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SUMÁRIO INTRODUÇÃO CAPITULO I – A LOUCURA E O PENSAMENTO DO FORA..........................................1 1.1 A Loucura e o pensamento do Fora. 1.2 Uma aparelhagem complexa CAPÍTULO II – MEDICALIZAÇÃO DA LOUCURA E INSTITUIÇÕES MÉDICAS NO BRASIL.................................................................................................................................16 2.1 O primeiro estandarte da Medicina Mental 2.2 O caráter burocrático da teorização psiquiátrica no início do séc. XIX 2.3 Esquirol 2.4 O estatuto de doença mental da loucura 2.5 O adão degenerado de Morel CAPÍTULO III – A FORMA E A OBRA DA PSIQUIATRIA : O HOSPÍCIO NOSSA SENHORA DA LUZ E A NOVA TECNOLOGIA ASILAR..............................................33 3.1 O meio urbano tematizado pela Medicina Social 3.2 Um espaço caótico, um vazio terapêutico: assistência filantrópica nas Santas Casas de Misericórdia 3.3 Um modelo que destrói suas próprias estruturas : curar o louco era necesário 3.4 D. Alberto Gonçalvez, um empreendedor: a construção do hospício Nossa Senhora da Luz 3.5 Internar... CONCLUSÃO......................................................................................................................65 ANEXOS...............................................................................................................................69 FONTES................................................................................................................................71 REFERÊNCIASBIBLIOGRÁFICAS...................................................................................73

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Page 1: SUMÁRIO - historia.ufpr.br · A casa dos loucos. In: Microfísica do Poder . Rio de Janeiro: Graal, 1979.Pp. 119-123. CAPÍTULO I A LOUCURA E O PENSAMENTO DO FORA A loucura e o pensamento

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO CAPITULO I – A LOUCURA E O PENSAMENTO DO FORA..........................................1

1.1 A Loucura e o pensamento do Fora. 1.2 Uma aparelhagem complexa

CAPÍTULO II – MEDICALIZAÇÃO DA LOUCURA E INSTITUIÇÕES MÉDICAS NO BRASIL.................................................................................................................................16 2.1 O primeiro estandarte da Medicina Mental 2.2 O caráter burocrático da teorização psiquiátrica no início do séc. XIX 2.3 Esquirol 2.4 O estatuto de doença mental da loucura

2.5 O adão degenerado de Morel CAPÍTULO III – A FORMA E A OBRA DA PSIQUIATRIA : O HOSPÍCIO NOSSA SENHORA DA LUZ E A NOVA TECNOLOGIA ASILAR..............................................33 3.1 O meio urbano tematizado pela Medicina Social 3.2 Um espaço caótico, um vazio terapêutico: assistência filantrópica nas Santas Casas de Misericórdia 3.3 Um modelo que destrói suas próprias estruturas : curar o louco era necesário 3.4 D. Alberto Gonçalvez, um empreendedor: a construção do hospício Nossa Senhora da Luz 3.5 Internar... CONCLUSÃO......................................................................................................................65 ANEXOS...............................................................................................................................69 FONTES................................................................................................................................71 REFERÊNCIASBIBLIOGRÁFICAS...................................................................................73

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INTRODUÇÃO A presente monografia é fruto da pesquisa que realizei a respeito de um hospício

construído em Curitiba em fins do séc. XIX e início do XX: o Hospício Nossa Senhora da

Luz. Inaugurado em 1903, por D. Alberto Gonçalvez, esse hospício foi o primeiro no

Paraná. Rodolfo Lemos, um dos poucos psiquiatras com que a cidade contatava naquela

época, foi diretor da instituição entre 1903-1918. É desse período que trata a maior parte

dos problemas levantados aqui.

Este estudo só foi possível porque , há um pouco mais de um ano, conheci o

trabalho de um historiador ligado ao Instituto Histórico e Geográfico Paranaense, Herberth

Munhoz van Erven. O livro de Munhoz van Erven, uma monografia de um pouco mais de

30 páginas intitulado Contribuição ao Histórico do Hospital da Nossa Senhora da Luz, 1

publicado em 1944 e hoje esgotado, foi o primeiro contato com o objeto de pesquisa da

presente monografia.

Com seu estilo rebuscado mas objetivo, o Histórico de Munhoz van Erven ofereceu-

me pistas e indicou-me fontes para o desenvolvimento da investigação histórica, mesmo

que, ao longo de minha pesquisa, eu tenha distanciado bastante de suas idéias. 2

Meu interesse por essa instituição tornou-se em pesquisa quando tive acesso à boa

parte da documentação da Santa Casa de Misericórdia na Divisão Paranaense da Biblioteca

Pública do Paraná.

O que se impôs no início era tentar analisar a relação entre a construção do primeiro

hospital psiquiátrico paranaense com o surgimento da Psiquiatria no Paraná. Certamente, o

Hospício Nossa Senhora da Luz é um foco privilegiado para esse tipo de análise. No final

do séc. XIX e início do séc. XX, o sistema asilar se moldou em torno dessa instituição.

Mas, no final do séc. XIX, o que era o hospício? Uma espécie de aparelhagem complexa,

explica Michel Foucault, “que devia ao mesmo tempo fazer aparecer e produzir realmente a

doença. Lugar botânico para a contemplação das espécies, lugar ainda alquímico para a

elaboração das substâncias patológicas” 3

Em linhas gerais, tento investigar aqui o nexo entre o surgimento do hospício e o

surgimento da Psiquiatria. Essas duas dimensões homogêneas em aparência, obedeciam à

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injunções de outra ordem, quer sociais, quer políticas, na qual a medicina mental emprestou

o mandato jurídico da sociedade que a delegou.

Para este estudo a tipologia de fontes é a seguinte:

1 ) Relatórios Oficiais: os Relatórios Oficiais são compostos por relatórios dos

Chefes de Polícia do Paraná e dos Secretários dos Negócios do Interior, Justiça e Instrucção

Pública. Esse tipo de documentação destina-se à apresentar, anualmente, um panorama da

administração destas pastas à máquina governamental. Como documento histórico, tal fonte

é muito rica para se detectar as categorias de transgressão que eram combatidas pelas

autoridades paranaenses na virada do séc. XIX para o XX, tais como os bêbados e

desordeiros, mendigos, meretrizes, menores delinqüentes, jogadores e doentes mentais. No

DEAP, Departamento Estadual de Arquivo Público, essa documentação está disponível no

original, na Divisão Paranaense da Biblioteca Pública do Paraná existe um acervo menor

em microfilme.

2 ) Relatórios da Santa Casa de Misericórdia: os relatórios da Santa Casa de

Misericórdia constituem-se de relatórios dos médicos e diretores do Hospital Geral e do

Hospício Nossa Senhora da Luz e dos provedores. Esses relatórios são apresentados

anualmente em Assembléia Ordinária. Na presente pesquisa, foram consultadas

principalmente os relatórios do diretor do Hospício, Rodolfo Lemos, que dão informações

muito ricas sobre o período abrangido. Infelizmente, essa documentação não possui uma

série completa, estando disponível apenas os relatórios relativos ao período subseqüente à

1911. Essa documentação pertence à Divisão Paranaense. Também foram consultadas as

atas contidas no Livro Tombo da Irmandade de Misericórdia que cobrem o período de

1879-1926, documentação pertencente ao acervo da Casa da Memória. Na Biblioteca da

Santa Casa de Misericórdia foi feito um levantamento de fontes pela bibliotecária da casa,

no qual inclui-se fotocópias de jornais e um estatuto da instituição, o Compromisso da

Irmandade de Misericórdia de Curityba, que data de 1864 e fornece elementos importantes

sobre o regulamento interno da instituição.

3 ) Jornais: a utilização de jornais é imprescindível para se detectar a opinião

corrente de políticos, intelectuais, médicos e cidadãos eminentes sobre as mais variadas

questões que tangem o cotidiano da cidade. É notório que desde a criação dos primeiros

jornais na capital paranaense, como o Dezenove de Dezembro, esse espaço tem sido

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tradicionalmente utilizado para veicular reivindicações sobre as melhorias das condições da

cidade: calçamento das ruas, construção de logradouros, passeios e boulevards, iluminação

pública, etc. Uma rápida pesquisa permite constatar que desde as últimas décadas do século

XIX, um segmento da sociedade já começava a perceber o problema dos alienados em

Curitiba que não dispunham de tratamento adequado e decretava a necessidade de

construção de um hospício. Para essa pesquisa, foram consultadas jornais do período como

o Diário da Tarde e A República. Esta documentação está disponível em microfilme na

Divisão Paranaense.

O levantamento de fontes foi realizado nas seguintes instituições: Casa da Memória,

Divisão Paranaense, Círculo de Estudos Bandeirantes, Departamento Estadual de Arquivo

Público - DEAP, Biblioteca do Setor de Saúde da UFPR, Biblioteca da Santa Casa de

Misericórdia e Hospital Psiquiátrico Nossa Senhora da Luz.

Este trabalho divide-se em três partes. O Capítulo I A loucura e o pensamento do

Fora é o desenvolvimento teórico a respeito da loucura baseado na leitura de Foucault,

Jacques Derrida, Michel Serres, Gilles Deleuze e Peter Pál Pelbart. O Capítulo II,

Medicalização da loucura e instituições médicas no Brasil, trata do surgimento da

Psiquiatria e da Medicina Social no Brasil no séc. XIX. Nesse capítulo, há um enfoque

especial em duas instituições psiquiátricas brasileiras surgidas nesse período: o D. Pedro II

no Rio de Janeiro e o Juquery em São Paulo. O Capitulo III A Forma e a Obra da

Psiquiatria relata como esses elementos se articulam com o objeto estudado.

NOTAS DE REFERÊNCIA 1 MUNHOZ VAN ERVEN, Herberth. Contribuição ao histórico do Hospital de Nossa Senhora da Luz. Curitiba: Mundial, 1944. 2 Em um artigo de Michael Ignatieff intitulado Instituições Totais e Classes Trabalhadoras ( IGNATIEFF, Michael. Instituições Totais e Classes Trabalhadoras : um balanço crítico. In: Revista Brasileira de História, v.7, n.14, 1987 ), o autor reflete sobre a tendência desse tipo de trabalho em cair na chamada história institucional, esse tipo de estudo caracteriza-se por ser uma história burocrática, narrativas desinteressantes sobre a construção e evolução de uma determinada instituição: “Esse talvez seja o momento tão bom quanto qualquer outro para fazer uma pausa e considerar essa nova história social. É uma história de quê? À primeira vista, a única resposta possível parecia – de uma instituição, sua arquitetura, sua administração, as relações sociais entre quem captura e quem é capturado e assim por diante. Mas esta resposta é evidente, na verdade, é problemática. A história de uma instituição arrisca-se a tornar uma “história institucional”, aquela classificação que os historiadores sociais reservam às narrativas burocráticas desinteressantes. Dir-se-á que a história das instituições deixou tudo isso para trás e que desde Foucault tem-se escrito não sobre batalhas burocráticas antigas e sim sobre batalhas contemporâneas dos confinados, contra seus sofrimentos e sobre a

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ascensão das novas classes profissionais, como médicos e governantes, que ligam sua ascensão social às novas instituições.Esta nova história tenta considerar as instituições não como uma entidade administrativa, mas como um sistema social de dominação e resistência ordenado pelos complexos rituais de troca e comunicação. ( ... ) Por si só, prisões, casas de trabalho, asilos e reformatórios – são somente de interesse arqueológico. O tema verdadeiro das instituições não é , eu argumentaria, o que acontece dentro da instituição. Eles somente se tornam objetos históricos significantes quando nos mostram, no rigor de seus rituais de poder, os limites que governam o exercício do poder na sociedade como um todo” (IGNATIEFF, p186-187. ) É obvio que na década de 40 quando Munhoz van Erven escreve o seu Histórico, essas questões não estavam sendo postas. No seu prefácio, Munhoz vem Erven escreve que “seria útil, sem dúvida, que todas as instituições curitibanas elaborassem e divulgassem suas monografias históricas”. Durante minhas pesquisas, utilizei o trabalho de Munhoz van Erven muitas vezes, mas o fiz usando diversos referenciais teóricos que fizeram com que minhas conclusões fossem diferentes. 3 FOUCAULT, Michel. A casa dos loucos. In: Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.Pp. 119-123.

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CAPÍTULO I

A LOUCURA E O PENSAMENTO DO FORA

A loucura e o pensamento do Fora

Desde Michel Foucault, cada um daqueles que tem escolhido aventurar-se pelo tema

da loucura, certamente, procurou, ao seu modo, efetuar uma ruptura em relação ao

“etnocentrismo médico” na interpretação da doença mental. O livro de Michel Foucault

impressionou-me muito, devo admití-lo. A sua descoberta, quase quatro décadas depois1 de

sua publicação abriu-me perspectivas e incentivou-me a investigar o tema. Seu livro tem

uma dose certa de erudição desarrazoada, de pesquisa histórica e de visão poética da

loucura. História da Loucura na Idade Clássica, publicado por Michel Foucault em 1961

sob o título original de Folie et Déraison, Histoire de la Folie à la Âge Classique é o ponto

de referência para qualquer trabalho e reflexão sobre o tema da loucura. Se para o

psiquiatra, a loucura não é mais do que ruína e dor, e a terapêutica representa o alívio do

louco, para nós, historiadores, filósofos, etnólogos e sociólogos, que, após Foucault, fomos

tomados pelo interesse por ela, a loucura é, antes de tudo, objeto de reflexão. Não podemos

deixar que, ao falar sobre a loucura, esse se torne um diálogo surdo, um diálogo da Razão

sobre a loucura.2

Foucault, em seu Prefácio de 1961 de Folie et Déraison, suprimido na edição de

1972 3, fala que a loucura não é um “fato de natureza”, mas um “fato de cultura”, e que

História da Loucura deveria ser uma história que fala das culturas que perseguem a loucura

e a entendem como tal. Mesmo a Psiquiatria, sustenta Foucault, só intervém apenas como

mais uma das formações históricas em relação à loucura. Devemo-nos despir-nos, alegava,

dos modernos conceitos da Psiquiatria para fazermos uma História da Loucura. Portanto,

Foucault desejava fazer uma história da percepção4 histórica e antropológica da loucura.

Assim, no Prefácio de 1961, ele fala sobre fazer uma “arqueologia do silêncio”.

Para o autor, a linguagem da Psiquiatria era um “monólogo da razão sobre a loucura”. Na

origem de sua pesquisa, explica, a idéia era escrever uma história “mais dos loucos do que

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de seus médicos”. Mas isso era impossível, pois a voz da loucura havia sido sufocada,

reduzida ao silêncio. Era necessário fazer falar o que ainda não tinha linguagem, fazer uma

arqueologia desse silêncio.

Mas, como a loucura aparece na obra de Foucault? Com efeito, a loucura, tal como é

descrita nas primeiras páginas do livro5, no capítulo intitulado Stultifera Navis ( Nau dos

Loucos ), é uma experiência trágica da loucura. Isto é, que por um saber esotérico, mas

positivo, revela no delírio do louco, uma verdade do mundo. É isso que Foucault chama de

Desrazão ao longo de seu estudo. Ou seja, Desrazão como uma experiência atemporal da

loucura. Contemporânea à essa Desrazão, estaria uma experiência crítica da loucura, como

em Brant, Erasmo e Montaigne, centrada na baixeza moral do homem e enunciando na

ironia do seu discurso filosófico ou literário, a verdade do homem. Essa segunda forma de

loucura aproxima-se bastante de um julgamento moral e por isso aproxima-se da própria

Razão.

Ainda no Renascimento, ocorre um eclipse da experiência trágica da loucura e o

predomínio da consciência crítica. A loucura passa a ser vista como “desatino”, ou seja,

como insensatez. Esse processo culmina com o que Foucault denomina A Grande

Internação do séc. XVII. Ou seja, o momento em que a loucura é dessacralizada e

silenciada, onde a loucura perde o seu caráter escatológico e onde há uma nova percepção

da loucura em que se começa a situá-la no âmbito de uma condenação ética. A loucura

começa a avizinhar-se dos pecados, das formas excluídas de sexualidade, das transgressões

religiosas, etc. No Hotel-Dieu ( Hospital Geral ), explica Foucault, os loucos são internados

juntamente com doentes venéreos, os devassos, os libertinos e os alquimistas – todos

transgressores de uma nova ética do trabalho, nem propriamente miseráveis, nem doentes.

A Desrazão, antes inumana, atemporal, agora passa por uma galeria de tipos desviantes,

identificáveis e condenáveis. Se antes a Desrazão se encarnava em figuras, por exemplo, os

expatriados da Nau dos Loucos, não era enquanto tipos sociais concretos, mas como

símbolos do mal sob forma de inversão ( o glutão, o bobo, etc. )

Na passagem para o séc. XIX, a loucura já se liberta da vizinhança com as demais

formas de transgressão, a loucura passa a ser cousa inteiramente médica. O internamento

ganha sua legitimidade moral, o hospício torna-se o lugar de manifestação da loucura. A

reclusão asilar faz da loucura um objeto do conhecimento.

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Aos poucos, o que era objeto de conhecimento torna-se tema do reconhecimento

próprio: o louco é o espelho da humanidade, misto de seus desejos mais primitivos e os

estragos da civilização. Essa percepção da loucura opera uma reviravolta, uma idéia de que

a alienação passou a ser para o Homem, a possibilidade de acesso à sua verdade e natureza.

O homem só encontra sua verdade no enigma do louco “que ele não é”. Nesse momento,

Goya, Sade, Nietzsche, Hölderlin, Artaud e outros farão da morte do desatino clássico,

“grito, furor, morte e vigília”. Em sua forma nova, a loucura é recuperada de forma

paradoxal, como ausência de obra: “A loucura é ruptura absoluta da obra”6

Foucault escreve seu livro na época em que residiu em Uppsala, na Suécia. Segundo

seu biógrafo Didier Eribon, foi nessa cidade que encontra um número impressionante de

documentos sobre o tema. Vinte e um mil documentos entre cartas, manuscritos, livros

raros e obscuros, bem como um número considerável de tratados médicos sobre doenças da

alma, o tratamento de insanos, o direito hospitalar, e instituições de caridade. Para o

período revolucionário, dispunha de informações suficientes com base nos clássicos,

Philipe Pinel, William Tuke, Tenon, Colombier e Doublet, Cabanis, etc. Haviam também

relatórios dos “Comitês de Mendicidade” criados durante a Revolução Francesa, etc.7

Uma das principais críticas contra a argumentação de Foucault surgiu em uma

conferência de Jacques Derrida intitulada Cogito et Histoire de la Folie, pronunciada no

College Philosofique em 1963. Esse texto foi publicado pela primeira vez na Revue

Methaphysique et Morale em 1964 e depois incluído no seu livro L’écriture et la

difference.8

Já no início do texto, Derrida discorre sobre como é difícil empreender uma

discussão sobre um livro que considera “poderoso na imaginação e no estilo”. Derrida

comenta que era intimidador para ele, pois tendo a oportunidade de ter sido aluno de

Michel Foucault, ainda conservava uma “consciência do discípulo”. Ele escreve,

“a consciência do discípulo, quando começa, eu não diria à discutir, mas a dialogar com o mestre, ou antes à proferir um diálogo interminável e silencioso que o constituía em discípulo, a consciência do discípulo é então uma consciência infeliz”9

Tratava-se de uma polêmica levantada por Derrida sobre o Cogito cartesiano em

relação à História da Loucura. Derrida escreve que toda a argumentação de História da

Loucura está em algumas poucas páginas, onde Foucault comenta as Meditações de

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Descartes 10. É estranho, diz Derrida, que todo o projeto de Foucault se concentra em

algumas poucas páginas alusivas e um pouco enigmáticas, em que pretende fazer uma

leitura de Descartes e do Cogito cartesiano.

Quando Derrida apresentou sua conferência em 1963, Foucault estava presente à

sala onde ela se realizava. Permaneceu, no entanto, em silêncio. Naquela época, Derrida

era ainda um jovem filósofo, um ex-aluno de Foucault . Mas, o tom da conferência muitas

vezes era um ataque direto à obra de Foucault. O discípulo não estava disposto à medir

palavras.

No início da conferência, ele falava dessa “infelicidade do discípulo”, que não pode

participar do diálogo, sem discordar do mestre. Foucault parece não ter-se incomodado.

Quando Jacques Derrida publicou L’écriture et la difference, que incluía esse texto,

Foucault enviou-lhe uma carta amistosa parabenizando-o. Mas, na edição de 1972, inclui

uma réplica à Cogito et Histoire de la Folie que foi publicada como apêndice nessa edição.

Esse texto, suprimido logo depois, chamava-se Ce papier, ce feu, ce corps11. A primeira

parte era uma longa discussão filosófica em torno do Cogito, a segunda um ataque à

argumentação de Derrida, que ele reduzia à uma “textualização” e uma “pequena

pedagogia”. Foucault acusa Derrida de não conseguir enxergar além do próprio texto.

Não sabemos o porquê da súbita irritação de Foucault pois desde o ano da

Conferência no College Philosofique e a inclusão de Ce papier, ce feu, ce corps na segunda

edição de História da Loucura já haviam se passado quase nove anos! 12

Outro texto bastante original escrito na década de 60 é o de Michel Serres,

Géométrie de la folie. Serres o publicou pela primeira vez em 1963, na revista Mércure de

France. Em 1967, esse texto é incluído em Hermes ou la communication13, sob o título de

Géometrie de la incomunicabilité: la folie. Michel Serres é um dos primeiros à comentar o

livro de Foucault. Serres apontou uma problemática bastante original em relação ao texto

de Foucault, ele diz que para escrever História da Loucura, Foucault teve que usar a

linguagem da Geometria. É porque o livro de Foucault apresenta uma temática que é

impossível para a escrita. Michel Serres refere-se ao que Foucault chamou em seu Prefácio

de 1961 de “arqueologia do silêncio”. Mas, comete um equívoco ao acreditar que Michel

Foucault estaria fazendo a “loucura falar sobre si mesma”, quando na verdade Foucault

queria fazer, com sua arqueologia do silêncio, uma história da percepção sobre a loucura.

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Sobre isso Serres escreve: “Ele procura e descobre – as chaves da loucura, como Freud

encontra as do sonho, e da mesma maneira: fazendo-a falar”.14

Serres disse que Foucault teve que usar a linguagem da Geometria, estruturando de

forma caótica, como o exemplo da Nau dos Loucos ( vizinhança possível entre todos os

pontos possíveis ). Serres vê uma seqüência histórica simétrica: errância marítima x

fortaleza terrestre, barca x hospital, etc.15 Para Serres, esse é um exemplo de como toda a

linguagem, a escritura e a técnica lingüística de Michel Foucault são variações do que ele

define como “estruturas binárias”. Serres sustenta que Foucault escreve variações das

estruturas, “no qual é possível estabelecer sobre essa família dupla de espaços e que

realmente se estabeleceram: estrutura de separação, de relação, de fusão, de reciprocidade,

de exclusão”16. É isso que Michel Serres chama de “Geometria da loucura”.

Contudo, um dos livros mais polêmicos em torno de Foucault talvez tenha sido

aquele publicado em 1986 por Gilles Deleuze após a morte de Michel Foucault. Deleuze

publica um livro curto, mas bastante difícil intitulado enigmaticamente de Foucault.17 O

encontro singular entre esses dois grandes pensadores deixaram muitos à se perguntar se

tratava-se de um livro realmente sobre Foucault ou se Deleuze utilizava o nome apenas

para trabalhar uma problemática que pertencia à ele mesmo.18 Tal era o modo como

Deleuze escrevia, levantando questões tão pouco visíveis na obra de Foucault. Assim,

devemos ler o livro de Deleuze com um livro que não tem nenhuma intenção de ser fiel ou

objetivo em relação à Foucault, questão muito pouco deleuziana. Trata-se de “um-livro-

sobre-Foucault-tal-como-reporta-Deleuze”. Uma “coexistência filosófica” ou uma

“amizade” no campo conceitual.

Em seu livro Deleuze distingue no pensamento de Foucault três “direções”, três

“dimensões”, três “eixos”, três “linhas”, que caracterizam a problematização de seu

pensamento: a arqueologia do saber, a estratégia de poder e a geneologia da subjetivação,

razão pela qual Deleuze o qualifica, simultaneamente, de um “arquivista, cartógrafo e

topologista”19. “Ele recortou de outra forma o saber e o poder” dizia Deleuze, e “encontrou

entre eles relações específicas”

A arqueologia estuda o saber. Mas, o conceito de saber de Foucault, para Deleuze, é

original. O saber é formado por dois estratos, duas estratificações , duas qualificações, duas

camadas sedimentarias. Ao saber pertencia duas formas exteriores entre si: ver e falar, o

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visível e o enunciável, a luz e a linguagem. Essa tese de uma dupla forma constitutiva do

saber é o primeiro ponto importante na interpretação deleuziana. O saber é constituído por

um “conteúdo”, e uma “forma de expressão”. Assim, segundo ele, a Arqueologia do Saber

esboça uma teoria das multiplicidades em que as formações discursivas são “formas de

expressão” e as formações não-discursivas são “formas de conteúdo”. O saber aparece

portanto como um “agenciamento”, um conceito importante utilizado por Deleuze em

Mille Plateaux, ou seja, um dispositivo biforme de enunciados e visibilidades.

O saber é a combinatória desses dois estratos e a tarefa do arqueólogo foucaultiano

é fazer um arquivo audiovisual desses estratos como formações históricas. O termo

diagrama é utilizado por Deleuze no sentido mais corriqueiro possível, o de representação

gráfica.

O poder, para Deleuze, vem de uma concepção nietzscheana. O que é poder? O

poder é uma relação de forças, ou melhor, toda relação de forças é uma relação de poder. O

poder, para Deleuze, não se estabelece entre duas formas como o saber. O poder nunca está

no singular. O diagrama do poder não é um arquivo audiovisual, é um mapa, uma

cartografia. O diagrama do poder, por exemplo, a disciplina panóptica ou a

governamentabilidade, é uma função independente de qualquer uso específico e qualquer

substância específica.

