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FACULDADE SANTA MARCELINA Projeto de Pesquisa em Iniciação Científica PIBIC Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica A apropriação como homenagem na Suíte Retratos de Radamés Gnattali A citação no processo composicional Aluno: Lucas Zangirolami Bonetti Orientador: Prof. Dr. Maurício Oliveira Santos

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Page 1: Suíte Retratos de Radamés Gnattali - iar. FIG. 13 – Comparação melódica dos trechos iniciais (seção A) do terceiro movimento da Suíte Retratos, de Radamés Gnattali, e de

FACULDADE SANTA MARCELINA

Projeto de Pesquisa em Iniciação Científica

PIBIC – Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica

A apropriação como homenagem na

Suíte Retratos de Radamés Gnattali

A citação no processo composicional

Aluno: Lucas Zangirolami Bonetti

Orientador: Prof. Dr. Maurício Oliveira Santos

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RESUMO

O cerne deste estudo foi abordar a citação, com todo seu potencial criativo,

como procedimento composicional utilizado na obra Suíte Retratos de Radamés

Gnattali. Essa pesquisa também teve o intuito de compreender a síntese que

Radamés realiza com a escolha de quatro figuras fundamentais na história do

choro: Pixinguinha, Ernesto Nazareth, Anacleto de Medeiros e Chiquinha

Gonzaga. Por meio da análise composicional, procurou-se esclarecer de que

modo e em que momentos Radamés os cita e transforma o seu material

musical.

Palavras-chave: Radamés Gnattali, Suíte Retratos, choro, citação, processos

composicionais

ABSTRACT

The core of this study is to approach the citation, with all its creative potential, as

a compositional procedure used in the work Suíte Retratos by Radamés Gnattali.

This research has also the aim of understanding the synthesis that Radamés

accomplishes with the choice of four essential characters in the history of the

choro: Pixinguinha, Ernesto Nazareth, Anacleto de Medeiros e Chiquinha

Gonzaga. Through compositional analysis, it is clarified how and where

Radamés cites them and transform their musical material.

Key-words: Radamés Gnattali, Suíte Retratos, choro, citation, compositional

process

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SUMÁRIO

Página

Lista de Figuras 5

Introdução 8

CAPÍTULO 1 – Contextualização sócio-histórica do choro 15

1.1 A sedimentação do gênero

1.2 Os primeiros músicos e seus instrumentos

1.3 Chiquinha Gonzaga

1.4 Ernesto Nazareth

1.5 Anacleto de Medeiros

1.6 Origem do termo choro

1.7 Pixinguinha

1.8 Forma e harmonia

CAPÍTULO 2 – A apropriação musical como homenagem 35

CAPÍTULO 3 – Suíte Retratos 47

3.1 Introdução às análises

Desenvolvimento histórico da suíte como forma musical

Contexto histórico da Suíte Retratos

Pressupostos sobre as análises

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3.2 Análises

I – Pixinguinha

II – Ernesto Nazareth

III – Anacleto de Medeiros

IV – Chiquinha Gonzaga

3.3 Observações Gerais

Considerações Finais 81

Referências Bibliográficas 83

Anexos 88

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Lista de Figuras

Página

FIG. 1 – Claves rítmicas de acompanhamento da polca europeia

e da polca “abrasileirada”. 20

FIG. 2 – Comparação entre a melodia extraída do Choros n.º 10 de

Villa-Lobos e a melodia original do tema “Yara” de Anacleto de

Medeiros (SALLES, 2009, p. 241). 40

FIG. 3 – Trecho da Sinfonia, de Luciano Berio. Primeira

página do terceiro movimento (“In Ruhig Fliessender Bewegung”). 42

FIG. 4 – Comparação da melodia e da letra das canções:

“Ronda”, de Paulo Vanzolini e “Sampa” de Caetano Veloso. 43

FIG. 5 – Comparação melódico-harmônica entre “Insensatez”,

de Tom Jobim e o Prelúdio nº 4, de Frédéric Chopin. 44

FIG. 6 – Comparação melódica dos trechos iniciais

(seção A) do primeiro movimento da Suíte Retratos,

de Radamés Gnattali, e de “Carinhoso”, de Pixinguinha. 56

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FIG. 7 – Comparação harmônica de trechos do primeiro movimento

da Suíte Retratos (compassos 14–16), de Radamés Gnattali, e de

“Carinhoso” (compassos 1–4), de Pixinguinha. 58

FIG. 8 – Comparação melódica dos trechos iniciais do primeiro

movimento da Suíte Retratos (seção B), de Radamés Gnattali, e de

“Ingênuo” (seção B), de Pixinguinha. 59

FIG. 9 – Comparação melódico-harmônica dos trechos iniciais do

segundo movimento da Suíte Retratos (seção A), de Radamés Gnattali,

e de “Expansiva” (Seção A), de Ernesto Nazareth. 62

FIG. 10 – Comparação melódica dos trechos iniciais (seção B) do

segundo movimento da Suíte Retratos, de Radamés Gnattali, e de

“Expansiva”, de Ernesto Nazareth. 63

FIG. 11 – Comparação melódica de trechos (seção B) do segundo

movimento da Suíte Retratos (compassos 11 e 12), de Radamés

Gnattali, e de “Expansiva” (compassos 7 e 8), de Ernesto Nazareth. 64

FIG. 12 – Comparação melódica dos trechos iniciais (seção C)

do segundo movimento da Suíte Retratos, de Radamés Gnattali, e de

“Expansiva”, de Ernesto Nazareth. 65

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FIG. 13 – Comparação melódica dos trechos iniciais (seção A)

do terceiro movimento da Suíte Retratos, de Radamés Gnattali, e de

“Três Estrelinhas”, de Anacleto de Medeiros. 68

FIG. 14 – Comparação harmônica e rítmica dos ostinatos de

acompanhamento do quarto movimento da Suíte Retratos, de

Radamés Gnattali, e de “Corta-Jaca”, de Chiquinha Gonzaga. 72

FIG. 15 – Comparação melódica dos trechos iniciais (seção A)

do quarto movimento da Suíte Retratos, de Radamés Gnattali e

de “Corta-Jaca”, de Chiquinha Gonzaga. 73

FIG. 16 – Comparação melódica dos trechos iniciais (seções

B e A, respectivamente) do quarto movimento da Suíte Retratos,

de Radamés Gnattali, e de “Corta-Jaca”, de Chiquinha Gonzaga. 75

FIG. 17 – Comparação melódica dos trechos iniciais (seções

C e B, respectivamente) do quarto movimento da Suíte Retratos,

de Radamés Gnattali, e de “Corta-Jaca”, de Chiquinha Gonzaga. 75

FIG. 18 – Comparação melódica de trechos do quarto movimento

da Suíte Retratos (compassos 148–151), de Radamés Gnattali, e de

“Corta-Jaca” (compassos 29–32), de Chiquinha Gonzaga. 77

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Introdução

Este trabalho pretende investigar alguns procedimentos composicionais

empregados por Radamés Gnattali em sua Suíte Retratos, principalmente a

apropriação e transformação de material temático e harmônico extraído das

obras e outros compositores. Neste caso, esse material compreende elementos

de linguagem musical encontrados nas obras dos quatro músicos

homenageados pela obra em estudo. São eles, em ordem cronológica,

Chiquinha Gonzaga, Ernesto Nazareth, Anacleto de Medeiros e Pixinguinha. Os

três primeiros músicos tiveram um papel central na formação da música popular

brasileira, na passagem do século XIX para o XX. Já Pixinguinha, que surge em

um momento posterior, participou do início das gravações e do rádio no Brasil e

viria a se tornar a figura mais imediatamente associada ao choro, por muitas

gerações que se seguiram, até os tempos atuais. Já o autor das homenagens,

Radamés, é uma espécie de “coringa” na história da música brasileira. Como o

seu mais prolífico arranjador, participou dos mais variados contextos musicais,

em todos os gêneros instrumentais e de canção, e em sua obra composicional

procurou amalgamar elementos provenientes das mais diversas fontes,

proporcionando-lhes uma nova unidade. Na Suíte Retratos, mais uma vez, ele

exerce este papel.

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Ao longo dos anos, a Suíte Retratos tem sido executada em diversos

arranjos para formações bastante diferentes, e muito foi comentado sobre sua

importância para o repertório brasileiro. Contudo, pouco ou nenhum material

analítico-musical foi editado e publicado até hoje. Portanto, essa pesquisa vem

com o intuito de preencher parte dessa lacuna na história da análise de música

brasileira. É apropriado dizer também que este trabalho está longe de esgotar

todas as possibilidades analíticas dessa obra específica; entretanto, esperamos

que ele venha a incentivar outros pesquisadores a dialogar com o tema. Para

contextualizar o trabalho, será importante descrever brevemente a vida e a obra

de Radamés, que auxiliará no entendimento geral do que se propõe a seguir.

Radamés Gnattali nasceu no dia 27 de janeiro de 1906, na Rua

Fernandes Vieira em Porto Alegre, no estado do Rio Grande do Sul. Foi o

primogênito de cinco irmãos. Seu pai, Alessandro Gnattali, veio da Europa em

1896 e exercia a profissão de marceneiro, apesar de ter estudado piano,

contrabaixo e fagote, com especial afeição pelo último instrumento, com o qual

chegou a tocar em orquestras e dar aulas, além de reger pequenos grupos. Já

sua mãe, Adélia Fossati Gnattali, era dona de casa e musicista amadora.

Radamés começou a aprender piano em casa com sua mãe aos quatro

anos de idade. Mais tarde, aos catorze, foi admitido no Conservatório de Música

de Porto Alegre, onde se formou com o professor Guilherme Fontainha. Apesar

de seu instrumento principal ser o piano, Radamés também teve contato com

instrumentos de sopro e corda como a flauta, o clarinete, o pistom, o saxofone, o

violão, o cavaquinho, o violino e a viola (com a qual chegou a tocar em quartetos

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de corda e orquestras).

Acreditando no talento de Radamés, Guilherme Fontainha (também

diretor do Conservatório em que estudava) o levou ao Rio de Janeiro, onde, em

1924, quando cursava o último ano de piano, realizou seu primeiro concerto, na

Escola Nacional de Música. Radamés executou Franz Liszt e Wilhelm

Friedemann Bach para um grande público. Entre os presentes estavam

renomados críticos musicais da época, que teceram-lhe muitos elogios em

resenhas no Jornal do Comércio, Jornal do Brasil, Gazeta de Notícias, Correio

da Manhã e O Jornal.

Assumidamente, Radamés pretendia se tornar um grande concertista de

piano. No entanto, no contexto em que vivia, não encontrou condições para

seguir nesta carreira. Radamés começou, então, a tocar também música

popular, primeiramente em cinemas mudos e depois nas rádios. Em depoimento

registrado no site dedicado a sua vida e obra1, Radamés afirma: “Nunca me

frustrei em fazer música popular, faço isso com todo o prazer e gosto muito. Só

de conviver com Pixinguinha [Alfredo da Rocha Viana Filho], um sujeito

fabuloso, com Garoto [Aníbal Augusto Sardinha], Dino [Dino 7 cordas –

Horondino Silva], João [João da Baiana], Jacob [Jacob do Bandolim], excelentes

músicos. Se eu tivesse ido à Europa, poderia ter sido um grande pianista, mas

nunca seria um compositor brasileiro”.

Nos anos 30, Radamés foi incentivado por seu ex-professor, Guilherme

Fontainha, a mudar-se para o Rio de Janeiro. O principal objetivo era o de

1 Ver www.radamesgnattali.com.br.

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preparar-se para um concurso à vaga de professor catedrático do Instituto

Nacional de Música. Ele se mudou, contudo, não realizou seu intento, pois o

concurso foi cancelado por Getúlio Vargas, presidente do Brasil na época.

Já no Rio de Janeiro, Radamés tocava piano em diversas orquestras de

rádio, bailes de carnaval, operetas e ainda acompanhava praticamente todos os

cantores. Além disso, também escrevia excertos que eram tocados nos buracos

de programação das rádios. Em suas primeiras composições populares,

Radamés assinava com o pseudônimo “Vero” (masculino de Vera, sua primeira

mulher), pois “naquele tempo não ficava bem um músico erudito fazer música

popular” (BARBOSA, 1984, p. 33).

O nicho musical em que Radamés mais trabalhou ao longo de sua vida foi

o de arranjador e compositor de música popular. Foi contratado por diversas

rádios como a Rádio Clube, Nacional, Tupi, Mayrink Veiga, Victor etc., e mais

tarde até mesmo por corporações televisivas como a Rede Globo. Nessas

empresas, Radamés gravou e escreveu para as mais diversas situações, desde

formações pequenas como trio de clarinete, piano e bateria até enormes

orquestras que acompanhavam cantores da época áurea da Radio Nacional, por

volta dos anos 40 e 50, como Orlando Silva, Francisco Alves e Sílvio Caldas.

Radamés também obteve grande êxito em seus arranjos e orquestrações de

música brasileira. Sendo que um dos maiores diferenciais em seus arranjos foi a

inclusão de ritmos mais marcados nos naipes de sopro e corda, já que antes

esses ritmos eram escritos apenas para os percussionistas.

