tÁpia, marcelo - james joyce (um breve itinerário de leitura)

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ApresentaoO propsito desta srie de quatro artigos que focaliza as quatro principais obras de James Joyce (Dubliners, A portrait of the artist as a young man, Ulysses e Finnegans wake) apresentar ao leitor a criao joyciana, traando um itinerrio de leitura de sua produo. Ficaram de fora devido, principalmente, aos limites de dimenso adotados para os artigos os livros Chamber music (de poemas), Exiles (uma pea de teatro) e Giacomo Joyce (escrito quando seu autor j iniciava Ulysses, abandonado por ele e s publicado aps sua morte); o livro Pomes penyeach, de poemas, brevemente mencionado. Todos estes trabalhos esto disponveis em portugus. Os artigos ora publicados, revistos para esta edio, foram, anteriormente, reunidos no livreto comemorativo do Bloomsday 2004, dcima stima junijornada como diria o eterno mentor do evento entre ns, Haroldo de Campos realizada no Finnegans Pub, em So Paulo. Que tenha, este trabalho despretensioso, alguma utilidade queles que desejem embrenhar-se no imenso universo da criao de Joyce.

JAMES JOYCE:UM BREVE ITINERRIO DE LEITURA

por Marcelo Tpia

M. Tpia

Joyce: comeando pelo princpioHoje em dia, quem diria, Joyce um dos escritores mais conhecidos em todo o mundo. E isso, apesar de sua obra ser considerada por muitos como muito difcil, inacessvel mesmo. Para sustentar essa tese, costuma-se evocar sua ltima e mais densa obra, o Finnegans wake (1939), e seu emaranhado de linguagem tecido com diversas camadas de sentido, composto, inclusive, com elementos de diversas lnguas. Claro que este livro inusitado de assustar, mas no impossvel de se ler, muito pelo contrrio: demanda diversas leituras, em diversos nveis, que parecem no se esgotar nunca. Certa vez, a professora Munira Mutran, da USP, presenteou-me com uma edio do FW, na qual grafou, na dedicatria: para seu lazer nos prximos cem anos. E, creiam, isso no estar longe da verdade: a dificuldade um desafio, e embrenhar-se nessa teia inesgotvel de relaes pode propiciar grande prazer nas horas de lazer. Mas no comecemos pelo fim, e, sim, pelo comeo. Nesta breve srie de artigos que escrevo neste ano do centenrio do Dia de Bloom (o romance mais famoso de Joyce, o Ulysses (1922), se passa, todo ele, em 16 de junho de 1904), procurarei iniciar o leitor no mundo joyciano, traando um possvel itinerrio de leitura; comecemos, ento, com seu primeiro livro de prosa, Dublinenses. Comearemos pelo Dubliners (1914), um livro de contos de teor realista, no apenas porque o primeiro, mas, sim, porque , no sentido comum, o mais fcil entre os escritos por Joyce. Nem por isso, no entanto, ele deixou de causar grande estranheza poca de sua publicao. Tal estranhamento se deu, principalmente, devido ao fato de os quinze contos que o compem no terem, propriamente, uma trama: neles, aparentemente, nada acontece e, por isso, no foram vistos como contos de fato. Uma vez lidos em voz alta na poca em que foram escritos, provavelmente suscitaram perguntas como J acabou? Mas acabou mesmo?; hoje, porm, as caractersticas de Dublinenses j no causam tanta estranheza, exatamente pela influncia que exerceram na literatura produzida depois dele. Como diz Anthony Burgess, em seu livro Here comes everybody (publicado no Brasil com o ttulo Homem comum enfim), uma tima introduo obra de Joyce, os contos de Dubliners so estudos da paralisia ou da frustrao, e a sujeio a rotinas e ao medo de romp-las (1) tema que perpassa toda a obra. Na Dublin provinciana e cheia de convenes, smbolos, regras e conformismo, o vazio da rotina era algo difcil de ser transposto, uma priso da qual no se podia sair sem romper o medo entranhado e intransponvel diante da possibilidade de libertao. J no primeiro conto, The sisters (As irms), narrado por um garoto (pertence, este conto, trilogia com narradores infantis que inicia o volume),

a paralisia se concretiza no personagem de um padre moribundo e paraltico que morre em decorrncia de uma doena que comeou com a quebra acidental de um clice, a qual teria afetado sua mente, deixando-o desorientado. Amigo do garoto que conta a histria, o padre lhe teria ensinado os rituais complexos da igreja, que ministrara durante sua vida; e, quando morto, o narrador o v no caixo, (...) solene e truculento na morte, um clice intil sobre o peito (2). Um clice quebrado, clice vazio, intil: smbolo que o conto procura fixar, e o faz, preenchendo com tal imagem a ausncia de uma trama convencional. No nono conto do livro, Counterparts (Contrapartida), a insatisfao, a frustrao cotidiana de uma vida vazia, inspida, se configura no dia de um escrivo personagem cujo nico refgio so o botequim e a bebida em um escritrio de advocacia. Depois de humilhado pelo chefe, e com uma raiva incontrolvel que tomava conta dele diante de sua condio sufocante, sem que pudesse aliviar-se, ele penhora um relgio para poder beber no bar de sempre, com seus amigos. Mas, ao fim da noite, j s, v a realidade retornar no ponto do bonde que tomaria a fim de voltar para casa:Com terrvel mau humor, o homem estava parado na esquina de OConnel Bridge, esperando pelo bonde de Sandy Mount que o levaria para casa. Dominavam-no a clera e o desejo de vingana. Sentia-se humilhado e insatisfeito. Restavam-lhe s dois pence no bolso e nem ao menos se embriagara. (3) Restava-lhe, apenas, a chance de agredir a um filho seu, por algum motivo que encontraria. Ao chegar em casa, encontrando apenas o filho Tom, dirige-se a este: O que tem para comer? Eu vou... vou preparar papai... O homem saltou da cadeira e apontou para o fogo. Com esse fogo! Voc deixou o fogo apagar! Por Deus, vou ensin-lo a fazer isso outra vez! Deu um passo at a porta e pegou a bengala que estava atrs dela. Vou ensin-lo a deixar o fogo apagar! disse ele, arregaando a manga, para deixar o brao vontade. No, papai! O garotinho comeou a correr em volta da mesa, choramingando, mas o homem perseguiu-o e agarrou-o pelo casaco. O garotinho olhou desesperadamente sua volta, mas vendo que no podia fugir, caiu de joelhos. Da outra vez no deixar o fogo apagar! disse o homem, golpeando-o vigorosamente com a bengala. Tome isto, seu animalzinho! O garoto soltou um gemido de dor quando a bengala atingiu-o na coxa. Ergueu as mos entrelaadas e sua voz tremia de pavor: Oh, papai! No me bata, papai! Eu... eu rezarei uma Ave Maria pelo senhor... eu rezarei uma Ave Maria pelo senhor, papai, se no me bater... Rezarei uma Ave Maria... (4)

No conto seguinte, Clay (Argila), o aspecto da nostalgia aparece combinada a uma quebra de rotina, embora tambm previsvel, pois repetida rotineiramente ano a ano: numa vspera do feriado de Todos os Santos, Maria, uma mulher solitria de nariz comprido e queixo pontudo, aps cumprir suas tarefas na lavanderia em que trabalha, vai casa de seus parentes para a comemorao da data. Durante o trajeto, deixa no bonde um pedao de bolo que comprara para dar aos familiares por ter se perturbado com um homem velho e educado que lhe oferecera o lugar no coletivo. Na casa, repetem-se, como rituais, brincadeiras e conversas, regadas a cerveja e vinho, que os ajudam a manter a alegria e a esquecer de problemas como a desavena entre seus dois irmos. O ritual da visita termina com a evocao de uma antiga cano de William Balfe, I dreamt I dwelt in marble halls (5), cantada por Maria, que esquece a segunda estrofe e acaba repetindo a primeira... Mas ningum procurou mostrar-lhe o engano; Joe, seu irmo, comovido, diz que para ele nada se comparava aos velhos tempos... O ltimo conto de Dubliners, The dead (Os mortos), considerado o mais importante do livro, e nele que Joyce insere mais elementos de sua vida pessoal, embora, como assinala Burgess, tudo em sua literatura seja um registro intensificado das experincias do escritor (6). No conto, o personagem Gabriel Conroy, como o prprio Joyce, casou-se com uma mulher com formao escolar e intelectual inferior, o que no motivo para seu desprezo, admirador que da firmeza de seu carter, prpria da cultura do condado de Galway (tambm cidade natal de Nora). Aps a festa de Ano Novo, realizada todos os anos pelas tias de Gabriel, ele e Gretta vo para um hotel, j de manh. Cheio de desejo, Gabriel se intimida por perceber que ela est ausente, pensativa, e pergunta a ela o que se passa. Gretta diz estar pensando numa cano que ouvira durante a noite... Por que, Gretta? Estou pensando em algum que, h muitos anos, costumava cantar essa cano. Quem era? perguntou Gabriel, sorrindo. Algum que conheci em Galway, quando morava com minha av. O sorriso desapareceu do rosto de Gabriel. Uma clera surda tornou a se condensar no fundo de sua mente e a chama escura do desejo voltou a latejar com fria em suas veias. Algum por quem esteve apaixonada? perguntou em tom sarcstico. Um rapaz que conheci respondeu ela. Chamava-se Michael Furey. Cantava sempre essa cano. The Lass of Aughrim. Era muito sensvel. (...) Oh! Ento ainda est apaixonada? Passevamos juntos, quando eu morava em Galway. (7)

mais tarde, depois de um pranto generoso que invadiu-lhe os olhos, vai at janela, da qual podia ver a neve que caa e cobria toda a Irlanda (...) tombando mansa sobre o Bog of Allen e, mais para o oeste, nas ondas escuras do cemitrio abandonado onde jazia Michael Furey... Sentia, ento, que sua alma desmaiava lentamente, enquanto ele ouvia a neve cair suave atravs do universo, cair brandamente como se lhes descesse a hora final sobre todos os vivos e todos os mortos. Consta que Joyce, de forma semelhante (veja-se sua biografia escrita por Richard Ellmann), tinha cime de um antigo amante de sua mulher, tambm falecido. Em seu livro de poemas Pomes Penyeach (Pomas a um penny cada) (1927), inclui-se um poema em que uma voz feminina lamenta pelo amante enterrado no cemitrio de Rahoon, em Galway:Ela chora em Rahoon Chove manso em Rahoon, cai a chuva mansa Onde meu amante sombrio jaz. Triste sua voz que me chama, triste chama, sob o gris que a lua traz. Amor, ouve, por um instante Quo mansa, triste, sua voz que sempre chama, Sem resposta, e, sombria, a chuva mansa Cai agora como antes. Sombrios, amor, nossos coraes, frimidos Jazero como o dele, adiante Sob as urtigas lua-gris, o negro hmus E a chuva murmurante. (8)

Como observa Burgess, tal cime teve de ceder aquiescncia e a uma espcie de rendio. Por extenso, cime de um rival vivo se torna igualmente ftil: melhor aceitar filosoficamente, mesmo alegremente; podemos at acabar desejando deliberadamente o papel de corno. o que acontece no romance Ulysses, com seu personagem central, Leopold Bloom, que deixa sua casa livre para que Molly, sua mulher, o traia com seu amigo Blazes Boylan... O tema do tringulo amoroso , de fato, reincidente na obra joyciana: tambm em sua pea Exiles (Exilados), o personagem Richard manifesta o desejo de oferecer a mulher ao amigo Robert... Mas fiquemos, por hora, apenas com Dubliners (do qual traamos pinceladas superficiais) e faamos, desta breve srie de artigos, sujeita a mudanas e complementaes posteriores, uma modesta work in progress...