A terceira dimensão, que Deleuze denomina topológica, se caracteriza pela relação

entre o Fora e o Dentro ( dehors e dedans ) :

“Foucault não deixa de submeter a sua interioridade a uma crítica radical. Mas um lado de dentro que seria mais profundo que todo mundo interior, assim como o lado de fora é mais longínquo que todo o mundo exterior? O lado de fora não é um limite fixo, mas uma matéria móvel, animada de movimentos peristálticos, de pregas de dobras que constituem um lado de dentro: nada além do lado de fora, mas exatamente o lado de dentro do lado de fora.”20

Segundo Deleuze, o Dentro é constituído pelo Fora, , por uma operação do Fora,

“não é outra coisa que não o Fora, mas exatamente de dentro do Fora”. Essa relação

intrínseca é constituído, segundo Deleuze, por uma dobra, uma prega do Fora que constitui

o Dentro.

Esses três planos brevemente traçados aqui constituem a maquinaria histórico

arqueológica foucaultiana tal como a entendeu e descreveu Deleuze em seu livro Foucault

.21

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Peter Pál Pelbart em Da clausura do Fora ao Fora da Clausura tenta pensar a

respeito da loucura e sua vizinhança com o Fora. Ele parte de uma reflexão em Maurice

Blanchot no qual “a existência da loucura é uma exigência histórica de enclausurar o Fora,

constituindo-o como interioridade de espera ou exceção”22. Assim como Foucault estava

interessado na linguagem, em La pensée du dehors23, utilizando o próprio Blanchot (

Blanchot era filósofo, mas também fazia Literatura ) como exemplo, Pelbart sustenta que a

loucura, assim como o pensamento, vem do exterior24.

Em La pensée du dehors, Foucault analisa o caminho pelo qual a linguagem se

coloca em cheque, passa pela literatura mas toma direção ao exterior. “Eu falo”, eis para

Foucault o pivô da moderna literatura. A importância de “eu falo” não é apenas uma nova

modalidade literária que ele inaugura, mas na sua oposição ao tradicional “eu penso”.

Enquanto “eu penso” levava à certeza do eu e de sua existência, o “eu falo” conduz ao

contrário, à dispersão do sujeito e à dissolução da existência. Para Pelbart, a literatura,

“nesse desdobramento infinito em que ela se tece como uma renda esburacada, faz de seu

Fora sua matéria bruta e seu ser próprio”25 A experiência-limite como definiu Georges

Bataille, vem do Fora. Com Sade, Hölderlin, Blanchot, Bataille, Nietzsche, analisa

Foucault, não se esta inaugurando um novo pensar, mas ela se coloca num espaço marginal

que ele chamou de “o pensamento do Fora”. Para Pelbart, existe semelhança entre a obra e

a loucura, entre o pensamento e a literatura. A loucura tem a mesma função que a obra,

explica Pelbart, porque “permite à sociedade, como a obra permite à literatura, manter –

inofensiva, inocente, indiferente – a ausência de obra entre os firmes limites do espaço

fechado”. Encerrar a loucura no Fora, como diz Blanchot, explica Pelbart, é constituí-lo em

um espaço de interioridade de espera ou exceção, onde o pensamento não tem outro ser

além dessa mesma loucura. A problemática central de Pelbart é , como indica o subtítulo de

seu livro, a distinção entre Loucura e Desrazão. Tal problemática, certamente foucaultiana,

estruturou-se exatamente de uma preocupação pendente em História da Loucura. Pelbart

explica que somente quando introduziu a noção de Fora abriu-se um horizonte conceitual

comum para considerar a loucura e a desrazão quer em suas inflexões específicas, quer em

seus cruzamentos. Em posse desse eixo, explica o autor, ele passa a enfocar os diversos

modos de relação com o Fora – na Cultura, na História, nas patologias e no pensamento.26

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Uma aparelhagem complexa

O que é o hospício moderno? Ao fazermos essa pergunta, uma imagem permanece

viva em nossas mentes: o desacorrentamento dos loucos no Bicêtre por Philipe Pinel, no

final do séc. XVIII na França.

Durante o Terror, Pinel recebe a visita de Couthon, que procurava suspeitos de

serem antirevolucionários entre os loucos nos hospícios. Couthon era um ajudante fiel de

Robespierre. Foucault descreve o encontro entre Couthon e Pinel em algumas páginas de

História da Loucura:

“Pinel levou-o logo para a seção de agitados, onde a visão dos alojamentos impressionou-o de modo penoso. Quis interrogar a todos os doentes. Da maioria deles recolheu apenas injúrias e palavras grosseiras. Era inútil prolongar por mais tempo. Virando-se para Pinel: “Cidadão, será que você mesmo não é um louco por querer libertar semelhantes animais?”. Pinel respondeu com calma: “Cidadão, tenho certeza de que estes alienados são tão intratáveis somente porque são privados de ar e liberdade.” - “Pois bem, faça como quiser, mas receio que você acabará sendo vítima de sua própria presunção” E com isso, Couthon é conduzido à sua viatura. Sua partida foi um alívio, o grande filantropo logo pôs mãos à obra”27

Esse trecho citado por Foucault foi descrito por Scipion Pinel, filho de Philipe Pinel,

em Traité complet du regime sanitaire des alienes. Gladys Swain e Marcel Gauchet, ao

analisarem o surgimento das instituições asilares na França em La pratique de l’esprit

humain, la institution asilaire et la révolucion démocratique.28, criticam Foucault por tomar

o mito da abolição das correntes ao pé da letra. Swain e Gauchet sustentam que a abolição

das correntes foi um processo gradativo e que o encontro entre Pinel e Couthon nunca

ocorrera. O mito da abolição, segundo eles, servia para eliminar o papel desempenhado

pelo enfermeiro Pussin29, e assim unir a imagem de Pinel à de seu sucessor mais ortodoxo:

Ettienne Esquirol. Para além dessa discussão, é importante observar que esse gesto de

desacorrentar os loucos foi considerado o marco fundamental do nascimento do hospício

moderno do séc. XIX.

É estranho que o surgimento do hospício moderno, a imposição de um

“estabelecimento especial” como meio terapêutico, supõe, como defende Robert Castel,

exatamente a “reconquista”, por parte da Medicina, de “uma face da velha organização

hospitalar carregada de ódio pelo povo e do desprezo dos espíritos mais esclarecidos”30

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Robert Castel chama essa “reconquista” de “salvamento da instituição totalitária”31

É porque o surgimento dessa nova tecnologia hospitalar, em que o hospício aparece como

um meio terapêutico, se dá justamente pela apropriação pela Medicina, das “instituições

carregadas de ódio pelo povo” do Antigo Regime como o Bicêtre, a Salpetriére e o Hôtel-

Dieu. É necessário perguntar, escreve Castel

“por que e como a medicalização do louco, que passa por “progressista” e “modernista” – e que de certa forma o foi – moldou-se na velha instituição totalitária que ela esforçou-se por salvar do descrédito.? No final do séc. XVIII, esse salvamento do velho complexo hospitalar não é evidente por si mesmo, nem do ponto de vista médico, nem do ponto de vista político”32

No séc. XVIII, o hospital não era um espaço medicalizado. Sua função confundia-se

com a de casas de correção, abrigos de indigentes, depósitos de mendigos. Nos hospitais,

havia uma população bastante heterogênea que ia desde os vagabundos e mendigos à moças

e mulheres de vida suspeita “que aí foram enviadas por Ordem do Rei ( lettre de cachet )

por causa de demência ou mau comportamento”

À partir da segunda metade do séc. XVIII começa a efetuar-se, na França, uma série

de reformas nesses antigos hospitais. A Psiquiatria, que começava a tornar-se uma

“especialidade”, ou seja, um saber autônomo da Medicina, requisitava para si esses espaços

para transformá-los em espaços terapêuticos. Desse modo, os alienistas têm pela primeira

vez a sua competência reconhecida. Em meados do séc. XVIII, o Alienismo vai preconizar

a organização geral do hospício. O projeto de medicalização do hospício do séc. XVIII tem

haver com essa reorganização do espaço terapêutico. No contexto revolucionário, criam-se

“Comitês de Mendicância” na França, os quais uma das atribuições é o inquérito

sistemático sobre os estabelecimentos hospitalares . À partir desse momento, efetuam-se

uma série de reformas desencadeado por médicos e filantropos franceses. Tenon é

encarregado à efetuar uma reforma completa no Hôtel Dieu de Paris, uma instituição então

unanimente desacreditada. É nesse contexto que Ph. Pinel recebe a direção do Bicêtre em

1793. O ato fundador de Pinel não é , portanto, retirar as correntes dos alienados, mas sim a

reestruturação do espaço asilar. É assim que o Alienismo, no séc. XVIII, vai apropriar-se

das velhas instituições “carregadas de ódio pelo povo” e transformá-los, através da

organização do espaço hospitalar, em um “estabelecimento especial”, um “espaço

terapêutico”, isto é, um hospício. À partir de então, o hospício torna-se o lugar institucional

do exercício psiquiátrico.

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NOTAS DE REFERÊNCIA 1 História da Loucura gerou uma série de obras de justificação da loucura. As mais conhecidas continuam a ser os dois volumes de Capitalismo e Esquizofrenia: O Anti-Édipo ( 1972 ) e Mille Plateaux ( 1980 ) de Gilles Deleuze e Félix Guattari. Deleuze era filósofo com duas obras importantes Lógique du sens e Différence et Répétition, enquanto Guattari era mais conhecido como psiquiatra. O Anti-Édipo é considerado um dos livros que melhor expressa o sentimento de Maio de 68. Em um artigo intitulado La Schizo-Análise, François Ewald explica que o livro de Deleuze e Guattari representou um rompimento com Freud e com Marx: “já se estava farto, já não era mais hora de discutir, ou seja, de ter que justificar. Não há mais o que discutir com Freud. Somente morrer de rir diante das suas histórias de Édipo como se tudo na vida, a política, a literatura, a doença se devesse reduzir à pequenas histórias de família: papai-mamãe-pipi. No momento em que alguns sonhavam que o movimento saído de 68 chamava à grande aventura – Freud com Marx, Deleuze-Guattari jogavam Marx contra Freud. Não que O Anti-Édipo fosse um livro marxista, mas porque se não se pode acreditar nas histórias de Freud, é necessário utilizar Marx, coloca-lo em máquina, extenua-los. ( EWALD, François. La Schizo-Análise. In: ESCOBAR, Carlos Henrique. Dossier Deleuze. Rio de Janeiro: Holon, 1991.) 2 É claro que estamos falando da Medina Mental tradicional, ou seja, aquela que seguiu os moldes do séc. XIX. Desde então, marxistas, psicanalistas, progressistas e os antipsiquiatras sacudiram os velhos alienistas que chamavam os doentes de alienados e praticavam a exclusão com sã consciência. Mas, se levássemos em conta o discurso psiquiátrico apenas, não estaríamos na primeira mas na terceira ou quarta revolução. É necessário ouvir as novas estratégias que eles defendem, a desinstitucionalização, o setor, a psicoterapia institucional, a escuta ao paciente, o hospital-dia, etc. No entanto, não devemos atribuir-lhes a infabilidade que eles dizem possuir quando decretam que entramos em uma era totalmente nova. Desde muito se tem discutido essa dicotomia. Encontrei uma discussão bastante inteligente nas primeiras páginas do livro do filósofo Peter Pál Pelbart ( PELBART, Peter Pál. Da Clausura do Fora ao Fora da Clausura: Loucura e Desrazão. São Paulo: Brasiliense, 1989 ). Pelbart levanta, no início de seu livro, uma discussão provocada por Jean Starobinski. Segundo Pelbart, Starobinski, em entrevista à Jacques Adout, cujo tema era As razões da loucura, e que reunia também David Cooper, Franco Basaglia, Felix Guattari e outros profissionais de diversas áreas, havia expressado a opinião de que haviam dois enfoques atualmente sobre a loucura: o clínico e o cultural. De um lado psiquiatras, terapeutas, e de outro, estudiosos fascinados pela loucura. Segundo Pelbart, Starobinski chega mesmo a insinuar que tudo aquilo que se diz sobre a loucura fora da Psiquiatria ( Starobinski também era psiquiatra )era “mera literatura”. “Idéia espantosa”, observa Pelbart, “se considerarmos que o tom depreciativo nesse comentário vem da parte de um crítico especializado justamente em literatura e com a sensibilidade que conhecemos” ( PELBART, p. 14 ). “Isso equivale” continua Pelbart “a afirmar que, assim como hoje cabe à ciência e não à mitologia dizer a natureza das coisas, a loucura deve ser revelada pelos que a tratam e não pelos que a imaginam”( PELBART., id ). Segundo Pelbart, de nada adiantaria desafiar essa “hegemonia clínica”. Se pretendemos fazer da loucura objeto, sem transforma-la em “mera literatura” devemos recusar a polaridade da dicotomia mencionada por Starobinski. Michel Foucault apresenta outra questão em entrevista à Alexandre Fontana publicada em Microfísica do Poder sob o título de “verdade e poder”: “Quando fiz meus estudos, por volta dos anos 50-55, um dos problemas que se colocava era o do estatuto político das ciências e as funções ideológicas que podia veicular ( ... )Duas palavras podem resumi-las: poder e saber. Creio haver escrito a História da Loucura dentro deste contexto. Para mim, tratava-se do seguinte: se perguntarmos a uma ciência como a física teórica ou química orgânica quais as suas relações com as estruturas políticas e econômicas da sociedade, não estaremos colocando um problema muito complicado? Não ser muito grande a exigência para uma explicação possível? Se, em contrapartida, tomarmos a psiquiatria, não será a questão muito mais fácil de ser resolvida porque o perfil epistemológico da psiquiatria é pouco definido, e porque a prática psiquiátrica está ligada a uma série de instituições, de exigências econômicas imediatas e de urgência políticas de regulamentações sociais. No caso de uma ciência tão “duvidosa” como a psiquiatria, não poderíamos apreender de forma mais precisa o entrelaçamento dos efeitos de poder e saber? O que me “desconcertou” um pouco, na época , foi o fato de que esta questão que eu me colocava não interessou em absoluto para quem eu a colocava. Consideravam que era um problema absolutamente sem importância e epistemologicamente sem nobreza.” ( FOUCAULT, Michel. Verdade e Poder: entrevista à Alexandre Fontana. In: Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979. Pp. 2-3. Nesse sentido, na década de 60, o trabalho de Georges Canguilhem, O Normal e o Patológico ( CANGUILHEM, Georges. O Normal e o Patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982 ) foi

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fundamental para a colocação de novas problemáticas sobre a filosofia das ciências. Nas décadas de 50/60, Canguilhem reunia em torno de si aqueles que queriam renovar o discurso teórico das filosofias da ciência. Ao lado de Gaston Bachelard, Koyré e outros nomes da epistemologia francesa, Canguilhem concentra-se naquilo que chamou de “ciências da vida”: biologia, anatomia, patologia, fisiologia, etc. Tentava-se então, fazer uma filosofia estrutural das ciências, em que se levava em consideração a sua dimensão histórica. Canguilhem é um dos primeiros à analisar as ciências médicas do seu ponto de vista epistemológico. Para entender O Normal e o Patológico, é necessário lembrar que , até o início do séc. XIX, a Medicina repousou sobre a confiança de um dogma: a saúde e a doença opõe-se radicalmente, assim como o Bem e o Mal. A doença não é uma alteração do estado de normalidade, mas a sua ausência. A Medicina clássica funcionava através de um mecanismo que Foucault resumiu na expressão “conhecer é reconhecer” em O Nascimento da Clínica ( FOUCAULT, Michel. O Nascimento da Clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1980, p. 8 ). Georges Canguilhem demonstrou que no séc. XIX há uma ruptura com essa teoria da doença. À partir de Broussais, explica Canguilhem, teria-se demonstrado que os fenômenos da doença coincidem com os da saúde, do qual só diferem pela intensidade. A doença passa então a ser entendida como excesso ou falta em torno de um parâmetro tido como normal, definido então os postulados de normal e patológico. No entanto, nota o autor, mesmo a escola de Broussais não conseguiu dar uma definição objetiva de “normal”, consideranto tão somente um fato ( Sobre Georges Canguilhem e sua história epistemológica das ciências da vida, consultar o primeiro capítulo de MACHADO, Roberto. Ciência e Saber: trajetória arqueológica de Michel Foucault. Rio de Janeiro: Gral, 1980. ) Além da obra de Georges Canguilhem, cito aqui trabalhos importantes para a compreensão do tema da saúde e da Medicina, mais especificamente da Psiquiatria e da Psicologia moderna. Pode ser que, em alguns pontos, esses autores representem divergências entre si, mas são importantes para compor um quadro teórico da Psiquiatria e da Psicanálise do séc. XX. Cf. LACAN, Jacques. Écrits. Paris Seuil, 1966 ( Trad: Perspectiva, 1976 ); LAGACHE, Daniel. A Psicanálise. São Paulo: Difel, 1969; EY, Henri; LACAN, Jacques; MINKOWISKI; MERLEAU-PONTY e outros. O inconsciente: VI Colóquio de Bonneval. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1969; FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984; FOUCAULT, M. Introdução à Binswanger, publicado em MOTTA, Manoel. Problematização do Sujeito: Psicologia, Psiquiatria, Psicanálise. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999. 3 Michel Foucault operou duas mudanças significativos em seu livro. Existe uma primeira edição publicada pela Editora Plon em 1961. O livro tinha o título original de Folie et Dérason, título de sua tese de doutorado apresentado naquele ano na Sorbonne. Nessa edição havia um prefácio que foi substituído em 1972, quando o livro é reeditado pela Gallimard. Em 1972 Foucault altera o título, suprimindo o Folie et Déraison e mantendo o que era o subtítulo na versão original Histoire de la Folie à la Âge Classique. Nessa edição de 1972, haviam dois apêndices. Uma resposta às críticas de Henri Gouhier, presidente da banca examinadora da tese doutoral de Foucault na Sorbonne e que havia feito algumas críticas à sua argumentação e um em torno de uma polêmica travada com Jacques Derrida em torno do Cogito. Ambos os textos foram suprimidos na edição seguinte. A edição de 1961 está esgotada, mas recentemente o seu prefácio foi publicado em uma compilação de Manuel Motta intitulado Problematização do Sujeito, de onde se retiram os comentários à esse texto neste segmento ( MOTTA, Manoel ( org. ). Problematização do Sujeito: Psicologia, Psiquiatria, Psicanálise., op cit. ) 4 Foucault explica, em entrevista à Sergio Paulo Rouanet e José Guilherme Melquior, por quê usa a palavra percepção: “Deixei-me seduzir pela idéia de que a maneira de conceber a loucura exprimia um pouco uma espécie de repulsa social imediata em relação à loucura. Empreguei freqüentemente a palavra percepção: percebe-se a loucura. Essa percepção era para mim o vínculo entre uma prática real, que era essa reação social e a maneira pela qual era elaborada a teoria médica e científica” ( ROUANET, Paulo Sério; MELQUIOR, José Guilherme; ESCOBAR, Carlos Henrique e outros. O homem e o discurso : a arqueologia de Michel Foucault. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1971, p. 26-27 ) 5 Aqui tento fazer um resumo dessa obra de Foucault. É certo que trata-se de um livro difícil, quase esotérico, mesmo Foucault teve que explica-lo diversas vezes em entrevistas e textos menores. Aqui procuro auxílio em algumas análises de História da Loucura, como em VEYNE, Paul. Foucault Revoluciona a História. In: Como se escreve a História. Brasília: Universidade de Brasília, 1982; MUCHAIL, Salmma Tannus. O Mesmo e o Outro: as faces de História da Loucura. In: MARIGUELA, Márcio ( org. ) Foucault e a destruição das evidências. Piracicaba: Unemp, 1995 ; MACHADO, Roberto. Ciência e Saber: trajetória arqueológica de Michel Foucault.op. cit.; ROUDINESCO, Elisabeth ( org. ). Leituras da História da Loucura.

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Rio de Janeiro: Relumé-Dumará, 1994 e VAZ, Paulo. Um pensamento infame: história e liberdade em Michel Foucault. Rio de Janeiro: Imago, 1992. MELQUIOR, José Guilherme. Foucault ou o niilismo de cátedra. 6 FOUCAULT, p. 529. 7 Cf. ERIBON, Didier. Michel Foucault : uma biografia. São Paulo: Cia das Letras, 1990. 8 DERRIDA, Jacques. Cogito et Histoire de la Folie. In: L’ écriture et la difference. Paris: Éditions du Seiul, 1967. 9 “la conscience du disciple, quand celui-ci commence, je dirai pas à disputer, mais à dialoguer avec maitre, ou plutôt à profére le dialogue interminable et silencieux qui le constituait en disciple, la conscience du disciple est alors une conscience malhereuse”. ( DERRIDA, p. 51 ) 10 Em História da Loucura, Foucault escreve: “No caminho da dúvida, Descartes encontra a loucura ao lado do sonho e de todas as formas de erro. Será que essa possibilidade de ser louco não faz com que ele corra o risco de ver-se despojado da posse de seu próprio corpo, assim como o mundo exterior pode refugiar-se no erro, ou na consciência adormecer no sonho ( ... ) Mas Descartes não evita o perigo da loucura como contorna a eventualidade do sonho ou do erro. Por mais enganadores que os sentidos sejam, eles na verdade não podem alterar nada além das coisas muito pouco sensíveis e distantes; a força de suas ilusões deixa sempre um resíduo de verdade, “que estou aqui, perto da lareira, vestido com uma robe de chambre”. Quanto ao sonho, tal como a representação dos pintores, ele pode representar sereias, ou sátiros, através de figuras bizarras extraordinárias, mas não pode nem criar nem compor, por si só, essas coisas ( ... ). Com a loucura , o caso é outro; se esses perigos não comprometem nem o desempenho nem o essencial de sua verdade, não é porque tal coisa, mesmo no pensamento de um louco, não possa ser falsa, mas sim porque eu, que penso, não posso estar louco. Quando creio ter um corpo, posso ter a certeza de possuir uma verdade mais sólida do que aquele que supõe ter um corpo de vidro? Sem dúvida, pois “são loucos, e eu não seria menos extravagante se seguisse o exemplo deles”. Não é a permanência de uma verdade que garante o pensamento contra a loucura, assim como ela lhe permitiria desligar-se de um erro ou emergir de um sonho é uma impossibilidade de ser louco, essencial não ao objeto do pensamento mas ao sujeito que pensa. É possível supor que se está sonhando e identificar-se com o sujeito sonhador a fim de encontrar uma razão qualquer para duvidar: a verdade aparece ainda, como condição de possibilidade do sonho. Em compensação, não se pode supor, mesmo através do pensamento, que se é louco, pois a loucura é justamente a condição de impossibilidade do pensamento : “Eu não seria menos extravagante....”.” ( FOUCAULT, op. cit. Pp. 45-46 ). Em Cogito et Histoire de la Folie, Jacques Derrida admite que parece meio absurdo centrar sua argumentação em um ponto que Foucault aparentemente discorreu muito rapidamente em algumas páginas. Mas, Derrida acredita que toda a argumentação de História da Loucura se concentra nesse trecho em que Foucault comenta as Primeiras Meditações de Descartes, pois Foucault acredita haver ocorrido ali a divisão do racionalismo clássico que vai operar a grande divisão entre loucura e desrazão . ( DERRIDA, op. cit. Pp. 51-53 ) 11 FOUCAULT, Michel. Ce papier, ce feu, ce corps. In: MOTTA, op. cit. Pp243 e ss 12 Sabemos que desde aquela época Foucault e Derrida romperam relações. Em 1981, Derrida é preso em Praga quando apresentava um seminário. A França inteira se comove, e de Paris, Foucault lança um apelo no rádio em favor de Derrida. Depois disso, Foucault e Derrida ainda se falaram algumas vezes. Em 1991, é organizado um colóquio na Sociedade de Psiquiatria e Psicanálise com o tema “História da Loucura, 30 anos depois”, onde Derrida é convidado à participar. Nesse colóquio, no entanto, o tom de Derrida é mais ameno, ele diz, “não quero falar sozinho após a morte de Michel Foucault”. O tema de Derrida era “Fazer Justiça à Freud: História da Loucura na Era da Psicanálise”. Esse texto e outros proferidos nesse colóquio foram reunidos por Elisabeth Roudinesco em Leituras da História da Loucura, op. cit., 13 Na década de 60, Michel Serres escreve o primeiro volume de uma obra chamado Hermés, que iria ser escrito durante dez anos. No primeiro volume, Hermes ou la communicacion, havia sido incluído esse texto intitulado Géometrie de la incommunicabilité, que havia sido inicialmente publicado na Mércure de France em 1963. Esse texto de Serres é um dos primeiros à comentar o livro de Foucault. Mais tarde, Serres escreve mais quatro volumes do seu Hermés: II, L’Interference; III, La Traducion; IV, La Distribution; V, Le Passage du Nordouest. No Brasil, não há tradução de Géométrie de la folie. Em 1990 Roberto Machado compila alguns desses textos publicado no Brasil sob o título de Hermes: uma filosofia das ciências. ( SERRES, Michel. Hermes: uma filosofia das ciências. Rio de Janeiro: Graal, 1990 ). Os comentários sobre Michel Serres feitos por mim nesse segmento são feitos à partir da versão publicada na Mércure de France , n. 1188, ago. 1962. Pp. 683-696