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Ao longo de sua vida, Radamés conheceu e conviveu com músicos de

rara sensibilidade e de extrema importância: Garoto, Pixinguinha, Ernesto

Nazareth, Jacob do Bandolim, Raphael Rabello, Turíbio Santos, Tom Jobim,

Luciano Perrone e José Meneses são alguns. Para a maioria deles Radamés

escreveu e dedicou diversas obras.

A quantidade de gravações feitas por Radamés, de arranjos gravados por

outros músicos e de arranjos inéditos é muito extensa2, e inclui tanto obras

populares quanto eruditas. Podemos encontrar desde peças para cinema, balé e

teatro; música popular como choros, sambas, valsas e gêneros nordestinos até

grandiosas composições sinfônicas e de música de câmara.

Em 1943, Radamés estreou um novo programa na Rádio Nacional, Um

milhão de melodias, que perduraria por treze anos. Paulo Tapajós e Haroldo

Barbosa, discotecários da rádio, selecionavam nove músicas por semana para

serem arranjadas e tocadas por uma orquestra que mesclava instrumentos

típicos brasileiros com alguns advindos do jazz norte-americano. Com esse

programa, sua produção aumentou muito, pois semanalmente precisava

escrever os nove arranjos e ensaiá-los com a orquestra. Seus arranjos eram tão

inovadores que mobilizaram o cenário musical da época, pois as rádios

concorrentes precisavam se atualizar para não perder audiência.

Dos anos 60 até o fim de sua vida, em 1988, diversas composições de

Radamés foram gravadas e executadas publicamente pelos mais distintos

músicos, orquestras, grupos de câmara, e conjuntos populares, inclusive seus

2 Ver BARBOSA, Valdinha. Radamés Gnattali: O eterno experimentador. Rio de

Janeiro: Funarte, 1984.

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próprios grupos, como seu sexteto que chegou a excursionar pela Europa e

lançar alguns LPs.

Em 1986, prestes a completar 80 anos, Radamés sofreu um grave

acidente vascular cerebral e passou longos meses buscando sua reabilitação

com sessões de terapia. Lentamente, recuperou parte dos movimentos, a fala e

a escrita, e logo voltou a estudar piano. Por seu progresso, os integrantes do

Sexteto Radamés começaram a preparar um concerto de retorno, entretanto, no

final do mesmo ano, foi surpreendido por outro acidente vascular cerebral e as

esperanças de voltar a tocar diminuíram drasticamente. Radamés passou dois

difíceis anos sem grandes melhoras, até morrer no dia 3 de fevereiro de 1988.

Após sua morte diversas homenagens foram realizadas, como o concerto

Obrigado Radamés – Tributo a Radamés Gnattali, ocorrido no Teatro João

Caetano, Rio de Janeiro, organizado por Hermínio Bello de Carvalho; o Festival

Villa-Lobos, que em 1988 foi dedicado à memória de Radamés Gnattali; e o

concerto Para Sempre Radamés, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, que

arrecadou fundos para a criação da Associação Radamés Gnattali.

Interessa para este trabalho ressaltar o fato de que Radamés foi, na

história da música brasileira, um dos músicos que mais trabalhou – em seus

arranjos e composições – com materiais provenientes das mais diferentes

vertentes estéticas. Pela própria natureza de seu trabalho, ele constantemente

se via em situação de tomar nas mãos músicas de outras pessoas para adequá-

las ao contexto em que seriam executadas e não raro transformava-as

completamente.

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Estando no centro da produção musical no Brasil durante várias décadas,

pode-se dizer que Radamés tinha o repertório da música brasileira “na mão”, ou

seja, lidava com um vasto material dos mais diferentes compositores,

provenientes de todas as partes do país. Não surpreende, portanto, que no

momento em que realiza uma composição-homenagem dedicada a importantes

figuras da história do choro, decida apropriar-se do material composicional

desses músicos, para criar uma obra nova, que de algum modo sintetiza sua

trajetória musical.

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CAPÍTULO 1

Contextualização sócio-histórica do choro

1.1 - A sedimentação do gênero

Existem controvérsias quando se tenta definir, com exatidão, como se deu

a formação do gênero choro. Em geral, acredita-se ser uma fusão de vários

gêneros, em particular de ritmos africanos bastante percussivos com as

principais danças europeias em voga no fim do século XIX.

Desses ritmos africanos que influenciaram mais diretamente o choro,

pode-se citar o lundu como o principal. Porém, a palavra lundu pode conter

significados divergentes, pois tal gênero passou por processos de grande

transformação no decorrer de sua história. Segundo Carlos Sandroni (1958-),

em seu livro Feitiço Decente (2001, p. 39), a palavra lundu foi primeiramente a

designação de uma dança popular, depois, de um gênero de canção de salão e,

finalmente, de um tipo de canção folclórica.

O lundu-dança, de acordo com Mario de Andrade (1893-1945), é uma

“dança de origem afro-negra trazida pelos escravos bantos da região da Angola

e do Congo” (ANDRADE, 1989, p. 434). José Ramos Tinhorão (1928-) cita a

influência negra do lundu no Brasil e como foi cultivado, tanto por negros

escravos no terreiro, quanto por brancos e mestiços nas salas de suas casas:

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O grande sucesso do lundu baseava-se em que, após quase duzentos anos de

aculturação negra do Brasil, ele aparecia como a primeira forma de batuque

africano estruturado em moldes de coreografia e de ritmo possíveis de serem

imitados não apenas pelos mestiços, mas também pelos brancos colonizadores e

seus descendentes nacionais (TINHORÃO, 1972, p.129).

Em relação ao lundu-canção, Tinhorão diz que:

(…) graças ao exotismo da sua origem popular, passou a interessar de um lado aos

compositores cultos (…) e do outro aos músicos de teatro, que viam no casamento

de um texto engraçado com a malícia da dança uma boa atração para o público de

brancos amantes de emoções eróticas (TINHORÃO, 1972, p.139).

Tinhorão também propõe uma ligação entre esse gênero de canção com

o “entremez” de teatro (molde português de intercalar entre as representações

teatrais pequenos quadros com música e dança): “a nova variante da

aculturação branco-negra no campo das batucadas se torna popular com o

nome de lundu, os autores de entremezes não perdem tempo em levar a

novidade para o palco” (TINHORÃO, 1972, p. 139-40). Os lundus-canção eram

usualmente nomeados por títulos cômicos e tinham letras que expressavam um

tipo de humor mais vulgar, o que se explica principalmente pelo seu uso teatral.

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Além da influência direta do gênero lundu, a dança europeia mais

intrinsecamente ligada ao universo do choro, pelo caráter de sua forma e

melodia, é sem dúvida a polca. Entretanto o choro, como gênero musical, é

advindo da maneira como os músicos interpretavam a polca e outras danças,

incorporando toda a bagagem rítmica dos negros escravos vindos da África. “O

choro, como gênero, nasceu da necessidade inconsciente de nacionalizar a

música estrangeira” (WILLOUGHBY, 1998, p. 5).

A polca chegou ao Brasil em 1845, acompanhando as significativas

mudanças de costumes e hábitos pelas quais a sociedade passava desde a

chegada da família real portuguesa, no início do século XIX. A chegada da corte,

mais precisamente em 1808, transformou a história do Brasil, principalmente da

cidade do Rio de Janeiro, que se tornou sede de uma monarquia europeia e

capital de um império colonial. Por conta disso, diversas obras públicas foram

realizadas para adaptar a cidade, como a reforma e a construção de teatros, a

fundação da Academia de Belas Artes e diversas prestações de serviços

públicos até então inexistentes.

Na época que a polca despontou no Brasil, nos salões de dança, ocorreu

uma grande liberação no comportamento da população. Com isso, passou a ser

comum uma interação mais próxima entre os pares de dança. Pode-se dizer que

os pares ficaram um tanto mais “permissivos”, comparado com os padrões da

época. Conforme cita Henrique Cazes (1998, p. 19-20), o soneto “Uma

Observação” de Arthur Azevedo (1855-1908), publicado em 1904, é “um perfeito

retrato da mudança de hábitos que se operava nos salões”:

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A moça está sentada. O moço amado

Pra uma contradança vai tirá-la

– Dai-me a honra? – Pois não! – E pela sala

Ei-los a passear de braço dado.

De amor quanto protesto alambicado

Daqueles meigos corações se exala

Té que as palmas batendo o mestre-sala

Toma lugar o par apaixonado.

Começa a dança. A mão do moço esperta,

Bole, mexe, comprime, apalpa, aperta

Durante uns turbulentos balancés:

E uma senhora que não é criança

Sentada a um canto observa que na dança

Hoje trabalham mais as mãos que os pés.

Por ser um gênero alegre e tocado rapidamente em compasso binário

(métrica que evoca uma dança mais ritmada), a polca foi assimilada

rapidamente pela população. “Essa modalidade musical, escrita em compasso

binário, foi muito dançada na Polônia e aceita com entusiasmo por toda a

Europa (…). Foi recebida agradavelmente pelos brasileiros” (LIRA, s.d., p. 232).

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A polca também se caracterizava como uma “semente de modernidade”

vinda da Europa, como diz José Miguel Wisnik (2002, p. 42):

Um fenômeno musical popular e urbano que ganha espaço real e também

simbólico: a polca é um índice de modos de modernização à brasileira, decantando

uma certa malícia inocente, galhofeira e às vezes pomposa, no limite de uma

gratuidade aliciante e de um “pouco-se-me-dá” para a inteligibilidade estreita, que

combina com a nova realidade do mercado em que tudo se mistura como notícia,

publicidade e produto, num alegreto vivaz que afronta a seriedade das formas cultas

e clássicas.

Do ponto de vista musical, a polca europeia recebia o acompanhamento

de colcheia mais duas semicolcheias no primeiro tempo e duas colcheias no

segundo, enquanto que a polca “abrasileirada” pelos músicos que hoje

chamamos de chorões é acompanhada pela sincopa no primeiro tempo e duas

colcheias no segundo.

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FIG. 1 – Claves rítmicas de acompanhamento da polca europeia e da polca “abrasileirada”.

(SANDRONI, 2001, p. 71)

Essa modificação no acompanhamento rítmico denota uma sensível

“amolecida” no ritmo-motor dessas polcas. De acordo com Sandroni (2001,

p. 188), diferenças são encontradas também no contexto verbal, principalmente

pelos títulos humorísticos que remetem ao universo afro-brasileiro, como,

“Sossega, Nhonhô”, “A Baiana”, etc.

1.2 - Os primeiros músicos e seus instrumentos

Segundo Henrique Cazes (1959-) e José Ramos Tinhorão, no ano de

1850 a abolição do tráfico de escravos também transformou a sociedade em

geral, possibilitando após essa data que uma classe média afro-descendente

entrasse em ascensão. Essa classe, formada em sua maioria por funcionários

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públicos (principalmente dos Correios e Telégrafos), além de comerciantes de

pequeno porte com uma situação razoavelmente estável, agrupariam os

principais ativistas e consumidores musicais da época. Visto que a camada mais

pobre não tinha condições sequer de possuir um instrumento musical ou de

frequentar tais divertimentos musicais, pois em geral seus ofícios braçais

(carregadores, “cavoqueiros”, etc.) exigiam muito de seu físico e tornava

impossível levar um ritmo de vida tão boêmio.

Como não podia deixar de ser, essa multiplicação de obras e negócios (favorecidos

estes, aliás, pela liberação de capitais com a extinção do tráfico em 1850), ao

implicar na divisão do trabalho, iria alterar a simplicidade do quadro social herdado

da colônia e do primeiro reinado. Isso se traduziria no aparecimento, ao lado da

moderna figura do operário industrial (…), das camadas algo difusas dos pequenos

funcionários dos serviços públicos (…) e das empresas particulares (...)

(TINHORÃO, 1998, p.194).

Os eventos em que aconteciam os encontros musicais dessa classe de

funcionários públicos e afins eram as festas nas casas de alguns deles, o que

também nos remete às suas condições socioeconômicas. “Ora, quem dava

festas em casa „naquele tempo‟ (…), os que moravam em casas, isto é, os que

não eram tão pobres a ponto de precisar viver nos barracos do Morro de Santo

Antônio ou em quartos abafados de cortiços” (TINHORÃO, 1998, p. 200).

Os primeiros chorões – maneira como são chamados até hoje os

intérpretes do choro ou os que dão interpretações “choradas”, ou seja, com

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linguagem de choro, aos seus trabalhos – apareceram por volta de 1860,

juntamente com os primeiros grupos instrumentais que tocavam o que hoje

chamamos de choro e que eram formados principalmente por flauta, cavaquinho

e violão. Henrique Cazes especula que isso se deva à colonização portuguesa,

pois outros países colonizados por Portugal também tiveram formações

instrumentais semelhantes como base de sua música popular, como Cabo

Verde, Jacarta, Goa e outros. Um dos primeiros grupos com essa

instrumentação foi o grupo de Joaquim Antônio da Silva Callado (1848-1880),

em que apenas o solista lia a música e os outros faziam os acompanhamentos e

conduções de improviso. Acredita-se também que a primeira menção à palavra

choro se deu no grupo de Callado, pois o conjunto se chamava Choro Carioca3.

Nas primeiras décadas do século XX, foram incorporados novos

instrumentos ao chamado “trio de pau e corda” (flauta, cavaquinho e violão), que

foram: o oficleide4, o bandolim, o clarinete, o saxofone, o trompete, o trombone,

e, por volta dos anos 30, a percussão, principalmente o pandeiro. A partir dos

anos 40 alguns compositores e intérpretes como Radamés Gnattali chegaram a

tocar e escrever choro para grupos com piano, baixo, bateria, guitarra, acordeom

e outros instrumentos menos comuns ao gênero.

