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Supremo Tribunal Federal Ministro Evandro Lins Discursos proferidos no STF, na Sessão de 13 de novembro de 2003, em homenagem póstuma. Brasília 2005

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Page 1: Supremo Tribunal Federal - STF · 2010. 8. 18. · Seção de Distribuição de Edições ... Ministro EROS Roberto GRAU (30-6-2004) SUMÁRIO Discurso do Senhor Ministro Sepúlveda

Supremo Tribunal Federal

Ministro Evandro Lins

Discursos proferidos no STF, na Sessão de 13 de novembro de 2003,

em homenagem póstuma.

Brasília 2005

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Supremo Tribunal Federal

Ministro (EvandroLins

Discursos proferidos noS^TÍ7, na sessão de 13 de novemôro de 2003,

em Homenagem póstuma.

Brasília 2005

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Diretoria-Geral Miguel Augusto Fonseca de Campos

Secretaria de Documentação Altair Maria Damiani Costa

Coordenadoria de Divulgação de Jurisprudência Nayse Hillesheim

Seção de Padronização e Revisão Kelly Patrícia Varjão de Moraes

Seção de Distribuição de Edições Margarida Caetano de Miranda

Capa e Diagramação: Jorge Luis Villar Peres

Catalogação-na-Publicação (CIP) (Supremo Tribunal Federal - Biblioteca Ministro Victor Nunes Leal)

Ministro Evandro Lins: discursos em homenagem póstuma na sessão de 13 de novembro de 2003. -Brasília: Supremo Tribunal Federal, 2005. - 40 p.

1. Ministro do Supremo Tribunal Federal. I. Brasil Supremo Tribunal Federal (STF).

CDD-341.419104

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Ministro Evandro Lins

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SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Ministro NELSON Azevedo JOBIM (15-4-1997), Presidente

Ministra ELLEN GRACIE Northfleet (14-12-2000), Vice-Presidente

Ministro José Paulo SEPÚLVEDA PERTENCE (17-5-1989)

Ministro José CELSO DE MELLO Filho (17-8-1989)

Ministro CARLOS Mário da Silva VELLOSO (13-6-1990)

Ministro MARCO AURÉLIO Mendes de Farias Mello (13-6-1990)

Ministro GILMAR Ferreira MENDES (20-6-2002)

Ministro Antonio CEZAR PELUSO (25-6-2003)

Ministro CARLOS Augusto Ayres de Freitas BRITTO (25-6-2003)

Ministro JOAQUIM Benedito BARBOSA Gomes (25-6-2003)

Ministro EROS Roberto GRAU (30-6-2004)

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SUMÁRIO

Discurso do Senhor Ministro Sepúlveda Pertence 9

Discurso do Doutor Antonio Fernando Barros e Silva de Souza, Vice-Procurador-Geral da República 21

Discurso do Doutor Reginaldo Oscar de Castro, Representante do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil 27

Palavras do Senhor Ministro Maurício Corrêa, Presidente 37

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Discurso do Senhor Ministro SEPULVEDA PERTENCE

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O Senhor Ministro Sepúlveda Pertence — Senhor Presidente; eminentes Ministros, de ontem e de hoje, do Supremo Tribunal Federal; Senhor Ministro da Justiça; Senhores Ministros dos Tribunais Superiores; Senhores Magistrados; Senhor Procura-dor-Geral da República; Senhores Subprocuradores-Gerais da Re­pública e Membros do Ministério Público; Senhores Advogados; Fa­miliares de todas as gerações de Evandro Cavalcanti Lins e Silva; Senhoras e Senhores.

Perdoe-me o Tribunal se, de logo, lhe confesso a minha frustração: há momentos em que a honra e a responsabili­dade da missão, orgulhosamente recebida, acabam por inibir o missionário.

Reclama o cerimonial da Corte, na sessão dedicada a evocar a memória dos seus mortos, a solenidade de um discurso escrito com a pretensão de ser o perfil definitivo do homenageado.

Não sou um neófito na incumbência honrosa. Orgu­lho-me de meus quarenta e dois anos de vivência quase cotidiana do Supremo Tribunal — antigüidade só superada pelo meu amigo Ministro Octavio Gallotti. Advogado, Procurador-Geral da Repúbli­ca, Ministro, numerosas as orações proferidas na posse dos Presi­dentes da Casa, na aposentadoria, na morte, no centenário de seus Juizes, de muitos deles tendo sido amigo.

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Já de outra vez, quando Procurador-Geral da Re­pública, tive de iniciar com escusas o meu discurso, por não poder manter, na oração em memória de Victor Nunes Leal, o tom de impessoalidade que o momento reclamava.

Hoje, o envolvimento emocional com o homenage­ado novamente me levou, como daquela vez, a prolongar até qua­se a última hora as leituras a seu respeito: forma inconsciente, talvez, de adiar, o quanto possível, o discurso que sela a inexorável e definitiva tomada de consciência da sua morte.

E a isso se somaram nem sei que angústias pesso­ais, que me renderam — já amanhecia — à impossibilidade da escritura devida deste discurso.

Escusem-me, Senhores e Senhoras, o desatavio das notas apressadas que me guiarão na recordação emocionada do ídolo caído.

A biografia de Evandro Lins e Silva — contada por ele mesmo em primoroso livro-depoimento1 — é bem conhecida.

De estirpe pernambucana, meio por acaso, nasceu no Piauí, em 1912, ao tempo em que o pai era juiz municipal no Maranhão.