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14 “ Il cherche – et découvre, les clés du langage de la folie, comme Freud trouve celles du rêve, et de la même maniére: en laissant parler”. ( SERRES, Michel. Géométrie de la folie. In: Mércure de France, op. cit. , p. 685 15 Em seu primeiro capítulo de História da Loucura, Michel Foucault descreve a Stultifera Navis ( Nau dos Loucos ) , um tema recorrente na literatura e na iconografia do Renascimento . Como explica Foucault, a Nau dos Loucos, é sem dúvida uma composição literária emprestada dos velho ciclo de argonautas, uma composição de naus “cuja equipagem e heróis imaginários, modelos éticos ou tipos sociais, embarcam para uma grande aventura simbólica que lhes traz, senão fortuna, pelo menos a figura de seus destinos ou suas verdades”. ( FOUCAULT, op. cit, p. 9 ). É assim que, durante o Renascimento, o tema dessas naves romanescas ou satíricas aparece na literatura. A Blauwe Schute de Jacob van Oestvoren, a Narrenschiff de Brant e o quadro de Bosch, pertencem à essa onda onírica. Mas, segundo Foucault, a Nau dos Loucos teve existência real: era um costume freqüente, particularmente na Alemanha, a existência de barcos que levavam uma “carga insana” de loucos de uma cidade para outra. Foucault sustenta que essas naus assombraram a imaginação ocidental porque talvez tenham sido navios altamente simbólicos, navios de peregrinação, de insanos em busca da razão: uma espécie de exílio ritual. No final do primeiro capítulo, Foucault sustenta que com a experiência clássica da loucura, há um deslocamento no curso da história em que a loucura vai da barca ao hospital e do hospital ao asilo moderno: “Ei-la amarrada, solidamente, no meio das coisas e das pessoas. Não existe mais a barca, porém o Hospital”. FOUCAULT, p. 42 16 “... On décrit plutôt les variations des structures qu’il est possible de poser sur cette famille double d’espace, et qui ont été posées, de fait, sur elle: structures de séparation, de rapport, de fusion, d’ ouverture, de fondement, de refus, de réciprocité, d’exclusion ( ... )” . SERRES, p. 689 17 DELEUZE, Gilles. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 1986. 18 Com efeito, sabemos que Gilles Deleuze e Michel Foucault estavam sempre atualizados um em relação à obra do outro. Ao comentar as obras, tanto Deleuze e Foucault retomavam elementos de seu próprio pensamento. Roberto Machado escreve que Deleuze para construir sua filosofia efetua-o através de uma técnica de colagem ( de inspiração dadaísta, segundo Machado ), em que o autor tem por objetivo, através da retomada do pensamento de certos autores, a criação de um pensamento diferencial. Daí toda a riqueza da interpretação de Deleuze em obras como Spinoza et le probléme d’expression ( 1968 ); Nietzsche et la philosofie ( 1962 ); Le Bergsonisme ( 1966 ) ou Hume: empirisme et subjetive. Deleuze portanto ao escrever sobre filósofos não está fazendo uma filosofia dos filósofos: “seu pensamento não restringe-se à consideração do texto filosófico, fazer filosofia é muito mais do que repetir e repensar os filósofos.” ( Cf. MACHADO, Roberto. Deleuze e a Filosofia. Rio de Janeiro: Graal, 1990. ) O livro sobre Foucault é o primeiro que Deleuze dedica à um filósofo depois de Anti-Oedipe, ou seja, depois que começou à escrever com Felix Guatarri. Mas, durante as décadas de 60/70 Deleuze e Foucault trabalharam bastantes juntos. Ambos publicaram muitos textos em revistas como Critique, Tel Que e Magazine Litteraire. Em um texto pequeno intitulado Teatrum Philosoficum, de Michel Foucault, o autor comenta duas obras de Deleuze, Logique du sens e Différence et Répétition. Nesse texto, Foucault escreve: “Preciso falar de dois livros que me parecem grandes entre os grandes. Tão grandes que é difícil falar e pouco se fala. Por muito tempo, creio, esta obra pairará sobre nossas cabeças, em ressonância com aquela de Klossowski, outro signo maior e excessivo. Mas, um dia o século talvez seja deleuziano” Cf. FOUCAULT, Michel. Teatrum Philosoficum. / Nietzsche, Freud, Marx. Porto: Anagrama, 1990. Em 1972, Deleuze e Foucault, cada um à sua maneira refletiam sobre o papel dos intelectuais, o poder, e a relação entre teoria-prática daquela conjuntura política. Texto publicado na revista L’Arc e publicado no Brasil na coletânea organizado por Roberto Machado, Microfísica do Poder. Cf. DELEUZE, Gilles; FOUCAULT, M. Os intelectuais e o poder: conversa entre Michel Foucault e Gilles Deleuze. In: FOUCAULT, M. Microfísica do Poder.op. cit. Pp 69-79. 19 Os dois primeiros artigos de Foucault: um novo cartógrafo ( Pp. 13-32 ) e um novo arquivista ( Pp. 33-53 ), já havia sido publicados por Deleuze na década de 60. O primeiro havia sido publicado na revista Critique n.343, em 1975 sob o título de Écrivain non: um noveau cartographe. e foi modificado em Foucault 20 DELEUZE, p. 104 21 A síntese gráfica do diagrama de Foucault segundo Deleuze encontra-se em Foucault, p. 128. 22 PELBART, Peter, op. cit, p. 170. 23 FOUCAULT, Michel. La pensé du dehors. In: Critique, n.229. Pp. 24 O termo francês dehors foi traduzido para o português como o fora, de-fora, ou mesmo lado de fora. Aqui respeitou-se a opção do autor que justifica a sua opção pelo uso do termo Fora: “minha opção em traduzir o termo dehors por Fora obedeceu às seguintes razões de ordem pragmática: a) o termo Fora tem no

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português o mesmo caráter cotidiano que o francês dehors, o que permite a utilização tanto na linguagem comum como na conceitual; qualquer neologismo ( como de-fora ou o de fora ) oblitera a origem coloquial desta que é uma noção espacial vulgar transformada em conceito, e reduz, portanto, a força que o termo ganha nessa oscilação entre o registro cotidiano e o filosófico - oscilação da qual esse estudo tenta extrair o maior proveito; b) o Fora permite não só a idéia de proveniência ( como o de fora ) mas também a de destinação, no sentido de um movimento em direção ao exterior, tão importantes nos textos de Blanchot, Foucault ou Deleuze, - e que a preposição de dificulta ou confunde ( por exemplo, numa expressão do tipo “dirigir-se ao de fora” ) , diferentemente do francês, onde o de já está incorporado ao dehors e não invoca mais proveniência; c ) o Fora não transforma uma evocação espacial numa delimitação topológica concreta ( como o faz o lado de fora ) e d) o Fora evita cacófagos como “do de fora”ou “do de dentro”. ( PELBART, p. 69 ). Em nenhum momento, Pelbart procura uma ontologização do conceito de Fora em seu livro. Mas em seu livro há referências explícitas à pelo menos três textos que trabalham com esse conceito: BLANCHOT, Maurice. L’etretien infini. Paris: Gallimard, 1969; FOUCAULT, Michel. La pensée du dehors. In: Critique, n. 229 e DELEUZE, Gilles. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 1986. Pelbart atenta para o risco que se corre ao trabalhar com um conceito em torno de vários autores. Ainda mais pelo fato de seus estudos confundirem-se uns aos outros “Veja-se: Foucault comenta Deleuze, que lê Blanchot, o que se inspira em Foucault, que escreve sobre Klossowski, que influencia Deleuze, e assim por diante, para não falar em Derrida, Lyotard e tantos outros da mesma família. Ciranda teórica, em que o dizer de um já é comentário sobre um outro e não pode ser entendidos sem o eco suscitado por todos os demais”( PELBART, p. 188 ) 25 PELBART,Peter. P.117 26 ibid, p. 187 27 FOUCAULT, História da Loucura, op cit., p. 460 28 SWAIN, Gladys; GAUCHET, Marcel. La pratique de l’sprit humain, la instituition asilaire et la révolution démocratique. Paris: Gallimard, 1978 29 O enfermeiro Pussin era o que desempenhava essa função no hospício do Bicêtre, onde após 1793 Pinel assume o cargo de diretor. Diz-se que Pinel depositava muita confiança aos enfermeiros, pois estes, embora “desprovidos de saber”, eram essenciais no dispositivo de vigilância do hospício. Ironicamente, segundo Swain e Gauchet, Pussin, o enfermeiro do Bicêtre foi apagado dos arquivos , permanecendo apenas o mito da abolição das correntes. 30 CASTEL, Robert. A Ordem Psiquiátrica : A Idade de Ouro do Alienismo. Rio de Janeiro: Graal, 1978. p.11 31 Ver CASTEL, Cap. II , Pp. 55-97. O termo instituição total utilizado por Castel em A Ordem Psiquiátrica, foi inventado pelo sociólogo americano Erving Goffman em Manicômios, Prisões e Conventos: “uma instituição total” explica Goffman, “pode ser definida como um local de residência e trabalho onde um grande número de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo, levam uma vida fechada e formalmente administrada. ( ... ) Toda instituição conquista parte do tempo e interesse de seus participante e lhes dá algo de um mundo; em resumo, toda instituição tem tendência ao “fechamento” ( grifo meu ). Quando resenhamos as diferentes instituições de nossa sociedade ocidental, verificamos que algumas são mais fechadas do que outras. Seu “fechamento” ou seu caráter total é simbolizado pela barreira em relação social com o mundo externo e por proibições à saída que muitas vezes estão incluídas no esquema físico, por exemplo: portas fechadas, paredes altas, arame farpado, fossos, água, florestas ou pântanos. À tais estabelecimentos dou o nome de instituição total” ( Cf. GOFFMAN, Erving. Manicômios, Prisões e Conventos. São Paulo: Perspectiva, 1978. Pp.11-16 ). É estranho a maneira como Castel apropria-se do conceito de instituição total, uma vez que, tomando em termos conceituais, tal teoria origina-se nos Estados Unidos, de uma discussão surgida no pós-guerra na qual surgiram numerosos estudos sociológicos sobre os problemas da Medicina e do sistema psiquiátrico. Até certo ponto, o interesse ou a “moda” surgiu do escândalo, da polaridade entre a sociedade que aspira à eficácia e à racionalidade contra o arcaísmo de suas estruturas hospitalares e pelo absolutismo das relações sociais nela implícitas. A preocupação com a “vergonha” institucional dessas estruturas arcaicas conecta-se imediatamente com a curiosidade dos estudos que procuram humanizar o funcionamento do hospital e torna-lo mais terapêutico. Assim, os estudos a respeito do hospital psiquiátrico surgiram marcados por uma profunda simbiose intelectual, unindo ao mesmo tempo uma ideologia e uma série de procedimentos técnicos à um projeto de modificação das práticas psiquiátricas.Em Manicômios, Prisões e Conventos, Goffman utilizou o conceito de instituição total não apenas aos hospitais psiquiátricos mas em relação à vários tipos de estabelecimentos em princípio heterogêneas como prisões, orfanatos, asilos de velhos e mendigos, sanatórios, leprosários, campos

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de concentração, e até mesmo categorias mais inusitadas como um navio em alto mar, colônias de lenhadores ou mansões ( se vistas do ponto de vista do empregados ) ( GOFFMAN, p. 16-17 ) . Goffman, como se viu acima, estava preocupado com a tendência ao “fechamento” que essas diferentes instituições apresentavam. Parece que, ao colocar essas diferentes comunidades e estabelecimentos em uma mesma categoria que ele definiu como instituição total, acreditava que as rotinas institucionais tendiam a oprimir o internado com os mesmos rituais, que ele chama de “mortificação do eu” ou “despersonalização”. Portanto, para Goffman, tais instituições tinham características similares, tais como; a ) o controle sobre as necessidades humanas de grupos reunidos em um mesmo espaço físico é o fator básico de toda instituição tal. Esse agrupamento visa facilitar a vigilância sobre o comportamento individual; b ) todos os aspectos da vida realizam-se no mesmo local e sob uma mesma autoridade; c) a efetuação de todas as atividades da pessoa em companhia de outras pessoas que, por sua vez, são obrigadas a efetuarem atividades diárias em conjunto; d ) determinação e programação das atividades por funcionários, atendendo às regras rígidas da instituição; f ) divisão básica e nitidamente demarcado entre “internos” e “grupo dirigente”; g ) configuração de uma “carreira”do doente mental. Carreira, para Goffman, é “qualquer trajetória percorrida por uma pessoa no decorrer de sua vida”. Ele aponta para o fato de o ex-interno de uma instituição ter dificuldades de retorno ao meio de origem. .Muitos críticos, desde a publicação de Manicômios, Prisões e Conventos, acharam difícil ver pontos em comum entre um navio mercante, um acampamento ou um campo de concentração. Muitos acharam mais fácil limitar-se à analise das chamadas “instituições disciplinares” termo já conhecido desde a publicação de Vigiar e Punir de Michel Foucault e que correspondia, no geral, às instituições de Estado, o asilo, o hospício, a workhouse, que atendiam a populações como os pobres, despojados, desprotegidos e estigmatizados, cujas funções eram análogas à da prisão, ou seja, o enclausuramento e a recuperação da força de trabalho. Cf. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 1977. No entanto, a utilização do conceito de instituição total por Castel talvez seja tomando o sentido que Foucault chama de dispositivo, um tipo de formação que em um momento histórico determinado teve por função principal responder à uma urgência, destacando-se , portanto, pelo seu importante papel estratégico. Castel trata claramente dessa temática ao sustentar de que maneira o Alienismo, no séc. XVIII, constituiu-se como uma Medicina especial, habilitada a exercer esse domínio, recebendo o poder de intervenção que anteriormente pertencia à instâncias não-unificadas de controle sobre a loucura ( o rei, a justiça, a família ), e de que maneira, o Alienismo vai eleger justamente o hospital, a velha instituição “carregada de ódio pelo povo” do Antigo Regime como espaço para o exercício da Psiquiatria. É necessário perguntar, escreve Castel “por que e como a medicalização do louco, que passa por “progressista” e “modernista” – e que de certa forma o foi – moldou-se na velha instituição totalitária que ela esforçou-se por salvar do descrédito.? No final do séc. XVIII, esse salvamento do velho complexo hospitalar não é evidente por si mesmo, nem do ponto de vista médico, nem do ponto de vista político”( CASTEL, R. op. cit., p. 56 ). Segundo Castel a ambigüidade do qualificativo “totalitário” proposto por Goffman é voluntário, “ela exprime a própria anfibiolgia do conceito, cujos registros estruturais e políticos são indissociáveis” ( ibid, p. 55 ). Porém, ao analisar o conceito de instituição em um artigo intitulado “A instituição psiquiátrica em questão”, publicado em 1971 na Revue Française de Sociologie, Castel faz o seguinte comentário à respeito do conceito de instituição total, que , no geral, é a grande crítica que se tem feito ao chamado método etnográfico proposto por Goffman, ou seja, a de não levar em conta a relação entre a instituição, o espaço social e o tempo histórico: “1) Goffman depreende perfeitamente a estrutura interna do hospital psiquiátrico e 2 ) a situa no seio de um leque de outras estruturas sociais, esboçando através da mediação do conceito de instituição total a ruptura com o ponto de vista médico e a passagem da pisicossociologia do estabelecimento à sociologia do sistema psiquiátrico. Mas, ônus do método etnográfico que Goffman emprega: 1) o alcance dessa operação permanece essencialmente classificatório porque 2 ) ela não leva em conta as relações de força exteriores ao sistema, que condicionam o equilíbrio dessas estruturas no espaço social e no tempo histórico” . ( CASTEL, Robert. A instituição psiquiátrica em questão. In: FIGUEIRA, Sérvulo ( coord. ). Sociedade e Doença Mental. Rio de Janeiro: Campus, 1978. Pp.149-195 ) 32 CASTEL, op.cit, p.56

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CAPÍTULO II

MEDICALIZAÇÃO DA LOUCURA E INSTITUIÇÕES MÉDICAS NO BRASIL

O primeiro estandarte da Medicina Mental

Em 1830, a recém criada Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro, que

depois tornar-se-ia Academia Imperial do Rio de Janeiro, lança um slogan: “Aos loucos, o

hospício!”1. O que quer dizer isso, na verdade? Tratava-se de um movimento desencadeado

por um grupo, na maioria formada por médicos higienistas da Academia Imperial de

Medicina do Rio de Janeiro e que apelava para o poder público a necessidade de construção

de um hospício no Brasil.

Esse movimento, na verdade, foi muito mais complexo do que uma simples

reivindicação. Ele representa, para muitos estudiosos da Psiquiatria, o nascimento do saber

psiquiátrico brasileiro .

Os principais nomes desse grupo de médicos da Sociedade de Medicina do Rio de

Janeiro, eram Francisco Xavier Sigaud, Jean Maurice Faivre, José Martins Cruz Jobim,

Luiz Vicente de Simoni entre outros. Nenhum deles tinha uma formação acadêmica em

Psiquiatria, mas à esse grupo é atribuído a invenção da Psiquiatria no Brasil.

Nas décadas de 1830-1840, os médicos da AMRJ escreveram numerosos artigos em

periódicos como o Semarário de Saúde Pública, Diário de Saúde e Revista Médica

Fluminense. Pela primeira vez no Brasil, um grupo de intelectuais, isto é, de médicos

letrados e em consonância com o que acontece na Europa, começa a promover uma

discussão sistemática sobre os benefícios técnicos e financeiros proporcionados pela

criação de um espaço médico dedicado ao tratamento exclusivo de alienados.

Durante todo esse período, o hospício é reconhecido pelos médicos como um

verdadeiro “instrumento terapêutico”. É mais ou menos nessa época que Ettienne Esquirol,

o grande alienista francês e o mais famoso discípulo de Pinel, iria sintetizar essa idéia em

um axioma alienista: “uma casa de alienados é um instrumento de cura; nas mãos de um

hábil médico, ela é o agente terapêutico mais poderoso contra as doenças mentais.”2

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Em outras palavras, no início do séc. XIX, sobretudo à partir da década de 30, o que

se reivindica era que os loucos, uma vez percebidos enquanto “doentes mentais”, deveriam

ser tratados cientificamente.

No séc. XIX, Esquirol dava cinco razões para justificar o isolamento do louco em

um hospício: 1. garantir a segurança do louco e de sua família; 2. isolar o louco das

influências externas, ou seja, das causas de sua loucura; 3. vencer as suas resistências

pessoais; 4. submete-lo ao olhar médico; 5. impor-lhe hábitos que acabariam por curar a

loucura através da disciplina.

Portanto, o hospício, para os psiquiatras do séc. XIX, não era uma mera construção,

um hospital comum, e sim, uma “tecnologia”. O espaço asilar deveria ser uma espécie de

cidadela da ordem: perfeita, organizada, higiênica e racional. Um lugar onde a loucura

pudesse ao mesmo tempo manifestar-se em sua verdade e ser abolida através da

racionalidade reinante na organização e funcionamento do hospício.

Mas, na verdade, a invenção de uma tecnologia hospitalar aconteceu no final do séc.

XVIII, quando Philipe Pinel recebeu a direção do Bicêtre em Paris3 e começou a empregar

os princípios do “tratamento moral”.

O princípio do “tratamento moral” repousava sob 4 elementos:

o silêncio: na era clássica, estabelece-se um silêncio entre a loucura e a Razão. A

linguagem do delírio só pode responder à uma ausência de linguagem. O diálogo entre a

Razão e a loucura só pode ser reestabelecido no momento em que se reconhece a sua

culpabilidade;

o reconhecimento pelo espelho: é a fase da humilhação da loucura. O recurso

terapêutico era o teatro, a realidade invertida. Apresentava-se ao doente a comédia da sua

própria loucura. Assim, a loucura é convocada a observar à si mesma, mas nos outros: o

louco reconhece através do espelho o ridículo de sua própria loucura;

o julgamento perpétuo: através desse jogo de espelhos, a loucura é chamada

incessantemente para julgar à si mesma. A encenação da justiça ( o asilo reproduz uma

espécie de microcosmo judiciário ) faz parte do tratamento. Era necessário interiorizar a

culpa e a consciência da loucura;

a autoridade médica: peça central da estrutura da “tecnologia pineliana”. 4

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Quando os médicos da AMRJ criaram seu slogan “Aos loucos o hospício!”, tinham

como referência a velha instituição asilar formulada segundo os moldes da tecnologia

pineliana. Diferente do hospital comum, que apenas “ajuda a curar”, o hospício era, ele

mesmo, “o instrumento de cura”. Ele, por si próprio, tem a função de “remédio”5. A

implantação da tecnologia pineliana tem como baluarte principal a relação de autoridade

entre o médico e doente. Não é por acaso que a nascente psiquiatria, se inscreveu como

uma herança do Absolutismo, a relação médico paciente é uma relação de soberania.

Segundo Castel,

“ o louco só pode reconquistar sua humanidade através de um ato de fidelidade a uma potência soberana encarnada num homem. Desprovido de tudo e principalmente da razão, não tem acesso por si só, à ordem contratual. Se ele pode esperar aceder a essa ordem só pode ser através da mediação de uma relação de tutela tornada arcaica em comparação com o novo modelo que, por suposição, preside à organização da totalidade das relações sociais. Numa sociedade contratual, a relação médica com o louco se instaura, portanto, produzindo a antiga relação de fidelidade.Mas, não inteiramente,. A nova fidelidade não se define mais em relação aos valores da sociedade feudal, mas aos valores racionais da sociedade contratual. O poder do médico , por hipótese, tem por fim, o saber e se anula, enquanto princípio de dominação, com a reconquista da autonomia racional pelo restituir o acesso à razão, subjulgar e liberar, que irá estruturar toda a história da relação terapêutica”6

É assim que Scipion Pinel escreve no seu Traité complet du regime sanitaire des

alienes a respeito do poder médico:

“Deve-se inculcar ao máximo nos alienados a forte persuasão da potência de uma só pessoa que tem o destino deles nas mãos, que pune, que perdoa e que libera. Este deve ser o poder ilimitado do médico-chefe: sua influência aumenta então mais ainda sua consideração, e lhe permite regularizar todas as partes do serviço, pelo impulso que lhes imprime uma vontade firme e tenaz na senda do bem. Ele justifica por todos os meios de que dispõe a importância de seus deveres e de sua responsabilidade... Sua maneira de aproximar-se é digna e calma, sua voz grave, seu olhar doce e benevolente.... Um tal médico é filósofo em toda a extensão do termo: conhece o mundo e pouco o freqüenta ; conhece as enfermidades humanas e faz delas os verdadeiros elementos da ciência do homem; não segue sistema algum, julga-os; igualmente em guarda contra os desvios da imaginação e o estúpido perseverar da ignorância, tem o gênio de sua vocação, o verdadeiro gênio da ciência, que não teme quando os fatos e a lógica o sustentam”7

Nas primeiras décadas do séc. XIX, essa discussão se deu no Brasil somente ao

nível teórico. Tratava-se de trazer para a esfera da Medicina uma discussão que até aquele

momento parecia dizer respeito ao âmbito das questões de “ordem pública”.

Em 1841 o imperador D. Pedro II assina um decreto que previa a fundação do

primeiro hospital psiquiátrico brasileiro. Esse hospício foi inaugurado em 1852 e chamou-

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se D. Pedro II. Era o orgulho do imperador, conheciam-na por “O Palácio de Guardar

Doudos”.

À partir da criação do D. Pedro II, essa instituição recebeu a incumbência de receber

“doudos de todo o Império”. Sua administração foi confiada à Santa Casa de Misericórdia

até 1890, quando o recém instaurado regime republicano o transformou em Asilo Nacional

de Alienados, passando a administração para a tutela do Estado.

O caráter burocrático da teorização psiquiátrica no início do séc. XIX

Os primeiros trabalhos teóricos de Psiquiatria surgiram apenas em meados do séc.

XIX 8. Eram teses obrigatórias de conclusão do curso de Medicina, apresentados à

Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e da Bahia.

A escolha do tema “alienação mental” não era, naquele momento, fruto de algum

curso especializado, nem determinava, para o estudante, uma carreira, uma especialidade a

que iria dedicar-se em seu exercício médico. A Cadeira de Doenças Nervosas e Mentais só

seria criada na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro no ano de 1881. Portanto, em

meados do séc. XIX, a teorização psiquiátrica era mais um exercício de cunho universitário,

um trabalho burocrático que os alunos tinham que apresentar na conclusão de seus cursos.

Segundo Roberto Machado et all, até meados do séc. XIX as teses apresentadas não

refletiam expressamente uma relação entre teoria e prática:

“Defendendo o princípio da observação contra um espírito de sistema, elas expõem uma contradição entre o saber que se diz baseado na experiência, dela depende, mas que se limita a reproduzir o saber dos outros. Apoiados em autores estrangeiros, notadamente franceses, a referência à situação brasileira inexiste ou é ocasional, vindo à corroborar a interpretação teórica encontradas nesses autores”9

O que aconteceu até meados do séc. XIX é que houve uma importação maciça de

teorias européias. Muitas teorias, retomadas e simplificadas, refletem os conflitos de “um

saber que se diz baseado na experiência” e a ausência dessa experiência. O que ocorre então

é um quadro teórico baseado em autores estrangeiros e que não levam em conta as

especificidades do caso brasileiro.

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Em resumo, sendo uma retomada da produção francesa, em grande parte tendo

Esquirol e seu Des Maledies Mentales como referência, esses textos brasileiros

reproduziam os principais temas da Psiquiatria européia.

Esquirol

Em 1838, J. Ettienne Esquirol escreveu um trabalho em que concentrava as teorias

formuladas através da experiência com os insanos e as aulas ministradas na Salpetriére.

Esse trabalho chamava-se Des Maledies Mentales, considerées sous lês rapportes medical,

higgienique et medico legal, e foi publicada apenas dois anos antes de sua morte em 1840.

Esquirol é considerado o primeiro “especialista”, no sentido de que, depois dele,

abre-se uma carreira consagrada à alienação mental. Portanto, ele é habitualmente

apresentado como o fundador da clínica psiquiátrica. Enquanto Pinel teria uma importância

apenas prática e institucional, a obra propriamente científica começaria com Esquirol.

Na verdade, Esquirol foi o mais ortodoxo dos discípulos de Pinel. Sua obra foi uma

aplicação, uma ilustração e um aprofundamento das idéias de seu mestre. Esquirol, todos

sabem, tentou pintar a imagem de Philipe Pinel como a de um sábio filantropo que havia

libertado os loucos dos grilhões que os aprisionavam no Bicêtre e como um antijacobino

convicto, quando na verdade, ele deve a sua nomeação para a direção desse hospital devido

à um decreto da Convenção.10

Na época de Esquirol, os jovens alienistas eram, em geral, “pobres, com idéias

sociais”. Em geral vinham das províncias e, no final do curso de Medicina “subiam para

Paris”. O Alienismo era um saber que os seduzia porque aliava um “rigor científico, uma

aspiração de filantropia e os prestígios da parisiandade”.11

À partir do ano VIII ( no calendário revolucionário ), Esquirol junta-se à Pinel na

Salpetriére, onde ambos passam a ministrar cursos sobre doenças mentais. Seus alunos

serão aqueles que tornar-se-ão os grandes nomes do movimento alienista na Europa, entre

eles estavam Georget, Falret, Voisin, Trélat entre outros.