Chiquinha Gonzaga, Ernesto Nazareth e Anacleto de Medeiros – três dos

homenageados por Radamés Gnattali na Suíte Retratos – são contemporâneos

de uma época que teve importância capital para a sedimentação do gênero

3 Também conhecido como Choro de Callado. (Ver http://www.choromusic.com.br/o-que-e-o-choro.htm)

4 Instrumento cônico feito de metal acionado por chaves e com um bocal similar ao do trombone, que logo cairia em desuso.

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choro. Podendo ser citados como representantes dos primeiros músicos

brasileiros a se dedicarem à composição, interpretação e difusão do choro. Por

isso, faz-se necessária uma breve menção a suas vidas e produções musicais.

1.3 - Chiquinha Gonzaga

Nascida em 17 de outubro de 1847 no Rio de Janeiro, Francisca Edwiges

Neves Gonzaga (mais conhecida como Chiquinha Gonzaga) teve uma educação

muito sólida, que incluiu os estudos musicais, principalmente o piano,

instrumento pelo qual teve mais afinidade e estudou à exaustão desde muito

jovem.

Aos onze anos, Chiquinha compôs sua primeira melodia, intitulada

“Canção dos Pastores”. Apesar de sua notória facilidade e talento para a

música, não foi fácil superar todos os preconceitos que a mulher sofria em seu

tempo. Estes preconceitos ela enfrentou com coragem, tocando seu piano em

teatros e casas de espetáculo, além de engajar-se em corajosas posições

políticas e atuar em muitos outros afrontamentos duramente condenados e

criticados pela sociedade.

Forçada por seu pai, casou-se aos dezesseis anos, mas sua

personalidade transgressora não permitiu que seu casamento durasse muito

tempo. Seu marido, Jacinto Ribeiro do Amaral, era um militar descendente de

uma abastada e tradicional família carioca e toda essa tradição a ele transmitida

fazia com que não reconhecesse a imensa devoção de Chiquinha pela música.

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O casamento acabou, e com esse fim veio à tona um preconceito ainda maior da

sociedade, que era contra uma mulher sem marido e com filhos para cuidar.

Após tais acontecimentos Chiquinha passou a dar aulas de piano, tocar

em festas e vender partituras de suas composições para sobreviver. Por essa

época, também entrou no “círculo musical” dos chorões. Conheceu Joaquim

Antonio da Silva Callado, flautista e compositor de quem ficaria muito amiga,

chegando inclusive a tocar em seu grupo, o famoso Choro Carioca.

Aos poucos Chiquinha foi tomando seu lugar no cenário musical carioca,

principalmente como maestrina e compositora dos teatros de revista, que era

uma grande “inovação francesa trazida ao Brasil em 1859 e que unia música

popular e bom humor, crítica de costumes e sátira a acontecimentos recentes –

daí o nome „revue‟ (revista)” (MUGNANINI JR., 2005, p. 69).

A primeira marcha carnavalesca foi de sua autoria. Em homenagem ao

cordão do Rosa de Ouro, que ensaiava em seu bairro, compôs uma de suas

músicas mais famosas, a marcha-rancho “Ó Abre Alas”.

Chiquinha Gonzaga passou por situações difíceis em sua vida, mas

mesmo assim conseguiu ser reconhecida pela sua música e por seus ideais,

principalmente como ativista do movimento abolicionista. Faleceu em 28 de

fevereiro de 1935, tornando-se posteriormente um grande ícone da cultura

brasileira.

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1.4 - Ernesto Nazareth

Nascido em 1863 no Rio de Janeiro, Ernesto Júlio de Nazareth foi

introduzido ao piano desde cedo por sua mãe, Dona Carolina, e logo mostrou

talento e interesse pela arte musical.

Com catorze anos já havia composto e publicado sua primeira

composição, a polca “Você Bem Sabe”. É interessante notar que ao longo de

sua vida Nazareth compôs em todos os gêneros musicais com os quais se

deparou, dentre os quais podemos citar: polca, valsa, schottish, mazurca,

quadrilha e muitos outros. Porém, o gênero do qual ficou conhecido como sendo

o “fixador” foi o incerto “tango brasileiro”, que aparentemente foi um gênero

muito parecido com outros dois, o choro e o maxixe. Especula-se que os tangos

brasileiros fossem na verdade choros ou maxixes, mas que devido ao

preconceito existente na época as peças eram renomeadas nas edições de suas

partituras. Isso se deve ao fato de a comercialização de partituras ser um sólido

empreendimento no início do século XX, pois, como ainda não havia rádio,

praticamente todas as casas de classe média tinham um piano, que na época

era o principal meio de se fazer e ouvir música em casa.

Entre 1920 e 1924, Nazareth obteve grande sucesso tocando na sala de

espera do Cine Odeon, no Rio de Janeiro, e muitos espectadores compravam o

ingresso somente para vê-lo tocar. Por essa época, Nazareth também dava

aulas particulares de piano, compunha e atuava como concertista, inclusive em

turnês por outros estados, como São Paulo e Rio Grande do Sul.

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Um dos maiores tormentos da vida de Nazareth teve início ainda em sua

juventude, como consequência de uma queda que atingiu seu ouvido direito e

fez que perdesse gradativamente a audição, até 1932, quando foi considerado

totalmente surdo.

Depois disso, por conta de problemas mentais, foi internado no Instituto

Neuropsiquiátrico da Praia Vermelha e logo em seguida transferido para a

Colônia Juliano Moreira em Jacarepaguá, de onde fugiu e permaneceu

desaparecido por três dias até ser encontrado morto, afogado nas águas de um

rio, no dia 4 de fevereiro de 1934.

1.5 - Anacleto de Medeiros

Anacleto Augusto de Medeiros nasceu na ilha de Paquetá, Rio de Janeiro,

em 13 de julho de 1866 e é, ainda hoje, considerado o maior mestre de bandas

de seu tempo. Como afirma Henrique Cazes, “em geral os mestres de banda

eram chorões e, como eles eram responsáveis pela educação musical dos

músicos da banda, naturalmente surgiam mais e mais músicos que dominavam

a linguagem” (CAZES, 1998, p. 31).

Seu primeiro contato com o estudo musical foi na Escola de Menores do

Arsenal da Guerra, onde tomou gosto pela banda que ali existia e começou a se

interessar pela maneira “chorada” que os músicos imprimiam nas músicas que

executavam. Naquele tempo, Anacleto tinha aulas com o músico Santos Bocot,

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que fazia parte do cenário “chorístico” do Rio de Janeiro como intérprete e

compositor, e que o introduziu ao meio musical.

Assim como alguns dos mais renomados músicos do fim do século XIX e

início do século XX como Joaquim Antonio Callado, Patápio Silva (1880-1907),

Henrique Alves de Mesquita (1830-1906), Carlos Gomes (1836-1896), Alberto

Nepomucemo (1864-1920) entre outros, Anacleto ingressou no Conservatório de

Música, considerado a mais importante instituição de ensino musical do Brasil

naquela época. Nesse ambiente, Anacleto se tornou grande amigo do maestro

Henrique Alves de Mesquita, que o indicou para seus primeiros trabalhos

profissionais, levando-o inclusive para substituí-lo como maestro e regente em

algumas ocasiões.

Anacleto ficou famoso por comandar a Banda do Corpo de Bombeiros,

vista como a melhor de seu tempo, principalmente pela leveza, afinação e

escolha de repertório. É interessante notar que possivelmente os primeiros

empregos musicais dos chorões foram as bandas de música, e muitos deles

seguiram carreira nesse meio. A reputação da Banda do Corpo de Bombeiros

possibilitou vários convites para realizar diversas gravações, como, por exemplo,

na Casa Edison, uma das primeiras grandes “gravadoras”, gerenciada por Fred

Figner, ainda na fase mecânica.5 Além da Banda dos Bombeiros, Anacleto

também organizava e regia a Banda da Fábrica Bangu, a Banda da Fábrica

Confiança e muitas outras.

5 Os aparelhos reprodutores de sons da fase mecânica eram compostos por: um suporte giratório (impulsionado por motor ou manualmente), uma agulha leitora, um diafragma e uma corneta.

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Como boa parte dos compositores contemporâneos a Anacleto, ele

compôs em praticamente todos os gêneros musicais que havia (polcas,

schottishes, dobrados, quadrilhas, valsas, choros, marchas, etc.). Dentre

algumas de suas composições mais famosas podemos encontrar “Jubileu”,

“Cabeça de Porco”, “Os Boêmios”, “Yara”, “Três Estrelinhas” e outras. Grande

parte de suas melodias recebeu letra do poeta Catulo da Paixão Cearense

(1863-1946), e algumas passaram a ter dois nomes após a letra, pois Catulo não

se prendia ao contexto sugerido pelo nome original para elaborar suas poesias.

Alguns cantores como Vicente Celestino (1894-1968) e Mário Pinheiro (1880-

1923) chegaram a gravar músicas de Anacleto com letra de Catulo.

O multi-instrumentista Anacleto Augusto de Medeiros faleceu em 14 de

agosto de 1907, com apenas 41 anos de idade, mas marcou época. Muitas de

suas melodias passaram a integrar o repertório das rodas de choro e diversas

bandas de música ainda hoje têm Anacleto como principal referência. Mesmo

assim, seu nome, lamentavelmente, não é muito lembrado fora do meio musical.

1.6 - Origem do termo choro

A origem da palavra choro é uma das partes mais imprecisas da história

do gênero. Neste quesito, diversas opiniões de historiadores renomados, como

José Ramos Tinhorão, Ary Vasconcelos (1926-2003), Henrique Cazes, André

Diniz (1969-), Lúcio Rangel (1914-1979) e outros entram em conflito.

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O termo pode ter derivado de uma espécie de festa chamada “xolo” que

reunia os escravos das fazendas, tendo gradativamente mudado para “xoro” e

posteriormente para “choro”, de acordo com a maneira de cada um pronunciar e

grafar essa palavra.

Tinhorão defende que o nome do gênero tenha vindo da sonoridade

melancólica das “baixarias” ou linhas graves feitas pelo violão, no entanto essa

afirmação entra em conflito com a opinião de Henrique Cazes, cujo argumento

sustenta que o violão, a princípio, não tinha o papel de fazer esses contracantos

graves.

Quanto à melancolia das baixarias do violão, pelo que pude observar nas primeiras

gravações de grupos de choro, realizadas por volta de 1907, quando o estilo já

beirava quarenta anos de existência, o violão ainda não era usado com a

exuberância com que hoje estamos habituados (CAZES, 1998, p.19).

Outra hipótese cogitada é a maneira melancólica ou “chorada” como eram

interpretadas as melodias.

Mais longinquamente, Ary Vasconcelos cita a origem do gênero nos

charameleiros, instrumentistas que tocavam a charamela (antigo instrumento de

sopro de palheta dupla), e se apresentavam em diversas cerimônias religiosas e

festas particulares, assim como muitos dos músicos de choro.

Contudo, somente com Pixinguinha é que se pode considerar o choro

como um gênero já sedimentado e estruturado dentro da música popular

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brasileira. A seguir, será contextualizada brevemente a sua vida e obra, para

que possamos compreender melhor como Pixinguinha se tornou um músico tão

referencial para a música popular.

1.7 - Pixinguinha

“Se você tem 15 volumes para falar de toda música popular brasileira,

fique certo de que é pouco. Mas se dispõe apenas do espaço de uma palavra,

nem tudo está perdido; escreva depressa: Pixinguinha” (VASCONCELOS, s.d.,

p. 84). É dessa maneira que Ary Vasconcelos começa sua dissertação sobre

Pixinguinha, e não há maneira melhor de fazê-lo.

Em abril de 1898 nascia Alfredo da Rocha Viana Filho, o Pixinguinha,

músico que figura nitidamente entre os maiores nomes da música popular de

nosso país. Além de exímio flautista e saxofonista, também foi um dos principais

compositores de choro, visto que alguns dos temas mais populares no gênero

são de sua autoria, como: “Um a Zero”, “Naquele Tempo”, “Vou Vivendo”,

“Carinhoso”, “Ingênuo”, “Lamento”, “Urubu Malandro” e muitos outros. Além

disso, foi um dos pioneiros na arte de orquestrar e reger música brasileira.

Muitos choros famosos, como os de Pixinguinha, receberam letras dos mais

diversos poetas brasileiros como, Catulo da Paixão Cearense, Vinícius de

Moraes (1913-1980), Nelson Angelo (1949-), Braguinha (1907-2006), Paulo

César Pinheiro (1949-), Hermínio Bello de Carvalho (1935-), Pedro Caetano

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(1911-1992), Aldir Blanc (1946-) e outros. Porém, mesmo com tantos nomes de

peso, o choro sempre foi, e ainda é, predominantemente instrumental.6

Pixinguinha começou na música por causa de seu pai, Alfredo da Rocha

Viana, flautista por paixão, guardião de um grande acervo musical7 e também

administrador de uma pensão na qual circulavam alguns dos melhores músicos

do início do século XX, como Quincas Laranjeira (1873-1935) e Sinhô (1888-

1930). Outro frequentador da pensão dos Viana era o oficleidista Irineu de

Almeida (1873-1916), que se tornaria o primeiro professor e mestre de

Pixinguinha. Irineu de Almeida nasceu no Rio de Janeiro e era também

conhecido como Irineu Batina, pela longa sobrecasaca que costumava usar.

