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SUJEITO DA ENUNCIAÇÃO E O ESBOÇO DE UMA REFLEXÃO SOBRE SINGULARIDADE ENUNCIATIVA Valdir do Nascimento Flores 1 nous lisons d’autres linguistes (il le faut bien) mais nous aimons Benveniste. Roland Barthes. Le bruissement de la langue. Paris: Seuil, 1974. PREÂMBULO Este texto 2 foi produzido no seio de um projeto 3 maior que visa a estudar o conjunto de textos de Émile Benveniste publicados nos dois volumes dos Problemas de lingüística geral de forma a tomá-los como base para a formulação de uma perspectiva de análise da linguagem que fale da condição única do homem na língua. Essa perspectiva é aqui chamada de esboço de uma reflexão sobre a singularidade enunciativa. Tal projeto de leitura parte da idéia de “herança”, cuja tradução encontra sua melhor versão nas palavras do filósofo Jacques Derrida, em um belo livro que reproduz diálogos seus com Elizabeth Roudinesco 4 . Derrida lembra que a noção de herança constrói a figura de um herdeiro que é 1 Professeur de linguistique à la Faculté de Lettres de l’Université Fédérale du Rio Grande do Sul (UFRGS), Brésil. 2 Este texto decorre de meu estágio de Pós-doutorado desenvolvido em Paris, sob a supervisão de Claudine Normand (Paris X, Nanterre) e de Dominique Ducard (Paris XII – Val de Marne). Esse estágio foi subsidiado pelo CNPq (Conseil National pour le Developpement Scientifique et Technologique), du Ministère de Science et Technologies du Brésil através da concessão de uma bolsa de estudos. Gostaria de agradecer a Claudine Normand pela leitura que fez deste texto e pelas contribuições que deu. As imperfeições que nele ainda podem ser encontradas devem ser atribuídas exclusivamente a mim. Cabe ainda um agradecimento especial aos meus orientandos no Brasil. Boa parte deste trabalho não teria sido possível sem a incansável ajuda deles: Daniel Silva, Heloísa Monteiro Rosário, Lia Cremonese e Paula Ávila Nunes. Agradeço também à professora Carmem Luci Costa Silva (UFRGS) que forneceu, através da disponibilização de seu Banco de Dados, o fato de língua que analiso na Parte 4 deste trabalho. 3 Trata-se de um projeto de leitura e pesquisa desenvolvido há cerca de dez anos pelo grupo EEL (Estudos Enunciativos da Linguagem) junto ao Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil. 4 Cf. DERRIDA & RODINESCO. De quoi demain... Dialogue. Fayard, 2001 (p. 15- 16)

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SUJEITO DA ENUNCIAÇÃO E O ESBOÇO DE UMA REFLEXÃO SOBRE SINGULARIDADE ENUNCIATIVA - FLORES 2013

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SUJEITO DA ENUNCIAÇÃO E O ESBOÇO DE UMA REFLEXÃO SOBRE SINGULARIDADE ENUNCIATIVA

Valdir do Nascimento Flores1

nous lisons d’autres linguistes (il le faut bien) mais nous aimons Benveniste.

Roland Barthes. Le bruissement de la langue. Paris: Seuil, 1974.

PREÂMBULO

Este texto2 foi produzido no seio de um projeto3 maior que visa a estudar o conjunto de textos de Émile Benveniste publicados nos dois volumes dos Problemas de lingüística geral de forma a tomá-los como base para a formulação de uma perspectiva de análise da linguagem que fale da condição única do homem na língua. Essa perspectiva é aqui chamada de esboço de uma reflexão sobre a singularidade enunciativa.

Tal projeto de leitura parte da idéia de “herança”, cuja tradução encontra sua melhor versão nas palavras do filósofo Jacques Derrida, em um belo livro que reproduz diálogos seus com Elizabeth Roudinesco4. Derrida lembra que a noção de herança constrói a figura de um herdeiro que é legatário simultaneamente de uma dupla injunção, contraditória na sua gênese: a do saber e a do saber reafirmar. Para o filósofo, não se escolhe uma herança, ela se impõe ao herdeiro que, no entanto, pode escolher preservá-la viva ou condená-la à morte. Ao se reafirmar uma herança, pode-se evitar que ela venha a morrer; reinterpretá-la é a condição para lhe dar um lugar na atualidade.

Filiar-se a um pensamento não implica negar-se a reinterpretá-lo. No caso deste texto, a reinterpretação se faz acompanhar de uma exterioridade teórica: a psicanálise lacaniana. É em Lacan que busco elementos para estudar a condição singular do homem na língua da qual fala Benveniste. Este texto se alinha, portanto, ao saber reafirmar para, a partir dele, produzir o saber reinterpretar.

O ponto de partida é considerar que a expressão o homem na língua – utilizada pelo próprio Benveniste – evoca a indissociabilidade do singular e do repetível. Na

1 Professeur de linguistique à la Faculté de Lettres de l’Université Fédérale du Rio Grande do Sul (UFRGS), Brésil.2 Este texto decorre de meu estágio de Pós-doutorado desenvolvido em Paris, sob a supervisão de Claudine Normand (Paris X, Nanterre) e de Dominique Ducard (Paris XII – Val de Marne). Esse estágio foi subsidiado pelo CNPq (Conseil National pour le Developpement Scientifique et Technologique), du Ministère de Science et Technologies du Brésil através da concessão de uma bolsa de estudos. Gostaria de agradecer a Claudine Normand pela leitura que fez deste texto e pelas contribuições que deu. As imperfeições que nele ainda podem ser encontradas devem ser atribuídas exclusivamente a mim. Cabe ainda um agradecimento especial aos meus orientandos no Brasil. Boa parte deste trabalho não teria sido possível sem a incansável ajuda deles: Daniel Silva, Heloísa Monteiro Rosário, Lia Cremonese e Paula Ávila Nunes. Agradeço também à professora Carmem Luci Costa Silva (UFRGS) que forneceu, através da disponibilização de seu Banco de Dados, o fato de língua que analiso na Parte 4 deste trabalho.3 Trata-se de um projeto de leitura e pesquisa desenvolvido há cerca de dez anos pelo grupo EEL (Estudos Enunciativos da Linguagem) junto ao Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil.4 Cf. DERRIDA & RODINESCO. De quoi demain... Dialogue. Fayard, 2001 (p. 15-16)

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perspectiva benvenistiana, o homem não só está na língua, mas sua existência se singulariza na repetibilidade da língua. Assim, busca-se alargar essa teoria de forma a produzir uma reflexão que, embora não oposta à formulação teórica de Benveniste, não pode ser, pari passu, identificada a ela.

SOBRE OS ANTECEDENTES DA QUESTÃO EM ESTUDO

É comum, no âmbito da lingüística em geral, mas também em outros campos teóricos, a referência a Émile Benveniste quando se quer fazer a distinção entre sujeito da enunciação e sujeito do enunciado ou mesmo entre enunciação e enunciado.

Em que medida esse uníssono – que ainda deverá ser mais bem ilustrado (cf. infra: Parte 1) – poderia servir de antecedente para a elaboração de meu tema de estudo neste texto? Na medida em que Benveniste parece não ter feito tais distinções com a clareza que lhes é atribuída.

Considere-se primeiramente a dupla enunciado/enunciação: essa distinção, mesmo que possa ser inferida das idéias de Benveniste, mereceria ser mais bem explicada. Em O aparelho formal da enunciação, um dos textos mais complexos da teoria benvenistiana, há apenas duas ocorrências de enunciado em contexto que alterna com enunciação5. Leia-se:

Le discours, dira-t-on, qui est produit chaque fois qu’on parle, cette manifestation de l’énonciation, n’est-ce pas simplement la « parole » ? – Il faut prendre garde à la condition spécifique de l’énonciation : c’est l’acte même de produire un énoncé et non le texte de l’énoncé qui est notre objet.

PLG II6, p. 80) [Grifo meu.]

Nesse caso, Benveniste realmente parece estabelecer uma diferença entre o que é da ordem do “acte de produire un énoncé ” e o que é da ordem do “énoncé” propriamente dito. Porém, cabe ressaltar, essa diferença não recebe ênfase maior no texto em questão.

Considere-se, em segundo lugar, a dupla sujeito do enunciado/sujeito da enunciação. Essas expressões parecem também não ter lugar nos escritos de Benveniste.