O curso secundário, iniciado em Recife, conclui-se no Colégio Pedro I I do Rio de Janeiro.

Comerciário e depois jornalista, pouco freqüentou o curso de Direito. Ele diria: "foi o pior possível". E confessaria, com uma ponta da sedutora vaidade que o marcava, nele, nunca teve uma só aula de Direito Penal. Faz-se bacharel, em 1932, graças a sucessivos decretos emergenciais do governo provisório resultante da Revolução de 1930.

Antes do bacharelado, porém — no atrevimento dos seus dezenove anos, diria —, inicia-se no cenáculo que lhe traria as maiores glórias: a tribuna do Júri do Rio de Janeiro. A tribuna do Júri faria de Evandro não só o mais famoso, mas, pelo

1 SILVA, Evandro Lins. O Salão dos Passos Perdidos — Depoimento ao CPDOC. Nova Fronteira - FGV, 1997.

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reconhecimento incontestado de sua grei , costumeiramente enciumada, "o criminalista do século".

De sua popularidade, guardei uma recordação in­delével. Adolescente, numa das primeiras idas ao Rio de Janeiro, assisti, no João Caetano, à minha primeira peça do teatro de re­vista. Nela, uma cena me chamou a atenção. A mulher descobre a prova de infidelidade do marido e grita, indignada: "Eu tenho que matar este homem". E, em seguida, mais calma, dirigindo-se à empregada: "Fulana, telefone logo para o Dr. Evandro Lins".

Mas, popularidade à parte, Evandro é um marco divisor da oratória forense, que, então, tinha no Júri a sua vitrina de glória.

"Entre os nomes dos advogados que o País guar­dou" — assinalou o grande Raymundo Faoro2 — "está Evandro Lins e Silva. Coube-lhe, seguindo a tradição dos seus admirados mes­tres e amigos, trazer ao mundo da oratória duas inovações que se incorporaram à cultura do advogado: a persuasão pela prova, antecipando Perelman, não mais pela emoção. Em segundo lugar, no seu estilo oratório ou escrito, baniu-se a grandiloqüência, ain­da defendida, em causa própria por Cícero (O Orador,), com o exemplo de Demóstenes, estilo que, na gravidade e majestade da expressão, com veemência, comovem e convertem os corações. Evandro, dentro da oratória artística, cujo segredo é ocultar a arte, possui, como exigiam os oradores áticos, a correção, a lucidez e a elegância. Nas suas notáveis defesas, lidas ou ouvidas, a exposição dos fatos se continha na brevidade, clareza e plausibilidade. A ascendência da prova, na sua exposição, não retirou o encanto (delectare,), nem a veemência, nem a indigna­ção que se legitimam no curso da exposição e na peroração".

Orador com extraordinária força de persuasão — testemunhou o seu discípulo amado, Antônio Evaristo de Moraes Filho —, "Evandro fala ao cérebro dos jurados, mas não esquece de lhes tocar o coração, isto, sem derramar-se em pieguices caricatas".

2 FAORO, Raymundo. "O advogado perfeito", em SHECAIRA, Sérgio Salomão (org.). Estudos Criminais em homenagem a Evandro Lins e Silva (Criminalista do Século). São Paulo: Editora Método, 2001. pp. 29, 3 1 .

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É de Evandro Lins, no Júri, outra recordação de adolescente — essa, decisiva para a eleição dos rumos de minha própria vida. Ter assistido à sua defesa, em Belo Horizonte, do médico Romualdo Neiva, no famoso caso "Marcha-à-Ré", poupou de mim a medicina e deu ao País mais um bacharel em Direito.

Ainda na sua juventude, outra tribuna disputaria à do Júri, a arte incomparável de Evandro Lins: a partir de 1936, com a criação do Tribunal de Segurança Nacional — que, "c/e tribunal, diria ele, apenas tinha o nome e era, na verdade, um ajuntamento sem pejo, uma afronta à consciência jurídica da nação"3 —, Evandro é absorvido pela defesa das vítimas da re­pressão política do autoritarismo varguista: são mais de mil defe­sas, até o fim do Estado Novo, invariavelmente gratuitas.

Esses anos de militância no Tribunal de Segurança Nacional desvelariam duas virtudes marcantes de Evandro Lins: de um lado, a coragem moral; de outro, a tolerância, que o fez defen­der com a mesma dedicação os perseguidos de esquerda, próxi­mos do seu ideal socialista, mas também os integralistas e até acusados de espionagem nazista.

A retomada do processo democrático, em 1945, já encontra Evandro Lins consagrado como o maior criminalista de sua geração; personagem central da advocacia nos processos mais retumbantes do tempo, não apenas no Rio de Janeiro mas em numerosos Estados do País.

Fundador, embora, da Esquerda Democrática da UDN, depois convertida em Partido Socialista Brasileiro, a paixão pela advocacia não o deixa ser seduzido pela militância partidária. Chegaria ao proscênio da vida pública, por acaso, quando, sem o conhecer antes, é convidado pelo então Vice-Presidente João Goulart, em 1961, para participar de sua comitiva na visita à Chi­na, que, lá, seria surpreendida pela notícia da renúncia de Jânio Quadros.

Veio daí a sua passagem vertiginosa, no tumultuado Governo João Goulart, pela Procuradoria-Geral da República, a che­fia da Casa Civil da Presidência da República e o Itamarati, até, em 1963, ser nomeado Ministro do Supremo Tribunal Federal, onde se 1 SILVA, Evandro Lins. "Medalha Rui Barbosa", em Arca e Guardados. Ed. Civ. Brasileira, pp. 29, 34.

