superando racismo escola miolo

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  • SUPERANDO

    O RACISMO

    NA ESCOLA

    Kabengele Munanga

    Organizador

  • Presidente da RepblicaLuiz Incio Lula da Silva

    Ministro da EducaoTarso Genro

    Secretrio-ExecutivoFernando Haddad

    Secretrio de Educao Continuada, Alfabetizao e DiversidadeRicardo Henriques

  • SUPERANDO

    O RACISMO

    NA ESCOLA

    Kabengele Munanga

    Organizador

    Braslia

    2005

  • Edies MEC/BID/UNESCO

    Primeira Edio1999Segunda Impresso 2000Terceira Impresso 2001Segunda Edio 2005

    Departamento de Educao para Diversidade e Cidadania Armnio Bello Schmidt

    Coordenao-Geral de Diversidade e Incluso Educacional Eliane Cavalleiro

    Coordenao editorial Maria Lcia de Santana Braga e Ana Flvia Magalhes PintoReviso Lunde BraghiniDiagramao Thiago Gonalves da SilvaCapa Tnia Anaya

    Equipe Tcnica Ana Flvia Magalhes Pinto Denise Botelho Edileuza Penha de Souza Maria Lcia de Santana Braga

    Tiragem 8.000 exemplares

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)

    Superando o Racismo na escola. 2 edio revisada / Kabengele Munanga, organizador. [Braslia]: Ministrio da Educao, Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade, 2005.

    204p.: il.

    1. Discriminao Racial. 2. Ideologia dos livros didticosI. Munanga Kabengele.

    CDU 323.12 371.671.1

    Secad Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizada e DiversidadeSAGS 607, Lote 50, Sala 205Braslia DFTelefone: (61) 2104-6583

  • SUMRIO

    Prefcio 1 edio.............................................................................................. 07 Paulo Renato Souza

    Prefcio 2 impresso....................................................................................... 09 Fernando Henrique Cardoso

    Prefcio 2 edio.............................................................................................. 11 Ricardo Henriques / Eliane Cavalleiro

    Apresentao.......................................................................................................... 15 Kabengele Munanga

    A Desconstruo da Discriminao no Livro Didtico................................ 21 Ana Clia da Silva

    Histria e Conceitos Bsicos sobre o Racismo e seus Derivados................ 39 Antnio Olmpio de SantAna

    O Direito Diferena.......................................................................................... 69 Glria Moura

    Buscando Caminhos nas Tradies.................................................................. 83 Helena Theodoro

    Personagens Negros: Um Breve Perfil na Literatura Infanto-Juvenil....... 101 Heloisa Pires Lima

    Construindo a Auto-Estima da Criana Negra............................................ 117 Inaldete Pinheiro de Andrade

    As Artes e a Diversidade tnico-Cultural na Escola Bsica....................... 125 Maria Jos Lopes da Silva

    Educao e Relaes Raciais: Refletindo sobre Algumas Estratgias de Atuao....................................................................................... 143 Nilma Lino Gomes

  • Aprendizagem e Ensino das Africanidades Brasileiras................................ 155 Petronilha Beatriz Gonalves e Silva

    A Geografia, a frica e os Negros Brasileiros............................................... 173 Rafael Sanzio Arajo dos Anjos

    Racismo, Preconceito e Discriminao.......................................................... 185 Vra Neusa Lopes

  • 7PREFCIO 1 EDIO (1999)

    Paulo Renato SouzaMinistro de Estado da Educao

    A formao cultural do Brasil se caracteriza pela fuso de etnias e culturas, pela contnua ocupao de diferentes regies geogrficas, pela diversidade de fisionomias e paisagens e tambm pela multiplicidade de vises sobre a miscigenao em sentido amplo, algumas ainda presas desinformao e ao preconceito. Esse caldo de cultura muitas vezes gera atritos e conflitos em casa, na rua, no trabalho e na escola. Para preencher o vazio da desinformao e corrigir a distoro de valores que encerra, o Ministro da Educao publica este Superando o Racismo na Escola.

    Catorze professores foram escolhidos para escrever os textos da obra, cuja leitura possibilita a professores e alunos debaterem amplamente o assunto. Claro que o tema no se esgota aqui. Mas junto com outras realizaes do Ministrio, como vdeos e publicaes da TV Escola, a obra outro passo importante para a implantao eficaz das polticas educacionais. A idia da publicao e seu aproveitamento em sala de aula est perfeitamente adequada outra realizao do Ministrio: os Parmetros Curriculares Nacionais (PCN), que objetivam a melhoria de qualidade da educao pblica. Pode-se dizer que o livro deriva dos Parmetros.

    Adotados deste 1997, os PCN foram preparados pelo Ministrio para orientar os professores das redes estaduais e municipais na montagem de currculos adequados s peculiaridades regionais e culturais do Brasil. A partir dos PCN, os docentes podem desenvolver em sala de aula temas que permitem formar o cidado consciente, possibilitando ao aluno ampliar seu horizonte existencial, cultural e crtico por meio das prprias matrias regulares do currculo. A esse recurso pedaggico deu-se o nome de temas transversais. Enquanto aprendem Histria ou Geografia ou Portugus, por exemplo, os alunos recebero informaes que alargam sua compreenso sobre temas como: tica, Meio Ambiente, Pluralidade Cultural, Sade e Orientao Sexual. Os critrios de escolha desses assuntos levaram em conta a urgncia social, a abrangncia nacional, a possibilidade de melhorar o

  • 8ensino e a aprendizagem e a contribuio que os estudos oferecem para o entendimento da realidade, de forma a encorajar a participao social.

    Editados e distribudos s escolas pelo Ministrio, os documentos que compem os PCN foram preparados com a colaborao de inmeros especialistas, instituies e entidades que desenvolvem estudos e pesquisas em Educao. E tiveram reconhecimento do Conselho Nacional de Educao, tornando-se em seguida objetivo de anlise e debate em seminrios e reunies de professores e de dirigentes dos sistemas educacionais. Neste momento esses agentes trabalham para adequar os currculos nova proposta.

    Atravs dos Parmetros, os alunos so levados a compreender a cidadania enquanto participao social e poltica; a posicionar-se de modo crtico e construtivo; a conhecer caractersticas sociais, materiais e culturais do pas; a identificar e valorizar a pluralidade cultural; a posicionar-se contra a discriminao cultural, social, religiosa, de gnero, de etnia, dentre outras. Os PCN permitem tambm ao estudante se perceber integrante e agente transformador do ambiente, identificando seus elementos e interaes possveis, contribuindo para melhor-lo. Possibilitam ao aluno desenvolver a percepo de si, a confiana nas prprias capacidades e o sentido de preservao fsica e mental; a utilizar diferentes linguagens; a consultar diversas fontes de informao e a questionar a realidade, formulando problemas e solues.

    Os temas transversais no so uma preocupao indita do Brasil. A questo vinha sendo pensada e incorporada progressivamente ao ensino das cincias. Sua adoo era anunciada e se justifica plenamente porque, alm dos benefcios evidentes formao integral dos estudantes, d flexibilidade ao currculo, algo vital na relao ensino-aprendizagem.

    Paulo Renato Souza

  • 9PREFCIO 2 IMPRESSO (2000)

    Fernando Henrique CardosoPresidente da Repblica

    Racismo e ignorncia caminham sempre de mos dadas. Os esteretipos e as idias pr-concebidas vicejam se est ausente a informao, se falta o dilogo aberto, arejado, transparente.

    No h preconceito racial que resista luz do conhecimento e do estudo objetivo. Neste, como em tantos outros assuntos, o saber o melhor remdio. No era por acaso que o nazi-facismo queimava livros.

    Mas no s por isso que o tema do racismo e da discriminao racial importante para quem se preocupa coma a educao. fundamental, tambm, que a elaborao dos currculos e materiais de ensino tenha em conta a diversidade de culturas e de memrias coletivas dos vrios grupos tnicos que integram nossa sociedade.

    obrigao do Estado a proteo das manifestaes culturais das culturas populares, indgenas e afro-brasileiras, bem como dos demais grupos participantes de nosso processo civilizatrio. Essa obrigao deve refletir-se tambm na educao.

    A educao um direito de todos, e o Brasil de hoje, graas aos esforos realizados nos ltimos anos, j est muito prximo de ter todas as suas crianas na escola. Isso essencial para a construo de um Brasil mais justo. Mas no suficiente. preciso, ainda, que a educao tenha qualidade, que sirva para abrir os espritos, no para fech-los, que respeite e promova o respeito s diferenas culturais, que ajude a fortalecer nos coraes e mentes de todos os brasileiros o ideal da igualdade de oportunidades.

    A linguagem uma das manifestaes mais prprias de uma cultura. Longe de ser apenas um veculo de comunicao objetiva, ela d testemunho das experincias acumuladas por um povo, de sua memria coletiva, seus valores. A linguagem no s denotao, tambm conotao. Nos meandros das palavras, das formas usuais de expresso, at mesmo nas figuras de

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    linguagem, freqentemente alojam-se, insidiosos, o preconceito e a atitude discriminatria. H palavras que fazem sofrer, porque se transformaram em cdigos do dio e da intolerncia.

    A ateno a esse tipo de problema necessariamente parte do programa de educao de qualquer povo que tenha, para si prprio, um projeto de justia e de desenvolvimento social.

    A sociedade brasileira tem razes de sobra para se preocupar com essas questes. Nossa formao nacional tem, como caracterstica peculiar, a convivncia e a mescla de diversas etnias e diferenas culturais. Temos, em nossa histria, a ignomnia da escravido de africanos, que tantas marcas deixou em nossa memria e cuja herana visvel, ainda hoje, em uma situao na qual no somente se manifestam profundas desigualdades, mas o fazem, em larga medida, segundo linhas raciais e eu prprio, como socilogo, dediquei-me a estudar aspectos dessa herana social do regime escravocrata. Temos, ainda, em nosso passado, episdios graves de violaes dos direitos das comunidades indgenas.

    indispensvel que os currculos e livros escolares estejam isentos de qualquer contedo racista ou de intolerncia. Mais do que isso. indispensvel que reflitam, em sua plenitude, as contribuies dos diversos grupos tnicos para a formao da nao e da cultura brasileiras. Ignorar essas contribuies ou no lhes dar o devido reconhecimento tambm uma forma de discriminao racial.

    A superao do racismo ainda presente em nossa sociedade um imperativo. uma necessidade moral e uma tarefa poltica de primeira grandeza. E a educao um dos terrenos decisivos para que sejamos vitoriosos nesse esforo.