A respeito, especificamente, do sintagma sujet de l’énonciation, Claudine Normand, em Les termes de l’énociation chez Benveniste, observa que nem sujet de l’énonciation nem sujet d’énonciation7 são utilizados por Benveniste. Para Normand, “la théorie de l’énonciation implique donc un sujet mais n’en fait pas la théorie” (Normand: 1986, p. 202). Para ela, Benveniste empenha-se, na verdade, em formular uma teoria da significação e, por esse viés, é levado a encontrar o sujeito: « liée à la

5 Há outra ocorrência de énoncé, nesse mesmo texto, mas sem alternar com énonciation: “ Le sens de chaque énoncé ne peut être relié avec le comportement du locuteur ou de l’auditeur, avec l’intention de ce qu’ils font  ” (PLG II, p. 87) [grifo meu].6 Problèmes de linguistique générale I (1966) e Problèmes de linguistique générale II (1974) são referidos no texto, respectivamente, como PLG I e PLG II, seguidos da página das edições em questão.7 Patrick Dahlet considera que a ausência desse sintagma, em Benveniste, se justificaria na medida em que a expressão sujet de l’énonciation « renvoie à de l’énonciation qui a un sujet connu avant son acte, ce qui est par définition contradictoire avec la représentation benvenistienne que le ‘locuteur se pose comme sujet, en renvoyant à lui-même comme je dans son discours’ (1958, I, 260) » (DAHLET, 1997, p. 201).

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signification, la question du sujet est à la fois ce qui suscite et alimente l’élaboration de cet ensemble de notions et ce qui l’empêche de s’achever dans la pseudo-solution du sémiotique/sémantique. [...] le terme sujet d’énonciation serait l’élément central d’une théorie achevée ; son absence est alors significative » (p. 202).

Admitida a pertinência dessas observações, ainda assim poder-se-ia indagar: o fato de Benveniste não ter operado textualmente com os dois pares de distinções inviabilizaria que ambos fossem decantados do seu sistema de pensamento?

Nesse caso, a pergunta não se dirige ao que há de explícito na teoria de Benveniste. Ao contrário disso, para respondê-la é necessário interpretar o que se acredita estar implícito, melhor dizendo, é necessário instaurar um ponto de vista de leitura. Em outras palavras: entre afirmar a existência de termos, noções e conceitos em um autor e depreender algo da leitura que se faz de sua obra há uma diferença de natureza epistemológica. Meu trabalho, logo direi por que, se coaduna com esta segunda atitude.

Gostaria, ainda, de chamar a atenção para duas questões ligadas ao ponto de vista de leitura que visa à depreensão de noções não explícitas em uma dada obra. Primeiramente – e em se tratando da teoria de Benveniste isso é evidente – é necessário ir além da metalinguagem e ler nas entrelinhas. Em segundo lugar, é necessário resguardar certa instabilidade das conclusões oriundas da leitura.

Assim, este texto objetiva depreender do trabalho fundador de Émile Benveniste princípios que possibilitem formular uma noção de sujeito da enunciação que dê lugar à análise de fatos de língua8. O resultado pretendido é o que, na falta de melhor designação, chamo de esboço de uma reflexão sobre a singularidade enunciativa (cf. infra: Parte 4).

Acredito que é possível ler nas entrelinhas da teoria de Benveniste indicações programáticas que permitem vislumbrar uma reflexão sobre a linguagem que inclui algo que até poderia ser nomeado de sujeito da enunciação. No entanto, isso não poderia ser feito sem, de um lado, se perceber que há em Benveniste apenas indicações e não instruções absolutas e, de outro lado, sem se alargar o quadro teórico explicitado por Benveniste.

Dito de outra forma, considero que a teoria de Benveniste deixa entrever um lugar para o sujeito da enunciação, que pode ser inferido da compreensão da rede conceitual que sustentaria essa noção. Penso poder demonstrar – sem, com isso, ferir princípios epistemológicos que norteiam a reflexão do autor – os termos pelos quais se constrói essa rede, o que farei na segunda parte deste texto (cf. infra: Parte 2). Essa interpretação implicará, necessariamente, o alargamento da teoria benvenistiana, porque, em minha opinião, levar em conta o sujeito na descrição lingüística impõe que sejam convocados para essa descrição campos9 teóricos exteriores à lingüística.

8 A idéia de “fatos” aplicada à análise lingüística advém de Émile Benveniste quando, em Les niveaux de l’analyse linguistique, diz que: “ Quand on étudie dans un esprit scientifique un objet tel que le langage, il apparaît bien vite que toutes les questions se posent à la fois à propos de chaque fait linguistique, et qu’elles se posent d’abord relativament à ce que l’on doit admettre comme fait, c’est-à-dire aux critères qui le définissent tel  ” (PLG I, p. 119) [grifo meu].9 Utilizo a palavra campo em construções do tipo campo enunciativo e campo da enunciação, entre outras, inspirados por Jacqueline Authier-Revuz, que assim procede em Ces mots qui ne vont pas de soi: boucles réflexives et non-coïncidence du dire (1995). A autora fala em “balisages dans le champ du métalinguistique” e em “balisages dans le champ énonciatif”.

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Explico-me: creio que para falar em sujeito, em lingüística, deve-se colocar em implicação o lingüístico com o que não se reduz a ele. Isso porque o que a lingüística circunscreve como sendo de sua competência de análise não é instrumento suficiente para abordar o sujeito – independentemente do complemento que esse possa receber (da enunciação ou não) –, porque abordá-lo releva aspectos exteriores ao lingüístico (filosóficos, antropológicos, psicanalíticos etc.).

A teoria de Benveniste – e esta é uma espécie de sub-hipótese deste texto – admite ser lida de forma a convocar, em maior ou menor proporção, exteriores teóricos. E a análise dos fatos de língua oriunda dessa leitura não é indiferente a esse exterior.

O exterior teórico à lingüística que convoco a estar implicado no saber da teoria enunciativa de Benveniste é a psicanálise lacaniana e, a partir dele, buscarei responder o que a teorização de cunho psicanalítico acerca da dupla sujeito do enunciado/sujeito da enunciação – uma vez que na psicanálise essa distinção está posta com mais evidência10 – pode dizer à análise lingüística quanto aos aspectos de abordagem do sujeito no campo do lingüístico.

De certa forma, minha perspectiva é inversa à que comumente se atribui a Lacan. Fala-se em um retorno de Lacan a Freud pautado pela lingüística oriunda de Saussure11. Eu proponho reler a lingüística de Benveniste a partir da admissão da hipótese do inconsciente (cf. infra: Parte 3).

Antes de seguir, é importante lembrar que a psicanálise, na perspectiva de Jacques Lacan, mobiliza a noção de inconsciente de forma a torná-lo um saber que é irredutível à transmissão integral. O acesso, sempre parcial, a esse saber se dá via trabalho analítico. Sem a experiência analítica, nada há que se possa dizer do inconsciente. E a lingüística, como se sabe, é bastante distante da experiência analítica.

Disso decorrem algumas constatações que devem ser anunciadas desde já: em minha opinião, não há como simplesmente retirar alguns conceitos da psicanálise e aplicá-los à análise da linguagem fora da instância clínica; não há como se alcançar o saber do inconsciente com simples análises metódicas da linguagem. A psicanálise não é articulável à lingüística, ao menos não como um saber positivo. Uma interpretação conteudística do inconsciente seria própria a uma semântica condenada ao descrédito. Nada autorizaria ver na lingüística uma metodologia qualquer que, descolada da cena transferencial da clínica psicanalítica, produzisse uma ingênua correspondência entre as categorias da língua e a história do sujeito, clivado que é.

Como se verá, quando recorro à distinção feita por Jacques Lacan entre sujeito do enunciado e sujeito da enunciação, é apenas para interrogar se o raciocínio feito por Lacan poderia produzir outra forma de pensar o sujeito (da enunciação) na lingüística. Não se trata de somar a psicanálise à lingüística.

Meu ponto de vista, portanto, sobre a relação que suponho entre os dois campos – o da enunciação e o da psicanálise – é o de resguardar não uma unidade, mas uma forma de implicação ou aquilo que Dany-Robert Dufour (1990) chama de “estilo implicado (de plicare, dobrar)” dos axiomas que operam na definição dos dois campos.

10 Conforme o exemplo: “ Le semblant occupe cette place que la vérité suppose ; la distorsion entre sujet de l’énoncé et sujet de l’énonciation rend impossible la coïncidence entre ces deux registres” (Andrès: 1998, p. 514).11 Cf. LACAN, J. “L’instance de la lettre dans l’inconscient ou la raison depuis Freud”. In: Écrits. Paris: Seuil, 1981.

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O leitor verá, então, que este texto se constrói na simultaneidade de dois movimentos: de um lado, busca identificar em Benveniste princípios que, mesmo não admitidos pelo autor, autorizariam falar em sujeito (ao qual, creio, se poderá acrescentar o restritivo da enunciação); de outro lado, busca reinterpretá-los à luz de uma exterioridade teórica, a psicanálise lacaniana.

Como algumas teorias da enunciação demonstram, a abordagem enunciativa, normalmente, limita-se a descrever algo que é designado pela expressão geral “marcas da enunciação no enunciado” sem, contudo, fazer teoria sobre o sujeito que se “marca” nessas marcas, uma vez que ele não é considerado na descrição. O lugar do sujeito, nessa configuração “descritiva das marcas”, é mais um pressuposto teórico que, propriamente, um operador para a análise.