Ao escrever em 1838 seu Des Maledies Mentales, Esquirol opera um certo

deslocamento no quadro das nosologias clássicas. Até aquele momento, a nosografia mais

aceita era aquela proposta no final do séc. XVIII por Philipe Pinel no seu Traité Medico-

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Philosofique sur l’ Aliénation Mentale ou la Manie publicado no Ano IX, que dividia a

loucura em quatro grande classes: a mania, a melancolia, a demência e o idiotismo. 12 Pinel

incluiu todas essas classes na categoria que chamaria de “alienação mental”, que é a

definição mais utilizada à partir de então para denominar o doente. Ao escrever Des

Maledies Mentales em 1838, Esquirol estabelece a possibilidade da existência de uma

loucura com “delírio parcial”. Para tal, Esquirol traz duas definições novas: a lipemania, o

antigo nome dado à melancolia, e a monomania, um delírio parcial com o predomínio de

uma paixão alegre e expansiva.

Ora, à partir de Esquirol, abre-se a possibilidade de “um louco não ser louco o

tempo inteiro”. Ou seja, a possibilidade da monomania, do louco ter apenas um “delírio

parcial” significa que o algumas pessoas poderiam ser completamente normais em suas

manifestações externas, mas, que a loucura poderia manifestar-se em surtos de extrema

periculosidade.

À partir de Esquirol, tratava-se de retirar a visibilidade da loucura: onde estará o

louco, aparente normal, misturado entre a população? Com a monomania, a loucura torna-

se infinitamente mais difícil de ser diagnosticada. Cabe ao alienista apenas estabelecer os

limites da loucura, e dizer: “este é louco”. Mas, com que instrumentos será ele capaz de

estabelecer uma linha segura entre o normal e o patológico?

Mas, a questão é mais complexa. Em meados do séc. XIX o problema que é

introduzido nas questões médicas é a respeito da responsabilidade do delito do alienado. Se

ele compete à Justiça ou à Medicina13. No artigo 64 do Código Penal, explica Castel,

retomando antigas práticas judiciárias, admite que “não existe crime nem delito quando o

acusado se encontrava em estado de demência no momento da ação ou quando for coagido

por uma força à qual não pôde resistir”14. Portanto, em torno desse problema estabelecia-se

a exclusão da penalidade ao alienado mental, pois tendo cometido o delito em estado de

demência o alienado não poderia responder à seus atos, o que o desresponsabilizava. Mas, a

dificuldade surge justamente de aduzir a prova da irresponsabilidade de um certo número

de casos onde não há presença de delírio para impor a caracterização patológica do ato. A

Medicina Mental sempre se encontra à vontade para diagnosticar quando se trata de uma

patologia causada pelo delírio. Desse modo, o alienista impõe a aplicação direta do artigo

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64 do código penal. Mas face aos atos involuntários sem delírio, a medicina encontra-se em

uma dificuldade teórica.

Segundo Castel, a partir de meados do séc. XVIII, a finalidade da Justiça não é mais

destruir o crime aniquilando o criminoso com o poder do soberano. A justiça torna-se

responsável por corrigir o desequilíbrio de um indivíduo que ao escolher seu interesse

particular contra o interesse geral torna-se culpado. Mudança fundamental, explica Castel,

“porque supõe uma racionalidade calculadora na origem de qualquer ato criminoso, e

portanto, não existe sanção, nem mesmo delito, sem responsabilidade”15 Portanto, a Justiça

depara-se, nesse momento, com um problema que é simétrico ao da Medicina. Da mesma

forma que as categorias classificatórias do Alienismo deixam de ser operatórias no domínio

dos comportamentos, o novo código de responsabilidade coloca para a Justiça uma questão

de princípio.

Até Esquirol, a loucura não se estendia para a esfera do comportamento, porque as

nosografias clássicas não poderiam englobar uma categoria de loucura sem delírio. O

alienista não reconhece nela os sinais clássicos da loucura. É nesse contexto que Esquirol

insere sua célebre nota a respeito da “monomania”. Uma primeira resposta à essa questão

que coloca a medicina mental em dificuldade. Ela age com embaraço e funciona com

dificuldade para patologizar uma nova área do comportamento. Com isso, ela abre um

espaço mal definido de extensão do patológico. Lugar modesto, o próprio inventor da

monomania inicialmente circunscreve-a em uma posição tradicional. Sua primeira

definição de monomania é uma espécie de disjunção em relação à mania definida por Pinel

em seu Traité como um delírio generalizado. A monomania seria uma micromania que se

manifesta quando o delírio se orienta para um objeto particular, deixando intacta a

faculdade da razão, em vez de subvertê-la inteiramente como mania. “Conservamos o nome

de monomania para o delírio parcial” – escreve Esquirol.

No séc. XIX a “monomania criminosa” começa sua carreira nos tribunais. Adotada

com essa feliz definição, ela proporciona à Medicina dispor de um argumento inédito para

os casos excepcionais. Acusações são feitas pelos magistrados que vêem na monomania

criminosa apenas uma tautologia que visa tornar o crime em doença e o assassino em louco.

Com essa noção ainda frágil, no séc. XIX, pelo menos sob essa forma, a medicina

mental pretende conquistar uma parte das prerrogativas tradicionais da Justiça criando uma

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espécie de “competência especial” para legislar em matéria de justiça criminal. Os grandes

crimes monstruosos do séc. XIX que chocaram a opinião pública colocavam um problema

que batia de frente com o direito de punir o criminoso no caso de ele ser um alienado. Era

então o momento em que o aparelho de gestão da loucura, a Psiquiatria, iria assumir esse

cargo.

O estatuto de doença mental da loucura

No que se refere à legislação brasileira sobre a loucura, a primeira Lei dos alienados

surge em 1852, sob influência de Esquirol, autor da legislação francesa. Essa primeira

legislação de 1852 foi a primeira formulação sistemática em relação à um grupo social. Até

então apenas os servidores militares gozavam de alguma garantia de assistência por parte

do Estado.

É interessante perceber que essa legislação ocorreu em um espaço de tempo bastante

curto em relação à lei de 30 de junho de 1838 ou a Lei dos alienados de 1838 na França. Na

Europa, essa legislação foi a primeira do gênero. A lei de 1838 foi proposta pelo Ministério

do Interior, emendada e votada pelas duas Câmaras, ao final de um longo debate político a

respeito do que fazer com o louco, é fruto de um compromisso negociado entre os grandes

alienistas – Esquirol, Falret, Ferrus – e os representantes do poder estatal. A lei de 1838 de

certa maneira, cria um “poder médico”a meio caminho entre o poder administrativo e o

poder judiciário. Ela iria definir o estatuto civil, jurídico e social do louco e estruturar todo

o sistema asilar francês. Essa tutelarização brutal representa, em grande parte, a vitória do

discurso alienista.

No período revolucionário, haviam alguns milhares de loucos na França. Um

número bem pequeno ( Ferrus em 1834 enumera apenas 10 mil ) se comparados com os 10

milhões de indigentes, 300 mil vagabundos, 130 mil menores abandonados.16

A lei de 1838 é a primeira grande medida administrativa que reconhece o direito à

“assistência” à uma categoria social. É a primeira , segundo Robert Castel, “à instalar um

dispositivo completo de ajuda com a invenção de um novo espaço, o asilo, a criação de um

primeiro corpo de médicos-funcionários e a constituição de um saber especial”17

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O louco, que na ruptura revolucionária emerge como problema, no fim desse

processo irá encontrar-se totalmente definido enquanto sujeito social, recebendo, através da

lei de 1838, o seu estatuto civil, jurídico e social.

É difícil entender a legislação brasileira sobre os alienados. Apesar da notória

influência “técnica” da legislação francesa, a lei de 1838 não explica o estatuto brasileiro.

Segundo Roberto Machado et all. a legislação de 1852 atribui ao médico um papel

secundário na internação.18 Em primeiro lugar, está o Juiz de Órfãos, depois o Chefe de

Polícia, a família, e a Administração da Santa Casa de Misericórdia. No capítulo III, que

diz respeito à “Admissão e Saída dos alienados” estabelece que, para que haja matrícula,

deve haver um despacho do provedor da Santa Casa de Misericórdia, que por sua vez conta

com a requisição do Juiz de Órfãos e do Delegado de Polícia; a internação também pode ser

requisitada pelo pai, tutor ou curador, irmão, marido ou mulher, ou senhor ( no caso de ser

escravo ).

Ora isso demonstra bem que o dispositivo de seqüestração dos insanos se davam

através de procedimentos complexos e mal unificados.19 A legislação de 1852 repousava-se

sobre uma legitimação baseada na ausência de caráter clínico da internação. Assim como o

médico não tinha influência na admissão, também não tinha poderes para decidir sobre a

alta de um paciente. A saída não necessariamente significava que houvesse obtido a cura.

Depois de 1852, houve mais uma legislação importante até o final da Primeira

República. A Legislação de 1903.

A Lei de 1903 é aquela que determina a separação do Hospício D. Pedro II da Santa

Casa de Misericórdia. Uma lei que ocorre no início da República e que transforma o

hospício mais antigo do Brasil em Asilo Nacional. Essa legislação de 1903 é conhecida por

Lei Federal dos Alienados, que dará as bases para a formulação do estatuto do alienado no

Código Civil de 1916.

Para entender essa lei é necessário associá-la à um nome: Teixeira Brandão. Desde

1896, Teixeira Brandão, médico e diretor do Hospício D. Pedro II, começa a publicar uma

série de artigos em jornais como O Paiz e Diário Oficial apontando as deficiências do

Hospício D. Pedro II. Ele aponta para o fato de que, para o fortalecimento do hospício

aconteça, é preciso fazer dele o espaço fundamental para o louco e para a Psiquiatria. A

Psiquiatria deveria ser o espaço regulador da loucura. Tais disposições, como vimos, não

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estavam presentes na primeira legislação de alienados de 1952, que reservava ao médico

um papel secundário.

Em 1903, Teixeira Brandão é eleito deputado, conseguindo, no mesmo ano, a

aprovação da Lei Federal de Assistência aos Alienados de 1903. Essa lei, e aí percebe-se

claramente o deslocamento em relação à 1852, faz do hospício o único lugar apto a receber

loucos, subordina a internação ao parecer médico e estabelece a guarda provisória dos bens

dos alienados.

À partir da legislação de 1903, a questão da loucura é assunto do Estado. A partir

daí, a criação de estabelecimentos psiquiátricos devem conter a autorização dos presidentes

dos Estados e serem subordinados à autoridade dos Ministros dos Negócios do Interior,

Justiça e Instrucção Pública.

É exatamente nesse contexto que surge, em Curitiba, o Hospício Nossa Senhora da

Luz, exatamente em 1903, ano da aprovação da Lei Federal, que transfere a

responsabilidade do louco e da loucura para o âmbito do Estado.

O Juquery de Franco da Rocha

Mas, não nos antecipemos. No início da República houve um processo no qual

tentou-se o salvamento da instituição antiga e desacreditada que era então o Hospício D.

Pedro II 20. Tentava-se implantar uma gestão científica dos hospícios. O Hospício D. Pedro

II, a velha instituição do Império, o “Palácio de Guardar Doudos” do imperador , era agora

transformado em Asilo Nacional dos Alienados. Ora, era mais ou menos neste período que

um ex-aluno de Teixeira Brandão, Francisco Franco da Rocha, torna-se figura central na

Psiquiatria do início do século. Franco da Rocha, o “Pinel Brasileiro”, havia sido um dos

alunos de Teixeira Brandão na primeira turma de Psiquiatria formada pela Faculdade de

Medicina do Rio de Janeiro. Ele concluiria seus cursos e voltaria para São Paulo, onde seria

o fundador do Hospício Juquery.

Até então, os loucos pobres eram tratados na Santa Casa de Misericórdia e no

Hospício Velho em São Paulo. Desse hospício velho, temos poucas informações. Sabemos

que foi criado em 1852, mesmo ano do Hospício D. Pedro II. Contudo, esse hospício,

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menor, e com menos recursos, abrigava apenas doentes pobres e aqueles que representavam

algum risco à ordem pública.

O hospício do Juquery, fundado por Franco da Rocha começa a funcionar em 1901

e é concluído em 1903 e logo se tornará modelo para todo o país. A instalação do hospício

não se deu de uma só leva: em 1898 veio a colônia agrícola; em 1901, os pavilhões

masculinos; em 1903, os pavilhões femininos.

É mais ou menos nesta época que os documentos do Hospício Nossa Senhora da

Luz em Curitiba deixam transparecer a influência do projeto do Juquery, formulado pelo

arquiteto Ramos de Azevedo, teve na instituição paranaense.

Rodolfo Lemos e, posteriormente, outros diretores do hospício, por diversas vezes

visitaram o Juquery. Os documentos da época dizem que a segunda sede do Hospício Nossa

Senhora da Luz, inaugurado em 1907, haviam obedecido aos padrões de “hygiene e

sciencia” e que os pavilhões eram separados “à exemplo dos que foram construídos em São

Paulo”.21

O Juquery possuía, segundo descrição de Maria Clementina Cunha em O Espelho

do Mundo: Juquery, a história de um asilo,22 galerias cobertas que cortam um jardim

circular, praça ajardinada, dormitórios coletivos, banheiros, refeitório, pátio interno e oito

pavilhões distribuídos simetricamente. O prédio central, construído em estilo Art Nouveau

era, na definição da autora, “um monumento ao poder alienista”.23

O Adão degenerado de Morel : teorias organicistas da segunda metade do séc. XIX

No final do séc. XIX, os psiquiatras e, sobretudo, a figura central de Franco da

Rocha, demonstravam intimidade com as teorias mais modernas da Medicina Mental: de

Kraft-Ebbing à Kraepelin, de Magnan e Voisin à Lacassagne, os psiquiatras brasileiros

começava então à dialogar com as várias correntes teóricas do séc. XIX. O resultado é que

a Psiquiatria desse momento se viu dotada de um notável ecletismo.

Contudo, uma corrente, se não dominou completamente essa geração, exerceu

influência decisiva no pensamento e na formulação de teorias. Tratava-se da “teoria da

degenerescência”.

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Formulada pelo alienista francês B. A. Morel na década de 50 do séc. XIX, em um

trabalho intitulado Traité des dégénérescences physiques, intelectuales et morals de

l’espécie humaine, a teoria da degenerescência iria ganhar impulso no Brasil nas últimas

décadas do séc. XIX.

Baseado em observações biológicas, fisiológicas e até mesmo teológicas, Morel

dava um grito de alerta à Humanidade.

Ele havia formulado sua teoria à partir de observações feita entre o proletariado da

região de Ruão na França. Ali ele observou uma série de fatores como suicídios, a extensão

da prostituição, número de mortes naturais e acidentais, proporção de alcoolismo, etc. Com

base nesses fatores, ele tentava fazer uma estatística moral baseado na observação física,

higiênica e mental dessas populações. Com isso, Morel acreditava descobrir as causas

sociais do aumento de alienados, sobretudo, entre os pobres.

O que Morel tinha à dizer no seu Traité dés dégénérescences era realmente

assustador. Segundo ele, a Humanidade havia se originado de um “tipo primitivo ideal” que

conteria todos os elementos da raça, mas que, por uma série de desvios em relação à esse

tipo primitivo, a Humanidade estava caminhando para a degenerescência. À medida que o

germe patológico vai-se transmitindo, seus efeitos se agravam e os descendentes vão

descendo os degraus da decadência física e moral, até a esterilidade. Ao término do

percurso, a linhagem afetada se extinguiria por si só, por uma espécie de eliminação

natural.

Nesse tipo primitivo, segundo Morel, o homem era dominado por uma espécie de

“lei moral”, por uma convicção do dever ao qual se submetia sem queixumes, realizando

uma “destinação social”. O corpo não passava de um instrumento da inteligência. A doença

mental, porém, invertia essa hierarquia, rebaixando o homem ao nível do animal. Para

Morel, a Humanidade já estava no declive da degenerescência e, no futuro, poderia não

oferecer nada além de “frutos secos”.

Morel indicava um conjunto de causas atribuídas à degenerescência: 1.

intoxicações: álcool, ópio, fomes, epidemias, intoxicações alimentares; 2 meio social:

indústrias, profissões insalubres, miséria; 3 afeção mórbida anterior ou temperamento

malévolo; 4 mal moral: a própria ( falta de ) moralidade dos costumes era um fator

degenerativo; 5 enfermidades congênitas ou adquiridas na infância; 6 influências

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hereditárias: à partir de Morel, a noção de hereditariedade da doença mental, já presente

em Pinel e Esquirol, toma lugar central na hierarquia das causas da loucura.24

Pessoalmente, Morel não obteve muito sucesso, mas sua teoria da degenerescência

seria base para qualquer teoria organicista nas décadas seguintes.25

À partir de Morel, há uma tentativa de empregar os princípios do tratamento moral

para além dos muros do hospício. Restrito ao hospício, a prática psiquiátrica era reduzida à

impotência, porque intervém muito tarde, sobre indivíduos já “estragados”. Era preciso

fazer, segundo acreditava Morel, uma Psiquiatria Preventiva, que atuasse diretamente no

meio social. Com Morel, o psiquiatra quer estar lá onde há um foco de desordem. Ele

convoca os especialistas à uma obra de regeneração, aplicando uma ação preventiva direta

sobre as massas.

Franco da Rocha deixa transparecer a influência de Morel em seus artigos

publicados em revistas médicas, como o Archivos de Psichiatría, Criminologia y Ciências

Afines, de Buenos Aires, onde, no séc. XIX, os principais psiquiatras brasileiros

costumavam publicar seus textos.

“Ao grupo de degenerados vêm juntar-se, muito naturalmente, os desclassificados da sociedade. Denominamos desclassificados a uma série de tipos especiais que não cabem nem na sociedade nem no hospício ( ... ). Eles estão pela rua, por toda parte. Agite-se um pouco a sociedade por qualquer motivo, e eles logo surgirão. São candidatos constantes ao hospício”26

Nisso, o pensamento alienista acabou unindo-se à profilaxia do meio urbano que já

vinha sendo tematizado pela Medicina Social desde o final do séc. XVIII. Se a teoria da

degenerescência estava calcada na observação de uma série de fatores típicos das classes

inferiores, que degradavam as condições de vida, era necessário um ataque direto à esses

focos de desordem, ou seja, as habitações coletivas insalubres dos pobres das principais

cidades: os cortiços, que se espalhavam pelas grandes cidades e eram tidos como foco de

doenças e esconderijo de degenerados. A própria prostituição, a vadiagem, a mendicância,

o alcoolismo eram vistos como sintomas de degenerescência que deviam ser combatidos

através da repressão tanto médica como policial.

De fato, a profilaxia preventiva de Morel tornou-se um instrumento poderoso nas

mãos de psiquiatras em guerra contra a desordem social. No Brasil, essas teorias

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mesclaram-se com o darwinismo social de Gobineau e tornam-se componentes para uma

teoria que tem como pano de fundo o racismo biológico.27

É mais ou menos esse o conjunto de idéias e acontecimentos , se é que podemos

dar-lhes alguma coerência, que se instaurava no Brasil na virada do séc. XIX para o séc.

XX. No Capítulo III, tentaremos utilizar esse quadro de referências para analisar o nosso

objeto de estudo, o Hospício Nossa Senhora da Luz.

Obviamente, na virada do séc. XIX para o XX, não havia em Curitiba, um saber tão

sofisticado como aquele que se havia instaurado sob os ecos de um Teixeira Brandão ou um

Franco da Rocha. Com efeito, o caso curitibano parece ser marcado, no período entre 1890-

1920, muito mais por um certo pioneirismo e experimentalismo que se insere por detrás de

um discurso de cientificidade. Contudo, esse experimentalismo não exclui a possibilidade

de ter ocorrido, naquele momento, o primeiro processo de medicalização da loucura,

hipótese que procuraremos desenvolver no capítulo seguinte.

NOTAS DE REFERÊNCIA 1 Sobre a formação histórica da Psiquiatria no Brasil, consultar o livro de Roberto Machado et all. ( MACHADO, Roberto et all. Da( n )ação da norma : Medicina Social e constituição da Psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1978 2 CASTEL, Robert. A Ordem Psiquiátrica : A Idade de Ouro do Alienismo. Rio de Janeiro: Graal, 1978. 3 O Bicêtre e a Salpetriére eram os dois grandes estabelecimentos da França. Os dois juntos recebiam mais da metade dos alienados do Reino. A Salpetriére já havia sido um depósito de mendigos antes de ser transformado por Luis XV em um hospital. No séc. XVIII, Pinel, Tuke e Tenon efetuaram uma série de reformas nos antigos hospitais como o Bicêtre, a Salpetriére e o Hôtel Dieu onde segundo a descrição do duque de Rochefoucault-Liancurt não havia apenas loucos, mas “crianças, escrufulosos, paralíticos, homens reclusos por lettres de cachet, etc. ( CASTEL, ibid, p. 82 ) Por isso, muitos autores consideram equivocado dar todo o crédito à Pinel, já que não foi ele “mas todo uma época” que operou mudanças. 4 Ver FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 1978. Pp. 489-503 5 O Hospital Geral, não é um estabelecimento médico, explica Foucault em História da Loucura. “É antes uma estrutura semijurídica, uma espécie de entidade administrativa que, ao lado dos poderes já constituídos, e além dos tribunais, julga e executa. ( ... ) Soberania quase absoluta, jurisdição sem apelações, direito de execução contra o qual pode prevalecer o hospital geral é um estranho poder que o rei estabelece entre a justiça e a polícia, nos limites da lei: é a terceira ordem da repressão.” ( FOUCAULT, p. 50 ). É nesse ambiente que Pinel encontrou os alienados no Bicêtre e na Salpetriére. O hospital do séc. XVIII não se assemelha à idéia de clínica. 6 CASTEL, p. 89. 7 SCIPION PINEL, citado por CASTEL, Robert. A instituição psiquiátrica em questão. In: FIGUEIRA, Sérvulo ( org. ) Sociedade e Doença Mental. Rio de Janeiro: Campus, 1978. p. 184. 8 Alguns exemplos de teses de Psiquiatria no início do séc. XIX eram: SILVA PEIXOTO, A L. Considerações gerais sobre a alienação mental. Tese apresentada à FMRJ, 1837; FIGUEIREDO, A J.I.C.

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Breve estudo sobre algumas generalidades a respeito da alienação mental. Tese à FMRJ, 1847 e LEÃO, G.F. Analogias sobre o homem são e o alienado e em particular a monomania. tese à FMRJ, 1842. citados por MACHADO, Pp.387-397 9 MACHADO, p. 383 10 Cf. SWAIN, Gladys; GAUCHET, Marcel. La pratique de l’esprit humain, la insituicion asilaire et la révolution démocratique. Paris: Gallimard, 1978. 11 CASTEL, p. 17 12 No plano metodológico é necessário perceber que as grandes nosografias do séc. XVIII procuravam aplicar no estudo das doenças os métodos de classificação utilizado pelas Ciências Naturais, da Botânica, por exemplo. É assim que, ao formular seu Traité Medico-Philosofique no séc. XVIII Pinel tentava trazer para a Psiquiatria o apanágio das Ciências Naturais. 13 Ver, por exemplo, FOUCAULT, Michel e outros. Eu, Pierre Riviére que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão. Rio de Janeiro: Graal, 1977, especialmente o dossiê de Robert Castel intitulado Os médicos

e os Juizes. 14 CASTEL, p. 162. 15 Ibid., p. 164. 16 Ibid.,, p. 21 17 ibid., p. 22 18 MACHADO, p. 478. 19 Aqui é necessário fazer uma comparação. Antes da Revolução Francesa, havia 3 mecanismos de seqüestração dos insanos na França: as ordens de justiça, a interdição e as lettres de cachet. A interdição era um procedimento judiciário em que a família pedia a “interdição” do alienado. Declarado louco por um juiz, os seus bens eram seqüestrados e colocados sob tutela. Porém, a interdição era um processo longo e penoso, o que tornava-a uma medida muito pouco requisitada. Mais fácil eram as lettres de cachet. Cachet era um sinete real gravado em documentos ( cartas seladas ). Esses documentos determinavam o encarceramento ou o exílio autorizado em nome do Rei. Em geral, as lettres de cachet eram assinadas em branco, por isso, tornaram-se instrumentos de perseguição política e transformou-se em um dos símbolos da arbitrariedade real. As lettres de cachet eram usadas de duas maneiras para enclausurar o louco. A primeira partia de um pedido de um chefe de polícia de Paris ou das províncias, que recolhiam os loucos quando estes perturbavam a ordem pública. Em geral, o louco era preso imediatamente, mas a seqüestração só tinha efeito legal após a obtenção da lettre de cachet. O segundo uso das lettres de cachet partia da família do alienado. Um membro da família fazia uma petição ao Ministro da Casa Real, alegando as razões pelas quais solicitava o enclausuramento do insano, que, depois de declarado como tal, passava a ser considerado um “prisioneiro de família”. Assim, esses dispositivo de seqüestração dos insanos no Antigo Regime traduziam bem como esse enclausuramento era feito a partir de critérios não-técnicos. Esses procedimentos, complexos e mal unificados demonstram que o poder de enclausurar o louco pertencia, não ao médico, mas à uma estrutura arcaica em que esse poder era dividido entre o Estado, o aparelho judiciário e a família. Sobre esse assunto, ver o primeiro capítulo de R. Castel, op. cit., Pp. 22-31. Também consultar o texto de J. a Guilhon Albuquerque. GUILHON ALBUQUERQUE, J. A. O louco entre o juiz e o médico. In: Metáforas da Desordem. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. 20 É nesse momento, por exemplo, que Lima Barreto, ao fazer seu livro autobiográfico, contando suas experiências como interno do Hospício D. Pedro II, iria chamá-lo de Cemitério dos Vivos ( nome que dá o título ao seu livro ). 21 BREVE Histórico da Fundação e Evolução do Hospital Psiquiátrico Nossa Sra da Luz, anônimo, s.d. 22 CUNHA, Maria Clementina. O Espelho do Mundo : Juquery, a história de um asilo. São Paulo: Brasiliense, 1985. 23 ibid, p. 81. 24 BERCHERIE, Paul. Os fundamentos da Clínica : história e estrutura do saber psiquiátrico. Rio de Janeiro : Zahar, 1980. 25 Segundo Peter Pál Pelbart, em Da Clausura do Fora..., o problema da etiologia da loucura sempre dominou a reflexão teórica desde os primeiros alienistas. A alienação mental era uma doença do corpo ou das paixões? Embora tais questões não fossem novas, ganharam um novo alcance com o nascimento da Psiquiatria no final do séc. XVIII e início do XIX. Duas escolas se subdividiram nesse período para tentar explicar essa questão. A escola somaticista, na qual a origem da loucura era orgânica, ou seja, era uma enfermidade física; e a escola psicológica, em que a loucura era uma afecção da alma, uma doença da paixão.

