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- I Sumário Psiquiatria Clínica Genética molecular e esquizofrenia Alguns aspectos do consumo de bebidas alcoólicas em crianças Personalidades anormais - Um ensaio de revisão teórica Sida: aspectos psiquiátricos e psicológicos Artigos Originais O comportamento como sistema de estados III. Correspondências fenomenológicas Métodos de descentração e confronto em terapias cognitivo-cornportarnentais Estudos de caso Cultura e Psiquiatria Antero de Quental: a propósito do centenário do suícidio do poeta açoreano JAN./MAR. 1991, Vol. 12 n.? 1 CADEIRA DE PSIQUIATRIA - CLÍNICA PSIQUIÃ TRICA - HOSPITAIS DA UNIVERSIDADE - COIMBRA

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Sumário

Psiquiatria Clínica

Genética molecular e esquizofreniaAlguns aspectos do consumo de bebidas alcoólicas em criançasPersonalidades anormais - Um ensaio de revisão teórica

Sida: aspectos psiquiátricos e psicológicos

Artigos Originais

O comportamento como sistema de estadosIII. Correspondências fenomenológicasMétodos de descentração e confronto em terapias cognitivo-cornportarnentais

Estudos de caso

Cultura e Psiquiatria

Antero de Quental: a propósito do centenário do suícidio do poeta açoreano

JAN./MAR. 1991, Vol. 12 n.? 1

CADEIRA DE PSIQUIATRIA - CLÍNICA PSIQUIÃ TRICA - HOSPITAIS DA UNIVERSIDADE - COIMBRA

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Sumário

Psiquiatria Clínica

• Genética molecular e esquizofrenia -Isabel Coelho e M Helena P. de Azevedo• Alguns aspectos do consumo de bebidas alcoólicas em crianças =Anibal Fontes

e AIda Alves• Personalidades anormais - Um ensaio de revisão teórica - Fernanda Rosa e

Luísa e Lucena e Vale• Sida: aspectos psiquiátricos e psicológicos - António Pissarra da Costa e Emília

Albuquerque Fernandes

Artigos Originais

• O comportamento como sistema de estadosIII. Correspondências fenomenológicas -J L. Pio Abreu

• Métodos de descentração e confronto em terapias cognitivo-comportamentaisEstudos de caso - João d'Oliveira Cóias e Fernando Edilásio Pocinho

Cultura e Psiquiatria

• Antero de Quental: a propósito do centenário do suícidio do poetaaçoreano- Carlos Saraiva

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Psiquiatria Clínica,12, (1) pp. 1-7, 1991

Genética Molecular e Esquizofrenia

PSIQUIATRIA ClÍNICA

PORISABEL COELHO*, M. HELENA P. DE AZEVEDO**

INTRODUÇÃO

Talvez mais que qualquer outra doença psiquiá-trica, a Esquizofrenia tem despertado um enormeinteresse por parte dos investigadores como são provao volume crescente de trabalhos anualmente publica-dos. A verdade é que, pese embora décadas de inves-tigação, pouco se aprendeu, e esse pouco reflecte-sena afirmação de Kety «se a esquizofrenia é um mito,é um mito com base genética». Já Bleuler, no princípiodo século, aludiu à eventualidade das famílias dosdoentes serem «infectadas por esta doença mentalhereditária» (Bleuler, 1911). Mas foi com Rudin(1916), secundado por um seu discípulo Kaallmann(1938), que se iniciaram os primeiros estudos sis-temáticos de famílias com a doença, a fim de seanalisarem as influências de transmissão familiar.Foram então aplicadas, infrutiferamente, teoriasMendelianas segundo modelos recessivos.

Fazendo eco desta influência assistiu-se na Ale-manha dos anos trinta à homologação de leis drásti-cas, que levaram à esterilização compulsiva de mui-tos doentes por a esquizofrenia ser considerada doençamental hereditária. Em parte, como reacção a essescrimes, a questão da hereditariedade na esquizofreniafoi relegada para segundo plano, assistindo-se nos

anos seguintes, ao florir de interpretação etiopa-togénica à luz de correntes analíticas e psicossociais(Leonhard, 1986). Porém, nos últimos anos temosassistido a um interesse crescente pela investigaçãogenética da esquizofrenia, mais recentemente graçasà aplicação da genética molecular no estudo dosdistúrbios psiquiátricos, numa tentativa de esclarecer

a sua etiologia.Fazendo uso da revolução científica, com o ad-

vento das novas tecnologias genéticas, de que são

* Assistente Convidada de Psicologia Médica da F.M.C** Professora Catedrática de Psicologia Médica da F.M.C.

exemplo técnicas como o potencial do ADN recom-binante, assistimos nos anos 80 à proliferação mun-dial destes estudos, nomeadamente de estratégias delinkage com marcadores de ADN, cuja aplicação semostrou frutuosa em outras doenças como por exem-plo a de Huntington, em que se detectou linkage como cromos soma 4 (Gusella e col. 1983).

Estudos de famílias, de gémeos e de adopção for-necem uma compreensibilidade racional para o cons-tructo do genótipo esquizofrénico, que imprimiriauma determinada vu1nerabilidade ou predisposiçãopara a actuação de factores ambienciais levando aoeclodir do fenótipo esquizofrénico (Gottesman eShields, 1982). Numa recente revisão da epidemiolo-gia da esquizofrenia, os factores genéticos mostraram-se como sendo, de longe, os mais importantes factoresde risco conhecidos para a esquizofrenia (Eaton,1985). Contudo, permanece o mecanismo de trans-missão de geração em geração, que factores biológi-cos são transmitidos e qual o seu substracto. Comvista ao esclarecimento da primeira questão têm sidoutilizadas fundamentalmente duas metodologias, porum lado modelos estatísticos que testam hipótesesespecíficas e, por outro lado, estudos com marcadoresgenéticos.

À luz dos conceitos actuais, os poderosos métodos

de análise estatística usados pelos estudos de segre-gação têm-se mostrado ineficazes na demonstração

,de um modelo preferencial de transmissão da esquizo-frenia (McGue e co1s., 1985; Kend1er, 1988).

As limitações da análise de segregação, compara-tivamente com a maior capacidade da análise delinkage com marcadores genéticos tornam a últimaprivilegiada no elucidar do «defeito» genético subja-cente a esta doença. Como afirma Weatherall (1987)é na investigação das doenças multifactoriais que a

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2 Isabel Coelho e M. Helena P. de Azevedo

genética molecular tem o seu papel mais importante,por dissecar aquele conceito nos seus componentesgenéticos e não genéticos.

MARCADORES GENÉTICOS

O conceito de marcador genético tem sido fre-quentemente adulterado na literatura psiquiátrica,sendo erroneamente associado a qualquer tipo decaracterística biológica herdada com uma relaçãocausal com a doença mental em estudo, de que são

. exemplos os marcadores biológicos e os marcadoresde estado (McGuffin e cols. 1983). Contudo, é maiscorrecto usar-se o termo no sentido de marcador detraço ou genético, definido como uma característicamensurável, herdada sob uma forma Mendelianasimples, a qual tem uma natureza polimórfica (tem 2ou mais alelos com a frequência de pelo menos1% napopulação em geral), e que pode ser assinalado oupotencialmente assinalado num local específico dumcomossoma. Tem a vantagem em relação aos marca-dores biológicos e de estado, de não necessitar de umarelação fisiopatológica causal com a doença, de serespecífico, de poder detectar-se fielmente e de não serafectado pelo estado da doença ou da sua recuperação(Watt, 1982).

Recentes na história, os primeiros marcadoresgenéticos conhecidos, agora designados por clássicosou convencionais, englobam vários produtos genéti-cos como os diferentes tipos sanguíneos (gruposABO, sistema rhesus, Mn, Duffy e Kell); antigéniosde histocompatibilidade (HLA, A, B, C); enzimas deglóbulos vermelhos (adenil-cinase, adenosina deami-nase, esterase D) e variados polimorfismos proteicos

detectados electroforeticamente (haptoglobulina, alfa-antitripsina, amilase, Gc, Gn, Kn). O uso destesmarcadores para o estudo delinkage é limitado, dadoO pequeno número de polimorfismos detectáveis, sebem que estivessem localizados em cromos somasespecíficos. O lento progresso na identificação depotenciais marcadores deveu-se à metodologiagenética convencional, a qual requeria que o locusmarcador fosse expresso como uma característicavisível do fenótipo bioquímico (Baron e cols., 1988).A recente descoberta de uma nova geração de marca-dores genéticos de ADN permitiu ultrapassar algu-mas daquelas limitações, nomeadamente com umaumento de marcadores mais polimórficos e abrindo

perspectivas para um possível mapeamento de todo ogenoma humano (Owen e cols., 1988).

A NOVA TECNOLOGIA GENÉTICA

Tal como foi previsto por Botsein (1980), assistiu--se na última década à identificação de diversos poli-morfismos que permitiram uma melhor compreensãodo genoma humano. O novo poder de genética hu-mana para estudo das doenças hereditárias de trans-missão mais complexa, advém de técnicas que per-mitem a análise do ADN humano .

Na base desta tecnologia estão três conceitos chave- enzimas de restrição, sondas de ADN e hibridaçãodo ácido nuc1eico - que vão permitir estudar se-quências de ADN e como tal, comparar os diferentesindivíduos entre si (Saraiva e cols., 1989). O primeiropasso foi a descoberta de uma classe de enzimasbacterianas, designados por «endonucleases derestrição». Estas têm a propriedade de clivar deter-minados locais do genoma, por reconhecimentoespecífico dessa zona. Assim, cada enzima reconhecedeterminada sequência específica de pares de basesde nucleótideos, produzindo «fragmentos de restrição»de ADN e tamanhos variáveis e, quanto mais frag-mentada a cadeia de ADN, por diferentes enzimas,em locais diferentes, maior probabilidade temos dec1ivar na vizinhança de genes específicos. As múlti-plas variações dos fragmentos, são subjacentes àvariabilidade das sequências de bases do ADN deindivíduo para indivíduo (polimorfismos de ADN),excepto no caso de gémeos idênticos. Estes poli-morfismos são herdados duma forma Mendelianasimples co-dominante.

A base da tecnologia de hibridação reside nadivisão da estrutura bicatenar do ADN, em deter-minado meio (alcalino/aquecimento) por destruiçãodas pontes de hidrogénio entre as bases complemen-tares (A-T; C-G). No entanto, em certas circuns-tâncias como o arrefecimento, as duas moléculasmonocatenares, previamente obtidas, reagrupam-sena molécula bicatenar original, pela junção dos frag-mentos complementares ou homólogos de ADN(Craig, 1987).

Geralmente a obtenção das sondas de ADN, faz-sea partir de plasmídeos bacterianos ou bacteriófagos,em que foi inserido um fragmento de ADN, previa-

mente seleccionado. Estes plasmídeos recombinados

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Genética molecular e esquizofrenia

funcionam como vectores, sendo a sua amplificaçãoobtida em culturas bacterianas, como por exemplo daEscherichia coli. Durante a multiplicação desteshospedeiros, replica-se também o ADN do vector e,consequentemente, o fragmento de ADN em causa.Éesta «fábrica biológica» que, após extracção do ADNdo vector por enzimas, permite múltiplas cópias dosfragmentos do ADN originais, os quais ficam dis-poníveis para estudos de hibridação. Outra técnicatenta obter sondas específicas a partir de ARN men-sageiro, obtido de tecidos pós-morte ou biópsia,sondas de ADN complementar (ADNc). Estas sondassão cópias de ARNm, e como tal hibridam especi-ficamente com regiões do ADN, codificadoras deproteinas (Baron e cols., 1988).

Para os estudos moleculares utiliza-se o ADNextraído de linfoblastos, obtidos por transformaçãovirusal de linfócitos do sangue periférico. Em seguida,o ADN é sujeito à acção de vários enzimas de restriçãoespecíficos (endonucleares), que vão cortar o ADNem inúmeros locais como verdadeiros «bisturis mole-culares», originando os RFLP's (Restriction-frag-ment-length polymorphisms).

Os fragmentos de restrição, são variáveis de in-divíduo para indivíduo, mas constantes no mesmoindivíduo, reflectindo, como já vimos, diferençasindividuais na sequência de pares de bases do ADN.Isto ocorre por mutação pontual (substituição de umpar de bases num local de reconhecimento), ou quandoocorrem delecções ou inserções. Para se rastrear umgene de interesse, é necessário ensaiar 20 ou maisenzimas, a fim de se obter uma proporção aceitável deindivíduos heterozigóticos no heredograma estudado(para ser informativo, os pais transmitindo a doençadevem ser heterozigóticos para o marcador em causa).

Seguidamente os fragmentos de restrição vão serdistribuídos segundo o seu tamanho, por electro-forose em gel de agarose, sendo a sua capacidade demigração inversamente proporcional às suas dimen-sões. No gel, por acção de um meio alcalino osfragmentos por ADN bicatenar vão ser desnaturadospara monocatenares e transferem-se para uma mem-brana de nitrocelulose, onde ficam retidos nas suasposições relativas, pelo processo de «Southern blot-ting», Os fragmentos de ADN monocatenar fixados,de múltiplas dimensões e com determinadas se-quências específicas, podem então ser detectados porhibridação com sondas de ADN, complementares,previamente radiomarcadas. Esta simbiose de frag-

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mento/sonda, RFLP's (fragmento de restrição po-limófico de comprimento variável), são consideradosmarcadores para uma doença génica, ocorrem pertoou no gene mutante para a doença (Kingston, 1989).Quando um RFLP fornece um padrão informativo(existe heterozigotia), e co-segrega com a doença emmembros da mesma família poderá permitir identifi-car a mutação responsável por uma doença génica oupoderá servir como um marcador em ligação (linked)caso ocorra, respectivamente, no gene de interesse ouperto dele (Gershon e cols., 1987).

O número destes marcadores tem crescido a umritmo exponencial, de tal forma que já foi publicadoum mapeamento virtual de todo o genoma humanoem termos de linkage, embora ainda sujeito a con-trovérsia (Donis-Keller e cols., 1987).

ESTUDOS DE LINKAGE NA ESQUIZOFRENIA

Os marcadores genéticos podem ser utilizadosseguindo duas estratégias: estudos de associação e delinkage (Baron, 1986). Nos estudos de associaçãocompara-se a frequência de dado marcador entre aamostra de doentes e o grupo controlo. Diz-se que olocus marcador está associado à doença, quando severifica um aumento de probabilidades da sua exis-tência na população doente. Pelo contrário, nos estu-dos de linkage genético procura-se observar, numheredograma com múltiplos membros afectados, eeventual co-segregação da doença com um deter-minado poliformismo, mais do que seria de esperarpelo caso (McGuffin e cols., 1986). Quando se de-tecta linkage, significa que o gene em causa e omarcador, estão suficientemente próximos no mesmo

cromossoma, sendo improvável que sejam herdadosindependentemente e, como tal, há forte tendênciapara o marcador aparecer sempre em ligação com adoença em causa, sendo transmitidos de pais parafilhos, mais do que seria de esperar pelo acaso.Quanto mais perto estiverem o polimorfismo e o geneda doença, menor é a probabilidade de ocorrerrecom-binação, isto é, de serem segregados independente-mente.

Para grande desapontamento dos investigadores,os resultados dos vários estudos de linkage commarcadores clássicos ou convencionais foram pre-dominantemente negativos (Andrew e cols. 1987;McGuffin e cols., 1986). Porém, não se pense que

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4 Isabel Coelho e M Helena P. de Azevedo

tenham sido um trabalho inglório, já que permitiramexcluir de futuras pesquisas cerca de 20% do genomahumano (Baron e cols., 1988).

Com O aparecimento da nova geração de marca-dores genéticos foram ultrapassadas algumas dasdificuldades encontradas com a utilização dos marca-dores clássicos, o que levou a um renovado interessepelos estudos de linkage. Uma vez que se desconhece

qual a região cromossómica potencialmente envolvidana esquizofrenia, diferentes estratégias podem ser

adoptadas para a sua identificação, de que são exem-plo o uso de sondas para genes e regiões candidatas esondas seleccionadas ao acaso (Owen e cols., 1988).

A identificação por Bassett e cols. de dois elemen-tos duma, família oriental, que vivia no Canadá, emque a esquizofrenia estava associada com tissomiaparcial da região q ll-q 13 do cromos soma 5 despole-tou imediatamente um interesse particular por estaregião para estudos de linkage na esquizofrenia(Bassett e cols., 1988). Um jovem estudante de 20anos de idade foi internado com sintomas típicos deesquizofrenia aguda e aquando do internamento foinotado ter aspectos faciais ligeiramente diferentesdos Seus pais. A mãe comentou que ele se pareciacom um seu irmão que também tinha esquizofrenia.Este tio matemo tinha tido início dos sintomas com aidade de 20 anos. Por causa da conjugação de ligeirosaspectos dismórficos e síndrome completo deesquizofrenia, definida segundo critérios restritos, tioe sobrinho foram exaustivamente investigados.Nenhum deles apresentava défices neurológicos ouatraso mental, e os restantes membros da família nãotinham características fisicas semelhantes ou qualquerhistória de doença mental. A cariotipagem de altaresolução identificou, nos dois doentes, uma tris-

somia parcial da região q ll-q13do cromossoma5.Após este achado era óbvio e «convidativo» uma

pesquisa de linkage genético orientado para aquela«região», tanto mais que nessa altura se pensava que

O gene codificador do receptor da hormona glicocor-ticoide (GRL), a qual pode induzir sintomas psicóti-cos, estava também localizada num ponto da mesmaárea, se bem que actualmente se saiba que a sualocalização é mais distal. Para investigar linkage aesta região do cromossoma 5, Sherrington e cols.(1988) estudaram cinco famílias islandesas e duasbritânicas com múltiplos casos de esquizofrenia em

pelo menos três gerações, e demonstraramlinkagegenético entre esquizofrenia e polimorfismos de ADN

no braço longo do cromossoma 5. Esta demonstraçãoda existência de um locus de susceptibilidadeà,esquizofrenia no cromos soma 5 constitui a primeiraevidência concreta para uma base genética daesquizofrenia, e a importância de que se revestiu esteachado levou a que fosse muito divulgado nos meiosde informação, que incorrectamente anunciaram tersido descoberto o gene da esquizofrenia. Justamente,

no mesmo número da revista Nature, em que Sher-rington e cols. apresentaram estes resultados, Ken-nedy e cols. (1988) publicam um trabalho em queexcluem a existência de linkage para a mesma região.Estudaram uma grande família do norte da Suécia,previamente bem documentada, com 31 elementosesquizofrénicos. Testaram linkage a sete Zoeido cro-mossoma 5 cobrindo uma área que incluia a regiãodefinida por Bassett e a região proximal do braçocurto do mesmo cromossoma.

Estudos subsequentes não conseguiram atéà dataqualquer evidência de linkage, não só na regiãocandidata do cromossoma 5 como em algumas regiõesdo cromossoma 11 e do cromos soma X (Kaufmann ecols., 1989; St. Clair e cols., 1989; Gershon e cols,1988; Gurling e cols., 1989; Kennedy, 1991). Destemodo, o estudo de Sherrington e cols. ainda não foireplicado, são necessários mais estudos com grandesheredogramas informativos para então se chegar auma conclusão definitiva. Além do mais, temos queter em conta que a aplicação da estratégia de linkageno estudo das doenças psiquiátricas envolve algunsproblemas metodológicos (Owen e cols., 1990).

PROBLEMAS NOS ESTUDOS DE LINKAGE

São múltiplas as dificuldades com que se confron-tam os investigadores que trabalham nesta área, colo-cando-se-Ihes especificamente problemas práticos,que não são mais do que o somatório da complexi-dade clínica, metodológica e ética (Pardes e cols.,1989).

Um dos principais problemas consiste na apli-cação da técnica de linkage a doenças genéticascomplexas, donde ser necessário postularem-se val-ores de parâmetros genéticos tais como, frequênciade gene da doença, grau de penetrância, modo dehereditariedade e frequência de fenocópias. Com

vista a minimizar algumas destas dificuldades desen-volveram-se métodos estatísticos que não implicam

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Genética molecular e esquizcfrenia

pressupostos sobre alguns parâmetros genéticos, porex. o método do «affected-pedigree member» (Weekse co1s.; 1988) e o método do «extended sib-pair»(Sandkuy1, citado por Kaufrnann e co1s, 1989).

Quanto à eventual heterogeneidade etiológica deesquizofrenia, é admissível que o fenótipo esqui-zofrénico seja a expressão final de diferentes etiolo-gias, algumas genéticamente determinadas, podendoexistir dentro delas formas diferentes -hetero-geneidade genética - conforme se observa em váriasdoenças médicas, de que é exemplo a retinite pigmen-tar, com formas autossomica dominante, autossomi-ca recessiva e ligadas ao cromossoma sexual X (Mullane cols., 1989). Para minimizar o problema da hetero-geneidade, afim de se evitar a probabilidade de lin-hage genética negativo, procura-se homogenizar asamostras seguindo três estratégias: 1) estudo dumúnico heredograma, de preferência um isolado popu-lacional, com doença em múltiplos membros afecta-dos e em várias gerações, o que levaria a uma maiorprobabilidade de se encontrar um subtipo genético; 2)análise de distribuição de fracções da recombinaçãonum grande número de heredrogramas; 3) definiramostras segundo medidas independentes na tenta-tiva de excluir fenocópias - como por exemplo, datade nascimento, a dilatação ventricular cerebral, circu-lação cerebral por PET e movimentos de perseguição

ocular (Gershon e cols, 1987).Outra fonte potencial de erro é a incerteza quanto

ao diagnóstico de esquizofrenia. Se o problema dafiabilidade poder ser ultrapassado com adopção decritérios operacionais de diagnóstico e a utilização deentrevistas estruturadas e estandardizadas, de maisdificil resolução é o problema da validade extrinseca.Deste modo, não admira que diferentes sistemas

diagnostiquem diferentes doentes (Stephens e cols.,1982). A análise de linkage é muito sensível a errosdiagnósticos de qualquer tipo, se bem que os falsospositivos sejam considerados mais graves, pela maiordificuldade em se detectar linkage significativo. Noentanto, conceitos demasiado restritivos, apesar delevar a menos erros, são igualmente prejudiciais(Gershon, e cols. 1987). Esta é uma questão de talmodo importante que está em desenvolvimento umaentrevista diagnóstica especificamente desenhada paraestudos genéricos.

Um outro aspecto a considerar na esquizofrenia é

a possibilidade de expressividade variável, que con-siste no facto duma mesma anomalia genética pro-

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duzir diferentes manifestações.À luz dos achados deSherringhton e cols. (1988) poderíamos dizer que osdistúrbios de aspectro esquizofrénico e outras doençasdo foro psiquiátrico seriam diferentes expressões domesmo genótipo. Outra dificuldade diz respeito àobtenção de heredogramas informativos, visto que aesquizofrenia está associada a reduzida fertilidade eisolamento social, o que toma as famílias poucodisponíveis, inacessíveis e por vezes não cooperantes(McGuffin, e cols 1983)~

Uma dificuldade adicional consiste no facto de nasfamílias dos propositum se poder observar a presençade outras doenças psiquiátricas, talvez por homoga-mia social, pois que ao casarem com indivíduosperturbados ou com doenças similares, poderão levara descendentes com combinações genéticas quecontradizem o equilibrío das frequências génicasencontradas na população em geral e, na qual sebaseia a análise estatística de 1inkage (Gurling e cols.,1989).

A fim de se detectar o locus ou Zoeide susceptibili-dade à esquizofrenia, com maior credibilidadecientífica, requerem-se famílias e marcadores genéti-cos mais informativos e métodos estatísticos maissensíveis. Alguns destes já estão disponíveis, comoos VNTR's e as sequências repetitivas (marcadoresde 2.a geração) mais polimórficos do que os agora já«convencionais» RFLPs (Jeffreys e cols., 1985;Nakamura e co1s., 1987).

POTENCIAIS BENEFÍCIOS

Apesar de todas as limitações enunciadas, que osinvestigadores esperam ultrapassar, é com esta

estratégia que se espera encontrar resposta para muitasdas nossas questões, à semelhança do já observadonoutras áreas da medicina.

Se linkage for claramente estabelecido na esquizo-frenia para um marcador genético, poder-se-á con-cluir pela natureza mendeliana da doença, em que terápapel preponderante um loeus major. Identificando--se a região cromossómica com o loeus predisponentepara a doença, restringe-se a região cromossómica aestudar. Com esta pesquisa poderá identificar-se asequência estrutural do gene mutante e posteriormentea sua expressão, compreendendo-se por fim os me-canismos patogénicos subjacentes à doença (Baron ecols., 1988). O estudo da expressão patogénica é

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6 Isabel Coelho e M. Helena P. de Azevedo

obviamente longo, tendo que entrar em linha de contacom factores que medeiam a expressão do produtogénico, tais como a modulação por outros sistemasbiológicos, fisiológicos e ambienciais. Conhecido ogene, melhorar-se-á a nossa compreensão sobre ainteracção gene-ambiente, através de estudos pro-spectivos de indivíduos em risco. Teriamos ainda apossibilidade de identificar os factores ambienciaisdeterminantes e protectores do desenvolvimento dadoença, fazendo-se igualmente luz sobre a fisiopato-genia dos casos esporádicos ou fenocópias,

A possibilidade de identificar indivíduos em risco,por introdução de estratégias diagnósticas pré-sin-tomáticas, poderá levar ao desenvolvimento e insti-tuição de medidas preventivas. Por outro lado, afarmacologia molecular poderá contribuir para odesenvolvimento de farmacoterapias mais racionaise eficazes, e finalmente de produtos terapêuticossubstitutivos e mesmo de permuta do gene mutantepatológico, recorrendo à engenharia genética (Barone cols., 1988).

Em conclusão, a psiquiatria atravessa uma dassuas eras mais excitantes. Temos diante de nós apossibilidade de alargarmos os nossos conhecimen-tos àcerca de uma doença tão devastadora da pessoa,como é a esquizofrenia. Poderão outros mostrarem-se preocupados por esta visão tão reducionista dadoença, sobretudo numa altura em que por toda aparte se ouvem apelos, que também fazemos, para anecessidade da integração da dimensão psicossocialem todas as áreas da prática médica. No entanto,cremos que, bem pelo contrário, por esta viaM aesperança de contribuir para uma medicina maiscientífica e, consequentemente, para uma medicinamais humana.

AGRADECIMENTO

Ao Exmo. DoutorF. Regateiro, Professor Auxiliar deGenética Médica, osnossos maiores agradecimentos peloscomentários e sugestões feitas na preparação final desteartigo.

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Psiquiatria Clínica,12, (1) pp. 9-16, 1991

PSIQUIATRIA CLÍNICA

«Alguns aspectosdo consumo de bebidas alcoólicas em crianças»

POR

ANÍBAL FONTES* E ALDA ALVES**

Resumo

Usando como grupo de estudo crianças cujos familiares têm uma profissão relacionada com o mar, re-lativamente a crianças sem essa relação mas da mesma área geográfica, os autores procederam a um estudodos hábitos de consumo de bebidas alcoólicase de perturbações de comportamento na escola.

