t - ines lacerda araujo

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INÉS LACERDA ARAÚJO LINGUAGEM E REALIDADE: DO SIGNO AO DISCURSO Tese apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Estudos Lingüísticos Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade Federal do Paraná como requisito à obtenção do título de Doutor em Letras área de Estudos Lingüísticos. Orientador: Prof. Dr. José Borges Neto CURITIBA 2001

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  • INS LACERDA ARAJO

    LINGUAGEM E REALIDADE: DO SIGNO AO DISCURSO

    Tese apresentada ao Curso de Ps-Graduao em Estudos Lingsticos, Departamento de Letras Clssicas e Vernculas da Universidade Federal do Paran, como requisito obteno do ttulo de Doutor em Letras, rea de Estudos Lingsticos.

    Orientador: Prof. Dr. Jos Borges Neto

    C U R I T I B A

    2 0 0 1

  • w m

    UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARAN SETOR DE CINCIAS HUMANAS, LTRAS E ARTES COORDENAO DO CURSO DE PS GRADUAO EM LETRAS

    P A R E C E R

    Defesa de tese da doutoranda INS LACERDA ARAJO, para obteno do ttulo de Doutora em Letras.

    Os abaixo assinados Jos Borges Neto, Carlos Alberto Faraco, Kanavillil Rajagoplan, Bortolo Valle e Jorge de Albuquerque Vieira argram, nesta data, a candidata, a qual apresentou a tese:

    "LINGUAGEM E REALIDADE: DO SIGNO AO DISCURSO."

    Procedida a argio segundo o protocolo aprovado pelo Colegiado do Curso, a Banca de parecer que a candidata est apta ao ttulo de Doutora em Letras, tendo merecido os conceitos abaixo:

    Prof.3 Marilene Weinhardt Vice-Coordenadora

  • "O mundo no fala, apenas ns falamos. Desde que

    fomos programados com uma linguagem, o mundo

    pode levar-nos a aderir a crenas. Mas no poderia

    fornecer uma linguagem para que ns falssemos.

    Apenas outros seres humanos podem faze-lo".

    (Richard Rorty: Contingence, Irony, Solidarity, 1989).

    ii

  • SUMRIO

    RESUMO. V

    ABSTRACT. vi

    INTRODUO. 1

    I - SIGNO E REFERNCIA 9 1.A PROBLEMTICA DA LINGUAGEM 9

    1.1. Breve Escoro Histrico 9

    2. SIGNO E REFERNCIA 17 2 . 1 . 0 Signo Lingstico 17 2.2.0 Problema da Referncia para Saussure 20

    3.CONCEITO E OBJETO 25 4. OS LIMITES DA SEMNTICA........ 28 5. A CONTRIBUIO DE PEIRCE 33

    5.1 O esquema triangular de Peirce 33

    5.2. As trs categorias do signo 34

    II - AS SENTENAS: SIGNIFICAO, VERDADE E REFERNCIA 42

    1. SIGNIFICAR E NOMEAR 42 2. REFERIR DIFERE DE SIGNIFICAR: FREGE 47 3. A SOLUO DE RUSSELL AO PROBLEMA DA DENOTAO 53 4. O PARALELISMO ENTRE LINGUAGEM E REALIDADE PARA WITTGENSTEIN NO TRACTATUS LOGICO PHILOSOPHICUS 56 5. A REFERNCIA DIRETA NA ABORDAGEM NEOFREGEANA 63 6. KRIPKE E A RIGIDEZ REFERENCIAL 70 7. CONSEQNCIAS DO SEMANTICISMO 78

    III. A REVOLUO WITTGENSTEINIANA: OS ATOS DE FALA 85 1. O WITTGENSTEIN DE INVESTIGAES FILOSFICAS 85

    1.1.0 Paradigma Ps-metafsico 86 1.2 Fim do Primado da Lgica e da Metafsica 87 1.3. Os Jogos de Linguagem 91 1.4.0 Problema da Referncia 97 1.5. Critica Linguagem Privada 103

    2. A CRTICA DE STRAWSON TEORIA DAS DESCRIES DE RUSSELL..... 105 3. AUSTIN E AILOCUCIONALIDADE 109

    3.1. Constativos e Performativos 110 3.2. Os Atos de Discurso 111 3.3. As Afirmaes 113

    4. A REFERNCIA COMO ATO DE FALA PARA SEARLE 118 IV- A CONTROVRSIA EXTERNALISMO XINTERNALISMO 121

    1. DEWEY: O SIGNIFICADO COMO FUNO DO COMPORTAMENTO COOPERATIVO 122 2. AINESCRUTABILIDADE DA REFERNCIA PARA QUINE 126

    2.1. O Problema Ontolgico 127 2.2. A Relatividade Ontolgica 131

    iii

  • 3. DAVIDSON E A INTERPRETAO RADICAL 137 4. PUTNAM E A QUESTO DA FIXAO DA REFERNCIA 146 5. INTERNALISMO E REFERNCIA PARA CHOMSKY 154 6. POR QUE UMA TEORIA DA REFERNCIA DISPENSVEL, SEGUNDO O PRAGMATISMO 163

    V- REFERNCIA E DISCURSO : O PAPEL DA PRAGMTICA 167

    1. UMA MUDANA DE ENFOQUE 167 2. DA REFERNCIA AO PROCESSO DE REFERENCIAO 170 3. A NOO DE DISCURSO EM FOUCAULT 178

    3.1. Por que Anlise do Discurso? 178 3.2. Enunciado e Discurso 181 3.3. Formao Discursiva 182 3.4. A Funo Sujeito 185 3.5. O Referencial e o Domnio Associado 186 3.6. A Materialidade Discursiva 190 3.7. O Conceito de Discurso 191 3.8. O Poder do Discurso 193 3.9. Avaliando Conseqncias da Anlise Foucaultiana do Discurso 197

    4. A TEORIA DA AO COMUNICATIVA DE HABERMAS: A VIRADA LINGSTICA E A VIRADA PRAGMTICA 203

    4.1 Da Semntica Pragmtica 204 4.2 Ao Comunicativa e Ao Estratgica 206 4.3 A Teoria da Ao Comunicativa como Implicando uma Teoria Sociolgica 213

    CONCLUSES 217

    REFERNCIA BIBLIOGRFICA 229

    iv

  • RESUMO

    Esta tese aborda a relao entre linguagem e realidade, percorrendo os nveis do signo lingstico, da proposio, do ato de fala, e, finalmente, do discurso. Pressupomos que a questo da referncia torna-se crucial a partir de fins do sculo XIX, e hoje, com a pragmtica, dissolve-se como questo primordial, o que traz conseqncias proveitosas para a lingstica e para a filosofia da linguagem. Analisamos a contribuio do estruturalismo de veio saussureano, a noo de interpretante de Peirce, a relao da proposio com a realidade em Frege, Russell e no primeiro Wittgenstein. O ponto de virada a noo de jogo de linguagem de Wittgenstein IL A anlise passa a acentuar o papel do locutor situado, do uso lingstico, de modo que a proposio, como fica claro com Austin, passa de central e apenas um entre os atos de fala com valor ilocucionrio. Tambm o pragmatismo contemporneo, de Quine a Davidson, mostra a inescrutababilidade da referncia. Na contraposio entre as posies externalista e internalista (Chomky), mostramos que a primeira d melhor conta da relao linguagem/realidade. No ltimo captulo, ressaltamos a importncia da anlise do discurso, atravs de dois de seus principais representantes, Foucault e Habermas. Em que pesem suas diferenas, ambos conduzem a discusso para o terreno poltico, para o poder do discurso. A linguagem contingente, mas, ao mesmo tempo, pelo discurso que o dizer assume uma fora, enquanto poder (Foucault) e enquanto ao comunicativa (Habermas).

    v

  • ABSTRACT

    This thesis is a study about the relation between language and reality, searching through the levels of the linguistic sign, the proposition, the speech act and, finally, the dicourse. We presuppose that the question of reference became a crucial one since the end of the 19th century. Nowadays, with the pragmatics, it has been dissolved as a prime question, what brings rich consequences for both Linguistics and Philosophy of Language. We analyse first the contribution of the saussurean structuralist position on sign, the notion of interpret of Peirce, the relation between proposition and reality in the conception of Frege, Rssel and Wittgenstein I. The turning point is the notion of linguistic game, as it is developed by Wittgenstein H. Since then, the analysis of reference foccusis the attention on the role of the speaker in situation, on the use of language. In this way, the proposition, as Austin clearly shows, is no more central, instead, it is just one among the various speech acts, wich provides language of illocionaiy strenght. The contemporaneous pragmatism, in a parallel way, from Quine to Davidson, makes evident the inscrutability of reference. Contrasting externalism and internalism (Chomsky), we believe that the first position gives a better account of the relation between language and reality. In the last chapter, we enphasize the importance of discourse analysis, through two of its main thinkers, Foucault and Habermas. Even considering its differences, both conduct the discussion to the political field, to the power of the discourse. Language in contingent, although, at the same time, it is due to the discourse, that saying assumes a strength, as power (Foucault ) and as communicative action (Habermas).

    vi

  • INTRODUO

    provvel que se estranhe a presena de tantos autores, to dspares em suas

    idias, num s trabalho. A inteno mostrar as diversas perspectivas pelas quais o

    tema espinhoso da referncia, da relao entre linguagem e realidade, palavras e coisas,

    abordado. Diferentes perspectivas e solues so analisadas para evidenciar nosso

    argumento central, o de que o problema da referncia, tomada em sentido amplo e no

    apenas como um processo que se serve de expresses lingsticas para nomear, designar

    ou realizar a chamada "referncia direta", passa de nuclear a perifrico. E isso ocorre no

    curto perodo que abordamos, fins do sculo XIX at nossos dias. Mostraremos que essa

    trajetria se deve a uma mudana de paradigma: no paradigma lingstico a referncia

    nuclear, com a virada pragmtica, j no pensamento ps-metafsico, no paradigma da

    intersubjetividade lingstica, passa a ser um dos aspectos da linguagem, um entre os

    inmeros atos de fala, com efeitos e produo em termos de discurso.

    A partir desse tema, inspirado nele, procuraremos mostrar como o prprio

    fenmeno da linguagem pode ser caracterizado em suas dimenses de signo

    (significao, simbolizao e semiotizao), de proposio enquanto forma de

    descrever e/ou representar estados de coisa (relao entre significado, referncia e valor

    de verdade), de ato de fala que demanda um certo tipo de comportamento e um uso em

    situao (linguagem como forma de comportamento e valor ilocucionrio dos atos de

    fala), de discurso, entendido como efetivao do dizer e do dito (lugar de constituio

    do sujeito e das formas lingsticas com valor e fora social, poltica, bm como do

    entendimento mtuo).