No entanto, acredito que colocar o sujeito em um ponto central na análise de fatos de língua exige do lingüista o recurso a um campo teórico externo à lingüística, porque, nesse caso, não se trata mais de fazer descrição de “marcas”, mas de conceber o sujeito como um efeito que advém do fato de algo ter sido dito e não do dito em si.

Essa implicação será mais bem explicada na terceira parte deste texto (cf. infra). Por enquanto, é suficiente dizer que, ao incluir na descrição lingüística o sujeito, impõe-se, do meu ponto de vista, a consideração a uma teoria que não é lingüística. O sujeito – e o da enunciação em especial – transcende os quadros epistemológicos da lingüística, logo, não se pode falar nele, no campo da lingüística, sem se explicitar os termos dessa exterioridade teórica e sem se mostrar como a análise dos fatos de língua passa a ser determinada pela referência a essa exterioridade.

Feitos esses esclarecimentos iniciais, o leitor encontrará adiante o seguinte percurso: na primeira parte do artigo, apresento alguns (poucos) dos diferentes, e até mesmo divergentes, empregos do termo sujeito da enunciação – e também sujeito do enunciado – em literatura de natureza psicanalítica e lingüística certamente, mas também em outros trabalhos, como forma de ilustrar a referência que comumente é feita a Benveniste. Na segunda parte, explicito a rede conceitual da teoria de Benveniste que, segundo penso, autorizaria pensar na noção de sujeito da enunciação. Isso é feito numa perspectiva de leitura da teoria que não a distancia do que chamo de exterioridade teórica. Para tanto, procedo à análise de termos que constam dos textos de Benveniste e que julgo relevantes para a discussão. Na terceira parte, explicito a implicação do campo enunciativo na sua relação com a psicanálise lacaniana como exterioridade teórica à lingüística. Faço isso a partir das conclusões advindas da análise de termos feita na segunda parte. Na quarta e última parte, esboço os princípios do que chamo de reflexão sobre a singularidade enunciativa, que, acredito, apresenta um viés de análise de fatos de língua que considera o sujeito da enunciação, conforme ele é aqui definido.

Ainda uma última palavra à guisa de introdução: o leitor deve estar se perguntando que interesse pode haver em alargar uma teoria colocando-a em relação a um campo que lhe é exterior. A resposta coincide com a crença da pertinência da proposta esboçada no final deste texto.

PARTE 1 – SOBRE USOS INDISTINTOS DE TERMOS DISTINTOS

Esta parte é dedicada a fazer um pequeno levantamento acerca do uso de sujeito da enunciação e sujeito do enunciado. O único critério que utilizei para a seleção dos

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trabalhos foi a presença da referência a Benveniste. Não se trata, portanto, de avaliar como Benveniste foi lido por autores de diferentes domínios disciplinares. Fazer esse tipo de avaliação transcenderia meus objetivos. O propósito aqui é mais modesto: trata-se apenas de mostrar certa “voz geral” que atribui a origem teórica dos termos sujeito da enunciação e sujeito do enunciado a Benveniste. A finalidade é ilustrar a afirmação que fiz no início deste texto, segundo a qual é comum remetê-los à teoria benvenistiana.

Na atas de um colóquio que busca exatamente abordar a atualidade do pensamento de Benveniste12, assim se manifesta Kawaguchi (1984, p. 119):

[...] à l’intérieur de la catégorie personnelle, Benveniste établit la corrélation de subjectivité : 1 [première personne] a la qualité de l’intériorité à l’énoncé et de transcendance par rapport à 2 [deuxième personne] ; 2 est essentiellement défini comme celui que 1 en tant que sujet de l’énonciation pose dans l’acte d’énonciation.

p. 119. [Grifo meu].

Na mesma fonte, encontrei a consideração de Jean-Marie Goulemot que, mesmo adiantando que sua observação acerca de Benveniste “...  n’a aucune prétention à la rigueur linguistique ” (1984: p. 99) considera, em estudo que visa a abordar le système des pronoms dans le manuscrit trouvé à Saragosse du Comte Jean Potocki, que “... les récits sont à la première personne dans tous les récits narrés où, alors, se confondent sujet de l’énonciation et sujet de l’énoncé ” (1984, p. 100) [grifo meu].

No primeiro caso (cf. Kawaguchi, 1984: supra), embora não se tenha usado sujeito do enunciado, sujeito da enunciação aparece devidamente explicado no escopo da teoria. No segundo caso (cf. Goulemot, 1984: supra), é a conclusão formulada que parece admitir a distinção. Nesses dois exemplos, a presença dos termos poderia ser chamada de “indireta”, uma vez que os autores dão lugar a conclusões próprias a partir da leitura que fazem da teoria de Benveniste.

Nos exemplos a seguir, porém, a presença é um pouco mais enfática.

Na intenção de abordar a fonction du lecteur dans Le Labyrinthe du Monde de Marguerite Yourcenar, Sun Ah Park (2003), na segunda parte de seu livro, intulada Connivence et compétence du lecteur dans le texte, diz que “...[...] le désaccord entre le sujet de l’énonciation et le sujet de l’énoncé – d’après Benveniste – dépayse le lecteur et provoque une distanciation dans la lecture...” (Park: 2003, p. 62) [grifo meu].

Distinção semelhante encontrei em Lohisse (2006). Em capítulo intitulado Novelles théories linguistique et communication ou théories de l’énonciation, especificamente às páginas 111 e 112, em item dedicado especificamente a Émile Benveniste, o autor diz que “...[...] Benveniste, plus sémanticien que pragmaticien, cherche dans la phrase les traces du locuteur ”. A isso, acrescenta: “ Le fait essentiel est ici la réintroduction du sujet au cœur de la préoccupation linguistique où Benveniste opère la claire distinction entre le sujet de l’énoncé et le sujet de l’énonciation” (Lohisse: 2003, p. 112) [grifo meu].

Laudou (2007), em La mythologie de la parole, diz que “...  Toute la linguistique contemporaine (cf. Benveniste, ‘est ego que dit ego’) appuie la thèse que seul est sujet (de l’énonciation) ce qui se pose comme sujet (d’énoncé)” (Laudou: 2007, p. 193)

12Cf. G. SERBAT et alii (Éd.). Émile Benveniste aujourd’hui I. Louvain, Peters, 1984. (Actes du Colloque International du C.N.R.S. Université François Rabelais, Tour, 28-30 septembre 1983).

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[grifo meu]. O autor fará uma leitura muito particular desse ponto, que não cabe ser aqui avaliada. Para meus objetivos, basta destacar a lembrança por ele feita acerca do consenso presente em “toute la linguistique contemporaine”.

Até mesmo François Dosse (1992), no belo capítulo que faz sobre Benveniste, Benveniste: l’exception française, no segundo volume de seu Histoire du structuralisme, considera que “  à l’usage habituel du sujet parlant, évacué par le structuralisme, Benveniste oppose la distinction entre sujet de l’énoncé et sujet de l’énonciation” (Dosse: 1992, p. 60) [grifo meu].

Como se pode ver, é bastante difundida a idéia de que Benveniste teria operado com a distinção entre sujeito da enunciação e sujeito do enunciado. Nesse ponto, vale recolocar uma questão de Normand (1986), quando, a respeito da ausência do termo sujeito da enunciação na obra de Benveniste, ela diz:

Si on s’interroge sur la coïncidence de cette absence et de cette présence ailleurs répétitive, en cherchant à comprendre pourquoi il n’a pas employé cette expression qu’on lui attribue, on peut faire quelques conjectures. Voulait-il faire une théorie du sujet ? Ne lui a-t-on pas prêté abusivement les interrogations qui préoccupaient dans les années soixante, en France, ceux qui cherchaient à conjoindre la psychanalyse, le marxisme et la linguistique ?

Normand, 1986, p.

O pequeno levantamento acima é restrito à ilustração da leitura que é, em geral, feita de Benveniste, e ainda não considerou se a distinção, no contexto da teoria psicanalítica, é igualmente remetida ao lingüista. Quando o que está em pauta é a díade sujeito do enunciado/sujeito da enunciação no campo psicanalítico, é menos comum a lembrança do nome de Benveniste. Talvez isso até possa ser explicado em função da grande influência que exerceu nesse meio a noção de shifter 13, desenvolvida por Roman Jakobson14.

Mas é possível encontrar alguma referência, mesmo que de forma paralela. Em obra do campo da educação, Lance (2007) afirma que “ Ainsi Lacan sépare la notion de dit, ce qui est dit, énoncé, et le dire, là où l’inconscient se révèle. Comme Benveniste, Lacan opère une scission entre le sujet de l’énoncé, le dit, et le sujet de l’énonciation, le dire.” (Lance: 2007, p. 42) [Grifo meu.]