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Alguns, como Falret, tentaram conciliar as duas teorias, mas a questão era bem mais profunda do que simples posições teóricas. Tratava-se de discutir como a loucura deveria ser curada e se o tratamento deveria ser moral ou físico. O problema do Alienismo era como legitimar-se como ciência autônoma da Medicina, como fundamentar cientificamente suas práticas de exclusão e fazer “uma pedagogia do desvio derivar de uma racionalidade médica?” ( p. 217 ). Cf. apêndice III intitulado Captura Psiquiátrica de Peter Pál Pelbart, que aqui chamamos de medicalização da loucura, ou seja, apreensão da loucura pelo saber psiquiátrico. PELBART, Peter Pál. Da Clausura do Fora ao Fora da Clausura : Loucura e Desrazão. São Paulo: Brasiliense, 1989. Pp. 217-224. À partir do séc. XVIII as teorias organicistas tomam maior sustentação com a Frenologia de Franz Joseph Gall. A Frenologia, essa irmã mais velha da Craniologia do séc. XIX, foi a primeira doutrina coerente a estabelecer relações entre o desenvolvimento intelectual e a estrutura da caixa craniana, Portanto, foi a primeira a dar importância ao cérebro como sede do intelecto, uma teoria até então um pouco confusa. Interessante notar que, nos séc. XVIII e XIX houve uma verdadeira “frenomania” , ou seja, a transformação de crânios de pessoas notáveis como Haydin, Descartes, Pascal ou J. S. Bach, assim como de assassinos notórios como de Charlote Corday ( assassina de Marat ), em verdadeiras relíquias. Apesar de seus exageros, a Frenologia de Gall exerceu muita influência entre os jovens alienistas. Gall tinha esperança, examinando cérebros de alienados, de descobrir à cada região do cérebro uma monomania correspondente. Entre os seguidores de Gall estavam Ferrus, Voisin, Scipion Pinel e Georget. Outros, como Falret não concordavam com ele. Cf. BERCHERIE, op. cit, Pp.57-70. Com Morel, as teorias organicistas tomam uma força nova à partir da dec.50 do séc. XIX. A formulação e a rápida aceitação da teoria da degenerescência iria conferir à Psiquiatria uma estranha amplitude ( a intervenção na sociedade através da Psiquiatria Preventiva de Morel conferia ao Alienismo um potencial de controle social ). A teoria da degenerescência iria retomar a questão da loucura como uma doença orgânica, iria colocar diretamente a questão da inevitabilidade da degeneração através da transmissão genética. 26 CUNHA, op. cit, p. 51. 27 Sobre a aceitação desse tipo de teoria com pano de fundo de racismo biológico, seria interessante tomar como ponto de partida um trabalho de Viveiros de Castro, publicado em 1894. Francisco Viveiros de Castro é autor de um livro intitulado Attentados ao Pudor : estudos sobre as aberrações do instincto sexual ( VIVEIROS DE CASTRO, Francisco. Attentados ao Pudor : estudos sobre as aberrações do instincto sexual. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1934. 3 ed. – disponível na seção de obras raras da biblioteca de Direito da UFPR ). Baseado em teóricos como Lacassagne, Leo Taxil, Kraft- Ebbing, Ball, Trélat, Tardieu e Cesare Lombroso e apoiado em observações à partir de relatos como o de Teixeira Brandão em hospícios brasileiros, além da sua própria experiência como professor de Direito Criminal na Faculdade de Livre Direito do Rio de Janeiro, Viveiros de Castro coloca uma problemática bem interessante em relação ao que ele chama de “aberração do instincto”. Segundo o autor, os instintos naturais do Homem são o nutritivo e o sexual, garantindo a sobrevivência e a reprodução da espécie. Mas, qualquer desvio ou excesso em relação ao segundo tipo, acarretaria em uma “aberração do instincto sexual”. Seguindo as teorias então em voga, Viveiros de Castro atribui o aumento desse tipo de aberração ao fin-de-siécle, já que nele, tanto a loucura, como a criminalidade, o suicídio e o alcoolismo tinham aumentado enormemente. O autor atribui isso à um sintoma da degenerescência. Ao escolher essa problemática, Viveiros de Castro coloca o que considera ser fundamental em sua argumentação. O brasileiro, segundo o autor, é notório por sua “propensão à sexualidade”. O problema que o autor coloca é se isso pode ser compreendido como um “exhuberância do instincto sexual” ou como um dos “syndromas da degenerescência aggravada pela hereditariedade? ( p. 6 ) Portanto, problematizar as aberrações sexuais entre os brasileiros era colocar uma pergunta central: estaria ele à caminho da degenerescência? Viveiros de Castro não deixa de evidenciar um certo darwinismo social no que considera ser o “tipo brasileiro”: “assistimos à mais uma confirmação da lei de Darwin, os negros tendem à desapparecer absorvidos pela raça branca, e desse cruzamento surge o typo genuninamente nacional” ( p. 8 ). a disciplina que então começava a estudar esse tipo de comportamento era a Antropologia Criminal. Sobretudo depois de Cesare Lombroso e a publicação de seu L’Uomo delinqüente ( o homem criminoso ), em 1876, a teoria mais aceita era de que o homem já estava predisposto ao crime desde o seu nascimento. A idéia do “criminoso nato” formulada por Lombroso no seu L’Uomo delinqüente seria a base para a chamada Escola Italiana de Antropologia Criminal surgida no final do séc. XIX. A partir de Lombroso, o crime passa a ser considerado um subproduto da degenerescência ( Lombroso tinha lido Morel ) e do atavismo. Assim, o criminoso passa a ser objeto tematizado pela Medicina Legal, que procura estudar as influências das anomalias ( uma formação defeituosa do cérebro ou do crânio, por exemplo ), no crime. Sobre a

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medicalização do crime consultar DARMON, Pierre. Médicos e Assassinos na Bélle Époque : a medicalização do crime. São Paulo: Paz e Terra, 1991.

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CAPÍTULO III

A FORMA E A OBRA DA PSIQUIATRIA : O HOSPÍCIO NOSSA SENHORA DA LUZ E A NOVA TECNOLOGIA ASILAR

O meio urbano tematizado pela Medicina Social

Em 1854, Curitiba recebe o título de Capital da Província do Paraná, deixando de

ser a Quinta Comarca de São Paulo. À partir de então, a cidade lentamente foi se adaptando

à uma série de exigências do Império para a sua transformação político-administrativa que

fosse condizente com a sua nova condição de capital.

Já em 1857, Curitiba teve o primeiro plano urbanístico, sob a responsabilidade do

engenheiro francês Pierre Taulois, que logo após sua chegada em Curitiba, foi nomeado

Inspetor Geral de Medição e Demolição de Terras Públicas.

Uma das preocupações de Pierre Taulois era o paralelismo das ruas, apontando para

um modelo de cidade com forma regular, quadrilátera, com cruzamento de ângulos retos e

bem definidos. Taulois demonstrava uma preocupação com a circulação dentro da malha

urbana, trazendo os princípios do urbanismo francês.1

O crescimento populacional de Curitiba foi muito grande, em especial nas últimas

décadas do séc. XIX. À partir de 1870, a cidade começa a receber as primeiras levas

migratórias. À partir das últimas décadas do séc. XIX, essa mão de obra começa a ser

utilizada para a realização de obras como a construção da estrada de ferro Curitiba-

Paranaguá, a instalação de linhas teleféricas e serviços.2

À partir de então, a cidade começa à sentir as primeiras lufadas de modernização. A

cidade velha, de casas de taipa, do casario térreo caiado de branco, ainda com traços

coloniais, ia dando passagem à uma cidade mais alta, com sobrados, palacetes e solares

pertencente à nascente burguesia ervateira.

A nova cidade era vista pelos seus contemporâneos com um misto de êxtase e

entusiasmo, sentimento de pertencimento à sociedade civilizada e desconfiança pelo

desconhecido. O aformoseamento da cidade, com seus passeios, logradouros e boulevards

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lentamente iam mudando a fisionomia da cidade e alterando os hábitos da pequena

Curitiba.

Com o boom do mate à partir da segunda metade do séc. XIX 3, formou-se uma

camada tipicamente citadina. As cidades não eram mais aquelas que, em meados do séc.

XVIII, comportavam apenas atividades burocráticas e comerciais. Vilarejos que eram

formados pelas habitações de proprietários rurais e que tinham apenas alguma “vida social”

em ocasiões religiosas.

À partir do último quartel do séc. XIX, estava claro que a cidade não deveria

comportar apenas atividades burocráticas e comerciais, elas deveriam fornecer opções de

entretenimento e lazer para seus habitantes nos horários de ócio. Assim, à maneira das

grandes capitais européias do séc. XIX, como Paris, exigia-se a construção de espaços

como teatros, largos, praças, boulevards, cafés e avenidas, onde os habitantes pudessem sair

para o seu “footing” domingueiro.

A inauguração da estrada de ferro em 1885, deu um novo ânimo à cidade com a

abertura da Rua Barão do Rio Branco, que ia desembocar na Rua XV de Novembro. Essa

região sofreu um novo sopro de vida. Comércio variado, hotéis e residências luxuosas

davam à cidade um ar mais cosmopolita. A influência do urbanismo pós-haussmaniano se

fazia sentir tanto pelas obras de engenheiros europeus que aqui trabalhavam como pelas

dos brasileiros formados na Escola Politécnica do Rio de Janeiro.

Em 1886 foi inaugurado o Passeio Público, um dos primeiros espaços criados pela

administração pública para o lazer. Essa construção, além de resolver o problema do

saneamento do Rio Belém, reflete bem a preocupação política daquele momento de efetuar

melhorias urbanísticas na cidade.

Lentamente, as classes baixas vão desenvolvendo formas de lazer. Um exemplo

típico desse período são os sumpfs, introduzidos pelos alemães no séc. XIX. Os sumpfs

eram “bailões” freqüentados pela criadagem, pelos operários e pelos escravos. Ali pagava-

se entrada e vendiam-se bebidas alcoólicas. Nos sumpfs, dançavam-se polcas e valsas, uma

introdução lenta da maneira de dançar da burguesia. Contudo, o acompanhamento era feito

com sanfonas e instrumentos de sopro.4

Esse tipo de divertimento público não era bem visto pelas autoridades paranaenses.

Desde as últimas décadas do séc. XIX, os chefes de polícia têm escrito sobre eles em seus

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relatórios. Eles consideram sumpfs como “desregrado” e “corruptor”, um ambiente

“carregado de vapores alcoólicos” onde não raro “reluziam as armas”. Assim, os sumpfs,

assim como as casas de tavolagem ( jogos ) e os bordéis, são fiscalizados de perto pelas

autoridades paranaense no final do século5.

Apesar dessa descrição dos contemporâneos, de cronistas, literatos, autoridades

políticas, intelectuais em que predomina uma visão de uma cidade em perfeita harmonia

com o modelo civilizatório, com seus notáveis edifícios, o Paço Municipal, a Universidade,

o Gimnásio, a Escola Normal, com suas avenidas e logradouros, ao longo do séc. XIX, a

classe médica começa a chamar atenção das autoridade políticas para a questão da Saúde e

Higiene Pública. Ao tornar-se uma “metrópole”, a cidade também sofria os efeitos das

aglomerações humanas. O meio urbano tornava-se o principal veículo de doenças e

epidemias.

O projeto de Civilização esbarrava-se com o perigo das epidemias como a cholera-

morbus, a varíola e a febre amarela que começavam a assolara as cidades paranaenses.

São desse período os principais trabalhos sobre Saúde em Curitiba. Trajano do Reis,

médico formado pela Faculdade de Medicina da Bahia, e nomeado inspector geral de

hygiene no Paraná, escreveu o primeiro trabalho importante na área em 1894, Elementos de

Hygiene Social 6. Seu filho, Jayme dos Reis, escreveu uma tese em 1898 para concorrer à

cadeira de Hygiene da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro intitulada Dissertação das

Principais Endemias e Epidemias de Curitiba 7. Theodoro Bayna escreve sobre A Febre

Typhoide no Paraná em 1918 8. Heráclides César Souza Araújo, leprologista e diretor do

Serviço de Profilaxia do Estado, escreve em 1919, um livro intitulado A Profilaxia Rural

no Estado do Paraná : esboço de prophilaxia médica 9. Depois, Souza Araújo dedica-se à

escrever uma História da Lepra no Brasil 10.

A primeira cidade paranaense a receber uma instituição sanitária foi Paranaguá, e

isso tem um sentido óbvio. O porto de Paranaguá era um foco perigoso de moléstias e porta

de entrada para as epidemias no Estado. Assim, criou-se a Inspetoria de Higiene do Porto

de Paranaguá, visando fiscalizar os navios e detectar doenças contagiosas. Somente após a

inspeção eram liberadas as “cartas de saúde”, necessárias para que os navios pudessem

ancorar em qualquer outro porto do Brasil. Caso fosse detectado uma moléstia, o enfermo

era levado para o Lazareto da Ilha das Cobras, onde ficava de quarentena.

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Portanto, para barrar o perigo das epidemias, as cidades deveriam desenvolver

estratégias sanitárias: drenar, pavimentar, ventilar. A idéia de um Brasil como “um país

doente”, preconizado pelos higienistas do início do século, seria um dos emblemas da

crítica política e social da Primeira República.11

Mas, a preocupação é mais antiga. Em 1855, impressionados com a notícia de uma

epidemia de cholera-morbus que se iniciara no Pará e que irrompia em vários pontos do

território, um grupo reuniu-se em casa de José Antonio Vaz de Carvalho, então chefe de

polícia, afim de discutir medidas necessárias para impedir que a moléstia se propagasse

pela Província. Foi nomeado uma comissão em agosto de 1855 com o fim de preparar-se

para os efeitos causados caso a cholera-morbus se manifestasse na cidade. Em 24 de agosto,

a comissão é formada por Caetano José Munhoz, Manoel Gonçalvez de Moraes Roseira,

Francisco Januário da Gama Cerqueira, José Cândido Muricy, entre outros12

Essa comissão, apresentou as seguintes propostas de acordo com a “hygiene e

sciencia médica”: 1. asseio das ruas e praças; 2. dessecação das águas estagnadas e dos

banhados; 3. fiscalização interna dos prédios públicos e particulares; 4. fiscalização dos

gêneros alimentícios; 5. proibição rigorosa do enterramento de cadáveres nas igrejas,

devendo-se propiciar construção de cemitérios ; 6. construção de botica sortida de

medicamentos “em quantidade de se poder fornecer a população da Capital, assim como a

do Interior”; 7. solicitar do Governo Geral, a remessa de médicos militares; 8. providenciar

um lazareto nos arrebaldes de Curitiba.

Nessa época, a cidade corria um risco constante de ser vitimado por epidemias

devido às péssimas condições sanitárias e também devido à ausência de médicos na

província. Essa comissão de saúde, formada em 1855, mostrou a necessidade urgente da

vinda de médicos e boticários para Curitiba, pois até então, haviam locais na província em

que “não se encontra ao menos um curandeiro”13. Mais comum, nessa época, era a presença

de médicos itinerantes, ou seja, médicos que se estabeleciam por pouco tempo, ou que

estavam de passagem pela cidade e que anunciavam seus serviços na imprensa local:

“O Dr. Estavão Legarde – recentemente chegado à esta capital, tem a honra de oferecer seu préstimo ao respeitável público, as pessoas que dele quiserem utilizar podem procurar a todas as horas na casa n. 15 da Rua da Entrada, que o acharão pronto – encarrega-se também de fazer quaisquer operações inerentes à sua arte; nos pobres curará gratuitamente”14

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Assim, ao abordar o aspecto mais direto da Saúde Pública, que são as epidemias, a

comissão de saúde, acabou tocando no assunto fundamental: a salubridade.

A noção de salubridade, segundo os estudiosos da Medicina Social, aparece na

Europa à partir do séc. XVIII, um pouco antes da Revolução Francesa. Uma das decisões

logo tomada pela Assembléia em 1790, foi a criação de “Comitês de Salubridade”. Essa

noção terá importância fundamental sobre a Medicina Social à partir de então. É necessário

esclarecer, como explica Foucault em O nascimento da Medicina Social 15, que

“salubridade não é a mesma coisa que saúde” e sim, “o estado de coisas do meio e seus

elementos constitutivos que permitem melhor saúde”. Salubridade, é a “base material e

social capaz de assegurar a melhor saúde possível dos indivíduos”. É assim que, no séc.

XVIII, a “Higiene Pública” emerge como uma técnica de controle e modificação dos

elementos do meio com o objetivo de favorecer a melhor saúde. A Medicina Social do séc.

XVIII, através do conceito de salubridade, é uma Medicina que tematiza o meio urbano.16

Assim, dois elementos são essenciais na preocupação em torno da salubridade à

partir do séc. XVIII: a água e o ar. A primeira diz respeito à dessecação de pântanos

pestilenciais ou qualquer outro lugar onde tivesse água estagnada, pois estes eram vistos

como os principais focos de doença. O segundo, proveniente do mesmo tipo de

preocupação, dizia respeito à crença, no séc. XVIII, de que a contaminação se dava pelo ar,

através de entidades deletérias conhecidas como miasmas.17 Os miasmas formavam-se em

pântanos, cemitérios, charcos e através do ar, contaminavam as pessoas. Desse modo, o ar

era considerado como um dos fatores patogênicos. Por isso, uma das medidas necessárias

era promover a circulação do ar. Vai-se criar uma série de estratégias para permitir o

melhor arejamento das cidades. Uma das medidas mais comuns era a destruição de casas

para construir avenidas mais largas, pois antes o ar ficava bloqueado entre os muros e os

recintos fechados das casas. Criam-se corredores de ar, e também de águas. Por exemplo, a

construção do Passeio Público em 1886 em Curitiba, além de promover o aformoseamento

da cidade permitiu substituir um foco de miasmas pestilenciais por um logradouro, além de

possibilitar o rápido e regular escoamento do Rio Belém.

Assim, nada do que é urbano escapa do olhar da Medicina higienista à partir do séc.

XVIII e, no Brasil, com mais força à partir do XIX, com a criação das Faculdades de

Medicina do Rio de Janeiro e da Bahia.18 Água, esgoto, ar, pântanos, etc. tudo era

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tematizado pela Medicina. Ao tratar da higiene, a Medina tornou-se uma Medicina Social,

pois abrange o Homem como um todo, em todas as suas relações com a sociedade a

família19 e o meio ambiente.

Com a Medicina Social, criou-se um corpus teórico que tematizava o Homem tanto

do ponto de vista físico como moral, pois então a higiene passou a ser um conjunto de

princípios que visava a manutenção da saúde e da sociedade. A higiene é baseada no

conhecimento das causas mórbidas, e portanto, constitui-se na base da Medicina Social.20

Era esse o “cenário” em que se apresentava Curitiba entre as últimas décadas do séc.

XIX e início do séc. XX. Aqui privilegiou-se a vertente sanitária, pois ela é essencial para

compreender o objeto da Medicina Social e, de certa maneira, uma fração do discurso

psiquiátrico daquele período. Nesse cenário, agora vão movimentar-se os personagens

dessa trama: loucos, filantropos e médicos.

Um espaço caótico, um vazio terapêutico : assistência filantrópica das Santas

Casas de Misericórdia

A história da filantropia no Brasil parece conter dois momentos distintos. O

primeiro estende-se entre o final do séc. XVIII e o início do XIX. Esse momento é

dominado pelas obras de assistência religiosa aos doentes, em que predominava o espírito

impregnado pela caridade cristã. Nesse sentido, o projeto da Irmandade de Misericórdia,

mantedora das Santas Casas, inseria-se naquele contexto. Ou seja, num primeiro momento,

assiste-se à fundação de obras de assistência com o fim de prestar socorro material e

espiritual aos necessitados.

Na tarefa de abrigar, assistir e proteger os pobres, doentes e inválidos, a filantropia

caritativa das Misericórdias acabou criando uma sofisticada rede de serviços ambulatoriais

e hospitalares bem como de serviços paralelos como a roda dos enjeitados, a assistência aos

leprosos, indigentes, inválidos e alienados.21

Contudo, grande parte desse primeiro momento, que se estende entre o final do séc.

XVIII e início do séc. XIX e que Sérgio Adorno e Pugliese de Castro chamam de

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“assistência caritativa”, é dominado muito mais por uma função assistencial do que

terapêutica. Assistir antes do que curar, assim eram os estatutos das Misericórdias,

herdadas das instituições congêneres portuguesas.

Dessa maneira, podemos classificar esse primeiro momento como um momento pré-

terapêutico, ou pseudo-terapêutico, pelos seguintes fatores: 1. o hospital de caridade das

Misericórdias é administrado por uma irmandade religiosa, portanto, destina-se

principalmente ao papel de auxílio aos necessitados; 2. não se percebe, num primeiro

momento, um critério médico admissão dos pacientes. Os médicos, em pequeno número,

não tinham influência em questões administrativas e, como vimos, no caso dos alienados,

era um juiz de órfãos, depois o chefe de polícia, a família e o provedor da Santa Casa que

determinavam o internamento até a legislação de 1903; 3. Por último, todo o sistema

repousava sob uma prática não medicalizada da assistência. Nos hospitais de caridade, eram

as irmãs as “diretoras de fato”, porque à elas “tudo estava subordinado, desde o último

empregado até o diretor de serviço”22

A Santa Casa de Misericórdia de Curitiba foi inaugurado em 22 de maio de 1880. A

cerimônia foi realizada perante uma ilustre comitiva que contava até com a presença do

imperador D. Pedro II.23 Segundo as Memórias de Francisco Negrão, em 1852, a antiga

Fraternidade Curitibana, constituiu-se em sociedade filantrópica, sob a denominação de

Irmandade de Misericórdia.24

A primeira sede da Santa Casa funcionou num terreno doado por uma loja

maçônica, a Candura Curitibana, e situava-se na Rua Direita ( hoje, Rua 13 de Maio ). As

instalações pertenciam ao antigo templo maçônico. De 1855 à 1880, a Irmandade se

instalou ali. Mas desde 1855, com a formação da Comissão de Saúde, apontava-se para a

necessidade de construção de um hospital com melhores condições de atendimento. É

assim que a iniciou a construção da nova sede, em que a Irmandade permanece até os

tempos atuais e que no início do século situava-se no Largo da República ( atual Praça Rui

Barbosa ). A construção do Hospital Geral da Santa Casa de Misericórdia de Curitiba é

atribuído à iniciativa de D. José Cândido Murici, então provedor e chamado de “altruístico

e grande benfeitor dos desvalidos”25

Desde que recebeu o status de sociedade filantrópica, a Irmandade de Misericórdia

sempre teve como um das atribuições o cuidado e a assistência aos doentes mentais.

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Quando a internação não era voluntária 26 ou seja por iniciativa de um membro da

família, o loucos eram internados nas celas especiais das enfermarias da Misericórdia à

pedido de um Chefe de Polícia, que os recolhia das ruas. Em 1896, ano em que o Hospício

Nossa Senhora da Luz começa a ser construído, o Chefe de Polícia Manoel Bernardino

Viera Cavalcanti Filho, já anunciava que a situação dos alienados na Capital paranaense era

preocupante:

“Na Santa Casa de Misericórdia existe somente seis cellulas para os loucos, e estas achão-se quasi sempre occupadas por número superior a lotação de cada uma d’ellas”27

Um modelo que destrói suas próprias estruturas : curar o louco era necessário

Já em meados do séc. XIX, esse modelo de filantropia do Império, no qual as Santas

Casas de Misericórdia representavam o baluarte principal, não conseguem mais comportar

a estrutura necessária para o tratamento dos alienados. Os hospitais de caridade das Santas

Casas de Misericórdia eram, segundo Heitor Resende, locais despovoados por médicos,

onde os loucos eram recolhidos das ruas e encerrados à pedido de um chefe de polícia em

celas especiais para alienados situadas em enfermarias precárias e mal equipadas.28

No início da República, a legislação retira o encargo da loucura do âmbito das

Misericórdias e transfere a sua responsabilidade para o Estado. Como vimos no primeiro

capítulo, esse foi o momento em que o Hospício D. Pedro II foi transformado em Asilo

Nacional. Porém, no séc. XIX, essa responsabilidade ainda repousava sobre a Irmandade.

Ao longo daquele século, os grandes estabelecimentos psiquiátricos como o D. Pedro II no

Rio de Janeiro , o São Bento em Porto Alegre29 e o Juquery em São Paulo, surgiram como

uma crítica ao modelo assistencial e religioso das Santas Casas, e, embora, esses hospícios

continuassem subordinados à Administração das Santas Casas, o modelo terapêutico que os

psiquiatras queriam implantar efetuava um corte em relação à “assistência caritativa” do

Império30. É esse quadro que devemos ter em mente para compreender a construção do

Hospício Nossa Senhora da Luz em Curitiba em 1903, embora o seu exemplo seja bastante

tardio.

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Para entender parte da argumentação contra esse modelo que destrói suas próprias

estruturas, devemos recuar ao movimento “Aos loucos, o hospício!”, organizado pela

Academia Imperial de Medicina do Rio de Janeiro na década de 30 do séc. XIX..

Em um artigo de Francisco Xavier Sigaud, publicado no Diário de Saúde em 1835,

sob o título de “Reflexões acerca do trânsito livre dos doidos pelas ruas da cidade do Rio

de Janeiro”31, o autor chama atenção para a perigosa situação dos loucos vagando

livremente pelas ruas da capital do Império e convoca a responsabilidade para a esfera da

Medicina. Lembremo-nos que a Psiquiatria, enquanto disciplina acadêmica ainda não

existia, a primeira cadeira da Doenças Mentais e Nervosas da Faculdade de Medicina do

Rio de Janeiro só foi criado mais tarde, em 1881. Portanto, naquela década de 30, tratava-se

de inserir no debate médico, uma questão que, até aquele momento, parecia pertencer muito

mais às questões relativas à ordem pública, que pertencia às Câmaras Municipais 32.