Diante da suspeita do marido de que ela costumasse ir sua cidade para ver o ex-namorado, Gretta esclarece que este morrera jovem. Gabriel,

Notas 1. Burgess, Anthony. Homem comum enfim. Trad.: Jos Antonio Arantes. So Paulo, Companhia das Letras, 1994. P. 34. 2. Joyce, James. Dublinenses. Traduo de Hamilton Trevisan. Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1970. P. 9. 3. Idem, p. 84. 4. Idem, p. 85. 5. Esta cano pode ser ouvida em um disco da cantora irlandesa Enya, e, entre ns, em dois dos Cds gravados pelo grupo Irish Dreams, de So Paulo, do qual faz parte o autor deste artigo. 6. Burgess, A. Op. cit. P. 40 7. Joyce, J. Op. cit. P. 191. 8. Traduo de Marcelo Tpia. 9. Burgess, A. Op. cit. P. 42.

Stephen, o heriCerta vez, e que linda vez que isso foi! vinha uma vaquinha pela estrada abaixo, fazendo mu! E essa vaquinha, que vinha pela estrada abaixo fazendo mu!, encontrou um amor de menino chamado Pequerrucho Fua-Fua... (1)

Assim com a referncia a um conto da carochinha que o pai lhe contava comea a histria de Stephen Dedalus, um jovem poeta, heri do romance semi-autobiogrfico A portrait of the artist as a young man (Retrato do artista quando jovem), de James Joyce. Tal romance resulta de outra obra mais extensa Stephen Hero em grande parte destruda por seu autor, talvez durante uma crise emocional. Das mil pginas datilografadas, restaram quatrocentas, publicadas postumamente. Se este era um texto bem-comportado, convencional, o Retrato j prenuncia as caractersticas que definiriam Joyce como o inventor que produziria Ulysses e Finnegans wake. Considerado o prembulo de Ulysses, o Retrato contm, em germe, como diz Antonio Houaiss (na apresentao reedio brasileira do livro em 1970), os condimentos e materiais bsicos da criao artstica de Joyce (2). O prprio incio, imprprio para um livro dirigido a adultos, j indica a opo por sair do lugar-comum, subverter a expectativa ditada pela tradio. Exemplo de romance de formao (bildungsroman), o Retrato j traz, em sua tcnica narrativa, um esboo do monlogo interior, ou stream of consciousness (fluxo de conscincia), que seria o eixo da construo das obras posteriores. Nele, tambm e este seu aspecto mais importante a linguagem e o assunto se tornam uma unidade indissocivel, qualidade esta considerada por alguns como a primeira grande inovao tcnica da prosa no sculo XX a cada fase do livro, a cada estado de alma, a cada tipo de tema, corresponde uma forma narrativa que lhe prpria, transformando o todo a cada etapa. Tambm no dizer de Houaiss, nesse romance malgrado a linearidade da narrao repontam os problemas do esprito, o aleatrio do curso da vida, a luta do indivduo, a emergncia da pessoa, a vocao e todos os seus meandros de obstculos, e o mito da busca da arte e da beleza e do sentido, quando no da vida, de uma vida (3). Essa busca envolve um desenvolvimento da alma, que reflete o simbolismo pessoal de Joyce, que, por sua vez, reflete os contedos simblicos advindos de sua formao catlica na Irlanda de ento, como aluno de jesutas. O Retrato no se definiria, mais, pelo naturalismo (peculiar, diga-se) de Dublinenses, mas, sim, por um simbolismo ao qual tal naturalismo serve. Para Anthony Burgess, o prprio nome do personagem, Dedalus, s pode de fato radiar significado num contexto simblico. E, como diz o crtico, o [smbolo] fundamental [de A Portrait] o de uma criatura que tenta escapar do cativeiro dos elementos mais espessos, terra e gua, e aprende dolorosamente a voar (4). Isso porque possvel acompanhar desde a alma embrionria da criana que ouve do pai uma historinha, urina na cama (Quando a gente molha a cama

primeiro ela quente e depois ela fria) e, depois, empurrado por um colega, na escola, cai num fosso de lodo visguento que cobre todo seu corpo como envolvido por espcies de lquido amnitico , at o Stephen que, aps enfrentar os obstculos terrenos, sofrer o peso da autoridade e da injustia, e ultrapassar com dificuldade a realidade sufocante, alcana o estado de vo em que ele vai tentar exprimir-se por algum modo de vida ou de arte to livremente quanto possa. Joyce, embora catlico renegado, pode ser visto da mesma forma que Stephen, personagem criado sua imagem e semelhana , como algum a quem a educao jesutica deixou marcas profundas, eternas; e seus conflitos eram prprios de todos aqueles que subsistem cultura da culpa, livrando-se de pesos e amarras com os instrumentos que lhe couberem; no caso do escritor, o instrumento o poder da criao, que, embora lhe d asas e permita, inclusive, ironizar o contexto em que se formou e parodi-lo, no suficiente para que descarte por completo a Igreja e suas premissas. Uma cena demonstrativa do processo de educao caracterstico de sua formao catlica e repressora a passagem de A portrait em que Stephen injustamente punido quando o padre prefeito dos estudos no Clonglowes Wood College, onde estudava, no cr que ele havia quebrado involuntariamente os culos (em conseqncia de um colega o ter derrubado) e, por isso, no estava fazendo a lio: Seu vadio, pequeno preguioso! exclamou o prefeito dos estudos. Quebrei os meus culos! J muito velha essa manha! Ponha j a mo pra fora! Stephen fechou os olhos e estendeu no ar a mo trmula com a palma para cima. Sentiu o prefeito dos estudos toc-la por um instante nos dedos, para estic-la, e depois o roar da manga da batina ao ser a palmatria erguida para bater. Uma pancada ardente, zunindo, ressoou como um pesado cair de madeira se quebrando, fazendo a sua mo trmula revirar-se toda como uma folha ao fogo; e o som e a dor encheram-lhe os olhos de lgrimas escaldantes. Todo o seu corpo tremia de medo; o seu brao arriava e a sua mo entortada e lvida abanava como uma folha solta no ar. Um grito saltoulhe aos lbios, pedindo para acabar. Mas apesar das lgrimas lhe encherem os olhos e seus membros tremerem de dor e de medo, reprimiu as lgrimas quentes e o grito que lhe queimava a garganta. A outra mo! berrou o prefeito dos estudos. (5)

(...) Na prxima quaresma vou desnudar Minhas ndegas penitentes para o ar E soluando junto ao prelo Confessarei meu grave pecado para o flagelo. Meu capataz irlands, de Bannockburn, Mergulhar sua mo direita na urna E com polegar reverente far o sinal da cruz Memento homo sobre meu nus. (7)

Por isso, tambm, ser-lhe-ia prprio escrever um poema considerado por muitos como o melhor de sua produo no qual expressa seu conflito e sua culpa na ocasio do nascimento de seu neto, Stephen James, ocorrido logo aps a morte de seu pai, John Joyce. O ttulo do poema, Ecce puer (Eis o menino) evoca a expresso ecce homo (eis o homem), com que Pilatos apresentou Jesus:Ecce puer Do passado escuro A criana veio; De alegria e dor Partiu-se meu peito. Tranqilo em seu bero O beb se acolhe. Possam d e amor Descerrar seus olhos! Sopro em vida jovem O vidro embaa: O mundo que no era J vem e passa. A criana dorme: Um velho partiu. Pai, que abandonei, Perdoe seu filho! (8)

Segundo Burgess, a relao de Joyce com o catolicismo a do familiar amor-dio da maioria dos renegados. Ele abandonou a Igreja mas no a deixa em paz: ataca-a por causa dos padres mas a defende dos protestantes. (6) E, por isso mesmo, por no ter se libertado definitivamente dos dogmas catlicos, usava da zombaria e da blasfmia, como no poema de 1912,Gas from a burner (Gs de um queimador), cujo final apresentado a seguir:

Por tudo isso, ainda, segundo Burgess, tpico de Joyce que, ao criar uma religio da arte para substituir o catolicismo, tivesse de formular sua esttica nos termos escolsticos (9). (Assim, mesmo em Ulysses e Finnegans wake, o aspecto mtico-religioso domina no primeiro, a questo da identidade do Pai e do Filho, e, no segundo, o tema fundamental da Ressurreio.) No Retrato, a luta contra o sufocamento comea com a resoluo de Stephen aps indeciso e conflito sofridos, aps a forte angstia e o temor experimentados de relatar ao reitor a punio injusta por ter quebrado os culos, uma conquista que serve a ele e aos colegas como revide e fortalecimento

que se convertem em motivo de alegria. Chester Anderson, em seu livro sobre a vida de Joyce, diz, a respeito dessa passagem: O menino Joyce, tal como o inocente Stephen no Portrait e o Joyce adulto de anos posteriores, apelou para essa injustia mais alta autoridade existente, o Reverendo John Conmee, reitor do colgio, e viu-se vingado quando o Padre Conmee concordou em falar com o padre Daly a respeito. Este ato de coragem, combinado com o sucesso dos estudos, em que era o primeiro da classe, garantiu a Joyce o respeito de seus companheiros e o ajudou a encarar a si mesmo como excepcional. (10) Tal coragem seria, de fato, uma marca determinante na vida de Stephen (e de Joyce). No entanto, mais tarde, o personagem ouve do pai que o reitor, elogiando sua coragem, rira junto ao padre prefeito, alertando-o, em tom de piada, de que este tomasse cuidado com o jovem, pois ele era capaz de mandar o padre virar as mos para cima para dar nove bolos em cada uma! Ah! Ah! Ah! E ouve o pai completar, dirigindo-se esposa: Isso te mostra o esprito em que eles tomam as crianas. Oh! No h como um jesuta na vossa vida, para a diplomacia! No se segue nenhuma resposta, nenhum pensamento de Stephen; h apenas o silncio, mudando o livro de cena. Stephen sempre fora obediente (mesmo quando encontrou apoio no reitor diante do caso dos culos, pensou que no haveria de se mostrar orgulhoso para o Pe. Dolan [o prefeito dos estudos]. Havia de ser muito sossegado e obediente; e desejou poder fazer alguma coisa por ele a fim de demonstrar que no estava com soberbia) e seu comportamento era e seria, mais tarde, considerado exemplar. Mas, no entanto, ele no tardou a ceder tentao do prazer, freqentando casas de prostitutas. Embora o segundo captulo do livro termine com ele beijando uma mulher, o seguinte o traz em busca da remisso, da confisso: a mesma boca que beijava, que se deliciava em orgias, se abriria, agora, comunho, em uma parte do livro que focaliza o retiro em honra de So Francisco Xavier: se, como pode acontecer, houver nestes bancos, alguma alma que tenha tido a desgraa inexprimvel de haver perdido a santa graa de Deus e ter cado em pecado grave, eu ferventemente confio e rogo que este retiro venha a ser o ponto de volta culminante na vida dessa alma. Rogo a Deus, por intermdio dos mritos do seu ardoroso servo Francisco Xavier, que tal alma seja reconduzida ao arrependimento sincero e que a santa comunho no dia de So Francisco deste ano seja um perene contrato entre Deus e essa alma, diz, na capela, o padre. Stephen sentiria, da por diante, que todas as palavras de pregao eram para ele:(...) contra o seu pecado, srdido e secreto, todo o dio de Deus era dirigido. A lmina do pregador tinha provado profundamente dentro da sua conscincia entreaberta; e sentia agora que a sua alma estava ulcerada pelo pecado. (...) Como um animal no monturo, a sua alma jazia tombada em sua prpria imundcie, mas os toques da trombeta do anjo a tinham arrancado l das trevas do pecado para a luz. (11)