François Dosse, logo após a lembrança da suposta distinção benvenistiana entre sujeito do enunciado e sujeito da enunciação (cf. supra), mesmo sem fazer referência direta à distinção, acrescenta: “Cette rencontre entre les thèses lacanienne et Benveniste n’est pas fortuite” (Dosse: 1992, p. 60).

13 « Lacan nous renvoie lui-même en 1958 à l’apport de Jakobson et à la notion du shifter. De fait c’est l’ensemble de l’article sur le verbe russe qui prélude ce thème de la référence à l’énonciation dans le texte de l’énoncé » (KAUFMANN, 1998, p. 233).14 Mesmo que, como lembra Normand (1985a), o próprio Jakobson remeta a Benveniste quando introduz a questão do shifter. Nesse ponto, vale lembrar também que Normand (1985b) oferece um curioso panorama da recepção das idéias de Benveniste na França. A autora, a partir de um levantamento das anotações feitas por ocasião de dois cursos na Universidade de Nanterre – um do filósofo Paul Ricoeur, outro do lingüista Jean Dubois –, mostra que, quanto ao tema da enunciação, Benveniste era muito mais estudado no curso do filósofo do que no curso do lingüista.

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Em resumo, as passagens acima mostram, de um lado, a diversidade de leituras que a teoria benvenistiana provoca e, de outro lado, a parcialidade com a qual a teoria é retomada.

Isso posto, gostaria de fazer uma observação final: a conclusão que este item me permite formular é muito delimitada e diz respeito apenas a um ponto: Benveniste é visto em diferentes campos disciplinares como o lingüista que formulou a diferença entre sujeito do enunciado e sujeito da enunciação, leitura essa que aqui contrasta com a ausência do termo sujeito da enunciação nos textos do autor, conforme assinala Normand (1986).

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PARTE 2 – A ENUNCIAÇÃO

Explicito, a seguir, como acredito que é possível depreender da teoria de Benveniste uma noção de sujeito da enunciação. Para tanto, apresento o modelo de leitura utilizado (cf. 2.1) para em seguida proceder à definição dos termos implicados na noção de sujeito da enunciação (cf. 2.2; 2.3; 2.4). Finalmente, teço considerações acerca do alargamento da teoria benvenistiana decorrente da circunscrição da noção.

2.1 O ponto de vista de leitura

Parto de um princípio epistemológico de leitura: a teoria de Benveniste aceita ser lida como uma complexa rede cujos termos e noções estão interligados a partir de diferentes relações – hierárquicas, paralelas, transversais etc. – entre si. Nesse sentido, muitos dos conceitos propostos por Benveniste têm valor primitivo, na medida em que integram outros conceitos. Ou seja, os termos e as noções que fazem parte de um dado conceito contêm outros termos e noções e estes, por sua vez, estão contidos em muitos outros.

Tome-se apenas um exemplo. Diz Benveniste: “ La ‘subjectivité’ dont nous traitons ici est la capacité du locuteur à se poser comme ‘sujet’” (PLG I, p. 259). O entendimento do que vem a ser “subjetividade” – considerando-se essa formulação de Benveniste – exigiria do leitor que tivesse presente também o que o autor entende por “locutor” e “sujeito” os quais, por sua vez, remetem a outras noções (“língua” e “linguagem”, por exemplo).

Admitido este raciocínio, pode-se dizer que há em Benveniste conceitos, termos e noções cuja compreensão decorre das relações que mantêm com outros conceitos, termos e noções. Isso significa que é difícil, nessa teoria, estudar-se um elemento isoladamente.

Este é o meu viés de leitura da teoria enunciativa de Benveniste: considerá-la como uma rede de primitivos teóricos15.

Certamente, as relações variam na medida em que variam os termos que servem como ponto de partida. Poder-se-ia inclusive questionar a pertinência do que é apresentado como termo integrante. Não é disso que estou tratando: defendo a existência das relações sem, no entanto, defender que elas se configurem dessa ou daquela forma. É secundário, ao menos neste momento, o fato de se aceitar, ou não, qual termo integra cada conjunto de relações. O essencial é perceber que a reflexão benvenistiana não pode ser lida de maneira linear.

A partir desse ponto de vista de leitura, cabe perguntar: haveria algum princípio de base da reflexão de Benveniste? Haveria uma espécie de a priori a partir do qual se desenharia toda a teoria? Em havendo, como ele se configuraria?

Em minha opinião, o princípio primeiro – aquele que é condição de inteligibilidade da teoria – está formulado no texto De la subjectivité dans le langage, de 1958. Diz Benveniste:

15 Ainda a título de exemplo do que disse acima, e sem visar à exaustividade, considere-se o termo “pessoa”. A leitura do conjunto dos textos de Benveniste autoriza pensar que esse termo está em relação, no mínimo, com “indivíduos lingüísticos”, “intersubjetividade”, “comunicação intersubjetiva”, “enunciação subjetiva”, “pessoa não subjetiva”, “reversibilidade”, “inversibilidade”, “unicidade”, “correlação de personalidade” e “correlação de subjetividade”.

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Nous n’atteignons jamais l’homme réduit à lui-même et s’ingéniant à concevoir l’existence de l’autre. C’est un homme parlant que nous trouvons dans le monde, un homme parlant à un autre homme, et le langage enseigne la définition même de l’homme.

Benveniste, PLG I, p. 259.

Sublinhe-se isto – e a repetição aqui não é um exagero: le langage enseigne la définition même de l’homme porque est un homme parlant que nous trouvons dans le monde. O homem é homem porque tem linguagem. Opor o homem à linguagem é opô-lo à sua própria natureza. Eis o a priori radical de Benveniste16: o homem é de natureza intersubjetiva porque é constituído pela linguagem. Esse princípio é reiterado inúmeras vezes e em vários textos de Benveniste17. A seguir eu o retomarei em relação a outras noções. Por ora, quero apenas sublinhar sua existência18.

Enfim, explicitado o modo como leio Benveniste, passo, propriamente, a apresentar os termos pelos quais acredito ser possível entrever o lugar reservado ao sujeito da enunciação. Para esse propósito, creio que, tomando o termo intersubjetividade como ponto de partida, deve ser considerado o seguinte percurso: linguagem, língua, línguas, intersubjetividade, subjetividade, categoria de pessoa, homem, sujeito e locutor.

2.2 Linguagem, língua, línguas

Começo este item lembrando um episódio bastante conhecido dos leitores de Benveniste. Trata-se da forma como ele nomeia a parte “O homem na língua”, no Avant-propos do Problemas de lingüística geral I . Ele a chama de “O homem na linguagem”. Diz ele: “L’homme dans le langage est le titre de la partie suivante” (p. 2)

16 Esse a priori recebe muitas versões no conjunto dos textos de Benveniste e mereceria um estudo mais detalhado. Por vezes, por exemplo, esse princípio está associado a uma noção de cultura. É esse o caso, quando Benveniste afirma que « nous voyons toujours le langage au sein d’une société, au sein d’une culture » (PLG II, p. 24). Por intermédio dessa noção de homem associado à de cultura, Benveniste introduz em seu pensamento também uma visão propriamente enunciativa do fenômeno da aquisição da linguagem: « et si j’ai dit que l’homme ne naît pas dans la nature, mais dans la culture, c’est que tout enfant et à toutes les époques, dans la préhistoire la plus reculée comme aujourd’hui, apprend nécessairement avec la langue les rudiments d’une culture. Aucune langue n’est séparable d’une fonction culturelle » (PLG II, p. 24). Ao que se pode acrescentar: « L’enfant naît et se développe dans la société des hommes. [...] L’acquisition du langage est une expérience qui va de pair chez l’enfant avec la formation du symbole et la construction de l’objet » (PLG I, p. 29). O desenvolvimento de uma teoria propriamente enunciativa, de base benvenistiana, é feito no Brasil por Silva (2007). Para tanto, ver: A instauração da criança na linguagem: princípios para uma teoria enunciativa em aquisição da linguagem. Tese de Doutorado em Lingüística defendida na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. (2007).17 Isso que chamo de a priori radical, na verdade, é uma rede conceitual complexa formada pelas noções inerentes aos termos linguagem, homem e intersubjetividade.18A conseqüência de se admitir a existência de tal princípio é clara: a organização em blocos temáticos dos PLG I e II propicia a escolha de um percurso de leitura sem que, com isso, se tenha algum prejuízo quanto à leitura, pois os fundamentos da teoria se fazem presentes em cada um dos textos.

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[grifo meu]. Essa troca de palavras não passou despercebidamente por atentos leitores de Benveniste e já serviu de argumento para conclusões bem diferentes entre si19.

Não quero tomar este “engano” senão pelo que ele deixa entrever do vínculo que há entre as noções implicadas (homem, linguagem e língua). Penso que ele sugere que língua e linguagem – mas também línguas – são de suma importância no pensamento de Benveniste e que todas são relevantes para o autor.