    Fernando Henrique Cardoso

  • 11

    PREFCIO 2 EDIO (2005)

    Ricardo HenriquesSecretrio de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade

    Eliane CavalleiroCoordenadora - Geral de Diversidade e Incluso Educacional

    Os artigos de Superando o Racismo na Escola, obra publicada pela primeira vez em 1999, respondiam e ainda respondem, cada um sua maneira, angustiante questo relativa a que fazer?. Instigados a escrever uma obra pioneira sobre o tema, os onze autores se desdobraram em produzir artigos ricos em sugestes sobre possibilidades de ao. No h uma linha nica de raciocnio e abordagem, mas muitas linhas em convergncia, como os afluentes de um rio. Os mltiplos discursos e formas de falar sobre o tema procuram todos capitalizar o aspecto prtico do acmulo de discusso principalmente na intelectualidade e na militncia negras referente tenso entre o papel que a escola realmente tem desempenhado na reproduo do racismo e o papel que deveria desempenhar no combate ao racismo. No por outro motivo a reedio desta obra se justifica entre as aes do Programa Diversidade na Universidade, que tem como objetivo a defesa da incluso social e o combate excluso social, tnica e racial, por meio do fomento de subsdios para construo de polticas pblicas nesse sentido.

    Os destinatrios naturais deste livro so os professores e as professoras da Educao Bsica. a esse grupo que se tenta municiar e estimular. No artigo inicial, de Ana Clia Silva, sugerindo atitudes prticas de desconstruo e reverso da ideologia e dos esteretipos racistas no cotidiano escolar, esses leitores e leitoras j depararo com o tom ao mesmo tempo pragmtico e crtico presente na obra como um todo. Em seguida, Antonio Olmpio de SantAnna faz interessante incurso no campo da histria das idias. Depois de aportar em sintticas pginas significativo e articulado volume de referncias estratgicas para o entendimento da evoluo do pensamento racista, SantAnna esfora-se por definir e explicar conceitualmente o racismo, o preconceito, a discriminao racial, a discriminao de gnero e os esteretipos.

    Os trabalhos seguintes so de Glria Moura, sobre o currculo invisvel

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    das comunidades quilombolas, e de Helena Theodoro, sobre o lugar das tradies africanas num redesenho cultural da escola brasileira. Ambas as leituras produzem a convico de que a escola que superar o racismo h de ser uma escola que saiba, sobretudo, aprender e relacionar-se com o mundo de possibilidades que a sociabilidade negra criou, seja nas mais de quatro mil comunidades quilombolas conhecidas, seja na msica urbana de um compositor como Martinho da Vila. No mesmo diapaso, os artigos de Maria Jos Lopes da Silva, sobre artes (teatro, artes visuais, msica e dana), e de Petronilha Beatriz Gonalves e Silva, sobre africanidades brasileiras, convidam professores e professoras a evadir-se do mundo fechado de referncias e prticas eurocntricas em que foram (de)formados a ao qual foram confinados.

    As contribuies de Helosa Pires Lima e de Inaldete Pinheiro de Andrade abordam a literatura infanto-juvenil, e, de certo modo, compartilham com Rafael Sanzio de Arajo dos Anjos, autor do artigo A geografia, a frica e o negro brasileiro, uma preocupao com o modo de aproveitamento e de crtica do material didtico com que se trabalha nas escolas. A leitura crtica da literatura infanto-juvenil, tanto no plano da linguagem verbal quanto no da no verbal, mostra Helosa Lima, no deve ser confundida com um procedimento de caa s bruxas, condenando autores e ilustradores. O erro em determinadas circunstncias um bom condutor para mostrar outra possibilidade de abordagem e mudar o tratamento da questo, escreve Sanzio. Nesse sentido, segundo ele, o erro acerto.

    Os ensaios de Nilma Lino Gomes, interpelando o papel do professor, e de Vra Neusa Lopes, recuperando os marcos oficiais de qual deve ser o papel da escola na construo da cidadania, reposicionam o combate ao racismo, ao preconceito e discriminao no plano da atitude poltica do professor. Todos ns estamos desafiados a pensar diferentes maneiras de trabalhar com a questo racial na escola, constata Nilma Lino Gomes. Ser que estamos dispostos?, questiona. Que dizer de educadores que colocam a criana negra para danar com um cabo de vassoura, durante a festa junina, porque ningum quer ser seu par? Ou que estabelecem como castigo, para os desobedientes, sentarem-se ao lado da criana negra da sala? Ou que so coniventes, e no mximo sentem pena, quando presenciam calados e omissos agresses racistas criana negra?

    Ricardo Henriques / Eliane Cavalleiro

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    As chances de a escola ser um ncleo de resistncia e de abrigo contra a violncia racial dependem de uma completa virada de jogo. A violncia racial na escola ainda no computada como exerccio de violncia real. Na verdade, uma obra sobre a superao do racismo na escola ser sempre um libelo contra uma das mais perversas formas de violncia perpetradas cotidianamente na sociedade brasileira. A violncia racial escolar atenta contra o presente, deforma o passado e corri o futuro.

    Para quaisquer leitores, negros ou no negros, Superando o Racismo na Escola disponibiliza sugestes arejadas e informadas sobre o quanto nossas prticas pedaggicas se enriqueceriam se soubssemos incorporar substantivamente a contribuio negra ao repertrio constitutivo de nossa viso do mundo e da nossa humanidade. Todavia, as informaes no mudam o mundo por si ss. A rigor, nem a produo e nem a distribuio de um livro como este garantem sua leitura e aproveitamento na escola. Isso ainda uma questo de correlao de foras, para recorrer a um termo da Cincia Poltica, que pode tornar possvel (ou no) a mudana de conversa de professores, alunos e funcionrios da escola em torno do combate ao racismo na escola e na sociedade brasileira. No h neutralidade, a reedio deste livro toma o partido da mudana.

    Prefcio 2 edio (2005)

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    APRESENTAO

    Kabengele MunangaProfessor do Departamento de Antropologia da USP

    Alguns dentre ns no receberam na sua educao e formao de cidados, de professores e educadores o necessrio preparo para lidar com o desafio que a problemtica da convivncia com a diversidade e as manifestaes de discriminao dela resultadas colocam quotidianamente na nossa vida profissional. Essa falta de preparo, que devemos considerar como reflexo do nosso mito de democracia racial, compromete, sem dvida, o objetivo fundamental da nossa misso no processo de formao dos futuros cidados responsveis de amanh. Com efeito, sem assumir nenhum complexo de culpa, no podemos esquecer que somos produtos de uma educao eurocntrica e que podemos, em funo desta, reproduzir consciente ou inconscientemente os preconceitos que permeiam nossa sociedade.

    Partindo da tomada de conscincia dessa realidade, sabemos que nossos instrumentos de trabalho na escola e na sala de aula, isto , os livros e outros materiais didticos visuais e audiovisuais carregam os mesmo contedos viciados, depreciativos e preconceituoso em relao aos povos e culturas no oriundos do mundo ocidental. Os mesmos preconceitos permeiam tambm o cotidiano das relaes sociais de alunos entre si e de alunos com professores no espao escolar. No entanto, alguns professores, por falta de preparo ou por preconceitos neles introjetados, no sabem lanar mo das situaes flagrantes de discriminao no espao escolar e na sala como momento pedaggico privilegiado para discutir a diversidade e conscientizar seus alunos sobre a importncia e a riqueza que ela traz nossa cultura e nossa identidade nacional. Na maioria dos casos, praticam a poltica de avestruz ou sentem pena dos coitadinhos, em vez de uma atitude responsvel que consistiria, por um lado, em mostrar que a diversidade no constitui um fator de superioridade e inferioridade entre os grupos humanos, mas sim, ao contrrio, um fator de complementaridade e de enriquecimento da humanidade em geral; e por outro lado, em ajudar o aluno discriminado para que ele possa assumir com orgulho e dignidade os atributos de sua diferena, sobretudo quando esta foi negativamente introjetada em detrimento de sua prpria natureza humana.

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    Kabengele Munanga

    No precisamos ser profetas para compreender que o preconceito incutido na cabea do professor e sua incapacidade em lidar profissionalmente com a diversidade, somando-se ao contedo preconceituoso dos livros e materiais didticos e s relaes preconceituosas entre alunos de diferentes ascendncias tnico-raciais, sociais e outras, desestimulam o aluno negro e prejudicam seu aprendizado. O que explica o coeficiente de repetncia e evaso escolar altamente elevado do alunado negro, comparativamente ao do alunado branco.

    Sem minimizar o impacto da situao scio-econmica dos pais dos alunos no processo de aprendizagem, deveramos aceitar que a questo da memria coletiva, da histria, da cultura e da identidade dos alunos afro-descendentes, apagadas no sistema educativo baseado no modelo eurocntrico, oferece parcialmente a explicao desse elevado ndice de repetncia e evaso escolares. Todos, ou pelo menos os educadores conscientes, sabem que a histria da populao negra quando contada no livro didtico apresentada apenas do ponto de vista do Outro e seguindo uma tica humilhante e pouco humana. Como escreveu o historiador Joseph Kizerbo, um povo sem histria como um indivduo sem memria, um eterno errante. Como poderia ele ento aprender com facilidade? As conseqncias de tudo isso na estrutura psquica dos indivduos negros so incomensurveis por falta de ferramentas apropriadas. Mas elas existem certamente e devem, como mostra bem Franz Fanon no seu livro Pele Negra, Mscaras Brancas, prejudicar o sucesso escolar do aluno negro e de outros submetidos ao mesmo tratamento.

    O resgate da memria coletiva e da histria da comunidade negra no interessa apenas aos alunos de ascendncia negra. Interessa tambm aos alunos de outras ascendncias tnicas, principalmente branca, pois ao receber uma educao envenenada pelos preconceitos, eles tambm tiveram suas estruturas psquicas afetadas. Alm disso, essa memria no pertence somente aos negros. Ela pertence a todos, tendo em vista que a cultura da qual nos alimentamos quotidianamente fruto de todos os segmentos tnicos que, apesar das condies desiguais nas quais se desenvolvem, contriburam cada um de seu modo na formao da riqueza econmica e social e da identidade nacional.

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    Apresentao

    Como, ento, reverter esse quadro preconceituoso que prejudica a formao do verdadeiro cidado e a educao de todos os alunos, em especial os membros dos grupos tnicos, vtimas do preconceito e da discriminao racial? No existem leis no mundo que sejam capazes de erradicar as atitudes preconceituosas existentes nas cabeas das pessoas, atitudes essas provenientes dos sistemas culturais de todas as sociedades humanas. No entanto, cremos que a educao capaz de oferecer tanto aos jovens como aos adultos a possibilidade de questionar e desconstruir os mitos de superioridade e inferioridade entre grupos humanos que foram introjetados neles pela cultura racista na qual foram socializados. Apesar da complexidade da luta contra o racismo, que conseqentemente exige vrias frentes de batalhas, no temos dvida de que a transformao de nossas cabeas de professores uma tarefa preliminar importantssima. Essa transformao far de ns os verdadeiros educadores, capazes de contribuir no processo de construo da democracia brasileira, que no poder ser plenamente cumprida enquanto perdurar a destruio das individualidades histricas e culturais das populaes que formaram a matriz plural do povo e da sociedade brasileira.