dela, Stephen desce a nave da capela, com as pernas tremendo e o couro cabeludo se arrepiando em sua cabea como se mos de fantasmas o estivessem tocando. (...) E a cada passo tinha medo de j ter morrido, de que a sua alma j tivesse sido arrancada do estojo do corpo, de que estivesse mergulhando de cabea atravs do espao. A soluo para seu tormento seria a confisso: No havia outro jeito. Tinha de se confessar, dizer, e com palavras, o que tinha feito e pensado, pecado aps pecado. Como? Mas como? Confessaria tempo depois, mas no na capela do colgio e, sim, Bem longe; nalgum lugar escuro que iria desvendar, em sussurros, a sua vergonha. Mas, mesmo que o obediente Stephen (Jamais, uma s vez, desobedecera ou permitira que companheiros turbulentos o seduzissem para fora dos seus hbitos de obedincia regular) fosse visto, depois conforme se mostra no captulo 4 como algum com vocao ao sacerdcio, como escolhido pelo senhor para esse fim ( Num colgio como este [disse o padre diretor] h um, ou talvez dois ou trs rapazes que Deus chama para a vida religiosa. (...) E voc, Stephen, tem sido um desses), ele no tardaria a descobrir que sua verdadeira vocao era a literatura, que , como diz Burgess, sacerdotal o bastante, j que sua funo a transmutao de acidentes inferiores em essncia divina:A voz do diretor, concitando-o com os altivos conclames da igreja e com o mistrio e a fora do sacerdcio, repetia-se preguiosamente na sua memria. A sua alma estivera l mas no ouvira e no concordara, e sabia, agora, que a exortao que tinha escutado j tinha cado ociosamente em formal e mera conversa. Ele jamais haveria de balouar o turbulo diante do tabernculo, como padre. O seu destino era ser arredio s ordens sociais ou religiosas. A sabedoria do apelo do padre no o tocara assim to de pronto. Ele estava era destinado a aprender a sua prpria sabedoria separado dos outros, ou a aprender a sabedoria dos outros vagando, ele, por entre as armadilhas do mundo. (12)

O ltimo captulo do livro tem como elemento conforme observa Burgess o ar: nele, uma caminhada matinal de Stephen para a universidade recapitula brevemente o longo treinamento para o vo:Quando a alma de um homem nasce neste pas, redes so atiradas contra ela para impedi-la de voar. (...) Eu vou tentar voar atravs dessas redes. (13)

E seu vo se consubstancia por meio de sua verdadeira f: a arte. Stephen acaba criando uma teoria esttica, original, lgica e totalmente intransigente, no dizer de Burgess, que comenta: Stephen faz o que Aristteles no fez, e agora segue suas definies de piedade e terror com a delimitao estrita do termo trgico: Aristteles no definiu a piedade e o terror. Eu defini. (...) A piedade o sentimento que faz parar o esprito na presena de algo que

Segue-se, nesse captulo, uma longa pregao sobre o inferno; depois

seja grave e constante no sofrimento humano e o une com o sofredor humano. O terror o sentimento que detm o esprito na presena de seja l o que for que seja grave e constante no sofrimento humano e o liga sua causa secreta. (...) De fato, a emoo trgica uma face olhando para dois lados, para o terror e para a piedade, pois que ambos so faces dela. (...) Quero com isso significar que a emoo trgica esttica. Ou, antes, a emoo dramtica que o . (...) A emoo esttica (...) , por conseguinte, esttica. O esprito fica detido e suspenso acima do desejo e da repulsa. (14)

Ulysses: a Odissia em DublinTalvez seja pretensioso demais dar conta de apresentar um romance complexo como o Ulysses, de Joyce possivelmente o mais importante de todo o sculo XX em um nico artigo, feito com a finalidade de introduzir o leitor obra joyciana. Mas enfrentemos, com as devidas ressalvas de limitaes inerentes a tal propsito, esta homrica, densa embora breve tarefa. Para Antnio Houaiss, em seu artigo O artista da palavra, de 1982, at Dubliners, havia em Joyce um artista com a palavra; em Ulysses, cristaliza-se uma arte da palavra, para depois ser tentado o repto de uma arte apesar das palavras [referncia esta a Finnegans wake] (1). De certa forma, Ulysses abarcaria toda a literatura ficcional at ento; segundo Houaiss, Joyce teria intudo que toda a validade de sua proposta iria depender da validade de linguagem que a portasse ou em que fosse gestada e numa lngua que era (pobre Joyce irlands!) o ingls, por direito deste de conquista; e que (quem sabe?) ele Joyce, quereria destruir, erguendo o ltimo romance da lngua que, assim, seria pulverizada para todo o sempre, babelizando o Imprio odiado (2). Em seu rduo trabalho realizado num perodo conturbado de sua vida (1914-1921) Joyce valeu-se de uma espcie de fuso do drama e do pico gregos: do primeiro, toma a caracterstica de uma trama que se passa num nico dia; do segundo, usa a imaginao e o delrio para envolver a prpria histria humana. Assim, como observa Anthony Burgess, Joyce concebeu a ambio de escrever um romance moderno no apenas para rivalizar com as obras clssicas mas tambm para cont-las (3). Em seu texto, Joyce se serve (dentre diversas outras, que incluem mesmo a narrativa direta) da tcnica de stream of consciousness fluxo de conscincia, corrente de pensamento ou monlogo interior , a fim de revelar as aes dos personagens e seus motivos de forma muito mais livre e eficiente do que as utilizadas pelos romancistas tradicionais. O fluir contnuo e descontnuo do pensamento permite o conhecimento do mundo interior do personagem, s vezes catico, quase inconsciente; suas respostas ntimas diante dos estmulos que a vida lhe fornece. O dia escolhido para a ao de Ulysses 16 de junho de 1904, no qual ele, Joyce, viveu um encontro amoroso com sua futura mulher, Nora Barnacle (o aspecto autobiogrfico da obra joyciana se evidencia, mais uma vez, em Ulysses); o livro retrata o que se passa, nesse dia, na vida de seus personagens centrais, sem que ( semelhana dos outros livros do escritor) algo de extraordinrio acontea. Mas a trama aparentemente banal possui diversas camadas de sentido, diferentes nveis de leitura que se descortinam medida que o leitor se prov de informaes e referncias acerca da obra. De tais camadas, a principal aquela relativa adoo de uma obra clssica em particular: a Odissia, de Homero,

No dizer de Burgess, Joyce est de fato definindo o tipo de arte que faz, arte adequada. As artes que excitam o desejo ou a repugnncia so inadequadas, cinticas: so pornogrficas ou didticas. por isso, claro, que arte no adequada no pode ser popular, e que Ulysses e Finnegans Wake foram recebidos com fria e indiferena. (15) Assim, a teoria esttica de Stephen e a que alimentou a arte de Joyce se confundem: uma viso de mundo e de arte que se explicita e, depois, se realiza plenamente nos livros posteriores. o que se poder ver no prximo artigo, no qual enfocaremos o romance Ulysses.

Notas 1. Joyce, James. Retrato do artista quando jovem. Trad.: Jos Geraldo Vieira. So Paulo, Civilizao Brasileira, 1970. P. 1. 2. Idem, p. X. 3. Id., ib. 4. Burgess, Anthony. Homem Comum Enfim. Trad.: Jos Antonio Arantes. So Paulo, Companhia das Letras, 1994. P. 48. 5. Joyce, J. Op. cit. P. 46-47. 6. Burgess, A. Op. cit. 7. Trad.: Marcelo Tpia. (O poema original consta de: Joyce, J. Pomes Penyeach. Londres, Faber and Faber, 1975.) 8. Trad.: Marcelo Tpia. (O poema original consta de: Joyce, J. Pomes Penyeach. Londres, Faber and Faber, 1975.) 9. Burgess, A. Op. cit. 10. Anderson, Chester G. James Joyce. Trad. Eduardo Francisco Alves. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1989. P. 18. 11. Joyce, J. Op. cit. P. 111. 12. Idem, pp. 164-165. 13. Idem, p. 208. 14. Idem, p. 210. 15. Burgess, A. Op. cit. P. 63.

com a qual o romance mantm relaes e paralelos; cada um dos episdios de Ulysses corresponde a um episdio da Odissia, e a correspondncia se prolifera numa massa de referncias sutis (4). ( necessrio ter-se, portanto, em mente, ao menos uma sntese do que conta a Odissia, cuja apresentao geral foge aos limites deste artigo.) Assim, os personagens principais do romance Leopold Bloom, um judeu de ascendncia hngara, corretor de anncios; Stephen Dedalus, o jovem poeta do Retrato do artista quando jovem; e Molly Bloom, cantora profissional, mulher infiel e sensual de Leopold correspondem, respectivamente, a Odisseu (cujo nome latino Ulisses), Telmaco (filho de Odisseu) e Penlope (mulher de Odisseu), personagens da Odissia. Outros personagens de Ulysses Blazes Boylan e Buck Mulligan seriam, por sua vez, encarnaes dos usurpadores da casa de Odisseu, em taca. Sobre Bloom, importante notar-se que a palavra bloom uma anglicizao do hngaro virag (flor) tal nome resumiria o que o homem representa: algo admirvel mas despretensioso brotando da terra comum (5); este seria, portanto, o nome adequado ao heri que , apenas, um homem comum maduro, dotado de tolerncia e sabedoria, mas comum. Sua mulher, Marion (Molly) Tweedy , traria no sobrenome a sugesto do tecer de Penlope (que desfaz, durante a noite, o manto que tece durante o dia, para iludir seus pretendentes); mas, na verdade, Molly Penlope apenas no captulo final, quando Bloom retorna a sua casa ( semelhana de Odisseu, que retorna a taca) antes, ela a iludida Calipso, ninfa que habita uma ilha com uma caverna ao centro (durante todo o romance, o lugar dela a cama, sua quente caverna). Ao produzir sua narrao srio-cmica da Odissia (...) [e] sinopse completa das artes e das cincias (6), Joyce estabelece, tambm, uma relao entre cada episdio de seu livro com uma parte do corpo humano, criando, assim, um universo fsico correspondente ao prprio universo literrio. A cada episdio desenvolvido numa cena que tem hora e lugar tambm correspondem uma arte, uma cor, um smbolo e uma tcnica de criao. (Reproduziremos, no final deste artigo, o esquema publicado originalmente, com a colaborao do autor, na obra James Joyces Ulysses (1930), de Stuart Gilbert, e includo em edies posteriores do romance que traa os paralelos com a Odissia e inclui as demais correspondncias.)

Dedalus e amigos encontram-se na Martello Tower, na costa de Dublin (onde Joyce viveu por um breve perodo). Stephen, que fora a Paris para estudar medicina, retorna a Dublin devido doena da me, que encontra agonizante; sua morte incute-lhe um sentimento de culpa que o acompanhar at quase ao final de Ulysses, onde parece super-lo ao libertar-se do fantasma da me, que o persegue. Nas palavras de Bernardina da Silveira Pinheiro, o Stephen que encontramos nos trs primeiros captulos de Ulysses bem diferente daquele rapaz promissor, confiante e decidido que deixamos no final de A portrait. Agora nos deparamos com um jovem vestido sombriamente, hamletianamente de luto, sendo perseguido em fantasias e sonhos pelo fantasma da me . (7) Stephen, em Ulysses, est sem dinheiro, enraivecido com a convivncia com seus dois colegas (um, estrangeiro, representa a usurpao dos direitos de seu povo; o outro, irlands, algum que zomba dele e lhe pede dinheiro); vislumbra a necessidade de um pai espiritual: ele acabar sendo, no ltimo captulo do livro, o novo filho de Bloom e Molly, que substituir o filho legtimo, Rudy, morto com apenas onze dias (o casal tem uma filha, Milly, com quinze anos de idade). Nesta parte do livro, Joyce busca, na linguagem, correspondncias com a realidade, valendo-se tanto da narrativa direta como do monlogo interior de Stephen.