Porém, os alunos que indicam uma ingestão mais frequente mostram-se mais permissivos do que os quenunca beberam.

Dificuldades relacionadas com a obtenção da informação sobre os hábitos alcoólicos são analisadas.

Summary

Using as a study group school-aged children whose parents ar immediate family have aprofession and wayof life related to the sea, versus a control group of children of similar characteristics, but whose parents ofimmediatfamily do not have the same ties towards the sea, the AA elaborated a studey ofthe alcool consuminghabits and behaviour disturbances.

No significant differences were found as to the drinking standards or the behaviour avaliation at schoolbetween the two samples.

However, the students that refered a more frequent ingestion of alcoholic drinks showed to be morepermisside to its intake than the abstemics.

DifJiculties found in regard to the collection of iriformation of alcohol intake, are analysed.

INTRODUÇÃO A nível das escolas de Ensino Primário uma acçãoinformativa e formativa tem vindo a modificar oconsumo de bebidas alcoólicas nos grupos mais jov-ens da população sendo de destacar:

- as noções básicas de uma alimentação saudávelinserida nos programas de ensino, abrangendo con-ceitos sobre quem não deve beber, ou quanto, quandoe como se deve beber;

- a implementação do suplemento alimentar ameio do periodo escolar onde é ensaiado, estimuladoe reforçado o hábito de beber leite;

opresente trabalho inscreve-se num programa deestudos sobre o consumo de bebidas alcoólicas emcamadas da população portuguesa procurando-seconhecer e analisar factores determinantes deste com-

portamento.Particularmente importante é a avaliação que possa

ser feita a nível da população infantil e escolar conhe-cida a força dos «hábitos» adquiridos nestes períodosetários.

'" Médico especialista em psiquiatria** Geógrafa, professora do ensino secundário

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10 Anibal Fontes e Alda Alves

- intervenções junto dos próprios professores aler-tando-os para a importância pedagógica destes temas;

- e, todo um conjunto de outras medidas que vãodesde a intervenção das Equipas de Saúde Escolar acampanhas de esclarecimento junto da população.

Em Viana do Castelo, cidade do Norte Litoral dePortugal, desde 1974 que estes aspectos vêm sendofocados, em acções nem sempre consertadas, mas quenem por isso deixaram de influir nos hábitos deconsumo alimentar.

Dado ser uma população desde sempre voltadapara as práticas marítimas (ainda hoje 1,4% da popu-lação activa do Distrito tem uma profissão rela-cionada com a pesca (Morais, 1984) procuramosrealizar um estudo sobre «consumo de bebidas al-coólicas e comportamento escolar, no ensino primário«tomando como referência as crianças filhas de pesca-dores ou com uma profissão relacionada com o mar.

Originalmente o trabalho procurava inquirir sobrehábitos de consumo de bebidas alcoólicas, atitudesface a estas, dimensão e composição do agregadofamiliar e comportamento na escola avaliado peloprofessor. Nesta apresentação apenas faremosreferência à primeira e última questão.

MATERIAL E MÉTODOS

POPULAÇÃO

Foram consideradas todas as crianças a frequentara 4." classe na Escola de Monserrate, Viana do Cas-telo, em número de 97 alunos. Esta escola de ensino

oficial, uma das três existentes na cidade, situa-se nazona ocidental, localmente conhecida como «zona daribeira» e serve grande parte dos filhos dos quetrabalham no mar.

Da população inquirida foram analisados 85 in-quéritos (os restantes ou não foram inquiridos ouhavia omissões nas questões abordadas). Destes(Quadro 1),50 eram do sexo masculino e 35 do sexofeminino, com uma idade média de 10,3 anos. Rela-cionando-os com a profissão dos familiares 38,8%tem os pais com uma profissão directamente ligada àpesca ou ao seu comércio e 11,7% tem outros fa-miliares próximos - avós, tios, irmãos - com essaligação (total 50,5%). Os restantes 44% não apre-sentam familiares com profissões relacionadas como mar, distribuindo-se por todos os sectores deactividade, nomeadamente serviços e profissõesliberais. A área geográfica de residência é homogéneapara todos os inquiridos.

A taxa de insucesso escolar incide igualmente nosdois sexos, tendo 16,0% dos alunos e 17, I% dasalunas dois ou mais anos de repetências.

INSTRUMENTOS/PROCEDIMENTO

Cada aluno foi entrevistado utilizando-se umquestionário estruturado no qual se abordavam con-dições de alojamento, refeições realizadas no diaanterior, hábitos gerais sobre a alimentação e, entreestes assuntos, questões referentes ao consumo debebidas alcoólicas.

Em sessão posterior responderam a um ques-tionário sobre a composição familiar.

QUADRO 1- População Inquirida

Total(n=85)

Idade:X (anos)

D.P.10.3

Rapazes(n=50)

Raparigas(n=35)

N:Pais CIP. R. Pescas 33OutrosFam 10

SlFam. P. R. Pescas42

1061. 558

10. O1. 131 t=1.877

18 (36.0%)5 (10.0%)

27 (54.0%)

15 (42.8%)5 (14.3%)

15 (42.8) x'=l.088

P.R. Pescas= Profissões Relacionadas com a Pesca

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Alguns aspectos do consumo de bebidas alcoólicas em crianças 11

Os elementos da amostra foram abordados nassalas de aula recebendo informações estandardizadassobre o âmbito das perguntas e sobre a natureza doestudo, sendo esclarecidos pelos autores de que sevisava estudar as condições de habitação e de alimen-tação, sem qualquer referência às bebidas alcoólicas.

Aos professores foi pedido para preencher, emrelação a cada um dos alunos, o «Questionário doProfessor» de Rutter (versão portuguesa, HelenaAzevedo e col., 1985).

Este Questionáriode avaliação do comportamentona escola descreve 26 tipos de comportamento co-brindo os problemas principais e frequentes nas crian-ças. Para cada item deve o professor assinalar uma detrês hipóteses, não se aplica, aplica-se um pouco,aplica-se de certeza à criança em questão. Uma pon-tuação total igualou superior a 9 estabelece o limiardescriminativo entre crianças com ou sem pertur-bação comportamental.

ANÁLISE ESTATÍSTICA

Os dados foram analisados utilizando-se testes designificação de diferenças entre médias (t de Studente análise de variância ou prova F) e o qui-quadradopara análise da diferença entre frequências.

RESULTADOS

Dos 85 alunos inquiridos apenas 4 rapazes referi-ram terem ingerido bebidas alcoólicas no dia anterior,destes I tem o pai pescador não havendo qualquerrelação com a profissão do pai nos restantes três.

Na análise das respostas a três questões (quantosanos tinhas quando bebestes pelaLa vez bebidasalcoólicas, em que idade passaste a beber habitu-almente e, se costumas beber bebidas alcoólicas,quando bebes?) consideramos haver três gruposderespostas:

- nunca beberam;- experimentaram uma vez e bebem muito oca-

sionalmente;- bebem regularmente.No (Quadro 2) descriminam-se estas respostas em

função do sexo e dos grupos sócio-profissionais con-siderados. Verifica-se que as raparigas bebem commenos frequência, porém a diferença não é significa-tiva estatisticamente. Globalmente 28,2% dos alunosresponderam nunca terem bebido (22,0% rapazes e36,1% raparigas), 22,3% aparentam beber regu-larmente (28,0% rapazes e 13,8% raparigas) enquantocerca de 50% experimentaram e bebem bebidas al-coólicas.

QUADRO 2 - Consumo de bebidas alcoólicas

Bebem Bebem NuncaN Regularmen. Ocasionalm. Beberam

N % N % N % X2

Rapazes: 50 14 28.0 25 50.0 n 22.0Raparigas 35 5 13.8 17 48.5 13 38.1 3.412 NS

TOTAL 85 19 22.3 42 49.4 24 28.2

Rapazes:13.1Grupo 1 23 7 30.4 13 56.5 3

Grupo2 27 7 25.9 12 44.4 8 29.7 2.005 NS

Raparigas:25.0Grupo I 20 2 10.0 13 65.0 5

Grupo2 15 3 20.0 4 29.0 8 53.3 5.045 NS

Grupo I = Familiares com Profissões Relacionadas com a PescaGrupo2 = Familiares sem Profissões Relacionadas com a Pesca

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12 Anibal FonteseAlda Alves

Considerando a divisão entre alunos cujos fami-liares têm profissões relacionadas com a pesca (Grupo1) e alunos com familiares sem esta relação profis-sional (Grupo 2) a diferença não se mostra estatistica-mente significativa entre os dois grupos (Quadro 3).

As pessoas indicadas como tendo propiciado abebida alcoólica na primeira ingestão foram maiori-tariamente os pais (62% rapazes e 77% raparigas)modificando-se o peso relativo entre os pais de um ououtro sexo.

A pergunta «em que idade seria permitido beber»todos projectam para o fim da adolescência ou idadeadulta essa permissão não havendo diferença signifi-cativa quando se consideram os rapazes e raparigasdo Grupo I e do Grupo 2 (Quadro 4).

Porém, verificam-se diferenças estatisticamentesignificativas quando se considera em função dopadrão de consumo. Os grupos que nunca beberamapontam idades mais avançadas do que os grupos quebebem regularmente.

De referir a similitude das idades indicadas para oconsumo de vinho com água e de cerveja, em ambosos casos inferior à idade indicada para o consumo devinho.

Na referência aos mitos (Quadro 5) apenas umrapaz refere que o vinho alimenta, 4 rapazes (8%) e 1rapariga (3%) indicam que o vinho dá força e 10rapazes (20%) e 4 raparigas (4%) que o vinho aquece.Quase todos (82% dos rapazes e 97% das raparigas)assinalaram que o vinho prejudica.

Na análise do desvio comportamental através do«Questionário do Professor» procedemos a dois tiposde tratamento da informação obtida. Num primeirotempo consideramos as crianças que obtiveram umapontuação total igualou superior a 9 (Quadro 6)encontrando-se nestas condições 22,0% dos rapazese 14,3% das raparigas, não se verificando diferençasestatisticamente significativas quando se consideramnos grupos 1 e 2 sub-grupos em função a ingestão deálcool.

Num segundo tempo procurou-sedeterminar apontuação média obtida por cada sub-grupo, em cadaum dos 26 itens (Quadro 7, 8). Para um nível designificância não superior a 05 verificou-se a ausênciade diferenças significativas entre os rapazes do grupo1 e 2 enquanto para os elementos femininos dosmesmos sub-grupos a diferença foi significativaapenas nos itens «destrutivo» e «mentirosa».

Efectuando-se a mesma análise mas atendendoaos elementos masculinos e femininos que bebemocasional ou regularmente bebidas alcoólicas e osque afirmaram nunca terem bebido, verificamos queentre os rapazes a diferença é apenas significativa noitem «foge à escola», enquanto entre as raparigas ésignificativa nos itens «hiperactividade», «brigão»,«irritável», «falta à escola por motivos triviais», «máconcentração», «esquisita» e «mentirosa». Estes doisúltimos sub-grupos foram os únicos em que se veri-ficou uma diferença estatisticamente significativapara as pontuações médias totais.

QUADRO 3 - Ingestão de bebidas alcoólicas (1.' vez)

Rapazes Raparigas

Idade: N X (D.P.) N X (D.P.)

Grupo 1 19 8.42 (2.11) 14 7.79 (1.86) t.=0.879 NSGrupo 2 19 8.32 (2.10) 7 8.57 (1.59) t=0.306 NS

t test 0.149 NS 0.947 NS

Dada por: N % N %

Pai 16 43.2 7 31.8Mãe 7 18.9 10 45.3Outros Fam. 12 32.4 7 31.8Amigos 4 10.8 1 4.5Sozinho 1 2.7 X2=4.829 NS

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Alguns aspectos do consumo de bebidas alcoólicas em crianças 13

QUADRO 4 - Idade em que seria permitido beber alcoól

Vinho c/ Vinho Cerveja BrandyÀgua B. Fortes

X D.P. X D.P. X D.P. X D.P.

Rapazes:Grupo 1 21.2 5.68 24.1 7.27 21,9 7.24 28.4 7.77Grupo 2 19.4 5.56 22.l 6.27 20.6 6.46 27.3 8.87

T 1.06 NS 1.01 NS 0.64 NS 0.44 NS

Raparigas:Grupo I 16.6 4.95 21.6 7.26 21.6 5.50 26.9 6.19Grupo 2 20.5 6.53 23.5 6.36 22.3 6.24 26.3 7.98

T 1.81 NS 0.76 NS 0.27 NS 0.23 NS

Rapazes:(1) 18.4 4.42 21.2 5.87 18.6 5.19 24.9 8.08(2) 19.6 5.39 22.3 6.08 21.2 6.28 27.6 6.84(3) 23.9 6.12 27.2 7.80 23.0 7.32 34.4 8.77

F 3.37 P<05 2.82 NS 1.46 NS 3.82 P<05

Raparigas:(1) 13.0 5.87 19.0 1.87 17.0 1.58 18.6 0.47(2) 17.7 4.15 20.2 3.02 44.8 2.6 25.4 4.57(3) 21.2 6.75 26.5 9.29 25.1 7.73 29.3 7.14

F 3.26 NS 4.l8 P<02 3.95 P<05 4.18 P<05

Grupo 1 = Familiares com Profissões Relacionadas com a PescaGrupo 2 = Familiares sem Profissões Relacionadas com a Pesca(1) Bebem regularmente(2) Bebem ocasionalmente(3) Nunca beberam

QUADRO 5 - Conceitos sobre o álcool

Rapazes Raparigas

Total Grupo: Total Grupo:N (%) 1 2 N (%) 1 2

Dá Força 4 (8.0) 3 (2.8)

Aquece lO (20.0) 6 4 4 (11.4) 2 2

Alimenta (20.0)

Prejudica 41 (82.0) 19 22 34 (97.2) 20 14

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14 Aníbal FonteseAlda Alves

QUADRO6 - Questionário para o professor (Rutter). Resultados

<9 >9

N (%) N (%)

39 (78.0) II (22.0)30 (85.7) 5 (14.3)

17 (73.9) 6 (26.1)22 (81.5) 5 (18.5)

16 (80.0) 4 (20.0)14 (93.3) I (6.7)

Rapazes (Total)Raparigas (Total)

Rapazes:Grupo IGrupo2

Raparigas:Grupo IGrupo2

Rapazes:Beb. a!coólNunca a!coól

309

(76.9)(81.8)

Raparigas:Beb. a!coólNunca aleoól

1713

(77.3)(100.0)

0.090 NS

0.393 NS

92

(23.1 )(18.2) 0.004 NS

5 (22.7)1.840 NS

Grupo I = Familiares com Profissões Relacionadas com a PescaGrupo 2= Familiares sem Profissões Relacionadas com a Pesca

DISCUSSÃO

A leitura destes resultados deve ser enquadradapor dois tipos de considerações prévias:

- A primeira refere-se às modificações observadasnos últimos 10 anos. Até meados da década de setentaa escola objecto deste estudo era referenciada por

problemas comportamentais nomeadamente rela-cionados com a ingestão de vinho, sendo citadoscasos de crianças que surgiam etilizadas na sala deaula. Actualmente este tipo de situações não só setomou raro como alunos e familiares admitem que talcomportamento nãoésocialmente aprovado, mesmoquando só expresso, levando-os a negá-lo, tal como éconstatado pelos professores;

- A segunda refere-se à metodologia utilizadabaseada na informação prestada pelo próprio aluno.Ao não permitir uma avaliação fina, pode falsear aapreciação quantitativa e fazer ignorar diferençassignificativas.

Tendo presente estes limites na interpretação dos

resultados, importa realçar que os dois grupos de

crianças em estudo apresentaram consistentementeum padrão de respostas idêntico em todas as questõesreferentes ao consumo de bebidas alcoólicas.

Atendendo a que os dois grupos eram idênticos noque respeita à idade, sexo, escolaridade e residência,diferindo na relação com a profissão dos familiares,os resultados apontam para uma intervenção de fac-tores comuns a toda a população em estudo, nadeterminação do padrão de bebida.

Sujeitos a um padrão normativo de consumo, denatureza sócio-cultural, este parece incidir de igualem toda a população estudada. Sobre este padrãoreflecte-se uma informação, cujas repercussões sãoeventualmente ainda cedo para indagar, mas quepodem ser aferidas, por exp. na baixa frequência derespostas afirmativas sobre os mitos, ou no elevadonúmero dos que apontam para a nocividade e falta devalor alimentar.

Éde sublinhar que na pergunta «em que idade seriapermitido beber bebidasalcoólicas?»a diferenciaçãonão se estebelece entre os dois grupos em estudo masem função do próprio hábito de consumir bebidas

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Alguns aspectos do consumo de bebidas alcoólicas em crianças 15

QUADRO7 - Análise individual da pontuação média dos itens'. Questionario para o professor (Rutter)

ITEM

Rapazes:Grupo 11Grupo 2(gl=48)

Raparigas:Grupo 11Grupo 2(gl=33)

1.0651.7091.2022.042 *0.7191.163

-1.2401.1801.2350.8141.453

-0.5850.0010.6500.355

-0.8211.1762.333 *1.3701.000

0.871

HiperactividadeFoje à escolaNervosismoDestrutivoBrigãoRejeitadoPreocupadoSolitárioIrritávelInfelizTiquesChucha nos dedosRoi as unhasFalta escola/razões triviaisDesobedienteMá concentraçãoMedroso (a)Esquisito (a)Mentiroso (a)FurtaEncoprese ou enureseDoresChorou ao chegar à escolaGaguezOutras dificuldades falaArreliador

-0.7140.638

-1.459-0.665-1.733-0.454

-1.3100.338

-0.7630.854

-0.0881.447

0.6380.963

-0.5230.2440.273

-0.7580.5230.1131.000

-0.226

-0.575-0.896-0.659

Total: 0.579 1.286

, t de Student* P< 0.05

alcoólicas. Assim os sub-grupos que nunca beberam

(quer rapazes quer raparigas) designam idades maistardias do que os sub-grupos que consomem ocasion-almente e, o mesmo para estes em relação aos queconsomem regularmente.

Na avaliação do comportamento, e contrariamenteàs expectativas, não se verificaram diferenças naavaliação global do Grupo 1 e 2. Mesmo na análiseindividual aos itens, os alunos com e sem familiaresrelacionados com a pesca, revelaram-se como gruposidênticos. Para as alunas a diferença só foi significa-tiva nos itens «Destrói frequentemente as suas coisasou as dos outros» e «Diz frequentemente mentiras»,mais pontuadas nas que são familiares de pescadores.

A necessitar de investigações ulterioresé o factode que entre os alunos que referiram consumir bebidas

1.453

alcoólicas e os que nunca o fizeram só se verificar

uma diferença no item «Fogeà escola», enquanto queentre as alunas se desenha um perfil de caracterizaçãodas que têm hábitos alcoólicos, expresso por hiperac-tividade, brigas, irritabilidade, faltas à escola pormotivos triviais, má concentração, esquisitice ementiras.

Em conclusão e tendo em conta as limitações jáapontadas:

- Não se verificaram diferenças, quer no padrão debebida quer no comportamento, entre os alunos defamílias com profissões relacionadas com a pesca e osque não possuem qualquer vínculo dessa natureza, aresidirem na mesma área e a frequentarem a mesmaescola;

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16 Anibal Fontes e Alda Alves

QUADRO8 - Análise individual da pontuação média dos itens'. Questionario para o professor (Rutter)

Rapazes:Beb. a!coóll

ITEM Nunca ale.(gl=48)

Hiperactividade 0.078Fojeà escola 2.363 >I<

Nervosismo -0.319Destrutivo 0.352Brigão 0.528Rejeitado -0.406Preocupado -0.423Solitário -1.302Irritável -0.610Infeliz -0.930Tiques -0.164Chucha nos dedos 1.433Roi as unhas 0.113Falta escola/razões triviais 0.243Desobediente 0.804Má concentração 0.557Medroso (a) 0.058Esquisito (a) 0.968Mentiroso (a) 0.804Furta 1.433Encoprese ou enurese 1.000Dores -1.117Chorou ao chegarà escolaGaguez -1.513Outras dificuldades fala -0.139Arreliador 0.252

Total: 0.129

, t de Student

* P< 0.05** P<O.OI

Raparigas:Beb. alcoóllNunca ale.

(gl=33)

2.129 *1.7021.4312.0262.886 .**

0.9920.4390.0932.880 **0.476

-0.352

-0.6762.309 *1.7022.916 **0.8332.485 *2.309 *1.3671.0001.742

1.449

2.688 *

- 29% nunca bebeu bebidas alcoólicas, 50% ex-

perimentou ou consome ocasionalmente e22% comregularidade;

- negação de hábitos alcoólicos quando confronta-dos directamente, possivelmente reflectindo umaacção informativa-pedagógica, revelada nos conhe-cimentos demonstrados sobre as bebidas alcoólicas.

AGRADECIMENTO

Aos professores da Escola de Ensino Primário deMonserrate, Viana do Castelo, particulannenteà sr."Pro-fessora Conceição Penteado, por todo o apoio e colabo-ração.

. Realizado no âmbito do Projecto «Alguns aspectos daresposta comunitária aos problemas ligados ao álcool»(Dir. 1.C. Barrias). Hospital Magalhães Lemos, Porto.

. Trabalho parcialmente apresentado no Congresso«Alcoolismo e Torcicomanias nas gentes do Mar», Vigo,Espanha, Out. 87.

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Psiquiatria Clínica,12 (I) pp. 17-28, 1991

PSIQUIATRIA CLiNICA

Personalidades anormais - Um Ensaio de Revisão Teórica

(continuação )*

POR

FERNANDA ROSA ** E LUISA DE LUCENA E VALE ***

Resumo

o trabalho que aqui se publica foi apresentado numa sessão de formação teórica destinada aMédicos Internos de Psiquiatria.

Constitui a segunda parte da referida sessão e neleéfeita uma análise comparativa de diversos"tipos de personalidade", bem como uma caracterização e revisão da fundamentação empírica de cadaum deles.

INTRODUÇÃO

A DSM III agrupou as diferentes tipos deperturbaçõess da personalidade atendendo a carac-terísticas objectivas comuns. Assim, as perso-nalidades Paranoide, Esquizotípica e Esquizoidecongregam o chamado cluster bizarro.

As personalidades Anti-Social , Borderline,Histriónica e Narcísica formam um agrupamentoem que os indivíduos se caracetrizam por parece-rem dramáticos ou erráticos. .

Por último, as personalidades dependente,compulsiva, passivo-agressiva e de evitamentotêm em comum o mostrarem-se frequentementeansiosas ou receosas.

O projecto da CID 10 dentro do capítuloAnormalidades da Personalidade e Compor-tamento do Adulto considera distúrbios da perso-nalidade e "acentuação de traços da persona-

lidade". Esta última categoria refere-se ao agrava-mento moderado de um só traço ou de alguns tra-ços que se relacionam entre si, mas que pouco ounada prejudicam o funcionamento social.

Tentar-se-á dar em traços largos uma ideia dagénese e caracterização destes diversos tipos depersonalidade, bem como da sua sua fundamenta-ção empírica. Referir-nos-emos ainda, sumaria-mente, às personalidades masoquista e distímica.

Começaremos por nos debruçar sobre o referi-

do Cluster bizarro da DSM III: Paranóide, Esquizo-típico e Esquizóide e ainda sobre um quarto tipoque, na perspectiva histórica dos que se lhe referi-ram, com ele tem sido relacionado - o tipo Evitante.

Este dito agrupamento bizarro, cujos padrõescrónicos de comportamento desadaptativo sãoestranhos, bizarros, peculiares, serão tambémcaracterizados por um menor sofrimento subjec-

* O presente texto foi preparado para uma sessão teórica de formação de Internos de Psiquiatria da ClínicaPsiquiátrica dos H. U.C. ("Personalidades Anormais", Dezembro de 1989). Sob o memso título foi publicada a

primeira parte, da autoria do Dr. Carlos Ramalheira, in Psiquiatria Clínica, vol. 10,n." 4, pp. 259-270, 1989.** Médica Interna de Psiquiatria do Hospital de Angra do Heroísmo

*** Médica Interna de Psiquiatria nos H.U.e.

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tivo do que o que acompanha o agregado ansioso(o tipo evitante aqui incluído) e por chamar menosa atenção que o agrupamento dramático.

Os três tipos do grupo bizarro têm em comuma tendência para o isolamento social e a descon-fiança. Diferenciam-se pelos sintomas psicotic--like do tipo Esquizotípico e pela extrema des-confiança do tipo Paranóide.

A maioria das informações de que se dispõesobre este grupo representam descrições ou for-mulações clínicas, existindo poucos estudos em-píricos.

PERSONALIDADE ESQUIZÓIDE

O tipo Esquízóide caracterizar-se-ia funda-mentalmente pelo seu isolamento social e dis-tanciamento emocional em relação aos outros.

Kurt Schneider na descrição dos PsicopatasAsténicos, na variante psíquica, faz referência aalguns traços que corresponderiam a este grupo.

Também outros Psiquiatras germânicos des-critivos com frequência se aperceberam destas ca-racterísticas nos Esquizofrénicos e nos seus fami-liares (nos primeiros, quer antes de se iniciar a fasepsicótica, quer quando esta estava em remissão).

O termo e o conceito surgem num contextoem que se tenta compreender melhor a natureza ea base genética da Esquizofrenia.

Na realidade seria a personalidade Esquizo-típica que representaria então um conceito maispsicogeneticamente orientado, incluindo caracte-rísticas de excentricidade e desconfiança, distin-guindo-a do tipo Esquizóide que as não possuiria.

Segundo Millon, o isolamento social carac-terístico do tipo Esquizóide deveria também serdistinguido da restrição (egodistónica) de relaçõesinterpessoais pelo medo de ser rejeitado, própriado tipo Evitante.

A criação destas duas outras categorias refe-ridas, Esquizotípica e Evitante, reduziu bastante aaplicação que era feita do termo Esquizóide.

Só estudos posteriores poderão permitir deli-mitar esta categoria com mais certeza e/ou avaliarse não seria mais significativo incluí-la com o tipoEsquizotípico numa só entidade.

Em traços gerais, tratar-se-ia de indivíduos re-traídos, de uma grande pobreza afectiva, como que

indiferentes aos outros. Preocupados com a suavida interior, com o jogo dos seus pensamentos,pareceriam distantes, quase ausentes. Não fazendoamizades, pareceriam também não sofrer com isso.A sua vida sexual seria quase inexistente.

Tal como é descrita, torna-se clinicamenterara, provavelmente devido à sua adaptação está-vel, apesar de restrita.

Pensa-se poder ser frequente em indivíduoscujo trabalho lhes permite pouco ou nenhum con-tacto interpessoal e que talvez seja mais comumno sexo masculino.

PERSONALIDADE ESQUIZÓTIPICA

O conceito del'ersonalidade Esquizotípica foiintroduzido como entidade diagnóstica, a referirno eixo 2, aquando do processo de formulação daDSM m.