Além de oficleide, também tocava bombardino e trombone. Irineu fez parte da

Banda do Corpo de Bombeiros de Anacleto de Medeiros.

Em 1911, Pixinguinha compôs seu primeiro choro, intitulado “Lata de

Leite”. Por volta dessa data, iniciou seu caminho profissional tocando em

diversos eventos, como: bailes, quermesses, choperias e algumas orquestras

dos teatros de revista. Depois dessas primeiras experiências, Pixinguinha não

parou mais, tocou em praticamente todos os teatros, cinemas e gravações que

aconteceram no Rio de Janeiro desse momento em diante.

6 Praticamente todas as letras de choro foram incluídas após a melodia ter sido composta, e muitas vezes depois do compositor já ter falecido. Fato que gera polêmica, pois o compositor da melodia em alguns casos não chegava a “aprovar” a letra incluída em sua composição. Também é bem comum encontrarmos mudanças radicais nos nomes das músicas após a inclusão da letra, pois diversos letristas não costumavam seguir o clima sugerido pela melodia e as usavam em versos já prontos, causando muitas vezes erros elementares de prosódia. Porém, encontramos casos exemplares em que o poeta “mergulha” na melodia e a representa de maneira espetacular, como nas letras de "Um a Zero", "Carinhoso" e outras.

7 Alfredo da Rocha Viana, pai de Pixinguinha, foi guardião de um grande acervo de composições (partituras) da virada do século XX. (Ver http://www.musicosdobrasil.com.br/pixinguinha)

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Em 1922, Pixinguinha foi encarregado de formar uma orquestra para tocar

na sala de espera do Cine Palais, na avenida Rio Branco, na região central do

Rio de Janeiro. Sem titubear, ele recrutou os músicos que formaram um dos

mais badalados grupos de sua época, os Oito Batutas, grupo que chegou a

excursionar pela França e Argentina.

Durante sua vida fez parte de um sem-número de orquestras e grupos,

como: Orquestra do Teatro Rialto, Orquestra Típica Pixinguinha-Donga, Grupo

do Caxangá, Orquestra de J. Thomás, Orquestra Diabos do Céu, Orquestra

Victor Brasileira, Grupo da Guarda-Velha, Os Cinco Companheiros e muitos

outros. Como se não bastasse, também atuou na maior parte das emissoras

radiofônicas cariocas, dentre elas estão as rádios Sociedade, Clube do Brasil,

Philips, Transmissora, Cruzeiro do Sul, Mayrink Veiga, Nacional e Tupi.

Nos anos 40, Pixinguinha enfrentou algumas dificuldades financeiras e

esse, entre outros motivos, o levou a aceitar uma proposta feita por Benedito

Lacerda (1903-1958), que conseguiria gravações e edições para suas músicas

na condição de aparecer como coautor das obras criadas por Pixinguinha a

partir dessa data e também de algumas obras anteriores a este acordo. Esses

acontecimentos fizeram com que Pixinguinha abandonasse definitivamente a

flauta, dedicando-se apenas ao saxofone, pois Benedito, que era flautista, é

quem deveria aparecer como o “líder” do regional. Apesar disso, Pixinguinha se

saiu muitíssimo bem, mostrando tudo o que aprendera com o oficleidista Irineu

de Almeida em seus memoráveis contracantos de sax tenor e depois com as

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gravações de diversos discos de sucesso com esse famoso duo Benedito-

Pixinguinha.

Desse momento em diante, a vida de Pixinguinha ficou mais conturbada,

devido a alguns problemas de saúde que começaram a afetar sua vida

profissional. Em 1964, por exemplo, ficou internado cerca de 50 dias por causa

de um edema pulmonar. Por essas e outras razões, sua atividade profissional foi

diminuindo com o passar dos anos, restando-lhe apenas algumas homenagens,

entrevistas e poucas apresentações.

No ano de 1973 Pixinguinha faleceu durante um batizado, dentro da Igreja

Nossa Senhora da Paz (RJ).

Muitos pesquisadores e músicos partilham da idéia que em relação a

estrutura e estilo o choro como gênero só conheceu seu apogeu formal no início

do século XX, e seu maior mentor foi, sem dúvida, Pixinguinha.

“(…) somente na década de 10, pelas mãos geniais de Pixinguinha, o

choro passou a ser um gênero musical de forma definida” (CAZES, 1998, p.19).

1.8 - Forma e harmonia

A estrutura formal do choro é similar à forma da polca e outras danças, ou

seja, é composta usualmente na forma rondó (AABACA), onde a parte A sempre

é repetida após as outras seções serem tocadas. A tonalidade de cada seção

segue padrões pressupostos, se A está em tonalidade maior, B poderá estar na

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dominante ou na relativa menor e C na subdominante ou dominante. Se A

estiver em tonalidade menor, B estará na relativa maior e a parte C poderá estar

na tonalidade homônima maior ou no VI grau.

Ritmicamente suas melodias são tocadas em compasso binário (2/4) e

são desenvolvidas em sequências de semicolcheias, colcheias e síncopas,

formadas pelas escalas e arpejos dos acordes da harmonia, podendo começar

em anacruse ou não.

Tanto a forma quanto a harmonia (inicialmente triádica) foram levadas a

seus limites por compositores como Radamés Gnattali, Villa-Lobos (1887-1959)

e outros que modificaram a padronização formal e incorporaram polirritmias e

harmonias cromáticas advindas de outros gêneros e manifestações musicais.

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Capítulo 2

A apropriação musical como homenagem

O título da Suíte Retratos evoca questões de especial interesse para este

trabalho. De início, é preciso questionar como uma obra musical pode ser

caracterizada na forma de uma série de “retratos”, ou seja, de representações

figurativas de pessoas. Afinal, o que significa “retrato” no contexto de uma obra

musical como esta? Para responder a esta pergunta será necessário recuperar o

significado de “retrato” no universo pictórico de onde ele se origina.

A palavra “retratar” pode conter uma infinidade de significados, dentre

eles temos: “apresentar tal qual”, “espelhar”, “fotografar”, “descrever

minuciosamente” e outros. O retrato é uma das práticas mais recorrentes nas

artes visuais, como a pintura e a fotografia. Na pintura, a arte de retratar é

bastante antiga, sendo praticada desde as pinturas rupestres, que se

desenhavam com paus ou pedras, até a pintura moderna, que se utiliza das

formas mais abstratas de figurativização. Já na fotografia, pode-se dizer que

desde seus primórdios, em 1888, quando George Eastman (1854-1932) criou

sua primeira câmera “caixote”, a fotografia tornou-se uma das mais incríveis e

revolucionárias invenções e se tornaria, mais tarde, uma das mais populares

formas de arte, onde o retrato mais perfeito está a um click de distância.

O retrato como uma forma de homenagem se confirma com a inclusão do

nome do retratado no título da obra. Porém, isso nem sempre acontece, há

casos em que o homenageado é retratado sem que seu nome seja explicitado.

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Entre os muitos exemplos possíveis, pode-se citar dois casos bastante

conhecidos na arte brasileira: primeiramente, as esculturas dos doze Profetas

(1795-1805) de Aleijadinho (1730-1814), localizadas no adro da igreja de Bom

Jesus de Matosinhos, em Congonhas do Campo (MG), cujos rostos teriam sido

inspirados nas figuras dos líderes da Inconfidência Mineira; o segundo caso é a

pintura Operários (1933), de Tarsila do Amaral (1886-1973), que ao representar

rostos de operários da indústria paulista na década de 1930 incluiu os rostos de

artistas como Mário de Andrade, Anita Malfatti (1889-1964), Plínio Salgado

(1895-1975), Oswald de Andrade (1890-1954) e outros. O fato de Tarsila usar

rostos conhecidos foi, provavelmente, a forma encontrada para dar mais

veracidade à obra e mostrar que todos são operários dentro de uma causa,

inclusive os artistas e intelectuais.

Voltando ao contexto da Suíte Retratos, torna-se claro então que

Radamés Gnattali emprega o nome dos quatro músicos que deseja “retratar”

como título de cada um dos movimentos, conseguindo assim, homenageá-los

explicitamente. Estes retratos, como veremos em detalhe no capítulo seguinte,

são feitos a partir de citações de trechos de obras e/ou elementos estilísticos

dos músicos que homenageia. Em outras palavras, o significado musical para o

“retrato”, pelo menos nesta obra de Radamés, parece ser o da apropriação de

elementos típicos dos homenageados, que são retrabalhados

composicionalmente pelo homenageador por meio de transformações melódicas

e harmônicas. Esta seria a forma musical de se “representar figurativamente” um

compositor.

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Um breve levantamento de alguns exemplos extraídos de diferentes

contextos musicais mostra que a apropriação como homenagem é um

procedimento muito mais comum em música do que poderia parecer à primeira

vista. Assim como Radamés, muitos outros compositores, populares e eruditos,

utilizaram-se em grande escala desse tipo de apropriação para estruturar suas

composições.

Para começar pode-se citar o caso de muitos compositores, de ideário

nacionalista, que têm na apropriação de elementos provenientes de culturas

tradicionais e/ou características de seus países um importante fundamento na

prática da composição. O mais comum é o uso de melodias tradicionais, mas,

como se percebe nesta citação de Júlio Medaglia (1938-) em seu livro Música

Impopular (1988, p. 164), também podem ser outros elementos culturais, como

lendas utilizadas como inspiração para a composição:

Sabe-se que inúmeros autores, não só brasileiros, apoiaram-se insistentemente

numa estética nacionalista, (…) as principais obras de Stravinsky estão repletas de

folclorismos, foram baseadas em lendas populares antigas de sua terra (…)

Dentre alguns dos principais compositores do século XX que utilizaram

melodias tradicionais em suas obras temos o húngaro Béla Bartók (1881-1945) e

Heitor Villa-Lobos. Ao mesmo tempo que realizaram pesquisas sobre a música

folclórica e regional de suas respectivas terras, incorporando delas diversos

elementos, ambos também pesquisaram e experimentaram um leque amplo de

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sonoridades, muitas delas inovadoras em suas épocas. A maneira como cada

um utilizou, em sua própria música, todos esses parâmetros foi diferente, mas a

ideologia nacionalista está presente em suas obras de maneira similar.

Dentre outras coisas, Béla Bartók se interessou por canções populares,

dedicando-se a elas durante muito tempo e em parceria com o compositor

húngaro Zoltán Kodály (1882-1967), fez estudos científicos sobre canções

folclóricas. A catalogação dessas canções se deu por suas numerosas viagens

pelo interior, munido de aparelhos registradores, cilindros e grande quantidade

de papel pautado. Editou e publicou com Kodály uma coletânea de cantos

populares húngaros, por eles harmonizados. Também desenvolveu pesquisas

sobre praticamente toda a música tradicional europeia e até norte-africana.

Sobre Villa-Lobos podemos dizer que “seu projeto musical foi nascendo,

na prática, a partir do contato e manuseio com a realidade de seu tempo, seja

com as coisas brasileiras, ou com as informações que mal ou bem aqui

chegavam do Velho Continente” (MEDAGLIA, 1988, p. 165). Villa-Lobos tinha

aversão total aos “exotismos” e “folclorismos”8. Ele conseguia, como poucos,

“guardar o devido distanciamento da matéria-prima compilada, assim como do

sofisticado know-how composicional europeu, travando a ambos uma inusitada e

bem-humorada visão crítica” (MEDAGLIA, 1988, p. 167).

8 “Que [os músicos venezuelanos] se empanturrem com sua música popular... mas não para „fazer folclore‟. Não! (...) O que devem fazer é deixar a sua própria personalidade falar através de suas músicas nacionais... deixar sua personalidade falar... (...) Que não tratem de ser modernos, novos ou originais... (...) e, sobretudo, que se lembrem sempre de sua obrigação de NÃO SEREM EXÓTICOS. Nunca exóticos” (VILLA-LOBOS apud CARPENTIER, 2000, p.17-18).

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Vejamos um exemplo de apropriação musical de Villa-Lobos, selecionado

por Paulo de Tarso Salles (1966-). Em seu Choros nº 10, Villa-Lobos utilizou

como tema a canção “Yara”, de Anacleto de Medeiros, que seria reintitulada

“Rasga o Coração” após receber a letra de Catulo da Paixão Cearense. Como

vemos abaixo, “o ritmo foi essencialmente aumentado, tornando mais aparente a

estrutura dos tetracordes que Villa-Lobos gostava de manipular, aproximando-se

do perfil que vinha sendo apresentado no Choros nº 10 (…)” (SALLES, 2009,

p. 241). Em relação ao perfil melódico, Villa-Lobos basicamente mantém a

estrutura intervalar proposta por Anacleto, introduzindo apenas sutis

modificações em alguns motivos.

FIG. 2 – Comparação entre a melodia extraída do Choros n.º 10 de Villa-Lobos e a melodia

original do tema “Yara” de Anacleto de Medeiros (SALLES, 2009, p. 241).