    Dados os objetivos acima apontados, ressaltaremos a discusso do lugar que

    cabe ao problema da referncia na lingstica e na filosofia da linguagem

    contemporneas, atravs da anlise de algumas das mais importantes abordagens acerca

    da relao linguagem/realidade, procurando evidenciar as transformaes e variaes

    que essa questo assume, conforme se trate do enfoque lingstico, lgico-

    proposicional, ilocucional (ato de fala) e discursivo, ou, em outras palavras,

    percorreremos as dimenses da estrutura lingstico-gramatical, lgico-semntica e

    pragmtico-discursiva.

    "Como se relacionam as palavras com o mundo?" Com esta questo Searle inicia

    sua obra Speech Acts. Trata-se do velho problema da referncia que desde Plato at

  • Davidson, tem perturbado filsofos, lingistas, tericos da comunicao. H uma

    relao entre palavras e coisas significadas, nomeadas, designadas - isto certo. Porm,

    os seguintes problemas surgem: a)qual a natureza do "lao" que as une, como se

    relacionam; b)o que se entende por palavras, signos, frases, enunciados, discursos

    capazes de operar essa relao; c) qual a categoria ou natureza da "realidade" referida

    (externa-objetiva, interna-impressiva, construda ou selecionada por formas a priori,

    evento, bloco rgido de coisas em si, categorias. O que no esgota a lista de candidatos a

    "realidade").

    Posto dessa forma, o problema adquire dimenses descomunais, que extrapolam

    uma anlise com mnimo de rigor terico. preciso fazer recortes, escolher enfoques,

    delimitar uma trajetria, lanar mo de pressupostos.

    O recorte escolhido (e esta escolha no arbitrria) a chamada virada

    lingstica {linguistic tum), momento em que o pensamento ocidental volta-se para o

    problema da linguagem, com transformaes rpidas e importantes ocorrendo na

    lingstica e na filosofia da linguagem. A partir de fins do sculo XVIII ocorre um corte

    epistemolgico e a linguagem passa a ser um dos focos centrais do pensamento

    ocidental. J no mais simples instrumento para o pensamento representar as coisas, e

    sim estrutura articulada, independente de um sujeito ou de toma vontade individual e

    subjetiva, no mais submetida funo exclusiva da nomeao ou designao, quer

    dizer o signo no se limita a estabelecer uma relao direta com a coisa nomeada.

    Temos assim, no lugar de uma anlise das representaes, a anlise da linguagem, cujas

    expresses gramaticais so pblicas.

    Grandes nomes e novas escolas surgem nesse panorama renovado, em que o

    enfoque filosfico modifica-se radicalmente, no mais centrado nas indagaes sobre o

    conhecimento e a razo, seus limites e propriedades, e sim na linguagem. Portanto,

    trata-se de um itinerrio recente, que vai desde finais do sculo XIX, at as

    contribuies mais atuais das vertentes pragmtico-discursivas, que caracterizam a

    virada pragmtica. Esse o recorte.

    A trajetria escolhida remete relao entre significao e referncia, e o

    pressuposto o de que essa relao recebe enfoques distintos conforme se atenha ao

    signo, frase, proposio ou ao discurso.

    A virada lingstica, pressentida por Hegel, configura um novo panorama para a

    filosofia da linguagem e para a lingstica. Nascem nesse ambiente renovado, a lgica, a

    2

  • crtica literria, a filologia, as anlises do discurso, a lingstica do signo de Saussure, o

    estruturalismo cujo precursor, foi o prprio Saussure, a semitica de Peirce.

    E tambm a lgica matemtica com Frege, Russell, o Wittgenstein do Tractatus

    logico-philosophicus que contribui primeiramente com a teoria da figurao, dando todo

    "poder" proposio, e depois de uma impressionante reviso terica, passa anlise da

    linguagem ordinria. Neste panorama ocorrem algumas das mais importantes mudanas

    de concepo da linguagem e seu papel: o estruturalismo mostra que sem linguagem

    no h cultura, nem pensamento, nem personalidade; a semntica expande seus

    domnios dos campos semnticos s situaes de fala que requerem contexto e inteno;

    a anlise do discurso distende a linguagem para o domnio social e institucional, todo

    discurso remete a outro discurso (rede discursiva), e cria relaes de saber e poder

    (Foucault) . A lista no acaba aqui, mas ela significativa o suficiente para sustentar

    nossa hiptese central, a de que a referncia acaba por se dissolver como problema para

    a filosofia da linguagem, ao relativizar-se atravs do uso lingstico.

    A questo da referncia recebe solues e enfoques diversos: o lingstico-

    estrutural de Saussure (1857-1913); o semitico de Peirce (1839-1914); o lgico-

    representacionista de Frege (1848-1925); a proposta emprico-logicista de Russell

    (1872-1970) e de Wittgenstein (1889-1951). Neste mesmo modelo, temos ainda Kripke

    ( 1940- ) com um retorno controvertido a um tipo de essencialismo. Sob o novo

    enfoque da filosofia da linguagem do Wittgenstein de Investigaes filosficas, surgem

    as contribuies de Austin (1911-1960), Searle (1932- ) e Strawson, 1919- ).

    Pelo enfoque pragmatista de Dewey (1859-1952), o behaviorismo epistemolgico de

    Quine, (1908-2000), Rorty, (1931- ) e Davidson (1917- ), mostra-se a

    inescrutabilidade da referncia. Enriquece essa discusso, a disputa externalismo X

    internalismo de Chomsky (1928- ) e Putnam (1926- ). Finalmente, no mbito do

    discurso, temos a teoria do agir comunicativo de Habermas (1929- ) e a anlise do

    discurso de Foucault (1929-1984).

    Essas contribuies so valiosas para todo estudo do pensamento contemporneo

    acerca da linguagem, seja sob a perspectiva da lingstica, seja da filosofia.

    Destacaremos principalmente os aspectos que subsidiam a hiptese acima, a qual

    pretende mostrar que o percurso do signo ao discurso, passando pela proposio e pelo

    ato de fala, no apenas seqencial, mas obedece a uma lgica interna, com enfoques

    cada vez mais elucidativos e complexos. Interessa-nos essa lgica, que se distende a

    3

  • partir das relao entre signo e referncia, passando pela relao entre proposio e

    referncia, ato de fala e referncia, e, finalmente, discurso e referncia.

    Como j dissemos, o foco alterou-se aps a virada pragmtica, indo da

    proposio para o ato de fala; de obstculo epitemolgico a ser evitado pelos diversos

    estruturalismos lingsticos (e por isso mesmo considerada como algo problemtico),

    passa a questo que precisa ser dissolvida ou absorvida nas concepes ps

    Wittgenstein H, Quine e Dewey.

    Pressupomos ser necessrio, se quisermos fazer avanar o estado atual das

    discusses sobre significao e capacidade de referir, ou seja comunicar com sentido e

    eficcia algo acerca do mundo, e ainda, se quisermos dar conta de como sucede que,

    com palavras, fazemo-nos entender sobre coisas, devemos prosseguir galgando os

    patamares do signo ao discurso. Consideramos cada um destes patamares (signo/frase

    gramatical; proposio/sentena; ato de fala e discurso) como necessrios, porm

    insuficientes. Isto porque cada um isoladamente no configura o fator "linguagem".

    Assim que uma anlise sinttico-gramatical de uma frase incapaz de dar conta do

    fenmeno da referncia sem o recurso ao contexto informativo (no seguinte trecho de

    notcia, preciso informao atuais sobre a famlia real inglesa para saber que a

    namorada de Charles Camilla e no Laura, que vem a ser filha de Camilla: "Laura

    Parker-Bowles, filha de Camila, namorada do prncipe Charles, passeou tun ano com

    uma mochila nas costas pela Amrica do Sul"); o mesmo podendo-se afirmar acerca de

    uma anlise exclusivamente lgico-gramatical. Por exemplo, faz sentido, apesar de no

    ter referente no mundo emprico afirmar "A montanha de ouro est na Califrnia",

    pressupor que a ligao com o estado de coisas basta para efeitos de significao ou

    compreenso implica desconhecer que o sentido da verdade de uma proposio depende

    do uso situado, de interlocutores trocando atos de fala. Por sua vez, sustentar que tudo

    depende do falante e do contexto, de interpretao subjetiva, levar a dimenso

    discursivo-pragmtica para o terreno lodoso do subjetivismo e do solipsismo, ilegtima

    para quem entende que o discurso pblico e que sem frase estruturada, sem regras de

    uma lngua no h produo discursiva. O que no leva a supor que os fatores

    estruturais e estruturantes da frase gramatical constituiriam uma espcie de ncleo

    rgido com um nexo interno formado pelos componentes fonolgicos, sintticos e

    semnticos, sendo os demais componentes apenas agregados, superponveis, visto serem

    constitudos pelos fatores "frouxos" tais como falantes, contextos, situao dialgica,

    poder do discurso, efeitos ilocucionrios, retricos, etc.

    4

  • Em lugar da hiptese ncleo e periferia ou do modelo que pressupe

    complexidade crescente (ou camadas concntricas), consideramos que todos os fatores e

    dimenses tm seu lugar e sua funo precipuos: do signo ao discurso e deste quele,

    assim se articulam e se compem as perspectivas sob as quais pode-se analisar a

    linguagem. Um mal-entendido, por exemplo, pode ter sua fonte em qualquer uma dessas

    dimenses e ser sanado, conforme o caso, fornecendo um sinnimo (explicao do

    significado do signo empregado), explicando qual o caso ou situao que est sendo

    descrito, narrado, nomeado (apontando o referente ou voltando ao foco da narrao),

    desmanchando um ambigidade sinttica, justificando ou se desculpando por vim ato de

    fala ter sido compreendido como insinuao quando a inteno era perguntar, apelando

    a implicaes ou interpretaes decorrentes do uso em situao. O que mostra

    justamente que, apesar de serem fatores analisveis separadamente tendo em vista suas

    peculiaridades, isto , destacveis (no nosso objetivo entrar no mrito da discusso

    sobre as disciplinas e/ou prticas cientficas e filosficas distintas: sintaxe, lgica,

    semntica, anlise do discurso, e outras do gnero, defenderem cada qual seu prprio

    terreno com a excluso dos demais aspectos), s so destacveis a partir do prprio

    modo de funcionamento da linguagem. Em outras palavras, pode-se voltar a cada um

    daqueles aspectos conforme houver necessidade de, por exemplo, sanar uma polissemia,

    esclarecer de qual ato de fala se trata, determinar um referente, contestar o direito de dar

    uma ordem em determinada situao, para aquele pblico naquela circunstncia,

    significar algo como querendo dizer isto ou aquilo. Entretanto, em qualquer destes casos

    h uma situao criada pela ao lingstica, isto uma situao de discurso.

    Consequentemente, h que sair dos limites do signo, da proposio e at mesmo

    dos atos de fala, e ir at a anlise discursiva, para dar conta da real dimenso do

    problema da referncia, na acepo ampla que estamos propondo, como um "querer

    dizer algo para algum, numa dada situao".