Não é pois nomeado na ICD 9, mas este con-ceito poderá ser aproximado com a categoria295.5 - Esquizofrenia Latente - em que se descre-ve um "comportamento excêntrico, inconsequenteou absurdo, com anomalias afectivas, que fazpensar em Esquizofrenia, sem que se consigaapurar no presente ou no passado qualquer sinto-ma tipicamente esquizofrénico". É-lhe dado aqui osignificado equivalente de Personalidade "comose", aproximando-se então esta do conceito dePersonalidade Borderline da DSMm. Também oprojecto da ICD 10 inclui este conceito no capí-tulo das Esquizofrenias: sob a denominação Esta-dos Esquizotípicos inclui o Distúrbio Esquizotí-pico e a Esquizofrenia simples, descrevendo-os

conjuntamente como duas entidades mal defini-das, que não preenchem os critérios diagnósticospara Esquizofrenia, mas que se pensa estarem comela relacionados tanto no aspecto genético comopela sua eventual evolução para Esquizofreniadeclarada.

Assim, caracteriza o padrão Esquizotípicopelo comportamento excêntrico e pelas anomaliasdo pensamento e do afecto, que se assemelham àsobservadas na Esquizofrenia (apesar de nunca terocorrido uma alteração esquizofrénica).

Acrescenta ainda que a evolução e o cursosão os dum Distúrbio da Personalidade, e que émais comum em indivíduos geneticamente rela-

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Personalidades anormais - Um ensaio de revisão teórica

cionados com Esquizofrenia, não estando o Dis-túrbio Esquizotípico claramente demarcado nemda Esquizofrenia simples nem dos Distúrbios dePersonalidade Esquizóide e Paranóide.

A DSM III R, que caracteriza este distúrbiode modo sobreponível, inclui-o tal como a DSMIII no capítulo dos Distúrbios da Personalidade.

O termo propriamente dito é baseado na con-cepção de "Esquizotipo" de Rado e Mehl, ao pre-tenderem caracterizar indivíduos com uma predis-posição genética para a Esquizofrenia, não sendono entanto abertamente psicóticos.

A delimitação da Personalidade Esquizotípicaterá surgido da tentativa de diferenciar, no con-texto da DSM III, a instabilidade crónica da Per-sonalidade Borderline (na qual poderia haver, emsituação de stress, perda do teste da realidade),diferenciá-la, como dizíamos, da EsquizofreniaBorderline na qual presumivelmente os sintomaspsicotic-like se baseariam mima relação fenome-no lógica e talvez genética com a Esquizofrenia.

Spitzer e colaboradores estabeleceram o dia-gnóstico de Distúrbio Esquizotípico da Persona-lidade baseando-se largamente nas característicasdos Esquizofrénicos Borderline e familiares deEsquizofrénicos.

Existe alguma base empírica para os critériosutilizados pela DSM III - estes foram seleccio-nados tendo por base o exame de registos de pa-rentes de Esquizofrénicos, de parentes adoptadospor outras famílias e de controlos com caracte-rísticas relacionadas com Esquizofrenia.

Estas características eram observadas numnúmero significativamente superior nos familiaresde Esquizofrénicos em relação aos familiares

adoptados ou aos parentes biológicos dos contro-los. Assim, poder-se-ia esperar que estes traçosdefinissem indivíduos om uma relação genéticacom Esquizofrenia, embora também alguns semesta relação estabelecida.

É pois o único tipo de Distúrbio da Persona-lidade descrito na DSM III que deriva mais deestudos empíricos do que do consenso clínico. Se-gundo estudos posteriores com base nos critériosda DSM III surgiria em 3% da população geral.Parece ser clinicamente mais frequente que osoutros Distúrbios da Personalidade.

No entanto, mesmo este tipo sobrepor-se-iacom frequência ao tipo Borderline, no mesmo

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indivíduo. Este duplo diagnóstico também deveriaser usado quando um indivíduo com patologiaEsquizotípica apresentasse padrões impulsivos docomportamento.

PERSONALIDADE PARANÓIDE

A característica essencial da perturbaçãoParanóide da Personalidade seria a sua tendência àdesconfiança ao longo da vida e a atribuição exa-gerada que faria de segundas intenções às acçõesdos outros.

Seriam indivíduos a quem a sociedade pare-ceria carregada de ameaças e motivos escondidos,incapazes de esquecer uma injúria, prontos a sus-peitar da falta de sinceridade, das más intenções,ver-se-iam constantemente como vítimas de injus-tiças ou de brincadeiras de mau gosto. Entrariafacilmente em situações de querelas, rupturas edemandas legais. Dominadores e intransigentes,excessivamente ciumentos, exerceriam sobre osque lhes estão próximos um poder tirânico.

A descrição deste tipo de Personalidade en-contra-se em textos de Psiquiatria descritiva doséc. XIX e na restante literatura com datas aindamais anteriores.

Kraeplin ao descrever o carácter pré-mórbidodos indivíduos predispostos a condições Para-nóides denominou-os explicitamente Persona-lidades Paranóides e traça delas um quadro cujascaracterísticas essenciais correspondem à sua des-crição actual.

Também a descrição feita por K. Schneiderdos Psicopatas Fanáticos na sua variante lânguida

corresponderia a este conceito.Mas a designação Distúrbio de Personalidade

Paranóide só passou a integrar oficialmente anomenclatura psiquiátrica nos E.D.A. em 1942,como um sub-tipo da Personalidade Psicopáticana IO" edição do Satistical Manual for the Use ofHospital for Mental Disorders.

Os critérios de inclusão utilizados pela DSMIll não têm base empírica e alguns deles, sendomuito subjectivos (como seja a incapacidade derelaxar, a ausência de verdadeiro sentido de hu-mor) não aumentaram nem a fidelidade nem a va-lidade do quadro clínico e, embora a ideaçãoparanóide possa ser relativamente comum na

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população geral, o Distúrbio de Personalidade Pa-ranóide parece ser bastante raro (talvez mais fre-quente no sexo masculino, de acordo com a expe-riência clínica, havendo possivelmente um riscoacrescido nos familiares de Esquizofrénicos Para-nóides, segundo alguns estudos).

Os indivíduos que reunem os critérios paraDistúrbio de Personalidade Paranóide tambémmuitas vezes os reunem para Distúrbio Esqui-zóide, Distúrbio Anti-Social ou para DistúrbioEsquizotípico.

O diagnóstico diferencial deste distúrbio daPersonalidade com os Distúrbios Paranóides, quepode ser dificil, assentaria na distinção fenome-nológica entre "Ideação Paranóide" e "DelírioParanóide" .

A DSM III faz referência à possível predis-posição para o desenvolvimento de DistúrbioDelirante ou de Esquizofrenia Paranóide.

PERSONALIDADE EVITANTE

O termo Personalidade Evitante é recente naliteratura psiquiátrica oficial, tendo sido utilizadopor Millon como uma designação descritiva paradoentes caracterizados por isolamento activo einsidioso de longa duração, com relações sociaismuito restrictas.

Embora inicialmente de forma teórica, ossintomas descreveriam, de forma detalhada, qua-dros clinicamente bem conhecidos e que corres-pondiam em muitos aspectos a entidades descritasdesde há décadas na literatura psiquiátrica.

Características muito semelhantes às da Per-sonalidade Evitante foram descritas em conjuntocom O conceito de Personalidade Esquizóide e emquadros onde predominavam os traços de tipofóbico.

A DSM Ill define como característica prin-cipal a sua hipersensibilidade à rejeição potencial, "à humilhação ou ao ridículo, a sua incapacidadeem estabelecer relações, a menos que lhe sejamdadas fortes garantias de aceitação incondicional,o seu isolamento social apesar do desejo de acei-tação e afeição, a baixa auto-estima.

Bleuler utilizou, pela primeira vez, o termoesquizóide pari, apresentar um agrupamento detraços pré-psicótícos relacionados com o "shut-in"

de Hoch e com os "tipos autísticos" de Kraeplin.Descreveu-os então como indivíduos virados paradentro -shut-in -, desconfiados, incapazes de ar-gumentar pessoas que são confortavelmente insí-pidas e ao mesmo tempo sensitivas".

Talvez mais importante foi o reconhecimentode que o carácter Esquizóide podia resultar dacombinação de dois níveis de sensibilidade abso-lutamente opostos: o que atrás parecia umacontradição de Bleuler "confortavelmente insípi-dos e ao mesmo tempo sensitivos" foi explicadopor Kretschmer na distinção que fez entre o tipoconstitucional hiperestésico e o tipo anestésico.

Embora muitos indivíduos exibam uma com-binação, um misto destes temperamentos extre-mos, observam-se-iam entidades clínicas clara-mente distintas entre aqueles que caem num ounoutro polo do continum.

Esta distinção de Kretschmer seria a primeira

percursora da diferenciação feita na DSM III entrePersonalidade Esquizóide e Personalidade Evitante.

Aqueles do polo anestésico, semelhantes aosEsquizóides da DSM I1I, são caracterizados porKretschmer como "indiferentes, afectivamenteinsensíveis, sensaborões, emocionalmente vazios,frios e sem emoções".

Em contrapartida, os do polo hiperestésicoseriam tipos clínicos que antecipavam as carac-terísticas da Personalidade Evitante (da DSM I1I):Kretschner descreve-os como "invulgarmenteternos, constantemente preocupados, sensitiva-mente susceptíveis, sentindo toda a aspereza, co-res fortes e tons da vida, desejosos de terminarcom toda a estimulação exterior".

Apresentados por Millon em 1975, as carac-terísticas seguintes foram base de trabalho inicialdó Distúrbio Evitante de Personalidade para osub-comité da DSM I1I: uma falta de confiançaapreensiva e penosa nos outros, uma depreciaçãode si próprio, um marcado isolamento social euma distanciação geral em relação a qualqueraproximação interpessoal.

Seria feita a distinção em relação à FobiaSocial apesar de ambos poderem existir, porqueembora nesta a humilhação seja uma preocupaçãodominante, há geralmente uma situação específicaque é evitada, e não as relações interpessoais.

Esta entidade não é nomeada na ICD 9. No

projecto da ICD 10 refere-se a Acentuação do

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Personalidades anormais - Um ensaio de revisão teórica

Traço e o Distúrbio Evitante (ansioso) da Perso-nalidade.

A DSM III R caracteriza-a pelo desconfortosocial, medo da avaliação negativa e timidez. Oscritérios são sobreponíveis à descrição do projectoda ICD 10.

É referida a predisposição ao distanciamentoem indivíduos com doença física desfigurante,acrescentando que parece ser um distúrbio comum.

PERSONALIDADE ANTI-SOCIAL

É Philipe Pinel (1801) quem pela primeiravez fala de anomalias da personalidade na suadescrição "mania sem delírio". Outros autores areferirem-se às personalidades anormais são Geo-rget com o seu "monomaníaco"; Morei com a"loucura de acção", Benjamin Rush em "loucuradas faculdades mentais".

Também no início do século XIX Prichardescreve sobre a "loucura moral" cujas descriçõesse assemelhavam às da sociopatia.

Koch pela primeira vez usa o termo "inferio-ridade psicopática".

Durante a primeira metade do séuclo XXhouve várias tentativas no sentido de definir ecompreender a personalidade anti-social. Ten-tando estabelecer parâmetros fisiológicos pensou--se inicialmente nos resultados electroencefa-lográficos e depois nas características fisiológicasassociadas com ansiedade. Mas estes estudos mos-traram-se inconclusivos.

Kurt Schne.ider, ao descrever as persona-lidades psicopáticas como desvios quantitativos de

características normais da personalidade, referiu-se aos psicopatas explosivos ou insensíveis que deforma muito grosseira corresponderiam às alte-rações da personalidade anti-social.

O termo psicopatia foi usado de forma incon-sistente não só para se referir a todas as persona-lidades desviadas como a um sub-grupo que naverdade seriam psicopatas anti-sociais ou agres-sivos. Sentindo-se a necessidade de remover o es-tigma ligado ao conceito, passou-se sucessiva-mente de psicopatia, para sociopatia e finalmentepara anti-social.

A DSM I usou o termo "perturbação da per-

sonalidade sociopática".

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A CIO 9 refere-se-lhe como "perturbações dapersonalidade como predomínio de manifestaçõessociopáticas ou associais". A DSM III e DSM IIIR adopta "alterações da personalidade anti--social" .

O projecto da CID 10 refere-se -lhe como"Perturbação da personalidade dissocial".

Interessa talvez referir que a Escola Ameri-cana faz diferença entre os termos dissocial e anti-social. O termo dissocial referir-se-ia mais àsdificuldades em cumprir com as regras da socie-dade do que a alterações psíquicas e não implica amesma dificuldade nas relações interpessoaisobservadas no anti-social. O termo anti-socialdescreveria os indivíduos incapazes de tolerar avida em sociedade muitas vezes devido ao seunarcismo.

O projecto da CID 10 refere-se aos termosdissocial e anti-social como sinónimos.

Desde o início do conceito que existe umaassociação entre personalidade anti-social e cri-minalidade. A preocupação com a ilegalidade dosactos cometidos leva a que sejam muitas vezezconfundidos com outros criminosos que não têmpersonalidade anti-social.

As características principais do diagnósticosegundo a DSM III R seria um continuum docomportamento social desde a infância até à idadeadulta: comportamento inadequado ou anti-socialsem grandes intervalos, no qual os direitos dosoutros seriam violados.

Assim, o indivíduo com personalidade anti-social não conseguiria formar relações interpessoaissatisfatórias, firmes, duradoiras e responsáveis comos outros, ocorrendo repetidos fracassos no seu

casamento, trabalho e vida social. Procurandoexcitação constante aconteceria frequentementealcoolizar-se e/ou drogar-se. Entrariam em conflitocom normas, hábitos e leis da comunidade, nãoaprenderiam com os seus falhanços, não mostra-riam capacidade para modificar reacções de com-portamento destrutivo. Apresentariam tambémincapacidade de planear ou impulsividade, incapa-cidade de manter um desempenho profissionalregular (como por ex. mudanças de emprego muitofrequentes, desemprego prolongado quando lhe erapossível trabalhar ou acentuado absentismo).Teriam um limiar baixo para reagir à frustração ehaveria irritabilidade de forma persistente.

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As alterações da personalidade borderline enarcísica têm características em comum com aalteração da personalidade anti-social. Asprimeiras. (Borderline, Narcísica) possuem menosestabilidade afectiva e mostram-se mais lábeis soba acção de um factor stressante moderado. Proble-mas relacionados com a auto-imagem aproximar-se-iam mais destas (da Borderline e da Narcísica)do que da personalidade anti-social.

A alteração da personalidade passivo-agres-siva pode predispôr ao abuso de substâncias po-dendo confundir-se com a personalidade anti-so-cial, mas raramente reune os critérios dessa per-sonalidade.

Entre a personalidade histriónica e a perso-nalidade anti-social, parecem existir relações anível genético ou pelo menos familiar.

Alguns autores como Marks apontam sinaisde bom ou mau prognóstico na alteração da perso-nalidade anti-social. Assim, como de bom pro-gnóstico seriam apontados os seguintes: educaçãoescolar, emprego prévio antes do auxílio médicode pelo menos 2 anos, o ser casado, o ter váriosepisódios do tipo depressão, o que indicaria algumgrau de ressonância afectiva. Como de mau pro-gnóstico: o mau aproveitamento escolar, a inca-pacidade de manter ligações durado iras, a admis-são antes dos 15 anos em qualquer tipo de institui-ção (dependentes do Ministério da Justiça) porcausa do seu comportamento.

Actualmente à face da lei os indivíduos compersonalidade anti-social são considerados impu-táveis atendendo a que dispõem de capacidadepara reconhecer "o carácter lícito ou ilícito" dos

seus actos. A posição actual contraria o que dispu-nham certos preceitos clássicos de jurisprudênciaque, valorizando os achados electroencefalográ-ficos, se baseavam na suspeita de processo or-gânico subjacente para assim concluir pela inim-putabilidade.

Segundo Pedro Polónio, e de acordo com aPsiquiatria Forense actual, tal como acontece paraa grande maioria dos distúrbios mentais, há umaresponsabilização crescente dos indivíduos (aresponsabilidade do indivíduo concreto na situa-ção concreta).

Só a título excepcional se poderá consideraruma atenuação da imputabilidade.

(Vide art. 20.°, alínea 2 do Código Penal).

PERSONALIDADE COMPULSIVA

Em 1918, Kretschmer descrevia o tipo sensi-tivo, que corresponderia a indivíduos ruminativos,indecisos e inibidos. Em 1923, Kurt Schneiderreferir-se-ia à personalidade insegura, que corres-ponderia num extremo de continuidade à perso-nalidade anancástica.

A CID 9 e o projecto da CID 10 referem-se àpersonalidade obsessivo/anancástica segundo alinha de Kurt gchneider..

David Shapiro em 1965 e 1981 salientava quea grande devoção pelo trabalho dos indivíduoscom personalidade compulsiva, poderia determi-nar grande produtividade quando devidamenteencaminhados.

Em 1980 Vaillant e Perry sugeririam que, detodas as alterações da personalidade, a compulsivaseria a que conseguiria melhor adaptação profis-sional e seria a alteração de personalidade quemenos se confundiria com mau comportamento.

Em determinadas áreas geográficas onde se-riam colocados como valores principais o traba-lho, a pontualidade e a ordem, haveria uma ten-dência a aumentar a incidência de traços obsessi-vos entre a sua população.

Na literatura clássica encontrar-se-á quemrefira que a personalidade obsessiva seria maisfrequente no homem do que na mulher, ocorreriamais frequentemente nos filhos mais velhos eseria mais comum nas profissões que exigissemmais perseverança e trabalho metódico.

Dizia-se do filósofo Kant que a população deKonigsberg podia acertar os seus relógiosà sua

passagem, tão exacta era a hora do seu passeionocturno.

Na perturbação da personalidade compulsivaestaríamos perante um indivíduo perfeccionista,que necessitaria de verificar repetidas vezes;preocupar-se-ia com os detalhes de forma despro-porcionada com as tarefas que teria de realizar;não conseguiria exprimir sentimentos calorosos;todas as suas actividades teriam de ser cuidado-samente planeadas.

Listas, agendas e apontamentos mentais fa-riam parte do seu quotidiano. Preocupar-se-ia coma regularidade intestinal, as condições climatéricase a limpeza. O receio de cometer erros ou de sermal interpretado contribuiria para a sua indecisão.

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Personalidades anormais - Um ensaio de revisão teórica

Adiaria constantemente as suas decisões na expec-tativa de obter dados mais concretos para concluiro mais fidedignamente possível. Poderia desem-penhar-se bem de tarefas que exigissem trabalhometódico ou minucioso, mas seria vulnerável àsmudanças inesperadas.

PERSONALIDADE DEPENDENTE

As características de passividade, levando osoutros a assumirem as responsabilidades, e a rece-ptividade à influência do meio exterior teriam sidoinicialmente descritas por Kraeplin, em 1913, soba denominação de personalidade indolente e porSchneider, em 1923, como personalidade de von-tade fraca ou asténica.

Kraeplin e Schneider considerariam estesindivíduos também influenciáveis a factores nega-tivos como a adição a drogas e a vadiagem.

A DSM I considerá-Ia-ia um sub-grupo dapersonalidade passivo-agressiva e na DSM II foiomitida só se referindo a uma personalidade ina-dequada cujas características clínicas seriam so-breponíveis à alteração da personalidade depen-dente.

A DSM III R, CID 9 e o projecto da CID 10referem-se a alterações da personalidade depen-dente.

O indivíduo com distúrbio da personalidadedependente caracterizar-se-ia por uma grande ne-

cessidade de aprovação social e afecto e por umgrande desejo de agradar aos outros. Adaptaria oseu comportamento de modo a ir ao encontro dequem o rodeasse. Seriam indivíduos obsequiosos,muito agradáveis, dóceis, apagados e inspirariamsimpatia. Seriam auto-depreciativos e evitariamresponsabilidades ficando ansiosos quando se vis-

sem obrigados a exercê-las.Muitas vezes submeter-se-iam ao abuso e

intimidação na esperança de evitar o isolamento ea solidão. Experimentariam uma necessidadeextrema de um apoio externo. Vivenciariam a pos-sibilidade de serem abandonados como algo catas-trófico que deveria ser evitado a todo o custo.

Queixas hipocondríacas seriam frequentespara darem mais ênfaseà sua necessidade deajuda. Estas queixas seriam consideradas um veí-culo decomunicação com os outros.

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PERSONALIDADE BORDERLINE

Este distúrbio da personalidade suscitou gran-de interesse nos últimos anos o que levou a maio-res investigações. O conceito borderline seria ini-cialmente adoptado para denominar o compor-tamento anormal entre sanidade e loucura. Teriasido usado pelos psicanalistas para se referiremaos indivíduos que não estariam indicados parapsicanálise. Só em 1930 se tomaria termo dia-gnóstico, mas só nos Estados Unidos.

Os Psiquiatras europeus começaram a usar otermo "borderline" nos fins de 1960 associando-oàs seguintes características clínicas: sentimentos deraiva, depressão e impulsividade que poderiam ounão aproximar-se da psicose clássica mas cuja evo-lução poderia não ser necessariamente para esqui-zofrenia. Um dos aspectos mais salientes do quadroseria a instabilidade do humor. Teriam períodos dedepressão que alternariam com períodos de euforíae mais frequentemente episódios de irritabilidade,actos de auto-mutilação e tentativas de suicídio.

Sptizer sistematizou a clínica do "Distúrbioda Personalidade Borderline" do seguinte modo:perturbação da identidade, relações interpessoaisinstáveis, impulsividade, raiva inapropriada, auto-mutilações, instabilidade afectiva, sentimentos

-crónicos de vazio ou tédio, intolerância à solidão.A DSM III e a DSM III R usam a designação

distúrbio da personalidade borderline. Na CID 9 asua correspondente seria a alteração da personali-dade epileptoide ou explosiva e no projecto daCID 10 poder-se-ia fazer corresponder à alteraçãoda personalidade impulsiva.

Das investigações realizadas nos E.V.A. poder-se-ia concluir que há uma preponderância destaalteração da personalidade nas mulheres na razão de2: 1. Se os indivíduos borderline fossem observadosna adolescência ou no início da idade adulta algunsevoluíriam para PMD tipo depressivo e numa pe-quena percentagem para distúrbio bipolar. A per-centagem que desenvolveria esquizofrenia seriamuito pequena, menos de 5%. Além disso, o dia-gnóstico raramente seria encontrado em doentescom mais de 40 anos,' não se sabendo se reflectirá ofacto de as personalidades borderline amadureceremcom a idade, deixando de procurar auxílio ou se ospadrões instáveis da personalidade se desenvolverão

até personalidades mais estáveis.

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PERSONALIDADE PASSIVO-AGRESSIVA

Bleuler em 1924 referir-se-ia a "doentes dehumor irritável". Aschaffenberg em 1922 referiu-se a "indivíduos que durante toda a sua vida semostraram ofendidos". Hellpack em 1920 usou otermo "amphithymia" referindo-se a indivíduoscom má disposição, constantemente incomodadose que fariam comparações invejosas com eles pró-prios e com os outros".

Schneider em 1923 falou de "depressivos detonalidade doentia". Resumiu as suas principaiscaracterísticas do seguinte modo: "São indivíduosfrios, conflituosos e pessimistas. Algumas vezessão irritáveis e gostam de censurar. Não gostam dever os outros bem".

O termo passivo-agressivo teria sido pela pri-meira vez usado na nomenclatura médica emrelatórios médicos do departamento de guerra em1945.

A DSM I em 1952 viria a incluir uma altera-ção da personalidade passivo-agressiva diferen-ciando-a em 3 sub-tipos: a passivo-agressiva"pura", a passivo-dependente e a agressiva. Em1968 a DSM 11 referir-se-ia só à personalidadepassivo-agressiva e omitiria as variantes passivo-dependente e agressiva.

Em 1980 a DSM III manteria a personalidadepassivo-agressiva e referir-se-ia à passivo-depen-dente como integrada na personalidade depen-dente. Incluiria alguns aspectos do tipo agressivocomo fazendo parte da descrição da personalidadeanti-social. O nome desta alteração da persona-lidade baseava-se no pressuposto de que o com-

portamento passivo observado seria uma máscaraque ocultaria a agressão.

Os indivíduos com esta alteração da per-sonalidade não demonstrariam abertamente a suahostilidade, nem recusariam fazer o que se lhespedisse. Simplesmente adiariam ou executariammal as suas tarefas, tornando-se incapazes nofuncionamento social e profissional.

PERSONALIDADE NARCÍSICA

O termo Narcísico é frequentemente utilizado

na linguagem comum e radica na mitologia clás-sica.

No entanto, só foi pela primeira vez utilizadoem sentido psiquiátrico por Ellis (1898), que oconceptualizou como um autoerotismo.

Nack usou-o para descrever uma perversãosexual e Sadger introduziu-o no léxico psicana-lítico. Desde aí tem sido largamente usado poresta escola, com as mais variadas aplicações (atítulo de exemplo, como uma forma de perversãosexual, como uma característica de todas as per-versões, até como uma característica subjacente àesquizofrenia) .

O seu uso clínico tem .sido mais no sentido detraduzir características particulares específicas daalteração da auto-estima e da auto-imagem.

Não é mencionado na ICD 9 nem no projectoda ICD 10, mas é referido tanto na DSM III comona DSM III R, partilhando alguns traços com otipo hipomaníaco de alguns autores europeus.Nomeadamente Kurt Scnheider quer na sua des-crição dos Psicopatas hipertonicos, quer na dosPsicopatas fanáticos na variedade expansiva,aproximar-se-ia do conceito de PersonalidadeNarcísica.

Dada a controvérsia existente entre a aplica-ção que no campo psicanalítico se tem feita dotermo Narcísico e a influência de diferentes for-mulações teóricas que se esforçam por o clarificartomar-se-ia necessário defini-lo como um con-ceito clínico e descrítivo: normalmente a noção deauto-estima e auto-imagem estarão relacionadascom as experiências de gratificação ou frustraçãoque o indivíduo tem na sua relação com os outrose com a sua própria avaliação da distância entre osseus objectivos/aspirações e as realizações/suces-

sos que obtem. No tipo Narcísico haveria umaperturbação deste mecanismo regulador da auto-estima - uma noção grandiosa da sua própriaimportância, do seu carácter excepcional, expressoquer em fantasias quer em comportamentos, nãocorresponderia na maioria das vezes às capa-cidades efectivas.

Apesar do amor excessivo a si próprio, re-flectido na sua atitude autoreferencial e exagera-damente egocêntrica, nas suas tendências exibi-cionistas e no seu sentido de superioridade, seriahipersensível à avaliação dos outros, embora inca-

paz de empatizar.Tudo no seu universo deveria ter por objec-

tivo pô-lo em destaque. Teria uma necessidade

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Personalidades anormais - Um ensaio de revisão teórica

constante de atenção e admiração por parte dosoutros.

O outro para eles não existiria por si próprio,mas unicamente como instrumento da suavalorização, não hesitando o Narcísico em paraisso o explorar, se necessário. Por outro lado,apresentariam normalmente um certo encanto su-perficial. Esta faceta permitir-lhes-ia exibir-se,agradar, e melhor levar os outros a responder àssuas necessidades.

Estariam convictos de que tudo lhes era devi-do, desdenhariam as regras e as convenções so-ciais, às quais se sentiriam superiores.

