupos de aprendizagem, o professor, detentor desta admitida

autoridade inicial, na prática da diretividade, deveria não só ser responsável

pela orientação dos alunos em grupos de estudo e aprendizagem, como ser

também responsável, num período inicial do ensino de crianças pequenas -

ainda num estágio precoce de desenvolvimento -, por assumir a função de

agente social que procurará desenvolver grupos, de acordo com as

necessidades observadas em seus alunos, independentemente das classes ou

séries em que se encaixam. A ação autogestionária, ainda em processo

germinante, pode adotar como pontapé inicial a associação de professores

com professores ou de professores com demais funcionários da instituição

escolar e alunos mais velhos e bem formados, de modo a flexionar as

possibilidades de ajuda e solidariedade no tratamento pragmático de grupos de

alunos e metodologias pedagógicas, a fim de eliminar o abismo entre as

hierarquias e promover uma diluição de poder entre toda a escola.

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77

Dessa forma, se estabeleceria uma base firme e sólida de

formação de estudantes que, mais cedo do que permite a concepção de

infância e adolescência de nossa cultura, tornar-se-iam seres autônomos que

eventualmente, também, aprenderiam ensinando e ajudando a ensinar os mais

novos, e assim sucessivamente, numa progressão não ritualística e não ilusória

de avanço educacional, mas prática, imediata e cujos efeitos seriam atestados

em um período muito mais breve de tempo já no interior da organização

escolar, sem a necessidade de classificações abstratas na forma de notas e

através de métodos avaliativos.

Para substituir os exames, aliás, que não teriam vez numa

definição de escola tal como estamos sustentando, deveria ser praticado o

feedback construtivo, isto é, uma avaliação formativa, que intentaria não

classificar e promover alunos, como é praxe no sistema educacional atual, mas

direcioná-los e respaldá-los nos conteúdos e práticas que escolhem aprender.

Numa primeira etapa, em se tratando de crianças, o feedback deveria ser

fornecido tendo em vista a necessidade observada pelo(s) professo(res) e

aluno(s) encarregados de guiar determinado grupo de estudantes, enquanto

que, numa segunda etapa, ela deveria, preferencialmente, ser exigida pelo

próprio aprendiz, a fim de sentir o retorno de seu aprendizado.

Ademais, a atestação do conhecimento deveria depender menos

de questionários orais e escritos, e mais de um saber posto em prática, no

interior escolar. O saber teórico seria desenvolvido através de grupos de

discussões e de aprendizado retribuído (o aluno auxiliando no ensino ou

efetivamente ensinando outros alunos), ao passo que o saber prático seria

possibilitado nas mediações escolares ou fora dela, através de ações sociais

que se expandiriam ao longo da sociedade, ou mesmo da ajuda manual de um

estudante em favor do outro.

De acordo com a proposta de uma nova concepção de ensino

defendida por Illich (2007), fundada sobre sua ideia de desesrolarização da

sociedade, alguém que deseja aprender sabe que precisa da informação e da

crítica dos outros. Segundo o autor, num bom sistema educacional, o acesso

às coisas deve estar disponível ao simples aceno do aprendiz, enquanto o

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78

acesso aos informantes requer, ainda, o consentimento de outros. Sobre isso,

Illich ainda afirma que:

As críticas podem provir de dois lados: de colegas ou de

pessoas mais adultas, isto é, de aprendizes cujos interesses

imediatos coincidem com os meus, ou daqueles que desejam

partilhar comigo suas experiências mais amplas. Os colegas

podem ser pessoas do mesmo nível com as quais se discute

um assunto, companheiros de leituras amenas e agradáveis

(ou árduas) ou de passeios, adversários em qualquer tipo de

jogo. As pessoas mais idosas podem ser consultores sobre que

espécie de aptidão aprender, que método seguir, que tipo de

companheiros procurar em dada época; podem ser guias para

indicar questões que devem ser discutidas entre os

companheiros e para cobrir as deficiências das respostas

dadas (ILLICH, 2007, p. 77).