    Ao longo deste trabalho mostraremos que esse problema toma uma dimenso e

    um sentido inteiramente diferentes em cada uma das reas da linguagem enfocadas: a da

    lingstica ocupada com as relaes intrasgnicas, a da filosofia da linguagem centrada

    na anlise da proposio, a da filosofia da linguagem calcada no atos de fala, e as

    propostas que concernem a pragmtica, bem como certas tendncias da anlise do

    discurso. E isto de tal forma, que necessariamente a questo da referncia se distende,

    passa de questo exclusivamente lgica, para questo pragmtica e nela ir dissolver-se

    como tema e como problema terico.

    5

  • A lingstica estrutural recusa tratar do problema, justamente por reconhecer que

    h o problema. O que cria no poucos embaraos, pois, ao mesmo tempo em que a

    relao da linguagem com o extra-lingstico descartada como no pertinente para

    explicar como se produzem as frases de uma lngua, essa meta de "pureza" terico-

    epistemolgica no produtiva, no justifica isolar a lngua dos demais fatores,

    situao, contexto dialgico, inteno, ou seja, a prpria dimenso de ato de fala, alm

    das caractersticas pragmticas e discursivas, a no ser para efeitos de anlise. Da ser

    preciso ir alm de Saussure, at Peirce que nos coloca na rota da pragmtica.

    A lgica, por sua vez, oferece uma anlise da relao linguagem/realidade pela

    proposio com sentido/significao e referncia, de modo que esta vem como que

    colada, pressuposta por toda assero de um estado de coisas; alm do mais a assero

    demanda uma comparao com o estado de coisas, portanto, um preenchimento

    emprico para que a assero se complete com um valor de verdade. Ora, a forma lgica

    da proposio no d conta da capacidade que pessoas tm de referir, apontar algo para

    algum, nomear, saber de que ente se trata, especificar um referente mostrando que tal

    ou qual designao so as apropriadas para tal ente e no tal outro. A realidade no

    tem um modo preferencial (no caso, a proposio), para ser designada ou referida.

    A prpria "realidade" uma categoria entre outras que facilita nossa lida com as coisas.

    Assim, preciso ir para a contribuio de Wittgenstein II, Dewey, Quine, Davidson, os

    tericos de Oxford, os analistas do discurso (Foucault e Habermas). Enfim, o modelo da

    linguagem ordinria rompe com o modelo lgico-lingstico, com efeitos

    epistemolgicamente produtivos.

    Ao longo deste trabalho argumentaremos favoravelmente s hipteses

    levantadas pelas abordagens pragmtico-discursivas, entre elas, a principal, a de que as

    teorias que focalizam a referncia como problema central, so caudatrias da velha

    epistemologa, da metafsica cartesiana, que entendem ser o interior/suj eito/cogito

    fornecedor de representaes do exterior/objeto/coisa. Com isso ignoram a linguagem.

    A prpria controvrsia atual, entre externalismo e internalismo d a medida da

    dificuldade em sair dos esquemas tradicionais em que se embaralham o problema do

    conhecimento, e seu correlato, o problema do sujeito.

    Percorreremos esse itinerrio contemporneo que vai do "estruturalismo" de

    Saussure e da semitica de Peirce, no captulo I, ao problema da denotao e da

    referncia, em que se destacam Frege, Russell, Wittgenstein I e Kripke, no captulo H.

    A partir de Wittgenstein H, (captulo ID) nova virada ocorre, com enfoque

    6

  • eminentemente pragmtico cuja vertente tem sido explorada at hoje. A relao da

    lingstica com a filosofa da linguagem estreita-se em proveito de ambas. Esse

    ambiente propcio ao desenvolvimento das anlises da linguagem ordinria que

    orientam a reflexo sobre os problemas da referncia e da significao sob a perspectiva

    do uso lingstico e do usurio da lngua. Como temos insistido, at o momento anterior

    virada pragmtica, a referncia o problema central da filosofia da linguagem. Intriga

    aos filsofos a capacidade da linguagem de, pela organizao significativa das palavras,

    poder dizer algo a respeito da realidade e os outros compreenderem, podendo agir de

    acordo com essa compreenso. Vem da a questo de se o dizer com sentido decorre de

    signos que designam, ou de proposies com valor de verdade que se referem a fatos

    do mundo ou, ainda de atos de fala realizados em situao de discurso. No captulo V

    mostraremos como a referncia, torna-se funo dos pressupostos de validade

    provocados por situaes comunicativas (Habermas), e como fator que no decorre

    simplesmente do entendimento ou comunicao, mas como uma prtica que no se

    limita a relacionar significao com situao, tuna vez que o discurso veculo e

    produtor de relaes de saber e poder (Foucault).

    Atravs da linguagem dizemos algo sobre o mundo, nos referimos realidade,

    essa uma constatao bvia, mas que no encerra a discusso. Nas concepes

    pragmtico-discursivas a prpria "realidade" uma construo de perspectivas que se

    devem em grande parte linguagem. preciso, portanto, ir, nunca demais enfatizar,

    do signo pragmtica e anlise do discurso.

    Nessa altura, parece-nos lcito afirmar que ao invs de a linguagem depender da

    relao referencial com a realidade, retrato ou re-presentao da realidade, a realidade

    que vai sendo "construda" pela linguagem, ou pelo menos, preciso levar em conta que

    ontos e logos so inseparveis.

    Deixaremos de lado importantes contribuies da lingstica e da filosofia da

    linguagem contemporneas que correm paralelamente ao tema da referncia e da

    significao, como a fenomenologa, Heidegger, a hermenutica de Gadamer e Ricoeur,

    uma vez que o propsito com que tratam da linguagem difere do nosso: o enfoque

    fenomenolgico, com exceo de Heidegger, tem cunho fundacionista, quer dizer, h

    uma ontologizao da linguagem.Ora, ontologizar a linguagem no faz sentido diante

    dos avanos da pragmtica no modelo wittgensteiniano que radicaliza a filosofia como

    terapia. Wittgenstein D, Rorty e Foucault, com suas respectivas crticas a todo tipo de

    fundacionismo, so o norte terico deste trabalho.

    7

  • O material de apoio situar-se- na lingstica com as contribuies de Saussure,

    Benveniste, Eco. Peirce com sua noo de interpretante permite enxergar mais longe do

    que a dicotoma saussuriana languelparole. Na filosofia da linguagem traaremos uma

    linha que comea com Frege e Russell e desemboca em Quine, abordando o problema

    da relao linguagem/mundo. O ponto de viragem entre a vertente puramente lgico-

    formal e a vertente de cunho pragmtico, Wittgenstein II, cujas anlises da linguagem

    como uso revolucionam a questo da referncia. Austin e Searle sabero como

    aproveitar as conseqncias da "virada pragmtica", apesar de certas limitaes suas

    que Habermas procura suplantar, com relativo sucesso. Finalmente, mostraremos que

    referir faz sentido e funciona como um entre outros fatores discursivos.

    8

  • I - SIGNO E REFERNCIA

    1. A PROBLEMTICA DA LINGUAGEM

    A linguagem provavelmente a marca mais notoria da cultura. As trocas

    simblicas permitem a comunicao, geram relaes sociais, mantm ou interrompem

    essas relaes, possibilitam o pensamento abstrato e os conceitos. Certa vez Umberto

    Eco entrevistado acerca do ttulo de sua obra O Nome da Rosa, respondeu com a

    observao de certo monge medieval de que mesmo no havendo mais uma rosa, ou a

    rosa, ou rosa alguma, pela linguagem que podemos dizer, "no h mais a rosa" (nulla

    rosa est).

    Poder referir-se a algo que no mais a se encontra, nomear, designar, so parte

    essencial do comportamento humano. At a simples manipulao de um instrumento

    vem acompanhada de certa inteno, expressa pelo uso de signos lingsticos e no

    lingsticos. Pensamento sempre pensamento acerca de alguma coisa e, por isso

    mesmo, consiste de linguagem, que no um mero sucedneo do pensamento. na e

    pela linguagem que se pode no somente expressar idias e conceitos, mas significar

    como um comportamento a ser compreendido, isto , como comportamento que provoca

    relaes e reaes. O processo de semiose ou de significao requer, basicamente,

    sistemas de smbolos e de signos lingsticos codificados por meio de regras de

    emprego. Porm, sem os fatores da situao de fala, contexto, inteno, comportamento

    verbal, circuito da comunicao, efetividade do dito e do dizer, no h simplesmente

    linguagem. O processo de semiose no se restringe a que algo (como um signo ou

    sistema de signos) substitua algo para algum. A linguagem no uma traduo

    automtica das coisas.

    1.1. Breve Escoro Histrico

    A linguagem tem sido o tema por excelncia da filosofia contempornea. As

    escolas e sistemas mais importantes e os filsofos mais influentes, seja em lgica, teoria

    do conhecimento, ontologia, tica, de uma forma ou de outra acabam abordando a

    linguagem. Nossa epistem, nossa configurao de saber, lingstica. Vivemos uma

    poca de pensamento ps-metafsico, resultante da virada lingstica. No lugar de um

    sujeito que conhece e pensa pelas representaes do mundo que constituiro suas idias,

  • que uma concepo metafsica tpica das filosofias da conscincia, tem-se o sujeito

    que fala, constitudo nas e pelas trocas lingsticas s quais se tem acesso, no pela

    introspeco, mas publicamente: desde Saussure, Frege, Peirce, sistemas de signos,

    signo em uso e seu interpretante, proposies assertricas, fornecem a base para o

    prosseguimento da questo da linguagem. Do signo, passando para a anlise da

    proposio (semntica formal) e desta para os fenmenos de alcance ainda maior do

    uso e da situao de fala, ou seja, fenmenos pragmticos, para chegar a esse ponto, o

    caminho foi longo. At o sculo XIX a linguagem foi praticamente ignorada, uma vez

    que seu papel era confundido com o papel exclusivo do logos, do raciocnio, da mente,

    do cogito. Este breve escoro histrico demonstra essa situao, foram raros os

    momentos em que a prpria linguagem foi alvo de preocupao filosfica e/ou

    lingstica. Destacamos os estoicos, Santo Agostinho, a Gramtica de Port-Royal,

    Locke e Hobbes.