Poderiam, numa análise superficial, parecerbem adaptados socialmente. No entanto, as suasrelações interpessoais seriam quase invariavel-mente perturbadas. A possibilidade de ser fraco oudependente seria encarada como uma ameaça.

Este tipo de personalidade parece ter-se toma-do mais comum nos tempos que correm. Tal poderáter resultado do maior interesse clínico em o carac-terizar, mas a possibilidade de ter tendência aaumentar, em resultado dos valores culturais con-vencionais, da sua facilitação social, não deixa demerecer atenção.É digno de nota parecer não haverdiferençassocio-económicas,culturais ou de sexo.

A DSM III refere as sobreposições frequentesdeste tipo com alterações histriónicas, Borderlinee/ou anti-sociais,

As características que distinguiriam este dis-túrbio dos anteriores seriam mais quantitativasque qualitativas, e como tal algo subjectivas.

O indivíduo com personalidade narcísicacomparativamente ao anti-social seria menos im-pulsivo e menos inclinado a explorar os outrospara obter ganhos materiais.

Em relação à Personalidade Histriónica, oNarcísico distinguir-se-á por ser menos depen-dente, menos envolvido com os outros e menosexagerado na expressão das emoções.

Comparativamente à Personalidade Border-line teriam um sentido de identidade mais coeso,sendo menos impulsivos e emocionais.

PERSONALIDADE HISTRIÓNICA

A Personalidade Histérica da ICD 9 e daDSM 11 corresponde à chamada histriónica da

25

DSM I1I, DSM III R e projecto da ICD 10. Nãoera nomeada na DSM I.

Na ICD 9 são ainda referidos como equiva-lentes os termos Personalidade Infantil, DisforiaHisteroide e Emocionalmente Instáveis.

O termo histeria tem sido desde longa dataassociado à mulher e a origem da palavra tem assuas raízes no antigo Egipto e na Grécia.

No entanto, as primeiras descrições do cha-mado carácter histérico, feitas por Psiquiatras ePsicólogos, só começaram a surgir em meados doséculo XIX.

De entre os vários autores é de citar WilhemGriesinger (1845) que caracterizava as mulhereshistéricas por mostrarem uma sensibilidade exa-gerada, mesmo ao mais pequeno reparo, por ten-derem à auto-referenciação, pela sua grande irrita-

bilidade, pelas grandes variações de humor aomais pequeno motivo. Também, segundo ele, sedistinguiriam pelos seus caprichos sem sentido, asua inclinação às decepções, à prevaricação, aociúme e à malícia.

Kraeplin (1904) descreveu vários traços dotipo histérico, caracterizando-o pelo seu gosto pelanovidade, o entusiasmo, a imaginação vivida, aimpulsividade e a maneira de ser caprichosa.

Janet (1901) descreve este tipo de modo simi-lar, incluindo como característica o exibicionismo,a extravagância e a tendência para a manipulação.

Também as descrições de Bleuler e Jaspersdesta alteração da personalidade são sobreponíveisàs anteriores.

Schneider (1923) propôs a desiganção dePsicopata Carente de Afirmação como um subs-tituto para o termo histérico, defendendo que este

último implicaria um julgamento moral e adqu-irira um significado demasiado extenso e vago.Descrevia este tipo de Psicopatia com base numtraço que, sendo universal, teria nestes indivíduosum desenvolvimento excessivo e anómalo. Paraeles, a aparência seria mais importante que aessência - teriam como característico a tendênciaao exagero e à mentira patológica visando tomar-se mais interessantes e atractivos.

Aproximava-se assim também da descriçãoactual do tipo histriónico.

No entanto, torna-se notória nesta área aconfusão e a sobreposição da terminologia usada:alguns autores referem o termo Histeria de Con-

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26 Fernanda Rosa e Luisa de Lucena e Vale

versão, outros Psicoses Histéricas, outros aindaPersonalidades Histéricas, tornando comuns asconfusões conceptuais e semânticas.

Muitos defendem que quanto mais severo é aperturbação da Personalidade dentro de um "es-pectro histérico", mais facilmente poderão surgirsintomas somáticos severos e múltiplos, corres-pondendo à chamada histeria de conversão. Domesmo modo, as reacções dissociativas e as reac-ções psicóticas, classificadas no passado comoPsicoses histéricas, surgiriram mais facilmenteneste grupo extremo do espectro histérico.

A tendência para distinguir claramente entreDistúrbios Conversivos, Distúrbios Dissociativose Distúrbio de Personalidade Histriónio é recentee veio clarificar a Psicopatologia nesta área.

Quanto a esta última, ou seja, a alteração dotipo histriónico, a noção de que estas persona-lidades "vivem verdadeiramente no teatro queelas próprias fazem" parece ser a que melhor asdefine.

Numa aproximação descritiva caracterizar-se-iam por viverem inteiramente virados para o"parecer", onde o facto de ser visto seria primor-dial. O olhar do outro, as suas reacções seriaminterrogados e condicionariam as frequentesmudanças de atitude. O corpo seria supervalor-izado como meio de comunicação.

As suas reacções teriam um carácter exces-sivo, sempre ligeiramente fictício. Instável na suaidentidade, revelar-se-ia muito influenciável.

Uma vida sexual muitas vezes marcada pordistúrbios funcionais e como que uma contami-nação erótica, frequentemente intempestiva, dassituações que vive, seriam típicas destes indivíduos.

Os traços de imaturidade afectiva seriam evi-dentes, tal como os traços de dependência.

Exibiriam um comportamento auto-indul-gente, tendências impulsivas e relações interpes-soais manipulativas. Mostrariam por vezes umcomportamento anti-social.

A descrição que é feita actualmente destegrupo parece sobrepô-lo em muitos aspectos aodesignado Distúrbio de Personalidade Borderline,o mesmo acontecendo com o Distúrbio Anti-social. Alguns estudos epidemiológicos recentes

apontam neste mesmo sentido.Parece ser bastante mais frequente no sexo

feminino. É possível que a aproximação dia-

gnóstica focada na psicopatologia da mulher tenhaproduzido artificialmente esta elevada relação.

Este tipo de personalidade parece ser frequen-te tanto na população geral como no Intemamento ,e mais comum entre os familiares em primeirograu dos indivíduos com o distúrbio.

Há certo consenso sobre a influência de fac-tores culturais. São por demais conhecidos os (estereotipos sobre o papel feminino, sobre a rela- \ção de poder entre os sexos e os limites do com-portamento sexual encorajado e permitido.

Só a realização de estudos empíricos poderávir a clarificar esta questão.

PERSONALIDADE MASOQUISTA

A palavra masoquismo foi muitas vezes usadaquer para se referir a perversões sexuais (parafi-lias) quer a alterações masoquistas da perso-nalidade. Para contornar essa dificuldade a DSMIII e a DSM III R omitiram a alteração da perso-nalidade masoquista e incluiram as perversõesmasoquistas no capítulo das parafilias.

A ambiguidade entre perversão e alteração dapersonalidade remontaria às descrições de Krafft-Ebing em 1895 sobre o masoquismo sexual. Criouo termo de masoquismo a partir do nome deLeopold von Sacher-Masoch que era um autor doséculo XIX que escreveu vários romances em querelatava o comportamento de certos homens quesó obtinham gratificações sexuais se fossemmaltratados por determinado género de mulher.

A necessidade que os indivíduos teriam deserem maltratados ou humilhados na personalidademasoquista distinguir-se-ia do masoquismo sexualpor não estar associado com excitação sexual.

Lion referiu que as auto-mutilações seriamum aspecto habitual da personalidade masoquista.Segundo ele a tensão dos sentimentos agressivosseria aliviada por actos como a auto-agressão.Sack e Miller definiram a personalidade maso-quista do seguinte modo: "as experiências desa-gradáveis não produziriam as respostas esperadasou seja a reacção individual aos acontecimentosaversivos seria anómala"

A submissão seria um aspecto proeminente.O indivíduo tentaria através desta submissão des-pertar sentimentos de culpa no companheiro.

,\

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Personalidades anormais - Um ensaio de revisão teórica 27

Os rituais culturais, como por exemplo aauto-flagelação nas Filipinas, não seriam consi-derados actos da personalidade masoquista.

tantemente depressiva ou constantemente eufórica.Seriam termos equivalentes as PersonalidadesCíc1ica, Cic1oide, Ciclotímica e Depressiva.

No projecto da ICD 10, tal como na DSM IIIe na DSM III R, não é feita referência nem aoDistúrbio de Personalidade Distímico nem aoDistúrbio de Personalidade Ciclotímico. Referem-se sim à Ciclotimia e à Distimia (distúrbio ciclo-tímico e distúrbio distímico como são designadosna DSM III) que incluem no capítulo das DoençasAfectivas.

PERSONALIDADE DISTÍMICA

Para terminar referir-nos-emos à Perso-nalidade Distímica ou Afectiva da ICD 9.É aquidescrita como sendo caracterizada por alteraçõesafectivas ao longo da vida, de tonalidade cons-

Summary

The present theoretical revision presented in a seminar on "Personality Disturbances" dedicated tothe training of psychiatric registrars,

The text now published was presented in the second part ofthe mentioned seminar.It is a comparative analysis of the various "Types of Personality Disorders" most commonly

proposed. Their empirical foundations are also reviewed.

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Psiquiatria Clínica,12 (I) pp. 29-37, 1991

Sida: Aspectos psiquiátricos e psicológicos

POR

ANTÓNIO PISSARRA DA COSTA *EMÍLIA ALBUQUERQUE FERNANDES *

PSIQUIATRIA CLINICA

Resumo

Os autores fazem um trabalho de revisão de alguns artigos recentes sobre aspectos psiquiátricos epsicológicos no doente com S/DA. Ressalta deste trabalho a perspectiva de que os psiquiatras serãocada vez mais solicitados na avaliação, tratamento ou mesmo diagnóstico inicial de doentes comperturbações psiquiátricas ou neuropsiquiátricas relacionadas com a S/DA. É igualmente importanteconhecer os aspectos psicológicos e psicossociais associados a esta infecção e definir o papel adesempenhar no suporte e aconselhamento psicológico destes doentes, a par de intervenções orientadaspara a prevenção primária.

INTRODUÇÃO

Em Junho de 1981, " The Center for DiseasesControl" na Califórnia registava cinco casos depneumonia por Pneumocystis Carinii emhomossexuais. Em Julho do mesmo ano, um rela-tório posterior referia vinte e seis casos de sar-coma de Kaposi também em homens homos-sexuais de Nova York. Todos estes doentes tinhamem comum um deficit da respostaimunológica

celular com redução dos linfócitos "T-helper" oubaixa na relação "T-helper"/"T-supressor".

Em 1983 isolar-se-ia o vírus da imunodefi-ciência adquirida(lllV) identificado então como oagente da síndrome da imunodeficiência adquirida(SIDA). Este, no curto espaço de oito anos, tornou-se epidémico principalmente no mundo Ocidental eAfrica Equatorial, com uma incidência que crescevertiginosamente de ano para ano.

O prognóstico continua, actualmente, desfa-vorável. Contudo a presença de SIDA, doença que

se manifesta habitualmente por infecções opor-tunistas raras, sarcoma de Kaposi ou outrasneoplasias, não é senão o último estádio dainfecção pelo HIY. Pode haver um período deincubação que a maioria dos estudos apontamentre cinco a sete anos sem qualquer sintoma-tologia e, em 20% dos casos, pode instalar-se umasituação crónica caracterizada pela presença delinfadenopatia, febre, suores nocturnos, fadiga,diarreia e perda de peso que é vulgarmente conhe-cida por ARC ( "Aids Related Complex" ).

A complexidade dos problemas com que seconfrontam as pessoas infectadas pelo vírus daimunodeficiência humana e o sofrimento psico-lógico resultante, afastam esta doença de todos osoutros grandes problemas de saúde pública dosnossos dias. Podendo as reações psicológicasassemelharem-se às que surgem quando se en-frenta outra doença incurável e fatal como o can-cro, no caso da SIDA as exigências para um bomajustamento psicológico são maiores, devido a um

* Médicos Internos do Internato Complementar de Psiquiatria dos H.U.C. e membros da Consulta de RiscodosH.U.C.

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30 Antônio Pissarra da Costa e Emília Albuquerque Fernandes

conjunto de características únicas e específicasdesta situação.

É uma nova doença incurável e contagiosa,que ocorre frequentemente em grupos sociais jápreviamente estigmatizados: homossexuais ebissexuais masculinos promíscuos, prostitutas econsumidores de drogas por via intravenosa.

Sendo contagiosa desconhecem-se alguns dosmecanismos exactos de propagação, o grau deinfeciosidade, o período de contágio e o períodode incubação.

É uma doença que não tem tratamento especí-fico e que se associa a elevada mortalidade (naordem dos 100% e com sobrevidas que geral-mente não ultrapassam os cinco anos). Comoexemplo, dos 537 notificados em Portugal desde1983 até Dezembro de 1990, a infecção já matou285.

A população afectada é geralmente jovem eactiva, com cerca de 70% de casos na 2a e 3a déca-das de vida.

A maioria dos indivíduos atingidos é "respon-sável" pelos seus comportamentos de risco - "víti-mas culpadas" .

Evolui frequentemente com debilitação físicamarcada e desfiguramento.

Atinge precocemente o SNC, quer por acçãodirecta do vírus quer por patologia associada(infecções oportunistas, tumores, anóxia, etc. ),originando amiúde alterações mentais ecomportamentais.

Para além dos factores já apontados, estadoença tem consequências familiares, sociais eprofissionais que se repercutem igualmente no

doente e levam ao isolamento, ao abandono eàrejeição pelo amante, amigos, familiares e colegasde trabalho. São socialmente rejeitados e têmdificuldades para conseguir ou manter o empregoou obter benefícios (por exemplo, tratamentosdentários, seguros, utilizar escolas, barbearias,bares, etc) não usufruindo assim das vantagens do"papel de doente" que recebem os indivíduos comcancro ou outras doenças mais" aceitáveis".

Inicialmente confinada aos grupos de risco, asua frequência continua a aumentar e alastra paraa população heterossexual. Como diz Elisabeth

Kubler-Ross no seu livro "AIDS - The UltimateChallange" (1987) "... todos nós somos potenciaiscandidatos a um contacto - não necessariamente

como vítimas, mas como técnicos de saúde,parentes ou amigos de um doente - com o sombriouniverso da mais devastadora doença do nossoséculo ... ".

ALTERAÇÕES NEURO-PSIQUIÁ TRICAS

As manifestações clínicas são extremamentevariadas e por vezesé difícil a distinção entre cau-sas orgânicas e psicológicas de um estado mentalalterado.

Um interessante estudo recente (Diederich ecols., 1988) feito com 76 doentes com SIDA emdiferentes estádios da doença, referia que 50% dosmesmos apresentavam distúrbios psico-orgânicoscrónicos. Em 34% dos doentes deste primeirogrupo, o quadro clínico caracterizava-se por apa-tia, cansaço, indolência, indiferença em relação aoseu próprio destino, que os autores classificaramcomo distúrbio de personalidade orgânica e quepoderia ser a primeira manifestação da infecçãodo SNC pelo HIV Ainda neste primeiro grupo dedoentes, 16% apresentavam um quadro estabe-lecido de demência. Dos restantes, 9% apresen-tavam psicoses causadas por complicações rela-cionadas com intercorrências médicas da situação,9% apresentavam distúrbios psico-reactivos e25% não tinham qualquer psicopatologia.

Concluiam estes autores que existem quatrocondições que devem ser consideradas num dadoquadro psicopatológico associado com a Sida:1) ser membro de um grupo de risco com proble-mas psicossociais e de personalidade inerentes;2) reacção emocional individual; 3) distúrbiosorgânicos crónicos; 4) psicoses orgânicas agudasresultantes de complicações médicas.

Alguns autores francófonos (Consoli e Fer-rand, 1987), distinguem dois grandes tipos demanifestações neuro-psiquiátricas:

1) um grupo ligado à patologia infecciosa etumoral encontrada nestes doentes;

2) o segundo grupo ligado ao tropismo dovírus pelo SNC.

Agentes activos responsáveis pelo apareci-mento dos distúrbios referidos no primeiro grupo,

incluem infecções provocadas pelo toxoplasma,cytomegalovirus, cryptococos e outras (respon-sáveis, por exemplo, por encefalites subagudas);

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Sida: Aspectos psiquiátricos e psicológicos

neoplasias (incluindo o sarcoma de Kaposi elinfomas imunoblásticos) e alterações cerebro-vasculares. Também afecçõesdoutros departa-

mentos podem ser responsáveis por alguns distúr-bios mentais orgânicos como, por exemplo, hipo-xémia secundária a pneumonia por PneumocystisCarinii, alterações metabólicas relacionadas com adiarreia, sépsis, estados pré-ictais.

Habitualmente, os sintomas neurológicos(cefaleias, alterações da marcha e do equilíbrio,perturbações da acuidade visual, etc.) são os sinto-mas de apresentação. No entanto também sepodem apresentar como quadros floridos de com-portamento psicótico com delírios, alucinações,alterações de humor que vão da labilidade a esta-dos de excitação maníaca que podem alternar comestados de depressão agitada. O curso pode aindaflutuar com períodos de confusão. Por vezes insta-lam-se verdadeiros quadros de delirium, principal-mente quando está afectado o metabolismocerebral ou existem lesões parenquimatosas.

O tratamento destas situações passa por umestudo cuidadoso para determinar o envolvimentoorgânico e pelo uso de neurolépticos que devemser cuidadosamente escolhidos atendendo à gran-de susceptibilidade destes doentes aos efeitossecundários dos mesmos, nomeadamente aosefeitos extrapiramidais (Swenson e cols., 1983), eà diminuição do limiar de convulsão e hipotensão.Devem ser continuados durante algum tempodepois da resolução do episódio.

De salientar que os quadros descritos podemconstituir os primeiros sintomas num doenteinfectado por HIV. Halstead e cols. (1988) descre-vem cinco casos de doentes que inicialmente se

apresentaram como psicoses funcionais havendoapenas em dois casos o diagnóstico prévio deseropositividade, conhecido num deles há mais deum ano. Todos estavam infectados pelo HIV einicialmente não havia evidência de um síndromemental orgânico excepto em dois casos. Num des-tes, a presença de alucinações visuais, deterio-ração auditiva e alterações electroencefalográficassugeriam encefalite, enquanto que no outro asalucinações visuais faziam pensar numa causaorgânica. Dois outros estudos (Thomas e cols.,1985; Halevie - Goldman e cols., 1987) referemtambém vários casos de quadros psicóticos naausência de sintomas orgânicos ou outros factores

31

susceptíveis de criar dificuldades diagnósticas talcomo abuso de drogas. Também Buhrich e cols.(1988) descrevem três quadros psicóticos em

doentes com SIDA indistinguíveis das psicosesditas funcionais.

No entanto, o número de casos relatados épequeno, sendo extremamente difícil, actual-mente, decidir em que medida as " situaçõesfuncionais " - distúrbios afectivos e psicoses - sãodevidas à acção directa do HIV no cérebro, sãosimplesmente coincidentes com a infecção, sãorelacionadas com a patologia concomitante ou sãoprecipitadas pelo stress em indivíduos vulne-ráveis.

Do exposto torna-se, contudo, evidente anecessidade dos psiquiatras estarem alertados paraa possibilidade de psicoses associadas com HIV,especialmente em presença de doentes com fac-tores de risco.

Um outro quadro que algumas séries apontamcomo aparecendo em cerca de 50% dos doentescom SIDA é a demência, frequentemente referidacomo ADC ("Aids Dementia Complex"). Osfactores concorrentes .para o seu aparecimentopodem ter a ver com as infecções opurtunistas, ostumores e a infecção directa do SNC pelo HIVque causa encefalopatia sub-aguda com gliosedifusa, necrose focal, células gigantes multinu-cleadas e desmielinização (Ho e cols., 1989).

Na esfera cognitiva, os sintomas mais pre-coces incluem deterioração da memória e difi-culdade na capacidade de concentração, apatiaprogressiva e desinteresse social. Por vezes é umamigo ou familiar que nota modificações subtisnas capacidades e personalidade do doente. Não

raro, os sintomas motores aparecem num estádioprecoce manifestando-se por alterações da fala,postura e coordenação.

A depressão psicológica é muito rara nestafase. No entanto, pode levantar problemas de dia-gnóstico diferencial. Uma minoria destes doentespodem apresentar sintomas de psicose orgânica.Investigações cuidadosas devem excluir causastratáveis de demência realizando-se, se possível,TACeRMN.

À medida que a doença progride, os testesrequerendo concentração e atenção e testes defluência verbal, normais na fase inicial, vão sendosucessivamente mais afectados. Paralelamente, os

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32 António Pissarra da Costa eEmilia Albuquerque Fernandes

doentes vão-se tornando incapazes de realizaradequadamente as tarefas do dia a dia, neces-sitando frequentemente de ajuda em actividadescomo alimentação, higiene, visitas ao hospital,pois podem ficar confusos e desorientados. Porvezes, o desenvolvimento de ideias paranóidestomam ainda mais dificil o relacionamento destesdoentes com as pessoas que eventualmente lhesprestam ajuda.

ESTADOSPSICÓTICOS

tSurtosPsicóticos

t/AgudO -::::on'"S.C.O.<,

HIV Crónico ~ DeterioraçãoToxoplasma cognitivaprogressivaCryptococos ~CMV,etc. DEMENCIA

Não devemos esquecer, por último, que algu-mas drogas podem precipitar ou agravar alte-rações no estado mental destes doentes ou mesmoprovocar prejuízos a outros níveis.É o caso,nomeadamente, dos antidepressivos que podemexacerbar a desorientação ou dificuldades dememória ou ainda provocar psicose tóxica. Poroutro lado, a secura das mucosas, efeito secun-dário frequente, pode prejudicar as já de si pre-cárias defesas facilitando a instalação de infecçõesoportunistas. Devem usar-se, quando necessário,antidepressivos com o menor efeito anticolinér-gico.

As benzodiazepinas devem ser também usa-das com cuidado pelo risco de poderem agravarquadros de confusão.

Parece, ainda, que alguns medicamentos usa-dos no tratamento da SIDA como, por exemplo, oAZT (azidotimidina) podem ser responsáveis peloaparecimento de alucinações.

Finalmente, gostaríamos de referir breve-mente as enormes dificuldades levantadas noapoio e tratamento deste tipo de doentes. Paraalém das dificuldades psicológicas pelo ter quelidar com a ameaça de contágio, a fatalidade, o"desvio social" que por vezes colide com as cren-ças religiosas e padrões morais do pessoal médicoe paramédico, a presença do distúrbio mentalorgânico com as alterações comportamentaisinerentes e os sintomas neurológicos como, porexemplo, incontinência dos esfíncteres podemoriginar sentimentos de rejeição e frustração.

REACÇÃO AO DIAGNÓSTICO

James e cols. (1988, citados por Goldmeier,1988), referem que ao enfrentarem o diagnósticode SIDA ou Seropositividade HIV, um terço dosdoentes têm reacções psicológicas adversas edesses metade necessitaram de acompanhamentopsicológico ou psiquiátrico.

Dependendo da personalidade prévia doindivíduo e do suporte social e afectivo podemobservar-se várias tentativas para reorganizar oseu funcionamento. Diversos modelos tentam des-crever a reações de ajustamento do indivíduo faceao diagnóstico.

Nichols (1985, citado por Goldmeier, 1988),descreve quatro estádios:

1) Estádio inicial, segue-se ao choque e emque a negação alterna com períodos de intensaansiedade.

2) Estádio intermédio ou de transição,onde aansiedade se acompanha de muitas outras emo-ções: culpa, medo, tristeza, angústia, auto-pie-dade, sentimentos de revolta com agressividade emesmo ideação suicida.

3) Estádio de aceitaçãoem que geralmenteacontecem as modificações do estilo de vida e odoente tenta viver intensamente e de uma formamais "saudável". O estádio de aceitação é por ve-zes referido como "living with AIDS" em oposi-ção aos estados prévios onde o doente está "dyingof AIDS" (Elliot, 1987 ).

4) Estádio final de preparação para a morte.Os já bem conhecidos, estádios de Kubler-

Ross acerca da morte e do morrer são igualmenteaplicáveisà evolução desta doença.

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Sida: Aspectos psiquiátricos epsicológicos

Medo, apreensão, ansiedade e por vezes cri-ses de pânico são comuns a quando do diagnósticode infecção pelo HIV.

A negação quanto ao diagnóstico é por vezesum mecanismo de defesa necessário que dentro decertos limites deve ser respeitado porque dá aoindivíduo algum controlo, mas se persiste podetambém trazer problemas delicados relacionadoscom a prevenção da contaminação.

A revolta e a agressividade podem dirigir-separa o exterior com intenção deliberada de propa-gação da doença através da multiplicação doscontactos sexuais ou partilha de seringas, ou podesurgir aumento do consumo de drogas ou álcool eideação suicida. Flavin (1986) faz um relatocurioso de três casos de homossexuais admitidos nohospital para tratamento de dependência alcoólica eque afirmavam tentar contrair a SIDA através demúltiplos contactos sexuais com parceiros infec-tados, com fins suicidas. Todos estavam deprimi-dos. Para além disso, dois deles confessaram aintenção de tentar deliberadamente propagar adoença a terceiros depois de a adquirirem. Umdeles sofria de ARe e veio a desenvolver SIDA.

As manifestações e estados depressivos sãodas reações de ajustamento mais encontradassegundo Dilley e cols. (1985) e os temas depres-sivos mais frequentes são: a incerteza acerca dodiagnóstico e curso da doença, isolamento, aban-dono e rejeição social e sexual, culpa e recri-minação acerca do estilo de vida prévio, ausênciade cura e inevitabilidade de desfiguramento físico,incapacidade e morte.

Os sentimentos de culpabilidade são tambémcomuns e são dirigidos quer aos comportamentos

de alto risco no passado, querà possível e invo-

luntária contaminação de outros.É no período que se segue à revelação da

seropositividade que o risco de suicídio é maisimportante, particularmente entre os homosse-xuais, mais sensíveis às preocupações com adeterioração física induzida pela doença. Naanálise de dados de suicídio na cidade de NovaYork, Marzuk e cols. (1988, citados por Luisa Fi-gueira, 1991), afirmam que o suicídio na popu-lação a quem se diagnostica o vírus HIV é 36vezes mais elevada do que na população com asmesmas características etárias e 66 vezes maiselevada do que na população em geral.

33

Outras preocupações podem acompanhar es-tas manifestações:

- preocupações hipocondríacas com sobreva-lorização de sinais e sintomas

- escrutar obsessivamente o corpo na procurade sinais cutâneos do síndroma de Kaposi, febre,gânglios, etc, acompanhado de uma procura in-tensa de informações sobre a doença

- receio, particularmente por parte dos hete-rossexuais, de ser identificado como elemento degrupos marginalizados

- receio do afastamento de amigos e fami-liares que ao saberem o diagnóstico, têm igual-mente conhecimento da homossexualidade ou datoxicodependência.