Para Illich (2007), a maioria destes recursos existe em

abundância, mas não são comumente percebidos como recursos educativos, e

nem é fácil ter acesso a eles, para fins de aprendizagem, sobretudo se o

aprendiz for menos favorecido. Segundo o autor, devemos pensar em novas

estruturas relacionais, intencionalmente montadas, para facilitar o acesso a

esses recursos de todos os que queiram procurá-los para melhorar sua

formação.

Assim, Illich (2007) propõe uma estrutura que tem o aspecto de

teia, as chamadas teias de aprendizagem, que não só se assemelham ao que

propomos aqui (um espaço escolar aproveitado para o estabelecimento da

autogestão pedagógica, indo contra as imposições curriculares da instituição e

promovendo a livre-associação de grupos), como também parecem admitir o

acesso de outras pessoas a essa rede, isto é, pessoas de fora da escola que

se unem a ela em busca de possibilidades de associação em grupos de

aprendizagem.

Em conclusão, resume-se os níveis e suas respectivas diretrizes

pedagógicas da seguinte maneira:

Em primeiro lugar, a criança deve ser educada em grupos

preferencialmente pequenos e homogêneos, organizados pelo próprio

professor, preferencialmente com a ajuda de outros professores, funcionários

da instituição e alunos mais velhos. O professor e seus auxiliares devem

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assumir a iniciativa da autoridade sobre as crianças pequenas, organizando-se,

entre eles, num modelo de autogestão, e ministrando nas crianças

procedimentos que visem, já, a desenvolver práticas solidárias,

autogestionárias e altruístas, além da autonomia, não se esquecendo, é claro,

do desenvolvimento físico e cognitivo e dos conhecimentos elementares

necessários.

Em segundo lugar e por fim, a criança deve ser, de acordo com

constatações observadas na prática - e não através de exames - e

direcionadas por professores e auxiliares, paulatinamente conduzida a também

ensinar, auxiliar no ensino de crianças menores e, aos poucos, exercer sua

autonomia para escolher o que deseja seguir aprendendo, sob a orientação de

alunos mais velhos ou de demais professores que deverão, sempre, exercer

um mínimo de autoridade, que necessariamente deve abrandar-se ao longo do

processo pedagógico e das relações estabelecidas no interior da organização

escolar.

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5 PESQUISA-AÇÃO: AÇÃO-ESCOLA

A fim de que possamos, realisticamente, propor uma ação-escola,

devemos ir além das definições de uma nova escola, que agora estão

suficientemente expostas diante de tudo o que foi levantado e sustentado. A

elaboração teórica, por assim dizer, de um arquétipo de resistência à instituição

escolar, de autogestão pedagógica e de livre-associação em grupos clama por

um passo adiante. De fato, a tentativa de tornar mais concreta a visualização

de mudanças efetivas nos motivou a imaginarmos a prática e seus supostos

resultados, como fizemos no capítulo anterior. Mas da imaginação-prática para

a ação-prática, da nova definição de escola para uma ação-escola baseada

nessa definição, uma articulação ainda mais pragmática precisa ser definida.

Dessa forma, elegemos uma metodologia para a presente

investigação. Uma metodologia que não está diretamente relacionada a

qualquer caráter libertário, mas que, ainda assim, oferece as condições para se

executar mudanças de baixo para cima. Esta metodologia é a pesquisa-ação.

Segundo a definição fornecida por Thiollent, a pesquisa-ação é:

Um tipo de pesquisa social com base empírica que é concebida

e realizada em estreita associação com uma ação ou com a

resolução de um problema coletivo e no qual os pesquisadores

e os participantes representativos da situação ou do problema

estão envolvidos de modo cooperativo ou participativo (1988, p.

14).

Para a realização de uma pesquisa-ação, segundo Thiollent

(1988), faz-se necessária a participação das pessoas implicadas no problema,

que, no nosso caso, compreendem tanto professores, quanto funcionários nos

mais diversos cargos escolares, quanto, é óbvio, estudantes. Uma pesquisa-

ação, assim, só se qualifica como tal quando houver realmente uma ação por

parte das pessoas ou grupos implicados no problema sob observação. Além

disso, discute Thiollent, é preciso que a ação seja uma ação não-trivial, o que

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quer dizer uma ação problemática, merecendo investigação para ser elaborada

e conduzida.