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empossou em setembro daquele ano: o pr imeiro advogado criminalista a chegar à Corte — orgulhava-se de dizer.

A lembrança da chegada de Evandro Lins ao Su­premo Tribunal Federal, vindo diretamente da cúpula do Poder Exe­cutivo, fez-me voltar a refletir, nesses dias, sobre uma das mais desassisadas das propostas na discussão da reforma judiciária, a qual, com a pretensão ingênua de reforçar a independência do Tribunal, pretende vedar a nomeação de Ministro que, nos três anos anteriores, haja exercido mandato eletivo ou sido Ministro de Estado, Procurador-Geral da República ou Advogado-Geral da União: se vigente, essa pré-quarentena teria privado o Tribunal — para só falar dos mortos — não só de Evandro Lins e Silva mas também de muitos outros, a exemplo de Maximiliano e Orosimbo, de Hahnemann e Luiz Gallotti, de Gonçalves de Oliveira, Victor Nunes e Hermes Lima, de Oswaldo Trigueiro, Adaucto Cardoso e Leitão de Abreu.

Só aqui, nesta sala, conheci pessoalmente Evandro Lins em circunstâncias que ele descreve em seu antológico depoi­mento, e que a minha vaidade não permite deixar de trombetear.

"O primeiro secretário jurídico — recordou Evandro — foi Fábio Konder Comparato, que funcionou só uns seis ou oito meses, porque foi fazer concurso para a Faculdade de São Paulo. Depois, convidei Sepúlveda Pertence, que funcionou dois anos justos. Co­nheci-o quando era Procurador-Geral. Um dia, jovem advogado, ele fez uma sustentação magnífica na tribuna" (orgulho de pai espiritual coruja). "De vez em quando, havia umas interinidades na Procuradoria-Geral, ninguém queria ir para Brasília, e mandei tomar nota do nome dele para convidá-lo quando houvesse uma vaga. Sai da Procuradoria-Geral, ele fez concurso para promotor público (...) mas quando precisei dele no Supremo, requisitei-o, e ele veio"4.

Para mim, foram dois anos inesquecíveis — de 1965 a 1967: ainda não chegado aos tr inta, o biênio me propiciou, de um lado, viver por dentro o cotidiano do Tribunal, em período críti­co da história brasileira, no qual esta Casa soube afirmar-se com grandeza; e, de outro, uma inestimável experiência jurídica e, so-

4 SILVA, Evandro Lins. O Salão dos Passos Perdidos, cit. p. 385.

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bretudo, de aprendizado sobre uma das maiores figuras do seu tempo, de homem e de intelectual.

A advocacia — que Evandro sempre entendeu como exercício da cidadania — e os dois anos de governo haviam con­vertido o autodidata de sua juventude não só num humanista refinado mas também num jurista admirável, capaz de versar com segurança todos os ramos do Direito, na competência então ainda mais enciclopédica deste Tribunal.

É de Fábio Comparato o testemunho da lição que, embora sem os seus títulos, também pude viver.

Escreve Fábio5 :

"Em 1963, voltando de um doutoramento em Pa­ris, tive oportunidade de trabalhar como secretário jurídico de Evandro Lins e Silva no Supremo Tribunal. Eu ignorava, então, olimpicamente, a sábia advertência de Montaigne: "Il faut mieux avoir une tête bien faite qui une tête bien pleine". Com a cabeça cheia de teorias e orgulhoso de possuir os últimos refinamentos da ciência jurídica européia, não hesitei em apresentara Evandro, com a inabalável segurança da mocidade, minhas convicções so­bre os casos em que ele era relator. Forte do meu título de pós-graduação no Velho Mundo, imaginava que, excetuados os casos de direito penal, podia facilmente apontarão Ministro as soluções mais adequadas para o julgamento dos feitos a ele distribuídos".

"Em pouco tempo, a sabedoria do velho advoga­do, cuja cabeça sempre foi bem-formada e não repleta de leitu­ras maldigeridas, desenganou-me por completo. Aprendi que os litígios não se resolvem pela razão dedutiva; que as ações huma­nas não se julgam com "sprit de géométrie" de que falou Pascal, mas unicamente com "sprit de finèsse", isto é, o delicado sopesamento de valores e contravalores com base na experiên­cia da vida".

"Sua agilidade mental" — anotou Hermes Lima6 — "completa o conjunto das virtudes intelectuais que o singularizam 5 COMPARATO, Fábio Konder. "Dou to r em humanidade" , em SHECAIRA, Estudos, cit. pp. 25, 26. 6 LIMA, Hermes. Travessia (memórias). Rio de Janeiro: J. Olympio, 1974. p. 289.

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na exposição e no debate e sua propensão a humanizar a aplica­ção da lei evidencia o amadurecimento de uma vivência iluminada pelos problemas do homem no relacionamento social".

Vítima, em 1969, com os grandes Victor Nunes Leal e Hermes Lima, da aposentadoria com a qual a ditadura do AI 5 violentou esta Casa, também Evandro Lins e Silva deixou no Tribu­nal a memória de um grande Juiz.

Seguem-se 22 anos de vida, intensamente vivida, em que mais claramente se evidencia a perfeita simbiose, na per­sonalidade de Evandro Lins, do advogado primoroso com o cidadão militante, cujo ápice é a sua atuação no processo de impeachment do ex-Presidente da República, no qual, frisava, não se sentiu na acusação, de que não gostava, mas na defesa da dignidade naci­onal.