Sigaud chama a atenção para o fato de que o transito livre de doidos dos pelas ruas

do Rio de Janeiro dizia respeito principalmente ao louco pobre, pois os ricos eram tratados

e vigiados em suas casas.33 No Rio de Janeiro, os loucos faziam parte da paisagem

urbana, confundiam-se com a própria cidade, segundo descrição de Maria Clementina

Cunha baseada em um cronista do início do século, Mello Moraes Filho em Festas e

tradições populares do Brasil. 34

No seu artigo, Sigaud comenta que os loucos da capital do Império , quando não

erravam pelas ruas, eram enclausurados nos “cárceres da Santa Casa de Misericórdia que

lhes são dados para asilo”.

A crítica ao modelos de assistência da Santa Casa era parte central na argumentação

da classe médica no seu movimento pela construção do hospício. Em um artigo publicado

em 1839, na Revista Fluminense, o médico Luiz Vicente de Simoni escreve sobre “A

importância e necessidade da criação de um manicômio ou estabelecimento especial para

o tratamento de alienados”35. O artigo de Simoni retrata bem como o hospital da

Misericórdia não oferecia condições para abrigar medicamente e recuperar o louco. As

repartições de homens e mulheres estavam “em desarmonia com os preceitos de ciência, as

luzes do século e os sentimentos da verdadeira humanidade”36

Segundo Roberto Machado et all., a repartição dos homens ficavam no andar térreo,

embaixo de uma enfermaria-escola, que, por ter assoalho de taboas sem forro, expunham os

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alienados continuamente ao barulho. As janelas dos quartos davam para o quintal, de onde

se avistavam bois, bestas e carros, não permitindo o isolamento necessário, expondo os

loucos aos ruídos externos e também aos insultos dos transeuntes. Além disso, os loucos

dormiam em tarimbas ou ficavam presos a um grande tronco fino, aonde também vão parar

por castigos os escravos que cometem faltas.37

Essa ordem de críticas atravessa o séc. XIX. À partir da segunda metade daquele

século, o mesmo tipo de argumentação é utilizado por toda a parte. Franco da Rocha usa o

mesmo tipo de críticas como parte da argumentação pela necessidade do Juquery em São

Paulo. Ao longo do século, várias instituições começaram a ser construídas em todo o

território. Em 1852, o Hospício D. Pedro II; em 1864, o Hospício da Visitação de Santa

Isabel em Recife; em 1873, o Hospício de Alienados de Belém; em 1874, o Asilo São João

de Deus em Salvador; em 1884, o Hospício São Pedro em Porto Alegre; em 1886, o Asilo

São Vicente em Fortaleza; em 1893, o Asilo de Santa Anna na Paraíba; em 1898 o Juquery

em São Paulo; em 1903 o Hospício Nossa Senhora da Luz em Curitiba. A maioria, no

entanto, eram instituições de pequeno porte. Algumas eram enfermarias com problemas

físicos e financeiros e não representavam um progresso tão grande como os alienados

daquele século gostavam de vangloriar-se.

O que é necessário apreender nessa argumentação dos médicos pela necessidade do

hospício? Em primeiro lugar, é a diferença central entre “hospício” e “hospital”. Esquirol,

no início do séc. XIX, dizia que um hospital apresenta-se como um elemento facilitador da

cura, um enfermo tem mais chance de recuperar-se no ambiente organizado do hospital, ao

passo que o hospício é, ele mesmo, um instrumento terapêutico. É impossível, argumentava

Esquirol, distribuir os loucos, cuja loucura se pretende tratar, como se distribuem doentes

comuns ou mulheres grávidas.

O Hospital da Santa Casa não têm celas especiais destinadas à recolher os alienados,

como bem demonstram os documentos da época? Sim, mas existe uma diferença entre

essas enfermarias que os seus próprios contemporâneos comparavam à “cárceres”, onde o

loucos são colocados ao lado de cemitérios, com vistas para bois, bestas e carros, expostos

aos ruídos externos e insultos de transeuntes – com o espaço idealizado com pela

Psiquiatria, ou seja, um local arejado, de preferência que reproduza a paisagem campestre,

com amplo espaço verde, água corrente, com tratamentos convenientes utilizados naquela

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época como a hidroterapia, atividades recreativas, onde o doente pudesse ocupar-se através

do trabalho em uma colônia agrícola, etc.

No hospício, os loucos não seriam encarcerados, pelo contrário, existiria uma

vigilância sutil e inteligente, feito por enfermeiros e sob a direção de um médico-chefe.

Assim, o hospício idealizado pela Psiquiatria oferecia tanto vantagens técnicas quanto

econômicas. Não se tratava de isolar a loucura da sociedade, retirar-lhe sua liberdade, nem

tampouco tratava-se de repressão. A loucura se trata... com disciplina.

A vigilância é uma propriedade essencial do hospício. Os relatórios do D. Pedro II,

eram bem claros a esse respeito quando afirmam que “os alienados são vigiados dia e noite,

e nem dentro nem fora do estabelecimento deixam de estar acompanhados; um enfermeiro

sempre velam para que eles estejam limpos e com sua presença evitam os perigos de

distúrbio e alterações”. 38

O louco deve ser vigiado em todos os seus momentos e em todos os lugares. Mas

aqui há uma diferença entre a vigilância do hospício e aquele sugerido por Jeremy Bentham

para a construção de prisões. No Panopticon, um projeto de arquitetura elaborado por

Bentham, um jurista inglês, no séc. XVIII , e apresentado por Michel Foucault em Vigiar e

Punir segue o seguinte modelo:

“o princípio é: na periferia, uma construção em anel; no centro, uma torre, esta possui grandes janelas que se abrem para o interior do anel. A construção periférica é divida em celas, cada uma têm duas janelas: uma abrindo-se para o interior, outra dando para o exterior, permite que a luz atravessasse a cela de um lado à outro. Basta então colocar um vigia na torre central e em cada cela trancafiar um louco, um doente, um condenado, um operário ou um estudante. Devido ao efeito de contraluz, podem-se perceber da torre recortando-se pela luminosidade, as pequeninas silhuetas prisioneiras nas celas da periferia. Em suma, inverte-se o princípio da masmorra, a luz o olhar de um vigia captam melhor que o escuro, que, no fundo protegia ( ... )”39 O princípio do Panopticon de Bentham, é uma idéia simples e nova que repousa

sobre o esquema arquitetural descrito por Foucault em Vigiar e Punir. Apesar de ser um

modelo proposto para prisioneiros de maneira à promover uma “reforma moral” e de

“certificar-se de sua boa conduta” 40, a aplicação geral desse princípio serve para todo o

lugar onde “muitos devem estar sob a inspecção de poucos”41. Por isso, também o é

aplicável ao hospício.

Contudo, o esquema arquitetônico do hospício não parece ter seguido o sistema

anelar do Panopticon. A maioria dos prédios destinados à asilos são planejados com um

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único andar. E, de fato, Esquirol argumenta que esse tipo de construção era mais eficiente

nesse caso, pois, “o pessoal de serviço passando pelos cárceres pode ver o que se passa nos

quartos”42

As observações de Esquirol apontam para outro caminho. Um esquema físico que,

apesar de eficiente, não retirasse a ilusão de liberdade do louco. É a implicação de um

esquema onde a vigilância é desempenhada pelo papel administrativo. O papel de

vigilância do louco é depositado sob a responsabilidade de enfermeiros. Os enfermeiros

vigiam-se uns aos outros e , por último, são vigiados pelos chefes da casa. Esse princípio

aproxima-se do que Bentham chamou de “Princípio de Inspecção”, ou seja, a presença

universal e constante do diretor do estabelecimento. O efeito desse princípio é imediato

sobre todos os membros do estabelecimento pois existe “a convicção de que eles vivem e

agem incessantemente sob a inspecção perfeita de um homem interessado em sua

conduta”43

No séc. XIX, essa nova relação de poder será essencial para o asilo. Trata-se de uma

relação de poder que não baseia-se na repressão, mas na autoridade. Agora o papel de

vigilante cabe ao enfermeiro ( até o séc. XVIII, os guardiões eram recrutados entre os

próprios doentes ). Foucault relata essa nova relação de autoridade quando descreve em

História da Loucura um episódio ocorrido com Tuke:

“Um dia em que passeava com o intendente pelo jardim da casa, ele ( o doente ) encontra-se bruscamente numa fase de excitação; afasta-se um pouco, apanha uma grande pedra e esboça o gesto de atira-la sobre o companheiro. O intendente pára, encara o doente nos olhos, à seguir avança alguns passos e em um tom de voz resoluto, ordena-lhe que largue a pedra. À medida que se aproxima, o doente abaixa a mão, a seguir ele deixa cair sua arma e depois deixou-se conduzir tranqüilamente para seu quarto”44

O vigilante agora intervém desarmado, explica Foucault, sem qualquer instrumento

de coação, com o olhar e a linguagem apenas. Apenas alguns passos e “um tom de voz

resoluto”, e o doente compreendeu o gesto de autoridade, abaixando a arma e deixando-se

conduzir “tranqüilamente” para seu quarto.

A relação do “princípio de inspecção” é baseado na autoridade. Ela representa todo

o esquema no qual se opera a vigilância no hospício. No entanto, no Brasil, ao longo do

séc. XIX, como procuramos sustentar no capítulo anterior, o médico não tinha influência

alguma em questões administrativas. No período em que os loucos eram tratados apenas

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nas Santas Casas de Misericórdia, o médico tinha papel secundário. Depois de Teixeira

Brandão, a legislação situa o papel fundamental do parecer médico, e, portanto, legitima

sua atuação dentro do hospício. A construção de hospícios, portanto, representou, no séc.

XIX, uma investida administrativa e geográfica dos médicos em direção à funções

burocráticas dentro do hospício.

Essa questão abre um debate a respeito da subordinação entre questões médicas e

administrativas que remonta à época de Esquirol. Extensão geográfica do domínio

administrativo, as práticas de medicalização são indissociavelmente práticas

administrativas. Esse complexo jogo de interesses será reconhecido no momento em que se

cria a função de diretor-chefe. Colocar o médico no centro das questões administrativas é

delegar à ele parte do próprio poder. No decorrer do séc. XIX, o reconhecimento

progressivo da função de médico-diretor será amplamente debatido:

“O médico deve ser, de certa forma, o princípio da vida de um hospital de alienados. É através dele que tudo deve ser colocado em movimento. Ele dirige todas as ações, chamado, que é, a ser regulador de todos os pensamentos. A ele, como centro da ação, deve-se dirigir tudo o que interessa aos habitantes do estabelecimento, não somente o que diz respeito a medicação, como ainda tudo o que se relaciona com a higiene. A ação do administrador que governa o material do estabelecimento, a vigilância sobre todos os empregados que essa mesma administração deve exercer, deve se escondida; o diretor nunca questionará uma decisão tomada pelo médico, nunca se colocará entre ele e os alienados ou os servidores. O médico deve ser investido de uma autoridade a quem ninguém possa subtrair”45 Esse trecho do texto de Esquirol em Des Maledies Mentales abre esse debate a

respeito da possibilidade de se fundar uma autonomia de instância administrativa dentro do

asilo. Na época de Esquirol no entanto, a posição ainda é moderada, já que ainda se faz

referência a dualidade entre questões médicas e administrativas, apesar de a primeira estar

subordinada à segunda. Falret, outro discípulo imediato de Pinel era mais categórico: “Por

mais que procure a parte do diretor, só encontro a do médico”46. Já em 1863, um alienista

francês chamado E. Renaudin publica um livro com o título significativo de Commentaire

médico-administratifs, em que o autor tenta reinterpretar a função do médico-chefe. A

direção de uma asilo de alienados tornou-se uma ciência médica interessante sob vários

pontos de vista, escrevia Renaudin, e “tornando-nos administradores nós nos tornamos, se

posso me expressar assim, mais médicos”47.

Portanto, o séc. XIX é palco privilegiado do debate que foi suscitado a respeito dos

limites das questões médico e administrativas, para os alienistas o médico deveria ser o

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administrador natural do asilo, ele dirige as ações e é chamado a ser o regulador da vida no

hospital de alienados. Portanto, ao médico tudo deveria estar subordinado.

D. Alberto Gonçalvez, um empreendedor: a construção do Hospício Nossa Senhora

da Luz

Ao contrário dos casos que se tem analisado aqui, o hospício Nossa Senhora da Luz

foi fruto de um movimento muito mais tímido e acanhado do que , por exemplo, aquele que

ocorrera mais de meio século antes na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro.

Desde as últimas décadas do séc. XIX, um grito surdo se fazia presente. Em 1867, o

então presidente de província do Paraná, Polidoro Cezar Bulamarque lamentava que

“esta capital, mostrando-se surda e quase insensível com os míseros enfermos que por ahi vagam cobertos de andrajos, famintos de pão e mal sustentando os passos vacilantes, ou jazem prostrados em duros leitos de dor, desabrigados do tempo, esquecidos dos homens”48

Em 1896, o Chefe de Polícia do Estado, Manoel Bernardino Cavalcanti Filho,

escrevia que por falta de recursos convenientes,

“tenho deixado de attender aos constantes pedidos de autoridades policiaes das localidades do Estado, sobre a remessa de alienados para esta capital por não ter onde accomodal-os”49

Manoel Cavalcanti Filho lamentava que,

“...no Estado, não existe um azylo onde possão ser recolhidos esses infelizes, que muitas vezes vivem abandonados, perecendo por falta de recursos e tratamento convenientes”50

Esse discurso pela necessidade de um “tratamento conveniente”, construiu-se à

partir de três ordens de argumentos:

1. ineficiência terapêutica: os loucos não deviam continuar internados na Santa

Casa de Misericórdia, ao lado de outros enfermos;

2. existência de um modelo carcerário inadequado: o loucos, muitas vezes,

dividiam espaço com os criminosos “comuns” na cadeia municipal ( antes da construção do

Presídio do Ahú, em 1914, os condenados eram levados para o Quartel do Regimento de

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Segurança da Polícia ). Nessa ótica, apregoava-se que os primeiros deveriam ser

submetidos à um tratamento digno de sua doença, o que só era possível com um

estabelecimento destinado à esse fim;

3. ênfase no compromisso da sociedade para com o louco: os documentos da época

exortavam à todos à exercerem obras de “philantropia”, de “sentimentos religiosos”, de

“atenção ao Evangelho”, etc. Uma vez que, ao contrário do criminoso, o louco não tem

culpa direta sobre sua transgressão, cabe à sociedade a responsabilidade de proteção aos

alienados.

Em primeiro lugar, a construção do hospício Nossa Senhora da Luz, um asilo de

alienados sob a Administração da Santa Casa, mas construído separadamente do Hospital

Geral, não deveu-se à um movimento suscitado no interior da classe médica, mas da

iniciativa de D. Alberto Gonçalvez, provedor da Santa Casa de Misericórdia até 1908. Daí

o historiador Munhoz Van Erven, em seu Contribuição ao Histórico do Hospital de Nossa

Senhora da Luz, ter chamado o provedor da Santa Casa de “D. Alberto Gonçalvez, um

realizador”51.

Isso tem um sentido implícito: a importância política dos provedores. Assim como

José Clemente Pereira, provedor da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro na época

da construção do D. Pedro II, exerceu influência decisiva na sua construção, aqui também

D. Alberto Gonçalvez torna-se peça fundamental para o entendimento do surgimento do

Hospício Nossa Senhora da Luz. D. Alberto Gonçalvez era uma figura bem situada política

e institucionalmente. Nas décadas finais do séc. XIX, o monsenhor Alberto Gonçalves fazia

parte do seleto grupo de “homens de letras” da capital paranaense, ao lado de personagens

como Emiliano Perneta, Sebastião Paraná, Dario Vellozzo, Rocha Pombo, e Alfredo

Escragnole Taunay.52

Francisco Azevedo de Macedo, em um livro publicado no ano de 1900, A Igreja e o

Estado, relata que entre as últimas décadas de 1880 e início de 1890, D. Alberto Gonçalvez

e Francisco de R. de Azevedo, travaram um debate, através de jornais como A República a

respeito da separação entre a Igreja e o Estado ( por decreto em 7 de janeiro de 1890 ), em

que a Igreja havia perdido o caráter burocrático e os padres a função de funcionários

públicos. 53

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A polêmica entre Alberto Gonçalvez e Francisco Azevedo era em torno das

certidões paroquiais. Se elas deveriam ser consideradas documentos válidos também sob o

ponto de vista civil. Segundo Alberto Gonçalvez:

“as certidões passadas pelos párocos produzem fé pública e prova em juízo. ( ... ) Muitos actos praticados pelo Governo Federal me fazem crer que o Estado reconhece a autenticidade eclesiásticas, pois que constituido a Igreja em pessoa jurídica é certo que seus direitos serão forçosamente reconhecidos por lei”54

Figura importante no cenário provincial, D. Alberto Gonçalvez utilizava desse

prestígio para obter recursos para a Santa Casa de Misericórdia, através de donativos,

prestação de serviços e isenção de impostos, etc.

Esse quadro é importante para compreende como Alberto Gonçalvez consegue a

concessão para a organização de uma loteria que tinha como objetivo arrecadar fundos para

a construção do novo hospício.55

De fato, grande parte da realização desse projeto deveu-se à figura de D. Alberto

Gonçalvez, assim como em 1880, a construção do Hospital de Caridade da Santa Casa de

Curitiba havia sido realizada graças ao “altruístico e grande benfeitor dos desvalidos”, José

Cândido Murici. Freqüentemente, essas duas obras reportam à esses dois personagens.

Munhoz Van Erven escreve:

“...Necessitam os corações generosos de cérebros realitários de pulsos empreendedores. O hospital policlínico da Irmandade achou-o no Dr. Murici. O hospital psiquiátrico de Curitiba encontra-lo ia no sacerdote emérito e no senador ilustre que foi monsenhor Alberto Gonçalvez”56

E, mais adiante...

“Grande padre, intermerato político e clarividente administrador”; “D. Alberto foi inquestionavelmente um dos maiores paranaenses de todos os tempos”57

Alberto Gonçalvez, que assumiu a provedoria da Santa Casa entre 1898-1808, há

muito tempo já percebia que a instituição não comportava a tarefa de assistência aos

alienados, ainda que o socorro aos necessitados fizesse parte de seus estatutos. Se a

instituição não possuía espaço adequado para a assistência aos alienados, como procuramos

mostrar nesse capítulo, era necessário criar outra instituição.

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O Asilo de Alienados de Nossa Senhora da Luz foi construído no bairro do Ahú e

inaugurado em 15 de março de 1903. Para lá foram transferidos os alienados que estavam

no Hospital da Santa Casa em abril do mesmo ano. 58 Munhoz Van Erven escreve que ,

“São João de Deus e Pinel não exigiriam, para o meio e para época, cousa melhor”59

O edifício construído no Ahú, no início do século impressionava pela imponência e

pelas dimensões. A imprensa curitibana da época com exclamações como “o vasto templo

de caridade”e “instituição que honra o nosso Estado” e que enfim esses infelizes

receberiam um tratamento que lhes era digno, apesar de os alienados serem “desgraçados,

sempre”:

“Ao penetrar nesse vasto templo de caridade, a nossa alma paranaense se rejubila e se desvanece, palpitando com o mais justo orgulho, pois raras são as cidades que possuem um edifício de tão grandes e tão bellas dimensões para fins tão humanitários. Dentro de poucos dias, esses infelizes que perderam a razão, ( .... ) serão installados em suas cellas, onde nada lhes faltará, e onde serão relativamente mais felizes, apesar de desgraçados, sempre”60

Na época em que o hospício foi construído, o Ahú, onde ele se situava, era uma

região bastante afastada do quadro urbano, e isso não era acidental.

O primeiro princípio geral de salubridade, discutido no início do capítulo, dizia

respeito à qualidade do ar. Assim, essa preocupação sanitária acabou afetando de forma

direta a localização de hospitais, cemitérios, matadouros , fábricas etc.

A reflexão sobre a localização da fábrica estava ligada ao princípio de que ela é o

principal agente poluidor. Durante a produção, ela produz emanações deletérias e lançam

seus dejetos nos rios que servem à cidade. Alguns tipos de fábricas, como a de cortume, de

sabão, óleos, azeites, ou aquelas que possuíam fornos de coser e torrar tabaco ou destilar

aguardente eram policiadas mais de perto pois eram consideradas as que mais corrompiam

e tornavam a atmosfera nociva devido ao tipo de matéria prima que utilizavam. No Paraná,

devido a industria ervateira, que se instalou na segunda metade do séc. XIX, era comum a

existência de indústrias de beneficiamento do mate, com suas máquinas à vapor que, de vez

em quando, “anuvia a atmosfera com suas baforadas de fumaça”61

Nesse sentido, a primeira disposição estratégica era que essas fábricas situassem-se

fora da cidade. Como a função de polícia médica durante o séc. XIX cabia às Câmaras

Municipais, elas logo trataram de assegurar essa disposição. E, para isso, ela dispunham de

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um instrumento: as licenças, sem as quais, nenhuma fábrica podia instalar-se. No Código de

Posturas de Curitiba reformulado em 1986, determinava-se que:

“art. 159. É Prohibido estabelecer dentro da cidade, fábricas de sabão, azeite, óleo, velas de cebo, destilação e outras que, pela qualidade das matérias primas , seus produtos e combustíveis empregados ou por outro motivo exhalem vapores que tornem nociva a atmosphera, alterem águas potáveis e incomodem a visinhança. O infractor incorrerá na multa de 50$000 e será obrigado à remover o estabelecimento para o logar que for designado pela Câmara”62

Muito mais problemático era a questão relativa aos cemitérios. A proibição , à partir

do séc. XIX, da prática de sepultamentos em templos religiosos, reflete a mesma

preocupação. Até então, a prática recorrente era de sepultamento no interior das igrejas.

Nelas, os cadáveres eram sepultados sob o pavimento, pelas paredes, e até mesmo debaixo

dos altares. As igrejas católicas só recebiam fiéis, sendo excluídos os gentios, os

excomungados, os hereges e os pecadores que morreram sem sinais de penitência.

Essa prática , transformava as igrejas em verdadeiros focos de insalubridade. Nas

igrejas, o ar é parado e úmido. Assim, as emanações putrefactas dos cadáveres penetravam

pelas paredes, situação favorecida pela própria arquitetura das igrejas, que prejudica a

circulação do ar, pela queima de velas e pela respiração dos fiéis amontoados.

Ao longo do séc. XIX, já se percebia o perigo sanitário que isto proporcionava. O

início da criação de cemitérios teve origem no temor de que a decomposição de cadáveres

disseminasse doenças contagiosas. Em épocas de surtos epidêmicos, aqueles que morriam

devido à doenças contagiosas eram impedidos de serem sepultados, na igrejas matrizes,

assim como seus familiares em geral, passaram à enterrar os mortos ao redor das igrejas ou

no interiro de construções inacabadas. A partir do séc. XIX, estabelece-se dois princípio

com o objetivo de neutralizar os efeitos mórbidos causados pela decomposição de

cadáveres: a abolição do antigo ritual de enterrar mortos no interior das igrejas, e a criação

de cemitérios afastados do quadro urbano.

À partir do séc. XIX praticamente em todos os municípios, editaram-se posturas

combatendo o sepultamento nas igrejas. Contudo, este era um costume já arraigado e

provocou muitos protestos e resistência à sua alteração.

Nessa lógica, também o hospital e a sua localização era afetado diretamente pela

preocupação em relação à salubridade. É que os hospitais também eram focos de doenças.

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Em um relatório do Hospício Nossa Senhora da Luz, em 1912, o diretor Rodolfo Lemos

atenta que devido à “promiscuidade” existente no Nossa Senhora da Luz, “foi bastante

aparecer um único caso de tuberculose entre as mulheres para que se tenha por contágio

desenvolvido em outros”63

Por tal razão, os hospitais representavam um risco muito grande de contágio, pois

nele os enfermos são confinados em ambiente fechado e é fácil uma doença alastrar-se.

Além disso, os miasmas neles gerados infectam não só o seu interiro, mas toda a cidade. O

hospital torna-se então, uma máquina de criar e expulsar os miasmas. Desde o século

XVIII, explica Alain Corbin em Saberes e Odores, o hospital é visto como um amontoado

de doentes em que as epidemias se alastram pela podridão do ar. Em 1787, explica Corbin,

a Academia de Ciências convoca os arquitetos para elaborarem novos projetos de hospitais.

Pretende-se, com isso, “formar, inteiramente fabricada, uma estrutura de ventilação”:

“O esquema radial se impõe nas pranchas. Várias realizações traduzem os novos imperativos; principalmente na Inglaterra o hospital militar de Plymouth e os dos Inválidos em Greenwich. Ventiladores embutidos nos tetos de Guy em Southwark, comunicam-se com núcleos de chaminés do andar superior; nesse estabelecimento, os gabinetes de toalete não exalam nenhum odor, pois a porta injeta água neles ao se abrir. Na França, os hospitais militares, a sala de Saint Landry, o hospital de Lyon, o hospital de Saint Louis, servem como referência aos reformadores. Em 1786, C.F. Viel manda instalar aquedutos e baterias de latrinas no hospital da Salpetriére; ele construíra em Bicêtre, o grande esgoto que se depura e mal, num dispositivo produtor de esterco composto”64

A ventilação nos hospitais, essa preocupação do séc. XVIII, não poderia resolver

tudo. Impõe-se, então, uma modificação do comportamento individuais. Por esse atalho,

explica Corbin, o hospital também se torna uma instituição disciplinar:

“Os regulamentos se enrijecem. O regulamento do hospital de Haslar, perto de Gosport, proíbe que se use roupa suja; prevê a troca das camisolas dos doentes a cada quatro dias e a troca dos lençóis a cada quinze dias; as toucas , as ceroulas e as meias devem ser trocadas uma vez por semana. Os homens devem ser barbeados a cada três dias. Os doentes serão proibidos de se deitar vestidos, de utilizar suas roupas velhas como cobertas, de guardar pão, manteiga ou qualquer outra provisão na cabeceira da cama ou leito. Não se poderá aliviar-se das necessidades naturais senão nos locais destinados a este uso. Não serão tolerados clamores nem tumultos; fumar é proibido, assim como jogar; constitui obrigação assistir ao serviço divino. Ninguém poderá se tornar culpado de expressões blasfematórias, impropérios proibidos, maldições, bebedeira, sujeira ou mentira. No Hospital Geral de Chester, todo doente, ao entrar, será obrigado a tirar suas roupas para receber roupas limpas”65

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O hospital, desde esse momento se torna, por meio desses exemplos, o local de

aprendizagem da higiene pessoal, que ainda não se conseguia levar para o espaço exterior

ao próprio hospital.