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Outro exemplo de apropriação musical na obra de Villa-Lobos são as

Bachianas Brasileiras. Nelas confluem duas vertentes: a música de Johann-

Sebastian Bach (1685-1750) e a música brasileira, principalmente a popular

urbana e a indígena. Segue abaixo um fragmento escrito pelo próprio autor

dando-nos um panorama de como estruturou o terceiro movimento (Fuga) das

Bachianas Brasileiras nº 1:

III FUGA (Conversa)

A cabeça do tema inicial se caracteriza numa espécie de transfiguração de certas

células melódicas, típicas e populares dos antigos seresteiros da Capital Federal, à

maneira de Sátiro Bilhar. Bilhar (1861-1929) foi um velho e incorrigível chorão

boêmio, cantador e tocador de violão que acumulava as funções de funcionário

público com a de seresteiro habitual.

A forma e o estilo da fuga representam, primeiro, a espiritualização da maneira de

Bach, e depois uma idéia musical da conversação entre quatro chorões, cujos

instrumentos se disputam a primazia temática, em perguntas (sujeito) e respostas

sucessivas, num crescendo dinâmico, mas sempre conservando a mesma cadência

rítmica (VILLA-LOBOS apud NÓBREGA, 1971, p.33).

Seria possível citar milhares de outros exemplos, “contando-se entre eles:

a Hommage a Haydn de Debussy (1862-1918), a Le Tombeau de Couperin de

Ravel (1875-1937), a Scarlattiana de Casella” (NÓBREGA, 1971, p.11), a Quinta

Sinfonia de Mahler (1860-1911), que homenageia a Quinta de Beethoven e

todas as “variações sobre um tema” existentes desde os primórdios da escrita

musical.

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Na música contemporânea, além dos já citados Bartók e Villa-Lobos, mas

agora considerando um universo não necessariamente permeado pela ideologia

nacionalista, também há diversos exemplos de apropriações. Nesse aspecto, um

dos compositores que mais ousou foi Luciano Berio (1925-2003), principalmente

no terceiro movimento de sua Sinfonia. Nesse movimento, Berio sobrepõe

citações de obras das mais diversas vertentes estéticas e épocas, fazendo um

verdadeiro panorama histórico-musical, tendo como fio condutor (citado quase

que integralmente) o terceiro movimento da Segunda Sinfonia de Mahler. Para

citar cada um de seus homenageados, Berio utiliza fragmentos das obras de

referência e as desenvolve. Como é uma peça para orquestra e oito cantores

(dois baixos, dois tenores, dois contraltos e dois sopranos), a letra também dá

pistas de quais citações musicais foram utilizadas.

O exemplo abaixo, que mostra a primeira página do terceiro movimento

da Sinfonia9, logo no primeiro compasso encontramos “Peripetie”, a quarta das

Cinco Peças para Orquestra op. 16 de Arnold Schoenberg (1874-1951). Ainda

no segundo compasso, são iniciados trechos da Quarta Sinfonia de Mahler e

trechos dos “Jeux de Vagues” de La Mer de Debussy. A partir do compasso 6,

algumas vozes executam um trecho com a técnica de canto falado

Sprechgesang10, diretamente associada a Schoenberg.

9 A página da partitura reproduzida neste trabalho contém diversas anotações manuscritas por Maurício Ayer (segundo o qual, grande parte delas foi transcrita dos manuscritos de Flo Menezes) que assinalam, entre outros aspectos, as citações e seus autores.

10 O Sprechgesang foi “elevado a paradigma da escritura vocal no célebre Pierrot Lunaire de 1912 (…), o canto-falado efetuava, assim, curiosamente, uma síntese histórica entre o atonalismo emergente e o canto dos cabarés vienenses (…)” (Prefácio de Flo Menezes em SHOENBERG, 2001, p.13).

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FIG. 3 – Trecho da Sinfonia, de Luciano Berio. Primeira página do terceiro movimento (“In Ruhig

Fliessender Bewegung”).

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Na vertente da música popular brasileira também encontramos esse tipo

de procedimento. Um caso emblemático é o da citação literal que Caetano

Veloso (1942-) faz, em “Sampa”, de um trecho da melodia de “Ronda”, de Paulo

Vanzolini (1924-). Para evidenciar a citação, Caetano utiliza as mesmas palavras

do verso de Vanzolini no final do último verso: “na avenida São João”. É curioso

notar, nesse caso específico, que Paulo Vanzolini não aprovou a citação,

considerando-a como plágio e recorrendo até mesmo a ações judiciais.

FIG. 4 – Comparação da melodia e da letra das canções: “Ronda”, de Paulo Vanzolini e “Sampa”

de Caetano Veloso.

Esse procedimento também foi amplamente utilizado na bossa nova, e o

principal compositor a realizar tais apropriações foi Antônio Carlos Jobim (1927-

1994). Uma de suas citações mais conhecidas é o início de “Insensatez”, que

remete nitidamente ao Prelúdio nº 4 de Frédéric Chopin (1810-1849) tanto no

acompanhamento harmônico quanto no desenvolvimento melódico.

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FIG. 5 – Comparação melódico-harmônica entre “Insensatez”, de Tom Jobim, e o Prelúdio nº 4,

de Frédéric Chopin.

Nota-se, no exemplo acima, que Tom Jobim utilizou o motivo de Chopin e

o desenvolveu das seguintes maneiras:

- No início do Prelúdio nº 4 há dois motivos melódicos na forma de

sequência (primeiro motivo: compassos 1 a 5, segundo motivo:

compassos 6 a 8), Tom Jobim utiliza também os dois motivos

sequenciais (primeiro motivo: compassos 1 a 8, segundo motivo:

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compassos 9 a 16), contudo, expande-os criando uma finalização mais

longa e complexa.

- O ritmo da melodia é alterado, de forma a caracterizar o ritmo

sincopado próprio da música brasileira.

- A linha do baixo, que caminha descendentemente pelos graus

cromáticos, é mantida.

Para finalizar este capítulo, é interessante mencionar brevemente as

homenagens feitas por Tom Jobim a Radamés Gnattali, autor aqui estudado.

Tom foi amigo pessoal de Radamés e chegou a homenageá-lo com dois choros

em seu último disco (Antonio Brasileiro): “Radamés y Pelé” e “Meu amigo

Radamés”. A música “Radamés y Pelé” homenageia dois importantes ícones

para Jobim, o maestro da música e o “maestro da bola”. Depois de ouvir o choro

"Meu amigo Radamés", o maestro gaúcho compôs “Meu amigo Tom Jobim”

como retribuição.

Na última entrevista de sua vida, Tom Jobim falou brevemente ao repórter

Walter de Silva da revista Qualis sobre sua relação com Radamés:

Tom – (…) O "Meu amigo Radamés" é todo instrumental. O "Radamés Y Pelé" são

duas homenagens que eu faço ao maestro Radamés e ao nosso incrível Pelé.

Qualis – Como é que surgiu a ideia de fazer essas instrumentais em homenagem

ao Radamés Gnattali?

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Tom – O Radamés é uma coisa formidável, a generosidade... O Radamés

orquestrou a música brasileira toda. Fez muita música erudita muito boa.11

Existe também um poema que Tom Jobim dedicou a Radamés:

Radar é água alta.

É fonte que nunca seca.

É cachoeira de amor.

É chorão rei de peteca.

O Radar é concertista, compositor, pianista, orquestrador, maestrão.

E, mais que tudo, é amigo,

Navega junto contigo,

É conta de doação.

Ajuda a todo mundo

E mais ajudou a mim.

Alô, Radar, eu te ligo

Vamos tomar um chopinho

Aqui fala o Tom Jobim.

Assim como Tom Jobim, Paulinho da Viola (1942-) e Capiba (1904-1997)

também homenagearam Radamés com composições intituladas,

respectivamente, “Sarau para Radamés” e “Um choro para Radamés”. E como

não poderia deixar de ser, Radamés retrucou com “Obrigado, Paulinho” e

“Capibaribe”.

11

Ver http://www2.uol.com.br/tomjobim/textos_entrevistas_6.htm

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CAPÍTULO 3

Suíte Retratos

3.1 - Introdução às análises

Desenvolvimento histórico da suíte como forma musical

Quando os compositores começaram (...) a escrever música instrumental,

defrontaram-se com um problema: que espécie de música escrever? Em termos

gerais isso foi resolvido em três direções, (a) danças, (b) adaptações do estilo

polifônico vocal vigente e (c) variações sobre um tema (LOVELOCK, 1899, p. 97).

A citação de Lovelock acima permite notar como foi, portanto, uma opção

muito comum a de escrever danças instrumentais. Desde os primórdios desse

tipo de composição era usual o emparelhamento de pares de danças

contrastantes entre si, em que a segunda poderia ser uma variação sobre a

primeira. A pavana e a galharda foram as primeiras danças popularmente

agrupadas dessa maneira. A partir desse momento a forma binária foi adotada

por praticamente todos os compositores que se aventuraram na escrita de

danças de suíte. Já no início do século XVII, a pavana e a galharda se tornaram

obsoletas, para substituí-las foi criado um novo par de danças lenta-rápida, a

alemanda e a corrente, que foram talvez as mais exploradas desde então.

A forma da suíte nunca seguiu padrões muito rígidos. Além da alemanda

e da corrente, com o tempo foram acrescentadas diversas outras danças (a

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critério do compositor) entre as duas fixas. Dentre elas podemos citar: a

sarabanda, a gavota, o minueto, o bourrée, a giga e muitas outras.

Contudo, “os compositores ingleses, franceses e italianos tratavam a

suíte simplesmente como uma série de movimentos contrastantes, baseados

(...) em danças e ligados, sobretudo, pela unidade de tonalidade (LOVELOCK,

1899, p. 138). Apesar disso, em cada país encontramos abordagens distintas

nos processos composicionais.

- França: as suítes francesas tendiam a ser muito extensas, mesclando

danças e peças programáticas muitas vezes com títulos fantasiosos.

- Inglaterra: as suítes inglesas eram comumente precedidas de um

prelúdio, e apesar de possuir a alemanda e a corrente, outras peças podiam

aparecer livremente em sua forma.

- Alemanha: as suítes alemãs podem ser encaradas como as mais

tradicionais, pois nelas era empregado o esquema padrão de emparelhamento

de danças (alemanda, corrente, sarabanda e giga).

- Itália: as suítes italianas receberam o nome de sonata de câmara e

inicialmente não eram compostas apenas de danças, porém, com o passar dos

anos, as danças prevaleceram e a forma mais popular continha a alemanda e a

corrente, introduzidas por um prelúdio e seguidas de uma ou mais danças. As

sonatas de câmara eram usualmente escritas para dois violinos, viola da gamba

(ou violoncelo) e cravo.

Com o passar dos séculos, a suíte deixou de ter uma forma previamente

estabelecida e passou apenas a designar partes musicais correlacionadas. Isso

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não aconteceu apenas com a suíte, mas com diversas outras formas musicais,

principalmente durante e após o Romantismo. Nessa época os compositores

utilizavam os nomes de formas consagradas (como suítes, prelúdios, sonatas e

outras) como forma de resgate cultural, entretanto compunham livremente suas

obras, sem amarras tradicionais.

Roy Bennett cita como característica estilística do Romantismo a “maior

liberdade de forma e concepção; plano emocional expresso com maior

intensidade e de forma mais personalista, na qual a fantasia, a imaginação (…)

desempenham importante papel” (BENNETT, 1986, p.66).

Contexto histórico da Suíte Retratos

“A ponte que o maestro Radamés Gnattali fez entre a música de concerto

e a música popular materializou-se principalmente quando escreveu concertos

para solistas populares” (Cazes, 1998, p.123).

Radamés costumava compor muito para seus amigos, músicos que

admirava, como Edu da Gaita (1916-1982), Chiquinho do Acordeom (1928-

1993), Paulo Moura (1933-), Garoto (1915-1975), Jacob do Bandolim (1918-

1969) – a quem Radamés dedicou a sua Suíte Retratos, lançada no ano de

1964 – e muitos outros.

A Suíte Retratos começou a ser arquitetada por volta de 1956 e foi

originalmente composta para orquestra de cordas, conjunto regional e bandolim

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solista. A suíte é formada por quatro movimentos, cada um trazendo no título um

nome representativo para a história do choro, são eles: Pixinguinha, Ernesto

Nazareth, Anacleto de Medeiros e Chiquinha Gonzaga. Para fundamentar a

homenagem, Radamés partiu de músicas concebidas por cada um dos quatro

homenageados. No movimento de Pixinguinha Radamés escolheu o choro

“Carinhoso” para a parte A e “Ingênuo” para a parte B; no de Ernesto Nazareth a

valsa “Expansiva”; no de Anacleto o tema do choro “Três Estrelinhas”; e no de

Chiquinha o maxixe “Corta-Jaca” ou “Gaúcho”.

Para ajudar Jacob a ler e tocar a partitura da Suíte, Radamés pediu que

Chiquinho do Acordeom gravasse um “protótipo”, visto que Chiquinho tinha uma

leitura muito boa e conhecia bem o estilo de Radamés. Entre a primeira

gravação de Chiquinho e a gravação oficial com Jacob, em 1964, se passaram

sete anos. Como forma de agradecimento, Jacob do Bandolim escreveu esta

carta a Radamés Gnattali:

Meu caro Radamés,

Antes de Retratos, eu vivia reclamando: "É preciso ensaiar...". E a coisa ficava por

aí, ensaios e mais ensaios.