Tomemos apenas um exemplo: o artigo Le langage et l’expérience humaine, datado de 1965, presente no PLG II. O estudo que ali se desenvolve é da ordem da linguagem – o título já atesta isso –, da ordem da língua – já que a análise conclui em favor de uma generalização sistêmica da temporalidade lingüística – e da ordem das línguas – já que há análises do francês, certamente, mas também do chinook “parlée dans la région du fleuve Columbia” (PLG II, p. 75).

Talvez, então, o mais adequado seja supor que Benveniste fala em “homem na língua”, mas também “na linguagem”, já que isso é sobejamente mostrado nas análises que faz “das línguas”.

Em Benveniste, linguagem, língua e línguas têm direito à existência e integram o sistema conceitual do autor sem se recobrirem teoricamente. Poder-se-ia dizer, sem medo de faltar com a verdade, que Benveniste é um lingüista das línguas – já que era conhecedor de muitas e a elas recorre para validar seu ponto de vista teórico –, mas também o é da língua e da linguagem. Mesmo que muitas vezes Benveniste utilize um termo no lugar de outro20, a compreensão do conjunto de seus textos impede ver sinonímia entre eles ou mesmo hierarquização de valor.

Um pequeno exercício, não exaustivo, de contraposição entre os três termos – linguagem, língua e línguas –, em alguns textos de Benveniste, é suficiente para dar a conhecer as diferentes e complexas relações que eles instauram na teoria benvenistiana.

Primeiramente, a respeito de linguagem encontrei ocorrências em que:

a) linguagem alterna com faculdade, com condição humana ligada a aspectos de expressão simbólica:

[...] le langage représente la forme la plus haute d’une faculté qui est inhérente à la condition humaine, la faculté de symboliser

19 Para contextualizar: Claude Hagège diz que « [...] la 5ème partie des Problèmes (p. 223-285), qui rassemble les six articles fondant la théorie de l’énonciation, s’intitule ‘L’homme dans la langue’ (par une étrange erreur, Benveniste, dans l’Avant-propos, s’y réfère sous le titre ‘l’homme dans le langage’» (HAGEGE, 1986, p. 108). Aya Ono (2007), em nota na página 140 de seu livro, refere essa passagem de Hagège acrescentando que « [...] dans l’optique de Benveniste, l’homme est en même temps dans la langue et dans le langage ». Apenas para não deixar de fazer ouvir a voz de Benveniste nesse debate, vale lembrar a passagem de De la subjectivité dans le langage, em que o autor, falando da ausência de simetria entre “eu” e “tu” diz: « unique est la condition de l’homme dans le langage » (PLG I, p. 260).20A flutuação terminológica em Benveniste é lembrada por Claudine Normand em Les termes de l’énociation chez Benveniste (1986). A título de exemplo, em Structure de la langue et structure de la société, de 1968, que, conforme o título, busca avaliar as relações entre a língua e a sociedade, Benveniste começa o texto dizendo: « Il s’agit en effet d’examiner les relations entre deux grandes entités qui sont respectivament la langue et la société » [PLG II, p.91, grifo meu]. E no parágrafo seguinte afirma: « Le langage est pour l’homme un moyen, en fait le seul moyen d’atteindre l’autre homme, de lui transmettre et de recevoir de lui un message » (PLG II, p. 91, grifo meu]. Não seria inadequado pensar que, no caso da ocorrência de langage, na verdade, Benveniste estaria querendo falar em langue, ou seja, no objeto cuja estrutura é tematizado em relação à estrutura da sociedade.

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(PLG I, p. 26) [Grifo meu.]

[...] la faculté symbolique chez l’homme atteint sa réalisation suprême dans le langage, qui est l’expression symbolique par excellence.

PLG I, p. 28. [Grifo meu.]

b) linguagem é apresentada relativamente a uso ordinário e a uso poético:

Notre domaine sera le langage dit ordinaire, le langage commun, à l’exclusion expresse du langage poétique...

PLG II, p. 216 [Grifo meu.]

c) linguagem ocorre alternando com língua21:

[...] le langage se réalise toujours dans une langue, dans une structure linguistique définie et particulière, inséparable d’une société définie et particulière.

PLG I, p. 29. [Grifo meu.]

L’intersubjectivité a ainsi sa temporalité, ses termes, ses dimensions. Là se reflète dans la langue l’expérience d’une relation primordiale, constante, indéfiniment réversible, entre le parlant et son partenaire. En dernière analyse, c’est toujours à l’acte de parole dans le procès de l’échange que renvoie l’expérience humaine inscrite dans le langage.

PLG II, p. 78. [Grifo meu.]

d) linguagem ocorre alternando com línguas:

L’universalité de ces formes [des pronoms] et de ces notions conduit à penser que le problème des pronoms est à la fois un problème de langage et un problème de langues, ou mieux, qu’il n’est un problème de langues que parce qu’il est d’abord un problème de langage.

PLG I, p. 251. [Grifo meu.]

e) linguagem ocorre alternando com língua e com línguas:

On arrive ainsi à cette constatation – surprenante à première vue, mais profondément accordée à la réelle du langage – que le seul temps inhérent à la langue est le présent axial du discours22, et que ce présent est implicite. [...] Telle paraît être l’expérience fondamentale du temps dont toutes les langues témoignent à leur manière.

PLG II, p. 75. [Grifo meu.]

f) linguagem ocorre alternando com linguagem23:

Ce signe [je] est donc lié à l’exercice du langage et déclare le locuteur comme tel. C’est cette propriété qui fonde le discours individuel, où chaque locuteur assume pour son compte le langage entier. L’habitude nous rend facilement insensibles à cette différence profonde entre le langage comme système de signes et le langage

21 Também em: « [...]le langage est aussi fait humain ; il est, dans l’homme, le lieu d’interaction de la vie mentale et de la vie culturelle et en même temps l’instrument de cette interaction. Une autre linguistique pourrait s’établir sur les termes de ce trinôme : langue, culture, personnalité ». (PLG I, p. 16,Grifo meu.]22 Mesmo não sendo objeto de minha análise neste momento, não poderia deixar de registrar que, nessa passagem, o termo discurso instaura uma relação muito particular entre os outros três termos.23 Em minha opinião, essa é uma das passagens mais complexas do uso do termos linguagem.

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assumé comme exercice par l’individu. Quand l’individu se l’approprie, le langage se tourne en instances de discours...

PLG I, pp. 254-255. [Grifo meu.]

Em segundo lugar, a respeito de língua encontrei ocorrências em que:

a) língua é apresentada em contexto de ocorrência que alterna com língua:

[...] Au plan du signifié, le critère est : cela signifie-t-il ou non ? Signifier, c’est avoir un sens, sans plus. Et ce oui ou non ne peut être prononcé que par ceux qui manient la langue, ceux pour qui cette langue est la langue. Nous élevons donc la notion d’usage et de compréhension de la langue à la hauteur d’un principe de discrimination, d’un critère. C’est dans l’usage de la langue qu’un signe a une existence ; ce qui n’entre pas dans l’usage de la langue n’est pas un signe, et la lettre n’existe pas. Il n’y a pas d’état intermédiaire ; on est dans la langue ou hors de la langue, « tertium non datur ».

PLG II, p. 222. (PLG II, p. 222) [Grifo meu.]

b) língua é apresentada como idioma alternando com língua como sistema de formas:

[...] il y a la langue comme idiome empirique, historique, la langue chinoise, la langue française, la langue assyrienne et il y a la langue comme système de formes signifiantes, conditions premières de la communication.

PLG II, p. 94. [Grifo meu.]

c) língua é apresentada relativamente a discurso:

Sur ce fondement sémiotique, la langue-discours construit une sémantique propre, une signification de l’intenté produite par syntagmation des mots où chaque mot ne retient qu’une petite partie de la valeur qu’il a en tant que signe.

PLG II, p. 229. [Grifo meu.]

Em terceiro lugar, a respeito de línguas encontrei ocorrências em que:

a) línguas é apresentada no sentido de diferentes sistemas lingüísticos em geral:

[...] dans toutes les langues qui possèdent un verbe, on classe les formes de la conjugaison d’après leur référence à la personne.

PLG I, p. 225. [Grifo meu.]

b) línguas é apresentada no sentido de sistemas lingüísticos específicos:

Dans les langues paléosibériennes, [...] les formes verbales du gilyak ne distinguent en général ni personne ni nombre...

PLG I, p. 227.)

A partir desse exercício não quero que se conclua que estou a cobrar alguma coerência terminológica do autor, já que ficam evidentes os diferentes sentidos que cada termo pode assumir. Essa questão é secundária para o meu raciocínio. O breve levantamento de ocorrências dos termos acima me permite, neste momento – e sem que eu possa argumentar mais –, apenas dizer que há em Benveniste uma preocupação em resguardar três instâncias que poderiam ser designadas por linguagem, língua e línguas, mesmo que, como espero ter demonstrado (cf. nota 20), esses termos, por vezes, sejam usados indistintamente.