    Os estoicos (sculo I a. C.) elaboraram uma teoria acerca da linguagem

    relativamente bem acabada. A razo recebe as idias atravs das sensaes, da memria

    e da experincia. Da nascem os conceitos. A representao, sendo inteleco pela qual

    se reconhece a verdade das coisas, permite que haja assentimento, compreenso e

    pensamento. Este enunciativo, exprime com palavras o material recebido da

    representao, que so as proposies, completas em si, podendo ser verdadeiras ou

    falsas porque dizem algo sobre o que foi expresso. No processo de significao h trs

    elementos: o significado, o signo e a coisa, que pode ser uma entidade fsica, uma ao,

    um acontecimento. O signo , por exemplo, a palavra "Dion" (nome de uma pessoa); o

    significado o que vem expresso por aquela palavra e que ns compreendemos quando

    dado ao pensamento; a coisa o que subsiste exteriormente, neste caso, o prprio

    Don. Portanto, os estoicos j distinguiam entre expresso, contedo e referente. A

    anlise dos estoicos chega, inclusive, sofisticao da distino entre sons produzidos

    fisiolgicamente e sons articulados, quer dizer, a palavra que precisa de um correlato

    para subsistir. Eco observa que a distino entre expresso, contedo e coisa, j tinha

    sido aventada por Plato e Aristteles, mas os estoicos elaboraram de modo mais

    sistemtico o problema da linguagem. possvel ouvir vim som produzido pela voz de

    algum e no reconhec-lo como querendo dizer algo. S se diz algo, s se tem palavra,

    se houver um contedo de carter no sensvel, incorpreo, ente da razo. O dizvel

    pertence a essa categoria. Pode ser aproximado noo de proposio. As palavras que

    a compem, so os significados. As partes da proposio so o sujeito e o predicado,

    10

  • entendidos como contedos, unidades culturais, o que retira o carter psicolgico da

    semntica, como observa Eco (1991: 39). O valor do signo depende de ele relacionar-se

    com um fato anterior. Por exemplo, "fumaa" precisa relacionar-se a fogo. A cada

    ocorrncia de fogo, infere-se para a ocorrncia de fumaa, o que mostra que os signos

    so formulados em proposies, isto , expresses da linguagem que se articula devido

    a ela expressar fatos significativos. Os estoicos no confundem o signo com a

    ocorrncia real e particular de uma fumaa. Eles entendem que o dado sensvel se torna

    significante pela proposio que verifica haver fumaa onde h fogo.

    Aps um longo hiato, h que se ressaltar a contribuio de Sto Agostinho (354-

    430) para uma teoria do signo e sua relao com a realidade. Na obra De Magistro

    considera que falar exteriorizar "o sinal de sua vontade por meio da articulao do

    som". A linguagem serve para ensinar ou recordar, serve tambm para a fala interior,

    que o pensamento de palavras aderidas memria. Este processo traz mente as

    prprias coisas. As palavras so sinais dessas coisas. Contudo, h palavras que so

    sinais e que nada significam por no remeterem a coisa alguma, caso das conjunes e

    das proposies, por exemplo, que podem ser explicitados por outras palavras. Quando

    no for possvel indicar o significado das palavras abstratas apontando para algo, o sinal

    deve ser interpretado atravs de outro sinal, por exemplo um gesto. Se algum no

    conhece o sinal, ele pode ser explicado atravs da ao correspondente. Para ensinar o

    significado de "andar", anda-se. Como pode ocorrer que a pessoa ainda assim no

    compreenda, acrescentam-se mais sinais. Sinais podem ser palavras, gestos, letras. O

    significado de "pedra" um sinal, mas o que o sinal indica, a pedra como um objeto,

    no sinal. Agostinho distingue, portanto, entre a coisa e seu sinal. As palavras so

    sinais verbais que remetem a outros sinais. As oraes se compem de nomes e a

    presena do verbo assegura que se trata de uma proposio. Enquanto a palavra resulta

    da verbalizao, isto , o que se entende quando algum fala ou escreve algo, o nome

    relaciona-se ao que o esprito compreende ou conhece. Assim que, para memorizar,

    pergunta-se o nome de algo e no a palavra que serve para nomear. Um homem, no a

    unio de duas slabas, "ho" + "mem". Note-se que Sto. Agostinho no confunde o som

    com o significado de uma palavra, e que ele j esboao problema da nomeao. Mas

    sempre que algum compreende uma palavra porque estabeleceu uma conexo com

    aquilo de que a palavra sinal. A mente examina o que o sinal significa. " "homem'

    nome e animal: o primeiro (ser nome) se diz enquanto sinal; o segundo (ser animal)

    enquanto indica a coisa significada", afirma Sto. Agostinho (1979: 311). O significado

    11

  • esvazia-se se no houver referente, contedo, coisa significada, tanto que conhecer as

    coisas prefervel a conhecer os sinais correpondentes; falar valioso porque possibilita

    ensinar, usar o sinal no discurso. Apesar de a maioria das coisas depender do sinal para

    ser transmitida e ensinada, o conhecimento resultante mais valioso do que os sinais. Se

    algum v uma pessoa carregando armadilhas e armas e em seguida a v com toma ave

    capturada, compreende, sem sinais, o que caar. Sto Agostinho no leva em conta,

    como far Peirce, que o comportamento, a ao, esto carregados de sentido. Fatos ou

    objetos no so, em si, fonte de conhecimento. Para Sto Agostinho, o conhecimento no

    vem das palavras que significam os objetos, mas dos prprios objetos. "(...) ouvindo

    muitas vezes dizer 'caput' ('cabea') e notando e observando a palavra quando era

    pronunciada, reparei facilmente que ela denotava (grifo meu) aquela coisa que, por t-

    la visto, a mim j era conhecidssima" (1979: 317) A palavra que era som antes do

    aprendizado, torna-se sinal no pelo fato de se aprender o seu significado, e sim pelo

    fato de se aprender a que ela se refere, sua denotao. O som no percebido como

    sinal na primeira vez que ouvido. O significado s aprendido ao remeter a algo.

    Desta maneira, o valor da palavra, seu significado, advm do conhecimento da coisa

    significada.

    Sto Agostinho restringe a linguagem referncia, sem esta o significado vazio,

    pois a linguagem deve transmitir pensamento, e pensamento sobre algo; esse

    justamente o problema do qual a filosofia e a lingstica contemporneas procuram se

    desembaraar, como veremos ao longo deste trabalho. Para a concepo agostiniana de

    linguagem, mas tambm para o senso comum e para o poeta, conhecer a essncia, a

    realidade "mesma", mais precioso do que a palavra (palavras no passam de palavras,

    sons: "palavras soltas ao vento", diz-se; "words, nothing but words"...).

    Sto Agostinho contribui com anlises argutas sobre a linguagem, porm

    restritivas, o que no de se estranhar numa epistem cujo objetivo era chegar ao

    conhecimento de Deus, pela iluminao da f, pela intuio, da as palavras serem um

    instrumento importante, mas talvez muito limitado, at mesmo rudimentar.

    J no medievo, a querela dos universais representa um momento significativo

    para o debate sobre a natureza dos conceitos e das coisas. Realismo, conceptualismo e

    nominalismo dominaram o cenrio, com uma proveitosa discusso que vem at os

    nossos dias, nas questes ontolgicas e epistemolgicas concernentes aos universais e

    sua relao com a mente e/ou com a realidade, sob roupagem de logicismo,

    intuicionismo e formalismo. Os universais so, na tradio do platonismo, entidades

    12

  • com realidade ontolgica independente da mente que os pensa, representam a

    verdadeira realidade. J a tradio aristotlica seguida pelos conceptualistas, pois as

    entidades reais no so os conceitos e sim os entes individuais. Os universais so

    abstraes mentais, conceitos abstratos acerca das coisas individuais e concretas. Para

    os nominalistas, os universais no "existem", so nomes que sequer precisam de

    entidades abstratas para cont-los. Espcies e gneros so "nomina-voces", sons. Reais

    so os entes individuais. Para Occam( 1300-1349) os universais esto na mente, mas

    no enquanto substncias e sim enquanto formas. O nominalismo lanou profundas

    razes na histria do pensamento ocidental. A moderna filosofia da linguagem tem em

    Quine, um dos principais defensores do nominalismo, para quem os conceitos referem

    no pela relao com as coisas, mas devido a certas relaes que as classes estabelecem,

    como veremos no captulo IV.

    H que se mencionar tambm a contribuio da Gramtica de Port-Royal (1660).

    Lancelot e Arnauld, tomam Descartes como ponto de partida. Para Descartes mais vale

    o pensamento, que independente das lnguas, extra lingstico. A linguagem pode

    ser, inclusive, uma das causas dos erros e equvocos. Tem-se de um lado as idias e de

    outro lado o mundo, a realidade a ser captada pelas idias. A linguagem faz a

    intermediao, por isso pode atrapalhar a relao entre pensamento e ser. As palavras

    distinguem-se do conhecimento claro e distinto das coisas. Como, porm, as palavras

    que exprimem as coisas so melhor lembradas do que as coisas que expressam,

    valoriza-se a palavra e esquece-se que o meio para apreender a intuio racional das

    coisas pelo pensamento. Apesar de Descartes relegar a linguagem a um plano

    secundrio com relao mente/pensamento, ele influenciou os gramticos de Port-

    Royal. Se o pensamento do sujeito no depende de uma lngua, so as regras do

    pensamento que fornecem as regras do dizer e no as da prpria linguagem. Toda uma

    metafsica da representao nasce dessa concepo, com reflexos at hoje, haja vista a

    teoria de Chomky sobre a linguagem internalizada, ao modo de uma gramtica

    universal.

    Para Port-Royal a lngua um sistema de signos. O envoltrio das idias so as

    palavras ou expresses. Apenas as idias ligam-se aos objetos. O nvel mais elaborado

    o nvel lgico das idias, a lngua exterioriza essa lgica, que o fundo comum por

    detrs da diversidade lingstica, da a gramtica fundir-se com a lgica. As palavras

    so sons distintos e articulados que se transformam em signos, encarregados de traduzir

    o que se passa no pensamento, isto , as operaes lgicas, tais como conceber, julgar,

    13

  • raciocinar. As palavras apenas marcam essas operaes. Os homens inventaram os

    signos para explicar seus pensamentos. Por detrs dos signos h toda uma lgica das

    idias e dos juzos.

    A gramtica busca mostrar como as idias ou essncias so significadas, quer

    dizer, qual a sua relao com a realidade.

    H um lado material da fala, sonoro, e um lado espiritual usado para significar o

    pensamento, que opera concebendo (compreenso intelectual), julgando (afirmao do

    ser das coisas) e raciocinando (juzos usados em um dedues). Em todas essas

    operao, funcionam proposies compostas de sujeito e predicado, o sujeito aquele

    que concebe e o concebido o atributo. A ligao, o verbo ser, vem do juzo e do

    raciocnio. O juzo a forma por excelncia do pensamento. A sintaxe gramatical

    baseia-se na proposio: os nomes designam os objetos, as substncias so designadas

    pelos substantivos e, os adjetivos designam seus atributos. O verbo afirma, diz o que .

    Apesar de analisarem pronomes e tambm oraes complementares, a tradio

    legada pela Gramtica de Port-Royal centra-se na idia de que a realidade

    representada por juzos, em que o emprego do verbo ser permite afirmar proposies.

    S assim o pensamento pensa realmente, pensa as coisas propriamente.

    Enquanto Lancelot e Arnauld ressaltam uma gramtica logicizada, Locke dar

    linguagem um papel mais complexo e significativo para o processo do conhecimento,

    no qual aquela deixa de ser transparente.

    Ao perguntar pela extenso e limite do conhecimento, Locke (1632-1704)

    critica acidamente a doutrina cartesiana do inatismo. Todo conhecimento nasce

    com a experincia e forma-se por obras das idias; idia todo e qualquer contedo do

    processo cognitivo. Quando tuna pessoa pensa, o objeto de seu entendimento so as

    idias que podem provir da sensao ou da reflexo. Se provocadas por um s sentido,

    so simples, como a idia de solidez; idias complexas como a de figura, derivam do

    espao, a de eternidade deriva do tempo, a de liberdade, deriva do poder.

