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Ano I – Número 01 – Abril de 2011 ENTREVISTA Reni Denardi, do Ministério do Desenvolvimento Agrário: “O meio rural brasileiro não é mais sinônimo de atraso.” O NOVO RURAL O NOVO RURAL ENTREVISTA Reni Denardi, do Ministério do Desenvolvimento Agrário: “O meio rural brasileiro não é mais sinônimo de atraso.”

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Ano I – Número 01 – Abril de 2011

ENTREVISTA

Reni Denardi, do Ministério do Desenvolvimento Agrário:“O meio rural brasileiro não é mais sinônimo de atraso.”

O NOVO RURALO NOVO RURALENTREVISTA

Reni Denardi, do Ministério do Desenvolvimento Agrário:“O meio rural brasileiro não é mais sinônimo de atraso.”

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SUSTENTABILIDADE DO CAMPOPublicação trimestral do Instituto Souza CruzAbril/2011 - Tiragem: 2 mil exemplares

Rua da Candelária, 66 / 4º andar – Centro CEP 20091-900 - Rio de Janeiro (RJ) Tel.: (21) 3849-9619 – Fax: (21) 3849-9778institutosouzacruz@institutosouzacruz.org.brwww.institutosouzacruz.org.br

Capa 4O campo tem um novo

modelo de produção familiar

Debate 8“O que há de diferente no Novo Rural?”:

Luciano Philippi e Jaime Ferré Martí

Entrevista 10Reni Denardi, delegado federal do Ministério do

Desenvolvimento Agrário (MDA) no Paraná

Boas Práticas 14Rurbano: projeto retrata o Novo Rural brasileiro

Coopaecia: experiência de sucesso na Serra Gaúcha

Jovens em Ação 16As histórias de Angélica e Jeferson,

que pensavam em abandonar o campo e hoje investem na área rural

Instituto em Foco 18Espírito Santo será a sede da IV Jornada Nacional do Jovem Rural

Na Bahia, 30 jovens já planejam futuro no campo

Meu Rural 19A pernambucana Tatiane Faustino, 21 anos, comanda

conversão da propriedade familiar para a agricultura orgânica

Coordenação: Luiz André Soares

Jornalistas responsáveis: Andrea Guedes (Mtb.28246 RJ) e Guilherme Mattoso (Mtb.26674)

Projeto gráfico e produção editorial: Via Corporativa Comunicação (www.viacorporativa.com.br)

Os conceitos emitidos nos artigos e matérias assinadas são deresponsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, a opinião do Instituto Souza Cruz

Nesta edição

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O foco que tem direcionado as iniciativas do Instituto SouzaCruz agora confere nome e pauta a nossa nova publicação trimestral.Com o compromisso de promover a leitura crítica sobre o meio ruralbrasileiro, Sustentabilidade do Campo se caracteriza por uma abor-dagem pluralista: através de reportagens, entrevistas e debates, co-nheceremos ao longo de suas edições diferentes argumentos emtorno do tema principal. Assim, nosso leitor terá liberdade e ele-mentos suficientes para construir sua própria interpretação.

Em seu primeiro número, a revista procura motivar a com-preensão acerca das dinâmicas de mudança que culminaram no cha-mado “Novo Rural”: a agricultura, em integração crescente comas economias urbanas (agroindustrialização), já não é mais o únicoindicador que delimita o campo. Cada vez mais os agricultores fa-miliares são pluriativos, ou seja, conjugam a atividade agrícola comoutras formas de trabalho. Mais além, a complementaridade eco-nômica entre o rural e o urbano atingiu também a dimensão geo-gráfica: os espaços se encontram entrelaçados, tornando difícil oexercício de definição precisa de onde um começa e o outro ter-mina. Esse cenário, descrito com precisão por pesquisadores, trazcomo exigência um novo olhar das instâncias do poder público,com o desenho de políticas contextualizadas, como bem afirma ementrevista Reni Denardi, delegado federal do Ministério do Desen-volvimento Agrário (MDA).

Sustentabilidade do Campo discute as principais ideias quedesenham essa nova e promissora realidade, ao mesmo tempo emque mostra as pessoas que, na prática, desenvolvem seus projetos devida no meio rural, com destaque para os jovens talentos de diver-sas regiões do País. De fato, a juventude rural vem produzindo deforma inovadora e articulando novos arranjos institucionais, comuma visão moderna do campo. É, sem dúvida, o segmento priori-tário para as políticas que visam a permanência qualificada das pes-soas no meio rural e, consequentemente, o fortalecimento daagricultura familiar brasileira.

Boa reflexão!

Um novo olhar

Luiz André SoaresGerente do Instituto Souza Cruz

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A família Hackenhaar retrata uma nova reali-dade do campo, caracterizada principalmente peloprocesso de dinamização econômica do meiorural. O chamado “Novo Rural” brasileiro, quetem produzido inúmeros estudos acadêmicos, en-globa outra forma de divisão do trabalho dentrodo núcleo familiar. Diferentemente de outras épo-cas, nem todos os membros de uma família abra-çam em tempo integral as atividades agrícolas desuas unidades. O modelo anterior deu lugar aoutro, mais sintonizado com as exigências atuais.

No novo padrão, as chamadas famílias pluria-tivas distribuem seus integrantes para novas ati-vidades econômicas, não agrícolas, dentro oufora de seus estabelecimentos. Segundo avaliaçãode alguns estudiosos do tema, é uma tendênciairreversível no Brasil, que começou a partir dadécada de 1980 e repete o percurso já trilhadopor países desenvolvidos.

Pode-se dizer que André e Maicon continuamagricultores, mas em tempo parcial. Definitiva-mente, o meio rural respira outros ares e nãomais se limita à condição de pólo das atividadesagropecuárias e agroindustriais. Passou a incor-

Revoluçãosilenciosa

Leonardo Luiz Hackenhaar, 56 anos, e Cledi Te-rezinha, 47, são proprietários de uma área de 7,2hectares em Linha Santa Emília, no municípiogaúcho de Venâncio Aires, onde nasceram. Ocasal criou cinco filhos e por décadas se mantevecom a renda da produção agrícola, que envolvefrutas, verduras, milho, aipim, além de ovos.

Hoje, no entanto, essa realidade mudou.Como Leonardo está com problemas de saúde,Cledi e os dois filhos mais velhos, André, 27, eMaicom, 25, assumiram o comando da proprie-dade, mas a vida no campo não é mais a mesma.“O que se planta aqui em casa não estava maisdando para o sustento de toda a família. Eu e meuirmão tivemos que procurar outras alternativaspara complementar a renda”, conta André, quedivide seu tempo entre o trabalho de agricultor eo de pedreiro e operador de máquina. Já Maicomé funcionário de um frigorífico na cidade e ajudana produção agrícola nos finais de semana.