O avanço da idade jamais o enfraqueceu. À medida que o ritmo da faina profissional da advocacia diminuía, mais tem­po pode Evandro dedicar à pregação de suas convicções: do soci­alismo democrático ao combate indignado às perversões do neo-liberalismo e à cruzada contra o abuso da pena de prisão. É dessa última missão um de seus trabalhos de maior densidade teórica: o ensaio "De Beccaria a Fillippo Gramática", que toma por epígrafe a célebre observação de Ihering de que "história da pena é a histó­ria de sua constante abolição".

Nestes dias em que os corifeus do terrorismo penal andam assanhados, é bom reavivar o libelo arrasador do Mestre7:

"A prisão — escreveu Evandro — "é uma escola de récidiva, uma forma de destruir a personalidade do preso, de deformá-la e de corrompê-la. Além de tudo ela é um instrumento muito caro. O custo de um preso, segundo pesquisa por nós iniciada no Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, varia muito, segundo o local. As informações obtidas, sujeitas a confirmação, oscilavam entre três e sete salários mínimos (nas Penitenciárias). E o preço da construção e da aparelhagem para o funcionamento de um presídio? Veja-se que é como construir um hotel ou uma escola, ou talvez mais, porque a prisão necessita de pessoal especializado, de enfermaria, de cozinha, de escola, etc.

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De tudo isso resulta, nunca é demais repetir, que a prisão, como método penal, está condenada pela ciência e pela experiência de todos os povos. Magarinos Torres já escrevia, em 1934, há mais de meio século, no prefácio ao livro Curso de Críti­ca Penal, de Jorge Severiano Ribeiro: "Ciência não será tampouco esse entretenimento literário de espíritos pretensiosos, que vi­vem a embair a ingenuidade dos moços nas escolas com a predica das sanções rigorosas e sistemáticas, fingindo ignorar a maldade monstruosa que caracteriza, na sua objetividade, o Direito Penal. Prisão é somente uma necessidade que nenhuma ciência poderá justificar. Deve, pois, ser módica e só aplicável pelos efeitos, sempre transitórios, que possam ter sobre a sociedade... em falta de remédio mais inteligente".

"Prisão" — prosseguia Evandro — "é de fato uma monstruosa opção. O cativeiro das cadeias perpetua-se ante a insensibilidade da maioria como uma forma ancestral de castigo. Para recuperar, para ressocialízar, como sonharam os nossos antepassados? Positivamente, jamais se viu alguém sair de um cárcere melhor do que quando entrou. E o estigma da prisão? Quem dá trabalho ao indivíduo que cumpriu pena por crime consi­derado grave? Os egressos do cárcere estão sujeitos a uma ou­tra terrível condenação: o desemprego. Pior que tudo, são atira­dos a uma obrigatória marginalização. Legalmente, dentro dos padrões convencionais, não podem viver ou sobreviver. A socie­dade que os enclausurou sob o pretexto hipócrita de reinseri-los depois em seu seio, repudia-os, repele-os, rejeita-os. Deixa, aí sim, de haver alternativa, o ex-condenado só tem uma solução: incorporar-se ao crime organizado. Não é demais martelar: a cadeia fabrica delinqüentes, cuja quantidade cresce na medida e na proporção em que for maior o número de presos ou condena­dos.

Os fariseus de todos os matizes, não podendo dei­xar de reconhecer a evidência dos malefícios da prisão, bradam que a pena tem caráter intimidativo e serve como retribuição do mal causado pelo infrator da norma penal. O fator intimidativo pode ser exercido por outras formas de punição, que não a ca-

1 SILVA, Evandro Lins. "De Beccaria a Fillipo Gramática", em ARAÚJO JR., João Marcello de (org.) . Ciência e Política Criminal em honra de Heleno Fragoso. Forense, 1995. pp. 5, 27.

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deia, e, quanto à retribuição, seria um retorno à pena castigo, anticientífica, verdadeiro talião patrocinado pelo Estado.

De todas as considerações feitas, chegamos à iniludível conclusão de que o encarceramento do homem não o melhora, nem o aperfeiçoa, nem corrige a falha cometida, nem o limpa de culpa para um retorno à vida da sociedade que ele perturbou com a sua conduta delituosa".

Para a militância de sua pregação cidadã jamais lhe faltaram auditórios, freqüentemente reunidos para homenageá-lo e fazer-lhe os "mimos", a que aludia com carinho.

Poucos brasileiros, fora do Poder, terão sido tão homenageados como Evandro Lins e Silva na última década de sua vida.

No Júri do Rio de Janeiro, reuniram-se juizes, o Mi­nistério Público e advogados para comemorar o seu jubi leu, os seus 50 anos da estréia do Tribunal do Júri, aos 19 anos de idade.

A OAB reviveu a Medalha Rui Barbosa para conferi-la a Evandro; deu-lhe o Instituto dos Advogados o prêmio "Teixeira de Freitas"; seu nome é o da sala do Júri Federal do Rio de Janei­ro; a Ajufe fez de Evandro Lins e Silva o seu primeiro sócio honorá­rio; a Associação Brasileira de Letras o recebeu com votação consagradora. Poucos brasileiros tanto mereceram ter em vida reconhecimento tão caloroso e sincero de seus concidadãos.

Ao cabo de décadas de amizade, permit iu-me o destino uma despedida inesquecível de Evandro Lins, no último dia da sua vida consciente, em 12 de dezembro de 2002.