    O empirismo de Locke leva em conta a linguagem, que passara praticamente

    desapercebida ou mesmo desprezada por Descartes, cuja ateno estava voltada para

    razo, para os processos mentais. Locke afirma que o homem, e s ele, equipado pela

    linguagem. Os sons so sinais de idias. A linguagem transmite pensamentos atravs

    desses sinais, marcas exteriores das idias internas. Os sinais so usados para

    compreender vrias coisas particulares, no h um nome para cada coisa e sim termos

    gerais para indicar seres particulares. As palavras, mesmo as abstratas, provm da

    14

  • sensao: os vrios e ricos pensamentos s so conhecidos quando manifestados por

    sinais. A conexo entre sons e idias no ocorreu de modo uniforme, como

    conseqncia temos as diversas lnguas.

    Distingue no uso da palavra sua marca sensvel e as idias dessas marcas. Locke

    elabora uma noo sofisticada de significado: as palavras significam as idias na mente

    de quem as usa, mesmo que as idias representem imperfeitamente as coisas. Como as

    palavras marcam as idias, no faz sentido aplic-las a outras idias, pois no teriam

    significado. Se forem acerca de algo desconhecido, diramos, se no tiverem referente,

    no passam de sons sem significado. O significado aprendido para expressar

    determinada idia, o que permite a compreenso. Assim, se algum entender pela

    palavra "ouro" apenas uma de suas propriedades, ir aplicar aquele som apenas quela

    propriedade. Por isso preciso supor que as marcas das nossas idias correspondem s

    marcas das idias dos outros para haver compreenso, hoje diramos, comunicao. As

    palavras so usadas para falar da realidade das coisas e no fruto da imaginao

    pessoal. Com o uso freqente firma-se, fixa-se a relao entre sons e idias a ponto de,

    quando algum ouve tal som, lhe vem a idia como se fosse a prpria coisa que

    impressiona os sentidos. H tambm palavras empregadas apenas como palavras. "Mas

    se as palavras tiverem uso e significao (grifo meu), haver conexo constante entre

    som e idia, e a designao apropriada. Sem esta aplicao "elas no so mais do que

    rudo sem significado", afirma Locke (S/D: 325). O significado de um som limitado

    idia correspondente. Parece lcito afirmar que Locke j distingua entre significante,

    significado e seu conjunto, idia, ou seja, grosso modo, o signo.

    As palavras s se tornam significativas no discurso. No discurso usam-se

    palavras para significar em geral e por cada pessoa em particular quando fala com outro.

    Essas consideraes sobre a linguagem como sendo fundamental para as idias, so

    fruto do empirismo, o material sensvel fornece as idias que so depois elaboradas

    como idias de reflexo. De certo modo Locke sugere que o conhecimento demanda,

    para seu desenvolvimento, a linguagem, que aprendida, exercitada. No comete o erro

    de pensar que h uma relao direta entre sinal e coisa designada ou referida. O

    significado expressa uma idia e essa provm da experincia, sem a qual a mente

    tabula rasa, vazia.

    Na mesma vertente do pensamento ingls do sculo XVII, Hobbes (1588 - 1679)

    pressente o papel decisivo da linguagem como fator de conhecimeto.

    15

  • So interessantes suas observaes na primeira parte do Leviat, chamada Do

    homem-, analisa a linguagem como a "mais til e nobre das invenes" (1979, p. 20).

    Consta de nomes e suas conexes que servem para transmitir e registrar pensamentos.

    Ainda que com o pressuposto de que o pensamento essencial (o que inevitvel

    pressupor at a virada lingstica), afirma que sem linguagem "no existiria entre os

    homens nem Estado, nem sociedade, nem contrato, nem paz" (HOBBES,1979: 20). A

    cadeia de pensamento passa para a cadeia de palavras. Os sinais servem para registrar,

    aconselhar, dar a conhecer sua vontade, agradar. Mas h abusos, como o engano, a

    ofensa, a mentira, as metforas perigosas. Hobbes procura mostrar como e porque a

    ao humana precisa ser produtiva em seus efeitos, principalmente o de sobreviver.

    Seguindo os princpios do nominalismo, Hobbes afirma que os universais no

    passam de nomes, no correspondem a nenhuma idia ou conceito que pudesse ter ou

    tivesse de fato consistncia ontolgica, diversamente das tendncias conceptualistas

    platnicas e cartesianas. Mais um sinal da atualidade de Hobbes. O que existe no so

    as idias ou os conceitos mas as coisas nomeadas, individuais e singulares. Verdade e

    falsidade so atributos da linguagem e no das coisas. H verdade sempre que houver

    uma adequada ordenao de nomes em nossas afirmaes. Para chegar verdade, deve-

    se lembrar que coisa substitui cada palavra de que algum se serve e que ser colocada

    de acordo com esse uso e relao.

    No h conhecimentos absolutamente certos e evidentes, pois pelos discursos

    jamais se saber se isto ou aquilo foi, ou ser. O conhecimento sempre condicional.

    "E no se trata de conhecer as conseqncias de tima coisa pela outra, e sim as do nome

    de uma coisa para outro nome da mesma coisa", diz ele (1979: 40). Quer dizer, o modo

    como se lida com as coisas, atravs da linguagem, importa. Hobbes pode ser

    considerado um caso parte na progresso da concepo representacionista. E o que

    pensa Rorty, para quem o empirismo nominalista foge regra epistmica do sculo

    XVn, segundo a qual a mente espelha ou representa as coisas atravs das idias. Para

    Hobbes o que conta o uso de nomes, a linguagem.

    Esta incurso histrica ilustra o quanto a linguagem permaneceu secundria, pois

    no paradigma representacionista, a pergunta essencial da filosofia clssica pelo

    conhecimento, pela relao entre uma exclusiva e soberana razo (culminado nas

    formas puras a priori kantianas) e o mundo, como mostra Foucault em As palavras e as

    coisas. As excees no modelo fundacionista so, segundo Rorty, os empiristas, Locke

    16

  • e Hobbes, para os quais no h uma mente ou razo soberana, mas um esforo das

    idias e da linguagem para chegar ao conhecimento das coisas.

    2. SIGNO E REFERNCIA

    Com notveis avanos e, ao mesmo tempo com srios entraves, a anlise de

    Saussure ponto obrigatrio na discusso da relao dos signos com o chamado fator

    extralingstico. A lingstica, a fim de poder constituir-se como cincia, deve ocupar-se

    da langue e no da parole, pois esta ltima representa um verdadeiro obstculo

    epistemolgico para o lingista. A referncia fica fora da linguagem, uma vez que para

    a linguagem contam apenas s relaes intrasgnicas. O que tem duas conseqncias,

    sendo a primeira produtiva, pois, como veremos, falar relacionar signos entre si e no

    signos com a realidade. A segunda conseqncia mais problemtica: a lingstica

    estrutural constrangida a abandonar o problema da referncia para preservar o carter

    cientfico da prpria lingstica. Como referir depende de fatores extralingsticos na

    viso estruturalista (o que extremamente questionvel, como veremos ao longo deste

    trabalho), cabe filosofia e/ou lgica estabelecer aquela relao, na qual encontram-se

    implicadas as questo da verdade, verificabilidade, valor de verdade, e outras, nenhuma

    delas pertinentes lingstica, segundo Saussure.

    2.1. O Signo Lingstico

    Para Saussure a anlise da linguagem deve ter carter cientfico, o que se obtm

    circunscrevendo o objeto de estudo da linguagem naquilo que chamou de langue. Em

    Curso de Lingstica Geral (1916, obra pstuma, fruto das anotaes de seus alunos)

    explica que "lngua" no o mesmo que linguagem. Todas as sociedades possuem um

    meio de comunicao articulado, a linguagem. Dificilmente se chega unidade da

    linguagem por ela ser "multiforme" e demandar abordagens fsica, fisiolgica, psquica,

    estando ao mesmo tempo no domnio do individual e do social. Mas por detrs das

    inmeras lnguas preciso localizar algo comum para se fazer cincia e que pudesse

    tambm dar conta da noo de articulao lingstica.

    No corte entre fatos sincrnicos, que so atuais e efetivos, e fatos diacrnicos,

    que so histricos, temporais, segundo Saussure a lngua pertence aos primeiros, pois

    um sistema de signos: "A lngua um produto social da faculdade da linguagem e um

    conjunto de convenes necessrias, adotadas pelo corpo social para permitir essa

    faculdade nos indivduos (...) um todo por si e um princpio de classificao" (1975:

    17

  • 17). Atualmente diramos que a lngua uma estrutura. A coletividade fornece o

    instrumento essencial faculdade (no vem ao caso se natural ou no) de articular

    palavras. Para haver lngua preciso que a signos distintos correspondam idias

    distintas. Para encontrar a lngua em meio linguagem, Saussure analisa o circuito da

    fala que demanda dois indivduos, pelo menos, possuindo em sua conscincia conceitos

    associados s representaes dos signos lingsticos ou imagens acsticas que

    exprimem signos. Implica ainda que haja uma parte fsica, a das ondas sonoras, e uma

    parte psquica (imagens verbais e conceitos). Todo esse processo foi desenvolvido e

    mantido por homens vivendo em sociedade. A parte fsica no foi a responsvel por

    esse fenmeno e nem a parte psquica que sempre pessoal, pois toda execuo da

    lngua obra de indivduos.

    Para que todos pudessem executar a fala, foi-se armazenando, segundo Saussure

    "um sistema gramatical (grifo nosso) que existe virtualmente em cada crebro ou, mais

    exatamente, nos crebros de um conjunto de indivduos"(1975: 21). Trata-se do par

    opositivo lngua/fala. A lngua social, essencial, no demanda uma tomada de

    conscincia, o indivduo no pode cri-la nem modific-la. Requer aprendizado e vem

    fixada pela comunidade que a fala. homognea, une o sentido imagem acstica,

    um sistema de signos que exprime idias, situado entre as instituies humanas. A

    semiologa a cincia que estuda "a vida dos signos no seio da vida social"(l 975:24),

    seu funcionamento e as leis que os regem. A lingstica faz parte da cincia da

    semiologa.

    Ao lado da lingstica da lngua, h a lingstica da fala, subordinada primeira.

    Como a Ma individual e acessria, no pode ser estudada sem a lngua. Se na fala se

    alteram sons, por exemplo, essa alterao puramente fontica, no perturba as

    imagens acsticas da lngua. Porm, uma no existe sem a outra, inclusive

    historicamente a fala precedeu a lngua. Ela o meio de aprendizado da lngua materna,

    o que faz evoluir a lngua. Esta encontra-se "depositada" no crebro de cada um, como

    se fosse um dicionrio com exemplares idnticos distribudos a cada indivduo,

    independentemente de sua vontade. como que uma estrutura inconsciente formada

    pelas regras que possibilitam toda e qualquer emisso significativa. Por isso, lingstica

    propriamente dita, apenas a lingstica da lngua, uma vez que os fenmenos da fala

    "so individuais e momentneos".