OdissiaEntramos, em seguida, na Odissia propriamente dita. Toda a trama a partir de ento se desenvolve em torno de dois acontecimentos centrais: o encontro adltero de Molly com Blazes Boylan (equivalente, como j se disse, a um dos usurpadores da casa de Odisseu, pretendentes ao casamento com sua mulher Penlope), que acontecer s quatro horas da tarde, e do encontro entre Bloom e Stephen, que levar a uma espcie de soluo para o relacionamento entre o primeiro e sua mulher. O dia de Bloom comea (episdio Calipso), apropriadamente, com o caf da manh que ele prepara para Molly; depois de dar leite para sua gata (Bloom, como Joyce, gosta dos felinos), sai para buscar, no aougue, um rim de porco, que pretende cozinhar para si mesmo. Sua caracterstica de carnvoro , assim, apresentada; sua predileo por vsceras (que reporta ao orculo grego que as utilizava para a adivinhao) reincidir ao longo do romance (entendese, portanto, que ele represente a carne). Ao voltar do aougue, apanha algumas cartas que chegaram uma de Milly, para ele, um carto dela para a me, e outra, para Molly; serve a esta, na cama, o desjejum; fica sabendo que a carta para ela de Blazes Boylan, e que este lhe levar o programa da turn de concertos que est organizando. Molly pergunta a ele sobre uma palavra , metempsicose, que vira em um livro; Bloom lhe responde que ela significa transmigrao das almas, para os gregos acreditavam que a gente podia transformar-se por exemplo num bicho ou numa rvore. O que eles chamavam

A epopia modernaTelemaquia

Ulysses comea como a Odissia: com Telmaco (Stephen). Este, por ser poeta, pensador (criara uma teoria sobre a pea Hamlet, de Shakespeare) representaria o esprito, enquanto Bloom (logo se conhecer o porqu), a carne. Na Telemaquia da epopia joyciana, regida pela teologia, Stephen

ninfa, por exemplo (8). Ninfa, como Calipso, que Molly. Bloom sabe que ela o trair tarde, e sai de casa (o nmero sete da Eccles Street) para s retornar noite. No incio de seu percurso por Dublin, Bloom num episdio correspondente aos lotfagos, da Odissia, para o qual Joyce utiliza uma tcnica que denomina de narcisismo e cujo rgo correspondente o sexo , depois de passar por outros lugares, entre eles uma farmcia onde precisava comprar um creme para Molly e onde adquire um sabonete com aroma de limo, vai ao banho pblico. Ele que costuma se masturbar ao banhar-se (j que no mantm, h tempo, como depois se fica sabendo, relaes sexuais normais com Molly) visualiza o prprio corpo, tendo, ao meio, um flcido pnis, uma lnguida flor:Antevia seu plido corpo reclinado ali em cheio, nu, num ventre de quentura, ungido de odorante sabonete fundente, lavado suavemente. Via seu corpo e membros ondondulando leve e sustido, boiando levitante, citrinamarelado: seu umbigo, boto de carne; e via escuros cachos emaranhados do seu tufo flutuante, plo flutuante ao fluxo em torno ao indolente pai de milhes, uma lnguida flor flutuante. (9)

, como se sabe, um corretor de anncios (canvasser, termo que se associa a canvas, vela de navio, que se associa a vento) e vai at o Freemans para negociar um espao para um cliente seu. Stephen tambm aparece na redao; o editor lhe pede para escrever algo para o jornal. O rgo que rege o captulo os pulmes; a arte, a retrica. O texto rico em recursos retricos, como figuras de linguagem e trocadilhos. O padro jornalstico evocado por meio do uso de manchetes, que anunciam cada seqncia de ao. Bloom sai da redao e volta depois, quando encontra o editor indo almoar com Stephen:ENTREVISTACOM O

DIRETOR

Sua fora viril j se anuncia perdida, estado coerente com a passividade diante da traio de Molly e da investida de Boylan, a quem deixa caminho livre. Mas toda a jornada do dia preparar o retorno de sua masculinidade, sua reconquista do estado de marido e de pai. Bloom vai, ento, ao cemitrio (episdio do Hades, mundo dos mortos na Grcia antiga), para o enterro de um velho amigo, Dignam. Vai junto com, entre outros, Simon Dedalus, pai de Stephen (que Bloom avista da carruagem) e um dos ex-amantes de Molly. Na cena do cemitrio, Bloom encontra apenas a morte: no acredita na imortalidade pessoal; ele perdeu a oportunidade de ganh-la atravs de um filho seu (10). Resta-lhe criar sua imortalidade por meio do contato com a imaginao intelectual o poeta [Stephen] que ir, quando estiver na idade mesma de Bloom, comear a registrar essa crnica (10), esse dia, essa histria. O rgo correspondente a este episdio do livro o corao, de cuja atividade constante depende, a cada momento, a prpria vida. No episdio seguinte, correspondente a olo (deus dos ventos, que, na obra de Homero, presenteia Odisseu com uma bolsa cheia de ventos tempestuosos), Bloom visita a redao do Freemans Journal and National Press. O clima da editora de um jornal lembra a intensidade ou a fria dos ventos, com a pressa da imprensa, o movimento, o barulho das impressoras; h irritao, correria e impacincia das personagens: No fui eu, senhor. Foi o grandalho que me empurrou, senhor. Ponha-o fora e feche a porta disse o diretor. Isso mesmo um furaco. (11)

apenas sobre este anncio dizia o senhor Bloom, acotovelando-se em direo aos degraus, resfolegando e retirando o recorte do bolso. Falei com o senhor Xaves [Keyes, no original] agorinha mesmo. Ele concorda com a renovao por dois meses, diz ele. Depois, ele ver. Mas quer um entrefilete para chamar a ateno no Telegraph tambm, na folha rosa do sbado. E quer o mesmo se no muito tarde falei com o conselheiro Nannetti no Kilkenny People. Posso encontr-lo na biblioteca nacional. Casa das chaves, compreende? Seu nome Xaves. um jogo de palavras com o nome. [O cliente quer a imagem de duas chaves cruzadas no anncio, alusivas a seu nome; Bloom vira um desenho assim no Kilkenny; ele, depois, o procurar na Biblioteca Nacional, quando se aproximar de Stephen]. (...) quer perguntar a ele se pode lamber meu cu? disse Myles Crawford [o diretor], estendendo os braos em nfase. Diga-lhe isso sem rodeios. (12)

Depois do pulmo, vem o esfago, por onde se engole: os seres gstricos vo almoar no captulo posterior, que corresponde ao episdio homrico dos lestriges, aqueles que devoraram companheiros de Odisseu. Bloom se perturba com as pessoas comendo, comendo carne, uma espcie de canibalismo um comportamento assustador e repugnante:Um homem cuspindo no prato: cartilagem semimastigada: sem dentes para mascamascamascar isso. Costeletas coriceas grelhadas. Tragando para liquidar logo com a coisa. (...) Eu no poderia comer nem um naco aqui. O sujeito afiando faca e garfo para comer tudo que tem diante, o gajo velho palitando a dentua. Pequeno engulho, cheio, ruminando o bolo. (...) Aquele sujeito empurrando dentro uma garfada de repolho como se sua vida dependesse disso. Bom golpe. Arrepia-me s de ver. (13)

Bloom cujo monlogo interior refere-se de formas diversas a ventos

Bloom se revela, nesta e em outras situaes, um homem superior. Foge do restaurante e vai ao Davy Byrnes para tomar borgonha e comer um sanduche de queijo (que corta em tiras finas), alm de azeitonas. Antes que ele saia do bar, os temas do captulo se juntam: ingesto, digesto e excreo um

processo baixo; teriam, as deusas antigas, canais traseiros? ele pretende certificar-se na Biblioteca, onde h esttuas de deusas nuas... Migramos, ento, do gstrico ao cerebral: o prximo captulo tem a Biblioteca Nacional como cenrio. l que Stephen Dedalus que domina o episdio apresentar sua teoria sobre Hamlet, de Shakespeare. O episdio homrico ao qual se relaciona Cila e Caribde (o rochedo e o sorvedouro); o rgo, claro, o crebro; a arte, a literatura; a tcnica, a dialtica socrtica (realizada a partir de proposio e contraposio). Se Stephen encontra na dura rocha do fato biogrfico (14) o caminho para seu pensamento acerca da obra shakespeariana, o sorvedouro figurado em [seu] monlogo interior (...) pensamentos e sensaes rodopiam (15). Para Stephen, William Shakespeare fora seduzido por Ann Hathaway, que lhe seria infiel: Escolheu ele mal? Ele foi escolhido, parece-me (16). A essa frase, segue-se, no original: If others have their will Ann hath a way (17) (Se outros tm sua vontade, Ann tem seu caminho) note-se os trocadilhos will William e hat a way Hathaway. Shakespeare corno, como Bloom: nessa parte do livro que ele se aproxima de Stephen, apresentado por Buck Mulligan. O captulo escrito de maneira a reunir diversas formas literrias: a lrica, a dramtica (em verso e em prosa) e o fluxo de conscincia. Assim, um tema aparentemente simples a aproximao de crebro, corao e sentidos numa simbiose de pai-filho tratado em vrios nveis entrelaados, alguns deles parecendo se contradizer (18). Depois desse exerccio do intelecto, ingressaremos de novo na vida simples de Dublin. o episdio das Rochas Movedias. Concebido espacialmente, como um mapa (Joyce o teria escrito diante de um mapa de Dublin), este captulo funciona como um labirinto, no qual Bloom e Stephen, embora andando pelas ruas, no se encontram. O labirinto regido por um automatismo mecnico, com o tempo marcado por um cronmetro; a preciso e o acaso fazem parte desse universo, a mquina csmica. Neste texto, o mecnico anseia a ser musical; nele, uma banda toca. Mas a msica se realizar o mecnico se transmutar em arte no episdio seguinte, o das sereias (no poema pico, Odisseu pede aos marinheiros que o amarrem ao mastro e tapem seus prprios ouvidos com cera, para que resistam a seu canto mortal). Aqui, encarnam os seres mitolgicos as garonetes do bar do hotel Ormond, Miss Douce e Miss Kennedy, que, ao incio, conversam atrs do balco uma bronzeada e, a outra, com cabelos dourados. Como descreve Munira Mutran, Bronze com ouro comea o episdio em que linguagem e msica se tornam muito prximos, e onde os mais variados sons, l de fora, e do bar, vo repetir-se. enquanto o tema sonoro principal aparece sucessiva e alternadamente. Assim (...) os cascos dos cavalos aoferritinam; algum do bar lasca pedaos de unha (...) as xcaras de ch tilintam na bandeja; Blazes Boylan, flertando com Miss Douce, pede-lhe para sonner la cloche (ricochetear a liga) (...) (19)Bronze com ouro ouviram os ferrocascos, aoferritinindo.