Evandro fora eleito pela Câmara dos Deputados para compor o Conselho da República. E o Presidente da República Fernando Henrique Cardoso, na mesma data, lhe curou uma velha mágoa, uma velha indignação: devolveu-lhe as comendas que não pediu — dizia ele —, mas que lhe foram assaltadas pela ditadura. E ofereceu-lhe um almoço. Evandro me conferiu, então, uma distin­ção única: fui o único indicado ao cerimonial da Presidência para participar do almoço, além dos seus filhos e do seu neto e compa­nheiro de advocacia. Estava radiante de alegria. Ao fim do almoço, esqueceu a bengala; dei-lhe o braço, brincando, recordando-lhe

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de o ter visto andando sem bengala a fazer a caminhada diária no calçadão da Praia de Copacabana.

E assim, entre brincadeiras, levei-o ao carro.

Na manhã seguinte, vem-me do Rio de Janeiro a notícia dolorosa: a queda, na saída do aeroporto, e, cinco dias depois, a morte esperada.

Fica a saudade, fica a lição de um homem que, em noventa anos de vida, ensinou-nos a capacidade de indignar-se, sem ódio; a capacidade de ser tolerante, sem transigências.

Orgulha-se o Supremo Tribunal Federal de ter a passagem de Evandro Lins e Silva pela Casa como página luminosa de sua história.

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Discurso do Doutor ANTONIO FERNANDO BARROS E SILVA DE SOUZA,

Vice-Procurador-Geral da República

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O Doutor Antonio Fernando Barros e Silva de Souza (Vice-Procurador-Geral da República) — Excelentíssimo Senhor Ministro Presidente, Senhores Ministros desta Corte, Se­nhor Ministro da Justiça e demais Autoridades presentes, Familia­res do Homenageado, Senhoras e Senhores.

O Advogado, o Jornalista, o Professor, o Procura-dor-Geral da República, o Ministro de Estado, Evandro Cavalcanti Lins e Silva, recebe nessa oportunidade homenagem póstuma pelo exercício da magistratura como Ministro desta Corte Suprema. Não se trata de mera formalidade, mas de tributo justo.

O curriculum do homenageado revela o cidadão hábil, forte e corajoso, exemplar em todas as atividades que em­preendeu.

Criminalista notável, sempre arrolado entre os me­lhores. Como Procurador-Geral da República no período de junho de 1961 a janeiro de 1963, quando se confiava também ao Minis­tério Público Federal a advocacia pública federal, defendeu com argúcia e denodo os interesses da União.

Suas atuações na Chefia do Gabinete Civil da Pre­sidência da República e no Ministério das Relações Exteriores re­velaram-no competente administrador público no comando da má­quina burocrática estatal e hábil condutor da política externa ori­entada nos rumos dos objetivos sociais, o que eqüivale dizer, de

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identificação com a sua política interna, concebida no ideal de justiça e progresso social e econômico do povo brasileiro, de acordo com as suas próprias palavras (trecho de discurso proferi­do em 1991, ao receber a Medalha Rui Barbosa).

Sua passagem por essa Corte tornou pública a sua versatilidade intelectual, documentada na clareza e na profundi­dade dos seus pronunciamentos jurisdicionais sobre os mais varia­dos temas de Direito, sempre na perspectiva liberal e humana. O ato de força que o afastou abruptamente desta Corte reduziu o seu tempo na magistratura, mas não impediu a permanência do brilho da sua atuação que continua estampado nos mais de cinco mil votos que proferiu.

A sua conduta independente e corajosa bem como a sua oratória vigorosa continuaram, até o momento final, a servi­ço da democracia e dos direitos humanos. A sua atuação na defe­sa da probidade e da ética na condução dos negócios públicos, especialmente num dos momentos mais marcantes da recente his­tória política brasileira, que resultou no impeachment do Presiden­te da República, bem revela a sua habilidade como advogado e a sua conduta de cidadão exemplar.

Na homenagem que a Segunda Turma deste Supre­mo Tribunal prestou à memória do Ministro Evandro Lins e Silva, na sessão de 17 de dezembro de 2002, o Ministro Celso de Mello, com a clareza e o estilo refinado que lhe são peculiares, assim resumiu a importância do homenageado para o Brasil: "O saudoso e emi­nente Juiz do Supremo Tribunal Federal, Ministro Evandro Lins e Silva, ao consagrar a sua vida contra todas as formas de opres­são e de violência, transformou-a em paradigma dos que sonham com o fascínio da liberdade. Mais do que isso, o eminente Ministro Evandro Lins e Silva soube converter o itinerário luminoso das liberdades no mais precioso caminho que devem trilhar as pesso­as justas e comprometidas com os valores essenciais que dão significado às nossas vidas e sentido às sociedades fundadas em bases democráticas.

A luta incessante pela prevalência dos direitos da pessoa humana, o combate a toda forma de intolerância, opres­são, arbítrio e abuso da liberdadde: eis, aí, o legado imorredouro — gravado, para sempre, em nossos corações — que o Ministro

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Evandro Lins e Silva deixa ao nosso País e às presentes e futuras gerações".

Que estas breves palavras f iquem consignadas como tributo do Ministério Público ao Homenageado, aos seus Fa­miliares e a essa Corte.

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Discurso do Doutor REGINALDO OSCAR DE CASTRO,

Representante do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil

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O Doutor Reginaldo Oscar de Castro (Repre­sentante do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil) — Excelentíssimo Senhor Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Maurício Corrêa; Excelentíssimos Senhores Minis­tros, em atividade e aposentados; Excelentíssimo Senhor Procura-dor-Geral da República, Antonio Fernando Barros e Silva de Souza. Senhoras e Senhores.