Hoje minha cantilena é outra: "Mais do que ensaiar, é necessário estudar". E estou

estudando. Meus rapazes também (o pandeirista já não fala mais em paradas).

"Seu Jacob, o senhor aí quer uma fermata? Avise-me, também, se quer adágio,

moderato ou vivace...". Veja, Radamés, o que você me arrumou. É o fim do mundo.

Retratos: valeu estudar e ficar todo fechado dentro de casa durante todo o Carnaval

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de 1964, devorando e autopsiando os mínimos detalhes da obra, procurando

descobrir a inspiração do autor no emaranhado de notas, linhas e espaços e, assim,

não desmerecer a confiança que em mim depositou, em honraria pródiga demais

para um tocador de chorinhos.

Mas o prêmio de todo esse esforço foi maior do que todos os aplausos recebidos

em trinta anos: foi o seu sorriso de satisfação. Este é que eu queria, que me faltava

e que, secretamente, eu ambicionava há muitos anos. Não depois de um chorinho

qualquer, mas sim em função de algo mais sério. Um sorriso bem demorado, em

silêncio, olhos brilhando, tudo significando aprovação e sensação de desafogo por

não haver se enganado. Valeu! Ora, se valeu!

E se hoje existia um Jacob feito exclusivamente à custa de seu próprio esforço, de

agora em diante há outro, feito por você, pelo seu estímulo, pela sua confiança e

pelo talento que você nos oferece e que poucos aproveitam.

Meu bom Radamés: sinto-me com quinze anos de idade, comprando um bandolim

de cuia e um método simplório na loja do Marani & Lo Turco, lá no Maranguape.

Vou estudar bandolim.

Que Deus, no futuro, me proteja e Radamés não me desampare.

Obrigado, mestre.

NB - Perdoe. Sei que você fica inibido com elogios de corpo presente. Daí esta

carta. Sua modéstia julgará que é absurda, sem motivo e, até mesmo, ridícula. Mas

eu tinha que escrevê-la agora, para não estalar de um enfarte, tá? (A. PAZ, 1997,

p. 188).

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Quando se lançava um LP de solistas famosos (como Jacob do Bandolim)

todos corriam para aprender as novas músicas e tocar nas rodas de choro.

Contudo, muitos chorões não notaram a importância da Suíte Retratos logo de

início, isso se deve principalmente porque era diferente, seu arranjo era mais

complexo do que se encontrava usualmente nas gravações de choro. E assim a

Suíte Retratos ficou esquecida por um tempo. Porém, após alguns anos, o

bandolinista Joel Nascimento (1937-) ouviu a gravação de Jacob e ficou

encantado.

“Joel passou anos tirando de ouvido partes da suíte e sonhando tocá-la

inteira. Depois de cerca de dez anos, Joel conseguiu o telefone de Radamés,

criou coragem e ligou para pedir a partitura” (CAZES, 1998, p.126).

Por volta de 1978 Joel Nascimento pediu a Radamés para que

escrevesse uma versão da Suíte Retratos para um conjunto regional de choro

tradicional (bandolim, cavaquinho, violão, violão sete cordas e pandeiro). Mesmo

a contragosto, Radamés escreveu o arranjo, e depois de pronto, Joel organizou

um grupo que viria a ser um dos mais respeitados de sua época, a Camerata

Carioca.

Em maio de 1980, quando a Camerata Carioca e Radamés Gnattali se

apresentaram no IBAM, Sérgio e Odair Assad (…) assistiram ao concerto e foram

vítimas do encanto da suíte. Pediram, então, a Radamés um arranjo para dois

violões (CAZES, 1998, p.127).

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Esse arranjo para dois violões ficou muito famoso na mão dos irmãos

Assad, pois os dois obtiveram grande sucesso em sua carreira internacional,

influenciando assim muitos duos de violão pelo mundo afora a tocar, gravar e

difundir esse arranjo.

Raphael Rabello (1962-1995) e Chiquinho do Acordeom também

gravaram sua própria versão da suíte. Em 1988 os dois se juntaram para uma

gravação memorável onde deram suas próprias interpretações à obra. O CD que

saiu pela Kuarup recebeu em 1991 o prêmio Sharp de melhor disco

instrumental.

Pressupostos sobre as análises

Para as análises a seguir, será utilizado uma transcrição da versão

original para bandolim solista, conjunto regional (cavaquinho, violão e

percussão) e orquestra de cordas (violinos I, violinos II, violas, violoncelos e

contrabaixos) feita e editada por Edson Lopes. Este arranjo foi o primeiro

concebido por Radamés Gnattali e, portanto, o ponto de partida ideal para

análise dessa obra. Contudo, também será citado, eventualmente, o arranjo para

dois violões feito a pedido do Duo Assad. Este versão representa mais do que

uma redução, é também uma transformação da parte orquestral da Suíte

Retratos e possibilita uma visualização distinta do contexto da obra.

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As diferenças entre os dois arranjos podem ser encaradas a partir do

contexto histórico em que cada um foi concebido, pois o arranjo orquestral

começou a ser arquitetado em 1956 e o arranjo para violões foi “encomendado”

pelo Duo Assad no ano de 1980. Sendo assim, Radamés inseriu uma harmonia

consideravelmente mais complexa e densa, carregada de tensões e com

intrincadas polirritmias (principalmente no primeiro movimento) para os dois

violonistas, levando em consideração toda a transformação do cenário musical

ocorrida nesses anos.

Estas análises pretendem ampliar a compreensão sobre o processo de

composição dos movimentos, descrevendo, com exemplos musicais, onde e

como ele cita musicalmente seus quatro homenageados, além de esclarecer

alguns dos procedimentos empregados na transformação deste material musical

e sua reformulação para o novo contexto em que são inseridos.

3.2 - Análises

I – Pixinguinha

No primeiro movimento da Suíte Retratos Radamés toma como material

fundamentador de sua composição duas conhecidas músicas de Pixinguinha:

“Carinhoso” e “Ingênuo”. Esse movimento apresenta uma forma pouco comum

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nas composições de choro que, assim como em “Carinhoso”, foi composto em

duas seções (A e B) precedidos por uma introdução12.

O número de compassos de cada parte estrutural de sua forma também

foi concebido de maneira pouco comum (como podemos ver no quadro formal

abaixo).

----------------------------------------------

Intro -11 compassos

A - 48 compassos

B - 32 compassos

A - 31 compassos

Coda - 5 compassos

----------------------------------------------

Nota-se na gravação (ver CD anexo) uma presente atuação da percussão

nesse primeiro movimento, em especial do pandeiro. Contudo, a grade

orquestral que temos em mãos não apresenta a linha de percussão escrita,

evidenciando uma falha do copista.

Primeiramente, esse movimento apresenta uma introdução de caráter

orquestral, realizado pelo naipe de cordas, priorizando uma coesa condução das

vozes em bloco. Para concluir a introdução e iniciar a seção A, o bandolim

polariza cromaticamente algumas das principais notas de um arpejo G7(13) em

andamento livre (ad libitum) criando uma suspensão inicial que prepara o início

12

Uma curiosidade é o fato de a introdução conhecida de “Carinhoso” somente ter sido incluída e incorporada em sua forma a partir de 1937, na gravação de Orlando Silva.

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do tema, essa suspensão também é provocada pelo fato do acorde G7(13) ter

função dominante da tonalidade que inicia a seção A (Dó Maior).

O tema da parte A evoca a melodia também da seção A de “Carinhoso”,

no entanto, notas e ritmos são alterados e notas são acrescentadas, causando

no ouvinte apenas uma sensação longínqua de ouvir a melodia de Pixinguinha.

Isso se deve à maneira como a estrutura da melodia de Pixinguinha é trabalhada

e transformada.

FIG. 6 – Comparação melódica dos trechos iniciais (das seções A) do primeiro movimento da

Suíte Retratos, de Radamés Gnattali, e de “Carinhoso”, de Pixinguinha.

Em relação à rítmica, podemos citar:

- O anacruse de três notas, como podemos ver acima, é característico

em ambas as melodias na forma de síncopa.

- A estrutura rítmica da frase de “Carinhoso” é bastante simples, se

repetindo a cada dois compassos, e a frase de Radamés detém essa

mesma estrutura rítmica, porém alargada para quatro compassos.

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Já em relação ao desenvolvimento melódico:

- Em “Carinhoso” percebe-se grande polarização nas notas lá e mi, já

que elas são notas longas estruturais e o anacruse as sobressalta; na

transformação de Radamés as notas enfatizadas são as notas sol e

mi. Essa mudança da primeira nota (de lá para sol) é a única

modificação feita por Radamés a esse motivo.

- As demais notas que permeiam o motivo extraído de “Carinhoso”

podem ser consideradas notas de “embelezamento”, utilizadas para

desenvolver e ligar os motivos.

Podemos encarar a melodia de Radamés como uma espécie de variação

por desenvolvimento, visto que o motivo aparece transformado, carregado de

mais informação musical do que sua matriz.

Harmonicamente, também existem algumas citações nitidamente literais,

como nos compassos 14-16, em que Radamés utiliza-se de um clichê

harmônico que começa pelo acorde de tônica [C], sobe meio-tom a sua quinta

[C(#5)], mais meio-tom para a sua sexta [C6] e novamente sobe meio-tom para

sua sétima menor [C7], acorde dominante que prepara o quarto grau, de

maneira semelhante ao movimento harmônico que ocorre nos compassos

iniciais do tema de Pixinguinha. No caso de Radamés esse clichê é executado

pelo cavaquinho e complementado por todo o naipe de cordas.

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FIG. 7 – Comparação harmônica de trechos do primeiro movimento da Suíte Retratos

(compassos 14-16), de Radamés Gnattali, e de “Carinhoso” (compassos 1-4), de Pixinguinha.

O tema principal da seção B chama atenção por delinear a melodia de

“Ingênuo”, como podemos observar a seguir:

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FIG. 8 – Comparação melódica dos trechos iniciais do primeiro movimento da Suíte Retratos

(seção B), de Radamés Gnattali, e de “Ingênuo” (seção B), de Pixinguinha.

O movimento rítmico de ambas é muito similar, a única exceção é a

antecipação da última semicolcheia do segundo para o terceiro compasso

(décima nota). Contudo, foram consideravelmente alteradas as relações

intervalares e as direções de alguns saltos.

- O primeiro intervalo (ré-mi#) pode ser considerado uma segunda

(aumentada), se pensarmos na nota ré como uma oitavação, assim

como no primeiro intervalo (dó-ré) de Pixinguinha.

- Os saltos da terceira para a quarta nota (fá#-si), da quinta para a sexta

(lá-fá#) e da sexta para a sétima (fá#-ré) são maiores do que os graus

conjuntos da melodia de Pixinguinha, contudo, o perfil melódico é

mantido, visto que os saltos são realizados na mesma direção que os

respectivos substituídos.

Page 60: Suíte Retratos de Radamés Gnattali - iar. FIG. 13 – Comparação melódica dos trechos iniciais (seção A) do terceiro movimento da Suíte Retratos, de Radamés Gnattali, e de

60

- Fora o primeiro intervalo, as únicas notas que saltam na direção

oposta às notas equivalentes são a nona e décima (respectivamente,

ré e fá).

- O último salto de ambas as melodias não é idêntico (salto de quinta e

terça, respectivamente), porém, o fato de os dois serem descendentes

dá uma sensação semelhantemente resolutiva à melodia.

Por esses motivos pode-se concluir que Radamés transformou a melodia

utilizando três processos composicionais: a manutenção rítmica, a manutenção

do perfil melódico e a “expansão” melódica realizada através do alargamento de

alguns intervalos.

Em alguns momentos, como nos compassos 23 e 55, por exemplo, o

naipe de cordas executa, em pizzicato, contornos diatônicos em terças. Essa

movimentação escalar pode ser encarada como uma “transfiguração”

camerística das baixarias convencionadas e realizadas pelos violões de seis e

sete cordas. Em um grupo regional de choro é bastante usual os dois violões

movimentarem os baixos em terça. Por isso, fica claro o uso dessa linguagem de

choro adaptado ao naipe de cordas.

Tanto na parte harmônica quanto na parte rítmica, esse movimento é

bastante denso. Observa-se o emprego de uma harmonia mais “cromática” do

que o usual e podemos encontrar constantemente o emprego de texturas

polirrítmicas entre as vozes, principalmente quiálteras e síncopas sobrepostas.

Page 61: Suíte Retratos de Radamés Gnattali - iar. FIG. 13 – Comparação melódica dos trechos iniciais (seção A) do terceiro movimento da Suíte Retratos, de Radamés Gnattali, e de

61

II – Ernesto Nazareth

Nesse segundo movimento da Suíte Retratos a música base que

fundamenta o processo composicional de Radamés é a valsa “Expansiva” de

Ernesto Nazareth. Ambas são formadas por três partes estruturais (A, B e C),

porém, em seu movimento, são incluídas seções de passagem, como

introduções, interlúdios e codas. Cada parte estrutural da valsa de Nazareth e do

movimento de Radamés possui o mesmo número de compassos (32),

mostrando que, em relação à estrutura formal, Radamés compôs como

Nazareth, uma valsa com um número tradicional de compassos.