“Era um tempo bom aquele”, diz Leonardo.“Há cerca de 10 anos, ganhávamos dinheiro su-ficiente com o que produzíamos aqui. Agora,está tudo muito diferente. Trabalhamos muitomais e ganhamos cada vez menos”, compara.

O modelo de produção familiar no campo mudou nas últimas décadas, com a multiplicação de

André com o irmão caçula, Igor, 9 anos,e os pais, Leonardo e Cledi: renda familiar complementada com atividades não agrícolas

4 Sustentabilidade do Campo

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porar novas funções, ligadas ao comércio, lazer,habitação e ecoturismo.

Tudo isso é resultado das mudanças recentes naagricultura familiar e de contiguidade crescente dosmundos urbano e rural. Se antes o setor produtivoera autárquico, com seu próprio mercado de tra-balho e equilíbrio interno, agora se integrou ao res-tante da economia, não podendo ser dissociadodos setores que lhe fornecem insumos e/ou com-pram seus produtos, conforme afirma José Gra-ziano da Silva, representante Regional da FAOpara a América Latina e o Caribe, em “O NovoRural Brasileiro”, minucioso estudo sobre o tema.

Lauro Mattei, professor de Economia da Uni-versidade Federal de Santa Catarina, que partici-pou ativamente dos estudos sobre a nova dinâmicado trabalho rural, explica que a reviravolta come-çou com a implementação de novas tecnologias nocampo. O fenômeno poupou mão de obra local eliberou gente do campo para buscar outras formasde subsistência, redefinindo o modelo tradicionaldo trabalho na agricultura familiar, que vivia só dasatividades agropecuárias.

“A renda média de um estabelecimento agro-

atividades não agrícolas e a complementaridade entre o urbano e o rural

André tem dupla jornada em busca de ganho extra: divide o tempo entre a agricultura e a construção civil

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pecuário sem pluriatividade é inferior comparada ados núcleos familiares que combinam atividadesagrícolas e não agrícolas”, assinala Mattei. “Comoo Brasil tem cinco milhões de estabelecimentosagropecuários, dos quais 4,2 milhões são de agri-cultores familiares, basta imaginar a dimensão des-sas transformações”, acrescenta.

Em Santa Catarina, por exemplo, as indústriastêxteis instaladas no Vale do Itajaí, próximas àszonas rurais, absorvem centenas de trabalhadoresdo campo. Talvez não seja uma grande novidade,se levada em consideração a história da migraçãoclássica no Brasil, hoje em franco declínio. Durantedécadas, foi intenso o fluxo de trabalhadores nor-destinos para metrópoles como São Paulo e Riode Janeiro, atrás de atividades temporárias na cons-trução civil. Da mesma forma que das lavouras mi-neiras uma leva de agricultores migrava aosgrandes centros à procura de ocupações urbanascom prazo de validade.

“À luz da sociologia, o movimento pendular dotrabalho agrícola e não agrícola é assunto batido”,constata Mattei. “No entanto, num ambiente ra-refeito de estudos específicos, conseguimos identi-ficar que o meio rural brasileiro, guardadas as suasdevidas especificidades, passou a ser caracterizadopela dupla fonte de renda e ocupações dos traba-lhadores rurais”, finaliza.

Como as atividades agrícolas não geram mais tantosempregos e renda como antigamente, quem ganhasão os setores de prestação de serviços, o comércio ea indústria, que absorvem os novos contingentes detrabalhadores rurais.

Em linhas gerais, aquilo que pesquisadores comrazoável consenso chamam de “Novo Rural“ brasi-leiro foi facilitado por alguns fatores. Cada vez maisindústrias desembarcam na zona rural, de olho na mi-nimização de custos (proximidade da matéria-prima,mão de obra mais barata, menos impostos). Condo-mínios de luxo são erguidos nessas áreas e atraem asclasses médias urbanas. Famílias menos abastadas embusca de moradias mais em conta engrossam o cin-turão no entorno.

Trata-se de uma equação que intensificou a de-manda por serviços públicos e domésticos, comérciosde mercadorias e alimentos, construção civil, trans-

Os estudos pilotados por Graziano,Del Grossi e outros acadêmicos daUniversidade de Campinas (Unicamp)são relativizados por Brancolina Fer-reira, coordenadora de Desenvolvi-mento Rural do Ipea. Ela consideraque as características estruturais do-minantes dos tempos coloniais aindapersistem na realidade rural de hoje.

“Acho que o conceito carece deespecificação e seu sentido é contro-verso”, provoca. “Dados da PesquisaNacional por Amostra de Domicílio(Pnad/IBGE) e do Censo Agropecuá-rio apontam a persistência de umvelho rural que ainda assegura baixosníveis de desenvolvimento socioeco-nômico e a concentração de rendano campo, apesar de a agricultura

estar integrada ao processo de mo-dernização técnica“, explica.

A maioria esmagadora da popu-lação rural ainda mantém, segundoela, vínculo estreito com a terra comomeio de sobrevivência. A pluriativi-dade, nesse sentido, seria a expressãoda ausência de acesso à terra emqualidade e quantidade suficientespara garantir a reprodução do mo-delo de cultivo familiar. “Se existe umnovo rural, ele é apenas um projeto àespera de realização, que depende deuma ampla reforma agrária para tor-nar concreta a transformação dascondições locais”, avalia.

Brancolina cita o Programa Na-cional de Fortalecimento da Agricul-tura Familiar (Pronaf), o Programa de

Aquisição de Alimentos (PAA) e a Po-lítica Nacional de Alimentação Escolar(Pnae) como iniciativas governamen-tais importantes para manter e po-tencializar a produção de alimentosbaseada na pequena propriedade fa-miliar. As duas últimas ações, espe-cialmente, estariam funcionandocomo indutoras de geração de rendaaos pequenos agricultores e assenta-dos. “O PAA beneficiou em 2009cerca de 98 mil pequenos produto-res, que forneceram alimentos parapouco mais de oito milhões de pes-soas em situação de vulnerabilidadealimentar“, conta.

Economista e professor da Univer-sidade Federal Fluminense (UFF), Car-los Guanziroli também questiona o

Não é bem assim

Nova realidade

Paisagem comum no Vale do Itajaí, em Santa Catarina: indústrias instaladas em áreas rurais

6 Sustentabilidade do Campo

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porte e lazer. Por conta desse processo de diluição dasdiferenças, aquele conflito histórico entre o urbano,como símbolo do novo e da ascensão, e o rural, re-presentante do velho e do declínio, parece ter viradopeça de museu. Ao contrário até, o que se observa éuma valorização do espaço rural, por meio do apeloecológico, a cultura country, lazer (pesque e pague,por exemplo), turismo e habitação.