A honrosa designação do eminente Presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, que a mim atribuiu a desvanecedora incumbência de representar os advoga­dos brasileiros nesta Sessão Solene, destinada a homenagear a grandiosa trajetória do Ministro Evandro Lins e Silva, é, simultanea­mente, das mais gratas e das mais complexas dentre as que tenho tido a oportunidade de me desincumbir.

É grata por se tratar de uma figura humana ines­quecível e querida, um homem de bem — e do Bem —, com quem tive o privilégio de compartilhar momentos de grande prazer inte­lectual e de precioso aprendizado. Embora tenha tido convivência mais intensa com o Ministro Evandro, como carinhosamente o cha­mávamos, apenas na etapa final de sua vida, considero-o um que­rido e inesquecível amigo, que é para mim também referência pro­fissional e moral definitiva.

Além de magistral advogado e homem dotado de cultura superior, exímio contador de casos, tinha prodigiosa me-

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rmória e talento fabulador fascinante — dom que a vida reserva apenas aos que por ela passam simultaneamente como observa­dores argutos e agentes at ivos, exercendo ação fecunda e transformadora em torno de si.

E é exatamente em função de tantos dons e talen­tos, postos generosamente a serviço de seu tempo e de sua gen­te, que a tarefa de analisar, compreender e evocar a personalida­de do Ministro Evandro Lins e Silva torna-se complexa, quase so­bre-humana.

Trata-se de um personagem plural, denso, que exer­ceu funções de grande relevância pública, deixando em cada uma dessas etapas a marca de sua formidável inteligência e de seu singulardinamismo.

Foi jornalista, advogado, político, Procurador-Geral da República, Ministro-Chefe da Casa Civil, Chanceler, Ministro do Supremo Tribunal Federal, fundador do Partido Socialista Brasilei­ro, membro da Academia Brasileira de Letras e, por f im, do Conse­lho da República, mas, sobretudo, defensor obsessivo dos direitos humanos e do ideal libertário, que marcou toda a sua vida, levan­do-o a enfrentar sem assombro duas ditaduras — a do Estado Novo e a do Regime Militar pós-1964.

Há, porém, um fio condutor, uma espécie de traço de união, que acompanha toda a trajetória de Evandro, em todas as funções que desempenhou — e é exatamente esse ideal libertário que mencionei.

Onde quer que atuasse, inclusive quando aqui es­teve, nesta Colenda Corte, como Magistrado, foi sempre o paladi­no da liberdade. Se me permitem um paradoxo, direi que ele foi um servo da liberdade, a tal ponto subjugou todos os interesses e valores de sua vida a essa causa, que não será exagero afirmar que o Ministro Evandro Lins e Silva, um abolicionista, segundo ele próprio se proclamava, tinha obsessão pela liberdade.

Foi por defendê-la incondicionalmente que acabou sendo cassado pelo Ato Institucional n. 5 e afastado desta Corte, onde proferiu votos tidos como provocadores pela miopia dos áulicos do regime de arbítrio que se implantava.

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Coube-lhe, por exemplo, relatar o pedido de habeas corpus do então Governador Miguel Arraes, então preso preventi­vamente por mais de um ano na Ilha de Fernando de Noronha. A prisão era arbitrária, não havia processo, nem poderia haver prisão preventiva tão longa. Mas o ambiente era de medo e bem poucos ousavam desafiara nova ordem.

Pois o Ministro Evandro concedeu o habeas corpus, acompanhado pela unanimidade da Corte, suscitando reações de inconformismo nos setores mais duros do regime, que aventaram a hipótese de não cumprir a ordem judicial. Mas, apesar de todos os pesares, prevaleceu o bom senso e Miguel Arraes foi libertado. O Marechal Castello Branco não quis desafiar o Supremo Tribunal.

Ele já havia votado pela concessão do habeas corpus reivindicado por outro governador deposto pelo regime — Mauro Borges, de Goiás —, além de diversos outros, envolvendo gente igualmente perseguida por idéias políticas.

Mas a audácia libertária de nosso homenageado seria mais adiante cobrada pela insana linha dura que sucederia Castello, em ato que consistiu em violência jamais praticada con­tra o Supremo Tribunal Federal, com a destituição de três de seus mais ilustres membros: os Ministros Victor Nunes Leal, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva.

A ascensão de Costa e Silva tornaria inevitável uma retaliação mais efetiva a todos os atingidos. Evandro Lins e Silva, isoladamente, representava tudo o que a nova ordem auto­ritária queria expurgar: o ideal libertário, o desassombro pessoal, o poder civil.

Além disso, sua identificação com a ordem anterior, na qual havia integrado o primeiro escalão ministerial, agravava a situação.

Cassado, voltou à militância forense, seu habitat natural. O Ministro Evandro foi juiz e político sem jamais perder a chama do jovem advogado, que conservou até sua partida aos 90 anos de idade.

Retornou ao convívio de seus colegas na Ordem dos Advogados do Brasil e, por inúmeros mandatos de Conselheiro

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Federal pelo Piauí, iluminou os caminhos da entidade em todas as lutas pelo Estado de Direito por ela empreendidas. Agraciado com a Medalha Rui Barbosa, continuou integrando o Conselho Federal. Foi o redator de diversas cartas que sintetizavam as conclusões das Conferências da Ordem dos Advogados do Brasil, inclusive, redator de fato, da última, realizada em Salvador.