    Por isso, o objetivo dos textos que compem o presente manual, longe de resolver sozinho o longo e demorado processo de transformao de nossas estruturas mentais herdadas do mito de democracia racial e, conseqentemente, dos mecanismos racistas que, sutil, consciente ou inconscientemente, marcaram a nossa prpria educao e formao, oferecer e discutir alguns subsdios que possam ajudar no desenvolvimento do processo de transformao de nossas cabeas. Embora possamos contar com o dilogo, a troca de experincias e de idias resultada de discusso e de debate entre todos os educadores do pas e do mundo preocupados e comprometidos com a questo, cremos que o esforo interno e o engajamento de cada um de ns individualmente so necessrios para a realizao dessa tarefa imensa. Em outras palavras, a finalidade deste livro consiste, por um lado, em mostrar o racismo como um dos graves problemas de nossa sociedade e, por outro lado, em mobilizar todas as foras vivas da sociedade para combat-lo. Entre essas foras, a educao escolar, embora no possa resolver tudo sozinha, ocupa um espao de destaque. Se nossa sociedade plural, tnica e culturalmente, desde os

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    Kabengele Munanga

    primrdios de sua inveno pela fora colonial, s podemos constru-la democraticamente respeitando a diversidade do nosso povo, ou seja, as matrizes tnico-raciais que deram ao Brasil atual sua feio multicolor composta de ndios, negros, orientais, brancos e mestios.

    Embora concordemos que a educao tanto familiar como escolar possa fortemente contribuir nesse combate, devemos aceitar que ningum dispe de frmulas educativas prontas a aplicar na busca das solues eficazes e duradouras contra os males causados pelo racismo na nossa sociedade. A primeira atitude corajosa que devemos tomar a confisso de que nossa sociedade, a despeito das diferenas com outras sociedades ideologicamente apontadas como as mais racistas (por exemplo, Estados Unidos e frica do Sul), tambm racista. Ou seja, despojarmo-nos do medo de sermos preconceituosos e racistas. Uma vez cumprida esta condio primordial, que no fundo exige uma transformao radical de nossa estrutura mental herdada do mito de democracia racial, mito segundo o qual no Brasil no existe preconceito tnico-racial e, conseqentemente, no existem barreiras sociais baseadas na existncia da nossa diversidade tnica e racial, podemos ento enfrentar o segundo desafio de como inventar as estratgias educativas e pedaggicas de combate ao racismo.

    Quantas vezes ouvimos pronunciar, at por pessoas supostamente sensatas, a frase segundo a qual as atitudes preconceituosas s existem na cabea das pessoas ignorantes, como se bastasse freqentar a universidade para ser completamente curado dessa doena que s afeta os ignorantes? Esquecem-se que o preconceito produto das culturas humanas que, em algumas sociedades, transformou-se em arma ideolgica para legitimar e justificar a dominao de uns sobre os outros. Esta maneira de relacionar o preconceito com a ignorncia das pessoas pe o peso mais nos ombros dos indivduos do que nos da sociedade. Alm disso, projeta a sua superao apenas no domnio da razo, o que deixaria pensar, ao extremo, que nos pases onde a educao mais desenvolvida o racismo se tornaria um fenmeno raro.

    Aqui est o grande desafio da educao como estratgia na luta contra o racismo, pois no basta a lgica da razo cientfica que diz que biologicamente

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    Apresentao

    no existem raas superiores e inferiores, como no basta a moral crist que diz que perante Deus somos todos iguais, para que as cabeas de nossos alunos possam automaticamente deixar de ser preconceituosas. Como educadores, devemos saber que apesar da lgica da razo ser importante nos processos formativos e informativos, ela no modifica por si o imaginrio e as representaes coletivas negativas que se tem do negro e do ndio na nossa sociedade. Considerando que esse imaginrio e essas representaes, em parte situados no inconsciente coletivo, possuem uma dimenso afetiva e emocional, dimenso onde brotam e so cultivadas as crenas, os esteretipos e os valores que codificam as atitudes, preciso descobrir e inventar tcnicas e linguagens capazes de superar os limites da pura razo e de tocar no imaginrio e nas representaes. Enfim, capazes de deixar aflorar os preconceitos escondidos na estrutura profunda do nosso psiquismo.

    Por isso, apesar da disparidade aparente dos textos que compem este livro, a sua coerncia est justamente na busca de um leque de exemplos e de informaes que possam lidar tanto com a razo quanto com a afetividade e a emocionalidade presentes no preconceito e na discriminao antinegros. A preocupao fundamental dos autores desses textos no fornecer aos professores e educadores as frmulas e as receitas anti-racistas prontas, pois elas no existem. Mas, sim, de estimular e levar sua imaginao criativa a invent-la. Visto deste ngulo, os diversos textos arrolados no livro vo servir apenas como exemplos e como modelos limitados, para que cada um, de acordo com as peculiaridades de sua regio, de sua cidade, de sua escola, de sua classe, etc., possa descobrir caminhos apropriados, caminhos esses que podem ser encontrados em outros livros e outros textos, nos mapas geogrficos e Atlas, revistas e jornais, nos museus, nas praas das cidades, nas igrejas e outros monumentos pblicos. Lembrem-se que um professor ou um educador numa classe como um ator nico num cenrio nico. Apesar de o contedo da mensagem ser o mesmo para todas as classes, ele precisa adaptar sua encenao ao esprito de cada classe, seno ser prejudicada a comunicao e a mensagem no ser igualmente transmitida e entendida por todos.

    O Ministrio da Educao e do Desporto, ao instituir os Parmetros Curriculares Nacionais, introduzindo neles o que chamou de Temas Transversais, busca caminhos apropriados e eficazes para lutar contra os diversos

  • 20

    Kabengele Munanga

    tipos de preconceitos e de comportamentos discriminatrios que prejudicam a construo de uma sociedade plural, democrtica e igualitria. Mas deixou aos prprios educadores a liberdade de incrementar o contedo desses temas transversais, baseando-se na sua experincia profissional e nas peculiaridades de seus meios. O presente livro vem somar-se contribuio de cada um de ns. Seus esforos so dirigidos luta contra os preconceitos e a discriminao, que atingem cerca de 50% da populao brasileira composta de negros. Outros especialistas com conhecimento da realidade das sociedades indgenas, das relaes de gneros, dos homossexuais, dos portadores de deficincia e outras vtimas da sociedade devem fazer o mesmo esforo. Os caminhos no so separados nem solitrios, mas a especificidade exige abordagens diversas sem perder o rumo do dilogo e da troca de experincia.

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    A DESCONSTRUO DA DISCRIMINAONO LIVRO DIDTICO

    Ana Clia da SilvaProfessora Assistente do Departamento de Educao

    da Universidade do Estado da Bahia UNEB. Doutoranda em Educao da Universidade Federal da Bahia UFBA.

    Introduo

    Conhecer para entender, respeitar e integrar, aceitando as contribuies das diversas culturas, oriundas das vrias matrizes culturais presentes na sociedade brasileira, deve ser o objetivo especfico da introduo nos currculos do tema transversal Pluralidade Cultural e Educao, que considero universal, pela sua abrangncia e importncia social.

    Contudo, torna-se necessrio refletir at que ponto as culturas oriundas dos grupos subordinados na sociedade, cujas contribuies no so consideradas como tradio e passado significativo e, por isso, so invisibilizadas e minimizadas nos currculos, podero vir a ser objeto de investigao e constituir-se na prtica educativa dos professores.

    Por outro lado, os sujeitos dessas culturas so representados, em grande parte, nos meios de comunicao e materiais pedaggicos, sob forma estereotipada e caricatural, despossudos de humanidade e cidadania.

    No livro didtico a humanidade e a cidadania, na maioria das vezes, so representadas pelo homem branco e de classe mdia. A mulher, o negro, os povos indgenas, entre outros, so descritos pela cor da pele ou pelo gnero, para registrar sua existncia.

    Rosemberg (1985, p.77) corrobora essa afirmativa quando diz que o homem branco adulto proveniente dos estratos mdios e superiores da populao o representante da espcie mais freqente nas estrias, aquele que recebe um nome prprio, aquele que se reveste da condio de normal.

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    Ana Clia da Silva

    A invisibilidade e o recalque dos valores histricos e culturais de um povo, bem como a inferiorizao dos seus atributos adscritivos, atravs de esteretipos, conduz esse povo, na maioria das vezes, a desenvolver comportamentos de auto-rejeio, resultando em rejeio e negao dos seus valores culturais e em preferncia pela esttica e valores culturais dos grupos sociais valorizados nas representaes.

    Por outro lado, os mecanismos de invisibilizao e de recalque das diferenas adscritivas e culturais dos segmentos sociais subordinados, uma vez saturados atravs da sua freqncia nos veculos de reproduo ideolgica e tornados hegemnicos, passam a ser o senso comum de todos, indiferente de raa/etnia e classe social.

    Observando-se de uma forma determinista o problema, que em grande parte relativizado pela ao humana, como veremos a seguir, os professores, a quem atribuda a ao de contemplar as diferenas culturais na sua prtica pedaggica, poderiam ter internalizado o senso comum da desigualdade das diferenas culturais e no evidenciar na sua prtica pedaggica essa ao.

    Nesse sentido, afirmo que cabe uma formao especfica para o professor de Ensino Fundamental, com o objetivo de fundament-lo para uma prtica pedaggica, com as condies necessrias para identificar e corrigir os esteretipos e a invisibilidade constatados nos materiais pedaggicos, especificamente nos textos e ilustraes dos livros didticos.

    Acredito que desmontar os esteretipos possa vir a ser um dos objetivos especficos dos cursos de formao de professores, especialmente para os das sries iniciais, como uma das formas de visibilizar as diferentes prticas cotidianas, experincias e processos culturais, sem o estigma da desigualdade, colocando todos eles como parte do passado significativo, da tradio e do conhecimento universal.

    O livro didtico, a ideologia e as formas de sua reverso

    O livro didtico ainda , nos dias atuais, um dos materiais pedaggicos mais utilizados pelos professores, principalmente nas escolas pblicas, onde, na maioria das vezes, esse livro constitui-se na nica fonte de leitura para os alunos oriundos das classes populares.

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    A desconstruo da discriminao no livro didtico

    Para as crianas empobrecidas, esse livro ainda , talvez, o nico recurso de leitura na sua casa, onde no se compram jornais e revistas.

    Tambm para o professor dessas escolas, onde os materiais pedaggicos so escassos e as salas de aula repletas de alunos, o livro didtico talvez seja um material que supra as suas dificuldades pedaggicas.

    Por outro lado, em virtude da importncia que lhe atribuda e do carter de verdade que lhe conferido, o livro didtico pode ser um veculo de expanso de esteretipos no percebidos pelo professor.

    O livro didtico, de um modo geral, omite ou apresenta de uma na simplificada e falsificada o cotidiano, as experincias e o processo histrico-cultural de diversos segmentos sociais, tais como a mulher, o branco, o negro, os indgenas e os trabalhadores, entre outros.

    Em relao populao negra, sua presena nesses livros foi marcada pela estereotipia e caricatura, identificadas pelas pesquisas realizadas nas duas ltimas dcadas.