Graziano e Del Grossi reconhecem que muitasdessas atividades não agrícolas sempre existiram,mas aconteciam no “fundo do quintal”, como se fos-sem hobbies sem relevância econômica. Com a che-gada das novas tecnologias, que alterou aorganização do processo de trabalho, reduziu aoferta de empregos e levou as famílias a procuraremoutras formas de sobrevivência, tais práticas ganha-ram importância na composição do rendimento fa-miliar. Serviram, inclusive, para disseminar o que se

convencionou denominar de “pluriatividade”, con-junto de atividades agrícolas e não agrícolas, dentroou fora de seu estabelecimento.

Os novos atores, agricultores em tempo parcial,não são mais os proletários que tanto incomodavamos autores marxistas, para quem o acúmulo de tra-balho fora do núcleo original significava desagrega-ção familiar e empobrecimento. Como apontaGraziano no estudo, eles trabalham no comércio, ar-rumam emprego nas indústrias tradicionais e atuamno terceiro setor.

O mais interessante é que, na prática, o Novo Ruralbrasileiro tornou-se via de mão dupla. Assim como pro-fissionais liberais urbanos espreitam novas oportunida-des de negócios nas atividades agropecuárias, trabalha-dores rurais buscam formas de prestação de serviços ti-picamente urbanas, atuando como secretárias, motoris-tas de ônibus e contadores, entre outras funções.

conceito de Novo Rural defendido poralguns de seus colegas. “As atividadesrurais não agrícolas não têm nada denovo no Brasil. Elas sempre existiram,desde os tempos da colônia, e sempreforam marginais na geração de rendano mundo rural”, afirma.

Ocupações como artesanato, tu-rismo rural e pesque e pague sãomuito ligadas, na visão dele, à exis-

tência de atributos específicos dolocal, que não se repetem nem se ge-neralizam no mundo rural. Em algunscasos, até geram um complementode renda importante, porém, margi-nal no conjunto.

“Por se tratarem de atividadesde demanda elástica, não garantempreços satisfatórios. Exatamente aocontrário das funções agrícolas, ine-lás ticas em demanda – as pessoasnão podem deixar de comer –, mascom preços ascendentes, comovemos agora”, explica. Ele lembraque a Pnad não só não capta satis-fatoriamente a renda agrícola,como a subestima (é declaratória).“Estes estudos baseados na Pnadacreditam que o emprego evolui da

mesma forma que a renda, o quenão é verdade”, assinala.

Guanziroli destaca ainda que boaparte do que se chama de renda nãoagrícola são empregos fora do esta-belecimento, como ocupações do-mésticas, que não representam al-gum dinamismo para a zona rural.“Não dá para ignorar que a fatia maisexpressiva da renda tem origem nasatividades agrícolas ou agroindus-triais”, diz. Nesse sentido, para ele, amelhor estratégia para potencializaro campo seria dar apoio à agriculturafamiliar, à agregação de valor e à in-tegração nas cadeias produtivas doagronegócio, aliado a investimentossociais em educação, saúde e infra-estrutura (terras e hídrica).

Segundo Brancolina, o conceito carece de especificação e seu sentido é controverso

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Inicialmente, o termo foi usado para repaginar afalida agricultura no interior do Brasil. As mudançasocorridas foram tecnicistas. Como José Graziano daSilva e Mauro Eduardo Del Grossi colocam, asnovas atividades passaram a integrar cadeias pro-dutivas. Ou seja, resultam da agregação de serviçosrelativamente artesanais, porém de alta especiali-zação e conteúdo tecnológico, associados a pro-dutos animais e vegetais não tradicionalmentedestinados à alimentação e vestuário. No Nordeste,a produção de castanha-de-caju, um serviço arte-sanal, virou um produto de exportação. Antes, taisfunções não tinham o devido valor.

Foi um processo bastante acelerado. Com aabertura política, a partir dos anos 1980, empre-sas internacionais se instalaram no Brasil e outrassurgiram aqui com o intuito de modernizar a pro-dução agrícola. O cultivo de grãos, como soja emilho, foi incentivado para gerar divisas destinadasa pagar as dívidas acumuladas durante o regimemilitar. Hoje, o meio rural está esvaziado. Cin-quenta e seis por cento da nossa área agrícola pro-duz soja. E o Brasil, sabemos, exporta os grãos

para a pecuária dos países do Norte.Há acadêmicos que defendem a tese de que

não houve a tal revolução no campo, argumen-tando que o perfil estrutural dos tempos coloniaisainda sobrevive na realidade rural de hoje. Eles sereferem, talvez, à “Revolução Verde” que, de fato,não transformou as relações no meio rural. Aocontrário, até aumentou a desigualdade social. Issoporque concentrou as terras, expulsou as famílias efez com que muitos trabalhadores rurais traba-lhassem em condições desfavoráveis, em regime deescravidão, o que persiste até hoje em diversas ati-vidades, como a de produção de cana-de-açúcar.

O “Novo Rural” brasileiro chamou a atençãopara a existência do modelo da pluriatividade, umaforma de diversificar as fontes de renda e garantiruma maior sustentabilidade das famílias nocampo, sem que estas dependam mais de umaúnica fonte de subsistência. A diversificação, porsinal, também é proposta pela agroecologia.

Atualmente, a remuneração no campo está vin-culada aos programas assistenciais ou à aposenta-doria. O Governo Lula criou o Ministério deDe senvolvimento Agrário para atender a classe daagricultura familiar que, ao avançar bastante, asse-gurou o abastecimento da população brasileiracom alimentos básicos, não garantidos pelo agro-negócio. É necessário se criar mecanismos para evi-tar que grandes áreas sejam exploradas paraatender o mercado globalizado, o que prejudicariaa população brasileira. Realizar uma reforma agrá-ria efetiva e reestruturar o campo e a cidade sãoformas de garantir a autossuficiência.

JAIME FERRÉ MARTÍ

40 anos, é engenheiro agrônomo e consultor externoda Associação Científica de Estudos Agrários (Aceg). Foi coordenador técnico geral do projeto AgriculturaFamiliar, Agroecologia e Mercado, da Fundação Konrad Adenauer, e escreveuos livros Agricultura Familiar, Agroecologia e Mercadoe Política Pública para o Semiárido.