Calamandrei, ao tratar das diferenças entre juizes e advogados, assevera que "o advogado é a fervente e generosa juventude do juiz; o juiz é a velhice repousada e ascética do advogado". Ao Ministro Evandro tal conceito não se aplica. Retornou à sua origem com as mesmas virtudes de combatividade e ímpeto de sempre e que justificaram a admiração que granjeara em todo o País.

Não se pode olvidar que deixou a Suprema Magis­tratura quando era quase um sexagenário. Poderia ter-se acomo­dado a uma cátedra ou a uma aposentadoria digna. Mas, como dito, insistiu em retornar à arena forense, à tribuna. Voltou a atuar como criminalista, um dos maiores — senão o maior — que este País já teve. E já aos oitenta anos — quando dele se esperava no máximo que cultuasse as lembranças de sua profícua carreira —, assume nada menos que a causa do impeachment do Presidente da República.

Deixa de lado o conforto e a estabilidade que a posição de oráculo da advocacia brasileira lhe garantia para acei­tar o convite de Barbosa Lima Sobrinho e Marcelo Lavenère Ma­chado de conduzir o processo de impeachment contra o Presi­dente da República.

Ele, que se notabilizara como defensor, assume o papel de acusador, circunstância que interpretou de outro modo, afirmando que não acusava ninguém, apenas defendia seu País, atingido duramente em seus valores éticos e morais por um gover­no indigno deste nome.

E o que se viu foi a velha chama do advogado, forjada em causas memoráveis no Tribunal do Júri — no qual con­quistou a marca de mais de meio século de atividades —, viva como nunca, a exercer seu talento arrebatador da tribuna do Senado. Ali estava a eloqüência a serviço do bem comum, a mes-

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ma que corajosamente afrontou o arbítrio ao tempo do famigerado Tribunal de Segurança Nacional, no Estado Novo.

A propósito, em seu depoimento ao Centro de Pes­quisas e Documentação da Fundação Getúlio Vargas, que resultou no primoroso livro O Salão dos Passos Perdidos, o Ministro Evandro revela que as defesas que fazia de presos políticos junto ao Tribu­nal de Segurança Nacional eram gratuitas.

Não considerava o crime político como questão de natureza penal — e sim como matéria de História. Defender acusa­dos de crimes políticos, ainda quando não tivessem razão, era compromisso com a História — e não com a profissão! E ele o cumpriu com coragem, talento e determinação.

Após a deposição de Getúlio Vargas em 1945 e a extinção do Tribunal de Segurança Nacional, Evandro dedicou-se exclusivamente a seu escritório de advocacia, que manteria até começar a assumir cargos políticos no Governo João Goulart.

Dono de uma biografia profissional riquíssima, o Mi­nistro Evandro Lins e Silva vivia de olhos postos no futuro. Quando lhe perguntavam qual a causa mais relevante que teria defendido, respondia invariavelmente: "A próxima".

Não lhe faltavam — muito pelo contrário — causas a evocar, tantas e tão expressivas que bastaria pinçar uma, alea­toriamente, para marcar definitivamente sua carreira, como tam­bém de qualquer advogado.

Mas optava sempre pela "próxima" na expectativa de continuar a exercer o bom combate, na certeza de que estava predestinado — e de fato esteve — a uma presença longeva na carreira.

Quem se debruce sobre as inúmeras causas defen­didas por Evandro Lins e Silva, há de estar diante de rica fonte de aprendizado. Ali, se encontram reunidas as grandes virtudes do advogado: sensibilidade e compreensão para as fragilidades hu­manas; disposição de estudo e investigação; conhecimento do ordenamento jurídico, da doutrina e da jurisprudência; sólida cul­tura geral e humanista, respaldada na leitura dos clássicos univer-

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sais; argúcia, paciência, sobriedade, elegância e, sobretudo, criatividade.

Esses atributos são visíveis na defesa por ele pa­trocinada no rumoroso "Caso do Marcha-à-Ré", como ficou conhe­cido em Belo Horizonte. Constituído pelo réu, já condenado, para o 2 o Júri, realizado com a presença de qualificada platéia, da qual participaram o Ministro Sepúlveda Pertence, bem como nossos colegas José Guilherme Vilela e José Gerardo Grossi, o Ministro Evandro Lins e Silva a todos surpreendeu com a demonstração de que a coagulação sangüínea ocorre no máximo em 11 minutos, circunstância suficiente à destruição do iter criminis contido na denúncia que exigia, para sua admissibilidade, tempo de coagula­ção muito superior, sem o qual o homicídio não poderia ter sido cometido pelo acusado. Derrotou a acusação, a imprensa e a pró­pria opinião pública, com a absolvição do réu que havia sido injus­tamente denunciado.

Nas ações político-partidárias, seguiu sempre o con­selho de São Paulo de buscar o bom combate. Fundou, em 1947, o Partido Socialista Brasileiro, cuja doutrina pregava a justiça social e o f im das desigualdades. Em agosto de 1955, foi um dos princi­pais articuladores da Liga de Defesa da Legalidade, movimento que defendeu a realização das eleições presidenciais daquele ano, ameaçadas pela pregação golpista de setores reacionários que viriam a triunfar nove anos depois, em 1964.

Juscelino venceria as eleições e teria sua posse ameaçada. Evandro esteve ao lado das forças que se empenha­ram por garantir a posse e a governabilidade. Quando da renúncia de Jânio, acompanhava João Goulart numa visita à China. De lá, voltou Procurador-Geral da República do novo governo; depois seria nomeado Chefe da Casa Civil, Ministro das Relações Exterio­res e, por f im, Ministro do Supremo Tribunal Federal, de onde foi brutalmente afastado pelo Ato Institucional n. 5, em 1969.