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Meu interesse é mostrar que as noções co-existem em Benveniste, sem que isso implique que elas ocorram, nos textos efetivos do autor, ligadas sempre aos mesmos itens lexicais. A noção, nesse caso, não corresponderia diretamente ao item lexical utilizado pelo autor em seu texto.

Enfim, desse roteiro de indagações acerca dos termos linguagem, língua e línguas em Benveniste, que instruções programáticas podem ser depreendidas para esboçar os princípios de uma abordagem enunciativa que releve do sujeito da enunciação?

Por ora, considero-as pressupostas no sistema de Benveniste. Nada há que se possa falar na teoria benvenistiana sem antes reconhecer que há em sua teoria as três instâncias. Diria que a admissão da validade dessa interpretação é condição necessária, mesmo que não ainda suficiente, do que passarei a abordar.

2.3 Intersubjetividade, subjetividade e categoria de pessoa

Como disse anteriormente, os termos e as noções da teoria benvenistiana estão de tal maneira interligados que é praticamente impossível falar em um sem falar em outro. No entanto, para fins de construção do meu raciocínio – o que busca entrever um lugar para o sujeito da enunciação na teoria, lugar esse que, creio, pode ser inferido da compreensão da rede conceitual que sustenta essa noção – tentarei estabelecer um viés de leitura.

O tema da intersubjetividade é recorrente em Benveniste, porém, o uso da palavra intersubjetividade é menos comum se comparado a subjetividade e a pessoa. Observe-se, a seguir:

Bien des notions en linguistique, peut-être même en psychologie, apparaîtront sous un jour différent si on les rétablit dans le cadre du discours, qui est la langue en tant qu’assumée par l’homme qui parle, et dans la condition d’intersubjectivité, qui seule rend possible la communication linguistique.

PLG I, p. 266. [Grifo meu.]

[...] Le temps du discours n’est ni ramené aux divisions du temps chronique ni enfermé dans une subjectivité solipsiste. Il fonctionne comme un facteur d’intersubjectivité, ce qui d’unipersonnel qu’il devrait être le rend omnipersonnel. La condition d’intersubjectivité permet seule la communication linguistique.

PLG II, p. 77. [Grifo meu.]

O que parece saltar aos olhos nessas duas passagens é a idéia de intersubjetividade24 como “condição de”, o que se coaduna com a interpretação que apresentei anteriormente sobre a indissociabilidade entre homem e linguagem – e que por força retórica chamei de a priori radical – a partir da leitura de De la subjectivité

24 Que não se confunda intersubjetividade com comunicação intersubjetiva, termo também presente nos PLG: « Le langage re-produit la réalité. Cela est à entendre de la manière la plus littérale : la réalité est produite à nouveau par le truchement du langage. Celui qui parle fait renaître par son discours l’événement et son expérience de l’événement. Celui qui l’entend saisit d’abord le discours et à travers ce discours, l’événement reproduit. Ainsi la situation inhérente à l’exercice du langage qui est celle de l’échange et du dialogue, confère à l’acte de discours une fonction double : pour le locuteur, il représente la réalité ; pour l’auditeur, il recrée cette réalité. Cela fait du langage l’instrument même de la communication intersubjective » (PLG I, p. 25)

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dans le langage. A linguagem é “condição do” homem – já que é ela que “enseigne la définition même de l’homme” – que nela está sob a “condição de intersubjetividade”.

Isso se confirma na passagem seguinte, em que Benveniste fala de uma “expérience humaine inscrite dans le langage”, ao que faz um acréscimo fundamental: trata-se de uma experiência que “se reflete dans la langue”. Diz ele:

L’intersubjectivité a ainsi sa temporalité, ses termes, ses dimensions. Là se reflète dans la langue l’expérience d’une relation primordiale, constante, indéfiniment réversible, entre le parlant et son partenaire. En dernière analyse, c’est toujours à l’acte de parole dans le procès de l’échange que renvoie l’expérience humaine inscrite dans le langage.

PLG II, p 78. [Grifo meu.]

Aqui, intersubjetividade aparece como correlativa a uma “experiência humana” que “se reflète dans la langue”.

É nesse ponto que se coloca um tema bastante delicado da teoria benvenistiana. Benveniste apresenta a linguagem – e isso fica claro em De la subjectivité dans le langage – como condição de existência do homem e como tal sempre referida ao outro, o que acaba por vincular linguagem e intersubjetividade. A linguagem é constitutiva do homem na justa medida em que a intersubjetividade lhe é inerente, sem o que não se poderia encontrar “dans le monde, un homme parlant à un autre homme”.

Assim, poder-se-ia dizer que a mesma linguagem que “est dans la nature de l’homme, qui ne la fabrique” (PLG I, p. 259) é constitutiva desse homem sob a “condition d’intersubjectivité”. E é essa condição que “se reflète dans la langue”.

E como se poderia entender este “se reflete dans la langue”?

Em De la subjectivité dans le langage, ele diz: “c’est dans et par le langage que l’homme se constitue comme sujet...” (PLG I, p. 259). Esse “dans et par le langage” é fundamental porque confere à linguagem a propriedade de ser, ao mesmo tempo, “condição de” e “meio para”. O “dans le langage” diz respeito à condição do homem; o “par le langage” diz respeito ao “se reflete dans la langue”.

É preciso atentar ainda para algumas marcas tipográficas do texto De la subjectivité dans le langage. Diz Benveniste:

[...] c’est dans et par le langage que l’homme se constitue comme sujet ; parce que le langage seul fonde en réalité, dans sa réalité qui est celle d’être, le concept d’« ego ».

PLG I, p. 259.

O itálico de sa o remete indubitavelmente a sujet, também em itálico. Há a passagem de uma visão de homem para uma visão de sujeito, e isso ocorre em “dans et par le langage”.

A partir desse raciocínio é que, creio, se inclui a questão da subjetividade. Observe-se:

[...] la « subjectivité » dont nous traitons ici est la capacité du locuteur à se poser comme « sujet ».

PLG I, p. 259.

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Agora são as aspas que garantem a coesão da frase. Trata-se, nesse caso, de uma “subjectivité” que marca a passagem de “locuteur” a “sujet”. Essa passagem se dá “dans et par le langage”.

Para Benveniste, tal “subjectivité” “se determine par le statut linguistique de la ‘personne’ ” (PLG I, p. 260).

A noção de “personne” tem “statut linguistique” e, por isso, pode ser assimilada ao que “se reflete dans la langue”. O fundamento da subjetividade é dado pela categoria de pessoa, presente no sistema da língua através de determinadas formas (o pronome eu, por exemplo). A intersubjetividade – onde “Je n’emploie je qu’en m’adressant à quelq’un, qui sera dans mon allocution un tu” (PLG I, p. 260) e que foi antes apresentada como correlativa à “experiência humana” que “se reflète dans la langue” – aparece agora como também constitutiva da categoria de pessoa, já que “le langage n’est possible que parce que chaque locuteur se pose comme sujet, en renvoyant à lui-même comme je dans son discours” (PLG I, p. 260).

A discussão em torno da noção de pessoa é uma das primeiras elaboradas por Benveniste no escopo da sua reflexão. Ela está presente já em Estruturas das relações de pessoa no verbo, de 194625, onde é formulada uma teoria lingüística da pessoa verbal – obtida a partir do questionamento relativo à noção clássica de pessoa, característica do verbo e dos pronomes pessoais – com base na estrutura opositiva entre as pessoas eu/tu e a não-pessoa ele. O autor as distingue a partir de duas correlações: a de personnalité – presente em eu/tu e ausente em ele – e a de subjectivité – marca exclusiva do eu. Benveniste volta-se contra a simetria que coloca eu, tu e ele no mesmo plano conceitual26.

O princípio utilizado por Benveniste para explicar a oposição entre “eu”, “tu” e “ele” decorre do que chama de “la langue en emploi et en action”27. É a partir dela que o autor pode afirmar que a “primeira pessoa” e a “segunda” se opõem à “terceira”, porque as duas primeiras estão implicadas na “língua em emprego”, ao passo que a “terceira” não.

O critério distintivo da “primeira” em relação à “segunda”, por sua vez, é o que, mais tarde, Benveniste considerará como uma das noções de enunciação28 desenvolvida ao longo de seus estudos, uma vez que “ ‘Je’ désigne celui qui parle et implique en même temps un énoncé sur le compte de ‘je’: disant ‘je’, je ne puis ne pas parler de moi” (PLG I, p. 228). Em outras palavras, “est ‘ego’ qui dit ‘ego’ ” (PLG I, p. 260), o que instaura uma diferença de “je” em relação a “tu”, já que “ ‘tu’ est nécessairement designé par ‘je’ et ne peut être pense hors d’une situation posée à partir de ‘je’ ” (PLG I, p. 228).