----------------------------------------------

Intro – 16 compassos

A – 32 compassos

B – 32x2 = 64 compassos

Interlúdio (tema de A) – 16 compassos

C – 32x2 = 64 compassos

A + coda – 27+5 = 32 compassos

----------------------------------------------

Nos primeiros compassos desse movimento, o bandolim apresenta um

motivo ascendente que caracteriza uma valsa e é repetido três vezes. Essa

melodia é acompanhada apenas pelo naipe de cordas que basicamente define a

harmonia e a apoia ritmicamente. A segunda e última seção dessa introdução

Page 62: Suíte Retratos de Radamés Gnattali - iar. FIG. 13 – Comparação melódica dos trechos iniciais (seção A) do terceiro movimento da Suíte Retratos, de Radamés Gnattali, e de

62

gera contraste sobre a primeira, pois a melodia é tocada pelo bandolim sem

acompanhamento algum e em andamento livre (ad libitum).

Nas partes A, B e C, desse movimento, pode-se perceber que Radamés

enfatiza todos os contornos rítmico-melódicos feitos originalmente por Nazareth

em sua valsa, como:

- A movimentação melódica que inicia a parte A é idêntica à de Nazareth,

possuindo apenas uma anacruse. O caminho harmônico também é

bastante similar, apenas com algumas peculiaridades e substituições

realizadas para gerar novas sonoridades. É interessante notar que a

melodia de Nazareth se inicia com uma nota longa e a de Radamés não,

contudo, na transcrição do arranjo que temos em mãos é sugerido ao

bandolinista que execute um trêmulo. O trêmulo é largamente explorado

na técnica de bandolim como recurso para imitar o que seria uma nota

longa.

FIG. 9 – Comparação melódico-harmônica dos trechos iniciais do segundo movimento da Suíte

Retratos (seção A), de Radamés Gnattali, e de “Expansiva” (seção A), de Ernesto Nazareth.

Page 63: Suíte Retratos de Radamés Gnattali - iar. FIG. 13 – Comparação melódica dos trechos iniciais (seção A) do terceiro movimento da Suíte Retratos, de Radamés Gnattali, e de

63

- Já na seção B, a principal convenção rítmica (que aparece logo no

primeiro compasso) é utilizada de maneira similar à utilizada por

Nazareth, contudo, essa convenção é utilizada em menor escala apenas

para caracterizar a citação. A construção da linha melódica do segundo

ao quarto compasso de Radamés é muito interessante, visto que

podemos encará-la como uma junção e desenvolvimento dos compassos

dois e quatro de Nazareth. As primeiras nove notas são idênticas (ré-mi-

fá#-sol-lá-si), as notas dez e onze (fá#-sol) e treze e catorze (sol-mi)

estão presentes no quarto compasso de Nazareth, porém, em posições

métricas distintas (notas quatorze, quinze e dezesseis), no caso das

notas sol e mi o intervalo também se apresenta invertido.

FIG. 10 – Comparação melódica dos trechos iniciais (seção B) do segundo movimento da Suíte

Retratos, de Radamés Gnattali, e de “Expansiva”, de Ernesto Nazareth.

- Nos compassos 11 e 12 de B, Radamés escreve a mesma polarização

melódica que Nazareth propõe nos compassos 7 e 8 da parte B de

“Expansiva”. Essa polarização melódica é apresentada em ambos como

Page 64: Suíte Retratos de Radamés Gnattali - iar. FIG. 13 – Comparação melódica dos trechos iniciais (seção A) do terceiro movimento da Suíte Retratos, de Radamés Gnattali, e de

64

uma tríade maior (dó maior no caso de Radamés e sol maior no de

Nazareth), onde cada nota estrutural é atingida por um grau conjunto

cromático inferior.

FIG. 11 – Comparação melódica de trechos (seção B) do segundo movimento da Suíte Retratos

(compassos 11 e 12), de Radamés Gnattali, e de “Expansiva” (compassos 7 e 8), de Ernesto

Nazareth.

- No início de sua seção C, Radamés:

Compõe com o mesmo ritmo-motor e desenho melódico da parte C

de Nazareth, ou seja, a melodia se desenvolve com muitas colcheias

sucessivas, sendo que algumas delas podem ser notas pedal.

Especialmente nessa seção, Radamés simplifica o material que

tem em mãos, visto que a melodia composta por Nazareth apresenta

uma maior complexidade em seu perfil, principalmente representada

por grandes saltos intervalares.

Page 65: Suíte Retratos de Radamés Gnattali - iar. FIG. 13 – Comparação melódica dos trechos iniciais (seção A) do terceiro movimento da Suíte Retratos, de Radamés Gnattali, e de

65

Outro importante aspecto representado por Radamés é o fato de o

perfil melódico ter sido mantido quase em sua totalidade. As direções

de todos os saltos são idênticas13 às da parte C de Nazareth.

Um fragmento da escala diatônica ascendente é acrescentada na

forma de anacruse.

FIG. 12 – Comparação melódica dos trechos iniciais (seção C) do segundo movimento da Suíte

Retratos, de Radamés Gnattali, e de “Expansiva”, de Ernesto Nazareth.

Nesse segundo movimento, o naipe de cordas atua principalmente como

acompanhamento, delineando a harmonia através de encadeamentos de

acordes espalhados pelas cinco vozes (violinos I, violinos II, violas, violoncelos e

contrabaixos), tanto na forma de “cama harmônica” quanto na forma de ataques

rítmicos.

13

A única exceção se encontra no primeiro tempo do quarto compasso, onde encontramos uma

terça maior ascendente (notas dó-mi) no lugar da segunda maior descendente (notas lá-sol).

Page 66: Suíte Retratos de Radamés Gnattali - iar. FIG. 13 – Comparação melódica dos trechos iniciais (seção A) do terceiro movimento da Suíte Retratos, de Radamés Gnattali, e de

66

Podemos observar no arranjo para dois violões uma análise harmônica

consideravelmente mais densa do que sua “matriz”. Radamés adiciona diversas

tensões harmônicas não encontradas normalmente na escrita de valsas-choro e

realiza alguns saltos e cadências harmônicas nitidamente pessoais14. Contudo,

na versão em questão (bandolim solista, conjunto regional e orquestra de

cordas) a harmonia se mantém basicamente triádica e são encontrados poucos

momentos em que as modulações apresentam um caráter mais moderno.

III – Anacleto de Medeiros

O terceiro movimento da Suíte Retratos presta homenagem a Anacleto de

Medeiros. Dos diversos gêneros que Anacleto compôs, o mais significativo foi o

schottisch. Por isso, Radamés utilizou ideias musicais do choro “Três

Estrelinhas” e adaptou às características estilísticas do schottisch, que é

composto em compasso quaternário e formado estruturalmente por semínimas e

colcheias.

Do ponto de vista formal o movimento de Radamés tem a mesma

quantidade de partes estruturais do choro de Anacleto (três), entretanto, são

acrescentadas pequenas seções transitórias como introdução, interlúdio e coda.

14

Pode-se considerar como nitidamente pessoais alguns caminhos modulatórios largamente encontrados na composição dos quatro movimentos da Suíte Retratos.

Page 67: Suíte Retratos de Radamés Gnattali - iar. FIG. 13 – Comparação melódica dos trechos iniciais (seção A) do terceiro movimento da Suíte Retratos, de Radamés Gnattali, e de

67

----------------------------------------------

Intro – 4 compassos

A – 16x2 = 32 compassos

B – 16 compassos

A – 16 compassos

Interlúdio (Cadenza) – 1 compasso

C – 8+10 = 18 compassos

Intro – 4 compassos

A – 15 compassos

Coda – 4 compassos

----------------------------------------------

A introdução desse movimento, executada pelo naipe de cordas,

apresenta um motivo musical de quatro colcheias em forma de sequência, ou

seja, a ideia musical é repetida em alturas diferentes e por diferentes

instrumentos. As vozes são conduzidas de maneira polifônica e a tonalidade (Lá

menor) é enfatizada por meio de uma cadência autêntica (V-I).

Durante toda a extensão das três partes do choro “Três Estrelinhas”

Anacleto utilizou um marcante motivo melódico que caracteriza a obra, este

motivo consiste na repetição imediata de notas estruturais da melodia. Como

não poderia deixar de ser, Radamés compôs seu movimento com diversas

técnicas não encontradas em Anacleto, contudo, o motivo melódico principal de

“Três Estrelinhas” é largamente utilizado e transformado, caracterizando a

citação.

Analisando de uma maneira “macro”, a seção A de Radamés é composta

por duas sentenças de oito compassos: X X‟ Y / X X‟ Y‟. Já a seção A do choro

Page 68: Suíte Retratos de Radamés Gnattali - iar. FIG. 13 – Comparação melódica dos trechos iniciais (seção A) do terceiro movimento da Suíte Retratos, de Radamés Gnattali, e de

68

de Anacleto é formada por uma sentença e um período, ambos de oito

compassos cada: X X‟ Y / A B A‟ C.

A parte A é apresentada de maneira homofônica, como melodia

acompanhada, no entanto, o acompanhamento está espalhado pelas vozes do

naipe de cordas. Para gerar contraste, a melodia transita entre as vozes e os

registros, passando do bandolim para os violinos I. Essa melodia foi concebida

com muitos ornamentos, principalmente apojaturas descendentes, e possui um

grande número de aproximações cromáticas. Como podemos ver abaixo, os

motivos de Radamés e Anacleto têm bastante em comum:

FIG. 13 – Comparação melódica dos trechos iniciais (seção A) do terceiro movimento da Suíte

Retratos, de Radamés Gnattali, e de “Três Estrelinhas”, de Anacleto de Medeiros.

Ambos apresentam os contornos melódicos semelhantes, como por

exemplo:

- O ritmo dos três primeiros compassos é idêntico, porém desdobrado.

Page 69: Suíte Retratos de Radamés Gnattali - iar. FIG. 13 – Comparação melódica dos trechos iniciais (seção A) do terceiro movimento da Suíte Retratos, de Radamés Gnattali, e de

69

- As quatro primeiras notas seguem o mesmo padrão, segunda menor da

anacruse para o primeiro tempo, volta uma segunda menor e sobe uma

terça maior.

- O desenho melódico do primeiro compasso segue a mesma linearidade

ascendente, mas em vez de subir em terças Radamés sobe uma terça e

quatro graus cromáticos.

- O desenho melódico do segundo compasso segue a mesma linearidade

descendente. Porém as notas repetidas de Anacleto estão na primeira e

quarta semicolcheia e as de Radamés localizam-se da segunda para a

terceira e da quarta para a quinta notas.

- Como podemos perceber, de uma forma geral, a linha melódica composta

por Radamés possui um caráter mais cromático do que a de Anacleto.

Contudo, no quarto compasso do choro “Três Estrelinhas” encontramos

um motivo altamente cromatizado. Com base nesse compasso é visto

então que Radamés compôs de uma maneira mais cromática buscando

essa sonoridade já proposta por Anacleto.

Nos quatro compassos iniciais da parte B a textura continua sendo

homofônica, contudo, as cordas executam o acompanhamento em pizzicato,

diferenciando do acompanhamento da parte A que é realizada com o arco. As

vozes se desenvolvem de maneira um pouco mais contrapontística a partir do

Page 70: Suíte Retratos de Radamés Gnattali - iar. FIG. 13 – Comparação melódica dos trechos iniciais (seção A) do terceiro movimento da Suíte Retratos, de Radamés Gnattali, e de

70

quinto compasso de B, o bandolim e os violinos I e II desenvolvem um diálogo

constante até o final dessa seção.

Em seguida, a parte A é repetida literalmente, porém agora ela é sucedida

pelo interlúdio, que se inicia com o acompanhamento atacando os acordes e o

bandolim arpejando-os em tercinas. Isso acontece no compasso 53 desse

movimento (sobre a cadência IIm7–SubV7). Logo em seguida um acorde G7 é

atacado (este será dominante na tonalidade da parte C) e na sequência o

bandolim executa uma Cadenza representada por uma série de arpejos e uma

harmonia caracterizada por aproximações cromáticas. Ao fim do interlúdio o

bandolim repousa na nota sol, que soa como uma preparação para a parte que

vem em seguida, pois tem função dominante.

A parte C é predominantemente homofônica, sendo que o bandolim

executa uma melodia bastante ornamentada. Nessa seção, o motivo principal

proposto por Anacleto continua a ser transformado e desenvolvido, de maneira a

caracterizar a citação. O naipe de cordas é orquestrado aqui de forma bastante

interessante, com acordes em pizzicato com uma figuração mais rítmica gerando

contraste com as notas longas da casa dois.

Após essa seção, executa-se a introdução e a parte A novamente para

chegar até a Coda, constituída por elementos já trabalhados no movimento.

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IV – Chiquinha Gonzaga

O maxixe “Gaúcho (Corta-Jaca)”, de Chiquinha Gonzaga, pode ser

considerado a música matriz que fundamentou esse quarto movimento15 de

Radamés Gnattali. Porém, a estruturação formal empregada por Radamés não é

muito similar à forma da música de Chiquinha, tanto no número de partes

estruturais, quanto no número de compassos de cada uma delas. Segue abaixo

o quadro formal deste quarto movimento.

----------------------------------------------

Intro – 12 compassos

A – 28 compassos

Interlúdio – 4 compassos

B – 22 compassos

C – 41+49 = 90 compassos

D – 16 compassos

C‟ – 47 compassos

A – 28 compassos

Interlúdio – 4 compassos

B – 21 compassos

Coda – 13 compassos

----------------------------------------------

Notamos, nos primeiros seis compassos da introdução, uma melodia

blocada no naipe de cordas que delineia a seção B de “Corta-Jaca”. Essa

primeira parte da introdução está aqui de forma a apresentar um material

15

É interessante notar que Radamés utiliza a percussão em sua orquestração apenas no primeiro e neste quarto movimento, conferindo-lhes uma característica menos camerística e mais de um arranjo de música popular com conjunto orquestral.