8 Sustentabilidade do Campo

Novo Rural?O que há

de diferenteno

Duas visões acerca do tema, que vem motivando

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Com as novas atividades rurais não agrícolas ea prática da pluriatividade pelas famílias que resi-dem no campo, a realidade rural brasileira mu -dou. No chamado “Novo Rural” brasileiro, aprodução agrícola representa apenas uma partedo trabalho e da renda das famílias rurais. É nestecontexto de transformações que nasce o fenô-meno da pluriatividade, caracterizado pela com-binação de múltiplas ocupações, agrícolas e nãoagrícolas, assumidas pelos membros de umamesma unidade familiar.

Uma série de fatores contribui para o surgi-mento de novas funções no espaço rural e a buscade outras fontes de rendas. Entre eles, a moder-nização da agricultura e dos sistemas agráriosconvencionais, a mudança de perfil no mercadode trabalho, a baixa remuneração agrícola, a in-teriorização das indústrias e o reconhecimento dasociedade para a importância da agricultura fa-miliar. Não é mais verdade que quem mora nomeio rural está ocupado somente com atividadesagropecuárias. A pluriatividade, agora, é uma rea-lidade irreversível.

Há um conjunto de ocupações profissionais li-gadas ao lazer, à prestação de serviços, ao benefi-ciamento de produtos, ao comércio e à or ga ni zaçãodos agricultores familiares. São atividades que divi-dem espaço com as tradicionais práticas rurais,como plantar e colher, criar e vender animais. Empesquisa feita com jovens do Programa Empreen-dedorismo do Jovem Rural (PEJR), constatou-seque 60% das unidades familiares dos pesquisados

LUCIANO PHILIPPI

41 anos, é engenheiro agrônomo e educador do Centro de Desenvolvimento do Jovem Rural (Cedejor).Coordenou o Fórum Municipal de Desenvolvimento Local em Passos Maia (SC), entre 1995 e 2000, e foi coordenador de um grupo de trabalhosobre o Meio Ambiente em Chapecó (SC),durante o biênio 2003/2004, que fazia parte das discussões em torno do novo Plano Diretor da cidade.

eram pluriativas. A sondagem foi realizada peloCentro de Desenvolvimento do Jovem Rural dasEncostas da Serra Geral (Cedejor/ESG-SC), umaorganização não governamental instalada no sul doBrasil que, em parceria com o Instituto SouzaCruz, implanta o PEJR nessa região. O programamescla demandas das juventudes rurais e temas li-gados ao conceito do “Novo Rural” brasileiro parafomentar e sustentar o desenvolvimento rural noambiente agrário.

Diversos estudos confirmam a importância dapluriatividade e da multifuncionalidade, que en-cara a agricultura como um estilo de desenvolvi-mento e não mero setor da economia. Emcon junto, elevam a renda das unidades familia-res, minimizando sua sazonalidade, inibem oêxodo rural, diversificam a produção e a econo-mia locais, geram trabalho e fortalecem a agri-cultura familiar. A multifuncionalidade agrícola,por exemplo, tem sido associada à segurança ali-mentar, que contempla desde a qualidade e ori-gem dos produtos à proteção do meio ambiente.

Os jovens do campo já perceberam que a va-lorização da agricultura familiar pode ser estraté-gica para o desenvolvimento dos territóriosrurais. Aproximadamente 100% dos alunos quepassaram pelo processo de formação do PEJR de-cidiram permanecer no local de origem. Cerca de70% da turma elaborou e executou na práticaseus projetos de vida em áreas agrícolas, não agrí-colas e pára-agrícolas. Sinal de que os novos tem-pos são bem-vindos.

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Uma das principais diferenças, nestaprimeira década do século XXI, é aemergência do chamado agricultorfamiliar, um ator que saiu da condi-ção de invisibilidade. Na verdade,aquilo que denominamos de agri-cultura familiar é um conjunto for-mado por populações rurais bastantediversificadas. Nesse universo in-cluem-se, entre outros segmentos,mais de 900 mil famílias de assenta-dos (aproximadamente três milhõesde pessoas), bem como comunida-des tradicionais de quilombolas, in-dígenas, extrativistas, pescadores,ribeirinhos e varzeteiros. A agricul-tura familiar brasileira é formadahoje por mais de 4,3 milhões de es-tabelecimentos. As políticas públicascomeçaram a valorizar essa diversi-dade. E já estão em curso ações afir-mativas específicas para atender essespúblicos distintos.

Ocenário rural brasileiro do século XXI não émais sinônimo de atraso e de lá emergiu um novopersonagem, o agricultor familiar. Quem afirma éReni Denardi, delegado federal do Ministério doDesenvolvimento Agrário (MDA) no Paraná, ementrevista exclusiva à Revista Sustentabilidade doCampo. “Mesmo com desigualdades sociais e re-gionais, o meio rural virou um espaço de múltiplasfinalidades”, destaca.

Nos últimos anos, censos e pesquisas produzidospor respeitados institutos já observaram o fenômenoque transformou o campo. Os dados levantados têmconfirmado a importância social e econômica da agri-cultura familiar. “Em função disso, o Governo Fede-ral está implementando uma série de políticas voltadaspara o campo, como universalizar o acesso das po-pulações rurais aos direitos básicos da cidadania emsuas diversas áreas”, conta. Nesta entrevista, Denardiaborda o “Novo Rural” brasileiro, sua repercussãosocioeconômica e a participação do Governo Fede-ral nesse contexto de transformações.

O que existe de

novidade nocenário ruralbrasileiro?

RENI DENARDI Delegado federal do Ministério do Desenvolvimento Agrário no Paraná

10 Sustentabilidade do Campo

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Page 11: Sustentabilidade no camp omed md8j3qdv

Foi outra mudança, consequênciadesse processo. Essa regra geral co-meça a mudar, embora ainda existamsignificativas desigualdades sociais eregionais. De fato, verifica-se que emmuitas microrregiões rurais as condi-ções de vida melhoraram. Há maiscidadania e novas oportunidades. Aagricultura e o campo brasileiro pas-sam a ser, cada vez mais, um espaçode múltiplas finalidades. Há segu-rança alimentar (produção de ali-mentos), mudança da matrizenergética (produção de energia dabiomassa) e atividades não agrícolas(como produção de água e serviçosambientais). Essas três agendas con-temporâneas estão associadas à agri-cultura familiar e ao conceito dodesenvolvimento rural que quere-mos. A síntese disso é a ideia, a ima-gem de um Brasil rural formado porgente feliz.

Temos de superar a separação entre orural e o urbano como aparece nasestatísticas do IBGE. O ideal é tra-balhar com a noção de um rural am-pliado. Com base em critériosadotados em países europeus, JoséEli da Veiga (economista e professorda USP) considera espaço rural oconjunto de todos os municípioscom menos de 50 mil habitantes edensidade populacional de até 80 ha-bitantes por quilômetro quadrado.