Desfaz-se, assim, a simetria entre “eu” e “tu”. Entre um e outro há oposição e complementaridade, uma vez que a referência é atribuída, simultaneamente, a ambos. O mesmo ato que dá existência a “eu” dá existência a “tu”. A noção de pessoa é, ela

25 O tema aparece também em La nature des pronoms¸de 1956. 26 Para ele, « à ranger dans un ordre constant et sur un plan uniforme des ‘personnes’ définies par leur succession et rapportées à ces êtres que sont ‘je’, ‘tu’ et ‘il’ on ne fait que transposer en une théorie pseudo-linguistique des différences de nature lexicale » (PLG I, p. 226).27« La notion de sémantique nous introduit au domaine de la langue en emploi et en action ; nous voyons cette fois dans la langue sa fonction de médiatrice entre l’homme et l’homme, entre l’homme et le monde, entre l’esprit et les choses [...] » (PLG II, p. 224)28 Para aprofundar o estudo sobre a enunciação em Benveniste, ver: ONO, Aya. La notion d’énonciation chez Émile Benveniste. Limoges: Lambert-Lucas, 2007.

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mesma, constituída pela reciprocidade: o dizer que implica a subjetividade também implica a intersubjetividade. Disso decorre a dualidade e a indissociabilidade da noção de pessoa. Estão na língua, juntas, subjetividade e intersubjetividade.

Em termos de encaminhamento de meu raciocínio, diria que as três instâncias antes identificadas no pensamento de Benveniste – linguagem, língua e línguas – se fazem acompanhar, mesmo que não com estatutos equivalentes, de intersubjetividade, subjetividade e pessoa.

2.4 Homem, locutor, sujeito

Meu ponto de partida para tratar a relação entre os três termos listados no título desta seção é a segunda parte do texto Coup d’oeil sur le développement de la linguistique, publicado em 1963 e constante da Parte I, Transformation de la linguistique, do PLG I. O texto se propõe a avaliar os desenvolvimentos recentes da lingüística. Interessa-me, especialmente, a discussão que é dedicada à “fonction du langage”, apresentada após a primeira parte, que é dedicada à análise da “forme linguistique”.

Benveniste, para falar da “fonction du langage”, utiliza sobremaneira a palavra homem num sentido muito próximo daquele presente em De la subjectivité dans le langage, de 1958. Diz ele, em 1963:

[...] c’est qu’il n’y a pas de relation naturelle, immédiate et directe entre l’homme et le monde, ni entre l’homme et l’homme. Il y faut un intermédiaire, cet appareil symbolique, qui a rendu possibles la pensée et le langage. Hors de la sphère biologique, la capacité symbolique est la capacité plus spécifique de l’être humain.

PLG I, p. 29. [Grifo meu.]

A vinculação da linguagem ao próprio do homem não é estranha ao pensamento benvenistiano. Exemplos que ilustram isso não faltam no conjunto dos textos. Assim é que se podem encontrar as seguintes passagens: em De la subjectivité dans le langage: “Le langage est dans la nature de l’homme, qui ne l’a pas fabriqué” (PLG I, p. 259); em Communication animale et langage humaine, de 1952: “Appliquée au monde animal, la notion de langage n’a cours que par un abuse de termes” (PLG I, p. 56); em Catégories de pensée et catégories de langue, de 1958: “... la possibilité de la pensée est liée à la faculté de langage” (PLGI, p. 74); em Le langage et l’expérience humaine, de 1965: “... c’est toujours à l’acte de parole dans le procès de l’échange que renvoie l’expérience humaine inscrite dans le langage” (PLG II, p. 78). Parece possível, então, resguardar esta conclusão: em Benveniste, antes de qualquer coisa, linguagem e homem são indissociáveis.

O termo locutor, por sua vez, tem muitas nuances no raciocínio de Benveniste. Para falar em locutor no escopo da teoria benvenistiana, é fundamental recorrer aqui à leitura de Aya Ono (2007), em La notion d’énonciation chez Émile Benveniste.

Ono (2007) precisa a necessidade teórica do termo no pensamento de Benveniste. Ao falar de “la phrase comme réalisation”, a autora, comentando a resposta dada por Benveniste à pergunta de Paul Ricoeur sobre a possibilidade de a frase ser admitida no nível do semiótico (cf. La forme et le sens dans le langage), considera que:

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[...] la phrase se réalise dans le temps et dans l’espace par une combinaison syntagmatique des mots, et elle est actualisée par un locuteur qui réalise cette double opération – la syntagmation et l’actualisation – dans le discours. Le concept de locuteur est donc indispensable pour articuler sémiotique et sémantique.

Ono, 2007, p. 7129 [Grifo meu.]

Essa referência a Aya Ono cumpre aqui o duplo propósito de, por um lado, apresentar uma interpretação sobre a noção de locutor em Benveniste sobre a qual, em minha opinião, não cabe emenda e, por outro lado, para assinalar que, admitidas as informações de Ono, é possível concluir que o termo locutor reveste-se de um sentido, no mínimo, distinto daquele que pode ser atribuído a homem e também, como se verá adiante, a sujeito.

Isso posto, gostaria de fazer alusão ainda a outras observações de Aya Ono. A questão do locutor volta a ser abordada pela autora no item “Troisième instance: la subjectivité hors du langage” de seu livro. Ono, nesse item, parte do texto de Claudine Normand, também aqui lembrado, Les termes de l’énociation chez Benveniste, para destacar a ausência do sintagma sujet de l’énonciation (e também sujet d’énonciation). A autora formula uma observação que é de sumo interesse para mim. Diz ela:

Bien qu’il [Benveniste] ne développe le concept du sujet ni dans la théorisation du sémantique ni dans la problématique des déictiques, il laisse une place vide, assigné au sujet, dans sa linguistique.

Ono, 2007, p. 163.

Para desenvolver essa idéia, Ono elabora duas hipóteses das quais apenas a primeira será aqui retomada, ou seja, a hipótese de que “oppose le locuteur au e sujet” (Ono: 2007, p. 163). A autora argumenta que “Il faut préciser le statut du locuteur” (Ono: 2007, p. 164). Retomando a idéia de “appropriation”30, presente em L’appareil formel de l’énonciation, de 1970, e a idéia do “s’approprier”31, presente em De la subjectivité dans le langage, de 1958, Ono explica ainda que tais palavras podem enviar a uma “initiative individuelle” (Ono: 2007, p. 164), “Benveniste semble ici viser autre chose” (Ono: 2007, p. 164). Para ela:

Benveniste souligne indiscutablement l’initiative du langage dans ce procès d’appropriation. Le langage conduit chaque locuteur à s’approprier de la langue. Autrement dit, le locuteur se laisse entraîner par le langage au sein du procès de l’énonciation. Le locuteur est invité à parler, et en conséquence, s’approprie la langue.

Ono, 2007, p. 165.

29 Ou ainda, por apreço à clareza: « Benveniste souligne à plusieurs reprises que le sémantique est le domaine de la langue en action et en emploi. Cette actualisation du système introduit nécessairement l’idée du locuteur qui utilise la langue. En effet, le locuteur intervient dans la théorisation du sémantique comme concept qui déclenche l’ensemble des opérations » (ONO, 2007, p. 126,grifo meu]. « Ainsi, l’actualisation de la langue suppose le locuteur qui réalise la langue en un discours muni de sens et de référence » (ONO, 2007, p. 126,grifo meu].30 “... l’énonciation peut se définir, par rapport à la langue, comme un procès d’appropriation” (PLG II, p. 82)31 “Le langage est ainsi organizé qu’il permet à chaque locuteur de s’approprier la langue entière en se désignant comme je” (PLG I, p. 262)

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A conseqüência desse raciocínio de Aya Ono é que “dans cette terminologie, le locuteur n’est pas le sujet.” (Ono: 2007, p. 165), conclusão com a qual estou de pleno acordo e nada penso acrescentar.

Precisados os termos homem e locutor, é chegado o momento de melhor entender o termo sujeito. Para dele falar, embora eu esteja de acordo com Aya Ono quando diz que “... il laisse une place vide, assignée au sujet, dans sa linguistique” (Ono: 2007, p. 163), pretendo seguir um caminho próprio, um caminho que, em minha opinião, abre a teoria de Benveniste à exterioridade teórica da lingüística e, por essa abertura, penso poder falar algo sobre sujeito da enunciação.

Em primeiro lugar cabe lembrar que não se trata de precisar em Benveniste o termo sujeito da enunciação, uma vez que se admite, com Normand (1986), a inexistência do termo na teoria benvenistiana. Também não se trata de procurar o termo sujeito do enunciado, esse também não utilizado por Benveniste.