    Emissor e receptor, lngua e fala, sincronia e diacronia, todos eles dependem,

    para funcionar, do carter articulatorio da lngua falada, que no uma simples lista de

    18

  • termos correspondentes a coisas. No h idias acabadas anteriores palavra. A relao

    entre palavras e coisas no provm de uma correspondncia um por um. O que forma a

    unidade lingstica so dois termos, porm enganoso conceb-los um como lingstico

    e o outro exterior ao lingstico. Ambos so termos "psquicos" e seu vnculo tambm

    psquico. "O signo lingstico no une uma coisa e uma palavra, mas um conceito e uma

    imagem acstica" (1975: 80). Esta afirmao fundamental para a lingstica e tem

    profundas conseqncias para a filosofia da linguagem, como veremos mais adiante. A

    imagem acstica no o som, mas a impresso do som no psiquismo, tanto que se pode

    falar consigo mesmo sem pronunciar som algum. Compe-se de fonemas. A imagem

    acstica vem sempre associado um conceito, mais abstrato ainda. A combinao de

    ambos chama-se signo. O conceito chamado de significado e a imagem acstica

    chamada de significante. A seqncia fonolgica s um signo se exprime um

    conceito.

    Todo signo arbitrrio, pois a unio entre significado e significante

    arbitrria. A idia, o conceito, ou mais apropriadamente, o significado de "mar", afirma

    Saussure, no est ligado por nenhuma relao prvia aos sons [mar]que lhe servem de

    significante. Poderia bem ser outra seqncia de significante. Tanto que o significado

    de "boi" tem os significantes [boef] do lado francs da fronteira, e [oks], do lado

    alemo, exemplifica Saussure.

    O smbolo no possui o carter de arbitrariedade, pois a balana vem sempre

    associada idia de justia, mostrando que h uma motivao e no pura arbitrariedade.

    Saussure no pretende com a noo de arbitrariedade dizer que o signo depende da livre

    escolha de cada um ou de cada lngua, mas sim apontar para o aspecto imotivado da

    relao entre significado e significante, isto , no h um lao natural entre eles na

    realidade, com a discutvel exceo das onomatopias.

    A lngua feita destes signos estruturados de acordo com regras supra-

    individuais, funciona atravs de relaes sincrnicas como um sistema de valores puros.

    As idias, ou o pensamento, seriam massa amorfa sem os signos, no h idias que se

    possam estabelecer previamente aos signos. Interessante observar que foi um lingista e

    no um filsofo quem evidenciou que pensamento sem a articulao da linguagem,

    vazio (e no sem os dados do sentido, como queria, por exemplo, Kant).A substncia

    fnica tambm indistinta sem os significantes. Cada termo funciona de modo a

    articular a fixao de uma idia a um som e faz com que determinado som se torne

    signo de determinada idia. Pensamento e som, significado e significante, so como

    19

  • verso e reverso da mesma folha de papel, ao cortar-se um, corta-se tambm o outro.

    Combinados, tornam-se formas cujos valores so relativos a seu papel e posio. Esses

    valores so fixados pelo uso. Um termo no decorre da simples unio entre significado e

    significante, pois regrado pelo seu lugar e funo no interior do sistema e este define,

    recorta, reveste de valor cada termo. Tomando a significao como resultado da

    associao entre significante e significado, o signo resultante tambm um valor com

    relao aos demais signos da lngua. Quer dizer, o significante pode ser "trocado", pois

    um valor, por algo diverso dele, o conceito. O signo ter uma significao, um valor,

    que delimitado e determinado pelos outros signos do sistema da lngua. Da o carter

    opositivo dos signos, tal como no jogo de xadrez, as peas valem pela sua localizao,

    movimentao, enfim, pelas regras do jogo. H uma combinatoria de elementos no

    simplesmente linear, que forma os sintagmas, "reler", "contra todos", "Deus bom". A

    articulao prev ao lado destas relaes horizontais, as associaes verticais entre

    paradigmas que formam grupamentos virtuais. Assim "guardar" pode vir associada e ser

    comutada com, "conservar", "manter", "vigiar".

    O mecanismo da linguagem funciona atravs dessa dupla articulao de regras

    para formar frases efetivamente e nelas "encaixar" elementos virtuais.

    2.2. O Problema da Referncia para Saussure

    Como vimos, at o sculo XVIII, predominava a noo de que a linguagem

    reflete o pensamento, cujas leis so universais. Sob a superfcie das frases gramaticais

    h tuna articulao lgica mais profunda, a de um sujeito lgico e sua relao com um

    predicado, o que espelharia a relao que todo ser na realidade tem com seu predicado.

    Hoje, com exceo de Chomsky, tanto a lingstica como a filosofia da linguagem

    rejeitam a noo de universalidade e necessidade de uma estrutura que seja fulcro,

    modelo universal e necessrio para toda e qualquer frase ou emisso verbal.

    As pesquisas em sociolingstica, desde seus pioneiros Sapir e Worf,

    desmontaram uma noo largamente aceita entre os primeiros filsofos analticos,

    raramente criticada, a no ser pelo ngulo da sociolingstica: a de que a linguagem

    atravs das proposies, descreve a realidade, configurando-a atravs da forma lgica,

    nico modo de produzir significado. Desde Aristteles, passando pela Gramtica de

    Port Royal, at o verificacionismo de um Carnap, a proposio (seja na forma

    sujeito/predicado, seja atravs de quantificadores da lgica proposicional) foi eleita a

    forma privilegiada, elementar e invarivel da linguagem.

    20

  • Whorf, discpulo de Sapir, radicalizou as idias deste na sociolingstica. Para

    Sapir o lxico exclusivo de cada lngua, para Whorf at mesmo a organizao sinttica

    particular e prpria de cada lngua, no contendo uma forma lgica, matriz geradora,

    universal. Assim, o pensamento, a "lgica", os tipos de raciocnios, inferencias, etc.

    variam, como variam a sintaxe e o lxico. O modo de se conhecer a realidade,

    especialmente nos contatos mais simples e imediatos com a natureza, depende das

    lnguas e das culturas. O mundo organizado conceptualmente pelas significaes que

    atribumos e no poderia ser diferente, pois a comunidade lingstica recorta a natureza,

    concebe-a atravs dos cdigos das lnguas. Cada modelo lingstico levanta um tipo de

    observao do seu meio conforme suas necessidades bsicas. Assim que os Hopi

    (tribo norte-americana), devido a fatores geogrficos e hbitos culturais, desenvolveram

    sua lngua e sua cultura, e, ao mesmo tempo essas influenciaram seu modo de vida,

    formando toda uma concepo de mundo. Habitavam um terreno rido, formavam uma

    sociedade agrcola isolada, sendo necessrio desenvolver um trabalho rduo na estreita

    dependncia de um escasso regime de chuvas. Tudo isso fez com que tivessem laos

    slidos com a tradio, sentimento forte de colaborao e de religiosidade. "Esses

    fatores entraram em interao com os modelos (patterns) lingsticos hopi, moldaram-

    nos e foram por sua vez moldados por eles, tendo-se assim desenvolvido pouco a pouco

    a concepo de mundo hopi", explica Whorf conforme lemos em Schaff (1957: 157-

    158). S podemos pensar numa lngua, afirma Whorf. As lnguas que obedecem ao

    padro europeu tendem a distinguir no mundo coisas, objetos, produtos. J os hopi vm

    o mundo como um conjunto de acontecimentos. Nas lnguas indo-europias dir-se-ia,

    por exemplo, " uma fonte que jorra", os apaches dizem: "Como a gua ou a fonte, a

    brancura move-se para baixo". As combinaes de elementos em produtos sintticos

    demonstra a possibilidade de imagens do cosmo diferentes da estrutura proposicional,

    tpica do modelo aristotlico das proposies compostas de sujeito e predicado. Para

    esse modelo a um sujeito, a uma substncia, atribui-se determinadas propriedades ou

    predicados. O verbo vem ligado s coisas, o cosmo reificado. Na tradio ocidental, o

    ser aquilo de que se predica algo, a organizao sinttica segmenta a realidade em

    substncias com seus atributos. Evidentemente as diferenas apontadas pela

    sociolingstica no impedem que todas as lnguas sejam igualmente aptas ao

    conhecimento e lida com as coisas e situaes, ao trato comunicativo e manuteno

    das tradies, pelo contrrio, pois o modelo proposicional no sendo universal e nem

    21

  • compulsrio epistemicamente falando, isso mostra a necessidade de ir ao que no

    incorrigivelmente o caso, como diria Rorty.

    Do que se conclui que a lingstica sugere meios para lidar com o problema da

    relao entre significao e realidade, ao contrrio da suposio de Saussure. Mesmo

    levando-se em contra que os propsitos de Sapir e Saussure no sejam os mesmos,

    importa ressaltarmos justamente a complexidade da linguagem, quer sob o ponto de

    vista da organizao sinttico lexical das lnguas, quer sob o ponto de vista de sua

    estrutura que permite articular sons a significados. justificvel, compreensvel e

    teoricamente produtiva a proposta de Saussure de que a significao no decorre de uma

    ligao obrigatria com as coisas, nem h nas coisas ou situaes, algo que as ligaria

    mgicamente ao signo.

    A lingstica herdeira de Saussure adota a hiptese de que a referncia deve ser

    excluda da compreenso e do funcionamento dos signos.

    Na lingstica de vertente estrutural-saussureana, o signo, como vimos,

    arbitrrio e convencional. No obrigatoriamente pela relao referencial que o signo

    tem a capacidade de realizar semiose, isto , de significar algo para algum. O tropeo

    terico de Saussure reside na sua proposta de que entre o significante e o significado

    no h nenhuma ligao interior. O significado "casa" tem como significantes [casa],

    [Haus], [maison]. Isto mostra que Saussure acaba por introduzir um terceiro elemento

    no interior do signo que a prpria coisa externa, a realidade, j listamente aquilo que

    ele pretendera deixar de lado, pois os significantes acima relacionados se reportam

    mesma realidade, ao objeto fsico ou cultural chamado de casa, extralingstico, e no

    ao significado lingstico "casa", como demonstrou Benveniste em Princpios de

    Lingstica Geral (1966) . Desse modo, segundo Benveniste, Saussure contradiz o

    princpio por ele mesmo enunciado, de que a lingstica a cincias das formas. Da a

    necessidade de excluir a substncia, ou coisa da significao e da compreenso do

    signo. O signo, e nisto Saussure est correto, se compreende por oposio a outros

    signos no jogo de regras internas do sistema da langue. Por isso seria necessrio uma

    correo de rota no pensamento de Saussure, e Benveniste prope que o lao que une o

    significante ao significado necessrio, interior ao signo e no arbitrrio. O "arbitrrio

    que tal signo e no tal outro seja aplicado a tal elemento da realidade e no a tal outro"

    (BENVENISTE,1966:52).