Particularmente no início, quando existe umaresposta favorável aos tratamentos ( por exemplo,resolução de pneumonia, candidíase, etc ), odoente que se encontra no chamado periodo de"lua de mel" pode vivenciar os dias mais "sau-dáveis" da sua vida devidos às modificações noestilo de vida entretanto conseguidas ( abstençãode consumo de drogas e álcool,dietas equilibradas,exercício fisico adaptado à sua condição, trata-mentos alternativos, restabelecimento de laçoscom familiares e amigos).

Nas repercussões psicológicas da seroposi-tividade certas categorias de doentes comportamvárias particularidades:

- os toxicodependentes e homossexuais comperturbações emocionais prévias à infecção e quesão focos importantes de dessiminação da doença

- os heterossexuais, em que a preocupação maisfrequente neste grupo é a de ser identificado comopertencendo a um grupo marginal. O medo de ser

abandonado pela companheira, de ser rejeitado oumarginalizado pela família pode levarà adopção deum secretismo que facilmente leva a dificuldades naprevenção dos contágios (Luisa Figueira, 1991 )

- as mulheresseropositivas,algumas são toxi-cómanas, outras descobrem a sua seropositividadeao mesmo tempo que a bis sexualidade do compa-nheiro. O desaconselhamento da gravidez comimpossibilidade de ter filhos ou na mulher grávidaseropositiva o confronto com o risco de um filhoseropositivo podem originar grande sofrimentopsicológoco

- as "vítimas inocentes" infectadas pelo HIV(crianças contaminadas durante a gravidez, hemofí-

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34 António Pissarra da Costa e Emília Albuquerque Fernandes

licos, receptores de transfusões de sangue contami-nado, heterossexuais contaminados pelos parceirosinfectados), numa alusão clara às "vítimas culpadas"em consequência dos seus comportamentos de risco(homossexuais e toxicodependentes por via intrave-nosa) têm também outras particularidades.

A prevenção e reflexão sobre os problemaspsicológicos deverão, independentemente daSIDA, ser diferentes nestes distintos grupos.

ESTR.A.TÉGIAS PSICOLÓGICAS PARA LIDARCOM O DIAGNÓSTICO

Fisher (1986, citado por Vaz Serra, 1989),considera que só entra em stress a pessoa que,perante circunstâncias que alteram o seu equilibriohomeostático percebe, de uma forma subjectiva,temporária ou permanentemente, que perdeu ocontrolo sobre as mesmas.

A percepção de controlo é importante eabrangente porque se associa aos conceitos de pre-dictabilidade e de estabilidade dos acontecimen-tos, à existência de aptidões e de recursos pes-soais. Liga-se também à noção de competênciapessoal e de adequação em relação ao meio am-biente (Vaz Serra, 1989).

Wrubel, Benner e Lazarus ( 1981 ), citadospor aquele mesmo autor, afirmam que háfundamentalmente,quatro tipos de estratégias quepodem ser usadas para lidar com situações indu-toras de stress: busca de informação, acção direc-ta, inibição da acção e estratégias cognitivas. Paraalém destas há mecanismos redutores de estadosde tensão emocional.

Se pensarmos no conjunto de característicasespecíficas desta situação já referidas, fácil seráconcluir que o impacto do diagnóstico de infecçãopelo virus HIV é fortemente ameaçador para oindivíduo.

Passaríamos agora a referir de uma formamuito sucinta algumas conclusões extraidas de umimportante trabalho de Luisa Figueira (1991)numa amostra de 123 indivíduos, dos quais 49seropositivos HIV e 74 com o diagnóstico deSIDA, realizado entre Julho de 1987 e Julho de1990. A autora pressupõe que possa existir um

continuum entre dois padrões específicos demecanismos para lidar com o diagnóstico e a

doença. Numa primeira fase de incerteza face aofuturo predominam os mecanismos comporta-mentais de descarga emocional e de uma procuradesajustada de ajuda através de comportamentosmais apelativos. Numa segunda fase, em que háuma redução de incerteza e a consciência de umamorte mais próxima, predominam mecanismoscognitivos que envolvem uma busca de soluçõesdistanciadas da Medicina, num estilo de vidaalternativo. Em relação aos mecanismos de copinge a depressão afirmam que os doentes emocional-mente perturbados com humor depressivo, se sãoseropositivos HIV, em comparação com os doen-tes com imunodeficiência, têm uma tendência paraevitar aceitar a situação e confrontar-se com asconsequências, envolvem-se mais frequentementeem estratégias de descarga emocional e em tentati-vas de controlar e reduzir a tensão emocionalatravés de comportamentos excessivos, têm aindauma tendência mais frequente para atribuir aoexterior a responsabilidade e culpa da situação.Pelo contrário os doentes com SIDA e que estãodeprimidos têm uma maior tendência para atribuira si mesmos a culpa da situação.

ABORDAGEM PSICOTERAPÊUTICA

Qualquer intervenção de apoio ou aconselha-mento psicológico deve basear-se numa relaçãomédico-doente.

É fundamental, antes de mais, que se encaremalgumas questões que devem ser respeitadas paraque assim, o apoio pretendido seja efectivo para odoente e para que não swjam problemas emocionais

entre os técnicos de saúde que se dedicam a estesdoentes. Devem ser ultrapassadas dificuldades efrustrações relacionadas com os pacientes comosejam: a sua juventude, múltiplas mortes, deteriora-ção fisica e mental e necessidades psicossociaisintensas. Devem ser igualmente ultrapassadas difi-culdades relacionadas com a equipa como sejam: aaceitação de valores morais, de comportamentos ede estilos de vida "marginais" dos homossexuais etoxicómanos por exemplo, medo excessivo docontágio e identificação exagerada com os doentes.

Os objectivos da intervenção psicológica diri-

gida aos indivíduos infectados pelo HIV sãosegundo Namir (1986):

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Sida: Aspectos psiquiátricos epsicológicos

- compreender e ajudar a compreender a suaatitude para com a doença

- aumentar a qualidade de vida do doenteajudando-o a adaptar-seànova situação

- ajudar o doente a vivenciar um melhor con-trolo evitando sentir-se uma vítima desesperada eimpotente da doença.

Atendendo a que no tratamento, para alémdos factores individuais e sócio-culturais, o factormais importante é o estádio da doença, podemosescalonar a nossa intervenção do seguinte modo:

(i) Na fase subsequente ao diagnóstico aatitude terapêutica deverá ser de escuta, confiança,empatia, confidencialidade, sem julgamentos oucensuras.

O aconselhamento deve ser orientado no sen-tido de evitar a perda da auto-estima, apoiar meca-nismos de defesa que são mais adaptativos, modi-ficar distorções cognitivas, estimular mudanças deestilo de vida, reformular comportamentos derisco e permitir e promover a expressão emocio-nal. Barrett-Lennard (1985) advoga a TerapiaRogeriana para o aconselhamento. Goldmeier(1988) trata os problemas emocionais como rea-ções de perda e ajuda o paciente a ultrapassar osvários estadios. Alguns pacientes estão muitasvezes esperançados de que através da manipu-lação dos factores do estilo de vida podem "vencera aposta" e tornar-se" um dos sobreviventes". Osdoentes nesta situação são encorajados a adoptarprogramas de repouso adequado, balanço nutri-cional correcto, suplementos vitamínicos, pro-gramas de exercício tolerável e restrições noconsumo de alcool e drogas, em conjugação com

terapêuticas para qualquer doença ou participação

voluntária em protocolos experimentais ( Donalde outros, 1986 ). Deve tentar-se ainda a elimi-nação de factores de stress exógenos.

As intervenções psicoterapêuticas que se têmmostrado mais eficazes nesta doença, a par do queacontece nas doenças crónicas, utilizam métodos etécnicas derivadas das terapias de modelo cogni-tivo-comportamental, das quais as mais usadastêm sido, por exemplo, reestruturação cognitiva,procura de mecanismos de coping alternativos,técnicas de relaxamento, biofeedback, resoluçãode problemas, auto-afirmação, etc.

(ii) Numa segunda fase, em que o doente estámuitas vezes internado com infecções oportunistas

35

ou outras doenças relacionadas com a SIDA, agra-vam-se os sintomas depressivos , ansiedade,desespero e ideação suicida. O doente pode pre-cisar de expressar sentimentos, receios, dúvidas eemoções acerca do "luto" face à morte iminente eque são especialmente dificeis de ventilar comparentes e amigos. Pode ser necessário apoiar afamília ou outras pessoas próximas do doente.

(iii) Nafase terminal ou de preparação para amorte, em que o doente fica apático, resignado edesinteressado pelo meio ambienteé muitas ve-zes apenas necessário a presença, a garantiado não abandono, a manutenção do conforto semdor, no sentido de proporcionar uma " mortedigna".

Em qualquer das fases pode ser usada a medi-cação psicofarmaeológiea dirigi da ao alívio daansiedade, insónia e depressão, redução de sinto-mas psieótieos, dor, ete, respeitando contudo di-versas cautelas.

Não existindo actualmente cura para a doençae sendo a SIDA uma doença de comportamentos éobrigatório dirigir o esforço de todos para a pre-venção desenvolvendo e implementando estraté-gias que levemà mudança de comportamentoslimitando assim a transmissão do vírus.

Reconhecendo as dificuldades envolvidas namodificação dos comportamentos, todosnós(médicos, psiquiatras, psicólogos e outros profis-sionais) temos um papel fundamental a desem-penhar, a vários níveis: suporte e aconselhamentopsicológico, informação, intervenções comporta-mentais para modificar os hábitos de alto risco(práticas sexuais e abuso de drogas), combater aestigmatização e discriminação, identificar as

variáveis e a dinâmica que regem os comporta-mentos, etc.

Numa abordagem orientada para a prevençãoprimária, multidisciplinar e multiaxial, talvezpossamos limitar entre nós notícias trágicas comoesta (Independente, 15 de Março de 1991):

Maceira a vi/a mais cruel.Em 1988 os habitantes de Maceira, Portale-

gre, discriminavam uma criança hemofilica comresultado seropositivo no teste de despistagem daS/DA e impediam os seus filhos de irem à escoladesde o princípio do ano lectivo. Cláudio Barrosotinha então seis anos e começava os estudos comoqualquer outra criança. "Fomos lá. Tentámos

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informar as pessoas.", lembra Laura Ayres. Emvão. A Igreja ofereceu solidariedade: " E precisonão deixar criar uma nova lepra." Mas Vale deMaceira é uma comunidade de cerca de quatro-centas pessoas e a segregação do Cláudio depres-sa se estendeu ao resto da família. Os amigosafastaram-se, tinham receio. A família mudou-sehá dois anos para a vizinha Vila de Fronteira.Mas em Fronteira a história repetiu-se ...O Cláu-dio tem agora uma professora especial.

Se o conseguirmos teremos então acalmado osnossos próprios receios em face de palavrasinquietantes como as de Kubler-Ross (1987) "ASIDA tomou-se o grande problema socio-políticodo nosso tempo, uma linha divisória para gruposreligiosos, um campo de batalha para investigadoresambiciosos na área da Medicina, além de se tertomado num campo fértil para demonstraçõesfrequentes do alto grau de desumanidade do homemcomtemporâneo para com o próprio homem."

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Psiquiatria Clínica, 12, (1)pp. 39-46, 1991

o comportamento como sistema de estadosIH. Correspondências fenomenológicas

PORJ. L. PIO ABREU*

ARTIGO ORIGINAL

ResumoProsseguindo na análise do comportamento como a organização do conjunto de estados que um

sistema pode evidenciar, o autor mostra como esta conceptualização se adapta aos conceitos clássicosdafenomenologia, permitindo uma melhor definição, separação e hierarquia defenómenos detectados pelos

psicólogos clínicos.

INTRODUÇÃO

A fenomenologia e o consenso do homem comumA fenomenologia de Husserl e, na sua

continuidade, o existencialismo de Sartre e Jaspersreduziram a filosofia à dimensão humana. Ao invésde um sistema auto-referente e objectivo, estascorrentes remetiam ao vivido que se supõe consen-sual. Foidesde entãoperrnitido escrever na primeirapessoa do singular, fazendo o leitor vivenciar asmesmas experiências por que passava o filósofo.

A vivência quotidiana comum, que não deixa deser a do psiquiatra ao procurar entender o outrodentro dos limites da sua própria compreensão, émuito próxima da atitude dos fenomenologistas. Porisso não admira que Jaspers tenha aberto o caminhomais consensual da psicopatologia, tal como osfenomenologistas, no seu todo, abriram outroscaminhos das ciências humanísticas modernas.

Como base do seu método, os fenomenologistaslançaram mão de alguns conceitos chave, como os deintencionalidade, significado, transcendênciae com-preensão. Resultantes da experiência comum e di-rectamente referenciados ao vivido, eles nãonecessitavam de uma definição operacional nocontexto da filosofia-psicologia do sujeito. Contudo,nos tempos modernos, em que o sujeito se diversi-fica em interacção com impensáveis mass-média,

senão mesmo máquinas-sujeito, o homem comumdeixou de existir, e a referência ao sujeito poderedundar numa nova babilónia. O problema semânticoé assim cada vez mais actual.

Por outro lado, os anos recentes têm-se ca-racterizado por um intenso desenvolvimento dastecnologias da comunicação, cuja prática vai fre-quentemente à frente da sua própria conceptuali-zação teórica. Esta encontra-se dispersa e incipiente,mas dela poderá saír alguma ajuda para o problemaque o actual desencontro nos coloca. A questão é

portanto operacionalizar estes conceitos sem ter de osreferenciar ao vivido do sujeito.

o comportamento como transíção de estadosEm artigos anteriores tentámos organizar um

quadro de referência para esta operacionalização [1].

Para tal considerámos o organismo como um sistemaaberto (com entradas e saídas) dotado de um número[mito de estados, tais que a cada tempo, tn corre-sponde um estado i e, no tempo seguinte, tn+ 1 ,existe um novo estadoj(sendoj= i ou j=/= i). Cadaestado pode ter associadas saídas para o meioambiente e admite subconjuntos de entradas, cadaum dos quais, no caso de uma das suas entradas serfornecida pelo meio, promove a transição para umestado específico, j. A cada transição de estadoschamámos resposta, e ao seu conjunto compor-

* Assistente graduado doS. Psiquiatria do H. U. C.. Professor da F.M.C.

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40 J. L. Pio Abreu

tamento. Este pode ser visto como uma sequênciade estados, da qual se poderá inferir a probabilidadede cada transição.

O comportamento pode pois ser descrito pelamatriz de transições de estado ou respectivo dia-grama. Dado porém que as transições dependem dasentradas disponíveis no meio ambiente, cada ecos-sistema particular vai influenciar as probabilidadesde transição. Portanto, cada matriz de probabili-dades de transição,p(i,j), caracteriza o compor-tamento do sistema em dado meio, ou seja, numecossistema particular.

Caracterizámos então os seguintes tipos de meio--ambiente:

1. Ecossistema livre ou territorial, correspon-dendo ao "mundo das coisas".

2. Ecossistema comunicativo ou interaccional,correspondendo ao mundo das pessoas, dos seresvivos, mas também da comunicação interactivacom outros sistemas e signos codificados.

3. Ecossistema interior oufantasioso, correspon-dendo ao mundo dos pensamentos e fantasias subjec-tivos, ao diálogo consigo próprio, ou das entradas queo próprio sistema produz na forma de saídas anteri-ores.

Estes ecos sistemas podem ser mais ou menos ricosde entradas, sendo que as saídas locomotoras que osistema tem de produzir para as adquirir, estão naproporção inversa dessa riqueza. Num caso extremo,pode também definir-se o ecossistema nidificante,onde estão disponíveis todas as entradas de que osistema necessita para as suas transições, e onde oseu comportamento se transforma num equilíbrio depulsações homeostáticas.

Cada meio ambiente é composto, em maior ou

menor grau, dos3 ecossistemas descritos. Contudo,o organismo pode recorrer a uns ou a outros, con-forme a disponibilidade de momento. Assim, umadeterminada sequência de estados tanto pode serdesenvolvida a partir das entradas fornecidas peloambiente livre, como da interacção com os outros oudos signos produzidos por si-próprio. A sequênciadas entradas sucessivas de uma árvore e um fruto,de modo a passar da curiosidade ao desejo (do fruto,evidentemente), tanto pode ser determinada pelaexistência daqueles elementos no quintal, como daspalavras escritas ou ditas por outrem, como de

movimentos corporais que os simbolizem. Estasalternativas permitem uma certa estabilidade do

comportamento, nomeadamente nas crises demudança de territórios ou de vínculos pessoais.

Vimos também como estas entradas alternati-vas dependem da aprendizagem que, por um lado,amplia cada subconjunto de entradas relevantes paracada transição de estado, e por outro selecciona assaídas que proporcionam determinadas transiçõesfuturas. Deste modo, a aprendizagem influencia asprobabilidades de transições, tomando-as mais rígidas

enquanto os estados se tomam menos tensos. E vimosainda como este facto pode dar origem ao apareci-mento de estados complexos a vários níveis.

Objectivos do presente estudoNum dos artigos anteriores foram dadas definições

de comunicação ede equivalência de estados. Nesteartigo, que versa o tema da comunicação, vamostentar definir operacionalmente os principaisconceitos da fenomenologia, dentro do quadro dereferência que propusémos. Avançaremos ainda naoperacionalização de alguns outros conceitos que ospsicólogos utilizam, supondo eles erradamente que asua definição é consensual e desnecessária.

Cremos que, no final, ficará esboçado um subcon-junto de definições que combina alguns elementoscomuns, a partir dos quais, em combinações diferen-tes, se poderá obter o conjunto das definiçõesnecessárias ao nosso entendimento. Esta últimatarefa será apenas indiciada, constituindo umdesafio a futuros desenvolvimentos.

PRESSUPOSTOS

Equivalência de estadosA ideia de que o organismo pode ser visto como

um sistema dotado de estados, assenta na constataçãode que os estados se podem repetir, ou seja, podemaparecer como idênticos nas suas ocorrências aolongo do tempo. A sua identidade, tal como defini-mos, baseia-se na identidade de variáveis que sepodem medir. Se este facto serve para os estadoselementares no mesmo sistema, já se toma maisproblemático para os estados complexos, sobretudose os tivermos de comparar entre dois sistemasdiferentes, como pode ocorrer durante a comuni-cação. O mesmo acontece, como vimos, quando setenta verificar a identidade de estados do mesmosistema mas que sejam determinados por ecossis-temas diferentes.

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oComportamento como sistema de estados

No caso dos sistemas codificados de comum-cação, em que cada signo seja unívoco quanto aoseu significado, poderiamos definir como estadoequivalente aquele que admitisse as mesmas entra-das, cada uma das quais promoveria as mesmastransições. Contudo, para definir estas últimasteriamos de entrar em linha de conta com os novosestados resultantes das transições e com as suasrespectivas entradas e novas transições, etc.. Poroutras palavras, teriamos de conhecer a estrutura(representada pelo diagrama) da matriz ou subma-triz de transições.

Por outro lado, um estado complexo pode serigualmente representado por uma submatriz ou peloseu diagrama. A identidade deste diagrama com o deoutros estados complexos pode constituir uma parteda definição de equivalência. Não vemos que sejapossível outra definição de equivalência para acomunicação dos sistemas vivos, interferidos poruma aprendizagem diferente, a qual amplia paradiferentes elementos (p. ex. por efeitos de línguasdiferentes) os subconjuntos de entradas relevan-tes. Por maioria de razão, o mesmo acontecerá paraa comunicação entre sistemas de diferente consti-tuição e natureza.

À falta de melhor, tudo nos leva a crer queteremos de nos contentar com esta definição parcial,não obstante a ambiguidade que ela pode trazer.Suponhamos, por exemplo, as seguintes sequênciasde estados em dois sistemas diferentes:

A: 1-2-3-2-3-4-1-2-5-2-1-4-1-2-5-2-5-2-1-4-1-4-1-2-1-2-5-2-1-4-1-4-3.

B:1-2-3-4-5-4-3-2-3-4-5-4-5-4-3-2-3-2-3-4-3-4-5-4-3-2-3-2-1-4-1-2-3.

Cada uma destas sequências pode se representadanas tabelas de frequência da fig.1 e na PTA da fig.2

Da análise destas matrizes, resulta que a maiorparte dos estados tem transições rigidas ou semi--rigidas, pelo que o estas sequências podem corres-ponder a estados complexos. O observador mais

A: U E2 c: E4 E:.iS ~;on)a

El 5 5 10E2 A - 2 - A 10E3 - 1 - 1 - 2E:.A .5 - 1 - - 6

ES - 4 ASom '3 io :3 6 4 :32

e: El E2 E:3 E4 E5 SomaEl .. :2 - 1 :i

E2 1 - 6 7E3 - .5 - 4 9

E4 1 - 4 - 4 9E5 - - - 4 - 4Som 2 7 10 9 4 32

FIG.!. Tabelas de frequência de transições em 2sistemas

41

A: El E2 E':t E4 ES Var , B: El E2 E3 E4 ES Var."El - .5 .5 s E1 "7 - .3 - .7E2 .4 - :2 - .4 4 E2 1 9 - .9E:3 - .S .5 .S E:3 - .6 .4 6E4 .8 - 2 .::: E4 .2 .4 - 4 .4E.S - 1 - 1.0 ES .. - 1 1.0~;m I.2 20 .4 io ,4 Sorfl .::: 1.;3 12 lJ .4

FIG.2. Matriz de PTE de dois Sistemas

atento pode finalmente notar uma similaridade entreestados diferentemente numerados de cada um dossistemas, o que se toma mais patente ao desenhar orespectivo diagrama (fig.3):

FIG.3. Diagramas de transições de estados em 2sistemas sistemas

Constatando então que os respectivos diagramas. (ou a estrutura de relação dos estados) são idênticosou, pelo menos, se aproximam [2], podemos dizerque os estados complexos detectados por cada umadas sequências se equivalem. Esta asserção implicaque os respectivos estados elementares tambémtenham equivalência termo a termo, no caso pre-sente, E1a<=>E3b, E2a<=>E4b, E3a<=>E1b,E4a<=>E2b e E5a<=>E5b.

Definimos então estados equivalentes em cadanível de complexidade quando:

1. (Em função do nível inferior): Os estados sepuderem descrever por submatrizes idênticas ouaproximadas, ou seja, se tiverem a mesma estrutura

de estados elementares.2. (em função do nível superior): Cada um dos

estados mantiver idênticas relações probabilisti-cas de transição com os estados que o rodeiam(cujo conjunto define um estado complexo de nívelsuperior)

Esta definição é generalizável a quaisquer doissistemas, mesmo que sejam de natureza diferente.Substitui pois com vantagem a noção comum de queos estados se equivalem se manifestarem: (a) entra-das comuns aos subconjuntos de entradas relevan-tes tomadas termo a termo ou (b) identidade deparâmetros específicos mensuráveis. Em certas apli-cações práticas bem delimitadas, como a determi-

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nação dos estados dentro de cada ecossistema, ou noecossistema interactivo de sistemas idênticos (comono caso da linguagem), estas últimas podem ser úteise suficientes.

o paradigma da comunicação.Dotados desta definição de equivalência, pode-

mos então considerar a comunicação de dois sis-temas, mesmo que de conformação diferente, con-tando que eles funcionem (e se possam comunicar)nos mesmos níveis de complexidade. Consideremosentão o sistema emissor A e o receptor B. Entre eles,veiculados por um canal, existirão objectos, formasou sinais, que correspondem a entradas. Estas podemvir do ambiente natural para actuar, quer em A, queremB (ecossistema territorial ou livre, que designara-mos por l), podem corresponder a saídas de A paraactuarem em B e vice-versa (ecos sistema interactivoou comunicacional - c - caso este em que elas corre-spondem a mensagens - M), ou saídas de A paraentrarem emA ou de B para B (ecossistema interiorou fantasioso -f). O resultado, em todos os casos eem cada um dos sistemas, é uma sequência deestados il...in. Cada estado, i, pode ser afectadocom os índicesI, c ou f, segundo o ecossistema porque é determinado.

Estamos assim a aceitar que uma vivênciacorresponde a uma determinada sequência de esta-dos, independentemente dos ecossistemas que osdeterminam, e que as vivências se podem comuni-car através da mensagem, a qual, sob certascondições, desencadeia noutro sistema uma sequênciade estados equivalente. De qualquer modo, a estru-turação dos estados e suas transições dependem daaprendizagem individual que em princípio será

diferente para cada sistema. Portanto, fora dacomunicação ou da aprendizagem comum, asvivências de cada sistema não são equivalentes.

DEFINIÇÕES

Intenção e significadoIntenção e significado são conceitos correntes,

cujos antagonismos e convergências lhes determi-naram um lugar central na fenomenologia. De comum,têm o facto de ambos se poderem situar na con-sciência do sujeito. De antagónico têm a característicada intenção se dirigir do sujeito para o objecto,enquanto que o significado se dirige do objecto para

o sujeito. De acordo com Satre [4], a intencionali-dade, no sentido da necessidade que a consciênciatem de existir como consciência de alguma coisa foradela, é uma das idéias fundamentais da fenomenolo-gia de Husserl. Este conceito, implica porém umpropósito fora dele: "intenção é a propositabilidadeque emerge da reflexão" [5]. Quanto ao significadoque, para Sartre [6], caracteriza os fenómenos con-trapostos aos factos, ele implica uma relação com aactividade do sujeito: "o significado implica aminha união com o objecto", e "intuir intencion-almente é orientar o ver e dar um significado" [7].Intenção e significado são pois indissociáveis para osfenomenologistas.

Em termos do paradigma da comunicação, ondeexistem dois sujeitos, cada um dos quais é, para ooutro, um objecto, podemos assentar consenso nasseguintes definições:

INTENÇÃO: sequência de estados, antecipadano ecossistema interior de A, equivalentes àquelesque as suas saídas irão provocar em B.

SIGNIFICADO: é a sequência de estados provo-cada em B por determinadas entradas, que podemser as saídas de A.

Vemos assim que, numa comunicação bem con-seguida (ou adequadamente intencionada, ou ainda,onde se consegue equivalência no acto da intenção),a intenção em A é equivalente ao significado em B.

Nestas definições foi considerado o paradigrna dacomunicação do emissor-canal-receptor. Dadoporém que os sistemas podem ser de diferentenatureza, pode-se pôr a questão de A ou B seremanimais, máquinas, objectos-sistemas, o próprio ecos-sistema territorial, ou ainda o caso particular em queB seja A (na comunicação do indivíduo consigo

próprio). As definições de intenção e significadopodem valer para todos estes casos, com o que elasadquirem uma maior abrangência operacional efilosófica, nomeadamente em relação ao modo co-mo são conceptualizadas pelos fenomenologistas.Contudo, a condição para que a intenção se possaconsiderar, é que exista um ecossistema interiorsuficientemente flexível, estando fora do nossoâmbito saber se as máquinas ou os animais opossuem.

Transcendência ecompreensãoO grande contributo de Jaspers para a psi-

quiatria que, aliás, permitiu o trabalho de Kurt

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o Comportamento como sistema de estados

Schneider e de outros psicopatologistas clássicos[8], foi o de ter estabelecido em bases firmesa psicopatologia compreensiva. E foi sobre oconceito de compreensão que assentou, desde entãoaté hoje, toda a psicopatologia.