    A criana negra era ilustrada e descrita atravs de esteretipos inferiorizantes e excluda do processo de comunicao, uma vez que o autor se dirigia apenas ao pblico majoritrio nele representado, constitudo por crianas brancas e de classe mdia.

    Ao veicular esteretipos que expandem uma representao negativa do negro e uma representao positiva do branco, o livro didtico est expandindo a ideologia do branqueamento, que se alimenta das ideologias, das teorias e esteretipos de inferioridade/superioridade raciais, que se conjugam com a no legitimao pelo Estado, dos processos civilizatrios indgena e africano, entre outros, constituintes da identidade cultural da nao (SILVA, 1989, p 57).

    A ideologia do branqueamento se efetiva no momento em que, internalizando uma imagem negativa de si prprio e uma imagem positiva do outro, o indivduo estigmatizado tende a se rejeitar, a no se estimar e a procurar aproximar-se em tudo do indivduo estereotipado positivamente e dos seus valores, tidos como bons e perfeitos.

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    Ana Clia da Silva

    A ideologia vista como um sistema de representaes dotado de uma existncia e de um papel histrico no seio de uma sociedade dada (ALTHUSSER, 1987) e como um sistema de smbolos que agem entre si e fornecem as formas bsicas de tornar portadoras de sentido situaes que de outro modo seriam incompreensveis (Geertz, apud APPLE, 1982, p. 35) cumpre, em parte, o seu papel de representar parcialmente a realidade.

    Os esteretipos, por sua vez, tm uma funo importante nesse processo, uma vez que atravs deles, em grande parte, que as ideologias so veiculadas nos materiais pedaggicos.

    Visto como uma viso simplificada e conveniente de um indivduo ou de um grupo, o esteretipo constri uma idia negativa a respeito do outro, nascida da necessidade de promover e justificar a agresso (SANTOS, 1984).

    Para Jones (1973), os esteretipos representam uma atitude negativa com relao a um grupo ou a uma pessoa, baseando-se num processo de comparao em que o grupo do indivduo considerado como o ponto positivo de referncia.

    Os esteretipos geram os preconceitos, que se constituem em um juzo prvio a uma ausncia de real conhecimento do outro.

    A presena dos esteretipos nos materiais pedaggicos e especificamente nos livros didticos, pode promover a excluso, a cristalizao do outro em funes e papis estigmatizados pela sociedade, a auto-rejeio e a baixa auto-estima, que dificultam a organizao poltica do grupo estigmatizado.

    O professor pode vir a ser um mediador inconsciente dos esteretipos se for formado com uma viso acrtica das instituies e por uma cincia tecnicista e positivista, que no contempla outras formas de ao e reflexo.

    Segundo Cardoso, a questo racial brasileira pode, quem sabe, lev-los a desenvolver uma postura crtica diante de instrumentos pedaggicos a que vm recorrendo to passivamente (1992, p. 59).

    Porm, esse processo no se efetiva de uma forma linear e determinista,

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    A desconstruo da discriminao no livro didtico

    uma vez que a mediao da ao humana, realizada atravs das experincias do cotidiano, das prticas culturais dos grupos subordinados, possibilita a apreenso da contradio, a reelaborao e a resistncia s ideologias do recalque das diferenas.

    Nesse sentido, Luz (1990), na sua investigao, identificou a resistncia e a insurgncia da criana negra ao recalque nas escolas baianas. Machado (1989) identificou as religies africanas como uma das primeiras reas dessa resistncia, formadoras que so de uma identidade sedimentada a partir dos ancestrais divinizados e seus arqutipos. Giroux (1983) entende que h reas dentro e fora da escola que so reapropriadas e reinventadas por grupos

    subordinados.

    A visibilidade da diversidade de papis e funes

    A invisibilidade da diversidade dos papis e funes exercidos pelos homens e mulheres negros, entre outros, nas ilustraes dos livros didticos pode ser corrigida, solicitando-se criana que descreva outras atividades exercidas pelas mulheres e homens negros que constituem sua famlia, que moram na sua rua, que freqentam seu local de encontros religiosos e de lazer, etc. Nessa oportunidade, convm fazer a criana identificar a importncia das profisses estigmatizadas, mostrando a sua utilidade para a sociedade.

    No ser visvel nas ilustraes do livro didtico e, por outro lado, aparecer desempenhando papis subalternos, pode contribuir para a criana que pertence ao grupo tnico/racial invisibilizado e estigmatizado desenvolver um processo de auto-rejeio e de rejeio ao seu grupo tnico/racial.

    A presena do negro nos livros, freqentemente como escravo, sem referncia ao seu passado de homem livre antes da escravido e s lutas de libertao que desenvolveu no perodo da escravido e desenvolve hoje por direitos de cidadania, pode ser corrigida se o professor contar a histria de Zumbi dos Palmares, dos quilombos, das revoltas e insurreies ocorridas durante a escravido; contar algo do que foi a organizao scio-poltico-econmica e cultural na frica pr-colonial; e tambm sobre a luta das organizaes negras, hoje, no Brasil e nas Amricas.

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    Ana Clia da Silva

    A desconstruo do esteretipo de incompetncia

    Existe por parte de muitos professores uma baixa expectativa em relao capacidade dos alunos negros e pertencentes s classes populares.

    As origens dessa baixa expectativa podem estar na internalizao da representao do negro como pouco inteligente, burro, nos meios de comunicao e materiais pedaggicos, um esteretipo criado para justificar a excluso no processo produtivo ps-escravido e ainda na atualidade.

    A viso dessa representao pode desenvolver tambm nos alunos no negros preconceitos quanto capacidade intelectual da populao negra, e, nas crianas negras, um sentimento de incapacidade que pode conduzi-las ao desinteresse, repetncia e evaso escolar.

    A correo dessa representao nos textos e ilustraes pode constituir-se em uma atividade escolar gratificante e criativa, a partir da sua identificao e desconstruo pelo aluno, orientado pelo professor.

    No livro Ciranda do Saber, 2 srie (NEVES, sem data, p. 35), existe uma caricatura de uma menina com uma cabea enorme, sem cabelos, sentada escrivaninha, com um livro nas mos. O texto, abaixo da ilustrao, pe em dvida seu interesse pelos estudos, atravs das seguintes frases:

    A menina da gravura parece gostar de estudar.

    Ser que ela gosta de estudar?

    O professor pode iniciar uma conversao a respeito das razes por que uma criana no gosta de estudar. Eis uma boa oportunidade de ouvir dos alunos uma avaliao dos currculos e da sua prtica pedaggica. Em seguida, pode pedir a eles que corrijam as frases e indiquem colegas que vo bem nos estudos. Entre os indicados pode estar um aluno negro. Ento, o real vai sobrepor-se representao no concreta.

    Outra sugesto mostrar e solicitar que indiquem obras de artistas, escritores, poetas, jogadores e pessoas da comunidade negros e negras, como meio de visibilizar o positivo, contrapondo-se ao esteretipo.

    Cabe ao professor, munido dessas e outras informaes, demonstrar aos

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    A desconstruo da discriminao no livro didtico

    seus alunos que no existe correlao entre capacidade intelectual e cor da pele. E formar neles atitudes favorveis s diferenas tnicas e raciais das pessoas com as quais convivem na sociedade.

    Considerar na sala de aula os conhecimentos produzidos pelos grupos oprimidos, reafirmar a sua capacidade intelectual, uma vez que a desconsiderao desses conhecimentos uma forma de fazer-lhes crer na sua falta de capacidade intelectual e assumir a postura de conscincias dependentes, que embora cause muitos danos, no os mantm indefinidamente subordinados ao opressor (SILVA, P. G., 1997).

    Quanto mais as crianas tiverem conhecimento de que os argumentos usados para provar a inferioridade de outras raas foram desmentidos, mais fortemente hbitos e atitudes de aceitao e integrao do diferente iro

    desenvolver (KLINBERG, 1966).

    Desconstruindo os esteretipos de feio, sujo e mau

    A cor negra aparece com muita freqncia associada a personagens maus: O negro associado sujeira, tragdia, maldade, como cor simblica, impregna o texto com bastante freqncia (ROSEMBERG, p. 84).

    A criana que internaliza essa representao negativa tende a no gostar de si prpria e dos outros que se lhe assemelham.

    Atividades que evidenciem a cor negra associada a algo positivo, como bano, nix, jabuticaba, caf, petrleo, azeviche, etc., concorrem para justapor representao negativa uma outra positiva.

    Refazer as frases com conotao negativa outra atividade criativa e til.

    No livro Caminho Certo, 3 srie (BRASIL, 1983, p.138), aparece a seguinte frase no texto:

    ...querem ver que o demnio do negrinho tornou a cair...?

    A frase, corrigida por professores, ficou assim:

    ...querem ver que o garoto traquinas tornou a cair...?

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    Ana Clia da Silva

    A quadrinha popular boi da cara preta, pega o menino que tem medo de careta foi corrigida assim:

    o boi da cara preta tem uma cara bonita, no uma careta; o boi da cara preta irmo do boi da cara branca, do boi da cara malhada. O boi da cara preta tem a cor do rosto da mame, o rosto que voc, criana, se alegra quando olha... (ANDRADE, 1989, p. 8).

    Os cabelos crespos das crianas afro-descendentes so identificados como cabelo ruim, primeiro pelas mes, que internalizaram o esteretipo; e, na escola, pelos coleguinhas, que pem os mais variados apelidos nas tracinhas e nos cabelos crespos ao natural.

    Trabalhar a razo de ser dos diferentes tipos de cabelo, ensinar como trat-los, realizar concursos de penteados afros, trazer tranadeiras para tranar na sala de aula, so algumas atividades que podem desconstruir a negatividade atribuda textura dos cabelos crespos.

    Barbosa descontri o esteretipo atravs da poesia:

    Crespo cabelo tranado com a mais pura graa (...)Apenas poesia e imaginao dos desenhos transborda Criando os mais belos caminhos na carapinha Sedutoramente tecida na raa das tranas

    Trent (apud JERSIL, p. 247) notou que as crianas negras que expressavam sentimentos positivos sobre si mesmas, manifestavam tambm mais sentimentos positivos em relao aos outros negros e aos brancos do que as crianas que eram menos positivas nas suas atitudes em face de si prprias.

    Ressignificando as religies afro-brasileiras

    Nas escolas, as crianas que tm valores culturais diferentes recebem como educao religiosa, na maioria das vezes, valores que no contemplam a diversidade religiosa e a riqueza das diferenas culturais.

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    A desconstruo da discriminao no livro didtico

    A predominncia de uma nica matriz religiosa em educao nas escolas, ensinada sob forma de catequese e no de apreciao histrica e cultural das diversas religies, tem contribudo para uma fragmentao da f que a criana traz do seu grupo familiar e cultural, tornando-a confusa, muitas vezes internalizando a imagem idealizada negativa que a escola expande da sua religio de origem.