Estão sendo construídos novos ar-ranjos institucionais, muitos delesderivados de uma abordagem ouenfoque territorial do desenvolvi-mento. Fóruns, conselhos e cole-giados territoriais nasceram comoespaços de discussão, onde partici-pam os governos e também a so-ciedade civil. Isso favorece a análisedas potencialidades locais e a valo-rização dos recursos latentes.Assim, o processo de planejamentotorna-se mais democrático, de cimapara baixo e de baixo para cima, econfere mais qualidade para as po-líticas públicas. Com sentido seme-lhante, estão sendo criados con-sórcios públicos de municípios paraenfrentar problemas comuns naárea ambiental (destinação do lixo epreservação de mananciais) e de in-fraestrutura (como conservação deestradas), além de agências regio-nais de desenvolvimento.

Há um grande esforço governa-mental para universalizar o acessodas populações rurais aos direitosbásicos da cidadania, nas áreas dehabitação, saúde e saneamento,educação, segurança alimentar, tra-balho e previdência social. O go-verno vem di versificando tambémos instrumentos de políticas, comfoco em públicos, temas e objetivosespecíficos. O MDA e outros mi-nistérios e órgãos federais, porexemplo, têm lançado editais e cha-madas públicas de vários projetos.São programas voltados para mu-lheres, jovens, populações tradicio-nais, agroindústria, biocombustíveis,artesanato e turismo rural, além deprodutos da sociobiodiversidade,cooperativismo e comercialização.

Aquela ideia de

que o rural é sinônimo de atraso deixou de

existir?

Mudou então

o conceito de rural?

Quais são os novos arranjos

institucionais e as novas

metodologiasque

possibilitam o fortalecimento

da pluriatividade

no campo?

Como o Governo

Federal está se integrandoa essa novarealidade?

Instituto Souza Cruz 11

A renda média da agricultura familiar brasileiracresceu mais de 30%, quase três vezes mais que a rendamédia do conjunto da população do País”

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O fato é que um grande número de jovens não veem no campo suficientes oportunidades para O enfrentamento desse problema passa por mais investimentos rurais em educação, inclusão

Exatamente. Outro exemplo é oapoio que o Governo Federal vemdando a iniciativas de educação nocampo baseadas na Pedagogia daAlternância, que promovem a cida-dania e o empreendedorismo em di-versas áreas. Ou seja, além daprodução agrícola, o governo estávalorizando outros aspectos que in-teressam e são demandados por or-ganizações e movimentos sociais docampo. É importante destacar queessa sintonia entre governo e socie-dade só ocorre porque há bastantediálogo. Os canais de ne gociaçãoestão funcionando, o que é muitobom para a democracia.

Sim. Apesar dos reparos feitos sobreo recorte entre urbano e rural ado-tado pelo IBGE, essas mudanças jáaparecem nas pesquisas e censos rea-lizados pelo instituto, casos do Pro-grama Nacional de AlimentaçãoEscolar (Pnae), Censo Demográficoe Censo Agropecuário. A nova reali-dade rural também desponta em pes-quisas e análises realizadas pelo Ipea,por universidades e outros órgãospúblicos e privados. O Núcleo de Es-tudos Agrários e DesenvolvimentoRural (Nead), do MDA, tem patro-cinado diversos estudos que mostramesse processo de mudanças em cursono meio rural brasileiro.

Por exemplo, a grande importânciasocial e econômica da agricultura fa-miliar, que se tornou visível nas esta-tísticas derivadas do último CensoAgropecuário. O IBGE, com a cola-boração do MDA, passou a adotarconceitos e critérios definidos pelaLei 11.326/2006 (Lei da Agricul-tura Familiar). No final de 2010, o

Instituto Nacional de Colonização eReforma Agrária (Incra) divulgou osresultados preliminares da Pesquisasobre a Qualidade de Vida, Produçãoe Renda nos Assentamentos do Bra-sil. Essa inédita pesquisa abrangeutodas as 804.867 famílias assentadasentre 1985 e 2008, por meio de16.153 entrevistas em 1.164 assen-tamentos de todo o País. Um marcoinicial importante na caracterizaçãodas mudanças no rural brasileiro nasúltimas décadas foi o projeto temá-tico denominado Projeto Rurbano:Caracterização do Novo Rural Bra-sileiro, 1981/99, que envolveu du-rante anos dezenas de pesquisadoresde diversas universidades.

Primeiramente, um número cres-cente de ministérios e governos esta-duais adotou a abordagem territorialdo desenvolvimento. Essa forma deplanejamento, que valoriza as inicia-tivas e dinâmicas territoriais e abreespaço para os atores locais, permitemaior aproximação das políticas pú-blicas com as distintas realidades quedão forma à diversidade do campobrasileiro. Criada em 2003 peloMDA, a Secretaria de Desenvolvi-mento Territorial foi precursora deimportantes políticas públicas,como o Programa de De senvolvi-mento Sustentável dos TerritóriosRurais (Pronat), que alcançou2.500 municípios de 164 territó-rios, no ano passado. Inspirado naexperiência do Pronat, o GovernoFederal ousou muito mais em 2008ao criar o Programa Territórios daCidadania, que busca articularquase 200 ações de duas dezenas deministérios, em 120 territórios.

O que as pesquisas járevelaram?

Como as políticas

públicas de enfoque territorialatuam no

cenário desse“Novo Rural”

brasileiro?

É uma política que

procura englobartodas as

vertentes?

RENI DENARDI

12 Sustentabilidade do Campo

Dados doIBGE ou da

Pnad já contemplam o“Novo Rural”

brasileiro?

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realizar seus projetos de vida. digital, acesso a meios de produção e de vida”

Bem, nem tudo são flores e os avan-ços não ocorrem de forma homogê-nea em todo o País. No entanto,além de melhorias na articulação daspolíticas públicas federais e de algunsEstados, há avanços no fortaleci-mento da gestão social. Já é possívelobservar a formação de algumasredes sociais de cooperação, bemcomo avanços na dinamização eco-nômica em muitos territórios. Comoresultado concreto, verifica-se umasignificativa redução da pobreza: 5,5milhões de moradores do campo su-peraram a pobreza nos últimos oitoanos, o que corresponde a 20% dapopulação rural. Nesse período, arenda média da agricultura familiarbrasileira cresceu mais de 30%, quasetrês vezes mais que a renda média doconjunto da população do País.