A compreensão corresponde, de acordo comJaspers "à intuição do psíquico adquirida pordentro", à "representação interior da vivênciamediante as autonarrações dos doentes" ou"à

percepção imediata do significado psíquico domovimento, gestos (mímica) e formas (físiog-nomia)" . "Não é possível. a compreensão psico-lógica sem que se pense em conteúdos, sem que seveja expressão, sem que se co-vivenciem osfenómenos vivenciados" [9). Trata-se portanto de,através das indicações e indícios que o outrofornece, colocar-se no seu lugar e vivenciar inte-riormente a continuidade e relações das suas ex-periências.

Mas colocar-se no lugar do outro é uma operaçãocomplexa que implica, numa primeira fase, a saídado seu próprio lugar, ou seja, "estar fora de simesmo, projectando-se e perdendo-se fora de si"[10]. É isto a transcendência, outro conceito chaveque a fenomenologia nos trouxe e que a psicopatolo-gia aproveita. Na mesma linha, Konrad[l l] con-sidera que o transtorno fundamental da esquizo-frenia consiste na "incapacidade de mudança dospontos de referência" de modo que "o eu não podedeixar de continuar a ser o centro do mundo" , o queé outro modo de designar a incapacidade de trans-cendência.

Sendo assim, podemos definir:TRANSCENDÊNCIA: capacidade para organi-

zar, através do ecossistema interior, matrizes de

transição de estados diferentes da que se formam apartir dos outros ecossistemas.

COMPREENDER: produzir, através do ecossis-tema interior (de B), uma sequência de estadosequivalentes aos produzidos pelo outro (A) a partirde todos os seus ecossistemas, independentementedo tipo e sequência de saídas que este último for-

nece.Tal como as definições anteriores, estas últimas

baseiam-se no paradigma da comunicação, sendogeneralizáveis para quaisquer dois sistemas comu-nicantes, incluindo um deles consigo próprio. Dequalquer modo, deve-se entender que nem todoseles possam executar estas operações que

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pressupõem, por um lado, a existência de umecossistema interior bastante desenvolvido e flexível,por outro, um certo grau de semelhança ou, pelomenos, empatia.E' pois possível que, com estanota, não se fira demasiado o humanismo dos filó-sofos existencialistas.

Outras definiçõesAs 4 operações definidas têm relação de seme-

lhança com algumas outras correntemente descri-tas na linguagempsicológica, Já falámos de empa-tia, mas podemos ainda falar em recordação, imi-tação, identificação e projecção. Para evitar con-fusões, vamos defini-las de imediato, sempre baseadosno paradigma da comunicação do emissor(A) como receptor (B):

EMPATlA: Consiste na ligação entre dois sis-temas de tal modo que B maximiza, como suasentradas relevantes, todas as saídas de A. Nestecaso, o sistema receptor, o que empatiza, estará afuncionar a partir do ecossistema interactivo.

Esta definição pode ser generalizada a quaisquer2 sistemas, desde que um deles possa funcionar noecossistema interactivo. E' o caso de um vulgaremissor e receptor, desde que entre cada um deles eo canal esteja intercalado um codificador e umdescodificador. Se eles funcionarem adequada-mente, diz-se que o receptor está sintonizado. Massintonização é também um termo que, por analogia,se pode empregar em vez de empatia.

RECORDAÇÃO: Desenvolvimento de uma se-quência de estados equivalente a uma sequênciaanterior do mesmo sistema, sendo que, pelo menosa partir de algum ponto desta operação, o sistemapassa a funcionar a partir do meio interior. Comefeito, alguma repetição de entradas externas nospode fazer recordar, mas a recordação é umprocesso interior que se sobrepõe ao meio externo.

IMITAÇÃO: Desenvolvimento, por parte do sis-tema B, de uma sequência de estados equivalente àde A, independentemente do ecossistema a partir doqual este último funcione, mas incluindo a pro-dução das mesmas saídas para o meio externo, eportanto as mesmas interacções com o ecossistematerritorial. A imitação não implica simultaneidademas, ao contrário da compreensão ou mesmo darecordação, não é uma operação interior, podendomesmo aceitar-se que a vivência interior lhe nãocorresponda. Pelo contrário, a interacção equivalente

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com o meio exterior é necessária e suficiente para quese possa considerar um processo de imitação.

IDENTIFICAÇAO: Utilização, pelo sistema B,de uma matriz de transições tendencialmente igualà do sistema A.A identificação é assim um processoque, ao contrário da imitação, implica umaequivalência total, e portanto o envolvimento domundo interior.

PROJECÇÃO: Desenvolvimento, a partir doecossistema interior de B, de sequências de estadosequivalentes às que são desenvolvidas a partir dosseus próprios ecossistemas, mas às quaiséatribuídoo significado (e a intenção) de compreensão. Aincapacidade de transcendência (por exemplo, dosesquizofrénicos) leva a que todos os esforços decompreensão redundem em projecção.

VISÃO DE CONJUNTO

Pode verificar-se que nas definições anterioresexistem elementos comuns que poderemos traduzirpor símbolos. Chamaremos SA à sequência de estadosdo emissor, cujas saídas constituem uma men-sagem -M - codificada ou não, que por sua vezimplica uma sequência de estados do receptor, a quechamaremos SB. Cada uma destas sequências podeser determinada por entradas provenientes do meiointerior ou fantasioso, a que corresponderá o índicej, do meio territorial ou livre, que será designado porI, ou da interacção de outros sistemas, que indicare-mos por c. Em muitas situações, essa sequênciapode ser determinada conjuntamente por váriosdestes ecossistemas, pelo que indicaremos os índicesem questão separados por vírgulas.

Este último aspecto toma-se importante dada a

circunstância especial das sequências de estados apartir do meio interior se poderem tomar indepen-dentes das outras, circunstância esta que designámospor transeendência. Independentemente da suagé-nese ou explicação, a transcendência é uma cons-tatação fenomenológica básica sobre a qual assentatodo o edificio psicopatológico. De resto, a consta-tação da independência do mundo interior faceàs vivências reais é uma experiência comum e queum psicopatologista pode observar nos estados de-lirantes, nas vivências fantasiosas dos esquizóidesou nos estados dissociativos. Está por saber até queponto a concentração transcendental sobre um ob-jecto não é, ela própria, um estado dissociativo.

A este respeito, os estados determinados pelosistema interactivo ou comunicacional têm umaposição intermédia, de que a leitura de um livropode ser um exemplo limite e indescirnível sobre asua pertença ao meio interior ou interaccional. (Defacto, um livro pode pertencer ao espaço privado doindivíduo, e ser escolhido por ele, ou então ser umprolongamento da interacção com outros). Parasimplificar, vamos em princípio considerar o meioda interacção com os outros, no contexto do qual seformam vínculos, como fazendo parte das vivênciaterritoriais, indissociável portanto deI mas disso-ciável, outrossim, def

Sendo assim, e voltando ao paradigma da comu-nicação e ao sistema emissor,A, este pode funcionar,segundo os casos, em função do meio interior,(j), emfunção do meio ambiente, incluindo o ecossistemainteractivo e/ou territorial, (e,l), ou de todos eles,(f,e,l). A sua sequência de estados tem assim 3alternativas - SA(j), SA(e'l) e SA (f,c,l) - que podemcorresponder respectivamente às atitudes decomunicação, exibição e expressão [12]. Devenotar-se que a existência de comunicação não de-pende do funcionamento de A a partir do ecossistemainteractivo, já que qualquer estado implica saídas eestas, codificadas ou não, constituem a mensagem.

Já quanto ao sistema receptor,B, pelo menos osseus estados iniciais serão determinados pela men-sagem do emissor. Portanto, ele funcionará, pelomenos parcialmente, mas em todos os casos, a partirdo ecossistema interactivo,(c), independentementede poder desenvolver outras sequências a partir domeio interior(j) ou livre (l). Para simplificar, vamosapenas considerar as alternativas em que, sendocomunicado, ele pensa - SB(e,j), actua - SB(c,!), ou

faz ambas as coisas - SB(c,f,l).

Da combinação de cada conjunto de 3 alterna-tivas, resultam 9 expressões que passamos a enu-merar:(1) SA(f) => M => SB(e,j)(2) SA(f) => M => SB(c,l)(3) SA(f) => M => SE(e,j,!)(4) SA(c,!) => M => SB(c,j)(5) SA(c,!) => M => SB(c,I)(6) SA(c,l) => M => SB(e,j,I)(7) SA(f,c,!) => M => SB(e,j)(8) SA(f,c,l) => M => SB(c,l)(9) SA(f,e.l) => M => SB(e,j,I)

(entendimento)(obediência)

(observação)(imitação)

(compreensão)

(identificação)De acordo com as definições anteriores, estamos

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o Comportamento como sistema de estados

a lidar com os casos em que SB é equivalente aSA,o que pressupõe a existência de uma empatia sufi-ciente entre ambos os sistemas. Neste caso, podeverificar-se que as expressões (5), (7) e (9)correspondem às definições de imitação, com-preensão e identificação.

As expressões (1) e (2) são semelhantes, com adiferença que a primeira resulta num processopuramente interior, a que podemos chamar entendi-mento, e a segunda indica que B, de algum modo,interage com o ambiente de um modo equivalenteàintenção deA, pelo que podemos dizer queBobedece, independentemente de sobre isso podermanter alguma consciência critica. Já esta critica nãoocorre em (3), pela razão do seu pensamentointerior estar implicado na sequência de estadosequivalente à intenção deA; podemos então de-signá-la por obediência automática. Em (6) ocorreo mesmo no que respeita à imitação, pelo quepoderemos falar de imitação automática. Quantoàidentificação, o modo como a definimos corres-ponde à expressão (9), sendo (8) uma identifi-cação minorada e eventualmente crítica, maispróxima da imitação.

A expressão (4) foi definida como recordação nocaso particular de B ser A (na comunicação dosistema consigo próprio) e em tempos diferentes. Seo lapso de tempo fosse menor (e sempre existiráalgum desfasamento temporal nos processos comu-nicativos) poderiamos defini-la como auto-obser-vação. No caso de dois sistemas poderemos falarde observação (em tempos imediatos) ou de repre-sentação se o tempo for suficientemente grande.Em qualquer dos casos, a recordação passa semprepela observação.

Esta enumeração não pretende ser exaustiva,mas antes exemplificativa. Do mesmo modo quepodemos considerar a hipótese de A comunicarconsigo próprio, ou ainda introduzir um lapsotemporal, deixámos em aberto a possibilidade dealguma autonomia dos estados determinados pelo

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ecossistema interactivo. Outro problema seria aintrodução de intencionalidade nas várias atitudesdo sistema receptor, caso em que deveriamos intro-duzir entre Me SB uma sequência de estados - SB(/)- intencional, que antecipa, portanto, aquela queconstitui o seu significado.

Por exemplo, a compreensão intencional podeser expressa da seguinte maneira:

(10) SA(f,c,l) => M => SB(/) => SB(c,!),sendo (a) SB(f) <=> ((SB(c,j)<=>SA(fc,l)))Neste caso, e tal como está expresso, a intenção

de B antecipa a eqivalência entre a sequência deestados de B e de A. Já no caso da projecção, Bintenciona compreenderA, pelo que a equivalência(a) se mantem. Contudo, já que não há inde-pendência dos estados do ecossistema interior de B(não há transcendência), então SB(c,j)<=>SB(fc,l)e, desde que A e B tenham. experiências diferen-ciadas, só por um acaso muito improvável semanteria a equivalência entre os estados de A eSB(e,!). Sairia assim prejudicada a própria noçãode equivalência, com o consequente prejuizo daactividade intencional, da capacidade de tran-scendência, da empatia e da possibilidade de comu-nicação com outros sistemas [13].

Tal como se indica para o caso da projecção,podem ser introduzi das outras modificações nasfórmulas básicas anteriores, de modo a cobrir umlargo espectro de tipos de comunicação, adequadaou patológica, mas mesmo assim em número finito.Não será dificil colocá-los em relação com os chama-dos mecanismos de defesa do eu ou outrasmodalidades de comunicação que os psicólogosclínicos têm detectado empíricamente. Essa tarefafica por fazer, já que estas linhas constituem apenas

urna base de trabalho. Trabalho esse que consistiráem separar, delimitar, distinguir e descrever deter-minados fenómenos vividos o que, segundo Jaspers[14], é tarefa da fenomenologia e o primeiro passopara a apreensão científica do psíquico.

Summary• In addition to the previous analysis of behaviour as the organization of the whole of states that a

system can show, the author applies this conceptualization to the classical concepts ofphenomenology,in order to a1- 'fter definition, separation and arrange of clinical psychological phenomena.

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NOTAS BIBLIOGRÁFICAS

[1]-PIO ABREU J L - O Comportamento como Sistema de Estados. I-Generalidades e Operacionalização;lI-Aprendizagem e Estados Complexos, Psiquiatria Clínica,1990(4).

[2]-É possível conceber testes matemáticos que definam a probabilidade de significação das equivalênciasou diferenças. Do mesmo modo, não será dificil adaptar a estes casos a noção quantitativa de ruído eredundância, tal como Shanon concebeu para a teoria matemática da comunicação. (SHANNON C E,WEA VER W - The Mathematical Theory of Communication, 1949, Trad. esp. de T B Machado: TeoriaMatematica de la Comunicacion, Ed. FOIja, Madrid, 1981.)[3]-Esta noção de equivalência fora definida no II artigo desta série.[4]-SARTRE J-P -SituationsI, L Gallimard, 1947. Trad. porto de R.M.Gonçalves:SituaçõesI, Europa--América, 1968.[5]-JASPERS K - Allgemeine Psychopathologie, 9a. aufl, Springer Verlag, Berlim. Trad. porto de S P Reise P C Rzezinski, Psicopatologia Geral, Livr. Atheneu, R. Janeiro, 1987, pp.420.[6]-SARTRE J-P. - Esquisse d'une Théorie des Emotions. Trad. Porto de A.P.Femandes: Esboço de umaTeoria das Emoções, Ed. Presença, Lisboa, 1965.[7]-FERREIRA V. - Da Fenomenologia a Sartre. Prefácio ao livro de J.P.Sartre, O Existencialismo éum Humanismo, Presença, Lisboa, 1964,p.27[8]-A este propósito veja-se o livro de PICHOT P - Un Siecle de Psychiatrie, Ed. Roger Dacosta, Paris,1983. Trad. porto de A M C Sousa, Ed. Roche, Lisboa, 1984.[9]-JASPERS op. cito pp. 42 e 368-373[10]-SARTRE J P - L 'Existencialisme est un Humanisme, Ed. Nagel, Paris. Trad. porto de V. Ferreira,Presença, Lisboa, 1964, p.293.[ll]-KONRAD K - Die Beginnende Schizophrenie Versuch Einer Gestaltanalyse Des Wahns, GeorgThieme Verlag, Stuttgart, 1958. Trad. esp.: La Esquizofrenia Incipiente. Intento de un Analisis de la Formadei Delirio, Ed. Alhambra, Madrid-Mexico.[12]-0 quarto capítulo da obra de Jaspers, que inclui os "factos objectivos significativos" é dividido em3 secções que correspondem a estas atitudes. Os seus subtítulos são: Psicologia da Obra (que inclui osresultados da comunicação humana), Psicologia do Mundo (no sentido de mundano ou fisiognómico, de actose comportamentos que exprimem o perimundo) e Psicologia da Expressão. JASPERS K, op. cit., pp.305-360.[13]-Algum componente projectivo existe sempre na comunicação normal e,junto com a identificação, elepode fazer parte dos vínculos interaccionais e da aprendizagem interior. Sob o nome de identificaçãoprojectiva, Bion descreve o processo pelo qual A aceita identificar-se com a projecção de B (feita deelementos 13 não consciencializados) e, depois de transformados por processos fantasiosos, os devolve

a B na terceira transacção, tomando-os finalmente aceitáveis sob a forma de elementosU. Ver DIAS,C A - Para uma psicanálise de Relação, Ed. Afrontamento, Porto, 1988.[14]-JASPERS, op. cit., pp.39-40.

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Psiquiatria Clínica,12 (1) pp. 47-53, 1991

ARTIGO ORIGINAL

Métodos de descentração e confronto em terapias cognitivo-comportamentais

Estudos de caso

PORJOÃO D' OLIVEIRA CÓIAS'.e FERNANDO EDILÁSIO POCINH02

Os autores apresentam os princípios teóricos e metodológicos de alguns procedimentos clínicos demodelo Cognitivo-Comportamental, salientando a sua pertinência terapêutica.

Atendendo a que as perturbações emocionais apresentam uma dimensão plurissintomática, verifica--se cada vez mais a necessidade de adopção de uma atitude terapêutica multidimensional.

No presente trabalho, os autores dão alguns exemplos clínicos em que foram utilizadas estratégias deDescentração e Confronto. '

INTRODUÇÃO

Vários autores têm salientado a importância ecomplexidade que existe entre a linguagem, o pensa-mento e as acções.

De acordo com Meichenbaum (1977), o «discursoprivado» surge como um factor efectivo do compor-tamento, assumindo um papel de auto-regulação capazde determinar respostas adaptativas.

Bandura em 1969, salientava o crescente interesseno estudo dos processos mediacionais de naturezacognitiva, e sua relação com os transtornos do com-portamento.

Vaz Serra e col. (1988), comprovaram que um

adequado sentido de auto-eficácia possibilita a re-dução activa de circunstâncias indutoras de stress.

. Assim, um indivíduo não responde ao ambiente real,mas ao modo como o percebe e avalia (Mahoney,1974).

Mahoney refere que a capacidade de precederadequadamente as consequências das nossas acçõesequivale a uma capacidade mediacional adaptativa, o

que nos remete para a importância do significado dasconsequências antecipatórias.

Neste sentido, as Terapias Cognitivas dão granderelevo à influência dos processos mediacionais(cognitivos e emocionais), na regu1ação do compor-tamento. Elas surgem como um aperfeiçoamentonatural e inevitável das Terapias Comportamentais,«...rejeitando o automatismo do reforço e da continui-dade simples entre processos internos e externos einclusão de mecanismos cognitivos nas explicaçõesdo desenvolvimento da perturbação, assim como daprópria terapia» (Joyce-Moniz, 1981).

De acordo com Marshall (1982), qualquer modeloteórico que procure uma explicação para um problema

particular do comportamento, necessita ter em contaa complexidade dos diversos factores intervenientes.Aquele autor refere ainda que grande parte dos in-sucessos na avaliação e na mudança terapêutica, re-sultam de uma abordagem excessivamente molecu-lar, valorizando apenas uma ou outra variável docomportamento, sem considerar os factores nãoespecíficos envolvidos na própria relação terapêutica.

* Texto de Comunicação apresentado ao II Encontro Ibérico de Terapia do Comportamento, realizado em Cadiz, de

1 a 4 de Novembro de 1989.

PsicólogolPsicoterapeuta - Professor de Psicologia da Escola de Enfermagem de Francisco Gentil - Lisboa

2 Psicólogo - Clínica Psiquiátrica dos Hospitais da Universidade de Coimbra

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48 João d' Oliveira Cóias e Fernando Edilásio Pocinho

A prática clínica tem demonstrado a dimensãoplurissintomática das perturbações emocionais, querpela variabilidade do funcionamento individual querpela dessincronia dos transtornos mediados pelaansiedade, verificando-se a necessidade de uma ade-quada avaliação combinada com uma terapêuticamultifacetada que inclua os aspectos seguintes:

Comportamentais - alterações funcionais nasrespostas do indivíduo, que por isso se manifestaminadequadas;

Cognitivos - alterações no modo como o indivíduopensa e sente a sua relação com o meio ambiente, econsigo próprio;

Fisiológicos - alterações neurovegetativas regula-das pelo Sistema Nervoso Autónomo.

Sob o ponto de vista Cognitivo-Comportamental,o tipo de interpretação que o indivíduo faz da reali-dade, sendo disfuncional, desadequado faceà situa-ção, pode induzir stress e causar alterações no modocomo responderá mais tarde ao meio.

Lazarus e Folkman (1984), referem que a análisedo modo comoO indivíduo percepciona a importânciaque têm as situações para o seu bem estar, possibilitaa compreensão de certos processos psicológicos.

Por sua vez, também as consequências, ou o tipode respostas do meio face ao próprio indivíduo (porexemplo, insucesso no estabelecimento de relaçõesinterpessoais gratificantes), são susceptíveis de in-duzir alterações nas suas crenças, expectativas eatribuições.

Com excepção dos casos clínicos em que numaAnálise Funcional se identificam claramente os com-ponentes do problema, verifica-se a necessidade de

adopção de estratégias terapêuticas de modelo Cog-nitivo.

Em vários casos, aparentemente mono-sintomáti-cos (por exemplo, fobias a elevadores ou a altitudes),temos observado uma tendência para se manifes-tarem alterações disfuncionais nas formas como oindivíduo se relaciona com os outros. Por outro lado,grande parte da sua vida acaba por ser comprometida,

passando por generalização, a emitir respostas sis-temáticas de evitamento em novos contextos situa-cionais.

Desta forma, enquanto factor facilitativo da própriaterapêutica, toma-se útil avaliar o Auto-Conceito,dada a sua importância na manifestação de compor-tamentos inadequados (Vaz Serra, 1986), bem comoa Percepção do Controlo Cognitivo e Comportamen-tal, na relação com o meio (Pocinho e Cóias, 1988).

Tem-se revelado significativo o recurso a métodosde Descentração (sair do próprio ponto de vista eadoptar ou aderir a pontos de vista alternativos) e deConfronto com outras realidades capazes de desen-volver mecanismos de Coping.

As Terapias Cognitivas de índole racionalista,acentuam a pertinência da apresentação/construçãode um racional que explique a interdependência entreas cognições, os afectos e as atitudes, salientando aimportância das primeiras na modificação das últi-mas. Porém, isto implica que o indivíduo seja capazde:

- tomar consciência das suas auto-verbaliza-ções;

- compreender o que são os pensamentos;- perceber-se como produtor e modificador ac-

tivo de si próprio, tanto ao nível cognitivo(pensamentos e sentimentos),como compor-tamental.

Várias metodologias verbais de Auto-Conheci-mento, Descentração e Confronto, podem ser utili-zadas para se atingirem os objectivos referidos. Dasque nos parecem ter maior impacto, destacamos três,que são simultâneamente técnicas verbais e imagéti-cas (Descentração Imagética), de Role-playing(Cadeira Vazia) e de Dramatização (Confronto face

ao Espelho).*DESCENTRAÇÃO E CONFRONTOFACE AO ESPELHO

A utilização do espelho em Psicoterapia permiteao paciente a tomada de consciência dos seus pensa-mentos, de um modo dramatizado:

- falar consigo próprio;

*As técnicas de Descentração Imagética e de Dramatização foram-nos apresentadas pela primeira vez pelo ProfessorJoyce Monizno âmbito do Curso deFormação emPsicoterapia, organizadopela APTCC, emLisboa, e queum dos autoresteve a grata oportunidade de frequentar. Estas técnicas foram posteriormente apresentadas no «First European SummerSchool of Cognitive Therapy», que teve lugar em Lisboa no verão de 1988.

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Métodos de descentração e confronto em terapias cognitivo-comportamentais

- falar com os seus «botões»;- verbalizar o que lhe vem á cabeça, quando se

olha ao espelho ... «o que gostaria de lhedizer?», etc ...

Os exemplos anteriores referem-se a estratégiasque facilitam a descentração e confronto com as auto-verbalizações (pensar em voz alta), verificando apartir do «feedback» do espelho, as eventuais al-terações emocionais (não verbais).

Como técnica de Descentração, o indivíduo devefalar para o espelho na segunda pessoa (como obser-vador de si próprio), por exemplo:

- «Como descreve a pessoa que vê no espelho(olhando-se de fora)? ...»;

- «O que gostaria de lhe dizer? ...»;- «Como gostaria de a descrever (self-ideal) ...».

Como técnica de Confronto permite ao indivíduoouvir o que pensa (self-talk), e ver-se a verbalizar osconteúdos do seu pensamento,através da expressãodramática, permitindo desencadear a confrontaçãocom as suas emoções (Joyce-Moniz, 1988 b).

Neste sentido, o' confronto dramatizado podeocorrer de duas formas distintas:

a) «Pensar em voz alta» face ao esplho (por exem-plo: «Hoje não me correu bem o dia ...»);

b) Estabelecer um distanciamento entre a pessoa ea sua própria imagem (por exemplo: «Hoje o dia nãote correu bem ...»ou ainda: «Quando olho para ti sintouma grande tristeza. Antigamente eras diferente,pensavas de outra maneira ...»),

A utilização do espelho, como de uma qualquertécnica, deve ser precedida de um racional que enfatize

a importância dos aspectos seguintes:- Falar em voz alta;

- Pararpara pensar;- Atender à vantagem que pode constituir o

«representar-se de forma dramática» (enquantofacilitador ou desencadeador);

- Ver-se a representar o seu próprio papel;- Compreender a interligação entre as cognições,

as emoções e os comportamentos;- Confrontar-se consigo mesmo, facilitando a

(re)descoberta de novas formas de pensar,sentir e agir, modificando as cognições distor-cidas ou disfuncionais.

O terapeuta deve dar algum tempo ao indivíduopara se olhar no espelho, com o objectivo de ohabituar ao papel de representar-se a si mesmo.

49

Contudo, nem sempre o auto-confronto (olhar-seno espelho e falar para ele) na presença de outra(s)pessoa( s) é tarefa fácil. Muitas vezes, a dificuldade oua excessiva facilidade manifestadas no processo deconfrontação podem ser indicadores de estados psi-cológicos característicos de sintomatologia clínica:

- O indivíduo que não é capaz de se olhar noespelho, ou que apresenta um «olhar fugidío»,ou que sente dificuldade em olhar-se nos olhos,etc., pode constituir a expressão dramatizadade um Auto-Conceito empobrecido;

- O indivíduo que dramatiza ou «simula», comexcessiva facilidade, pode eventualmente ser aexpressão dramatizada de uma pessoa que vivea representar (simular) com igual facilidade navida do dia-a-dia.

As sessões devem ser gravadas, para que numafase posterior, terapeuta e paciente possam ouviratentamente o registo (feedback) e comentá-lo, po-dendo o terapeuta assumir uma atitude menos direc-tiva, se o objectivo é permitir ao i ndivíduo a auto--reflexão, ou mais directiva se o objectivo é propor-cionar uma confrontação activa com os seus pensa-mentos, crenças e sistemas de significação.

O indivíduo deve ficar sentado face ao espelho (aimagem pode ser completa ou mostrar apenas a partesuperior do corpo).

O terapeuta após fornecer as instruções pode reti-rar-se da imagem, saindo do campo visual do paciente,ou ficar atrás dele, dependendo dos objectivos tera-pêuticos e das características comportamentais doindivíduo.

Finalmente, o terapeuta deve funcionar na faseinicial como modelo da aplicação da técnica, tendocontudo o cuidado de não induzir conteúdosepecíficos.

As dificuldades como «não tenho jeito para isto»,etc., podem eventualmente ser a expressão de sinto-matologia clínica dominante, ou simplesmente umcomportamento de evitamento ou de defesa.