    Os signos designam, isto , querem dizer algo, significam, porm no referem.

    No so eles que realizam a relao propriamente dita de referir, de estabelecer uma

    22

  • relao entre as palavras e as coisas, entre dizer e ser. Tratar das relaes intrasgnicas

    evita incluir a "coisa" no interior do significado. Se houvesse uma conexo necessria

    entre o signo e o objeto que ele designa, a capacidade lingstica de semiotizao, de

    significao, ficaria prejudicada. Falar limitar-se-ia a nomear.

    Neste sentido, a relao entre signo e realidade no deve e nem pode ser

    resolvida pelo lingista. Ela cabe filosofia, como propusera Saussure. Mas, ainda que

    a questo da referncia seja filosfica, pois que a filosofia da linguagem no se limita

    descrio dos elementos constitutivos das lnguas -, as consideraes da lingstica

    estrutural so pertinentes para desfazer problemas filosficos. A lingstica estrutural

    renuncia a incluir a realidade na compreenso sgnica, evidenciando dessa forma que a

    linguagem o lugar onde as idias emergem, atravs dela que a realidade recortada

    (tanto pelo lxico como pela estrutura sinttico-semntica) e tornada significativa,

    compreensvel, suscetvel de comunicao verbal. A referncia s coisas, podemos

    concluir com acerto, guiada (ou at mesmo "produzida", como discutiremos mais o

    adiante no 3 captulo) pela significao e no o inverso, como pensam as teonas

    representacionistas da linguagem e do conhecimento. Pela tradio estruturalista no se

    est autorizado a sair dos limites da frase gramatical, portanto, no h como "resolver" o

    problema da referncia. As palavras se combinam atravs de regras gramaticais,

    sintticas e semnticas, para a produo de todas e somente aquelas que so frases da

    lngua. Importa a competncia verbal, o designatum, ficando o denotatum fora do

    sistema, problema que o lingista deixa para o filsofo resolver, observa Lopes (1977:

    249-250). A introduo do real no lingstico, pensar contraditoriamente como fez

    Saussure, que o significante varia conforme as lnguas, implicaria que se pode inventar

    seqncias sonoras e a elas relacionar significados, esquecendo-se que os signos so

    convencionais, que a relao entre significante e significado necessria.

    O que conduz importante noo de que a lngua no se limita a puro

    instrumento do pensamento, a cdigo de sinais de que cada um se serve para comunicar

    o claro e lmpido pensamento, sujeitado ao meio precrio dos cdigos lingsticos, aos

    signos. O senso comum costuma afirmar que as palavras so meros sons, que as lnguas

    so limitadas, que o pensamento claro e distinto encontra nelas um obstculo para

    expressar-se. Nada mais enganoso do que este cartesianismo fcil. No h linguagem

    como conjunto de sinais, uma espcie de cdigo telegrfico, meio de traduo do

    pensamento. Pelo contrrio, so as lnguas, com suas construes (as frases

    23

  • gramaticais), que funcionam como que sintetizando, no sentido kantiano do termo, a

    "realidade".

    Devido ao fenmeno da transparncia lingstica, o falante pensa que "h entre o

    signo e a realidade uma adequao total: o signo recobre e dirige a realidade, ou melhor,

    ele essa realidade", afirma Benveniste (1966: 52). Objeto e nome se confundem. J o

    lingista trabalha com a relao entre significante e significado e o "domnio do

    arbitrrio relegado para fora da compreenso do signo lingstico"(1966: 52),

    completa Benveniste. Em outras palavras, a significao no decorre da referncia. A

    lngua agencia os signos distintos e distintivos para dar fonna s expresses, s trocas

    lingsticas.

    O problema, e este um ponto bastante controvertido, so as razes invocadas

    para deixar a referncia de fora do mbito da lingstica. Linguagem e significao

    diferem de realidade e denotao, apenas pelos motivos acima apontados. Se o motivo

    for "salvar" o carter cientfico da lingstica, argumentando que ela uma cincia

    acerca do sistema, da forma, da estrutura, ou seja, das regras que comandam as lnguas

    (cincia da langue) -, o resultado ser excluir toda uma srie de fatores e fenmenos

    nada secundrios, no s a coisa referida (conotatum) como tambm a fala, a inteno, o

    uso, as interaes, verbais. Enfim, o que for da ordem da fala e do discurso, que

    necessariamente envolvem fatores do contexto e da situao, acaba no sendo analisado

    pela cincia da linguagem, simplesmente por se tratar de fenmenos variveis, cujo

    carter aleatrio, ou como afirma Saussure, individual e acessrio, impede qualquer

    tentativa de tratamento cientfico.

    A questo da cientificidade da lingstica (em que pese o fardo de supor ser

    necessria a discusso do estatuto epistemolgico de "cincia") e do seu alcance,

    continua sendo um problema crucial (como veremos com Chomsky e com as discusses

    sobre o estatuto da "anlise do discurso"). Ocorre que esse problema s pode ser

    equacionado se levarmos em conta justamente o que Saussure apontara como

    secundrio, a parole. Com o que fica evidente a necessidade que supomos essencial, de

    sair dos limites do signo e das relaes exclusivamente intrasgnicas, e fazer a anlise

    avanar at os atos de fala e os atos de discurso. Nestas dimenses o problema da

    relao linguagem/mundo visto sob perspectivas mais satisfatrias, tanto para a

    filosofia da linguagem, como para a lingstica.

    24

  • 3.C0NCEIT0 E OBJETO

    Saussure diz que o significado corresponde a um conceito, e pouco adiantou

    alm dessa considerao. A filosofia da linguagem explora esse problema. Como

    possvel que a um signo corresponda um objeto? Os filsofos introduzem o conceito

    como ponte entre ambos. Desde Plato, passando pela Idade Mdia, entre a coisa e sua

    denominao, h algo "mental", supra-sensvel, denominado de "idia" ou "conceito".

    Seriam ou no as palavras aptas a denominar os conceitos, e por sua vez, os conceitos

    seriam as imagens mentais ou signos mentais das coisas reais?

    Grande parte da filosofia clssica no duvida de que h um mundo real de um

    lado e o pensamento de outro lado, prenhe de conceitos e idias. O nominalismo de

    Occam uma exceo tendncia generalizada de atribuir aos nomes uma relao

    direta com os conceitos encarregados de espelhar ou representar a realidade, o mundo

    exterior. Para o nominalismo, os conceitos no passam de nomes, rubricas, simples

    signos que renem seres individuais sob um nome geral.

    O "reinado da coisa-em-si", como diz Habermas, e do pensamento que reflete as

    coisas em conceitos, perdura at Kant (1724-1804). Para Kant a coisa em si no

    cognoscvel, o que se conhece so os fenmenos, as coisas tais como elas se manifestam

    pelo instrumento da sensibilidade e da razo. Porm Kant preocupa-se apenas com as

    formas puras da razo, a linguagem um fator que s passa a contar a partir do sculo

    XIX. O que possibilita pensar a coisa um puro conceito mental, ou uma capacidade

    de significar, de verbalizar?

    Diante de dois ou mais objetos fsicos, seus limites ou semelhanas

    identificadores provm exclusivamente deles mesmos, so impostos pela realidade? Por

    exemplo, a diferena entre uma casa "bem acabada" e outra "rstica" reside na coisa em

    si e da viriam os conceitos de "casa" e de "cabana" que os signos apenas traduziriam?

    O problema , exatamente onde no objeto estariam as diferenas pertinentes para que se

    os nomeie?

    Realistas e conceptualistas pensam assim: a realidade traz em si, discriminados,

    os seres. Basta, ento nome-los. Como se o problema filosfico ou o problema

    metafsico por excelncia consistisse em conhecer o que so exatamente os seres, em si

    e por si prprios, independentemente de um sujeito, ou melhor, de sujeitos que falam.

    A linguagem pblica. Kant, como dissemos acima, j havia mostrado ser impossvel

    conhecer algo em si mesmo: preciso que as formas puras do entendimento e da razo

    25

  • discriminem os fenmenos da realidade externa, que, sem essas formas, no passariam

    de um amontoado catico. Hoje diramos que sem a linguagem, sem algum tipo de

    semiotizao codificadora, a "realidade" ficaria ininteligvel. As situaes motivam a

    ao e o conhecimento, evidentemente, a realidade no maquinao ou elucubrao

    mental. Porm sem a linguagem nomeando, designando, situando, esclarecendo,

    discriminando, recortando, afirmando, etc., enfim, sem algum tipo de semiose, isto , de

    processo sgnico, at mesmo a mais simples das intervenes do homem no mundo seria

    impraticvel.

    Portanto, falar no interrelacionar uma coisa com uma palavra, mas relacionar

    signos entre si, ou melhor, formular frases, utilizar sentenas que sirvam para referir-se

    a fatos no mundo, que so, por sua vez, "moldados" pela linguagem.

    O signo lingstico operacional, no est simplesmente no lugar de algo.

    Contrariamente ao que pensa a tradio filosfica, o pensamento no um tabernculo

    onde os conceitos abstratos so encerrados. O pensamento lingstico, como

    sustentaremos mais adiante nos captulos LU e IV. No se limita tarefa admica da

    nomeao, nem tarefa platnica da conceptualizao.

    A prpria capacidade de nomear ou de denotar no intrnseca ao signo, como

    se ele estivesse ligado por um cordo mgico a seu referente. E isso por diversas razes:

    h signos que absolutamente no possuem referente ("no", "se"); os signos no so

    etiquetas das coisas; os signos no possuem um significado fixo (fixidez essa

    pressuposta por todos aqueles que concebem a linguagem como cdigo de signos

    etiquetados); enfim, como Saussure mostrou, signos valem. Se tal se deve ao sistema,

    como preconiza o estruturalismo de vertente saussureana, ou no, discutvel, pois,

    como veremos, a fala, longe de instaurar o caos e de representar um empecilho para a

    propalada aquisio do status de cincia por parte da lingstica, tem sido campo frtil

    para a pesquisa lingstica.

    De qualquer maneira, nada do que acima afirmamos implica em isolar a

    linguagem dos fatores externos a ela. Afinal nos servimos de palavras tambm para falar

    das coisas. No que haja um universo lingstico parte, servido numa bandeja. E

    preciso mais de que um cdigo decifrador, mais do que uma relao um por um entre

    signo e coisa nomeada para que uma frase, a mais banal, como o famoso exemplo de

    Putnam "H um gato sobre o capacho", seja dita e compreendida.

    Um dos diversos problemas a que o exemplo d margem, justamente o do

    conceito mental "gato". Num suposto universo platnico, ou num cogito cartesiano h

    26

  • uma entidade ideal ou uma idia correspondente ao felino que o signo "gato" nomeia? O

    conceito serviria de ponte abstrata entre signo e a coisa?