    Religio/religare religo, ou seja, uma forma de comunicao com o Criador e/ou seus intercessores/intermedirios, em algumas religies, como a catlica, as afro-brasileiras e as indgenas, entre outras.

    Religio assunto de foro ntimo, familiar e cultural.

    A imposio de uma s matriz religiosa constitui-se em violncia simblica contra os grupos subordinados, que no tm poder para colocar seus contedos e significados culturais nos currculos de ensino das nossas

    escolas.

    Requalificando o conceito de pobreza

    De um modo geral, o negro representado nas ilustraes e descrito como pobre. Porm, a representao do pobre corresponde do miservel, uma vez que descrito e ilustrado como esfarrapado, morador de casebres, pedinte ou marginal.

    Por outro lado, o livro responsabiliza o indivduo por seu estado de pobreza quando apenas o descreve e o ilustra como pobre, sem propor uma discusso sobre as causas da pobreza.

    A resistncia a ser qualificado de pobre, provm, em grande parte, dessa representao.

    Diferenciar entre o pobre e o miservel, analogia que os filhos das classes trabalhadoras fazem a partir do esteretipo, que os leva a ter vergonha da pobreza e a ocultar a sua situao scio-econmica, e esclarecer as razes individuais e sociais da existncia da pobreza e da misria so algumas atividades de reelaborao do estigma.

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    Ana Clia da Silva

    Redesenhar as ilustraes onde o pobre aparece como miservel a partir da vivncia do aluno pobre, que tem casa, pais trabalhando, estuda, tem roupas e acessrios e est presente na sala de aula contrapor-se representao,

    contrastando-a com a realidade concreta.

    Reconstruindo o conceito de minoria negra

    A invisibilidade e a reduzida representao do negro no livro didtico constroem a iluso da no existncia e da condio de minoria do segmento negro, mesmo nas regies onde ele constitui maioria.

    Nas ilustraes de grupos e multides o elemento negro minoritrio.

    A condio de representante da espcie do branco tambm aparece na ilustrao, atravs da composio de grupos e multides, que so majoritria ou exclusivamente brancos, segundo Rosemberg (op. cit., p. 82).

    O professor pode estabelecer a comparao entre a ilustrao e a realidade do aluno, solicitando que este redesenhe a ilustrao de acordo com a realidade da sala de aula, do ptio da escola, do bairro, da rua onde mora, etc.

    Nos estados onde o negro minoria, apresentar os estados e regies onde ele maioria; discutir por que est concentrado nesses estados e regies, e

    qual a sua contribuio scio-econmica nesses locais.

    Corrigindo a auto-rejeio

    Os esteretipos, a representao parcial e minimizada da realidade, conduzem o estereotipado e representado, em grande parte, auto-rejeio, construo de uma baixa auto-estima, rejeio ao seu assemelhado, conduzindo-o procura dos valores representados como universais, na iluso de tornar-se aquele outro e de libertar-se da dominao e inferiorizao.

    Os sinais da auto-rejeio so visveis nos descendentes de africanos, bem como nos descendentes de indgenas aculturados na Amrica Latina.

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    A desconstruo da discriminao no livro didtico

    Fanon (1984) relata, em sua obra, a recusa dos martinicanos sua cor, uma vez que internalizaram os valores franceses, assim como a iluso de serem tambm brancos e franceses.

    As mil formas de fazer o negro odiar a sua cor so veiculadas habilmente, dissimuladamente.

    O produto da internalizao dos esteretipos recalcadores da identidade tnico-racial, a auto-rejeio e a rejeio ao outro seu igual, so apontados pela sociedade como racismo do negro.

    A vtima do racismo torna-se o ru, o executor; e o autor da trama sai isento e acusador.

    Todas as aparies do negro nos livros aqui citadas podem conduzi-lo a auto-rejeitar-se, bem como ao outro seu assemelhado.

    As denominaes e associaes negativas em relao cor preta podem levar as crianas negras, por associao, a sentirem horror sua pele negra, procurando vrias formas de literalmente se verem livres dela, procurando a salvaono branqueamento.

    Guimares (1988, p. 71), numa narrativa biogrfica, ilustra uma dessas tentativas:

    A idia me surgiu quando minha me pegou o preparado e com ele se ps a tirar da panela o carvo grudado no fundo.(...) eu juntei o p restante e com ele esfreguei a barriga da perna. Esfreguei, esfreguei e vi que, diante de tanta dor; era impossvel tirar todo o negro da pele.

    Identificar e corrigir a ideologia, ensinar que a diferena pode ser bela, que a diversidade enriquecedora e no sinnimo de desigualdade, um dos passos para a reconstruo da auto-estima, do auto-conceito, da cidadania e da abertura para o acolhimento dos valores das diversas culturas presentes na sociedade.

    A ttulo de exemplo, apresento um trabalho de reconstruo realizado

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    Ana Clia da Silva

    em pesquisa anteriormente citada, que se revelou bela e criativa no desfazer o recalque da cor.

    Texto original:

    A Borboleta

    De manh bem cedoUma borboletaSaiu do casuloEra parda e preta.

    Foi beber no audeViu-se dentro da guaE se achou to feia Que morreu de mgoa.

    Ela no sabia boba! que Deus deu para cada bicho a cor que escolheu.

    Um anjo a levou, Deus ralhou com ela, Mas deu roupa nova Azul e amarela.

    (Odilo Costa Filho, In: CEGALLA, 1980, p. 12)

    O texto corrigido ficou assim:

    Foi beber no aude Viu-se dentro da gua Sentiu-se nix, e bano, Azeviche e jabuticaba.

    A entendeu,To linda que era, por que as crianas, queriam peg-Ia,pra brincar com ela.

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    A desconstruo da discriminao no livro didtico

    Na relao entre professor, conhecimento e aluno, existe a possibilidade de apreenso da dissonncia causada pelo esteretipo e de sua correo, atravs de atividades crtico-criativas.

    Temos a certeza de que os professores, devidamente orientados nessa direo, caminharo no rumo certo do resgate da identidade, auto-estima,

    cidadania e integrao das diferenas.

    Consideraes finais

    Acredito que possvel formar o professor de Ensino Fundamental, no sentido de utilizar de forma crtica o livro didtico, transformando esse livro em um instrumento gerador de conscincia crtica.A desconstruo da ideologia que desumaniza e desqualifica pode contribuir para o processo de reconstruo da identidade tnico/racial e auto-estima dos afro-descendentes, passo fundamental para a aquisio dos direitos de cidadania.

    A desconstruo da ideologia abre a possibilidade do reconhecimento e aceitao dos valores culturais prprios, bem como a sua aceitao por indivduos e grupos sociais pertencentes a outras raas/ etnias, facilitando as trocas interculturais na escola e na sociedade.

    Corrigir o estigma da desigualdade atribudo s diferenas constitui-se em tarefa de todos e j so numerosos os que contribuem para atingir esse objetivo.

    A presena do Movimento Negro, nessa tarefa, recontando a histria do negro na frica e no Brasil, desde a formao de grupos organizados h sculos, reivindicando educao para os negros por meio de manifestos, teatro, msica e ao sistemtica junto aos rgos de ensino, no pode ser esquecida.

    A aproximao das escolas com o Movimento Negro, que j possui uma larga experincia nesse trabalho de reconstruo e reposio do processo histrico-cultural dos afro-descendentes na educao, possibilitou a insero, nos currculos de muitas escolas brasileiras, da tradio cultural e histrica desse povo. E torna-se mais necessria agora, que o tema transversal Plural

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    Ana Clia da Silva

    idade Cultural introduzido nos currculos para professores que, em sua maioria, no receberam uma formao adequada para desenvolv-lo.

    Com a certeza de que, por sua importncia, esse tema, bem como os demais temas transversais, tornar-se-o constituintes dos currculos e possibilitaro em breve a participao de todos na tarefa de promover o amor a si e ao prximo, estamos dando e apontando os primeiros passos.

    Como escreveu Steve Biko, o primeiro passo fazer com que o negro se encontre a si mesmo, insuflar novamente a vida em sua casca vazia, infundindo nele o orgulho e a dignidade.

  • 35

    A desconstruo da discriminao no livro didtico

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    ANDRADE, lnaldete Pinheiro de. Cinco cantigas para voc cantar. Recife-PE: Centro de Cultura Luiz Freire, 1989.

    BARBOSA, Mrcio. Tranado. Estudos Afro-Asiticos, n 9, p. 50.

    BIKO, Steve. Escrevo o que eu quero. Traduo Grupo solidrio So Domingos. So Paulo: Editora tica, 1990.

    BRASIL, Iara. Caminho Certo.3 srie, 11 edio. So Paulo: Ed. do Brasil, 1983.

    CADERNOS de Educao do Projeto de Extenso Pedaggica do bloco

    Afro Yl Aiy. Rua do Curuzu, 197, Liberdade, 40365-000, Telefax (071)

    241-4969, e-mail [email protected].

    CADERNOS de Educao Popular. Centro de Educao e Cultura Popular

    - CECUP. Edifcio Brulio Xavier, sala 1506, 12 andar, Rua Chile,Cep

    40.020000, Salvador-BA, Fax (071) 321-2604, e-mail [email protected].

    CARDOSO, Edson Lopes. Bruxas, espritos e outros bichos. Belo Horizonte: Mazza Edies, 1992.

    CARTILHA do CEDENPA Centro de Estudos e Defesa do Negro do Par.

    Rua dos Timbiras, bairro da Cremao, Cx. Postal n 947. Belm/PA.

    CEGALLA, Domingos. Aprenda Comigo. 2 srie, So Paulo: Ed. Nacional, 1980.

    FANON, Franz. Pele negra, mscaras brancas. Traduo de Maria Adriana da Silva Caldas. Rio de Janeiro: Editora Fator, 1983.

    GIROUX, Henry. Pedagogia radical. So Paulo: Cortez Editora, 1984.

    GUIMARES, Geni Mariano. Leite do peito. So Paulo: Fundao Nestl de Cultura, 1988.

    HISTRIA do negro no Brasil (palestras do historiador Joel Rufino).

    Centro de Cultura Negra do Maranho CCN. Rua Guarani, s/n, Bars,

    Joo Paulo, Cx. Postal 430, So Luis-MA.

    LUZ, Narcimria Correia do Patrocnio. Insurgncia negra e a pedagogia do embranquecimento. Salvador-BA: FACED/UFBA, 1990 (Dissertao de Mestrado).

  • 36

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    NEVES, Dborah. Ciranda do Saber. 2a srie. So Paulo: Ed.IBEP, s/d.

    SRIE Pensamento Negro em Educao, (org.) Ivan Costa Lima e Jeruse

    Romo (org.). Ncleo de Estudos Negros - NEN Rua Joo Pinto, 30, Ed. J

    oana de Gusmo, sala 303, CEP 88.010-420, Centro, Florianpolis (SC),

    fone (048)224-0769, e-mail [email protected].

    PROGRAMA A Cor da Bahia. Antropologia Social/Relaes raciais.