Impertxnentx txnentnentx. Taliscas, taliscando taliscas de polegunha crostuda, taliscas. Hrrido. E ouro enrubeceu mais. Uma vibrinota pfana assoprou. Assoprou. Azul aflorao ficou sobre O pinculo da cabeleira de ouro. (...) Vintm tilintou. Ponteiro apontou. Confisso. Sonnez. Eu podia. Ricochete de liga. No te deixar. Estalada. La cloche! Coxa. Estalada. Confisso. Quente. Minha doura, adeus! (20)

Joyce escreveu este captulo maneira de uma fuga musical (fuga per canonem): o motivo o tema das sereias; a resposta o monlogo de Bloom; o contramotivo (acompanhamento contrapontstico resposta) Blazes Boylan, tomando sua saideira antes de ir Eccles Street, para encontrar Molly. Cria-se um contraponto de ao, prenunciado no captulo anterior; entre o motivo anunciado e a resposta h interldios, realizados pelas canes interpretadas pelo senhor Dedalus, tenor, e por Ben Dollard, baixo. Boylan sai tlintlando, rumo casa de Bloom:Bloom ouviu um tlim, um sonzinho. Ele sai. Leve soluo de alento Bloom expirou nas silentes flores tristazuladas. Tlintlando. Foi-se. Tlim. Ouve. (21)

Conforme observa Burgess, a tcnica musical permite que Joyce faa com que uma nica palavra soe como todo um mundo de harmonia: a palavra tinido, por exemplo, representa a partida de Boylan numa sege para ver Molly Bloom e, por antecipao, o balanar das molas adlteras na cama. Mais tarde, Boylan bate porta de Molly:Com um galo com uma curra. Tape. Tape. Tape. (22)

O ato recorrente, aparecendo, antes e depois, diversas vezes, com outras formas:Algum toca uma porta, toca com um coto, cutucou o Paul de Kock, com um falastro casto bato, com um cuco curracurracurra cuco. Cucocuco. Tape. (...) Batida porta. ltimo retoque de faceirice. Galocurracurra. Tape. Tape. Tape. Tape. A mulher dele tem uma bela voz. Ou tinha. Que tal? perguntou Lidwell.

Bloom tem conscincia do que acontece em sua casa, e, com sua sexualidade passiva, tem certo prazer na aceitao do adultrio. Mas, mais tarde, o cuco voltar a lhe soar na mente... O captulo seguinte, correspondente ao episdio do Ciclope (gigante cujo nico olho Odisseu perfura, aps engan-lo dizendo-se chamar Ningum) se passa numa taverna (a caverna do monstro); o rgo que o rege o msculo, smbolo da fora; a arte, a poltica; nele acontecem dilogos, discusses, como em todo bar. No pub h um nacionalista irlands, O Cidado, cuja viso limitada (um olho s...) o faz odiar estrangeiros. Ao contrrio dele, Bloom, judeu, quase hngaro, no acredita na fora e prega o amor:O amor ama amar o amor. A enfermeira ama o novo farmacutico. O guarda-civil 14A ama Mary Kelly. Gerty MacDowell ama o rapaz que tem a bicicleta. (...) Li Chi Han ama bez Cha Pu Chow. Jumbo, o elefante, ama Alice, a elefanta. O velho senhor Verschoyle de trombeta acstica ama a velha senhora Verschoyle de olho divergente. (...) A senhora Norman W. Tupper ama o oficial Taylor. Tu amas certa pessoa. E essa pessoa ama aquela outra pessoa porque cada um ama algum e Deus ama a cada um. (23)

oh! oh! em xtases e ele golfou de si uma torrente em chuva de caracis de cabelos dourados e eram todos verdes estrelas rociadas caindo douradas, oh to vvidas! oh to boas, doces, boas! (25)

Como reflete Burgess, um encontro sexual direto seria vulgar, adequado apenas a libertinos como Boylan; a Bloom est reservada a dignidade do ritual, do rito de Onan. Bloom obtivera um prazer com uma virgem que no propriamente uma traio, livre de culpa um alvio pelo qual agradece; de certa forma, saiu-se melhor que Boylan. Mas no esquecer por muito tempo a traio de Molly e seu estado de corno mais tarde, no comeo da noite, estando ele na casa do padre, o cuco soa, ao anunciar as nove horas: Cucorno Cucorno Cucorno (Cuckuo, Cuckuo, Cuckuo, no original) (26). No episdio seguinte, Bloom vai maternidade (onde a senhora Purefoy, como soube durante o almoo, est tendo problemas para dar luz); a acontece o primeiro encontro frtil entre Bloom e Stephen, que se sentam juntos mesa. Joyce faz, neste captulo correspondente ao episdio homrico das Vacas (ou Bois) do Sol (ou de Hlio) um esboo histrico da prosa inglesa desde o anglosaxo, mostrando seu crescimento (como o de um embrio) at sua forma hbrida atual; para tanto, faz pastiches literrios (imita a Bblia, o estilo de diversos autores...). A correspondncia com a Odissia se revela logo no incio, numa evocao do deus Hlio: Envia-nos, brilhante, iluminado, Hornhorn, vivificamento e uterifruto. Burgess v na forma duplicada Hornhorn uma referncia aos dois bois, bicornos, do deus Hlio (os marinheiros de Odisseu mataram os bois sagrados que representam a fertilidade ao chegarem ilha triangular da Siclia). A parte do corpo, aqui, o ventre; a arte, a medicina; o smbolo, as mes imagem da fertilidade, qual se liga a prpria criao literria. No dcimo quinto captulo, Bloom segue Stephen zona de prostituio, como numa obrigao de pai protetor. Aqui tudo (ou quase tudo) fantasia e alucinao (esta, a tcnica nominada por Joyce para o episdio, correspondente ao de Circe, na obra homrica); a arte a mgica; o smbolo, a puta.A MARAFONA : (Sua voz resoprando ressurdamente) Psiu! Vem c que quero falar. Cabauda aqui dentro. Psiu. STEPHEN: (Altius aliquantulum) Et omnes as quos pervenit aqua ista. A MARAFONA: (Cospe na esteira deles seu jorro de veneno) Medicalhos do Trinity. Trompa falopiana. So pices sem pnis. (27) (...) AS PUTAS: Vais longe, moo bonito? Que tal tua perna do meio? Tens um fsforo contigo? Vem c que eu acendo ele. (28)

O Cidado, a certa altura, provoca Bloom por ser judeu; este responde, e o outro atira contra ele uma lata de biscoitos, mas, bbado, erra a mira, como o Ciclope cego. Bloom no atingido pela fora; escarnecido por ter usado a palavra amor, ele cr na caridade individual, para ele instrumento da salvao do mundo. Aps o embate, depois de ser vtima de discriminao e violncia, um presente surge para Bloom, na praia de Sandymount. L, descansando nas rochas, ele v Gerty MacDowell, encarnao por metempsicose de Nauscaa, da Odissia (filha do rei Alcnoo, que acolhe Odisseu na praia em vez de fugir, como suas acompanhantes , quando este chega, sobrevivente ao mar, nu). Gerty uma moa bela e doce, dada a sonhos e leitora de publicaes populares femininas (bela e coxa, como constatar, depois, Bloom). Uma bola jogada ao longe e devolvida por Bloom faz com Gerty o note, atraindo-se por ele; ela no foge da atrao:(...) Mas Gerty era diamantino-dura de tanta teima. No tinha vontade alguma de se deixar levar pelos outros no bico e no pique. (...) Cruzou seu olhar com o dele, por um instante, e uma luz irrompeu de dentro dela e aureoloua. Paixo brasa-acesa naquele rosto, paixo silente como tumba e isso a fez sua. (24)

Ela se deixa possuir por ele na imaginao, e ele a possui em fantasia, masturbando-se (a cena se combina a fogos de artifcio que rompem o cu):E ento um foguete disparou e estrondeou em estampido cego e oh! ento a vela romana encandeou e era como se um suspiro de oh! e todos gritaram

Embora no bordel, o lugar da cena, Bloom est magicamente imune: sua flor da erva mgica (que, dada por Mercrio a Odisseu, salva-o do encantamento de Circe, que o transformaria em porco) seu prprio pnis flcido, desinteressado depois da ejaculao na praia sua lnguida flor flutuante, que o proteger da seduo. Concebido em forma dramtica, na qual se sucedem as falas das personagens, este episdio fantstico parece antecipar a linguagem onrica de Finnegans wake (o ltimo romance de Joyce, do qual trataremos no prximo artigo), embora a alucinao prevalea sobre o sonho. H relaes com a pea Sonho de uma noite de vero, de Shakespeare (que em dado momento do captulo aparece em uma caricatura cornuda), com o Fausto, de Goethe, e com as Tentaes de Santo Anto, de Flaubert. Se tomarmos conforme observa Burgess , uma pera como referncia analgica a Ulysses, teremos, depois de dois atos e muitos temas apresentados, um terceiro ato sntese de formas (em que no se apresenta nada de novo) e, em seguida, a fantasia livre, baseada tambm em temas j existentes esta parte seria o episdio do bordel. Nele surgem inmeras personagens, vivas e mortas, reais e ficcionais, que entram e saem; tudo cabe nesse mundo: pessoas aparecem transformadas em animais; objetos ganham voz, como o sabonete que ele leva consigo. As prostitutas de Joyce (Florry, Zoe e Kitty, a primeira representando a flora, a segunda a fauna e a terceira o reino mineral) so fadas. Circe Bella Cohen, a dama do bordel, que, transformada em homem, muda seu nome para Bello, no contexto masoquista da fantasia de Bloom este tem diversas fantasias de humilhao, como o jornaleiro que passa anunciando uma edio que contm os novos endereos de todos os cornudos de Dublin (o trecho a seguir ocorre durante uma espcie de jri a que Bloom submetido, devido a suas imaginaes bestiais:)A HONORVEL SENHORA MERLYN TALBOYS: (...) Porco de co que sempre o foi desde cachorrinho! Ousar dirigir-se a mim! Vou flagel-lo pelas ruas pblicas at que fique negro de roxo. Vou enterrar minhas esporas nele rosetas adentro. um cornudo notrio. (Zurze sua chibata de caa selvagemente no ar). Tirem-lhe as calas sem perda de tempo. Venha c, cavalheiro! Rpido! Pronto? BLOOM: (Tremendo, comeando a obedecer) O tempo foi to quente. (...) DAVY STEPHENS: Mensageiro do Sagrado Corao e Evening Telegraph com o Suplemento do Dia de So Patrick. Contendo os novos endereos de todos os cornudos de Dublin. (29) No entanto, como sabemos, sente, tambm, prazer com sua humilhao: o cuco da casa do padre reaparece; ele assiste cena da cpula entre Molly e Boylan: A VOZ DE BOYLAN: (Docemente, roucamente, da boca do estmago) Ah! Bomblazquirruca burucarquirrasca! A VOZ DE MARION: (Roucamente, docemente subindo-se-lhe garganta) Oh!