Portanto, o séc. XIX tem uma noção muito sofisticada de espacialidade em

decorrência, entre outros fatores, dessa preocupação com a salubridade. As ruas são

geométricas, retilíneas. As quadras devem formar ângulos retos e perfeitamente adensadas,

formando um conjunto compacto de fachadas. Os cemitérios, fábricas, matadouros e

hospitais deveriam situar-se fora do quadro urbano.

Com o crescimento das cidades , esses hospitais, cemitérios, fábricas, etc. que, no

séc. XIX, situavam-se em locais afastados do centro da cidade, foram lentamente sendo

incorporados ao quadro urbano.

No caso do hospício, num primeiro momento, além da preocupação sanitária, existia

um argumento de que esse afastamento era indispensável para o “isolamento terapêutico”

do alienado. Ele precisava de repouso e, por isso, o hospício deveria situar-se em local onde

o doente não estivesse continuamente exposto ao barulho e ruídos da sociedade urbana.

Para além desse argumento é necessário notar que o “isolamento” era uma das

características primárias do hospício, não apenas para proporcionar o repouso e

tranqüilidade do paciente, mas para retirar o alienado do meio que havia causado a sua

loucura. Ao mesmo tempo, essa era uma estratégia do “tratamento moral”, pois a colocação

de um alienado em um novo ambiente o obrigava a se adaptar. Assim, o louco estava mais

suscetível à submissão e às condições que forneciam a mudança de seu estado mental. O

hospício tinha como função, romper com esse foco de influências não controladas no qual a

doença encontraria do que entreter sua própria desordem. É a justificativa do famoso

“isolamento terapêutico”. Philipe Pinel dizia em seu Traité médico-philosofique, que

“Em geral, é tão agradável, para um doente, estar no seio de sua família e aí receber os cuidados e as consolações de uma amizade interna e indulgente, que enuncio penosamente uma verdade triste, mas constatada pela experiência repetida, qual seja, a absoluta necessidade de confinar os alienados a mãos estrangeiras e de isola-lo de seus parentes. As idéia confusas e tumultuosas que agitam e são provocadas por tudo que os rodeia; sua irritabilidade contínua provocada por objetos imaginários; gritos, ameaças, , cenas de desordem, ou atos extravagantes; o emprego jurídicioso de uma repressão enérgica, uma vigilância rigorosa sobre o pessoal de serviço cuja grosseria e imperícia também devem temer, exigem um conjunto de medidas adaptadas ao caráter particular dessa doença, que só podem ser reunidas em estabelecimentos que lhes sejam sagrados”66

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A primeira sede do Hospício Nossa Senhora da Luz no Ahú funcionou apenas

alguns anos. Em 1905, o governo do Estado propôs à Santa Casa de Misericórdia a compra

daquele imóvel para a instalação de uma Penitenciária Estadual, uma vez que os

sentenciados, até então cumpriam pena no Quartel de Regimento de Segurança, o que

estava entrando em desacordo com a moderna Penalogia e tecnologia de construção de

Prisões que desde a Restauração, como demonstrou Michel Foucault em Vigiar e Punir,

pregava-se a restauração do direito de punir67. Estado comprometia-se a indenizar a

Irmandade com a importância despendida com a construção de um novo hospício. Assim,

“em 29 de janeiro de 1905, o irmão provedor em reunião da Irmandade communicou que o governo do Estado propoz a Santa Casa a compra do edifício do Hospício do Ahú, para nelle se installar a penitenciária, prometendo inmdenizar a Irmandade com a importância dispendida com a construcção do hospício” 68

Tal proposta mostrou-se muito vantajosa na medida em que, naquele tempo, a

grande ambição era construir um projeto que se adequasse às recomendações “científicas e

higiênicas”. O que se tinha em mente era a construção de pavilhões como os que haviam

sido construídos no Juquery em 1898. Francisco Negrão, em suas Memórias, diz que

“a construcção de um novo estabelecimento deve ser feito de accordo com as regras de sciência e hygienne que manda ser em pavilhões separados a exemplo do que foi construído em São Paulo”69

Assim, o local escolhido para a nova sede, na qual a instituição permanece até a

presente data, situava-se na Marechal Deodoro, no terreno onde funcionava um antigo

Jockey Club da cidade. Em 1906, estavam prontos os primeiros pavilhões, mas a

inauguração das novas instalações só ocorreram em 13 de julho de 1907. Os três primeiros

pavilhões e o prédio onde funcionava a cozinha e os outros serviços foram concluídos em

1909 e tinham capacidade para 150 doentes. Em 1912, o número de internados já

ultrapassava os trezentos; pois a instituição atendia aos pacientes tanto da Capital quanto do

inteiro do Estado, e as instalações logo se revelaram insuficientes. Em 1913-14 foi

concluído o pavilhão 4.

Munhoz Van Erven escreve que as novas instalações do Hospício Nossa Senhora da

Luz, agora possuíam um “acentuado cunho clínico”, pois era

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“fruto das observações feitas pelo Dr. Rodolfo Lemos no estabelecimento oficial congênere, devido ao preclaro do mestre Franco da Rocha”70

O Dr. Rodolfo Pereira Lemos, dirigiu o Hospício Nossa Senhora da Luz entre 1903-

1918 ( ocasião de seu falecimento ). Com efeito, Lemos foi um dos principais defensores da

“ilustração psiquiátrica”, da humanização do asilo. Em seus relatórios, ele defende que o

louco, no hospício, deveria ter a ilusão de liberdade. Ele também pedia o isolamento

especial para os doentes perigosos, e também defendia a construção de um espaço

adequado para crianças alienadas.

Lemos é aquele que solicita a extinção dos meios mecânicos de contenção dos

alienados, para aplicar os princípios do tratamento moral, sua terapêutica baseava-se

principalmente na hidroterapia e na clinoterapia, evitando-se ao máximo a aplicação de

farmacopéia. Portanto, Lemos tenta em sua prática terapêutica no Hospício Nossa Senhora

da Luz, a atualização em relação àquilo que se produz nos centros mais avançados do saber

psiquiátrico daquele momento. Veremos à seguir, que em diversos momentos, Rodolfo

Lemos visitou o Juquery. De fato, a instituição do Estado de São Paulo, serviu de modelo

para Lemos.

A construção do Hospício Nossa Senhora da Luz, seguia de acordo com os

princípios de “sciência e hygiene” , “que manda ser em pavilhões separados, a exemplo do

que foi construído em São Paulo”. , e é fruto das observações de Lemos no Juquery, daí ser,

o Hospício Nossa Senhora da Luz, uma construção de “acentuado cunho clínico”, pois a

“técnica hospitalar entreva outrossim para uma distribuição pavilhonar de serviços”71

Mas, o que quer dizer exatamente essa nova “técnica hospitalar”, que dava, naquele

momento, tanta ênfase em pavilhões separados?

Em primeiro lugar, tal idéia não é nova. No séc. XVIII, quando Colombier e

Doublet haviam apresentado um relatório sobre as condições dos alienados na França,

defendiam que era necessário reservar-lhes espaços diferenciados. Colombier e Doublet

propunham subdividir o hospício em pavilhões especiais, em função dos tipos de

comportamentos patológicos”72

Assim, como a população do asilo não era homogênea, também não era a loucura

unitária. Desse modo, as modernas técnicas hospitalares que defendiam a “distribuição

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pavilhonar”, seguiam os fundamentos de uma distribuição espacial. Mas o que predomina,

contraditoriamente , não é uma divisão que se opera seguindo a nosografia médica. A

primeira divisão é sexual. No Juquery, que tanto havia empolgado os contemporâneos, os

pavilhões masculinos forma concluídos em 1901, os femininos em 1903.

Em praticamente todos os hospícios que surgiram à partir da segunda metade do

séc. XIX, a estrutura era essa. Em geral, os asilos dividiam-se em classes. Uma primeira

classe, com dormitórios individuais; uma segunda classe, com dormitórios coletivos, e uma

ala destinada à indigentes.

Em geral, a distribuição dos indivíduos se dá entre os tranqüilos e os agitados. Na

ala de indigentes, dividem-se em limpos, agitados, imundos e os afetados por doenças

contagiosas.

Isso deixa transparece a ineficácia da organização interna do espaço terapêutico. Se

desde o início, o discurso tem-se estruturado em função de uma “tecnologia” hospitalar,

percebemos que existe um descompasso entre o discurso e a prática.

Durante a década de 10, um dos sonhos políticos de Rodolfo Lemos é a construção

de uma colônia agrícola em Curitiba. Ele não economiza tintas para defender essa idéia.

Para Lemos, as colônias agrícolas eram válvulas de escape para o superpovoamento do

asilo. Nos relatórios de 1912, 1913 e 1914, aparecem referência ao número de alienados,

que tem aumentado ano à ano.

Uma das casas desse aumento, segundo ele, era a Civilização:

“Duprat, que analysou as causas sociaes da loucura, inculpou o progresso como maior factor do desequilíbrio mental. E é justo que, na observação de nosso desenvolver repentino, divisemos também o augmento de nossos alienados”73

Com o aumento dos alienados em Curitiba, observado por Lemos, “as salas não

comportam os doentes”, e “os pateos de recreio não distoam da confusão perigosa dos

dormitórios”74. Segundo Lemos, a higiene é sacrificada e “o aspecto das salas em que se

accumula toda a gente alienada é o mais desagradável possível”75.

É necessário observar que esses relatórios eram, em princípio, parte do ritual

administrativo daquela instituição. Anualmente os médicos, diretores e provedores da Santa

Casa reuniam-se em Assembléias, onde se apresentavam os relatórios. Portanto, tratava-se

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de explicar, tanto ao provedor, quanto à Assembléia Ordinária, através de argumentos

técnicos, os benefícios de uma colônia agrícola. Nesse sentido, o Dr. Lemos tinha muita

eloqüência:

“Falret, em 1861, terminava um relatório perante a Sociedade Médico-Psychologica da França dizendo que “os asylos de allienados são o melhor meio de cuidar e de proteger os insanos nos períodos agudos da doença. Mas, para os allienados que atingiram a chornicidade, ou para os que oferecem fracas possibilidades de cura só existe um meio e esse meio é a colônia anexada ao asylo”. E este modo de assistência aos incuráveis representa uma medida que satisfaz ao mesmo tempo as necessidades da economia. Debaixo de qualquer ponto de vista elle é extraordinariamente proveitoso porque auxilia a manutenção do doente, dá-lhe trabalho que é um meio de cura e não o deixa mergulhar na ociosidade”76

Rodolfo Lemos está seguindo a cartilha do tratamento moral. Um dos princípios

defendidos entre os alienistas, de Pinel à Esquirol e em geral, entre todos os reformadores à

partir do séc. XVIII é a distribuição do tempo, sobretudo, a ocupação com o trabalho. Na

tecnologia pineliana, os princípios gerais dizem respeito ao tratamento através da

autoridade médica, da divisão do tempo, e da vigilância do indivíduo. O trabalho, na

medida em que ele é aprendizagem da ordem, da regularidade, da disciplina ( e logo se dirá

que ele é “ressossializante” ) , irá cada vez mais, constituir o eixo do tratamento moral.

A teoria psiquiátrica propõe o trabalho como principal meio de cura. Sua finalidade,

porém, não é a busca pelo lucro77, mas sim, o trabalho como o próprio princípio a ser

interiorizado. É que o trabalho significa atenção, obediência, coordenação motora, um

encadeamento de fases que permitirá chegar à um produto. Significa, para a teoria

psiquiátrica, que o alienado terá que se adequar às condições de um conjunto de regras. Em

muitos hospícios, esse princípio traduz-se na atividade com banda musical, em oficinas de

costura, bordado, alfaiataria, calçados, móveis, etc. Isso era chamado no início do século

como laborterapia.

O trabalho realiza, acreditam os psiquiatras, a introjeção de virtudes no alienados,

faz dele um ser ordeiro e disciplinado Além disso, os alienistas, desde o séc. XIX, já

defendiam que ao implantar o trabalho, estaria-se evitando que o doente tivesse tempo para

ocupar-se com seus pensamentos delirantes. O ócio, segundo esse discurso, era uma

desgraça para o espírito: “Quem nada faz está próximo de fazer o mal”78

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É necessário observar que o hospício não só espelha a sociedade mas a ela está

profundamente vinculado. E, desse modo, o trabalho no hospício não é universalmente

distribuído entre as classes. Rodolfo Lemos, em relatório de 1912 comenta que

“...a cozinha e a lavanderia são lugares de trabalho para doentes de classe inferior, ao passo que as ocupações de caráter mais elevado são próprias e principalmente para aqueles que estão habituados com ellas”79

Ao refletir sobre os benefícios da colônia agrícola na década de 10, Rodolfo Lemos

tenta ligar a sua obra ao gesto inaugural de Pinel. A colônia agrícola, segundo ele, não é

mais do que “o desenvolvimento de princípios de cordialidade proclamados por Pinel, o

médico ilustre e o homem de bem em Bicêtre e na Salpetriére que poz por terra as cadeias

dos alienados”80

Baseado sobretudo em Falret, Rodolfo Lemos tenta convencer a respeito dos

benefícios de sua colônia agrícola. Naquela época esse tipo de discurso encontrava um

meio propício para serem veiculadas na esfera política. O princípio da colônia agrícola

parecia ser uma solução universal que atendia à exigências do Capitalismo, pois além de

promover a auto-sustentação, também evitavam que os internados se tornassem ociosos81.

Internar...

Eis o momento em que se pode perguntar a respeito do paradigma da internação. Se

o objetivo da Psiquiatria era transformar o alienado em não alienado, isto significava curá-

lo. Mas, de que cura se trata? O que se pretende curar?

Se a loucura é entendida como fruto de um fracasso moral, temporal e socialmente

localizado, sua cura implica inversamente na introdução do louco na ordem do tempo e das

normas sociais. Isto significa curar o louco de seu egoísmo, fazer com que o mundo

exterior seja mais interessante do que o mundo interior, educá-lo para as normas de

convívio social. O sistema asilar foi montado visando socializá-lo, ordená-lo e normatizá-

lo. E isso só era possível através de um complexo jogo de forças, em que se opunha o

alienista e o alienado, a vontade contra a obstinação, a disciplina contra a desordem.

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A tecnologia asilar forma uma espécie de triângulo disciplinar que coloca em

relação o médico, o doente e a instituição. É a relação hierarquizada e regulada entre esses

três pólos que constitui sua dinâmica e explica sua eficácia.

“Intervir é internar”. Um doente mental não é somente um doente. Trata-se de

alguém que deve ser internado. Não trata-se apenas de uma tautologia, ou melhor, é a

própria tautologia fundadora do Alienismo. Nisso consistia uma educação especial e

laboriosa da qual o médico tenta reformar, reconstruir, de certa forma, o espírito do doente.

Erving Goffman analisava que , nas instituições totais, a vida cotidiana do doente progride

ou regride na hierarquia dos serviços em função de um julgamento médico que sancionava,

de fato, freqüentemente , a docilidade que ele experimentava em relação às regras e aos

valores da instituição, o que ele chama de carreira do doente mental.

O centro da gravidade das atividades psiquiátricas é efetivamente o asilo. Espaço

inteiramente dominado pelas coerções rígidas da internação. O que explica ao mesmo

tempo a extraordinária permanência e fragilidade da síntese asilar.

O caráter sistemático da coerência asilar inspirou uma espécie de racionalismo

mórbido que serviu de tela para situações reais cada vez mais problemáticas:

superpopulação, miséria material, ausência terapêutica, violência cotidiana - foram como

que sublimadas por um discurso racional próximo ao delírio dos psiquiatras do séc. XIX

sobre os benefícios do isolamento, o rigor das classificações, a eficácia do tratamento

moral. “Longo sono dogmático do psiquiatra” – escreve Castel, “que continuou a se

acreditar médico mesmo quando nada mais era do que o guardião da ordem asilar”.82

Mas, se perguntarmos a respeito da eficácia médica, da terapêutica, seria necessário

avaliar os resultados efetivos desse tratamento moral. Empreendimento difícil, para o qual

algumas estatísticas discutíveis são de pouca valia.

Portanto, a forma e a obra da Psiquiatria: a síntese asilar, não se contentou em

limpar da superfície do corpo social livrando-os desses indesejáveis que são os doentes

mentais. Ela também montou guarda nas fronteiras da razão e a loucura. Para isso, ela não

teve necessidade de curar, principalmente, ela nem mesmo teve necessidade de enclausurar.

Mesmo só havendo alguns loucos, ela ensinou a todos que é bom e prudente ser normal.

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NOTAS DE REFERÊNCIA 1 SCHAAF, Mariza; GOUVEIA, Cristina. Significados da urbanização : traços e fontes para o historiador. In: SÀ, Crinstina ( org. ). Olhar Urbano, Olhar Humano. São Paulo: Ibrasa, 1991. Pp. 70-71 2 Esse segmento, dedicado à reconstrução histórica de Curitiba no final do séc. XIX e início do XX, segue os apontamentos de Maria Ignes de Boni, que em O espetáculo visto do alto, faz a reconstrução do cenário em suas vertentes econômica, demográfica e sanitária. Cf. DE BONI, Maria Ignes. O espetáculo visto do alto : vigilância e punição em Curitiba. 1890-1920. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 1998. Pp05-46. 3 Sobre a indústria ervateira no Paraná, consultar PEREIRA, Magnus. Semeando iras rumo ao progresso : ordenamento jurídico e econômico da sociedade paranaense. Curitiba: Ed. da UFPR, 1996 4 WESTEPHALEN, Cecília; BALHANA, Altiva. Lazeres e festas de outrora. Curitiba: Beija Flor, 1983 5 Sobre a contradição entre cultura popular e policiamento, consultar o artigo de Robert Storch na Revista Brasileira de História. Storch defende que com a reformulação da polícia vitoriana no séc. XIX, esta tornou-se uma das principais vias de controle social no período. Cf. STORCH, Robert. O policiamento do cotidiano na cidade vitoriana. In: Revista Brasileira de História, v. 5, n. 8/9 abr. 1985 Pp. 7-33. A historiografia paranaense produziu trabalhos com essa temática. Por exemplo, há um conjunto de teses publicados no Boletim do Departamento de História, n. 1 em 1989, cujos temas abordavam sobretudo à respeito do controle social feito pelas autoridades paranaense sobre condutas desviantes na sociedade durante a virada do século. Alguns desses trabalhos são. BENKENDORF, Carlos. Embriaguez, Desordem e Controle

Social;TORKARSKI, Regina et all. Contradições de uma sociedade: condutas desviantes e prostituição em

Curitiba; KRUPPEL, Cristina ; LAMB, Roberto. A prostituição em Curitiba e FURTADO, Claudia et all. Da

razão burguesa às pretensões totalizantes: o discurso governamental da Segurança Pública. In: Boletim do Departamento de História, n.1, mar/89. Pp47-132. 6 REIS, Trajano Joaquim dos. Elementos de Hygiene Social. Curitiba: Typ. Paranaense, 1894. 7 REIS, Jayme. Dissertação das principais endemias e epidemias de Curitiba. Rio de Janeiro: Typ. Ribeiro e Macedo, 1898. ) 8 O governo do Paraná, vendo a sua capital assolada por uma epidemia de febre typhoide aceitou que o governo paulista lhe mandasse uma comissão médica, que foi chefiada por Theodoro Bayna, na época, diretor do Instituto Bacteriológico de São Paulo. Logo que chegou na Capital, Bayna descobriu que a contaminação era devido ao esgoto contíguo a rede de água potável. Com isso, Bayna iniciou uma vacinação anti-typhica que “a adeantada população curitibana sujeitou-se sem repulsa, na convicção de sua efficiencia”. Cf. BAYNA, Theodoro. A Febre Typhóide no Paraná. Curitiba: Typ. da Penitenciária do Estado, 1918. Sobre a epidemiologia no Paraná, ver FERNANDES, Linfolfo. O Hospital Oswaldo Cruz e a Epidemiologia no Paraná. Curitiba: Imprensa Oficial, 19--. 9 SOUZA ARAÚJO, Héráclides César. A Prophilaxia Rural no Estado do Paraná : esboço de prophilaxia médica. Curitiba: Livraria Econômica, 1919. 10 SOUZA ARAÚJO, H.C. História da Lepra no Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1946. 11 Cf. LIMA, Nísia; HOCHMAN, Gilberto. Condenados pela raça, absolvidos pela Medicina: o Brasil descoberto pelo movimento sanitarista da Primeira República. In: MAIO, Marcos ( org. ) Raça, Ciência e Sociedade. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1996 e também SEVCENKO, Nicolau. A Revolta da Vacina: corpos rebeldes em mentes insanas. São Paulo: Brasiliense, 1984.Coleção Tudo é História 12 Sobre a Commisão de Saúde formada em 1855, consultar NEGRÃO, Francisco. Memórias da Santa Casa de Curitiba. Curitiba: Imprensa Gráfica Paranaense, 1933. 13 ibid., p. 6 14 Dezenove de Dezembro. 04/ fev./ 1857 15 FOUCAULT, M. O nascimento da Medicina Social. In: Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1981. Pp. 79-99. Sobre Medicina Social, consultar também ROSEN, George. Da Polícia Médica à Medicina Social. Rio de Janeiro: Graal, 1980 e NUNES, Everardo ( org. ). Medicina Social : aspectos históricos e teóricos. São Paulo: Global, 1983. 16 Foucault estabelece o modelo mais conhecido acerca do estudo da Medicina Social. Para ele, ela divide-se em 3 momentos: 1. Medicina de Estado, surgida na Alemanha no séc. XVIII, e preocupada com a manutenção da saúde do povo como maneira de assegurar o poder do Estado ( segundo os teóricos mercantilistas ), donde surge, na Alemanha durante o Cameralismo ( o mercantilismo alemão ), a noção de Polícia Médica, que era uma série de medidas adotadas pelo Estado, com o objetivo de garantir a saúde do

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Povo, este valorizado política e militarmente. 2. Medicina Urbana, surge na França em decorrência de problemas urbanos suscitados à partir desse momento, uma Medicina ocupada com questões como circulação do ar, dessecamento de esgotos, etc. 3. Medicina da Força de Trabalho, quando o proletariado, na Inglaterra do séc. XIX começa a ser tematizado pela Medicina. Ver FOUCAULT, M. O nascimento da Medicina Social. In: op. cit. 17 Cf. CORBIN, Alain. Saberes e Odores : o olfato e o imaginário social nos séc. XVIII e XIX. São Paulo: Cia das Letras, 1987 18 À partir da instalação da Família Real no Brasil em 1808, permite-se a criação das primeiras instituições de ensino superior com a transformação do Rio de Janeiro em Capital do Império. São criadas então duas faculdades de Medicina., do Rio de Janeiro e da Bahia. Ambas passaram à representar duas vertentes do saber médico brasileiro: a Escola Tropicalista Baiana e a Academia Imperial de Medicina. Esta segunda era a que detinha o discurso oficial do Império. Tinha influência sobre o imperador D. Pedro II e elaborou a legislação sanitária do séc. XIX. Ambas partiam de pressupostos teóricos semelhantes, sobretudo da Medicina Social francesa ( Medicina Urbana, segundo definição de Foucault ), mas acabaram especializando-se em ramos distintos. A Escola Tropicalista Baiana iria dedicar-se ao estudo da Medicina Legal, enquanto a Academia Imperial iria desenvolver um discurso em torno da Higiene Pública. Sobre esse assunto consultar o primeiro capítulo da tese de doutorado de Márcia Terezinha Dalledone Siqueira. SIQUEIRA, Márcia. T. D. Saúde e Doença na Província do Paraná. Tese de Doutorado em História. Curitiba: UFPR, 1989. Pp. 33-90, e também MACHADO, Roberto et all. Da( n ) ação da norma, op. cit., Pp153-243. LUZ, Madel. Medicina e Ordem Política Brasileira. Rio de Janeiro: Graal, 1981. 19 Cf. DONZELOT, Jacques. A Polícia das Famílias. Rio de Janeiro: Graal, 1980. e COSTA, Jurandir Freire. Ordem Médica e Norma Familiar. Rio de Janeiro: Graal, 1983. 20 Em 1865, um médico militar belga chamado Meynne escreveu um livro com o título de Topographie

médicale de la Belgique : études d’hygiéne publique et de médicne sociale, de estatistique, de climatologie et

de géologie medicales. Meynne sustentava que “a higiene é a Medicina em larga escala”, a “Medicina aplicada às nações.”. Segundo George Rosen, Meynne dizia que “um dia a higiene constituirá a base de toda Ciência Social, tanto porque saúde pública sempre será a primeira riqueza de um povo, quanto porque a economia nacional logo se acharia em posição de inferioridade em relação aos outros países se a força física de suas classes trabalhadoras estivesse seriamente afetada” ( ROSEN, op. cit., p. 78 ). Assim, a Medicina Social do séc. XIX sonhava com a idéia de que a higiene seria um dia a base para a política e a organização da sociedade, transformando-se em uma verdadeira “riqueza”. Como consideravam que a pobreza era o maior responsável pela falta de higiene, e atribuíam-na um certo julgamento de valor, consideravam que a Medicina deveria ter uma responsabilidade social, fez com que a Medicina elaborasse um discurso que tematizava medidas tanto de caráter médico quanto sociais. É assim que, por exemplo, na Inglaterra na década de 1870, foi instituída a Lei dos Pobres, que pela primeira vez estabelecia um sistema de consulta gratuita à todos os assalariados da Inglaterra e País de Gales. Com a Lei dos Pobres na Inglaterra, inaugura-se uma Medicina Social diferente daquela que surgira no contexto político do Cameralismo na Alemanha, e também da Medicina Urbana típica da Medicina Social francesa. No séc. XIX, surge, na Inglaterra, o que Foucault caracteriza como uma Medicina da Força de Trabalho. Com a Lei dos Pobres, criam-se comitês de saúde, Health Services, que são responsáveis por: 1. controle da vacinação, à partir desse momento, obrigatória; 2. organização do registro de epidemias e endemias; 3. localização dos focos de insalubridade e, eventualmente, a destruição destes. Com a organização de um completo sistema de controle médico inglês, a assistência controlava dava-se em uma relação ambígua: se de um lado, os pobres beneficiavam-se com a possibilidade de tratar-se gratuitamente, os ricos vêem-se com isso, afastados as possibilidades de não serem vítimas dos fenômenos epidêmicos originados das classes pobres. Assim, a Medicina Social da Força de Trabalho, ao criar um aparato de assistência médica ao pobres, acabou estabelecendo uma espécie de cordão sanitário. Ela assegurava a saúde destas como meio de proteção às classes ricas. Cf. FOUCAULT, M. O nascimento da Medicina Social. In: op cit. Pp. 95-111. 21 Sobre esse assunto consultar ADORNO DE ABREU, Sérgio França; PUGLIESE DE CASTRO, Myriam. A arte de administrar a pobreza: a assistência social institucionalizada em São Paulo. In: TRONCA, Ítalo. ( org. ) Foucault Vivo. Campinas: Pontes, 1987. Pp. 101-107 22 SILVA, P. O Hospício D. Pedro II e a desanexação da Santa casa de Misericórdia, citado por RESENDE,. Heitor. Políticas de saúde mental no Brasil: uma visão histórica. In: TUNDIS, S. ; COSTA, N. Cidadania e Loucura: Políticas de Saúde Mental no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1990. p. 40