    Vinculado ao Mestrado em Sociologia da Faculdade de Filosofia e Cincias

    Humanas da Universidade Federal da Bahia.

    ROSEMBERG, Flvia. Literatura infantil e ideologia. So Paulo: Global Editora, 1985.

    SILVA, Ana Clia da. Esteretipos e preconceitos em relao ao negro no

    livro de Comunicao e Expresso de 1 grau, nvel I. Projeto de pesquisa.

    Cadernos de Pesquisa. Fundao Carlos Chagas, n 63, 96-98, So Paulo, 1987, p.96-98.

    ________. A Discriminao racial nos livros didticos. Educao e discriminao dos negros.Belo Horizonte: MEC/FAE/ IRHJP, 1988, p.91-96.

    ________. Ideologia do embranquecimento. Identidade negra e educao. Salvador-BA: Ianam, 1989.

    ________. SE ELES FAZEM EU DESFAO: uma proposta de reverso

    dos esteretipos em relao ao negro no livro didtico. Centro de Estudos

    Afro Asiticos do Complexo Universitrio Cndido Mendes, Rio de

    Janeiro, 1992 (relatrio de pesquisa).

    ________. A Discriminao do negro no livro didtico. Salvador-BA: EDUFBA/CEAO, 1995.

    ________. Quilombo dos Palmares: uma proposta centenria de sociedade

    alternativa. Revista da FAEEBA, n 4, 173-182, Salvador-BA, jul./dez., 1995.

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  • 37

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    ________. Ideologia do embranquecimento na educao brasileira e

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    Extenso Cultural do Yl Aiy, 1996.

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    O pensamento negro em educao no Brasil: expresses do Movimento negro. So Carlos-SP: Editora da UFSCar, 1997. p.31-39.

    SILVA, Jnatas Conceio da. Histria de lutas negras: memria do

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    SOUZA, Neuza Santos. Tornar-se negro. Rio de Janeiro: Graal, 1983.

  • 39

    HISTRIA E CONCEITOS BSICOS SOBRE O RACISMO E SEUS DERIVADOS

    Antnio Olmpio de Sant AnaEspecialista em Educao.

    Mestre em Teologia pela Universidade da Rainha Kingston, Ontrio/Canad.

    1. Introduo

    Prezado(a) professor(a), as relaes raciais so um dos temas mais complexos dos dias atuais, e o racismo, como ele se apresenta hoje, um fenmeno relativamente novo. bom lembrar que nos tempos primitivos, at por volta da Idade Mdia, a discriminao baseava-se em fatores religiosos, polticos, nacionalidade e na linguagem, e no em diferenas biolgicas ou raciais como acontece hoje. Era o fiel contra o pago, o cristo contra o muulmano ou mesmo contra o judeu. Observe, portanto, que o motivo era religioso, de nacionalidade, etc, mas nunca racial.

    2. Analisar o passado para entender o presente

    Antes de retomar ao passado distante para localizar a origem do racismo, hoje to forte em nosso meio, vamos a uma pergunta bem pessoal: voc, professor(a), j foi alguma vez discriminado(a) por ser negro(a) ou devido sua origem tnica ou religiosa? Ou por ser mulher, deficiente, gordo(a)? Como se sentiu? D para voc imaginar o que acontece em sua sala de aula no que se refere discriminao e ao preconceito? Pense um pouco...

    Vamos pensar nas pessoas negras, as maiores vtimas do racismo em nossa sociedade (que inclui a sua sala de aula, no se esquea).Voc j pensou quantos(as) de seus(uas) alunos(as) negros(as) passam por essa dolorosa experincia diariamente? Voc tem uma idia das conseqncias dessa desagradvel experincia para os seus alunos discriminados? E voc, j imaginou o quo importante voc se colocar como parte da soluo, fortalecendo o dilogo franco e esclarecedor entre os seus(suas) alunos(as),

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    Antnio Olmpio de Sant Ana

    objetivando diminuir e/ou acabar com a prtica do racismo, reforando a auto-estima dos (as) mesmos(as) em sua sala, em sua escola, na sua comunidade?

    Todos ns sabemos que o racismo muito forte nos dias atuais, mas tambm cresce o nvel de conscincia de que o racismo malfico e precisa ser combatido, denunciado e eliminado. E a sua postura crtica como professor diante desta luta e denncia de fundamental importncia. A mdia est anunciando a priso desse(a) ou daquele(a) cidado() que discrimina o (a) outro(a).Mas a impunidade neste pas to grande que muitas pessoas ainda no perceberam que existe uma lei severa (se cumprida), que protege a todo(a) e qualquer cidado() vtima da discriminao racial ou tnica ou de qualquer tipo de preconceito.

    Quando um(a) aluno(a), professor ou professora, ou mesmo a administrao, dentro ou fora da escola, da sala de aula, inadvertida ou propositadamente discrimina algum, ele ou ela participa de uma prtica que nasceu na Europa no sculo XV. E, desde ento, tem gerado dor, tristeza, sofrimento e morte para milhes de seres humanos por causa da cor de sua pele ou devido sua origem tnica.

    No momento de dilogo especfico com a sua classe, ou informalmente, com toda certeza, alguns de seus alunos mais curiosos podero perguntar: qual a origem do racismo e de suas manifestaes diretas como a discriminao, o preconceito, a segregao, os esteretipos, hoje to arraigados no comportamento dirio de milhes de brasileiros? E o aluno negro poder perguntar: por que os racistas vivem pegando no p de todos ns que somos negros? Por qu?

    No d para fugir da curiosidade dos alunos e nem aconselhvel camuflar as respostas. O jeito enfrentar a questo de frente.

    A seguir, ns aportaremos algumas informaes bsicas que objetivam facilitar a sua tarefa no dilogo com os(as) seus (uas) alunos(as) sobre racismo, preconceito e discriminao.

    Quando qualquer pessoa no Brasil fala em racismo, qual imagem humana que geralmente lhe vem logo de cara mente? Acertou: a do negro. Por que isso acontece? Por que o negro a vtima maior do racismo

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    Histria e conceitos bsicos sobre o racismo e seus derivados

    praticado neste imenso pas? Existe alguma relao entre a escravido imposta ao negro e o racismo sofrido por ele?

    Um grande estudioso deste assunto chamado Ben Marais, em sua obra Racismo e Sociedade, declara que

    h uma relao muito prxima entre o escravido a que foram submetidos os negros e a recusa s pessoas de cor negra... O estigma em relao aos negros tem sido reforado pelos interesses econmicos e sociais que levaram os povos negros escravido. Da o negro ter se convertido em smbolo de sujeio e de inferioridade.E este conceito negativo sobre o negro foi forjado (RUIZ, 1988, p. 100).

    De acordo com Marais,

    Quando os primeiros europeus desembarcaram na costa africana em meados do sculo XV, a organizao poltica dos Estados Africanos j tinha atingido um nvel de aperfeioamento muito alto. As monarquias eram constitudas por um conselho popular no qual as diferentes camadas sociais eram representadas. A ordem social e moral equivalia poltica. Em contrapartida, o desenvolvimento tcnico, includa a tecnologia de guerra, era menos acentuado. Isto pode ser explicado pelas condies ecolgicas, scio-econmicas e histricas da frica daquela poca, e no biologicamente, como queriam os falsos cientistas (Munanga, 1986, p. 8).

    Essa viso errnea e interpretao falsa, produzida para favorecer os colonialistas brancos europeus, ser analisada rapidamente a seguir.

    2.1. Racismo no passado

    O racismo a pior forma de discriminao porque o discriminado no pode mudar as caractersticas raciais que a natureza lhe deu. E

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    a discriminao racial como ela se apresenta hoje relativamente recente. No havia preconceito racial antes do sculo XV e o grande lder africano Leopold Senghor afirma que o racismo etnocentrismo carregado de diferenas raciais, reais ou imaginrias no tem mais de quatro sculos(Memmi apud PEREIRA, 1978, p. 22). De acordo com essa linha de raciocnio:

    O racismo, como ideologia elaborada, fruto da cincia europia a servio da dominao sobre a Amrica, sia e frica. A ideologia racista se manifesta a partir do trfico escravo, mas adquire o status de teoria aps a revoluo industrial europia. Aim Csaire, em seu Discurso sobre o Colonianismo, escrito no imediato do ps-guerra, salienta que Cortez e Pizarro pilhavam e matavam na conquista da Amrica, mas que nunca afirmaram ser mandatrios de uma ordem superior...os hipcritas s vieram mais tarde (Ibidem).

    E estes hipcritas so todos aqueles que propuseram a inqua equao aceita na poca: cristianismo=civilizao e paganismo=selvageria. Esta desonesta conjugao gerou dramticas conseqncias coloniais e racistas, provocando saques s propriedades, estupros, assassinatos em massa, muita dor e sofrimento em milhes de pessoas nas Amricas, na sia e, principalmente, na frica. Desde o sculo XV, milhes de pginas em tratados, ensaios, monografias, teses, etc., foram escritas para sustentar o insustentvel: o racismo como uma prtica necessria e justificvel.

    2.2. O racismo no passado e alguns de seus mais importantes antecedentes

    O racismo no surgiu de uma hora para outra. Ele fruto de um longo processo de amadurecimento, objetivando usar a mo-de-obra barata atravs da explorao dos povos colonizados. Explorao que gerava riqueza e poder, sem nenhum custo-extra para o branco colonizador e opressor.

    O racismo entre os seres humanos foi surgindo e se consolidando aos poucos. Vamos compartilhar, a partir de agora, alguns dados interessantes

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    que nos ajudaro a entender a prtica do racismo nos dias atuais. bom lembrar sempre que a cultura popular sobrevive aos tempos porque ela transmitida atravs das geraes. E sendo o racismo um fenmeno ideolgico, ele se consolida atravs dos preconceitos, discriminaes e esteretipos. D para entender agora por que o racismo tem sobrevivido e foi se fortalecendo atravs das pocas, alcanando, inclusive a sua comunidade, a sua escola, a sua sala de aula? E, se de tudo voc achar que em sua sala de aula no existe qualquer tipo de discriminao ou preconceito, leia as informaes preparadas especialmente para a sua consulta; d um tempo, observe o comportamento de seus alunos a esse respeito e depois reavalie a sua opinio.

    Vamos compartilhar alguns dados interessantes:

    2.2.1. Na Grcia antiga tinha-se como certo e definido que todos aqueles que no pertencessem sua raa eram classificados como brbaros. E de Herdoto a afirmao que os persas consideravam-se a si mesmos superiores ao resto da humanidade.

    2.2.2. Aristteles dizia que

    uma parte dos homens nasceu forte e, resistente, destinada

    expressamente pela natureza para o trabalho duro e forado.

    A outra parte os senhores, nasceu sicamente dbil;

    contudo, possuidora de dotes artsticos, capacitada, assim,

    para fazer grandes progressos nas cincias los cas e outras

    (GRIGULEVICH, 1983, p. 105).