Uichiquibeijmaijpuunapuuhuc! BLOOM: (Os olhos selvagemente dilatados, agarra-se a si mesmo) Mostra! Mete! Mostra! Enfia! Mais! Dispara! (30)

Mas nem tudo alucinao um fato real ganha importncia no captulo: Stephen leva uma surra de dois soldados britnicos, e Bloom, apaziguador e protetor, embora no tenha conseguido impedir que ele apanhe, assume a responsabilidade pelo poeta diante da polcia. J no h mgica; sucedem-se dilogos sem alucinao ou fantasia. Mas ainda h lugar para a derradeira viso do captulo: Bloom v Rudy, seu filho morto aos onze dias, j crescido, lendo um livro em hebraico:(...) Contra o muro escuro uma figura aparece lentamente, um menino louro de onze anos, um trocado, raptado, vestido Eton com sapatos de cristal e pequeno elmo de bronze, sustendo um livro na mo. L da direita par a esquerda inaudivelmente, sorridentemente, beijando a pgina.) BLOOM: (Maravilhado, chama inaudivelmente) Rudy! Rudy: (Mira sem er nos olhos de Bloom e segue a er, beijar, sorrir. Tem uma delicada cara malva. (...) Um arrozinho branco espia do bolso do seu colete. (31)

Este captulo o mais extenso do livro pela forma como absorve e mistura referncias fragmentrias a outros episdios, presta-se observao (como o faz Burgess) da natureza de Ulysses como um romance que enfatiza a importncia dos padres musicais: na forma da sonata, no se introduz qualquer tema ou melodia sem que se pretenda repeti-los posteriormente, podendo-se transform-los, combin-los, recri-los. De maneira anloga, para Joyce tudo significativo: a obra, como a msica, uma tapearia que cresce; encontra-se equilbrio pelas repeties transformadas de seus elementos. Nele, a culpa de Stephen retorna para ser, finalmente, superada: diante do fantasma da me que o persegue e pede que se arrependa, Stephen, desesperado, suplica que o deixe em paz; como isso no acontece, ele despedaa, com a bengala, o candelabro do bordel. A escurido / cegueira momentnea, provocada pelo gesto violento de Stephen (...) no sugere aqui punio mas o possvel renascimento do jovem. Ao cortar o cordo umbilical que, at ento, ainda o ligava me, ele parece se ter libertado dela e se tornado um novo homem (32).

NostosMas chega a hora de voltar para casa. Na epopia de Homero, Odisseu supostamente morto retorna para liquidar aqueles que, devido sua longa ausncia, invadiram seu lar, consumiram seus bens e disputavam sua mulher.

Comea, em Ulysses, o regresso de Bloom a Eccles Street, onde recuperar, de maneira particular, sua condio viril. No primeiro dos trs captulos dessa parte final do romance, Stephen e Bloom vo, juntos, tomar caf e comer um po num abrigo de cocheiros. L encontram W. B. Murphy, da escuna Rosevean, que ancorara s onze da manh, vinda de Bridgwater com uma carga de tijolos. O velho marinheiro conta mentiras; diz conhecer o pai de Stephen. Aqui, o episdio homrico correspondente o Eumeu (Odisseu encontra Telmaco seu filho na guarita do porqueiro Eumeu; o heri precisa disfarar-se para no ser reconhecido em taca). O rgo so os nervos; a arte, a navegao, cone da viagem e do retorno; o smbolo, os marinheiros. Aps um tempo de conversas que, cheias de mentiras, enganaes e falsas aparncias, coerentes com o lugar e o adiantado da hora (uma da manh) se prestam ao momento (o retorno de uma perambulao) , Bloom e Stephen saem do abrigo. Stephen canta, e Bloom admira sua bela voz de tenor. A viagem acabou; Bloom e Stephen caminham at o nmero sete da Eccles Street. Este penltimo captulo construdo com perguntas e respostas, feitas maneira da cincia (a arte escolhida); h descries, feitas em detalhes:Que cursos paralelos seguiram Bloom e Stephen retornando? Comeando unidos ambos a andadura normal de marcha da praa Beresford eles seguiram na ordem nomeada as ruas Gardiner Baxa e Mdia e quadra de Mountjoy, oeste: depois, em andadura reduzida, cada um tomando a esquerda pela praa Gardiner (...) Aproximando-se (...) ambos cruzaram a redonda diante da igreja de So Jorge diametralmente, a corda em qualquer crculo sendo menor que o arco que subtende. De que deliberou o duuvirato durante o seu itinerrio? Msica, literatura, Irlanda, Dublin, Paris, amizade, mulher, prostituio, dieta, a influncia de luz-de-gs ou luz-de-arco ou lmpada-de-filamento no crescimento de rvores para-heliotrpicas adjacentes (...) a nao irlandesa, educao jesutica, carreiras, o estudo da medicina, o dia passado (...) (33)

Prontamente, inexplicavelmente, com amicabilidade, gratamente, foi declinada. (34)

Mas Stephen ainda no vai embora; eles propem inaugurar um curso preestabelecido de instruo italiana, local a residncia do instrudo. Inaugurar um curso de instruo vocal, local a residncia da instruda. Algum tempo depois se despedem; Bloom fica sozinho:Sozinho, que sentiu Bloom? O frio do espao interstelar, milhares de graus abaixo do ponto de congelamento ou o zero absoluto de Fahrenheit, centgrado ou de Raumur: as admonies incipientes da aurora prxima. (35)

Na sala, observa que os mveis foram rearranjados por Molly; seguem-se pensamentos, devaneios, esperanas, sonhos; ele relaciona, exaustivamente, o contedo de gavetas e estantes; faz um inventrio dos pensamentos e sensaes provocados por objetos que guarda, aos quais acrescenta a carta (a quarta) de Martha Clifford, que recebera (com o pseudnimo de Henry Flower) nesse dia (e que lhe dera, durante o dia, certo conforto juntamente com a vivncia com Gerty, na praia quanto sua condio de trado). Antes de ir para a cama, relembra os acontecimentos do dia, que vincula a ritos e qualificaes:Que causas consecutivas passadas de fadiga acumulada, preaprendidas antes de erguer-se, recapitulou Bloom, silenciosamente, antes de erguerse? A preparao do desjejum (oferenda de fogo) congesto intestinal e defecao premeditativa (sacrrio): o banho (rito de Joo): o funeral (rito de Samuel): o anncio de Alexander Xaves (Urim e Tumin): o almoo insubstancial (rito de Melquisedec): a visita ao museu nacional e biblioteca pblica (lugar santo): a buquinagem ao longo do casario Bedford, Arco dos Mercadores, Cais Wellington (Simchath Torah): a msica no Hotel Ormond (Shira Shiram): a altercao com um troglodita truculento no estabelecimento de Bernard Kiernam (holocausto); um perodo vazio de tempo incluindo uma ida de carro, uma visita a uma casa de mortos, uma despedida (ermo): o erotismo produzido por exibicionismo feminino (rito de Onan): o parto prolongado da senhora Mina Purefoy (rito da oblao): a visita casa desordeira da senhora Bella Cohen, 82, rua Tyrone, baixa, e subseqente bafaf e rixa fortuita na rua Beaver (Armagedo): perambulao noturna ao e do abrigo de cocheiros, ponte de Butt (expiao). (36)

Como esquecera a chave no bolso das calas que usara no dia anterior, Bloom utiliza de um estratagema para entrar em casa: sobe sobre a mureta da rea, galga a grade e pula do outro lado; entra em casa e abre a porta para Stephen. Eles tomam uma xcara de chocolate, aps uma longa exposio (cheia de dados e nmeros) acerca do trajeto da gua at a torneira... A conversa prossegue; mais tarde, Bloom convida Stephen a dormir em sua casa:Que proposta fez Bloom, dimbulo, pai de Milly, sonmbula, a Stephen, noctmbulo? Passar a repousar as horas inervenientes entre quinta-feira (virtual) e sextafeira (normal) num cubculo extemporizado num apartamento imediatamente acima da cozinha e imediatamente adjacente ao apartamento dormitrio de seu hspede e hspeda. Foi a proposta de asilo aceite?

No quarto, Bloom pe suas roupas na cadeira e mete-se na cama. Entra nela reverentemente, o leito da concepo e do nascimento, da consumao do casamento e da quebra do casamento, do sono e da morte. Nela, seus membros encontram nova roupa de cama limpa, odores adicionais, a presena de uma forma humana, mulheril, dela, a marca de uma forma humana, macha, no sua, algumas rosquinhas, algumas migas de carne enlatada, recozida, que ele

removeu (37). Em seguida, poderia ter sorrido:Se tivesse sorrido por que sorriria ele? Para refletir que cada um que entra se imagina ser o primeiro a entrar enquanto sempre o ltimo de uma srie precedente ainda que o termo primeiro de um sucedente, cada um imaginando-se ser o primeiro, ltimo, s e nico, enquanto nem o primeiro nem o ltimo nem o s nem o nico numa srie originando-se no e repetida ao infinito. (38)

ao mesmo tempo artista (poeta), filho substituto e possvel amante... Em troca, pede apenas os dois ovos (seus testculos, sua macheza, de volta) na cama. Bloom, assim, capaz, ainda, de surpreend-la; ele, de certa forma, a reconquista, apesar dos defeitos que ela conhece bem e relembra. Ele merece seu agrado, ainda que este inclua a humilhao; ela, de sua parte, isenta-se de culpa:(...) ento eu boto em frente dele os ovos dele e ch na xcara-bigode (...) e vou pr a minha melhor combinao e calas deixando ele dar uma olhada pra fazer o pirulito dele ficar em p eu vou deixar ele saber se isso o que ele queria que a mulher dele foi fodida sim diabo bem fodida mesmo at quase o pescoo no por ele 5 ou 6 vezes sem desgrudar (...) tenho a inteno de contar a ele cada coisinha e fazer ele fazer na minha frente servindo ele bem direitinho tudo culpa dele se eu sou uma adltera (...) (45)

Segue-se a sua prpria srie, a srie de amantes de Molly, que relaciona 25 nomes, entre eles Mulvey (o primeiro), o Padre Corrigan, Blake Dillon (o prefeito de Dublin), Simon Dedalus, Andrew Burke, Francia Brady, um engraxate do Correio Geral, Blazes Boylan... Suas reflexes o levam, ento, a quatro sentimentos antagonsticos (inveja, cime, abnegao, equanimidade) que, depois, explica e justifica; justifica, tambm, o prevalescimento dos dois ltimos sobre os primeiros:Por que mais abnegao que cime, menos inveja que equanimidade? De ultraje (matrimnio) a ultraje (adultrio) a se ergueu nada seno ultraje (copulao) embora o violador matrimonial da violada matrimonialmente no tivesse sido ultrajado pelo violador adltero da violada adulteramente. (39)

Para ela, apesar de suas imperfeies, ele gentil, sabe como no lidar com uma mulher... Bloom, com sua passividade, matou os pretendentes. Na parte final do monlogo (cujos fragmentos aparecem, aqui, em traduo de Haroldo de Campos), ela relembra seu namoro com Bloom; ela, antes de adormecer, diz sim vida, numa gloriosa fantasia que combina Deus, beijos de Bloom e promessa:(...) o sol brilha para voc ele me disse no dia em que estvamos deitados entre os rododendros no cabo de Howth com seu terno de tweed cinza e seu chapu de palha no dia em que eu o levei a se declarar sim primeiro eu lhe dei um pedacinho de doce de amndoa que tinha em minha boca e era ano bissexto como agora sim h 16 anos meu Deus depois daquele longo beijo quase perdi o flego sim ele disse que eu era uma flor da montanha sim certo somos flores todo o corpo da mulher sim (...) ele me beijou sob o muro mourisco (...) e ento convidei-o com os olhos a perguntar-me de novo sim ele perguntou-me se eu queria sim dizer sim minha flor da montanha e primeiro enlacei-o com meus braos sim e puxei-o para mim para que pudesse sentir meus seios s perfume sim e seu corao disparando como louco e sim eu disse sim eu quero Sim. (46)