No Ministério das Relações Exteriores, adotou linha doutrinária pragmática, de defesa dos objetivos nacionais, -que resumia com estas palavras: "Nem subordinação, nem isolamento, mas sim independência e cooperação no interesse do País e da paz entre os povos".

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Nada mais atual e lúcido, num mundo tristemente marcado pela ganância da globalização neoliberal.

O século XX foi palco de atuação de grandes ad­vogados, que se tornaram lendários não apenas no âmbito de nossa classe mas para toda a sociedade brasileira. Fazem parte da História do Brasil.

O Ministro Evandro Lins e Silva está ao lado dos maiores advogados de nossa história, mesmo de uma figura gigan­tesca e seminal do nosso Direito, como Rui Barbosa. Rui é o advo­gado e jurisconsulte que adentra pelo jornalismo e pela política fazendo a travessia do século XIX para o século XX e a transição entre o regime monárquico e o republicano.

Evandro, que também fez incursões pela política e pela magistratura, é, como já disse, o advogado em tempo inte­gral. Como Rui, era movido pela obsessão libertária. Personifica-a ao longo de sua extensa biografia. E torna-se referência inevitável a quem queira conhecer o panorama jurídico brasileiro dos últimos sessenta anos.

Filho de juiz, nasceu em Parnaíba, interior do Piauí, em 1912. Estudou em escolas públicas, entre seu estado natal, Pernambuco (estado de origem de sua família) e Rio de Janeiro, onde fez os estudos secundário e superior, radicou-se, criou famí­lia e exerceu toda a sua carreira.

O êxito obtido em sua longa jornada está dentro daquilo que sustentou Maurice Garçon: "A celebridade de boa marca só se conquista pelo trabalho, ciência e talento." A frase resume a vida de Evandro Lins e Silva, que seguia fielmente a máxima de Thomas Carlyle, segundo a qual "De nada serve ao homem lamen­tar-se do tempo em que vive. O único bem que pode fazer é empenhar-se em melhorá-lo".

O Ministro Evandro Lins e Silva, sem dúvida, com sua existência luminosa, sua crença no ser humano, sua crença religiosa na liberdade, melhorou o Brasil. E não há homenagem maior à sua memória que o compromisso de trabalhar para que o País continue melhorando, sempre sob a chama da liberdade.

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Para concluir, faço minhas as palavras de Fábio Konder Comparato, segundo quem "a extraordinária harmonia en­tre a atividade profissional e a vida pública de Evandro Lins e Silva está na fidelidade a uma mesma linha de conduta ético-social". Sua vida é uma lição de cidadania e um exemplo para todos nós — e certamente há de iluminar e fecundar as gerações futuras. Que assim seja.

Muito obrigado.

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Palavras do Senhor Ministro MAURÍCIO CORRÊA, Presidente

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O Senhor Ministro Maurício Corrêa (Presidente) — Agradeço a presença da Excelentíssima Senhora Ana Teresa Konder Lins e Silva, filha do Ministro Evandro Lins e Silva, e dos demais Familia­res; dos Excelentíssimos Senhores Ministros do Supremo Tribunal Fede­ral, de hoje e de ontem; das Excelentíssimas Senhoras esposas e familiares de Ministros do Supremo Tribunal Federal que prestigiam esta solenidade; Excelentíssimos Senhores: Doutor Antonio Fernando Barros e Silva de Souza, Vice-Procurador-Geral da Re­pública; Doutor Reginaldo Oscar de Castro, Representante do Pre­sidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; Ministro Carlos Alberto Marques Soares, Vice-Presidente do Supe­rior Tribunal Militar, Representante do Presidente daquela Corte; Ministro Francisco Fausto Paula de Medeiros, Presidente do Tribu­nal Superior do Trabalho; Ministro Márcio Thomaz Bastos, Ministro de Estado da Justiça; Ministro Álvaro Augusto Ribeiro Costa, Ad-vogado-Geral da União; Deputados e Senadores; Membros de Cor­tes Superiores e do Tribunal de Contas da União; Membros de Tribunais sediados no Distrito Federal; Desembargador Raul Celso Lins e Silva, sobrinho do Homenageado e Representante do Presi­dente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro; Presidentes e Desembargadores dos Tribunais de Justiça dos Estados; Doutor Roberto Rosas, representando o Instituto dos Advogados Brasilei­ros; Doutor Amaury José de Aquino Carvalho, Presidente do Inst i-

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tuto dos Advogados do Distrito Federal; Magistrados; Membros do Ministério Público da União, dos Estados e do Distrito Federal; Professores Inocêncio Mártires Coelho, Aristides Junqueira Alvarenga e Geraldo Brindeiro, ex-Procuradores-Gerais da República; Advo­gados Técio Lins e Silva, Ranieri Mazzilli Neto e Thiago Lins e Silva, sobrinho e netos do Homenageado, e demais advogados; alunos do Centro de Ensino Superior de Catalão — Goiás; funcionários desta e de outras Cortes e demais convidados.

Os discursos aqui pronunciados constarão dos anais da Corte. Interrompo a presente sessão para os cumprimentos aos Familiares, por parte dos integrantes deste Tribunal, solicitan­do a todos os presentes que permaneçam em seus lugares.

Em seguida, os Familiares do Homenageado serão conduzidos ao Salão Branco, onde receberão os cumprimentos.

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