    Essa hiptese foi usada no sculo XV; como veremos adiante, para justificar a escravidos dos indgenas e dos negros.

    2.2.3. Ccero, contradizendo Aristteles, dizia que os homens diferem em conhecimento, mas so todos iguais na capacidade de aprender; no h nenhuma raa que, guiada pela razo, no possa chegar excelncia(COMAS, 1970, p. 135).

    2.2.4. Fundamentos doutrinrios e cientficos do racismo Foi na Idade

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    Mdia que se deu uma forte discusso a partir do intelectuais ligados Igreja Catlica Romana a respeito da superioridade, de uma raa sobre a outra, lanando as fortes bases do racismo moderno.

    Muitas pessoas, hoje, devido ao equvoco doutrinrio e teolgico cometido por idelogos e religiosos do passado, inadvertidamente, afirmam que h racismo na Bblia. Outro equvoco: o que houve e continua existindo so as interpretaes falsas e equivocadas sobre os textos bblicos. A seguir, veremos como os idelogos e religiosos, a servio de interesses econmico e colonialistas da Idade Mdia, adequaram as afirmaes bblicas aos seu interesses, tanto assim que estas interpretaes no resistiram ao tempo mas as seqelas resultantes, estas sim, continuam fortes at os dias atuais

    Se voc perguntar se havia escravido na poca de Jesus, a resposta sim. Inclusive, em alguns dos seus conselhos ele usava a imagem do escravo e do senhor, mas isto no significava apoio escravido como tal. A mensagem bblica radicalmente contra a escravido e contra o racismo

    Para voc entender por que o racismo hoje muito forte, acompanhe este breve relato da evoluo das discusses, debates, produo de ensaios, tratados, monografias, teses, etc., produzidos desde o sculo XV, tentando provar a inferioridade do negro e do ndio diante do branco, supostamente a raa superior. Toda esta produo perdeu a sua validade doutrinria e cientfica, mas as seqelas permanecem, da entender porque persiste ainda hoje a prtica do racismo, da discriminao, dos preconceitos. Essas informaes podero ser usadas medida de sua necessidade ou convenincia. No nossa funo discutir o contedo desta produo racista, apenas mencion-Ia.

    2.2.4.1. Em 1510, o dominicano escocs John Major, segundo nos informa Juan Comas, declarou que a prpria ordem da natureza explica o fato de que alguns homens sejam livres e outros escravos. Esta distino deveria existir no interesse mesmo daqueles que esto destinados originalmente a comandar ou a obedecer (Idem, ibidem, p. 14).

    2.2.4.2. Em 1520, o telogo Paracelso nega que os amerndios fossem

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    descendentes de Ado e Eva, dando lugar a um intenso debate sobre a humanidade dos nossos irmos indgenas. A questo chegou a um tal grau de confuso que o Vaticano emitiu em 1537 a Bula Papal Sublimus Deus, na qual reconhecia o carter humano dos amerndios e pedia que a sua liberdade e seus bens fossem respeitados:

    Os ndios e todos os outros povos, caso sejam descobertos no futuro por cristos, no podem ser privados de sua liberdade e seus bens, apesar das afirmaes em contrrio, mesmo no sendo cristos; alm disso preciso que seja respeitada a sua liberdade e propriedade (GRIGULEVICH, op. cit., p. 104-105).

    sabido que os conquistadores ignoraram a recomendao do Papa Paulo III e continuaram a considerar os amerndios como escravos naturais, a partir da hiptese defendida por Aristteles (384-322 a.C.), conforme vimos no tem 2.2.2.(p.3, releia, por favor).

    2.2.4.3. Entre 1550 e 1551, ressurge o debate atravs do confronto entre dois padres. De um lado, Frei Juan Gins de Seplveda que, representando a ideologia colonialista, dizia que os indgenas tinham uma natureza inferior, sendo viciosa, irracional. Seplveda dizia que a relao que existia entre um espanhol e um ndio era a mesma que existia entre um homem e um macaco. Em outras palavras, ele comparava o ndio ao macaco, a um animal irracional. Com isso, ele queria dizer que os nossos irmos indgenas do passado tinham que ser conquistados, protegidos e tutelados. De outro lado, estava o Frei Bartolomeu de Las Casas que, demonstrando mais simpatia pelos indgenas, props a substituio destes pelos negros, afirmando serem estes mais fortes e adaptveis ao trabalho duro. E a sugesto de Las Casas foi fielmente seguida pelos conquistadores, incentivados e reforados pela teoria de Aristteles, que afirmava que algumas pessoas nasceram naturalmente para serem escravas e outras para serem livres:

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    Esta discusso teolgica foi-se estendendo a toda a humanidade, medida que as naes europias iam ampliando o seu domnio territorial at novas regies. J no bastava desumanizar e negar a humanidade aos ndgenas para justificar a conquista e a fortssima e deplorvel explorao dos mesmos. Havia, agora, de justificar o novo sistema escravista no qual envolveram os negros africanos, e mais tarde, os asiticos (DUNCAN, 1988, p. 23).

    No se esquea que estamos compartilhando dados histricos referentes ao sculo XV, reconhecido como o ponto de partida da discriminao racial, tendo os no brancos como alvo, sendo o negro e o indgena as duas grandes vtimas preferenciais dos colonizadores europeus racistas que, julgando-se superiores queles, os dominaram, destruindo as suas culturas e economia:

    A ignorncia em relao histria antiga dos negros, as diferenas culturais, os preconceitos tnicos entre duas raas que se confrontam pela primeira vez, tudo isso, mais as necessidades econmicas de explorao, predispuseram o esprito europeu a desfigurar completamente a personalidade moral do negro e suas aptides intelectuais. O negro torna-se, ento, sinnimo de ser primitivo, inferior, dotado de uma mentalidade pr-lgica (MUNANGA, 1986, p. 9).

    2.2.4.4. V. de Lapouge, um dos expoentes tericos dos racistas franceses, apresentava a histria da humanidade como uma luta entre as raas, na qual ficava evidente a superioridade da raa branca sobre a raa negra e a raa indgena.

    2.2.4.5. Por ocasio da invaso e conquista da Indochina, o primeiro-ministro Francs Jules Ferry afirmava descaradamente que as raas superiores tinham certos direitos frente s raas inferiores e era dever destas raas superiores civilizar as raas inferiores. E quem era a raa superior? A branca, evidentemente. E quem era a raa inferior? As no brancas, neste caso especfico, a asitica. E o que significava civilizar as raas inferiores?

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    Significava invadir, dominar, impor os costumes do invasor, promovendo uma cultura de submisso local para facilitar a dominao militar e poltica, contrabandear as riquezas dos dominados para a sede do imprio conquistador.

    2.2.4.6. J outro historiador francs, C. Seignobos, difundiu a idia de que os negros eram inferiores e precisavam de tutela e a orientao dos povos brancos, exatamente como as crianas precisavam dos adultos.

    3. Fortalecimento do colonialismo racista

    O sculo XIX foi o da consolidao das doutrinas racistas. Em 1815, as naes colonialistas Inglaterra, Frana e Alemanha reuniram-se em Viena para repartir o mundo conhecido da poca. Neste encontro nada se falou sobre o trfico de escravos. O representante do Papa, presente ao encontro, calou-se para no prejudicar os pases majoritariamente catlicos e praticantes da escravido negra.

    Em 1839, aps ser pressionado, o Papa Gregrio XV condena o trfico de escravos, mas no a escravido. Para ele a escravido no era um mal, desde que o senhor de escravo fosse bom. Imagine!

    Em 1835, Arthur de Gobineau produziu um conhecido tratado denominado Ensaio sobre a Desigualdade das Raas Humanas: Raas Branca, Amarela e Negra. O que caracterizava o seu Ensaio era a diviso que fazia da raa branca. Esta, segundo Gobineau, tinha trs sub-grupos: os arianos, que so os verdadeiros brancos e criadores da civilizao; os albinos de origem monglica; e os mediterrneos, de origem africana. Sustentava que se o poder permanecesse nas mos dos albinos e mediterrneos, a humanidade voltaria barbrie. Gobineau desejava provar com o seu Ensaio que a nobreza europia era ariana, descendente dos nrdicos. Ele via diferenas qualitativas entre os brancos, que justificavam o domnio da nobreza ariana sobre os demais brancos, que ele julgava pertencerem a setores inferiores. Portanto, racismo de classe, que justifica a posio de privilgio de uns sobre outros.

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    4. Catlicos romanos e protestantes mesma atitude diante do racismo

    Na realidade no h diferenas substantivas entre a conduta de idelogos e religiosos catlicos e protestantes na defesa de conceitos que fortalecessem o racismo no passado, propiciando a sua presena hoje, ainda forte, no imaginrio popular.

    Em meados do sculo XVIII, os sinos das igrejas de Bristol, na Inglaterra Anglicana, repicaram festivamente quando o parlamentar Wilbeforce no conseguiu aprovar uma lei que proibia o trfico de escravos, e eles tinham uma boa razo para isso, j que metodistas, batistas, moravos e anglicanos tinham escravos e eram defensores da escravido.

    J a Sociedade para a Propagao do Evangelho na Inglaterra proibiu a cristianizao de seus prprios escravos em Barbados, Caribe, por julg-los inferiores.

    O Rev.Thomas Thompson publicou em 1772 uma monografia onde procurou demonstrar a inferioridade do negro diante do branco, intitulada: O Comrcio dos Escravos Negros na Costa da frica de acordo com os Princpios Humanos e com as Leis Religiosas Reveladas.

    Em 1852, o Rev. J. Priest, conhecido etngrafo e fundador da Sociedade Antropolgica de Londres, publicou um tratado denominado A Bblia defende a escravido, onde a favor desta, usando uma suposta argumentao bblica favorvel. Na realidade, falsa.

    Em 1900, C.Carrol, em sua obra Provas Bblicas e Cientficas de que o Negro no Membro da Raa Humana, afirma que todas as pesquisas cientficas confirmam sua natureza caracteristicamente smia.

    Observa-se pelos tratados, ensaios, teses, etc., todos voltados para justificar a escravido, que dificilmente o negro deixaria de ser alvo do racismo nos dias atuais. Alguns desses trabalhos tiveram grande aceitao nos meios interessados em justificar a escravido do negro e do ndio, mas tambm nas camadas populares, que de uma maneira ou de outra se beneficiavam com a suposta inferioridade do negro e do ndio, transformados em escravos.

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    Histria e conceitos bsicos sobre o racismo e seus derivados

    Cremos que os dados histricos at aqui resumidos j permitem compreender um pouco mais o motivo da existncia de uma prtica racista, to difundida nas nossas relaes interpessoais, com um destaque especial para a situao do negro, vtima maior do racismo praticado no Brasil.

    Resumindo este bloco de informaes, poderamos dizer que no h dvida de que a produo de tantos ensaios, tratados e teses para justificar a escravido deixou as suas malficas conseqncias, principalmente para os negros, que foram e so as vtimas maiores de uma conspirao histrica que ainda perdura em nosso dia-a-dia.