Com efeito, a investigação, ainda que completamente

bibliográfica, é um elemento que temos em nossas mãos: uma proposta,

detalhadamente delineada (a autogestão e demais definições de uma nova

escola), e uma compreensão do problema através de análises críticas do

mesmo (a história da escola e sua função, a disciplina, a natureza de grupos).

Sem dúvida que, também, temos uma noção clara de como as pessoas e

grupos implicados no problema podem e devem agir para a resolução do

mesmo.

Ainda assim, é razoável assumirmos certo grau de

experimentação nessa empreitada. Afinal, os problemas continuarão sob

observação, e sujeitos a atitudes e alternativas redesenhadas ainda sob o

estágio de pesquisa-ação, de efetivação das mudanças propostas. Thiollent

(1988) afirma que na pesquisa-ação os pesquisadores desempenham um

papel ativo no equacionamento dos problemas encontrados, no

acompanhamento e na avaliação das ações desencadeadas em função dos

problemas. Ele ainda afirma que:

Sem dúvida, a pesquisa-ação exige uma estrutura de relação

entre pesquisadores e pessoas da situação investigada que

seja de tipo participativo. Os problemas da aceitação dos

pesquisadores no meio pesquisado têm que ser resolvidos no

decurso da pesquisa (THIOLLENT, 1988, p. 15).

Quanto a isso, é de fato dificultosa a tarefa dos pesquisadores na

execução das propostas de educação anarquista, uma vez que o contraste

entre as propostas libertárias ao que é estabelecido dentro do sistema é

radical, e assim, a aceitação dos pesquisadores no meio escolar

institucionalizado enfrentaria oposição tanto dos alunos, imbuídos de costumes

e atitudes totalmente diferentes em relação ao ensino e à aprendizagem, bem

como dos professores e funcionários mais destacados da escada hierárquica,

que certamente se oporiam a muitas das práticas pretendidas e atuariam

autoritariamente ou para barrá-las logo de início, ou para sabotá-las ao agir de

má fé ainda que aceitassem participar da ação.

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De acordo com os três casos de pesquisa-ação distinguidos por

Thiollent (1988), a proposta de uma educação autogestionária e de livre-

associação de grupos se encaixaria tanto no segundo quanto no terceiro caso,

a ver:

Num segundo caso, a pesquisa-ação é realizada dentro de

uma organização (empresa ou escola, por exemplo) na qual

existe hierarquia ou grupos cujos relacionamentos são

problemáticos. A pesquisa pode vir a ser utilizada por uma das

partes em detrimento dos interesses das outras partes. Nesse

caso, o relacionamento dos pesquisadores com os grupos da

situação observada é muito mais complicado do que o caso

precedente, tanto no plano ético quanto no plano da prática da

pesquisa. Considera-se, no plano ético, que os pesquisadores

da linha da pesquisa-ação não podem aceitar trabalhar em

pesquisas manipuladas por uma das partes nas organizações,

em particular por aquela que está mais vinculada ao poder.

Após uma fase de definição dos interessados na pesquisa e

das exigências dos pesquisadores, se houver possibilidade de

conduzir a pesquisa de um modo satisfatoriamente negociado,

os problemas de relacionamento entre os grupos serão

tecnicamente analisados por meio de reuniões no seio das

quais todas as partes deverão estar representadas.

Num terceiro caso, a pesquisa-ação é organizada em meio

aberto, por exemplo, bairro popular, comunidade rural, etc.

Nesse caso, ela pode ser desencadeada com uma maior

iniciativa por parte dos pesquisadores que, às vezes, devem se

precaver de possíveis inclinações “missionárias”, sempre

propícias à perda do mínimo de objetividade que é requerido na

pesquisa. Frequentemente a pesquisa é organizada em função

de instituições exteriores à comunidade. Os pesquisadores

elucidam os diversos interesses implicados (THIOLLENT, 1988,

p. 17).