Sobre uma possvel retribuio, conclui que: assassnio, nunca; divrcio, no agora; exposio por testemunho, no ainda; se alguma, positivamente, conivncia, introduo de emulao (...). Surgem sinais de sua ante-satisfao: uma ereco aproximativa; beija os fornudos ricudos amareludos cheirudos meles de seu [de Molly] rabo (40); acaba adormecendo reclinado lateralmente, esquerda, com as pernas direita e esquerda flexas, o indicador e o polegar da mo direita repousando na ponte do nariz (...) a criana-homem vergada, o homem-criana no ventre (41) (ao que consta, a mesma posio na qual Joyce costumava deitar-se...), correndo em sua mente uma srie de nomes (Simbad o Mareiro e Tinbad o Tareiro e Jinbad o Jarreiro e Whinbad o Wahreiro (...)) (42). Ele, assim, embarca no sono, viaja; no o veremos mais. Molly (que, no dizer de Antonio Houaiss, vinga o ultraje trs vezes milenar de ser coisa do marido e esperar tecendo caraminholas (43)) est acordada. O ltimo episdio do romance seu famoso monlogo, longo, iniciado e terminado com um sim, dito sem qualquer pontuao: puro fluxo de conscincia, pura corrente de pensamento; nele, ela revela sentir que encerra em si todos os homens que conheceu... No comeo, ela pensa em Bloom: Sim porque ele nunca fez uma coisa como essa antes como pedir pra ter seu desjejum na cama com um par de ovos (...) (44). com esse pedido que Bloom recupera sua masculinidade, seu lugar de marido, de homem, seu lugar na cama, na casa. Se Boylan lhe trouxera vinho, pssegos e sua fora sexual, Bloom trouxera Stephen,

Como observao final sobre Ulysses, vale a pena reproduzir o seguinte trecho de um artigo de Paulo Vizioli:Com sua diviso [em arte representada por Stephen , e cincia representada por Bloom], o intelecto humano, ou seja, o princpio masculino inseminador, que eles constituem, torna-se estril, impotente para satisfazer e fecundar o princpio feminino, a Natureza ou Gea-Terra, encarnada por Molly Bloom, amorfa e cheia de sementes, sempre afirmativa, espera. Apenas a reunificao do princpio masculino, a volta crena, a reconstruo do mito, poderia restituir a fecundidade e dar sentido vida. Mas Joyce no sugere qualquer soluo (afinal, o livro um epifania); somente acena com a possibilidade da recorrncia, do retorno a uma era de f pela prpria evoluo cclica da histria. (47)

(Esquema de Ulysses)

20. 21. 22. 23. 24. 25. 26. 27. 28. 29. 30. 31. 32. 33. 34. 35. 36. 37. 38. 39. 40. 41. 42. 43. 44. 45. 46. 47.

Notas 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14. 15. 16. 17. 18. 19. Houaiss, Antnio. O artista da palavra. In: Mutran, Munira e Tpia, Marcelo (org.). Joyce no Brasil. So Paulo, Olavobrs, 1997, p. 119. Idem, pp. 120-121. Burgess, Anthony. Homem Comum Enfim. Trad.: Jos Antonio Arantes. S. Paulo, Companhia das Letras, 1994. P. 88. Idem, p. 90. Idem, p. 112. Idem, p. 91. Pinheiro, Bernardina da Silveira. Sentimento de Culpa em Stephen Dedalus: Freud / Lacan. In: Mutran, Munira e Tpia, Marcelo (org.). Joyce no Brasil. S. Paulo, Olavobrs, 1997, p. 136. Joyce, James. Ulisses. Trad.: Antonio Houaiss. Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1982. P. 73. Joyce, James. Ulisses. Trad.: Antonio Houaiss. Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1982. P. 97. Burgess, A. Op. cit., p. 124. Joyce, J. Op. cit., p. 146. Idem, p. 166. Idem, p. 192. Idem, ib. Burgess, A. Op. cit., p. 134. Joyce, J. Op. cit., p. 217. Joyce, James. Ulysses. Londres, Penguin Books, 1992. P. 244. Burgess, A. Op. cit., p. 140. Mutran, Munira. Nota ao 11 episdio de Ulysses, de J. Joyce As sereias. In: Tpia,

Marcelo (org.). Joyce revm. S. Paulo, Olavobrs, 1999. P. 9. Joyce, J. Ulisses (op. cit.). P. 290-291. Idem, p. 304. Idem, p. 326. Idem, p. 379. Joyce, J. Fragmento do episdio Nauscaa, de Ulisses. Trad.: Haroldo de Campos. In: Campos, Haroldo (org.). Ulisses: a travessia textual. S. Paulo, Olavobrs, 2001. P. 21. Joyce, J. Ulisses (op. cit.). P. 417-418. A forma cucorno apresentada por Jos Antonio Arantes em sua traduo do livro Homem Comum Enfim (op. cit.). No original em ingls, cuckoo significa tanto o canto do cuco como tolo, idiota. Joyce, J. Ulisses (op. cit.). P. 487. Idem, p. 503. idem, p. 519. Idem, p. 599. Idem, p. 633. Pinheiro, Bernardina da Silveira. Op. cit., p. 138 . Joyce, J. Ulisses (op. cit.), p. 698-699. Idem, p. 736-737. Idem, p. 748. Idem, pp. 779-780. Idem, p. 783. Idem, ib. Idem, p. 786. Idem, p. 787. Idem, p. 790. Idem, p. 791. Houaiss, Antnio. Op. cit., p. 120. Joyce, J. Ulisses (op. cit.), p. 791. Idem, p. 843. Joyce, J. Fragmento final do monlogo de Molly Bloom. Trad.: Haroldo de Campos. In: Joyce no Brasil (op. cit.), p. 38. Vizioli, Paulo. A vida e a obra de James Joyce. In: Joyce no Brasil (op. cit.), p. 115.

Here Comes EverybodyConsiderado por muitos uma obra ilegvel, impenetrvel, o ltimo romance de Joyce (as aspas so usadas, aqui, para aludir ao fato de que a obra se afasta, e muito, dos padres relativos ao que se costuma chamar de romance) , de fato, difcil, complexo, dotado de uma teia que nos parece infinita de relaes, de mltiplos nveis de leitura; constri um mundo a ser descoberto, um universo a ser desvendado. Ao se aproximar dele, a primeira impresso ser, inevitavelmente, de estranheza, associada sensao de insupervel incompreenso; contudo, o aparentemente insupervel no o : o entendimento e, tambm, o divertimento sero propiciados ao leitor paciente, que se disponha a penetrar, com dedicao e disposio, num cosmo ao mesmo tempo intrincado e simples, semelhana de nosso prprio universo, semelhana do prprio homem. O segredo ler o livro como se vive um sonho, porque assim sua linguagem; se Ulysses diurno, Finnegans wake noturno, um sonho que algum sonha e do qual todos fazemos parte. (Quem sonha, como se vem a saber, o taverneiro Humphrey Chimpden Earwicker, em seu quarto sobre seu prprio bar, em Dublin.) Como bem sabido, no sonho tudo possvel: morrer e voltar a viver, transformar-se, ser outro, ser outro algo, mudar de lugar e de tempo; para o mundo onrico, imerso na intemporalidade e simultaneidade do inconsciente, no h limites. Assim, em Fw tudo pode acontecer, e tudo acontece na criao sonhadora de Joyce, compondo inmeras dimenses de sentido, que no se podem apreender em uma, ou, mesmo, vrias leituras. Por isso, outro segredo para usufruir do livro no pretender compreender tudo de uma vez, ou identificar logo todas as referncias contidas no texto: estas vo se revelando pouco a pouco. Paradoxalmente, a criao mxima de Joyce tanto no sentido de sua inventividade como no do porte da tarefa, assombrosamente gigantesco merecer, nesta modesta srie de artigos introdutrios a sua obra, um texto relativamente breve, sem que se adentre nos detalhes da trama que tece seu contedo. Isso porque no se poderia realizar, creio, em dimenses um tanto mais breves ou mesmo semelhantes, um artigo que sequer se aproximasse, em resultado, de Introduction to a strange subject (integrante do livro A skeleton key to Finnegans wake (1), de Joseph Campbell e Henri Morton Robinson), que figura, em portugus (com o ttulo Introduo a um assunto estranho, em traduo de Augusto de Campos) no volume Panaroma do Finnegans wake (2), de Augusto e Haroldo de Campos, livro este que foi, durante dcadas (sua primeira publicao se deu em 1962) a nica e excelente via de acesso do leitor brasileiro ao romance, e segue sendo uma prioritria porta de entrada, acessvel em novas edies. O artigo referido ser tomado (alm, claro, da j to citada, nestes artigos, obra de Anthony Burgess (3), a melhor iniciao geral

obra joyciana existente), aqui, como referncia para esta brevssima iniciao ao livro de Joyce. Hoje o leitor de lngua portuguesa tem o privilgio de dispor, tambm, da obra inteiramente traduzida e publicada em edio bilnge (em cinco volumes) (4), rica em notas explicativas, graas faanha levada a cabo por Donaldo Schller.

Morte e renascimentoPodemos comear a tratar do livro pela cano que lhe empresta o nome: Finnegans wake, a balada irlandesa-americana de ritmo contagiante que conta a histria do pedreiro Tim Finnegan. Este, dado bebida, cai de uma escada, quebra a cabea e dado como morto; levado sua casa para o velrio (wake tanto significa despertar como se refere a uma forma festiva de velrio tradicional na Irlanda, em que se bebe e se come), ele posto sobre a cama, colocando-se, a seus ps, um barril de usque e, cabeceira, um barril de cerveja, destinado s (doze) pessoas presentes. Durante uma briga entre os convidados, derruba-se usque sobre Tim, que, por isso, acorda e participa da folia. A morte e a ressurreio, o fim e o incio, so o tema fundamental do livro de Joyce, batizado em portugus, por Haroldo de Campos, como Finnicius revm (nome tambm adotado por Schller), evidenciando-se a idia de fim e incio contida no original (Finn-again). Assim, Finnegans wake comea no meio de uma frase, continuao do final do livro: quando se termina a leitura, volta-se ao incio. A natureza do texto cclica, como cclica a histria da humanidade na viso do filsofo italiano Giambattista Vico, tomada por Joyce como referncia para a compreenso de mundo que norteia seu ltimo romance. Segundo a noo de Vico, a histria passa por quatro estgios, que compreendem trs eras ou idades teocrtica, aristocrtica, democrtica (ou divina, herica e humana), mais o ricorso, a fase de transio (que leva ao retorno), terminada por um trovejar que compem um ciclo quadripartido, ao fim do qual quando o trovo aterroriza e redesperta a humanidade para o sobrenatural o ciclo comea a girar de novo, a partir da teocracia primitiva. (Vejamos, a seguir, o incio do livro no original e em trs verses distintas para o portugus; neste primeiro trecho, j ressoam as iniciais HCE da personagem que o progenitor da raa, aqui contidas no local da ao: Howth Castle Ecercanias.riverrun, past Eve and Adams, from swerve of shore to bend of bay, brings us a commodius vicus of recirculation back to Howth Castle and Environs. (5) (Fw, 3) riocorrente, depois de Eva e Ado, do desvio da praia dobra da baa, devolve-nos por um commodius vicus de recirculao devolta a Howth Castle Ecercanias. (6)

rolarrioanna e passa por Nossenhora dOhmems, roando a praia, beirando Abahia, reconduz-nos por cominhos recorrentes de Vico ao de Howth Castelo Earredores. (7) correrio, depois de Eva e Ado, do desvio da praia dobra da baa, nos traz por um commodius vicus de recirculao de volta a Howth Castle e Entornos. (8)

idioma presentes no Fw) (16). O objetivo de Joyce a criao de um mito universal, para o qual todas as culturas e lnguas so relevantes (17): pluriculturalidade, uma babel a unificar-se num cosmo que se arma com entrelaamentos profundos de relaes.