    Tem-se a impresso de que o negro e o ndio foram vtimas de uma conspirao bem planejada durantes todos esses sculos, onde foram elaboradas doutrinas com falsa base bblica e filosfica, bem como tentativas de comprovao de teorias com uma falsa base cientfica, que no resistiram ao tempo. Mas as marcas do racismo e suas malficas conseqncias permaneceram, j que estes preconceitos sobrevivem s geraes. A discriminao e o preconceito foram se fortalecendo no dia-a-dia, criando fortssimas razes no imaginrio popular, chegando ao ponto no qual nos encontramos hoje. O racismo tomou-se uma ideologia bem elaborada, sendo fruto da cincia europia a servio da dominao sobre a Amrica, sia e frica. E esta ideologia racista ganha fora a partir da escravido negra, adquirindo estatuto de teoria aps a revoluo industrial europia.

    5. Pesquisas revelam o tipo de discriminao na escola

    A estas alturas, voc j se deve ter perguntado a si mesmo(a): ser que na minha sala de aula pratica-se a discriminao racial e tnica? Esta uma resposta que somente voc pode dar.

    O racismo uma prtica diria e difundida. Ele onipresente e forte. Como este racismo se manifesta em nossas escolas? Antes de conceituar as palavras-chave que revelam e/ou descrevem comportamentos classificados como discriminatrios, preconceituosos, vamos resumir os resultados de duas diferentes pesquisas feitas em nossas escolas e em livros didticos.

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    Quando falamos em discriminao tnico-racial nas escolas, certamente estamos falando de prticas discriminatrias, preconceituosas, que envolvem um universo composto de relaes raciais pessoais entre os estudantes, professores, direo da escola, mas tambm o forte racismo repassado atravs dos livros didticos. No nos esquecendo, ainda, do racismo institucional, refletido atravs de polticas educacionais que afetam negativamente o negro.

    Pesquisas feitas nos ltimos 10 anos mostram com muita objetividade, por onde passa esta discriminao tnico-racial nas nossas escolas. Aportaremos, a seguir, resumidamente, o resultado de pesquisas, feitas em trs diferentes reas, por duas diferentes pesquisadoras que, usando mtodos diversos, chegaram praticamente ao mesmo resultado. O repasse destes resultados objetiva municiar os professores com dados retirados da realidade vivida pelos alunos negros e de outras etnias, espalhados pelas escolas pblicas e/ou particulares deste imenso pas.

    As pesquisas compartilhadas a seguir revelam o racismo anti-negro que est presente em todo o pas. O racismo anti-negro est intimamente relacionado cor de sua pele. Mas o negro no a nica vtima do racismo neste imenso Brasil. O nosso pas tem a honra de receber muitos imigrantes, provenientes de diversas partes do mundo, inclusive algumas onde as vrias etnias locais tm, historicamente, travado violentos choques entre si. Se voc professor em regies onde estas etnias se concentraram, possivelmente h tenses raciais herdadas por seus descendentes. Observe.

    Vamos s pesquisas.

    5.1. PRIMEIRA PESQUISA: Esteretipos e Preconceitos em Relao ao Negro no Livro de Comunicao e Expresso de 1 grau, nvel 1 (1 4 sries)

    Pesquisadora responsvel: Professora Ana Clia da Silva, da Universidade Federal da Bahia.

    A pesquisa tinha como objetivo investigar a existncia de esteretipos e preconceitos em relao ao negro no livro didtico e a percepo do professor quanto sua existncia e o seu papel de mediador dos mesmos (SILVA, 1987, p. 91-98).

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    Universo investigado: 82 livros didticos utilizados em 22 escolas do bairro da Liberdade, Salvador, Bahia.

    Questionrios foram aplicados aos professores destas 22 escolas para obteno do universo pesquisado: 82 livros utilizados. Deste, extraiu-se uma amostra de 16 livros que se destacaram pela incidncia significativa de esteretipos e preconceitos.Uma segunda amostra foi constituda pelos professores que utilizaram os livros da 1 amostra nos anos de 1984, 1985 e 1986. Estes livros foram analisados quantitativa e qualitativamente atravs de tcnicas de anlise de contedo, bem como de dados obtidos de entrevistas com os professores constituintes da 2 amostra.

    Algumas concluses significativas da pesquisa

    Constatou-se a existncia de uma ideologia da inferiorizao do negro que fortalecida na escola atravs do livro didtico e do professor, sob a forma de esteretipos e preconceitos.

    Constatou-se, tambm, que o professor, figura importantssima na educao do aluno, lamentavelmente, no percebeu a presena destes esteretipos e preconceitos, bem como o importantssimo papel que exerce como o grande mediador no processo ideolgico, reforando a transmisso destes esteretipos e preconceitos.

    5.2. SEGUNDA PESQUISA: Preconceito Racial na Escola/1988.

    Pesquisadora responsvel: Vera Moreira Figueira, pesquisadora do Arquivo Nacional, Rio.

    Esta pesquisa teve como objetivo demonstrar a existncia do preconceito racial na escola, correlacionado-o com outros dois agentes internos atuantes na instituio: o professor e o livro didtico, comprovando, assim, a existncia de um ciclo capaz de embutir e reproduzir o preconceito racial junto ao alunado (FIGUEIRA, 1990, p. 63-73).

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    Pesquisa de campo com trs etapas:

    Primeira etapa: Verificao da intensidade da ocorrncia da prtica do preconceito racial junto aos alunos das escolas pblicas do Rio de Janeiro

    Segunda etapa: Verificao do comportamento dos professores, suas concepes sobre a raa negra, seu conhecimento histrico a respeito da contribuio do negro sociedade brasileira, suas opinies sobre as atitudes dos demais professores frente aos negros.

    Terceira etapa: Anlise de uma srie de pesquisas relacionadas aos contedos dos livros didticos, tendo como meta extrair uma sntese de concluses em torno de vrios autores.

    Populao atingida: 442 alunos da rede de ensino pblico, sendo 238 estudantes brancos, 121 pardos e 83 negros.

    A metodologia consistiu em entrevistas individuais, nas quais eram mostradas vrias fotografias a cada estudante, algumas pessoas negras (pretas, no pardas), outras brancas. Ao entrevistado era dito que aquelas pessoas mostradas nas fotos faziam parte do seu cotidiano, no caso, a sala de aula. Em seguida, pedia-se ao entrevistado que escolhesse entre estes colegas fictcios, qual gostaria que fosse seu melhor amigo, qual a mais simptica, a mais feia, a mais inteligente, etc.. Em seguida, foram introduzidas fotos de homens e mulheres adultos, brancos e negros, pedindo ao entrevistado que se situasse neste mundo de adultos.

    As respostas foram agrupadas em dois blocos: aquelas que exprimem qualidades socialmente positivas e as que exprimem qualidades socialmente negativas. Constatou-se que as qualidades socialmente positivas so atribudas aos brancos: amigo, simptico, estudioso, inteligente, bonito, rico, sempre acima de 75% das indicaes, exceto a qualidade simptico, que teve como ndice, 50%. Por complementaridade, as qualidades negativas so francamente atribudas aos negros, com percentagens muito elevadas: burro, feio, porco, grande ladro, pequeno ladro. Esta seleo espontnea um forte indicador da existncia de uma opinio generalizada, afirma a pesquisadora, sobre a inferioridade do negro e a superioridade do

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    Histria e conceitos bsicos sobre o racismo e seus derivados

    branco. Para a maioria dos entrevistados, preferencialmente os brancos detm qualidades bem aceitas socialmente e os negros concentram aquelas socialmente marginalizadas pela sociedade.

    TABELA 1QUALIDADES POSITIVAS

    (PREFERNCIA POR BRANCOS)

    Amigo 76,2%Simptico 50%Estudioso 75,3%Inteligente 81,4%Bonito 95%Rico 94,6%

    TABELA 2QUALIDADES NEGATIVAS

    (PREFERNCIA POR NEGROS)

    Burro 82,1%

    Feio 90,3%

    Porco 84,4%

    Grande ladro 79,6%

    Por outro lado, segundo os dados coletados pela pesquisa, no que se refere s possibilidades de mobilidade ocupacional para brancos e negros, os entrevistados mostraram-se pouco receptivos ao negro. A entrevistadora solicitou ao estudante que indicasse quem escolheria para ocupar as profisses sugeridas a partir das fotos que tinha em mo. O entrevistado agiria como se fosse um dono de fbrica, tendo, portanto, o poder final para decidir sobre este ou aquele. O resultado indicou que as profisses de status ocupacional alto so consideradas prprias aos brancos e as de status ocupacional baixo aos negros.

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    Antnio Olmpio de Sant Ana

    TABELA 3POSSIBILIDADE DE MOBILIDADE OCUPACIONAL

    Preferncia por brancos Preferncia por negros

    Engenheiro 85,4% 14,5%

    Mdico 92,2% 7,8%

    Faxineiro 15,5% 84,4%

    Cozinheira 15,5% 84,4%

    A pesquisa constatou que em outro tipo de relacionamento os entrevistados mostraram-se tendenciosos no que se refere possibilidade da miscigeno racial. De posse de fotos de brancos e negros, pediu-se-lhes que escolhessem duas pessoas para formar um casal. Abaixo temos o resultado indicando o padro de preferncia.

    TABELA 4RECEPTIVIDADE MISCIGENAO RACIAL(PREFERNCIA POR TIPOS DE CASAMENTO)

    Homem branco/mulher branca 73,7 %

    Homem negro/mulher negra 19,2 %

    Casais mistos 9,0 %

    A pesquisadora Vera Moreira Figueira chama a ateno para uma segunda interpretao acima, j que a primeira

    diz respeito receptividade com relao miscigenao racial muito baixa, pois apenas 9% dos entrevistados optam por casais mistos, ou seja, homem e mulher de cores diferentes. Uma segunda interpretao vem tona quando comparados os resultados atinentes aos casamentos entre brancos e entre negros, separadamente. Constata-se que a instituio casamento nitidamente atribuda a pessoas de cor branca, pois somente 19,2% dos casamentos so realizados entre negros. Tal dado

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    Histria e conceitos bsicos sobre o racismo e seus derivados

    sugere que os entrevistados pensam a famlia negra como menos estruturada do que a famlia branca. Em termos gerais, e sintetizando as tabelas apresentadas, todos os dados acima mencionados deixam claro que a intensidade do preconceito racial bastante alta, uma vez que os percentuais alcanados pelo negro nas qualidades negativas, nas profisses de baixo status ocupacional ou na pouca integrao s relaes matrimoniais so sempre altos e recorrentes.

    A viso do professor

    Vera Moreira Figueiras analisa tambm a postura do professor por ser ele aquele que transmite, a partir de sua condio de autoridade central na sala de aula, conceitos que sero absorvidos pelos alunos como conhecimento cientfico, conhecimento verdadeiro. Por tal motivo, estudar a formao do professor, no que toca a sua viso sobre o negro, crucial para se perceber em que medida a escola est p