Assim, precisamos, mais do que nunca, pensar na prática da

educação anarquista no contexto hierárquico da instituição, em vista de formas

de burlar essa mesma instituição hierárquica, que tem todo o poder de minar

intervenções dessa ordem. Num sentido ético, como explicitado no segundo

caso, a pesquisa-ação confere apoio à construção de eixos de resistência nas

escolas, afirmando ser inaceitável ceder às manipulações (que podem se

disfarçar em tentativas de ajuda) das partes da instituição que se vinculam ao

poder. Caso a negociação não seja possível, como provavelmente não será na

maioria dos casos, o que propomos é, em poucas palavras, uma atuação

mista, algo que, como já dito, se execute transversalmente ao currículo escolar,

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83

estabelecendo alianças com alunos, professores e funcionários que se

proponham a efetivamente fazer a mudança.

No terceiro caso, a proposta de atuação anarquista ainda se faz

pertinente, embora periférica em relação à atuação principal que deve

necessariamente se dar no seio da escola. De acordo com Harris (2009), a

respeito de programas de intervenção que visam mudar o comportamento e a

personalidade de crianças e jovens nos ambientes escolares e familiares, a

teoria de socialização de grupos prevê que, no ambiente escolar, as tentativas

de mudança dos indivíduos são ineficazes, uma vez que os estilos de

educação parental não surtem efeitos replicáveis no comportamento dos filhos

em outros contextos, como, por exemplo, o da escola. Por sua vez, a

intervenção que ocorre dentro da escola apresenta resultados mais notáveis,

uma vez que atuam mudanças de comportamento dentro de grupos,

influenciando suas normas:

Para que programas intervencionistas funcionem, eu acredito

que eles devem modificar o comportamento e as atitudes de

um grupo de crianças. Para que programas do tipo produzam

efeitos de longo prazo, as crianças devem permanecer em

contato umas com as outras para que elas possam continuar a

pensar nelas mesmas como um grupo. Assim, eu premeditaria

que programas destinados a uma escola cheia de crianças

seria mais bem-sucedidos que aqueles que pinçam dezessete

crianças de dez ou doze escolas diferentes (HARRIS, 2009, p.

237).

Harris (2009) ainda completa afirmando que intervenções

destinadas aos pais melhoram o comportamento das crianças dentro de casa

mas não na escola; e intervenções em meio escolar melhoram o

comportamento na escola mas não em casa. Assim, como explicitado pelo

terceiro caso de pesquisa-ação de Thiollent (1988), é pertinente que pelo

menos atuações periféricas de alternativas autogestionárias de educação

sejam também efetivadas na comunidade e no bairro de onde vem o aluno, a

fim de causar, assim como no meio escolar, uma implicação nesses locais, de

modo que o aluno cultive a mesma cultura de valorização do aprendizado,

tanto na escola quanto na sua vizinhança, e que, assim, não lhe escape, em

nenhum contexto de seu cotidiano, a oportunidade de assumir uma postura

positiva em relação ao ato de aprender.

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Para Thiollent (1988), no entanto, a participação dos

pesquisadores não deve chegar a substituir a atividade própria dos grupos e

suas iniciativas. Certamente, se os pesquisadores assumissem as atividades

dos grupos, poderiam correr o risco de, sem querer, monopolizar suas

execuções, e acomodar o grupo às suas indicações. Assim como propõe a

atuação do professor na proposta autogestionária e na iniciativa de livre-

associação em grupos, o pesquisador deve tomar a iniciativa da autoridade e,

desde sempre, com vista no abrandamento dessa autoridade e no fomento da

autonomia dos alunos, deixar que os grupos, objetos de sua ação-pesquisa,

sejam implicados por suas intervenções e reajam livremente a elas, com o

devido acompanhamento realizado.