DESCENTRAÇÃO E CONFRONTOPOR CADEIRA VAZIA

Trata~se de um conjunto de exercícios de Role--playing em que o indivíduoé convidado a assumir,paralelamente, pontos de vista diferentes.

O terapeuta indica o papel que o paciente deveassumir quando se encontra sentado numa cadeira A,

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50 João d' Oliveira Cóias e Fernando Edilásio Pocinho

bem como o papel que deverá assumir quando estiversentado numa cadeira B.É pedido ao indivíduo paraassumir diferentes papéis (Role- Taking), de modo afacilitar a descentração, face aos pontos de vistahabituais.

Na cadeira A, o indivíduo deve responder deacordo com o seu padrão habitual de comportamen-to. Na cadeira B, deve assumir o papel de um in-divíduo com características diferentes, ou seja, repre-sentar o papel de alguém que apesar das suas difi-culdades tenta lidar adequadamente com as situações,ou ainda, assumir o papel da pessoa que gostaria deser na vida real.

Assim, o indivíduo é levado a dialogar consigomesmo quando assume e desempenha os diversospapéis, comportando-se de modo diferente, face aperspectivas e conceitos alternativos.

O terapeuta pode assumir duas posições comple-mentares (não directiva versus directiva), em funçãodo caso clínico e dos objectivos da sessão terapêutica.

Ao adoptar uma atitude não directiva, o terapeutalimita-se a sugerir o papel que o paciente deve as-sumir, em cada uma das cadeiras. Optando por umaatitude mais directiva e de confronto, o terapeutadeverá intervir quando necessário, levando o pacientea confrontar-se com as dissonâncias percebidas entreas interacções comportamentais e os seus própriosrecursos (como se introduzisse uma terceira cadeira -C, confrontante em relação às primeiras).

Tal como na técnica anterior, também aqui o tera-peuta pode servir de modelo, exemplificando pormen-orizadamente a metodologia e explicando os objecti-vos do exercício (Racional).

Muitas vezes, o paciente parece verbalizar o que oterapeuta «deseja ouvir», dirigindoo discurso numdado sentido sem que isso corresponda a uma modi-

ficação dos conteúdos cognitivos (evitamento cogni-tivo). O terapeuta deverá por isso variar de modosistemático o tipo de confronto (oadvogado do dia-bo»), evitando-se assim o risco do paciente verbalizaro que não sente e/ou pensa.

EXERCÍCIOS IMAGÉTICOSDE DESCENTRAÇÃO E CONFRONTO

Parece haver alguma convergência no sentido deconsiderar a Imagética como uma estratégia funda-mental em Psicoterapia.

Este tipo de exercício, efectuado durante um es-tado de relaxamento profundo, pode ser utilizadocomo estratégia de Descentração, tendo em conta osdois aspectos seguintes:

a) Pensar e imaginar como os outros lidam, ou secomportam em dada situação, e modelar esse tipo derespostas, ou simplesmente comparar o seu estilocomportamental com outros mais funcionais ou adap-tativos (Bandura, 1986).

Por exemplo, pode solicitar-se ao indivíduo paracomparar os seus pensamentos, atribuições, atitudes,etc., com as de outras pessoas que não manifestam omesmo tipo de dificuldades. Ou ainda, levar o in-divíduo a avaliar as vantagens e desvantagens de secomportar desta ou daquela forma, comparativamenteàs vantagens e desvantagens de emitir um padrão decomportamento idêntico ao que observa na maioriadas pessoas (maioria abstracta).

De igual modo, pode ser lançada a questão: «Comodesejaria comportar-se?» ou «Comoéque os outrossignificativos lidam em situações semelhantes?».

O indivíduo não só é levado a descentrar -se, isto é,a sair do seu ponto de vista para avaliar e imaginarcomo os outros pensam e agem, como também ésubmetido a processos de modelagem coberta.

O terapeuta pode assumir uma atitude mais direc-tiva, sugerindo algumas alterações, ou eventualmenteservindo de modelo terapêutico. No entanto, ele podetambém adoptar uma atitude não directiva, limi-tando-se apenas a orientar a tarefa, sem intervir nopróprio conteúdo imagético.

b) Pensar e imaginar como se vê no passado, ou emoutras situações, procurando avaliar e/ou discriminar

entre pensamentos e comportamentos mais estáveisversus instáveis, ou mais funcionais versus disfun-cionais.

Adicionalmente o indivíduo é orientado no sen-tido de pensar e imaginar o modo como gostaria de sever, ou comportar (self-ideal), face ao modo como sevê e se comporta (self-real).

Tal como acontece nas técnicas anteriores, o tera-peuta deve explicar de modo claro e simples a finali-dade deste método, podendo eventualmente gravaros exercícios em audio ou vídeo (para posteriorfeedback), com o objectivo de comentar e regular ascrenças e sistemas de significação do paciente.

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Métodos de descentração e confronto em terapias cognitivo-comportamentais

CASO 1

Senhora de 23 anos de idade, solteira, 9° ano deescolaridade, com poucos amigos e obesa, recorreuá

consulta apresentando as seguintes queixas: pensa-mentos «esquisitos», ideias fixas e repetitivas em queo tema dominante consistia no desejo intenso demanipular os órgãos genitais de bébés e crianças detema idade, e que a paciente denominava como«ideias sobre violação de crianças».

Na avaliação realizada apresentou um estadodepressivo (BDI=37), baixo auto-conceito e umconjunto de crenças irracionais oriundas de umaeducação rígida, de cariz convencional e conserva-dor.

Trata-se de um caso com vários componentessintomáticos, tendo-se adoptado uma metodologia deintervenção Cognitivo-Comportamental.

Terapêutica

Foram utilizadas técnicas de modificação dodiálogo interno e da imagética (Guidano e Liotti,1983): a paciente aprendeu a antecipar as ocorrênciasdos pensamentos intrusivos de natureza obsessiva, aparar e a disputá-los, substituindo-os por outros alter-nativos e mais funcionais, bem como a modificar asimagens com conteúdos obsessivos.

No presente caso, foram utilizados os métodos deDescentração e Confronto que apresentámos, tendocomo objectivo:

I - Levar a paciente a verbalizar em voz alta os seuspensamentos e imagens obsessivas;

2 - Traduzir as imagens em palavras (descrever oque vê) e traduzir os pensamentos em imagens (imagi-

nar o que pensa);3 - Confrontar-se com os seus pensamentos,

dúvidas e crenças;

4 - Pensar, sentir e agir como outros ou como elaprópria desejaria (self-ideal).

Após quatro meses de procedimento intensivo,registou-se uma diminuição significativa na fre-quência, duração e intensidade das ruminações ob-sessivas. A paciente passou então a centrar-se namodificação de outros aspectos disfuncionais do seucomportamento, tal como a insatisfação profissional,abandonando o emprego e continuando os estudos.Decidiu fazer dieta, melhorando o seu auto-conceito,

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apresentando uma melhoria nítida no estado de humor(BDI=14).

Até ao momento (lO meses após o início da tera-pia), não se registaram modificações ou recaídas,sendo ainda acompanhada em regime de«follow-up».

CASO 2

Senhora de 45 anos de idade, casada, 4a classe,enviadaà consulta para avaliação e tratamento decomportamentos depressivos, complicados por umasituação de luto.

Queixava-se de frequentes crises de choro, sen-timentos de culpa, cefaleias, perturbações do sono,isolamento social e incapacidade na execução dastarefas quotidianas.

Os dados da observação clínica revelaram que amorte trágica de um familiar, parece ter constituído ofactor precipitante do seu estado depressivo, enquantoacontecimento vivenciado de modo traumático.

No entanto, um dos antecedentes significativos demaior impacto emocional encontra-se relacionadocom situações de ameaça, que constituíam umaofensa ao seu «bom nome» e à sua honestidade.

A injustiça da difamação, associada ao transtornoemocional induzido pela morte de uma pessoa signi-ficativa, criou condições para a sua descompensação.

Terapêutica

Como procedimentos clínicos foram utilizadastécnicas Cognitivo-Comportamentais, como os reg-istos diários de «Mestria e Prazer», segundo o modelode Beck (1976-1979), Exposição Imagética ao

acidente, Treino de Aptidões Auto-afirmativas (rela-tivamente à defesa do seu «bom nome») e resoluçãoda situação de luto patológico.

Adicionalmente a esta fase do tratamento, foramusadas metodologias de Descentração e Confronto,tendo como objectivos os seguintes aspectos:

1 - Modificar a percepção dos acontecimentos(interpretação idiossincrática).

2 - Confrontar-se com o seu estilo habitual depensar, sentir e agir, em situações indutoras destress.

3 - Modificar os pensamentos disfuncionais, adap-tando outros alternativos, mais adaptativos, realistas

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e incompatíveis com o desespêro aprendido (Selig-man, 1981).

Após o tratamento, que durou cerca de seis meses,houve uma melhoria nítida das estratégias de Co-ping, registando-se uma diminuição acentuada dospensamentos depressivos.

Actualmente, ainda em regime de «follow-up», apaciente mostra-se capaz de realizar as suas tarefasdomésticas, envolvendo-se em múltiplas actividadesque voltaram a ser gratificantes.

CASO 3

Senhora de 32 anos de idade, casada, Professorado Ensino Preparatório, recorreu à consultaqueixando-se de grande ansiedade no contacto comos outros, especialmente em relação às pessoas dosexo oposto.

Os dados da avaliação revelaram um conjuntodiversificado de problemas tais como: déficits decompetências sociais, ansiedade social elevada, sin-tomatologia depressiva, conflitos conjugais e, talcomo a paciente nos referiu, encontrava-se em «crisecom ela própria».

Terapêutica

Utilizaram-se no presente caso estratégias com-portamentais de controlo da ansiedade, didáctica ABC(antecedentes, pensamentos/crenças e consequentes)de tipo Elliano, bem como estratégias de Resoluçãode Problemas face à situção conjugal.

Foi ainda aplicado integralmente o Treino deAuto-afirmação, tendo em vista a aquisição de com-petências sociais.

No entanto, dez meses após o início do tratamento,

continuávamos a verificar que a paciente se tornarauma pessoa mais racional, face a situações problemáti-cas, continuando apesar de tudo, a apresentar res-

postas emocionais intensas, e inibição em contextosde interacção social. Foram então predominante-mente utilizados os métodos de Descentração eConfronto.

Apesar das dificuldades apresentadas, a pacientefoi modificando o modo como se avaliava, criandoum conjunto de significações pessoais e novosesquemas de auto-referência. Assim, seis meses apósa aplicação das referidas técnicas, a paciente mostrouser capaz de lidar autónomamente com as situaçõesproblemáticas da sua vida. Mais tarde, contribuiu ac-tivamente na criação de um grupo de amigos, tendoconseguido refazer a sua vida afectiva.

Os resultados obtidos revelaram melhorias no seuauto-conceito, passando a acreditar mais em si própria,criando objectivos de vida definidos, empenhando-semais na sua vida profissional. Actualmente faz umavida sem problemas significativos, manifestando com-portamentos sociais mais adaptativos e funcionais.

CONCLUSÕES

A prática clínica sugere-nos que a aplicaçãocombinada de técnicas derivadas das Terapias Cogni-tivas e Comportamentais, maximiza o resultadoterapêutico. No entanto, uma reestruturação cogni-tiva num indivíduo que mantenha respostas mal-adaptativas, bem como uma modificação dessas re-spostas, verificando-se a manutenção das distorçõescognitivas, inviabilizam a aquisição de comporta-mentos saudáveis (funcionais) e sua generalização.

As abordagens terapêuticas que utilizam estratégiassimultâneamente orientadas para o confronto doindivíduo com formas alternativas de pensar, sentir eagir, têm-se manifestado mais eficazes.

A pertinência clínica dos Métodos de Descen-

tração e Confronto, levou-nos a adoptá-los nas nossasintervenções, enquadradas em programas terapêuti-cos específicos, em função de cada caso clínico.

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Métodos de descentração e confronto em terapias cognitivo-comportamentais 53

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Psiquiatria Clínica,12 (1) pp. 55-64, 1991

CULTURA E PSIQUIATRIA

Antero de Quental: A propósito do centenário do suicídio do poeta açoreano*

POR

Ci\RLOS SARAIVA **

Resumo

o centenário do suicídio de Antero de Quental estimulaà compreensão psicológica do seu com-portamento. O poeta viveu inquieto e místico. A procura da perfeição e do absoluto impôs-lhe o para-doxo da impossibilidade de se sentir ganhador. Euforias criadorase clausuras punitivas de angústiasmetafisicas flutuaram ao longo dos anos. Bipolaridade afectiva e doençafisica concorreram para o fim.No encontro com a morte, junto ao Convento da Esperança na sua terra natal, ter-se-á, finalmente,pacificado.

I. AÉPOCAEA VIDA

o centenário do suicídio do poeta açoreanoAntero de Quental, em II de Setembro de 1891,estimula à tentativa de compreensão psicológicado seu comportamento suicidário, através da suavida e da sua Obra. Antero de Quental foi ro-mântico, artista, fidalgo, místico, filósofo, sábio,poeta, um dos maiores líricos depois de Luís deCamões, "talvez a figura mais característica domundo literário português e decerto aquela sobre

que a lenda mais tem trabalhado", segundo Oli-veira Martins [I], e o "Mestre incontestado e in-contestável da Geração de 70, o seu supremo ins-pirador, o seu trágico símbolo", na expressão deÁlvaro Manuel Machado [2].

A história do suicídio de Antero de Quentaltem de ser percebida no enquadramento da épocaem Portugal e na Europa. Para além de Camões,as múltiplas fontes e modelos de alguém sempresedento de sabedoria, parecem surgir mais ao

poeta na cultura franco-alemã, em aspectos quereproduzem a crítica social revolucionária, comoem Proudhone e Michelet [3], o misticismo e osentimento, como em Heine, a blasfémia e osatanismo, como em Goethe, a verdade das per-versões íntimas, como em Baudelaire [4], e oamor excelso, como em Holderlin [2]. Apesar dosriscos de toda a formulação sintética, pode-seafirmar que o niilismo e o idealismo marcaram aGeração de 70. Em estados de grande inquietação,talvez na busca de nirvanas sonhados, é criveI que

o poeta tenha também procurado, por vezes comexcessos de protagonismo, ser um revolucionáriosuperior, capaz de modificar o tempo, a ordempela desordem, como se pudesse haver passes demagia. O socialismo utópico de Antero de Quentalquis iludir o romantismo-doença, o mal do século,como foi apelidado, pela elevação de um idealsocialista e de um enaltecer de uma moral laicahumanista. O paradoxo da procura da perfeição ea impossibilidade de acelerar a História levá-lo-

* Comunicação ao1.0 Congresso de Saúde Mental dos Açores, Angra do Heroísmo, Maio, 1990.

** Psiquiatra dosH.V.C. e Assistente da F.M.C.

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-iam, primeiramente, ao isolamento e, depois, àmorte no "leito do esquecimento". Como escreveuEça de Queiroz, Antero de Quental "amando aindaos homens, mas desistindo de os conduzir a Canaã,subiu com passos desafogados para a sua alta torrebem-amada, a terra da Metafísica"[5]. Aquelavisão angustiante da vida, sentida como spleen naEuropa do romantismo, reproduzir-se-ia, porexemplo, nos Vencidos da Vida, o grupo darenúncia e da retórica, certamente mais preocupa-do com repastos de fim de dia. Na altura um cró-nico desespero perspassava pelas Artes e pelasLetras portuguesas e seguramente que os modelossuicidas de Soares dos Reis e Camilo CasteloBranco, respectivamente em 1889 e 1890, contri-buíram para o plasmar da estrutura dinâmica dodesenlace.

Miguel de Unamuno, no seu livro "Por Tier-ras de Portugal y de Espãna", após visitar o nossopaís no princípio do século, retrata-nos como"um povo triste, mesmo quando sorri ...um povode suicidas, talvez um povo suicida, para o qualnão existe um sentido transcendente". Na mesmaobra é transcrita uma carta de Manuel Laranjeira,médico e escritor, um dos seus amigos portu-gueses que, sabedor da viagem de Miguel de Una-muno, lhe confessara:"em Portugal chegou-se aeste princípio de filosofia desesperada: o suicídioé um recurso nobre e uma espécie de redençãomoral. Neste malfadado país, todo aquele que énobre se suicida, todo o canalha triunfa ...Às vezesem horas de desânimo chego a crer que esta tris-teza negra nos sobe da alma aos olhos e, então,tenho a impressão intolerável e louca de que emPortugal todos temos os olhos vestidos de luto por

nós próprios". Miguel de Unamuno não encontrana literatura portuguesa do pós-liberalismo nadamais que uma mágoa invasora, uma tristezamesmo evidente na escrita cómica e jocosa.

Neste estudo alguns elementos biográficossão essenciais para a compreensão da dimensãohumana de Antero de Quental e, consequente-mente, da sua Obra e do seu trajecto.

Antero .de Quental nasceu a 18 de Abril de1842 em Ponta Delgada, sendo filho e neto defiguras fidalgas do liberalismo, pessoas de teres ehaveres, grandes proprietários agrícolas. Um dosseus avós, André Câmara e Sousa, fora signatá-rio da Constituição de 1822 e deputado por S.

Carlos Saraiva

Miguel. Seu pai, Fernando de Quental, integrou os"bravos do Mindelo", exército de sete mil aço-reanos organizado por D. Pedro IV, para combatero absolutismo. Sua mãe, Ana da Maia,tê-lo-áeducado no rigor da tradição católica, a acreditarna referência a "devota" de algumas fontes.

Entre os 5 e os 8 anos frequentou a casa deFeliciano de Castilho, transitoriamente a viver emS. Miguel, que lhe ensinaria as primeiras palavrasde francês. Ainda durante a escolaridade primáriateria lições de inglês e participaria numa socie-dade infantil, o Grémio Instrutivo. Viveu numambiente de literatos e paixões políticas, ao mes-mo tempo que começava a aprender os mas e osventos da sua ilha, na expressão de um seubiógrafo.

Aos 10 anos veio estudar para Lisboa para oColégio do Pórtico e foi por essa altura que ouviudeclamar a Ode a Deus de Alexandre Herculano,sentindo numa onda de êxtase "a revelação de ummundo novo e superior, nascente intuição do idealreligioso" .

Aos 14 anos matricula-se, como alunointerno, no Colégio S. Bento, em Coimbra, juntoao Jardim Botânico.É desta época que se conhe-cem os primeiros versos numa carta para o irmãoAndré.

Dos 17 aos 22 anos frequenta a Faculdade deDireito da Universidade de Coimbra. Aqui, aolongo do curso, correria a Alta da cidade, hospe-dando-se em sete casas diferentes. No ano a seguirà matricula é punido pelo Conselho de Decanos,por excessos de perseguição praxista a caloiros.Menos estudante e mais activista político, partici-pou nas lutas académicas, surgindo como mais

relevante o facto de ter sido aos 20 anos presi-dente da Sociedade do Raio, uma organizaçãosecreta com vista a destituir o Reitor da Univer-sidade Basílio de Sousa Pinto. Um Manifesto dosEstudantes de Coimbra à Opinião Ilustrada doPaís, redigido pelo poeta e rubricado por três cen-tenas de colegas, protestando contra o sistema deensino, viria a concorrer mais tarde para a queda doReitor. Entretanto, Antero de Quental havia sidoescolhido para fazer a saudação ao principe Hum-berto de Sabóia em nome dos estudantes de Coim-

bra, tendo aproveitado a ocasião para desferir mais

um ataque verbal ao Reitor. Aos 22 anos encabeçouuma revolta de estudantes contra o Governo do

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Antero de Quental: A propósito do centenário do suicídio do poeta Açoreano

Duque de Loulé, a pretexto da não concessão deum perdão de acto em comemoração do nascimentodo príncipe D. Carlos, em termos consideradosofensivos pela Academia. Para combater a revoltaestudantil o Governo decidiu enviar tropas paraCoimbra, respondendo a Academia com a saída dosestudantes para o Porto. No final haveria umaamnistia, cantando os estudantes vitória.

No período de Coimbra foi escrevendo Raiosde Extinta Luz, entre os 17 e os 21 anos, e Pri-maveras Românticas, dos 19 aos 22 anos, publi-cados, respectivamente, em 1892 e em 1872.Entretanto, a primeira edição dos Sonetos deAntero sairia aos 19 anos, onde constava umaapaixonada, a enigmática M.C., para dois anosdepois surgir Béatrice.

Aos 20 anos conhece-se o seu primeiro pseu-dónimo, Vasco Vasques Vasqueanes. O período deCoimbra seria poeticamente fecundo em publi-cações locais, algumas das quais fundou e dirigiu:Fósforo, Prelúdios Literários, Académico, Cisnedo Mondego, Estreia Literária, Tira-Teimas.

Aos 21 anos foi a Lisboa ler as Odes Moder-nas a Feliciano de Castilho e a Alexandre Hercu-lano. Nesse mesmo ano destrói a obra Fiat Lux,rasgando todos os exemplares. Antero de Quental,continuaria a saltitar de residência em residência,numa fase de insatisfação, denotando-se referên-cias em cartas a "marasmo de cada dia", "procurade grandes virtudes cristãs", sentindo-se o poeta"desgostoso e desalentado"[I].

Aos 22 anos terá sido o primeiro tradutorportuguês de Edgar Allan Poe.

Aos 23 anos fez a defesa da Carta Encíc1ica

de Sua Santidade Pio IX contra a chamada opiniãoliberal, mas o grande impacto dessa época seria apublicação das Odes Modernas, o cerne da desi-gnada Questão Coimbrã. Feliciano de Castilho,em 1865, no pós-fácio ao livro de Pinheiro ChagasPoemas da Mocidade criticava as Odes Modernase duas obras de Teófilo Braga, Visão dos Tempose Tempestades Sonoras. Uma carta de Felicianode Castilho ao editor António Maria Pereira ridi-cularizando Antero de Quental, Teófilo Braga eVieira de Castro, haveria de acender mais a fo-gueira. Antero de Quental ripostou na Carta Aber-

ta Bom Senso e Bom Gosto, que focava a questãodas ideias inspiradoras da poesia. Num segundoopúsculo, A Dignidade das Letras e as Literaturas

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Oficiais, o poeta procurou elevar o nível do deba-te, tornando-o menos mordaz e mais filosófico. Apolémica duraria um ano e suscitaria dezenas deartigos. Os dados estavam lançados e os ânimosacalorados levariam ao pitoresco episódio doduelo entre Antero de Quental e Ramalho Ortigão,quando este se sentiu obrigado a vir a terreirodefender a honra de Feliciano de Castilho, apósinjuriosa alusão à sua cegueira e porque terá con-siderado o poeta de cobarde por atacar um velho.Neste duelo, na Arca de Água, no Porto, Anterode Quental, então com 24 anos, feriria o seuadversário num braço, apesar de menos ágil naesgrima.

Aos 24 anos, Antero de Quental ponderou ahipótese de se alistar nas tropas de Garibaldi emItália e viajar até Goa e Macau, mas o seuidealismo socialista acabaria antes por impeli-lopara Paris, como resposta a um forte apelo dedever operário. A recente ligação a Espanha porcaminho de ferro, desde 1863, facilitava o con-sumar das fantasias dos viajantes e o poeta estavanuma fase de aventura. Em Paris foi tipógrafodurante dois meses, tirando partido de anteriortrabalho nas oficinas da Imprensa Nacional, mascedo se enfadou e regressou a Lisboa. Logo seassumou outra vez e regressa a Paris. Visita Mi-chelet, sob o meio-pseudónimo de Bettencourt,um apelido de família, e oferece-lhe as OdesModernas, que disse serem de um amigo ... Pareceque os poemas terão merecido elogiosas apre-ciações. Nessa altura escreveu "eu sou pó da ter-ra", "peço que me desculpem os ares de forte ealtivo combatente" e também já tecia comentáriosacerca de um dos seus achaques quando dizia que"comia só uma vez por dia e pouco".

Aos 26 anos ofereceu-se para um lugar dejornalista em Madrid, como forma de concretizaro seu iberismo e manifestou o desejo de se alistarna Guarda do Vaticano. Nesse mesmo ano fundouo Cenáculo, um forum de intelectuais para debatede ideias, de que faziam parte, entre outros, Eça deQueiroz, Ramalho Ortigão, João de Deus, ManuelArriaga. Por essa época surgem as influênciassatânicas e o pseudónimo de Fradique Mendes.

Os 27 anos ficaram marcados por dois acon-tecimentos importantes, uma viagem a Nova Ior-que e Halifax, num patacho que largara de Gaia,com o intuito de contactar com o operariado ame-

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ricano, e pelo início da longa amizade com Oli-veira Martins. Em Lisboa, chegaria a viver comBatalha Reis num quarto em S. Pedro de Alcân-tara, situação que se manteria até aos 29 anos,istoé, aquando do começo das Conferências do Ca-sino, em 1871. Estreou-se o poeta com As Causasda Decadência dos Povos Peninsulares nos TrêsÚltimos Séculos. Pouco tempo durariam as Con-ferências, por muito incomodarem a Igreja e aMonarquia. Todavia, o poeta não aceitou candi-damente aprepotência do Governo e publica umaCarta ao Marquês de Ávila e Bolama em termoscontundentes, ao estilo de um homem de antesquebrar que torcer.

O poeta vinha a vivenciar uma intensa eapaixonada fase de actividade política, fundadorde associações operárias, conferencista, panfle-tário, paladino, e também caprichoso quando sesentia contestado. Ao mesmo tempo, por uma vez,Antero de Quental definiu-se como alguém "des-cendo lentamente a espiral dos desenganos" nomeio de tédio e de cansaço, a que, certamente,também não seria alheia a queda da Com una deParis. Algum tempo depois estalaria a polémicacom Teófilo Braga, por causa das suas teses fanta-sistas sobre a influência dos moçárabes na na-cionalidade.