Existem algumas limitações estrutu-rais, como o controle da terra e a mádistribuição de outros ativos, caso dainfraestrutura, financiamento e capa-citação técnica. Para romper essesobstáculos é preciso investir em açõesde reforma agrária, regularizaçãofundiária, crédito fundiário, demar-cação de reservas indígenas e reco-nhecimento de terras quilombolas.Outra dificuldade é a evasão da ju-ventude e o consequente envelheci-mento da população rural. Emboranão seja um fenômeno homogêneoem todo o País, os dados mostramque, em diversas microrregiões, háum esvaziamento de jovens, o quecompromete o futuro da agriculturafamiliar e o desenvolvimento ruralsustentável. Em muitas comunidadescamponesas, é grande a quantidadede estabelecimentos comandados porpessoas idosas e sem sucessor.

Estudos já realizados evidenciam quea migração de jovens rurais é umproblema complexo e vincula-se, emparte, à cultura da sucessão familiar.O fato é que um grande número dejovens não veem no campo suficien-tes oportunidades para realizar seusprojetos de vida. O enfrentamentodesse problema passa por mais inves-timentos rurais em educação, inclu-são digital, acesso a meios deprodução e de vida. Um terceirobloco de dificuldades diz respeito àscarências de empreendedorismo ecooperativismo, a despeito de algunsavanços verificados nos últimos anos.Por fim, faltam quadros qualificadosem grande parte dos pequenos mu-nicípios, o que também está ligado asua baixa atratividade e à evasão dejovens talentos.

Precisamos construir dinâmicas deplanejamento e preparar pessoas e or-ganizações para que tenham a capa-cidade de implantar ações adequadase fazê-las funcionar. Precisamos esti-mular a formação de alianças, articu-lações e redes que sejam capazes dedar continuidade aos bons projetos,mesmo quando ocorre a troca doprefeito e a mudança do governo.Enfim, acho que a palavra de ordemdeve ser melhorar o planejamento e agestão dos processos de desenvolvi-mento do imenso e diversificadocampo brasileiro.

Que avanços

concretosforam

obtidos?

São muitas as dificuldades e barreiras

enfrentadas?

Como esses gargalos

podem ser superados?

O êxodo rural é umproblemagrave...

Denardi: incentivo a iniciativas de educação no campo baseadas na Pedagogiada Alternância

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Um trabalho de fôlego, que continua atéos dias atuais. Coordenado pelo Institutode Economia da Unicamp, o ProjetoRurbano radiografou a nova realidaderural brasileira e constatou mudanças ex-pressivas. Uma delas, a de que o númerode trabalhadores rurais e famílias dedica-das exclusivamente às atividades agríco-las vem despencando em ritmo veloz,acompanhado por um crescimento nocontingente daqueles que se ocupam defunções não agrícolas. Outra se refere àderrubada de um velho e incômodomito: o mundo rural brasileiro não é maissinônimo de atraso e o êxodo do campodeixou de ser irreversível.

O projeto teve início em 1996. A pri-meira fase versou sobre as ocupações dosresidentes no meio rural. Na segunda, ofoco foram as famílias rurais, a pluriativi-dade, a composição das rendas agrícolas enão agrícolas, transferências governa-mentais e previdência rural. Por último,entre 2001 e 2003, mergulhou-se na ca-racterização das famílias rurais, aprofun-

dando análises das ocupações e composi-ções das rendas.

Criado e coordenado pelo professorJosé Graziano da Silva, o projeto ganhouprestígio no âmbito acadêmico e político-institucional no Brasil. Foram mobilizadosmais de 40 pesquisadores universitários(25 com título de doutor) de 11 Estadosbrasileiros e de 20 diferentes instituições.Como resultado, gerou cinco dissertaçõesde mestrado e quatro teses de doutorado.

Com a crescente urbanização do meiorural, que trouxe expressões e conceitosinovadores como pluriatividade e “NovoRural” brasileiro, é possível afirmar quecampo e cidade parecem cada vez maisambientes iguais, especialmente no quese refere ao mercado de trabalho. Os es-tudos, ainda contínuos, apontam que30% das 14 milhões de pessoas que for-mam a população rural do País, nãovivem mais de atividades agrícolas. Nosúltimos anos, elas ocupam funções para-lelas e típicas de centros urbanos, relacio-nadas a lazer, moradia e indústria.

No cenário rurbano brasileiro, tanto osprofissionais das metrópoles quanto os tra-balhadores do campo não podem se quei-xar. A fusão beneficiou ambos os lados. Omorador da cidade fareja negócios no meiorural, como a instalação de empresa deprestação de serviço. Esta, por sua vez, ga-nhará vida por meio da mão de obra local.

Diagnóstico do campoPesquisadores da Unicamp se debruçaram sobre a realidade rural brasileira e constataram que o seu perfil mudou,tornando-se cada vez mais dinâmico e atrativo

da população rural brasileira ocupa funções típicas de centros urbanos, relacionadas ao lazer, moradia e indústria.

30%

Cultivo de uvas e maçãs orgânicasgera subprodutos

como doces e sucos:nicho de mercadoconquistado com

cuidados que incluem a certificação

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Nas cidades gaúchas de Ipê e Antônio Prado, a pro-dução ecológica ou orgânica tem proporcionado qua-lidade de vida, saúde, satisfação e harmonia com o meioambiente. Cada vez mais consolidada, a chamadaagroecologia despontou na década de 1980 e acabourevolucionando o cenário local. Tudo começouquando um grupo de agricultores decidiu dar um bastana tendência de empobrecimento do produtor rural,no êxodo do campo e na contaminação dos recursosnaturais por agrotóxicos. Uma das primeiras iniciativasfoi aposentar técnicas ancestrais de cultivo e trabalho esubstituí-las por tecnologias modernas. O passo se-guinte foi a formação de cooperativas ecológicas queapostaram, com sucesso, no novo e diferenciado nichode mercado – a geração orgânica de itens naturais e deprodutos processados e industrializados, como sucos edoces. Todos devidamente certificados.

Foi dentro desse contexto favorável que surgiuem 1989 a Cooperativa Aecia, a partir das discussõesestimuladas pela Pastoral da Juventude Rural daIgreja Católica de Antônio Prado e pelo Centro deAgricultura Ecológica de Ipê. “Entre 1960 e 1980,a agricultura moderna propunha um aumento daprodutividade baseada no uso de fertilizantes quími-cos e pesticidas, padronização de variedades, meca-nização e monoculturas”, conta Gilmar Bellé,coordenador comercial da entidade. “Mas começa-mos a notar, a partir dos anos 1980, que a tal Revo-lução Verde gerava a degradação do solo, ameaçavacontaminar as pessoas e os animais e que estávamostransferindo renda para os fornecedores de semen-tes e fertilizantes. Tínhamos que dar um freio nisso.”