A participação dos grupos de alunos, professores e demais

funcionários é imprescindível para que a pesquisa-ação não se torne

meramente uma pesquisa de aspecto acadêmico e burocrático, como são a

maioria das pesquisas convencionais, de acordo com Thiollent (1988). Assim, o

contexto escolar, sob as diretrizes de uma proposta de educação anarquista, é

sem dúvida um contexto favorável para a pesquisa-ação. Segundo o autor,

adeptos da pesquisa-ação “querem pesquisas nas quais as pessoas implicadas

tenham algo a ‘dizer’ e a ‘fazer’” (THIOLLENT, 1988, p. 16). Não se trata, ainda

de acordo com o autor, de um simples levantamento de dados ou de relatórios

a serem arquivados, mas sim de desempenhar um papel ativo na própria

realidade dos fatos observados.

Nesta perspectiva, segundo Thiollent (1988), é necessário definir

com precisão, de um lado, qual é a ação, quais seus agentes, seus objetivos e

obstáculos e, por outro lado, qual é a exigência de conhecimento a ser

produzido em função dos problemas encontrados na ação ou entre os atores

da situação. O autor ainda resume, em seis aspectos, as condições que

possibilitam considerar a pesquisa-ação como ela é, e quais as exigências

metodológicas que essas condições impõem à iniciativa. Assim, enumeraremos

e relacionaremos com respostas em vista de nossa proposta cada um desses

seis aspectos.

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O primeiro aspecto é o da ampla e explícita interação entre

pesquisadores e pessoas implicadas na situação investigada, sobre o qual já

elucidamos mais acima ao falarmos da iniciativa autoritária para o

estabelecimento de um projeto autogestionário de ensino e aprendizagem

(THIOLLENT, 1988).

O segundo aspecto expõe que dessa interação resulta a ordem

de prioridade dos problemas a serem pesquisados e das soluções a serem

encaminhadas, sob forma de ação concreta, ao que, certamente, nos cabe

algumas delineações (THIOLLENT, 1988). Para isso, utilizamo-nos das etapas

de uma educação livre como explicitadas no capítulo seis como estrutura de

nosso procedimento, mas não só: além de um procedimento que se dá com

maior autoridade da parte do pesquisador quanto menor for o grupo de alunos

tratados, adotamos como prioridade a erradicação de qualquer sustentáculo da

máquina de produção que é a educação institucionalizada, abolindo notas e

avaliações e abolindo a disciplina sobre os corpos, de modo que atividades

tanto sensório-motoras quanto físicas e mentais sejam realizadas tendo como

base não mais a competição, mas a solidariedade.

Ademais, é primordial que, antes mesmo de iniciar os primeiros

procedimentos, o pesquisador procure separar os estudantes em pequenos

grupos que podem ou não se denominar artificialmente, de modo a gerar

identidades de grupo inofensivas, contribuindo para a união dos estudantes

sem que, no entanto, estruture qualquer ordem de competição entre os grupos,

sabendo desafixá-los quando necessário e promover outras combinações com

base em necessidades, interesses e aptidões individuais, observadas ao longo

do processo.

O pesquisador deve, necessariamente, agregar o professor às

atividades, sempre em constante monitoramento de sua prática autoritária, e

promovê-lo a orientador dos grupos, de acordo com seus interesses e aptidões

pessoais. Outros funcionários da escola, de maneira mais ou menos

improvisada, podem também ser agregados à iniciativa, a depender dos

contextos escolares específicos e das necessidades brotadas ao longo do

processo.

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O terceiro aspecto explicita que o objeto de investigação não é

constituído pelas pessoas, mas pela situação social e pelos problemas de

diferentes naturezas encontrados nesta situação (THIOLLENT, 1988). De fato,

o objeto da pesquisa-ação em nossa proposta de educação anarquista não são

pessoas, mas a relação dessas pessoas com as outras e com a instituição

autoritária e disciplinadora que as reúnem. Até mesmo quando os problemas

são individuais, em estimo do olhar individualista a ser praticado na educação

libertária, eles são tratados em face de como se dão nos limites do contexto

social e quais dimensões assumem.