Após uma década de grande produção de poe-mas, dos 20 aos 30 anos, o poeta entra numa fasedoentia, nunca suficientemente esclarecida,regressando de novo a S. Miguel, no ano da mortede seu pai, em 1873. O seu estado de saúde apa-rentava a gravidade suficiente para fazer deslocaro seu grande amigo Oliveira Martins a PontaDelgada. A evidência de doença fisica em Antera

de Quental parece difícil de não se admitir. Pelo

contrário, Miller Guerra [6] insiste na tese de queos sintomas somáticos se enquadravam antes emalterações do psiquismo. Todavia, alguém quefazia caminhadas de dezenas de quilómetros emCoimbra e que agora se via a emagrecer cada vezmais, com violentas dores abdominais e astenia,que o obrigavam a passar longas horas metido nacama, mal se alimentando, deveria estar seria-mente doente. Batalha Reis considerou ser um"estado mórbido intermitente" que o conservava

deitado de costas sobre a cama, ao mesmo tempoque lia, cismava, conversava. Filomeno da Câ-mara, professor da Faculdade de Medicina de

Carlas Saraiva

Coimbra, provavelmente o seu primeiro médico,teria confidenciado a Batalha Reis os diagnósticosde "paralisia do tubo gastro-intestinal", numa pri-meira observação em 1869, e "além da asteniamuscular uma atrofia de fibras", numa outra con-sulta em 1874, por "produção nova nas extre-midades do pilora que tende cada vez mais a es-treitar este oríficio", com "prognóstico duvidoso,mas inclino-me para que a terminação seja fa-tal"[7]. Este clínico chegaria mesmo a recomendarumas férias no Faial e tratamentos por hidro-terapia. É curioso registar que Filomeno daCâmara havia casado em 1868 com um dos gran-des amores secretos do poeta, a enigmática M.C.,reconhecida como uma prima afastada, Mariana

• do Carmo Mota Porto Carrero. Como o estado desaúde do poeta ia piorando, Antero de Quentalseria observado por um médico homeopata deMacau a exercer na Terceira e, depois, por Bentode Sousa, tendo ambos se inclinado para um "malna espinha" e recomendado novamente hidro-terapia. Sousa Martins e Curry Cabral tambémconsultariam o poeta em 1874, aos 32 anos, e éinteressante saber que este se achava, por suaspalavras, no momento, afectado de "doença ner-vosa", "com forçada inacção" e "perspectiva damorte". Quatro anos depois, numa carta a OliveiraMartins, escreveria :"0 Sousa Martins ouviu-me eapalpou-me e concluiu que nada podia concluir eque isto lhe parecia mais complicado do quejulgara a princípio"[7]. Mais tarde diria "não sereieu, além de naturalista, idealista, que meinsubordinarei contra a ordem santa das coisasaceitando como fatalismo os desígnios da naturezaou de Deus"[7]. E numa carta a Germano Meireles

escreveria "abençoada doença, se fizer de mim o

homem impassível dos estóicos". Mais tarde, RaúlBensaúde, num diagnósticoa posteriori, consi-derou uma estenose do piloro, o que nos 'parecefrancamente plausível.

Aos 33 anos, o poeta, passa por uma novafase de destruição de poemas. Oliveira Martinsreferir-se-ia a esta decisão considerando que Ante-ro de Quental quisera dar cabo de todas as poesiaslúgubres, porquanto se sentia com remorsos poralguma vez ter estado numa disposição de ânimo

que agora considerava com horror, entendendoque tais versos tétricos não poderiam consolarninguém e poderiam fazer mal a muita gente.

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Antero de Quental: A propósito do centenário do suicídio do poeta Açoreano

Alguns desses poemas foram salvos por se encon-trarem em cartas dirigidas a Oliveira Martins.

Entretanto, naquela época, o poeta dedicava--se à elaboração do programa do Partido dosOperários Socialistas.

Aos 34 anos morre sua mãe, em Lisboa. Opoeta reentra numa fase doentia que o faz ir aParis consultar Charcot, que lhe diagnostica umahisteria, dizendo-lhe muito simplesmente: "vousavez une maladie de femme transportez dans uncorps dhomme; cest hysterisme"[7]. Charcotprescreveu hidroterapia e electricidade estática. Porduas vezes faria tratamentos de hidroterapia emBellevue, aparentemente sem quaisquer beneficios.Apesar de doente, não estaria insensível aoromance amoroso e ter-se-á mesmo enamorado deuma aristocrata francesa, a Baronesa de Sailliêre.

Aos 35 anos surge nova fase doentia, passadaem Lisboa. A morte do seu amigo Germano Mei-reles leva-o a aceitar, como uma missão inaba-lável, o cuidar das filhas, Albertina e Beatriz, e daviúva, Teresa Costa.

Nas suas actividades políticas começa porrecusar ser candidato a deputado, mas no anoseguinte acabaria por ser eleito pelo Partido Socia-lista (círculo 98, Lisboa) situação que se repetiriaem 1881.

Aos 39 anos isola-se com as pupilas em Vilado Conde, não só para se evadir de Lisboa, mastambém para poder estar mais próximo dos ami-gos Oliveira Martins, a residir no Porto, e AlbertoSampaio, a viver em Famalicão. O poeta manter-se-á no Minho durante cerca de 9 anos, inter-rompendo a sua estada algumas vezes para ir a

Lisboa ou aS. Miguel tratar de negócios defamí-lia. É precisamente numa destas temporadas aço-reanas, em 14 de Maio de 1887, que escreve umacelebrizada carta autobiográfica a GuilhermeS'orck, seu tradutor alemão.

Entretanto, os Sonetos haviam tomado umtom ainda mais pessimista, como os 28 Sonetosdepois publicados em 1881. Às vezes, como es-creveu Oliveira Martins, "ao lado dos sonetos cre-p sC';larmente desolados levantam-se como auro-r s os sonetos estóicos"[I].

Aos 41 anos diria "a minha vida moral é ago-

ra veradsiramente a de um budista e isso se temrefle-tido na minha poesia que entrou agora numanovaiase, mais serena e larga, ainda que de fôlego

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curto ...já não causam pesadelos a quem os lê",referindo-se aos sonetos. Numa surpreendente via-gem ao mundo da infância, talvez por numinstante estar longínqua a luta interior, escreveriaAs Fadas para uma antologia, Tesouro Poético daInfância.

Aos 42 anos encontra-se no Palácio de Cristalcom Oliveira Martins, Ramalho Ortigão, Eça deQueiroz e Guerra Junqueiro, ficando para aposteridade uma fotografia em conjunto.

Aos 43 anos as filhas adoptivas entram nasDoroteias, após a morte da mãe e pouco tempo de-pois conhece os seus primeiros versos em alemão.

Aos 44 anos surgiram os Sonetos Completosordenados de um modo autobiográfico e prefa-ciados por Oliveira Martins.

Tinha 45 anos quando o fotógrafo Raposo, daRua da Esperança em Ponta Delgada, bateu a suafoto preferida.

A época de Vila do Conde é também marcadapela produção de 13 sonetos do último ciclo de 21poemas e é desse periodo o retrato de Columbano,em 1889, quando Arrtero de Quental contava 47anos. Por essa altura referiu-se "à solidão que atéem mim me faz horror".

Em 1890 havia recusado o convite de Bemar-dino Machado para ser Reitor do Liceu do Porto e,apesar de se sentir muito doente, seria compelido,pela persuasão de correlegionários, a aceitar olugar de Presidente da Liga Patriótica do Norte,como reacção ao Ultimatum Inglês. Numa carta aMagalhães Lima, o famoso tribuno republicano,escreveria "faça cada um o seu sacrificio no altarda pátria ...Quero sacrificar a vida e morrerei con-

tente se tiver vivido seis meses ao menos de ver-dadeira vida de um homem, que é a de acção poruma grande causa".

Em Outubro de 1890 o poeta deixou Vila doConde, depois de ter feito testamento num tabeliãodaquela vila, e veio viver para Lisboa, para casa dairmã Ana. Por essa altura oferece 334 cartas dopadre Bartolomeu do Quentalà Academia dasCiências. Em Junho de 1891 decide regressar a S.Miguel depois de conflitos sucessivos com a irmã,por causa das pupilas. Os Açores afiguravam-secomo "isolamento num canto do mundo, que é jáuma meia morte ou uma morte antecipada". Entãoo poeta teria desabafado "isto ainda acaba com umacorda na garganta ou um tiro na cabeça". No res-

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taurante Tavares confraterniza com os Vencidos daVida num jantar de despedida. Embarca a 5 e chegaa 8 de Junho a Ponta Delgada. Instala-se, sucessi-vamente, no Hotel Brown, numa casa em S. Gon-çalo e na casa de José Bensaúde.

Numa carta a Oliveira Martins, datada de 29de Agosto, dirá que vai regressar a Lisboa, novapor Açor, a 18 de Setembro.

Em 10 de Setembro de 1891 entrega aspupilas à família. No dia seguinte, às 5 horas datarde compra um revólver Lefauchaux na loja Férine às 8 da noite dá dois tiros na cabeça, no lado norte

"do Campo de S. Francisco, junto ao muro que fechaa cerca do Convento da Esperança, num local ondeem relevo existe uma âncora e a palavra esperança.Morreu uma hora depois no Hospital da Mise-ricórdia. Foi enterrado no dia seguinte no cemitériode S. Joaquim. Contava 49 anos.

2. MODELOS CONCEPTUAISDE SUICÍDIO

Os trabalhos de Falret, ao considerar no sui-cídio causas internas (doenças mentais hereditá-rias) e externas, e os de Esquirol, ao considerar osuicida como um alienado, denotam já uma preo-cupação causal para o fenómeno, mesmo antes doclássico estudo sociológico de Durkheim, no finaldo século passado, publicado seis anos antes damorte de Antero de Quental. Durkheim teorizou,embora não ao mesmo tempo, quatro conceitos desuicídio: o egoísta, o altruísta, o anómico, o fata-lista, correspondentes, respectivamente, a baixograu de integração social, alto grau de integração

social, baixa regulação normativa e acentuadaregulação normativa.

O estudo sociológico do perfil do suicida apartir de um banco de dados, apesar de impor-tante, é algo despido da vivência do drama indivi-dual. Ao psiquiatra importa sobremaneira a bio-grafia, com todo o cortejo de conflitos, afectos,humores, factores hereditários e situacionais. Cadacaso tem uma história, um percurso peculiar, umamontagem suicidária. O dirimir entre o socioló-gico e o psicológico tem-se mantido, mas tenta-tivas de compreensão global do suicídio interes-sam cada vez mais a diversos modelos psiquiá-tricos e antropológicos.

Carlos Saraiva

A contestação das estatísticas, principalmentecom vários trabalhos na área da dissimulação damorte, como os de Douglas e Baechler, citadospor Freitas [8], fizeram despertar o estudo de ca-sos. Nesta análise, Baechler, teoriza onze sentidospara o suicídio, por sua vez agrupados em quatrocategorias:

1) Suicídios evasivos (fuga, luto, castigo);2) Suicídios agressivos (crime, vingança,

chantagem, apelo ) ;3) Suicídios oblativos (sacrifício, passagem);4) Suicídios lúdicos (ordália, jogo).Freitas [8] considera que a compreensão de

causalidade complexa deve ser percebida em sis-temas de inter-acção, nos quais o suicida se insere,tendo presente que tais sistemas definem estru-turas e que o suicida é uma personalidade em acto.

Factores biológicos associados a factoresinter-relacionais, isto é,O processo de socializaçãopara alguns autores, estariam no cerne do suicídio.Giddens, citado por Freitas [8], combina circuns-tâncias de má inserção social com processos dedesenvolvimento de culpa ou vergonha em con-textos depressivos, na inclinação para o suicídio.

Outros modelos descritivos de compreensãopsicológica têm sido explanados.

No síndrome pré-suicida de Ringel, o pri-meiro nível, a limitação progressiva e crescente dapersonalidade, poderia ser observada por um sufo-car situacional, uma unilateralidade de compor-tamentos e dos mecanismos de defesa, um estrei-tamento das relações humanas, uma redução domundo dos valores.

No segundo nível surgiria o crescendo deagressão e a tendência para a auto-agressão.

Finalmente, no terceiro nível encontrar-se-ia aideação suicida.

No síndrome pré-suicida de Kielholz valori-zar-se-iam três níveis: os indícios suicidas pro-priamente ditos, os sintomas-síndromes especiaise o meio ambiente.

No primeiro nível seriam relevadas as tentati-vas de suicídio anteriores, os modelos suicidas nafamília ou na comunidade envolvente, as ameaçasde suicídio, a divulgação de técnicas suicidas, a apa-tia inquietante ou a agitação após temática suicida,os sonhos de auto-destruição, queda ou catástrofe.

No segundo nível aconteceriam as manifesta-ções ansiosas, as perturbações do sono persis-

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Antero de Quental: A propósito do centenário do suicídio do poeta Açoreano

tentes, a acumulação da agressividade, o início ouo fim das fases depressivas, as crises biológicas dociclo de vida, a culpabilidade, a existência dedoença incurável ou imaginária, o alcoolismo e atoxicomania.

No terceiro nível registar-se-ia a desuniãofamiliar, particularmente na infância, a perda de

contactos humanos, os conflitos profissionais epreocupações financeiras, a ausência de objectivose a ausência de convicções religiosas.

3. UMA COMPREENSÃO PSICOLÓGICA

Não se pretende ousar qualquer ensaio bioló-gico, numa perspectiva de um inexorável fatalis-mo antropomórfico, ou ser-se redundante acercado quotidiano do poeta, mas antes tentar-se com-

o preender a montagem do comportamento suici-dário através da sua Obra poética, não necessaria-mente pato gráfica, e sem descurar ou ignorar,todavia, os aspectos biográficos.

Aquilo a que hoje em dia se consideraria comoautópsia psicológicadeverá tentar compreender nãosó as últimas horas de vida mas também as crises,ou, melhor dizendo, as fases existenciais do poeta.Sendo a Obra um teste projectivo da personalidadeconsideramos que ela se revela como num mosaicode paixão, revolução, solilóquio-narcisismo e paci-ficação. O testemunho dos que privaram comAntero de Quental é essencial para a autópsia psico-lógica. Oliveira Martins, no prefácio dos SonetosCompletos, pôde descrevê-lo "meigo como umacriança, sensitivo como uma mulher nervosa", que

"quando alguém lhe objecta um pequeno senão,todavia essencial ao seu edíficio lógico, resiste,defende, irrita-se às vezes", donde se perceberem asepisódicas discórdias e zangas entre eles, que,todavia, terminavam sempre numa reconciliaçãoafectuosa. Os versos brotavam-lhe "da alma comosoluços e agonias", na expressão de Oliveira Mar-tins, que também o considerava "intermitentementeduro e violento", alguém que navegava em tem-pestades de imaginação, em lutas do dever com apaixão, alguém que não sendo cristão se julgavabudista ou súbdito de um "helenismo coroado por

um budismo". Este seu amigo de sempre achava queo mundo nunca havia sido verdadeiramente hostilpara Antero de Quental, sem quaisquer desgraças

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que o pudessem acabrunhar, o que é interessanteregistar porque terá sido escrito poucos anos antesda morte. Carolina Michaelis retratou-o como "cal-mo e meigo", Batalha Reis como "violento, apaixo-nado, afirmativo" e Bulhão Pato como alguém de"sorriso sempre triste", citados por Ana Martins [9].

Oliveira Martins, como crítico literário, consi-

dera três fases nos Sonetos: de1860 a 1862 umaprimeira fase de grande inquietação e preocupaçãometafisica acerca da procura da existência de Deus,uma segunda fase de 1862 a 1864, a mais brilhantee mais colorida, e, finalmente, uma terceira fase de1864 a 1874, de "silêncio e escuridão", de negati-vos e excessivos, que designou por "nevrose con-temporânea". Vários ciclos nos poemas têm sidoapontados, mas todos giramà volta destes temaspredominantes: paixão, ideal socialista, morte,fuga, Deus, metafisica. Como disse Camilo CasteloBranco os sonetos são um grande purgante das pai-xões e em Antero de Quental tal é bem retratável.

Eça de Queiroz, que conheceu Antero deQuental em Coimbra, relata nas Notas Contem-porâneas um episódio curioso: numa noite de Pri-mavera, nas escadarias daSéNova, um homemdeclamava ao luar o Céu e o Infinito, de " grenhadensa e loura com lampejos fulvos, a barba de umruivo mais escuro, frisada e aguda, à maneirasírica". Era o "Santo Antero", aquele em quemEça de Queiroz encontrava um sorriso como o solnascente. Estaria o poeta num momento de êxtasenefelibático? Lunático? Hipomaníaco ?

Antero de Quental tinha a grandeza dos ho-mens que não têm certezas. Os seus períodos deCoimbra e Lisboa seriam de fanática procura. Um

super-desejo de viver freneticamente como guar-dião da perfeição nurna utopia fraterna exaltaramo poeta. Seriam algumas fases da sua vida, desi-gnadamente as dos tempos da Questão Coimbrã,do Cenáculo e das Conferências do Casino faseshipomaníacas? Se uma escala psicométríca da de-pressão parece relativamente acessível a con-sensos, a escala da hipomania não é fácil de cons-truir pela dificuldade do conceito. De facto, bali-zar e distinguir a hipomania de uma viagem docavaleiro paladino de uma bandeira, de um dina-mismo iluminado ou genial, será certamente uma

das quadraturas do círculo da psiquiatria. O dia-gnóstico clínico, designadamente nas cousas damente, é sempre uma probabilidade. No caso de

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62 Car/os Saraiva

ANTERO DE QUENT AL

qoestâoviagenscenáculocaslro

cotrrora

PD

Antero de Quental parecem existir fases lumi-nosas de uma euforia criadora, logo seguidas poroutras de tristeza e clausura, como se um cometaregular de cauda resplandescente irrompesse, dequando em vez, na noite escura (fig.). Em pano defundo estaria a sempre torturante angústia meta-fisica, com provável atenuação para o período deVila do Conde, aparentemente menos turbulento,talvez o mais tranquilo, junto de amigos comoOliveira Martins e Alberto Sampaio e na com-panhia das suas filhas adoptivas.

Antero de Quental era melhor no esgrimir daspalavras e das ideias do que no lidar com as pes-soas. No amor secreto e impossível de M. C. pur-gou-se nos Sonetos, mas não foi capaz de assumiro verdadeiro título quando enviou um dessespoemas a sua mãe. A não aceitação do impossí-vel? Talvez por que o amor deveria ser uma "castaalcova no segredo", com "os astros por docel ecortinado". Numa ocasião permitiu-se algumerotismo contemplativo , mas tudo se passavanum Sonho Oriental, vendo-se rei numa ilha, denoite balsâmica de lua cheia, aromas de magnóliae baunilha, com varandas de marfim e um amordivagando ao luar, num cenário de invulgaridademirífica [10]. A mulher surge sempre fisicamentedistante e só a espaços é desejada, mas como senão amadurecesse e pudesse permanecer semprepequenina, conforme escreveria em 1863 refe-rindo-se a uma adolescente de 15 anos. O poeta

anadespedida

31

doençamorte dopaidestrutção

1891

PD

parecia apenas acreditar em prazeres gerados pelafantasia.

A plasticidade nos pseudónimos conhecidos,desde os 19 anos, Vasco Vasques Vasqueanes, Rai-mundo Castromino, Bacharel José, Fradique Men-des e Bettencourt (quando se apresentou a Mi-chelet), reproduziriam receios de uma certa iden-tidade ou fraquezas de desdobramentos, quando,por exemplo fazia incursões em versos satânicos:

"Mais fec.undo que o Céu, criou o InfernoA blasfémia-Honra, pois, e preito eternoA Satã, que nos deu o blasfemar! "[11];ou noutra passagem:

"Não poder já ao demo um condenado rendera alma imortal" [11].

Insaciável na procura de uma nova meninice,de uma renascida mãe onde pudesse descansarsobre o seio:

"Aspirar sempre ao futuro: o futuro, umasombra mentirosa"[lO].

A tortura de se sentir incompleto e imperfeitoacompanhou-o sempre:

"E assentado entre as formas incompletasPara sempre fiquei pálido e triste"[lO].A procura de Deus está sempre presente e as es-

tratégias assumem cambiantes curiosas. Ora exigin-do a aparição, ora blasfemando, por vezes mordaz eirónico, contra Deus, que achou "vã banalidade",

"Que um dia, de enjoado ou distraído,Deixou matar seu filho no Calvário"[10].

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Antero de Quental: A propósito do centenário do suicídio do poeta Açoreano

Mas o poeta pediria a mão estendida de Deus"por sobre o abismo", afinal a "sombra de amor"que em vão buscava.

O Ignoto Deo, que teimava incrivelmente semse revelar, foi sentido como "gota de mel em taçade venenos". Nos versos do satanismo, assumidoquer como Antero de Quental quer sob pseudóni-mo, o partido demoníaco atingia uma violênciadesesperada, como se acreditasse que algo tivesseque acontecer:

"Só creio no pecado ...E no eterno reino de Satã"."Sou talvez Satanás; - talvez um filhoBastardo de Jeová; - talvez ninguém"[lO].Esta inquietação metafísica transparece no

diálogo entre os Homens e os Deuses, quandoaqueles perguntam:

"Porque é que nos criastes ?".Respondem os Deuses:"Homens! porque é que nos criastes ?"[IO].Por vezes surgia a sua culpabilidade:"Eu sou aquele que tanta vez pecou"."Se estou cheio de fel e de tristeza ...É de crer que só eu seja o culpado"[lO].Para o poeta a morte era sentida como "o

fundo de um poço húmido e morno", "irmã doAmor e da Verdade". Mas as imagens da ambi-valência surgem claras quando o corcel negrodiz:

"Eu sou a morte!".Responde o cavaleiro:"Eu sou o amor"[IO].Em Raios de Extinta Luz o poeta escreveria:

"Melhor que tudo isto é sempre a morte". Só namorte veria o "claro sol, amigo dos heróis" e pen-sando em M.C.:

"No Céu, o Virgem! findarão meus males;Hei-de renascer, eu que pareçoAqui ter só nascido para dôres"[10].A ideia de uma auto-mutilação simbólica

parece reproduzir-se quando se refere ao enterrodo seu coração ou quando incita:

"Lobas! Leoas! Sim, bebei meu sangue"[lO].Até que ponto a destruição completa de Fiat

Lux, no período de Coimbra,e outros poemas maistarde, seriam projecções de mutilações ou renegar

de horrores, conforme confidenciou a OliveiraMartins?

A distorção da auto-imagem é chocante, sen-

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tindo-se, ao mesmo tempo, rocha, fera e monstro,dizendo:

"Não há como eu espectro macilento,Nem mais disforme que eu nenhum abor-

to" [10].

A despedida no Tavares deve ter sido sentidamais como um adeus e não um até breve. O com-ponente hetero-agressão sobre a irmã Ana estavapresente, o que num modelo de Bancroft poderia,talvez, corresponder à figura-chave. O conflitocom a irmã e o abandono das "filhas" indicaria adesesperança, a renúncia a todas as lutas, talvezequivalente do desespero aprendido de Seligman.O balancear entre a clausura e o convívio é visí-vel, quando, entre a chegada a S. Miguel e a mor-te, passou, sucessivamente, pelo Hotel, por umacasa isolada e pela residência de José Bensaúde.

Segundo o modelo de Freud conjugaram-se aperda, a inibição libidinal e a agressividade.Aimpossibilidade da revolta, quando os desígniossão a perfeição e o absoluto, limitou as alternati-vas a si próprio. A modificação do instinto, acti-vando o thanatose voltando a pulsão contra opróprio levaria ao suicídio.

Na tripla dimensão de Menninger existemdesejos de ser morto e de se matar. Se a ideaçãode morte, passiva, não activa, isto é, não se inter-pretando como agente suicida, vislumbra-se emdiversas fases, designadamente após 1878, tam-bém a ideação suicida clara impôr-se-á no finalna carta a Magalhães Lima. E o desejo de matar?Tería o poeta querido matar Ramalho Ortigão noduelo da Arca de Água?

No modelo de Kielholz, nos três níveis dosíndrome pré-suicida, poder-se-ão compreender,no primeiro nível: as ameaças veladas de suicídioe a existência de modelos suicidas na comunidadeliterária e artística; no segundo nível: a culpa-bilidade pela incapacidade de vencer a imperfei-ção e a doença fisica; no terceiro nível: a ausênciade um sentido para a vida.

No modelo de Poldinger o poeta desde sempreconsiderou a morte a paredes-meias com a vida e aambivalência foi longa, mais oscilante e maisinquietante desde a entrada das pupilas nas Doro-

teias até à compra do revólver no último dia.Recorde-se, todavia, que ainda a 29 de Agostoescreveu que regressaria a Lisboa a 18 de Setem-

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bro. Mas nessa altura certamente que uma escala dePoldinger, a existir, poderia indiciar um alto riscosuicida, que nos permite-teorizar o valor de 108.

Numa tentativa de síntese, bipolaridade afec-tiva, doença fisica e algum narcisismo parecemter contribuído mais directamente para a morte,como factores endógenos, sendo crível que opoeta estaria gravemente deprimidoà época dosuicídio.

Antero de Quental foi um homem do qualuma geração sempre acreditou ser mais do que umlíder sem desfalecimentos, uma bandeira, alguémsem o direito de se poder deprimir ou fracassar. Asua luta foi a falhada procura do Santo Graal. Eesta é a síntese do seu drama! Daquele que nãoconseguiu, afinal, ser perfeito, nem ser impassívelcomo os estóicos na dor, para quem o mal piorseria o ter nascido. Alguém que impôs a si próprioo paradoxo de ser perfeito e nessa teia se consu-miu. Alguém.que apenas parecia gostar de uma

Carlas Saraiva

fotografia tirada no fotógrafo Raposo da rua daEsperança em Ponta Delgada ...

Só o "Génio da Noite" entenderia a sua "Fe-bre de Ideal". Por isso o poeta escreveu nas Prosas(VoI. III ) : "saibamos compreender a morte, que éa única maneira de compreender a vida e de saber-mos viver" e, noutro ponto, "quando um homemjá não pode ser útil aos outros nem a si própriodeve desaparecer". Como também disse Monther-lant, "quando se olha bem o mundo nada maisexiste que Deus ou o suicídio" ou na visão deDostoievski "o Homem inventou Deus para poderviver sem se matar".

Antero de Quental não conseguindo encontrarDeus na "terra degredo" ter-se-á pacificado no en-contro com a morte, tida como passagem coerentepara outra viagem, um "céu destino", um novoregaço com a roda do Convento para meninosabandonados ali tão perto e a palavra esperança nomuro junto à cabeça tombada?

Summary

The commemoration of the centenary of the Antero de Quental suicide encourages a psychologicalbehaviour study. The poet lived anxious and mystic. The paradoxical fight of searching perfection andabsollue took the poet to the impossible way of becoming a winner. Euphoric and depressive periodshappenned along the years. Bipolar depression andphysical disease tried for death. The suiciderepresented a pacific end nearby Convento da Esperança.

REFERÊNCIAS

[1] MARTINS,0.(1980) - Prefácio à Edição de Sonetos Completos de Antero de Quental, EditoraNova Critica, Porto.

[2] MACHADO,A M.(l977) - A Geração de 70 - Uma Revolução Cultural e Literária. Biblioteca

Breve. Instituto de Cultura Portuguesa. Lisboa.[3] MARTINS,A M. A(1985) - O Essencial sobre Antero de Quental, Imprensa Nacional, Casa da

Moeda, Lisboa.[4] PIMPÃO,C.(1941) - Antero e Baudelaire, Coimbra.[5] QUEIROZ,E.(1923) - Notas Contemporâneas, Chardron Editores, Porto.[6] GUERRA,M.(1962) - Ensaios, Moraes Editores, Lisboa.[7] MARINHO,M. J.(1981) - A Propósito de uma Carta de Filomeno da Câmara para J. Batalha Reis

sobre a doença de Antero, Separata da Revista da Biblioteca Nacional no 2.[8] FREITAS,E. (1983) - Contributos para o Estudo das Mortes Violentas em Portugal, Revista do

Centro de Estudos Demográficos, I.N.E., Lisboa.[9] MARTINS,A M. A(1985) - Fotobiografia de Antero de Quental, Imprensa Nacional, Casa da

Moeda, Lisboa.[10] QUENTAL,A(1980) - Sonetos Completos, Editora Nova Critica, Porto.[11] QUENTAL,A(1948) - Raios de Extinta Luz e Outras Poesias, Couto Martins Editores, Porto.