Hoje, a entidade distribui-se por quatro unida-des de produção industrial, devidamente registradas,e segue fielmente os padrões e normas da Secretariada Saúde, do Ministério da Agricultura e da certifi-

cadora de produtos orgânicos Ecocert. A Coopaeciaé um dos membros fundadores também da RedeEcovida de Agroecologia, ação que reúne organiza-ções de assessoria, consumidores e produtores dostrês Estados do Sul do País. O trabalho da coopera-tiva anda repercutindo e tem servido de referênciapara inúmeros grupos de agricultores familiares e téc-nicos seduzidos pela agricultura ecológica.

Quem ganha são os consumidores. Os alimentoscultivados ali são submetidos ao controle de pragase doenças de forma natural, dispensando o uso defertilizantes ou agrotóxicos. Esterco e outros mate-riais orgânicos são usados para alimentar a terra e aconvivência das plantas com os insetos é monitoradae controlada constantemente, para evitar infestaçõesindesejadas. Paralelamente, a cooperativa desenvol-veu um trabalho eficiente de industrialização e co-mercialização – os itens produzidos chegam aoconsumidor final sem a ação de intermediários quenão pertencem à comunidade. “Nossa região émuito próspera e as famílias de um modo geral têmuma boa renda”, assinala Bellé. “A produção ecoló-gica garante não só estabilidade de preços e rendacomo induz à harmonia com a natureza”, conclui.

Alternativa ecológicaProdutores rurais da serra gaúcha adotaram a cultura orgânica para melhorar a renda, frear o êxodo rural e eliminar o uso de agrotóxicos

Bellé: os produtos chegam ao consumidor final sem ação de intermediários

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Jovens identificam

oportunidades

para se manter

no campo

“Antes, achava que o municípiode Reserva seria pequeno para mim.Agora, não tenho dúvida de que omeu futuro está aqui”. As palavras deJeferson Martins de Almeida, 19anos, refletem um novo olhar sobrea região em que reside no Paraná.Anos atrás, ao pensar no futuro, eleconsiderava o campo limitado emoportunidades. Hoje, essa percepçãomudou: “Depois que ingressei noPrograma Empreendedorismo doJovem Rural (PEJR), percebi queminha propriedade tinha potenciaisinexplorados e poderia ser mais bemaproveitada”, conta o jovem, quemora com os avós em uma área agrí-cola de meio alqueire.

Ao longo da formação no PEJR,do Instituto Souza Cruz, ele procu-rou identificar uma oportunidade denegócio que contemplasse a sua rea-lidade. “Como moro numa comuni-dade em que a maioria da populaçãosobrevive do tomate, e meu terrenoagricultável é pequeno, pensei emdesenvolver uma atividade que aten-desse à demanda local e que necessi-tasse de pouco espaço para serimplantada”, relata.

Foi assim que ele começou a de-senhar seu projeto de empreendedo-rismo, exigido para a conclusão doprograma. “Durante o PEJR fiz umestudo e percebi que no municípiohavia mercado para a avicultura depostura”, explica. Com a ideia defi-nida, o jovem iniciou a compra dasaves e a construção do aviário para300 animais.

Atualmente, meses após ter con-cluído o programa, ele continua in-vestindo no projeto, que estáincrementando a renda da família.Com 120 aves, ele comercializa osovos diretamente em quatro estabe-lecimentos de Reserva. “Como a ati-vidade exige pouco tempo, ainda mepermite trabalhar como diarista naprodução de tomate”, completa.

Através da pluriatividade, umadas características do Novo Ruralbrasileiro, ele fortaleceu ainda maissuas raízes no campo: “Eu tinha von-tade de sair daqui, como todomundo que entrou no programa.Minha intenção era ir para a cidade,apesar de saber que não seria tãobom, mas eu não tinha oportuni-dade, não tinha opção. Hoje, sei queo campo é meu futuro”, reitera.

Um fututo, ao que tudo indica,promissor. Almeida planeja cursar fa-culdade de Administração e aumen-tar a produção, chegando às 300aves, conforme havia programado.

Almeida desenvolveu no PEJR projeto de avicultura de postura que pôs em prática,com sucesso, na propriedade em que vive com os avós

O PEJR foi implantado no território Cami-nhos do Tibagi (PR), do qual o município deReserva faz parte, através de uma parceriaentre o Instituto Souza Cruz, o Ministério doDesenvolvimento Agrário (MDA), Secretariade Agricultura e Abastecimento do Paraná(Seab), Instituto Paranaense de AssistênciaTécnica e Extensão Rural (Emater-PR), Fun-dação Terra e as prefeituras locais.

Fortesrazões

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JOVENS EM AÇÃO

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Quando decidiu entrar no PEJR,do Instituto Souza Cruz, AngélicaCavagnóli Geremias alimentava mui-tas dúvidas em relação ao seu futuroprofissional. As incertezas, emboranaturais para uma jovem de 17 anoscheia de inquietações e sonhos, ti-nham uma razão especial: a falta deoportunidades em sua região.

Angélica mora no município dePedras Grandes, no território catari-nense das Encostas da Serra Geral.Como muitos dos seus amigos, iden-tificava apenas um caminho possívelpara o sucesso profissional: deixar omeio rural em busca de estudo e em-prego na cidade.

Hoje, um ano após ter ingressadono PEJR, implementado naquele ter-ritório em parceria com o Centro deDesenvolvimento do Jovem Rural(Cedejor), ela vislumbra novos hori-

zontes sem precisar abrir mão dosseus sonhos. “Até então eu me viasem alternativa, porém, a última coisaque queria era deixar minha casa e otrabalho no campo. Entrar no pro-grama me proporcionou a possibili-dade de permanecer, de forma digna,transformando a propriedade emuma fonte de renda sustentável, comqualidade de vida”, comemora.

Antes de concluir a formação, em

novembro do ano passado, a jovemjá havia colocado em prática o pro-jeto que começou a amadurecer noinício do programa: Hortaliças Or-gânicas e Panificados. “Optei pelocultivo de alimentos sem agrotóxi-cos pensando na saúde da minha fa-mília e pelo fato de o nosso solo serde excelente qualidade para a ativi-dade. Incluí também os panificadosporque na região há bastante pro-cura, ainda que as ofertas sejam es-cassas. Claro, somos descendentes deitalianos e adoramos pães”, explica.

Um passo importante para o de-senvolvimento do projeto foi a suaparticipação no Programa de Aqui-sição de Alimentos (PAA), do Mi-nistério do Desenvolvimento Agrá- rio. Atualmente, Angélica fornecepara o PAA todo o aipim que pro-duz e comercializa as hortaliças (al-face, tomate e beterraba) para osrestaurantes da região. A produçãode panificados, em fase de captaçãode recursos, exige uma estruturamaior, mas a jovem empreendedorajá está articulando parcerias com as-sociações de agricultores para a im-plementação da agroindústria.