Page 72: Suíte Retratos de Radamés Gnattali - iar. FIG. 13 – Comparação melódica dos trechos iniciais (seção A) do terceiro movimento da Suíte Retratos, de Radamés Gnattali, e de

72

temático que será trabalhado durante a obra.16 Logo na sequência, nos quatro

últimos compassos da introdução, em que o ostinato rítmico de

acompanhamento é iniciado sobre um acorde de função tônica, podemos

perceber que esse ostinato é parte estrutural da composição de Chiquinha

Gonzaga e consequentemente de Radamés, portanto, podemos encarar esse

acompanhamento como uma espécie de citação estilística.

FIG. 14 – Comparação harmônica e rítmica dos ostinatos de acompanhamento do quarto

movimento da Suíte Retratos, de Radamés Gnattali, e de “Corta-Jaca”, de Chiquinha Gonzaga.

Podemos perceber que a melodia da parte A surgiu através da

transformação da melodia da parte A do “Gaúcho (Corta-Jaca)”, principalmente

16

Pudemos notar que os primeiros seis compassos da introdução (na versão para bandolim solista, regional de choro e orquestra de cordas) não estão devidamente transcritos em nenhum arranjo que temos em mãos. Isso pode ser explicado ou por um erro na edição, ou até mesmo por uma modificação proposta pelo próprio Radamés. Como não foi possível ter acesso à partitura manuscrita do autor, apenas o áudio foi levado em consideração para esta análise.

Page 73: Suíte Retratos de Radamés Gnattali - iar. FIG. 13 – Comparação melódica dos trechos iniciais (seção A) do terceiro movimento da Suíte Retratos, de Radamés Gnattali, e de

73

pelo ritmo e desenho melódico, visto que as células rítmicas que iniciam os dois

temas são idênticas. No desenvolvimento do tema de Radamés encontramos

diversas nuances similares às de Chiquinha.

FIG. 15 – Comparação melódica dos trechos iniciais (seção A) do quarto movimento da Suíte

Retratos, de Radamés Gnattali, e de “Corta-Jaca”, de Chiquinha Gonzaga.

Uma das principais diferenças entre as partes A de Chiquinha e Radamés

é que a primeira está em tonalidade menor e a segunda em maior. Podemos

também citar como característica marcante da parte A de Radamés a utilização

de um baixo pedal no primeiro tempo, pois mesmo com a harmonia em

movimento esse baixo (ré colcheia pontuada e lá semicolcheia) permanece

inalterado por vinte compassos.

Encerrada a parte A, Radamés insere um pequeno interlúdio de quatro

compassos que faz a interligação da parte A em Ré maior com a parte B em Ré

menor. A seção B soa como uma continuação da parte A, principalmente pelo

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74

fato de encontrarmos diversos desenhos melódicos parecidos, porém, na

tonalidade homônima. Essa seção B de Radamés também está relacionada à

parte A de Chiquinha, principalmente por ambas estarem na mesma tonalidade

e terem direcionamentos melódicos muito semelhantes, como por exemplo a

figuração rítmica similar e o perfil melódico quase idêntico.

Em relação ao perfil melódico, percebe-se:

- O primeiro compasso é uma citação literal de Chiquinha.

- O segundo compasso também apresenta um perfil ascendente17,

contudo, as relações intervalares são ligeiramente alteradas, alguns

saltos de terça foram transformados em graus cromáticos.

- O terceiro e o quarto compassos apresentam um desenvolvimento

melódico maior, neste exemplo algumas notas foram acrescentadas na

forma de aproximações cromáticas.

A intensa cromatização realizada por Radamés pode ser encarada como

desenvolvimento do cromatismo proposto por Chiquinha, principalmente na

última nota no primeiro compasso (sib) e nas três primeiras do segundo (lá-sol#-

lá). Em sua melodia, Radamés utilizou aproximações cromáticas ascendentes e

descendentes (concentradas principalmente nos terceiro e quarto compassos),

além de tecer uma série de quatro notas da escala cromática sucessivamente

(segundo compasso, do#-ré-ré#-mi).

17

O fato da segunda e da sétima notas (si e sol, respectivamente) desse compasso apresentarem a direcionalidade intervalar modificada não prejudica em nada a relação com o perfil melódico.

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75

FIG. 16 – Comparação melódica dos trechos iniciais (seções B e A) respectivamente, do quarto

movimento da Suíte Retratos, de Radamés Gnattali e de “Corta-Jaca”, de Chiquinha Gonzaga.

A parte C de Radamés é a seção que nos remete à parte B de Chiquinha:

FIG. 17 – Comparação melódica dos trechos iniciais (seções C e B) respectivamente, do quarto

movimento da Suíte Retratos, de Radamés Gnattali, e de “Corta-Jaca”, de Chiquinha Gonzaga.

Page 76: Suíte Retratos de Radamés Gnattali - iar. FIG. 13 – Comparação melódica dos trechos iniciais (seção A) do terceiro movimento da Suíte Retratos, de Radamés Gnattali, e de

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Nessa primeira frase da seção C Radamés utiliza perfis melódicos

advindos do maxixe “Corta-Jaca”, contudo, o processo de elaboração formal da

frase é modificado. Como podemos ver acima, Radamés construiu o trecho na

forma de período (X Y X‟ Z) e Chiquinha Gonzaga na forma de sentença (X X‟

Y).18

Nessa seção são empregadas algumas interessantes técnicas

composicionais. Logo de início, nos primeiros oito compassos, existem duas

vozes (melodia e acompanhamento) que são divididas no naipe de cordas, a

melodia em soli (aberta em vozes) nos violinos I e II e violas e o

acompanhamento nos violoncelos e contrabaixos. Elas interagem de maneira

polifônica e contrapontística, em seguida, a partir do nono compasso dessa

seção, as cordas retomam um papel secundário no qual fazem apenas notas

longas de maneira a sustentar a melodia que retornou ao bandolim.

No compasso 148, desse quarto movimento, Radamés cita de maneira

bastante clara uma espécie de acelerando escrito, encontrado no compasso 29

do maxixe “Corta-Jaca” de Chiquinha Gonzaga. Pode-se notar que o perfil

melódico é idêntico (apenas uma nota não segue a mesma direcionalidade

melódica) e a escrita rítmica também, levando em conta que as semicolcheias

repetidas no terceiro compasso podem ser encaradas como colcheias, assim

como na melodia de Chiquinha.

18 Este é um modelo de análise proposto por Schoenberg em Fundamentos da Composição Musical. São Paulo: Ed. Da Universidade de São Paulo, 1991.

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FIG. 18 – Comparação melódica de trechos do quarto movimento da Suíte Retratos (compassos

148-151), de Radamés Gnattali e de “Corta-Jaca” (compassos 29-32), de Chiquinha Gonzaga.

No compasso 26 da parte B do arranjo para dois violões, Radamés utiliza

uma imitação rigorosa à oitava, sendo que as duas vozes estão defasadas por

um compasso, essa imitação se segue até o compasso 33. Essa técnica

composicional dá ao trecho uma sonoridade bastante camerística.

A parte D se inicia com o andamento mais livre e é composta por uma

melodia angulosa e cheia de quiálteras acompanhada de uma harmonia

relativamente densa e carregada de tensões. No compasso 17 dessa parte o

andamento original é retomado e podemos perceber duas vozes se completando

melodicamente, esse trecho também retoma a ideia da parte B de Chiquinha. A

partir do compasso 25 até o 31 de D o bandolim realiza a melodia principal que é

harmonizada pelo naipe de cordas, a “cama harmônica” executada pelas cordas

é formada por fusas, que com notas repetidas dão a sensação de sustentação

de uma nota longa. Daí em diante essa parte se desenvolve novamente com

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78

materiais já vistos anteriormente. Nos quatro últimos compassos o ostinato de

acompanhamento sobre o acorde de Ré maior retorna, precedendo a parte A

que será repetida literalmente.

Após a repetição da parte A, Radamés concluiu sua composição com

uma Coda bastante densa, em que o naipe de cordas executa novamente uma

“cama” com notas repetidas em fusas que acompanham a angulosa melodia do

bandolim. A partir do quinto compasso o cavaquinho e o pandeiro acrescentam

outra ideia ao arranjo, executando ataques convencionados que “apoiam” a

melodia. Para finalizar, nos últimos cinco compassos, a tríade de Ré maior é

distribuída por todos os instrumentos em ritmos complementares, dando grande

ênfase à tonalidade principal do movimento.

3.3 - Observações Gerais

O contrabaixo é utilizado na orquestração da suíte de duas maneiras:

- Na formação estrutural do naipe de cordas, com uma linguagem mais

camerística.

- Junto com o regional, executando apoios harmônicos com o violão e

inclusive dobrando algumas frases de baixaria (não é muito usual um

contra-baixo fazer parte de conjuntos regionais, contudo, podemos

Page 79: Suíte Retratos de Radamés Gnattali - iar. FIG. 13 – Comparação melódica dos trechos iniciais (seção A) do terceiro movimento da Suíte Retratos, de Radamés Gnattali, e de

79

encontrar esse tipo de abordagem em algumas gravações de Jacob do

Bandolim).

Estilisticamente falando, alguns dos materiais musicais apresentados por

Radamés não são encontrados na escrita do choro tradicional, que utiliza

padrões rítmicos de semicolcheia e sincopas com uma harmonia basicamente

triádica sem grandes surpresas e com modulações para regiões próximas.

Por tudo isso, torna-se compreensível, que ao escrever dessa maneira

Radamés tenta expressar na pauta a maneira como os chorões interpretam o

choro, flutuando sobre seu ritmo e acrescentando um “tempero” a mais às

composições. Tanto que mesmo com essa escrita, relativamente complexa,

podemos perceber na gravação de Jacob do Bandolim que ele, o solista,

interpreta a melodia de forma bastante livre. Sendo essa execução consentida

pelo próprio Radamés em uma resposta a Hermínio Bello de Carvalho em uma

entrevista:

“(…) apenas é que na hora da gravação eu disse: „Jacob, toca como você

costuma tocar‟. O Jacob toca à sua maneira” (CAZES, 1998, p.127).

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80

Considerações Finais

O cerne dessa pesquisa foi trazer à tona, ou seja, expor minuciosamente

o âmbito musical da Suíte Retratos de Radamés Gnattali. Por meio da análise,

foi possível observar os principais pontos em que ele cita seus quatro

homenageados e quais processos foram utilizados para chegar ao resultado

final. O porquê de Radamés escolher cada um dos homenageados de cada

movimento da suíte deve-se principalmente ao fato de que eles representam

algumas das vertentes estilísticas das quais o gênero choro amalgamou. Em

outras palavras, a pesquisa compreende a grande síntese que Radamés

realizou com a escolha de quatro figuras fundamentais na história do choro.

Outro importante aspecto incitado por Radamés nessa sua obra é a tênue

linha que separa o gênero choro da linguagem interpretativa do choro, ou seja,

por meio da escrita musical as linhas melódicas se aproximam bastante do

caráter de improvisação e variação rítmico-melódica que se tornou prática

comum entre intérpretes do gênero. Com isso Radamés dá ao choro essa

roupagem de interpretação escrita, já largamente utilizada na música erudita, em

especial na música orquestral.

Como ponto de partida foi feita uma breve apresentação sócio-histórica

do choro, ou seja, uma contextualização mínima necessária para que o gênero

pudesse ser compreendido desde suas heranças europeias e africanas. No meio

dessa contextualização, foram estudados os músicos homenageados na Suíte

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Retratos, a fim de se tomar conhecimento de suas produções musicais e

importância histórica.

O segundo capítulo teve como foco um breve levantamento de questões

acerca da significação da apropriação como homenagem na forma de retrato.

Ligando tais questões, inclusive, com o universo pictórico das artes visuais,

procurou-se mostrar exemplos de como esse procedimento acontece em obras

musicais de diferentes contextos histórico-culturais.

Em seguida, a suíte como forma musical e a Suíte Retratos, em si,

foram contextualizadas para embasar as análises, que foram realizadas por

meio de comparações. As análises procuraram esclarecer da melhor forma as

inter-relações com cada um dos quatro homenageados, de forma a desvendar

alguns dos processos composicionais utilizados por Radamés.

A partir dos exemplos musicais vislumbrados ao longo desse trabalho,

pretendeu-se compreender os procedimentos utilizados na composição por

apropriação e transformação temática e harmônica. Com isso, vimos quão

importante as homenagens foram para a história da música, disseminando

procedimentos e sonoridades aos quatro cantos. Não podemos deixar de

comentar também sobre o caráter didático desse tipo de composição musical.

Em linhas gerais, pode-se afirmar que ninguém compõe nada do nada, ou seja,

os processos criativos de cada compositor estão indissociavelmente ligados a

referências externas, esteja ele consciente disso ou não.

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CD-ROM

Catálogo digital Radamés Gnattali

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Anexo 1

Partitura da Suíte Retratos

Arranjo para bandolim solista, conjunto regional e orquestra de cordas.

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