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23 Acta de inauguração do Novo Hospital de Misericórdia de Curitiba, citado por NEGRÃO, Francisco. Memórias da Santa Casa de Curitiba, op. cit. Pp. 20-22 24 O estatuto da Irmandade de Misericórdia está disponível na biblioteca da Santa Casa de Curitiba. Compromisso da Irmandade de Misericórdia de Curitiba. Curitiba: Typ. de Lopes, 1864. Também estão disponíveis na Casa da Memória as atas contidas no Livro Tombo da Irmandade de Misericórdia, que cobrem o período de 1879-1826. 25 NEGRÃO, op. cit., p. 6 26 Aqui é necessário discutir a ambigüidade dessa definição de “voluntária” do internamento. A preocupação com os alienados não se contenta em fazer seqüestrar através do internamento compulsório, aqueles que comprometem a ordem pública, ou seja, freqüentemente, os indigentes. Os relatórios dos Chefes de Polícia não fazem menção à modalidade de seqüestro feito pela família. Mas, a Legislação dos Alienados em vigor determinava que a internação podia ser feita por “pai, tutor, curador, marido ou mulher e senhor”. Nesse caso, tratava-se de uma internação voluntária, ou seja, quando se requisitava a intervenção médica em um momento em que o alienado rompia com o controle familiar. No entanto, essa ambigüidade do termo voluntário deixa implícito que essa modalidade de intervenção é tão coercitiva como a primeira. Mas, nesse caso, a família conserva o direito de tratar ela própria do alienado, mesmo perigoso, desde que ela seja capaz de neutralizar seus efeitos e as conseqüências que poderiam por em risco a ordem pública. A questão do debate entre a função pública ou privada do asilo é uma temática que se estabeleceu desde o séc. XVIII. Assim, desde aquele período os psiquiatras desejavam impor que a obrigação de seqüestrar compulsóriamente os insanos não se dê apenas nos casos de perturbação da ordem pública, mas em qualquer caso onde fossem evidentes os sinais da loucura. Desse modo, a prática psiquiátrica teria um valor coercitivo, tendo o poder de intervenção sobre a sociedade. 27 Relatório apresentado ao Dr. Secretário do Interior, Justiça e Instrucção Pública do Estado do

Paraná, pelo Juiz de Direito e Chefe de Polícia Dr. Manoel Bernardino Cavalcanti Filho, em 31 de agosto de

1896. Curitiba: Typ. Modello à Vapor, 1896. p. 16 28 RESENDE, op. cit., Pp. 35-43. 29 Sobre a construção do hospício São Pedro em Porto Alegre, consultar o artigo de Yonissa Marmitt Wadi. WADI, Yonissa Marmitt. Sobre o discurso da necessidade de um hospício de alienados. ( Rio Grande do Sul, séc. XIX ). In: Cultura e Cidadania – ANPUH- Pr, v.1, 1996. Pp. 113-128 30 Muitos autores consideram esse movimento de construção de hospícios no Brasil como um movimento de “laicização do asilo”, no entanto, não trata-se apenas de uma “laicização” e sim a ruptura de paradigmas , a ascensão da classe médica e o seu controle nas instituições. 31 SIGAUD, Francisco Xavier. Reflexões acerca do trânsito livre dos doidos pelas ruas da cidade do

Rio de Janeiro. In: Diário de Saúde, citado por MACHADO, p. 377. 32 Até aquele momento, a função de polícia médica, ou seja a administração pública em matéria de saúde, era efetuado pelas Câmaras Municipais. À elas compreendia o papel de questões como calçamento de ruas, dessecação de pântanos, construção de cemitérios e matadouros, fiscalização de alimentos, etc. O tema da loucura parecia pertencer então à um conjunto mais amplo de “temas urbanos”. Nesse aspecto, para a administração municipal, o problema dos loucos era colocado em um mesmo espaço em que se inseria o problema dos criminosos, dos órfãos, dos mendigos, meretrizes e alcoólatras. Tanto que, a questão dos alienados sempre apareceu, durante o séc. XIX e início do XX, nos relatórios dos Chefes de Polícia, e não em relatórios de autoridades médicas. 33 Como na França, no Antigo Regime, em que uma das utilizações das lettres de cachet era a requisitação ao poder real para a transformação de um alienado em um “prisioneiro de família. Por esse dispositivo, o louco era considerado “incapaz” e seus bens eram postos sob a tutela. Assim, na maioria das vezes, os loucos de famílias ricas o isolamento era feito no interior das suas próprias casas, com o objetivo de salvaguardar a propriedade. O mesmo não ocorria com os loucos pobres, que, por estarem desamparados, vagavam pelas ruas do Rio de Janeiro, ou, às vezes, eram encarcerados juntos aos criminosos comuns. O problema foi levantado pela primeira vez nesse artigo de Francisco Sigaud. 34 A descrição de Mello Moraes Filho em Festas e Tradições populares do Brasil, passa através de uma galeria de tipos exóticos que habitavam o Rio de Janeiro no início do séc. XIX. De todos, talvez o mais conhecido seja o alferes Cândido Galvão, conhecido pela população carioca como “Príncipe Oba II da África”. Maria Clementina Cunha comenta essa estranha galeria de tipos de exóticos na introdução de seu livro Cidadelas da Ordem, op. cit., Pp. 7-14, e retoma essa abordagem em um artigo publicado em Foucault e

a destruição das evidências organizado por Márcio Mariguela. CUNHA, Maria Clementina. Persuasão e

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Violência: O Alienismo e suas artes de curar. In: MARIGUELA, Macio ( org. ). Foucault e a destruição das evidências. Piracicaba: Unemp, 1995. Pp. 43-68. Erivan Karvat, que abordou o tema da repressão à mendicidade e vadiagem em Curitiba entre 1890-1920 escreve que em Curitiba, nas décadas de 30 houve uma galeria imensa de tipos populares, que também eram figuras conhecidas da população como Maria Balão, Maria Polenta, etc. Segundo Karvat, a imprensa curitibana da década de 30 tentou criar uma certa nostalgia em relação à esses tipos populares, cedendo espaço para publicações de matérias sobre o assunto ou mesmo fazendo entrevistas com essas pessoas! O autor sustenta que nesse período a cidade passou por mudanças muito rápidas e que a idéia era procurar nesses tipos populares os vestígios de uma velha cidade pacata, a nostalgia pelo ar provinciano que a cidade começava a perder. Cf. KARVAT, E. A Sociedade do Trabalho, op. cit., p. 159 e ss 35 SIMONI, Luiz Vicente de. A importância e necessidade da criação de um manicômio ou estabelecimento especial para o tratamento de alienados. In: Revista Fluminense, citado por MACHADO, P. 377. 36 MACHADO, p.377 37 Ver descrição da Santa Casa do Rio de Janeiro durante o séc. XIX em MACHADO, op. cit., Pp. 378-379 e RESENDE, Heitor. op. cit., Pp. 43 e ss. 38 MACHADO, p. 435 39 Sobre a descrição do Panopticon, ver o capítulo de Vigiar e Punir dedicado ao Panoptismo ( FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 19 Pp243-254 ). Na Revista Brasileira de História, v.7,

n.14, dedicado ao tema das “instituições”, foi publicado uma tradução da versão francesa ( reduzida ) desse texto de Bentham, com apresentação de Maria Stella Brescianne. ( BENTHAM, Jeremy. Panoptico:

Memorial sobre um novo princípio para construir casas de inspecção e principalmente prisões. In: Revista Brasileira de História, v. 7, n. 14, mar/ago 1987. Pp. 199-229 ). Consultar também o artigo de Salma Tannus Muchail em Recordar Foucault organizado por Renato Janine Ribeiro. ( MUCHAIL, Salma Tannus. O lugar das instituições na sociedade disciplinar. In: RIBEIRO, Renato Janine ( org. ). Recordar Foucault. São Paulo: Brasiliense, 1985. Pp. 196-208 ) 40 BENTHAM, p. 225 41 ibid., p. 229 42 MACHADO, p. 345 43 BENTHAM, p. 325. 44 FOUCAULT, M. História da Loucura, op cit. p. 482 45 ESQUIROL, Des Maledies Mentales, citado por CASTEL, p. 150. 46 Id. 47 Id. 48 Relatório apresentado à Assembléia Legislativa do Paraná, no dia 15 de março de 1867 pelo

Presidente de Província, o illustríssimo e excellentíssimo senhor doutor Polidouro Cezar Bulamarque. Curitiba: Typ. de Cândido Martins Lopes, 1867. 49 Relatório apresentado ao Dr. Secretário do Interior, Justiça e Instrucção Pública do Estado do

Paraná, pelo Juiz de Direito e Chefe de Polícia do Estado , Dr. Manoel Bernardino Vieira Cavalcanti Filho

em 31 de agosto de 1896. Curitiba: Typ. Modello a Vapor, 1896 50 ibid. 51 MUNHOZ VAN ERVEN, Herberth. Contribuição ao Histórico do Hospital de Nossa Senhora da Luz. Curitiba: Mundial, 1944. 52 Ver DE BONI, op. cit., p. 15 53 Ver A República entre 17 de Junho de 1889 e 23 de Junho do mesmo ano, citados por AZEVEDO DE MACEDO, Francisco. A Igreja e o Estado: polêmica sobre a authenticidade das certidões parochiais entre o Dr. Francisco de R. de Azevedo e o senador monsenhor Alberto Gonçalvez. Curitiva: Typ. d’O Commercio, 1900, disponível no setor de obras raras da Divisão Paranaense. 54 ibid. 55 José Clemente Pereira, provedor da Santa Casa do RJ, por exemplo, chamava esse tipo de dinheiro de “impostos sobre a vaidade”. Sobre o caso de Curitiba, os documentos falam apenas que o financiamento de execução do projeto foi “pluriforme”. Mas sabemos que em Curitiba, a construção do hospício se deu graças à concessão de uma loteria para esse fim. 56 MUNHOZ VAN ERVEN, op. cit. p. 7 57 ibid. p. 8 e 12 respectivamente

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58 No Diário da Tarde de 4 de abril de 1903 encontra-se uma nota informando que “foram hoje pela manhã removidos para o Hospício Nossa Senhora da Luz, alienados e inválidos que se acham no Hospital de Misericórdia”. 59 MUNHOZ VAN ERVEN, p.9 60 Diário da Tarde, 17 de Março de 1903 61 PEREIRA, Magnus. op. cit. Pp. 49-56 62 Código de Posturas Municipais, 1896, 12-15. 63 Relatório da Irmandade de Misericórdia de Coritiba. 1912, 1913,1914. Curitiba: Typ. da Penitenciária do Estado, 1914. 64 CORBIN, op.cit. p. 141-142. 65 Ibid., p. 142 66 PINEL, Traité... citado por CASTEL, p 87 67 O nascimento da prisão contemporânea, segundo Foucault, deu-se num momento em que se deu um deslocamento na arte de punir. Igualitária: a pena seria a mesma para todos os cidadãos; pessoal: atingiria apenas o condenado e não a sua família. Doravante, agora as penas passam a ser morais, e não mais castigos corporais, mutilações, ostentação pública dos suplícios. Cf. FOUCAULT,M Vigiar e Punir, op. cit. O artigo de Catherine Duprat demonstra bem essa conjuntura na França durante a Restauração, em que se cria a Sociedade Real das Prisões em 1819, em que um dos objetivos é a investigação da situação das prisões do Reino naquele momento. ( DUPRAT, Catherine. Punir e Curar: em 1819 – a prisão dos filantropos. In: Revista Brasileira de História, v. 7, n.14. 1987. Pp7-59 ) . Basta lembrar que foi nessa conjuntura da “humanização” das prisões que Tocqueville e Beaumont foram enviados para os Estados Unidos para conhecer o chamado sistema pensilvânco. ( Sobre o surgimento das prisões nos Estados Unidos no séc. XIX, consultar ROTHMAN, David. The Dyscovery of the asylum: social order and disorder and disorder in the New Republic. Boston: Little-Brown, 1971. ) 68 NEGRÃO, op. cit., p. 25 69 id 70 MUNHOZ VAN ERVEN, p. 10 71 id 72 CASTEL, Robert. op. cit, p. 69 73 Relatório da Irmandade de Misericórdia, op cit., p. 21 74 id 75 id 76 ibid., p. 22 77 Essa discussão sobre o trabalho como elemento de cura nos leva à uma outra problemática: o asilo como recuperação da força de trabalho. Esta preocupação tem ocupado boa parte da literatura à respeito das instituições disciplinares. Em História da Loucura, escreve Paulo Sérgio Rouanet, no texto intitulado Gramática do Homicídio, Foucault diz que “a segregação surgiu como uma resposta dada pelo mercantilismo a uma grave crise econômica. Todos os que não eram nem produtores, em consumidores eram socialmente inúteis: daí a reclusão de todos os anti-sociais, entre os quais os loucos, com o objetivo de integrá-los no circuito produtivo. Os loucos e todos os outros anti-sociais eram visto sob um pano de fundo de reprovação ética eram transgressores do código mercantilista, e, portanto, tinham se colocado na posição de réprobos da Razão Clássica. Com o início do capitalismo liberal, surge a necessidade de mão-de-obra para a indústria, e todos os anti-sociais, com exceção dos loucos, vão sendo libertados,. Simultaneamente com as necessidades econômicas, a prática política vai exercer uma grande influência, o liberalismo político vai esvaziar as prisões de todos os que tinham sido presos arbitrariamente, sem julgamento regular e sem plena salvaguarda dos direitos individuais. Restam os loucos. A loucura é isolada,m e pela primeira vez, é vista em sua singularidade. A loucura se torna pensável: o discurso psiquiátrico pode se instaurar. Na história da Medicina, a mesma influência dos fatores sociais e políticos” ( ROUANET, Sérgio Paulo. Gramática do Homicídio. In: ROUANET, S. P. MELQUIOR, José Guilherme; ESCOBAR, Carlos Henrique e outros. O Homem e o discurso : a arqueologia de Michel Foucault. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1971, p. 108 ) . Robert Castel discorda que o asilo tenha por função principal a recuperação da força de trabalho: “Que não se venha falar da necessidade de recuperar a força de trabalho no momento em que centenas de milhares de indigentes improdutivos não tem ocupação. Que não se venha alegar o patético da loucura, quando as famílias ociosas nas tardes de domingo dão gorjeta aos guardas de Bicêtre para assistir às contorções dos furiosos” – escreve Castel em A Ordem Psiquiátrica ( CASTEL, p. 22 ). Segundo Castel, “se em termos marxistas, a Psiquiatria

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das relações sociais – o que Althusser chama de “aparelhos ideológicos de Estado”- não penso, por razões que não posso desenvolver aqui, que se tenha direito de dizer por isso que ela tenha por função principal a recuperação da força de trabalho ( a reinserção dos doentes no circuito de produção ). Parece resultar disto que o sistema psiquiátrico agiria principalmente como instância de inculcação cultural e de exclusão simbólica, segundo uma lógica ao mesmo tempo homóloga e inversa àquela produzida, no que tange ao sistema de ensino, por Bordieu e Passeron” ( CASTEL, Robert. Le traitement morale, théraique mentale et contrôle social au XIX siécle, citado por FIQUEIRA, Sérvulo. Notas introdutórias ao estudo das terapêuticas II: Robert Castel e Michel Foucault. In: ___( org. ) Sociedade e Doença Mental. Rio de Janeiro: Campus, 1978, Pp. 37-149 ) . 78 Dr. BERTHIER. Du travail comme element de thérapique mental , citado por CASTEL, p.239 79 id. 80 ibid., p. 24 81 Nessa época, o leprologista Heraclides César Souza Araújo, incumbido do serviço de Profilaxia do Estado, também defendia, inspirado em Jeanselme, a construção de colônias agrícolas para leprosos no Paraná. Segundo Souza Araújo, a melhor solução seria a construção de colônias marítimas, ou seja, construídas em ilhas desabitadas. Souza Araújo chegou a projetar uma delas, a Lazaropolis, uma verdadeira cidadela dos leprosos. Ver: SUTIL, Marcelo. Da cidade à sepultura : o lazareto São Roque na Curitiba de 1855-1926. Curitiba: UFPR, 1992. Monografia de graduação. 82 CASTEL, op. cit., p. 247.

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CONCLUSÃO

O que na França deu origem a liberação dos acorrentados no Bicêtre tomou-se como

marco do nascimento da Psiquiatria. Pinel, com justiça, é chamado de pai da primeira

revolução psiquiátrica. Sua nosographie philosophique é considerado o primeiro dos

grandes sistemas classificatórios do séc. XVIII.

A constituição de uma ciência da alienação mental parte de um pressuposto baseado

no método classificatório da medicina geral do séc. XVIII, herdada das ciências naturais.

Pinel efetivamente deu coerência a aplicação desse princípio metodológico. A

introdução que ele orgulha-se de ter feito em relação aos seus antecessores em matéria de

alienação mental é justamente a da observação minuciosa dos sinais da doença: 1. na ordem

da aparição; 2. no desenvolvimento; 3. no término natural. Com Pinel, o método

classificatório é fundado na coleta e distribuição metódica dos sinais exteriores da doença

mental. O “filosófico” empregado por ele em seu Traité médico-philosofique é em função

desse método. Filosófico, no sentido em que Pinel quer inscrever-se na tradição de Locke e

Condillac, o contrário de metafísico, especulação arrojada sobre as causas dos fenômenos.

O que se chamou de “libertação dos insanos em Bicêtre”, ou “o nascimento do asilo

terapêutico”, na verdade obedeceu à circunstâncias históricas determinadas.

Pinel recebeu a direção do Bicêtre em 1793. Desde 1790, havia-se previsto na

França a criação de grandes hospitais destinados aos insensatos. Mas em 1793 ainda não

havia nenhum deles.

Em Bicêtre, construído para ser um depósito de mendigos, continuava a reinar a

confusão de indigentes, velhos e loucos como antes da Revolução. Pinel foi nomeado para

o Bicêtre em 1793 por recomendação de Cabanis e de Thouret. Ele representa, junto com

Cabanis, Delecloy, Fourcroy e outros, a corrente de reformadores, higienistas e filantropos

que, no séc. XVIII, efetuaram uma mudança na estrutura hospitalar em meio àquela

convulsão política.

Pinel articulou três dimensões heterogêneas entre si. Com ele, a síntese alienista

entre um saber, a Psiquiatria, um lugar de exercício, o asilo, e uma tecnologia de

intervenção, o tratamento moral, iriam operar de imediato a sua fusão.

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O que se chamou de Alienismo surgiu, na verdade, do meio parisiense nos séc.

XVIII e XIX. Foi em Paris, mais especificamente na Salpetriére, que Pinel e Esquirol, no

início do séc. XIX ministraram cursos de onde surgiriam os grandes nomes do Alienismo

como Falret, Voisin, Leuret, Trélat e Georget.

A Psiquiatria, apesar de seu aparente rigor metodológico não tinha, não obstante,

um aparelho teórico, um campo conceitual e uma sistematicidade coerente. Foucault a

define como “uma ciência duvidosa”, cujo perfil epistemológico é “pouco definido”.

Pinel e o grupo da Salpetriére se colocaram na contracorrente do saber médico

contemporâneo. E uma das formas de se ilustrar isso é abordar a discussão existente, desde

a primeira escola alienista, a respeito da sede da loucura.

O problema da etiologia da loucura dominou a reflexão teórica desde os primeiros

alienistas. Qual a sede da loucura? A alienação mental era uma doença do corpo ou das

paixões? Enfermidade física ou afecção da alma? A desordem tinha origem nos órgãos ou

era fruto de fenômenos morais, religiosos e sociais. É bem conhecido a polêmica entre

Pinel e Broussais a respeito da fisiologia da loucura. Broussais em De l’irritation et de la

folie em 1828 analisava a incompatibilidade entre os pressupostos da escola alienista e os

da “medicina científica”. Bichat também expressa claramente essa incompatibilidade.

Assim como Bayle, descobridor da paralisia geral, ou Rostan, primeiro teórico do

organicismo, esse grupo orientou suas pesquisas para as origens orgânicas das doenças.

Entre os alienistas do grupo da Salpetriére estava Falret, que no começo de sua

carreira escreve suas Instruction à teorie des ouverture dês corps des aliens pour diagnostic

e la traitament des maledies mentales. Falret chega a formular a teoria do “ecletismo

terapêutico”, tentando aproveitar os postulados de ambas as escolas. Georget se pronuncia

claramente contra Pinel e Esquirol sobre a sede da doença mental. Ele é o primeiro a fazer

do delírio um sintoma da doença mental que não deve ser confundido com a “natureza da

doença”.

Ao longo do séc. XVIII, percebe-se claramente que o modelo de doença mental

oscilou entre essas duas escolas: uma explicação organicista, no qual a lesão localizada era

a origem da doença, e uma nosografia moral e social, na qual a origem da doença estava

ligada à desordem das paixões, e à patologia do meio.Contudo, não tratava-se apenas de

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duas teorias. O modo como se compreendia a doença mental era fundamental para

determinar a estratégia da intervenção psiquiátrica.

Por último, por que o asilo torna-se peça central em todo o esquema da intervenção

psiquiátrica. A forma-asilo inventada por Pinel é considerada ideal porque é o mais apto a

opor, ao meio natural, isto é, familiar ou social, tidos como patogênicos, um meio

construído, artificial, terapêutico, porque sistematicamente construído. No asilo,

desenvolve-se uma pedagogia da ordem. Nele, o exercício da autoridade pode ser mais

enérgico, a vigilância mais constante e a rede de coerção extensa. Um asilo

convenientemente organizado constitui, para o doente, uma verdadeira atmosfera médica.

Sua ação é incessante, imperceptível. Ela modifica, através da ordem, da cooperação, da

disciplina e da submissão. Portanto, o asilo é o suporte que dará coerência à intervenção

psiquiátrica. Por tal razão, Esquirol, no séc. XIX dirá “Esse belo nome, asilo”. Não importa

como e de que modo essa terminologia continua a provocar repulsas em decorrência de

mais de um século de segregação do louco e de ambigüidade teórica. No séc. XIX, aqueles

que chamavam-se “alienistas” consideravam o louco um “alienado”, ou seja, pessoa alheia

a si mesma, e praticavam a exclusão com sã consciência – chamavam isso de “isolamento

terapêutico”.

Por muito tempo, pensei em meu objeto de estudo sem entender essas questões.

Somente quando tematizei a questão do surgimento do asilo, a noção de doença mental, e a

prática psiquiátrica em bloco é que pude entender que esses elementos constituem

exatamente o que se denominou medicalização da loucura.

Ao escolher como tema uma instituição psiquiátrica em Curitiba na virada do séc.

XIX para o séc. XX, procurei demonstrar que, durante a maior parte do tempo esses

elementos que constituem a medicalização da loucura estavam presentes no contexto

estudado. Por medicalização da loucura compreende-se um conjunto muito mais amplo do

que a captura da loucura pelo olhar médico como procuramos demonstrar ao longo deste

trabalho.

Por muito tempo, acreditou-se que a Psiquiatria era um conhecimento que evoluiu

linearmente até chegar ao status de Ciência. No entanto, desde o séc. XIX, quando a

psiquiatria começa a formar seu corpo teórico, ela logo percebe que a medicina não tem

autoridade epistemológica para legislar sobre a loucura. Ao tentar criar um substrato teórico

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para a recém-criada categoria de “doença mental”, tudo que a Psiquiatria conseguiu foi um

discurso sobre a loucura. O discurso psiquiátrico foi, desde o início, um discurso da

verdade sobre a loucura. Era essa a intenção de Foucault com sua “arqueologia do

silêncio”. Escrever sobre a loucura antes da captura psiquiátrica. O pensador da arqueologia

vai escolher um caminho menos comprometido com as verdades científicas, o único

caminho a priori capaz de evocar a percepção arqueológica da loucura – a História.

Tais questões pertenceram sempre à hegemonia da discussão e da literatura médica.

Os opositores à essa “hegemonia clínica” sempre pertenceram à um terreno baldio da

reflexão, à um no men’s land. Ao recusar essa dicotomia entre a produção clínica e a

reflexão intelectual, podemos negar a loucura enquanto objeto exclusivo da Psiquiatria.

Não se trata de uma posição psiquiatricida, termo cunhado em 1961 por um renomado

psiquiatra Henri Ey ao autor de História da Loucura. Se a posição psiquiatricida de

Foucault, segundo Ey, teve conseqüência tão graves para a própria idéia do homem, a ponto

de a doença mental, antes vista como dor e sofrimento, transformar-se em um imenso

afresco, em que ela transforma-se numa maravilhosa manifestação do gênio poético,

devemos ocupar um ponto cego entre “a dor do louco” e o “prazer da escrita”.

Não trata-se agora de concluir. A boa pesquisa é sempre aquela que, ao final, aponta

como dizia Deleuze, para a vizinhança entre o que sabemos e a nossa ignorância e que

transforma um no outro.

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Hospital Psiquiátrico Nossa Senhora da Luz em 26 de Janeiro de 1914. Curitiba: Typ. Da Penitenciária do Estado, 1914.

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_______. Relatório do Dr. Rodolfo Pereira Lemos, Diretor Médico do Hospital Psiquiátrico Nossa Senhora da Luz em 31 de Dezembro de 1916. Curitiba: Typ. Da Penitenciária do Estado, 1916.

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