“Através do PAA consegui co-mercializar o aipim, gerando rendaextra para seguir adiante e viabilizara agroindústria. Nesse ponto, a ex-periência adquirida no PEJR estásendo fundamental porque conseguienvolver toda a família. Temos umaoutra visão de trabalho, com foco nagestão, organização e qualidade devida. Meus pais, que antes não acre-ditavam no potencial da proprie-dade, hoje sonham e executam oprojeto comigo”, emociona-se.

Angélica: experiência no PEJR está mudando a história da família, que passou novamente a acreditar no potencial da propriedade

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A IV Jornada Nacional do JovemRural já tem local e data definidos.O grande encontro da juventudebrasileira do campo será em Do-mingos Martins (ES), entre os dias23 e 26 de agosto próximo.

Em reunião realizada no final defevereiro passado, membros daRede Jovem Rural estiveram na co-munidade de Pedra Azul, naquelemunicípio, e firmaram uma parce-ria com a prefeitura local para arealização do evento.

“Para nós, será um prazer aco-lher tantos jovens de diferentes re-giões do Brasil. A cidade irá re-ceber a Jornada de braços abertose feliz e a Rede Jovem Rural já temnosso apoio”, declarou o prefeitoWanzete Krüger.

“A região das montanhas capi-xabas irá proporcionar aos partici-pantes uma rica experiência emcultura, agroturismo e agriculturafamiliar, dando insumos para que

esses jovens descubram um novocampo, próspero, criativo e inova-dor”, complementou padre Fir-mino Costa Martins, do Movimen-to de Educação Promocional doEspírito Santo (Mepes), organiza-

ção anfitriã da Jornada.Promovido pela Rede Jovem

Rural, e capitaneado pelo InstitutoSouza Cruz, o grande encontroreunirá cerca de 500 participantesde todo o Brasil.

Os jovens da primeira turma doPEJR baiano, implementado naRegião do Sisal em parceria com oMovimento de Organização Co-munitária (MOC), já estão se pre-parando para a reta final do pro-grama. Em fase de elaboração deprojetos, os 30 rapazes e moçasque compõem a turma estão pla-nejando seu futuro empreende-dor, por meio de variadas inicia-tivas que vão de projetos nãoagrícolas, como sorveterias e lan-houses, à implementação de hor-

tas e melhoramento genético nacriação de ovinos e caprinos. “Jácomecei a plantar os canteiros,cerquei a área e montei uma es-tufa. A comercialização das horta-liças está garantida através doPrograma de Aquisição de Ali-mentos (PAA)”, festeja Maria Au-riele Araújo, 19 anos, cujo projetode quintais orgânicos está bas-tante adiantado. “O foco agora éorganizar a redação, prepararminha defesa e colocar o quintalefetivamente em prática”, finaliza.

Preparação para a IV Jornada

Na Bahia, jovens do PEJR planejam futuro no campo

Para Wanzete Krüger, prefeito de Domingos Martins, será uma rica experiência para os participantes da Rede Jovem Rural

Maria Auriele participou do PAA e, agora, está projetando quintal orgânico

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Sou Tatiane Faustino da Silva, uma jovem agri-cultora, feminista e técnica em Agroecologia. Tenho21 anos e moro com meus pais e irmãos na comuni-dade ribeirinha de Umburanas, em Afogados da In-gazeira, município localizado no Sertão do Pajeú(PE). Nossa família é grande! Somos três irmãs (soua caçula das mulheres) e seis irmãos, e continuamoscrescendo. Atualmente, moram 14 pessoas na pro-priedade, que tem como base a agricultura familiar.

Grande parte da nossa alimentação vem da uni-dade familiar, onde produzimos milho, variedades defeijão, quiabo, banana, goiaba e laranja, entre outrositens. Criamos, também, ovinos, caprinos, bovinos eaves em pequenas quantidades.

Além de produzir para a subsistência, comercia-lizamos os produtos na feira livre do município há14 anos. Antes, vendíamos a atravessadores, que fi-cavam com a maior parte dos lucros. Agora, passa-mos a ser donos do nosso próprio negócio.

Comecei a enxergar a propriedade com olhar de

empreendedora depois que ingressei em 2008 nocurso de Técnico em Agroecologia, com ênfase naagricultura familiar, do Serviço de Tecnologia Alter-nativa (Serta). Atualmente, nossa propriedade está emprocesso de conversão para a agricultura orgânica.

Simultaneamente ao trabalho com minha famíliana propriedade, desenvolvo atividades voluntárias nogrupo de mulheres Beija-flor, onde compartilhamosnossas experiências em diversas áreas.

O negócio é aqui

Outra experiência marcante naminha vida foi participar do III Inter-câmbio da Juventude Rural, no mu-nicípio de Boa Vista do Ramos (AM),em 2010. Eles têm um modo dife-rente de praticar agricultura, poisplantam de um jeito bem natural,com grande diversidade.

A produção é totalmente orgâ-nica e, geralmente, também criamanimais, como galinhas e porcos.Vivem da agricultura familiar e asmulheres representam uma grandeforça nas atividades agrícolas e do-mésticas. Eu trouxe dessa vivência al-guns princípios importantes paraminha vida como, por exemplo, queo limite da terra muitas vezes signi-fica o respeito ao vizinho e não àscercas. E, ao ver como a Casa Fami-

Essas experiências me transfor-maram em uma sonhadora quenunca vai deixar o campo. Planejoalcançar as quatro seguranças(água, energia, nutrientes e alimen-tos) e espero que a minha famíliapossa abandonar totalmente a agri-cultura dos agrotóxicos. Desejotambém, futuramente, cursar facul-dade e contribuir para uma educa-ção no campo e para o campo.

liar Rural do município, ligada à As-sociação Regional das Casas Familia-res Rurais do Amazonas (Arcafar/AM), vem ajudando a transformar arealidade local, entendi uma frase doeducador André Mello: “Buscamosfazer pedagogia e não apenas alter-nância”. Voltei para casa com a cer-teza de que a Amazônia é a alma doplaneta. Somos abençoados por tê-la em nosso país.

Outros horizontes

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MEU RURAL

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“Vou transformar a nossa propriedade em uma referência de sustentabilidade.”Através do projeto desenvolvido no Programa Empreendedorismo do Jovem Rural, Luís Roberto Iaceki implantou manejos ecológicos na propriedade da família, em Prudentópolis (PR), contribuindo para a preservação dos recursos naturais.

Campo de preservação

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