    A tradio platnico-cartesiana perdeu fora na modernidade. Ao invs de

    pensar o conceito como imagem abstrata e suporte do significado, h quem afirme que o

    conceito o prprio contedo das formas lingsticas. O mesmo conceito pode ser

    realizado por mais de um signo. Eles funcionam no interior do esquema de

    comunicao/compreenso de expresses lingsticas da seguinte forma: um falante,

    motivado pela situao, conceitua certa faceta da realidade atravs de significaes

    (traos que compem o significado), adequadas para expressarem apropriadamente este

    ou aquele significado pertencente ao sistema da lngua, de modo a que o ouvinte saiba

    de que o falante est tratando, quando o falante a ele se dirige. H quem pense que os

    conceitos so independentes das lnguas, o caso de Baldinger (1980) e de Chomsky

    (2000). Os conceitos formam um campo ou um sistema lgico/mental de relaes, cujas

    estruturas provm das diversas lnguas, mas as ultrapassam, para o primeiro, e para o

    segundo fazem parte da estrutura inata da mente. Os significados devem poder traduzir

    o mais fielmente possvel o conceito que expressam.

    Dois problemas se pem: no sero os conceitos mentais e universais uma mera

    duplicao que apenas sofistica os significados? Pretende-se que os conceitos sejam o

    meio atravs do qual se d a relao entre palavras e coisas. Eles do conta desta tarefa?

    Acreditamos que no h nenhum ganho em pressupor que alm dos signos haja

    entidades mentais, afinal a virada lingstica ocorreu, a modernidade experimenta um

    processo de arejamento no cu platnico e no cogito cartesiano. Para que multiplicar

    entidades? Alm disso, a noo de significado seja como objeto abstrato, seja como

    conceito mental, mais atrapalha do que ajuda a explicar a referncia. O problema da

    referncia, isto , de como com as palavras pretendemos identificar algo ou uma

    situao para algum e somos bem-sucedidos nesta empreitada, nada ganha com a

    pressuposio de que os conceitos, espelhados em significados lingsticos, realizam

    essa mgica.

    Por ltimo, como saber se o conceito apropriado coisa? A lingstica

    estrutural no tem meios de mostrar qual seja a natureza dessa relao e nem pretende

    t-los. Se tivesse essa pretenso acabaria por abrir mo justamente da noo de que

    signo valor e no uma entidade em si, uma substncia. Essa uma contribuio

    valiosa da lingstica para a prpria filosofia da linguagem cujos pressupostos sejam

    ps-metafsicos.

    27

  • 4. OS LIMITES DA SEMNTICA

    A lingstica estuda desde a menor unidade significativa que o fonema, at a

    maior unidade significativa que a fiase gramaticalmente bem construda, isto , de

    acordo com as regras fonolgicas, sintticas e semnticas. A frase "ns cheguemos

    tarde" uma frase de alguns idioletos da lngua portuguesa, porm "cheguemos e ou"

    anmala, provavelmente jamais ser dita, servindo apenas como exemplo. O nvel da

    frase o nvel superior para as semnticas de cunho estrutural e representa o limite da

    lngua como sistema de signos. A partir da "entramos num outro universo, o da lngua

    como instrumento de comunicao cuja expresso o discurso", diz Benveniste (1966:

    130). Assim temos que, conforme se leve em considerao seja apenas a lngua, ou o

    par lngua/fala, ou ainda o discurso, da derivam diferentes teorias semnticas.

    A semntica do signo limita-se ao estudo dos traos que compem o significado.

    Para Saussure significante e significado so os dois lados da mesma moeda. no ponto

    de interseo entre as cadeias sintagmticas e paradigmticas que o signo recebe

    significado. A lngua prev relaes sintagmticas, horizontais dos elementos que regem

    a construo de frases, e relaes paradigmticas entre elementos que podem vir a

    ocupar o lugar virtual de cada signo, em substituies verticais. O significado depende

    da posio que o signo ocupa e da funo que exerce. Em "as meninas atravessaram a

    rua", o significado de "as meninas" provm da posio sujeito e da funo nominal, e

    pelo fato de poder ser substitudo pelos signos associados a ele, como "as gurias",

    "elas", "as garotas" (substituio vertical, ocupao virtual de posio de signos que

    esto na memria de cada falante). Evidentemente o valor de cada signo, juntamente

    com seu significado pode mudar conforme as circunstncias da fala, mas o estudo

    propriamente lingstico deve ater-se quilo que o sistema da lngua permite formular

    atravs do jogo combinatorio das regras de articulao dos signos no interior das frases.

    Diz Saussure:

    Nossa memria tem de reserva todos os tipos de sintagmas mais ou menos complexos, de

    qualquer espcie ou extenso que possam ter, e, no momento de empreg-los, fazemos intervir os

    grupos associativos para fixar nossa escolha. Quando algum diz "vamos!", este figura por um

    lado na srie "vai!" e "vo!", e a oposio de "vamos!" com essas formas que determina a

    escolha; por outro lado, "vamos!" evoca a srie "subamos!", "comamos!", etc. (...) Em cada srie

    sabemos o que preciso variar para obter a diferenciao prpria da unidade buscada. Mude-se a

    idia a exprimir, e outras oposies sero necessrias para fazer aparecer um outro valor (1975:

    151).

    28

  • Igualmente tendo como limite a frase estruturada, a semntica componencial de

    Katz e Fodor, associada num primeiro momento s teses de Chomsky sobre a gerao

    pela competncia verbal, de toda e qualquer frase de uma lngua, adota a noo

    chomskiana de produtividade. Devido a sua competncia lingstica o falante produz e

    reconhece frases j ouvidas e/ou ditas, bem como frases novas. O problema para a

    semntica delimitar seu nvel superior. Ao levar-se em conta o contexto da fala para

    selecionar seu significado, ter-se-ia que construir uma teoria que desse conta desse

    imenso universo do falante e das inumerveis e variveis situaes de fala. Por isso

    Katz e Fodor circunscrevem a semntica capacidade que tem o falante de detectar

    ambigidades, anomalias, sinonimias, aplicando to somente regras gramaticais,

    excluindo ciados do contexto, por estarem fora do limite superior da descrio

    semntica. Num nvel profundo, so geradas todas e apenas aquelas frases da lngua.

    Chomsky no trabalha mais com o modelo de estrutura profunda/estrutura superficial. A

    semntica componencial encontra srias dificuldades, como veremos, por pretender dar

    conta da semntica. Chomsky restringiu-se sintaxe, at meados da dcada de 80, por

    entender que a semntica no pertence ao terreno das slidas conquistas da cincia (no

    captulo IV voltamos a tratar dessa questo). Para Katz e Fodor, os componentes da

    semntica so: um dicionrio contendo os itens lexicais; regras de projeo que dizem

    como pode ser integrado cada item do dicionrio para formar as frases; informao

    sinttica (nome, adjetivo, verbo); marcadores semnticos que fornecem informao

    semntica (humano, macho, animal, objeto, etc.); distinguidores que especificam o item

    lexical com relao a sinnimos; restries de seleo que fecham a descrio semntica

    das ocorrncias conforme a apropriao do uso.

    Trata-se de uma teoria semntica que pouco avana com relao s vrias teorias

    do campo semntico que tambm trabalham com traos distinguidores e evitam estender

    a semntica alm dos signos, ficando de lado a frase dita em situao, o falante, a

    relao da significao com a referncia. Apesar do esforo para evitar o apelo

    situao de discurso, as restries de seleo so estabelecidas pelo que se quis dizer

    naquele momento, com aquela frase, a algum. De outro modo, xingar algum com

    "voc uma porta!" seria ininteligvel por ferir a restrio de seleo para a qual "porta"

    objeto fsico e por isso no pode ser atribudo a uma pessoa. A associao do

    significado de "porta" a algo inerte que permite o efeito semntico desejado. Alm

    disso, como observa Lopes (1977: 305), as definies nada mais so que sinonimia, com

    o que permanece insolvel o caso das conotaes que envolvem itens derivados de

    29

  • subcdigos. E mais: para usar adequadamente os distinguidores, preciso j se ter em

    mente o item escolhido. Para saber se "bachelor", como no famoso exemplo de Katz e

    Fodor, designa homem jovem solteiro ou foca na poca do acasalamento, a escolha

    entre o distinguidor "solteiro" e "animal jovem foca sem parceiro na poca de acasalar",

    pressupe que se conhece antecipadamente aquilo que se quis explicar ou significar

    (LOPES, 1977: 308-309).

    Da a pergunta: a lngua {langue) ou a competncia do falante bastam para dar

    conta do significado? So suficientes para dar conta de como operar com itens lexicais

    no interior de cdigos, mas insuficientes por deixarem de lado a performance verbal,

    que consideramos fundamental para explicar o significado e compreender o problema

    da referncia. O que d margem a interrogaes que ficam em suspenso: se as

    dicotomas lngua/fala, competncia/performance se sustentam; como lidar com as

    conotaes, com o dizer situado; deixa-se intocado o problema filosfico da referncia

    sob o pretexto de que a realidade e a relao de referncia extrapolam o limite do

    propriamente lingstico; ao mesmo tempo recorre-se ao "teste" da realidade (situao

    de fala) para dar valor semntico a certas frases, nas quais, se no for possvel

    identificar o referente que o falante tem em vista ao usar tal signo, a prpria inteno

    significativa fica alterada (nos prximos captulos retomamos o problema da fixao do

    referente).

    Se, por um lado, distinguir entre significao e denotao um dos saldos

    positivos da herana estruturalista (como vimos, a lngua semiotiza a realidade, no h

    uma relao um por um entre signo e realidade, o falante relaciona signos entre si), por

    outro lado, ao deixar o problema da referncia para o filsofo resolver, o que pode ser

    considerado um pleito justo, uma atitude que peca pela incongruncia. E que

    dificilmente a semntica consegue evitar o apelo ao extralingstico, como no caso

    acima apontado dos distinguidores e sua funo na caracterizao dos marcadores

    semnticos e na configurao dos campos semnticos.

    Essa situao cria um impasse, um vez que o universo lingstico no um

    universo parte e, ao mesmo tempo, amarrar a linguagem relao um por um entre

    signo e realidade implica em emascular a linguagem de sua fora que ultrapassa a

    simples nomeao, como o caso das vrias facetas da linguagem, tais como a funo

    designativa, o apelo ao ouvinte, a expressabilidade, a argumentao, a retrica, o jogo

    com metforas, as conotaes, etc.

    30

  • No entanto, gostaramos neste trabalho de evitar que a discusso desembocasse

    na disputa bizantina: h ou no sentido literal? Ou nas solues que separam

    componente lingstico de componente retrico, que, no fundo, no passam de anlises

    do tipo competncia/performance, ou at mesmo, limitam-se distino saussureana

    lngua/fala. A funo designativa ou referencial, segundo Jakobson, enfatiza o contexto.

    Ocorre por meio da verbalizao de um designation e no de um denotatum, isto , algo

    dito num contexto verbal sem a necessidade da correlao imediata com a ocorrncia

    de uma situao, objeto ou ente aos quais o signo teria que corresponder, para que o

    sentido se efetivasse. Nada muito diferente da tese de Frege, que abordaremos no

    pr