Todos os homensNo livro de Joyce, Finnegan (que no s o pedreiro velado por doze cidados, mas, tambm, o gigante Finn MacCool adormecido, cujo corpo mostrado como parte da paisagem de Dublin...) acaba sendo, ele mesmo, devorado pelos convivas: o corpo do deus mesmo que ser sacramentalmente devorado (18) com sua queda, a casca do Ovo Csmico despedaou-se, mas a substncia essencial do ovo foi colhida e serviu de nutrimento para o povo (19). Todo o episdio (cmico) inicial do livro, no entanto, um prlogo do corpo do livro propriamente dito, espcie de prembulo da histria de HCE (Humphrey Chimpden Earwicker), sucessor de Finnegan que aporta baa de Dublin. Com o desenvolvimento da narrativa, percebe-se que HCE dono de uma taverna na cidade. Se Leopold Bloom era um anti-heri calcado no homem comum, HCE mais do que isso: alm de comum (e tambm estrangeiro, como Bloom), ele todos os homens; um dos outros nomes com os quais ele apresentado por Joyce Here Comes Everybody, indicando-se, assim, sua universalidade. Earwicker, por ser estrangeiro e ter razes mais germnicas que celtas, encarna todos os invasores que espezinharam a Irlanda (20). Embora cidado respeitvel, visto como um usurpador; torna-se vtima de uma fofoca que toma conta da cidade (ele teria sido apanhado espiando duas garotas ou se despido diante delas em Phoenix Park). julgado por doze cidados (freqentadores assduos de seu bar, que tambm so os doze convivas do velrio de Finnegan); h quatro juzes senis, que representam, entre outras coisas, o ciclo quadripartido de Vico... (O nmero quatro e seus mltiplos esto presentes na prpria estrutura do livro, que se pode considerar como dividido em quatro partes e dezesseis captulos). O julgamento que se faz contra H. C. E., um julgamento universal, apenas um reflexo de seu prprio e obsessivo sentimento de culpa; (...) seu pecado (...) um conspcuo exemplo pblico do pecado original (...) atuante dentro de cada um (21). Sua queda moral , tambm, a queda de toda a humanidade. Como Stephen Dedalus, Earwicker se sente culpado, mas sua culpa universal; aqui, o pecado o pecado (inconsciente) do incesto (sobre o qual se criou o tabu que gerou a prpria civilizao) envelhecido, com declnio de seus poderes sexuais, ele busca sua juventude na atrao por uma jovem, no caso sua filha Isabel, uma reencarnao juvenil de sua mulher. HCE tanto uma personagem real como um paradigma da humanidade; ele originalmente pecaminoso, e julgado por isso. Apesar de o julgamento lhe ser favorvel, o povo est contra ele; como Finnegan, ele morre e sepultado,

E agora a frase final, tambm no original e nas trs verses para o portugus:A way a lone a last a loved a long the (9) A via a uma a una amm a mor alm a (10) A vua a lenta a leve a leta a long a (11) Alm a solo a logo anelo ao logo do (12) )

Na natureza cclica do texto, a queda de Finnegan adquire amplo valor simblico, representando a queda de Lcifer, a prpria queda do homem quando Ado peca; o sol posto que levantar de novo (...) a queda de Humpty Dumpty (...) e a queda de todos os homens ao perderem a graa (13). Em Joyce, o trovo o barulho da queda, a grande queda do homem, cuja dinmica faz a roda da histria funcionar. A referncia a Lewis Carrol pertinente no s em funo do contedo da obra do criador de Alice no pas das maravilhas e Atravs do espelho (em que o ovo falante Humpty Dumpty cai do muro): as palavras-valises (palavras como briluz, lesmolisas, grilvos na traduo de Augusto de Campos , criadas a partir da associao de outras, gerando novos sentidos) que caracterizam o poema Jaguadarte (14) (explicado a Alice por Humpty Dumpty) so instrumento da composio de Joyce, como o so os trocadilhos: Para representar um sonho de maneira convincente, necessrio uma linguagem plstica, uma linguagem na qual dois objetos ou pessoas subsistam em uma nica palavra. (15). Ao escrever com palavras-valises, Joyce elimina, tambm, a temporalidade da sucesso linear, tornando simultneas coisas diferentes; liberta-se das limitaes espao-temporais, como deve ser em um sonho, como deve ser em um eterno retorno, como deve ser em um universo com muitas camadas de sentido. Em seu amplo universo, Joyce no s combina palavras como as toma de muitas lnguas diferentes (cerca de 60) por isso, o ato de buscar e descobrir referncias praticamente inesgotvel. (Entre as lnguas usadas, diga-se, est o portugus, e j se fez semelhana de outros trabalhos voltados a outras lnguas um inventrio de tais palavras: Antonio Carlos Arajo Cintra relaciona, em seu livro O lusobrasileirs no finnegans, centenas de palavras de nosso

embora sua substncia tenha se esparramado, como um grande ovo entornado, por todo o mundo (22).

Rio AnaHumphrey tem uma mulher, Ana Lvia Plurabelle (ALP). Se ele se transforma, ao longo do livro, em Ado, No, uma montanha, ela tambm se torna (por metempsicose, processo j visto em Ulysses) Eva, sis, uma nuvem, um riacho. ela o princpio gerador de amor, eternamente frtil, do universo (...) acima de tudo Ana um rio, mutvel sempre e todavia sempre o mesmo, o fluxo heraclitiano que sustm toda a vida em sua corrente. Ela principalmente o rio Liffey, correndo atravs de Dublin, mas tambm todos os rios do mundo. (23). Ela o rio atravs do qual lamentamos a morte dele, a gua que o purifica at a santidade (24). Como o rio Liffey, Ana Liffey, Ana Lvia, o livro de Joyce um riocorrente, um fluxo contnuo, sempre e nunca o mesmo... (Como o rio, Fw cclico, e isso permite, inclusive, que entremos nele em qualquer ponto.) (Beba-se um gole evocativo de Ana Lvia, tomado a um ponto especial do fluxo:Ah Fala-me de Ana Lvia! Quero ouvir tudo sobre Ana Lvia. Bem, voc conhece Ana Lvia? Mas claro, todo mundo. Fala-me tudo. Quero ouvir j. de matar. Ora, voc sabe, quando aquele malandro fez baque e fez o que voc sabe. Sim, eu sei, e da? lave com calma e saalpique a gente. Levante as mangas e solte a lngua. E pare ai! de bater em mim quando se abaixa angua. Ou que diabo foi que trentaram duescobrir que ele tresandou fazendo no parque Dundix. O grande canalha! A camisa sua, veja! A lama que ela deixa! Toda a gua est preta. molhar e malhar a setemana inteira. J lavei tanto que perdi a conta. Sei de cor os lugares que ele construma cacolavar, ssujeito sujo! 25 )

(29); o segundo, como Shaun the Postman, quem leva aos homens a grande mensagem criada por Shem. A misso de Shem (...) [] simplesmente encontrar e proferir a Palavra (...) Shaun (...) deturpa-a, limita-se a uma espcie de estpido pragmatismo (30). Os opostos em conflito sados da unidade de HCE geram energia, mas esta apenas uma sombra da energia original gerada pela queda do pai (31)... Todo o Fw parece ser uma tenso de antagonismos mutuamente suplementares (32), que faz girar o universo, que movimenta o ciclo da histria, a morte e o renascimento. H a histria individual, de um lado, e a universal, de outro; e, entre o individual e o universal, est o nacional, pois eles [HCE, ALP, Shem e Shaun] reproduzem tambm a histria de Dublin (so os gigantes mticos que constituem a geografia da cidade) e de toda a Irlanda (33). Mas no penetremos mais na histria do livro. Deixemos apenas as pistas bsicas para que o leitor mergulhe no rio, caia de p ou de cabea, recaia, mergulhe de novo em outro ponto, deixe-se levar pela correnteza, sonhe acordado em meio torrente... Munido, como desejvel, do suporte que puder se valer a partir da ampla bibliografia crtica existente, prioritariamente das j apontadas neste intrito. Bons sonhos.

Notas 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14. Campbell, Joseph & Robinson, Henry Morton. A skeleton key to Finnegans wake. Nova York, Compass Books, 1964. Campos, Augusto e Haroldo de. Panaroma do Finnegans wake. So Paulo, Perspectiva, 1971. Burgess, Anthony. Homem comum enfim. Trad.: Jos Antonio Arantes. So Paulo, Companhia das Letras, 1994. Joyce, James. Finnegans wake / Finnicius revm. Trad.: Donaldo Schller. Livros I, II, III, IV e V. So Paulo, Ateli, 1999-2003. Joyce, James. Finnegans Wake. Londres, Faber and Faber, 1975. P. 3. Campos, Augusto e Haroldo de. Op. cit. P. 35. Joyce James. Finnegans wake / Finnicius revm. Trad.: Donaldo Schller. Livro I, p. 31. In: Burgess, Anthony. Homem comum enfim. Trad. Jos Antonio Arantes. P. 212. Joyce, James. Finnegans Wake. Londres, Faber and Faber, 1975. P. 628. Campos, A. e H. de. Op. cit. P. 77. Joyce, James. Finnegans wake / Finnicius revm. Trad.: Donaldo Schller. Livro V. P. 521. In: Burgess, Anthony. Homem comum enfim. Trad. Jos Antonio Arantes. P. 213. Campbell, Joseph & Robinson, Henry Morton. Introduo a um assunto estranho. Trad.: Augusto de Campos. In: Campos, Augusto e Haroldo de. Op. cit. P. 108. Jaguadarte. Trad.: Augusto de Campos. In: Carroll, Lewis. Aventuras de Alice no pas das maravilhas / Atravs do espelho e o que Alice encontrou l. Trad.: Sebastio Uchoa Leite. So Paulo, Summus, 1977.

Irmos antitticosEarwicker e Ana Lvia tm, alm de Isabel, dois filhos homens: Shem e Shaun (em seu aspecto simblico), ou Jerry e Kevin (em sua aparncia domstica). Shem introvertido, renegado pelos homens, o pesquisador e o descobridor das coisas proibidas (26); Shaun uma simples sombra do pai HCE (27), o pastor da raa humana, o orador poltico (...), prspero, o favorito do povo (28). O primeiro, sob a denominao de Shem the Penman, o poeta, o escritor; o prprio Joyce, em seu aspecto de artista incompreendido

15. Burgess, Anthony. Op. cit. P. 203. 16. Cintra, Antonio Carlos Arajo. O lusobrasileirs no finnegans. Apresentao de Haroldo de Campos. So Paulo, Olavobrs, 2003. 17. Burgess, Anthony. Op. cit. P. 202. 18. Burgess, Anthony. Op. cit. P. 217. 19. Campos, A. e H. de. Op. cit. P. 108. 20. Idem, p. 111. 21. Idem, p. 112. 22. Burgess, Anthony. Op. cit. P. 228. 23. Campos, A. e H. de. Op. cit. P.112-113. 24. Burgess, Anthony. Op. cit. P. 227. 25. Campos, A. e H. de. Op. cit. P. 55. 26. Idem, p. 114. 27. Burgess, Anthony. Op. cit. P. 226. 28. Campos, A. e H. de. Op. cit. 115. 29. Idem, p. 114. 30. Idem, p. 115. 31. Burgess, Anthony. Op. cit. P. 226. 32. Campos, A. e H. de. Op. cit. 116. 33. Vizioli, Paulo. A vida e a obra de James Joyce. In: Mutran, Munira e Tpia, Marcelo (org.). Joyce no Brasil. So Paulo, Olavobrs, 1997.