O quarto aspecto assevera que o objetivo da pesquisa-ação

consiste em resolver ou, pelo menos, em esclarecer os problemas da situação

observada (THIOLLENT, 1988). Certamente que é nesse sentido que mira a

proposta de uma pedagogia de autogestão, procurando esclarecer os

problemas da situação bem como resolvê-los. E mais: temos perfeito

conhecimento de como a disciplina se dá e de seus métodos e procedimentos,

de modo a nos precipitarmos logo cedo a desarranjar esse aparato na medida

em que nos dispomos a um tratamento coletivo, sob a perspectiva da

socialização de grupos, que também nos fornece fundamentação da psicologia

social para imediatamente percebermos problemas em relação aos fenômenos

implicados na formação de grupos, dando ainda mais subsídios para

detectarmos e atacarmos questões surgidas.

O quinto aspecto expressa a necessidade de realização, durante

o processo, de um acompanhamento das decisões, das ações e de toda a

atividade intencional dos atores da situação (THIOLLENT, 1988). O

acompanhamento é, sem dúvida, um aspecto importante no estabelecimento

de uma pedagogia autogestionária, uma vez que os procedimentos de estímulo

à solidariedade, ao pensamento coletivo bem como à autonomia de

aprendizagem, e todo o empenho de desconstrução do aparato disciplinador e

da estrutura de heterogestão, são procedimentos realizados na base de

decisões tomadas, ações realizadas e intenções colocadas em jogo pelos

atores - professores, estudantes e funcionários - dessa pesquisa-ação, de

modo que a observação e o registro de decisões, ações e intenções sejam

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fundamentais para eventuais reflexões acerca do que pode e do que não pode

funcionar e por que pode e não pode funcionar.

O sexto e último aspecto afirma que a pesquisa não se limita a

uma forma de ação (risco de ativismo), mas que pretende aumentar o

conhecimento dos pesquisadores e o conhecimento ou o “nível de consciência”

das pessoas e grupos considerados (THIOLLENT, 1988). Evidentemente,

conforme proposto por Bakunin anteriormente, no nível de educação moral por

ele proposto, a crítica ao modo de vida burguês e a proposta de uma ação

social diferenciada deve vir não através de discursos, o que implicaria em um

ativismo, mas da vivência mesmo de estrutura de coletividade participativa, de

autogestão pedagógica, de modo que todas as ações tomem formas

diferenciadas mas sob uma fundamentação coerente - a do paradigma

anarquista. Assim, acreditamos que crianças e jovens não responderiam como

autômatos às nossas indicações (são autômatos mais quando submetidos à

disciplina da instituição escolar), mas como seres em processo de

desenvolvimento de novos valores, comportamento e formas de contratar uns

aos outros.

A ação libertária não se resumiria a um cacoete ideológico,

ensinada na base de induções repetitivas de comportamentos e valores, mas

sim, estender-se-ia à possibilidade de uma experiência totalizante e

diferenciada, repleta de estímulos novos e desafios construtivos, que permitiria

aos alunos, professores e demais atores dessa pesquisa-ação a descobrirem

novos meios e novos conteúdos de aprendizado, tanto quanto de princípios,

iniciativas e formas novas e experimentais de se organizar socialmente e de se

entender como ser humano livre, autônomo e dotado de fantásticas

potencialidades.

Page 88: TCC FINALIZADO

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6 CONCLUSÃO

A concepção atual de escola se associa intimamente à

concepção de função social que se espera de cada indivíduo, membro da

sociedade capitalista, submetido à estrutura estatal. A escola é mais uma das

instituições de controle social que visam enquadrar indivíduos em modos de

atuação social pré-determinados. Peça do todo sistêmico, a escola como

instituição ganhou espaço fixo na sociedade com o surgimento do estado-

nação e sua necessidade de uniformização do povo, para a constituição de

valores nacionais e coletivos.

Assim, a disciplina veio a calhar como aparato para estabelecer

esse controle social, essa uniformização de forma eficaz e útil, e se inscreveu

em instâncias microssociais de maneira a reproduzir a configuração

macrossocial, articulando o sistema em sua totalidade mas a partir de

instâncias menores, a partir de inúmeras instituições localizadas, como a

escola. A disciplina é um meio desenvolvido para que indivíduos possam ser

coordenados em harmonia, constituindo uma massa, e para que estes mesmos

indivíduos, uma vez trabalhando coletivamente, atinjam objetivos iguais.

A socialização de grupos, um fenômeno evolucionista observado

nas mais variadas instâncias de organização humana, permite aos indivíduos

vantagens em relação aos outros, facilitando sua sobrevivência. Separar coisas

e sujeitos em grupos (categorias sociais, definições) não é só natural por

razões cognitivas, de certo modo particulares à espécie humana, como por

razões de sobrevivência, particulares à toda espécie animal. Assim, a

associação de indivíduos em grupos é um fenômeno espontâneo e inevitável,

que se dá num processo de assimilação entre indivíduos, formando identidade

de grupo, e diferenciação entre grupos, diferenciando os coletivos.

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O aprendizado, como exposto, se dá em grupos, e na proporção

social presente é impensável o aprendizado no seu formato estritamente

interpessoal, entre pupilo e mestre, de modo que a instrução de grupos é uma

realidade que não pode ser vencida, mas que pode ser convertida

vantajosamente para benefícios coletivos (sociais) e individuais (que não

deixam de ser uma extensão dos próprios benefícios coletivos).

Assim, a disciplina, uma mera tentativa de conter a associação

dispersa (e espontânea) de massas em subgrupos, de modo a assentar uma

uniformidade pretendida pela estrutura hierárquica da sociedade, deve ser

relativizada e ser própria de cada grupo de indivíduos que se associam, de

modo a trabalharem solidariamente em favor dos interesses do grupo;

interesses que se constituem a partir da soma dos interesses individuais, ou

seja, do que há de comum entre os membros dos grupos e que dá origem às

suas formações.

Dessa forma, o paradigma anarquista entra como base para

pensarmos em concepções de organização a fim de que estes méritos

coletivos e individuais possam entrar em concordância e possam se coordenar

sem prejuízos tanto para a sociedade quanto para a individualidade de seus

cidadãos. A autogestão, pilar das organizações sociais anarquistas, se faz

presente aqui de forma a estabelecer os parâmetros para que indivíduos

rejeitem a autoridade compulsória e possam trabalham a fim de um mesmo

objetivo, embora de maneira mais livre, mais diversa, mais espontânea e

horizontal, oportunizando o desenvolvimento de potencialidades humanas que

são, em grande parte, apagadas em favor de uma constituição social

hierarquizada, uniformizada, seriada e estratificada.

Se assentando sob princípios de liberdade (individual e, por

extensão, social), solidariedade e autogestão, o paradigma anarquista é útil

para a definição de uma nova escola, ainda que esta nova definição leve em

conta os fenômenos naturais da constituição de grupos, de modo a convertê-

los beneficamente para a realização do aprendizado individual.

A ação-escola, que parte desta nova definição, pretende colocar

em prática no campo da escola institucionalizada, de maneira transversal e

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conciliada com as práticas pedagógicas convencionais, isto é, mista ao

sistema, pontos e eixos de resistência que procurem oportunizar novas

vivências de escola, novas formas e possibilidades de aprendizagem, em

método e conteúdo, estabelecendo críticas ao sistema e fornecendo,

concomitantemente, as chances de se comportar de modos diferentes, de

contratar novas relações, de constituir associações livres e variadas, de colocar

em prática experimentações de ensino que possibilitarão repensar a sociedade

e repensar a nossa própria natureza humana, no estabelecimento de novos

valores e novos vínculos sociais, no estabelecimento de uma prática libertária,

que livre o indivíduo de todas as presas, grades e amarras impostas pelo

sistema, que faça surgir, definitivamente, indivíduos renovados e profusos em

liberdade.

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REFERÊNCIAS

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CHOMSKY, Noam. Chomsky On Anarchism. Oakland: AK Press, 2005.

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