O que está em questão aqui é apenas o termo sujeito em algumas de suas numerosas ocorrências O termo aparece, nos textos de Benveniste, em diferentes sentidos e, evidentemente, transcenderia os meus objetivos o levantamento de todos. Meu propósito, aqui, é mais simples: quero apenas verificar se, dos usos do termo sujeito feito por Benveniste, é possível depreender algo do que chamo de sujeito da enunciação, ou, ainda, do que considero ser um ponto de abertura da lingüística de Benveniste à exterioridade teórica.

Excetuadas as ocorrências em que sujeito tem uso próximo a estudos da tradição gramatical ou relativos à sintaxe em seu aspecto formal, um breve levantamento me permitiu vislumbrar algumas ocorrências e seus respectivos sentidos aproximativos.

Encontrei usos que se poderia chamar de não-teóricos, já que eles não têm grandes implicações no conjunto da reflexão: trata-se, nesse caso, de sujeito relativo a indivíduo que fala. Em Structure des relations de personne dans le verbe, de 1946, Benveniste, comentando a ordem social presente nas distinções verbais do coreano, diz que “les formes sont diversifiées à l’extrême selon le rang du sujet et de l’interlocuteur, et varient suivant qu’on parle à un supérieur, à un égal ou à un inférieur” (PLG I, p. 226) [grifo meu].

Não muito distante desse uso está uma ocorrência de sujeito em L’appareil formel de l’énonciation. Ao falar da realização vocal da língua e da prática científica que procura eliminar ou atenuar os traços individuais da enunciação, Benveniste diz que o lingüista recorre “... à des sujets différents” (PLG II, p. 80) para multiplicar os registros e alerta que a noção de identidade, em se tratando de realização vocal, é apenas aproximativa, já que “... chez le même sujet, les mêmes sons ne sont jamais reproduits exactement...” (PLG II, p. 81).

Há, também, usos cuja especificidade decorre da alternância com outros termos. Como em Structure de la langue et structure de la societé, de 1968, em que a especificidade de sujeito decorre da alternância com parlant: “Pour chaque parlant le parler émane de lui et revient à lui, chacun se détermine comme sujet à l’égard de l’autre ou des autres” (PLG II, p. 98).

As nuances de sentido podem se complexificar ainda mais em função dos termos que co-ocorrem com sujeito. Observe-se a passagem a seguir, presente em La nature des pronoms, em que Benveniste utiliza, primeiramente, a expressão “sujet parlant” entre aspas e, em seguida, diz: “c’est en s’identifiant comme personne unique prononçant je que chacun des locuteurs se pose tour à tour comme ‘sujet’ ” (PLG I, p.

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254) [grifo meu]. Há aqui termos que não se recobrem teoricamente: sujet parlant, personne, locuteurs e sujet.

Essa co-ocorrência de termos destacada acima é bastante importante para o desenvolvimento da leitura que faço de Benveniste, porque dela, em minha opinião, é possível depreender uma idéia de “passagem” de uma instância a outra.

Por motivos óbvios, o termo adquire grande relevância teórica em De la subjectivité dans le langage, de 1958. Nesse texto, Benveniste parece deixar entrever que o sujeito não é nem homem – “C’est dans et par le langage que l’homme se constitue comme sujet.” (PLG I, p. 259) [grifo meu] – , nem locutor – “La ‘subjectivité’ dont nous traitons ici est la capacité du locuteur à se poser comme ‘sujet’ ” (PLG I, p. 259) [grifo meu]32.

Na leitura que faço, o sujeito poderia ser pensado como um efeito da apropriação, como um efeito do “mise en fonctionnement de la langue par un acte individuel d’utilisation” (PLG II, p. 80), da “conversion individuelle de la langue en discours” (PLG II, p. 81). Isso me permite dizer que a apropriação da qual fala Benveniste não pode ser vista como um mero “tomar posse de”, o que estaria em oposição às idéias do autor. O sentido de apropriação, para mim, é mais próximo de “tornar próprio de si”. Nesse sentido, não seria um contra-senso dizer que o sujeito seria da enunciação porque ele adviria da enunciação.

No entanto, para desenvolver essa idéia, a de um sujeito que advém da enunciação, é necessário problematizar – e eu não farei mais do que anunciar isso aqui – as noções de semiótico e semântico e as de forma e sentido, em Benveniste. Isso porque, na interpretação que faço, enunciar, na medida em que é “... cette mise en fonctionnement de la langue par um acte individuel d’utilisation”, é também um ato de “agencement des mots”, um “agencement syntagmatique” (PLG II, p. 225) que implica uma relação específica entre a forma e o sentido.

Não é de estranhar, portanto, que Benveniste vá falar – e o termo é fundamental para o que estou propondo – em uma “syntaxe d’énonciation” exatamente quando fala do locutor “se poser” como sujeito: Diz ele:

Chaque locuteur ne peut se poser comme sujet qu’en impliquant l’autre, le partenaire qui, doté de la même langue, a en partage le même répertoire de formes, la même syntaxe d’énonciation et la même manière d’organiser le contenu.

PLG I, p. 25. [Grifo meu.]

Esta “syntaxe d’énonciation” é, ao meu ver, a condição única de presença do homem na língua, cuja característica principal é a relação singular entre a forma e o sentido33 que se dá pela “conversion individuelle de la langue en discours”, ou seja, pela enunciação.

O sujeito seria da enunciação na justa medida em que ele adviria, como um efeito semântico, dessa “syntaxe d’énonciation”.

32 Ou ainda: « Le langage n’est possible que parce que chaque locuteur se pose comme sujet, en renvoyant à lui-même comme je dans son discours» (PLG I, p. 260) . « C’est dans l’instance de discours où je désigne le locuteur que celui-ci s’énonce comme ‘sujet’ » (PLG I, p. 262.grifo meu].33 Normand (1997, p. 227), ao observar que a análise da significação, em Benveniste, está ligada à propriedade da integração entre forma e sentido, fala acerca de “l’especifité d’une langue naturelle par rapport à une langage logique est de signifier d’emblée”.

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Para falar desse sujeito que advém pela enunciação, eu gostaria de me apropriar de uma consideração de Claudine Normand – mesmo que correndo o risco de descontextualizar a reflexão da autora – presente em texto de abertura das atas do Colloque international de Cerisy- La Salle (septembre 1998) Linguistique et psychanalyse, intitulado Linguistique et/ou psychanalyse: de leur relation si elle existe. A autora encerra seu texto, que avalia as relações entre lingüística e psicanálise, dizendo:

Dans ce type d’écoute où l’oreille analytique et l’oreille linguistique se confortent, on s’aperçoit que le sujet de l’énonciation, loin de se limiter à une catégorie d’unités linguistiques dont le rôle et la place seraient bien cernés (les fameux shifters), peut se manifester et multiplier les significations n’importe où, là où on l’attendrait le moins ; ce que pressentait, je crois, Benveniste quand il distinguait le sémantique du sémiotique, mais sans accepter toutes les conséquences de cette inquiétante découverte.

Normand, 2001, p. 29. [Grifo meu.]

Eu também acredito que o sujet de l’énonciation não se limita ao lugar classicamente concedido ao “fameux shifter”; eu também acredito que ele “peut se manifester et multiplier les signications n’importe où, là où on l’attendrait” e eu também acredito que é isso “que pressentait, (...), Benveniste quand il distinguait le sématinque du sémiotique”.

Para mim, esse sujet de l’énonciation está indelevelmente ligado à syntaxe d’énonciation.

De minha parte, a presença na reflexão lingüística desse sujeito da enunciação – que advém da enunciação, que se inscreve numa “syntaxe d’énonciation” e que “dans et par” ela tem existência – exige do lingüista a convocação de uma exterioridade teórica à lingüística, exatamente porque essa “syntaxe d’énonciation”, longe de se apresentar como uma fórmula generalista qualquer, é a marca específica de uma relação singular (dissimétrica?) entre forma e sentido.

PARTE 3 – LE COMPAGNONNAGE LINGUISTQUE-PSYCHANALYSE

Authier-Revuz (2001) inicia um texto seu – cujo título, Psychanalyse et champ linguistique de l’énonciation: parcours dans la méta-énonciation, ao menos em parte, ilustra bem o tema de que quero aqui tratar – dizendo que “le compagnonnage linguistique-psychanalyse ne m’est pas toujours apparu comme une evidénce” (2001, p. 91).

Colocar o campo da enunciação em “compagnonnage” da psicanálise não me aparece algo evidente também, motivo pelo qual quem o faz deve se justificar para fazê-lo. Por enquanto, apenas sublinho que a syntaxe d’énonciation requer ser referida a uma exterioridade teórica que destitua o sujeito de uma posição de origem do sentido.

Convoco como exterioridade teórica à lingüística pontos específicos da teoria psicanalítica. Trata-se, em especial, da teorização feita por Jacques Lacan acerca da dupla sujeito do enunciado/sujeito da enunciação porque, através dessa discussão, Lacan falará no famoso shifter.

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Minha hipótese – conscientemente aqui exposta de maneira muito rápida e que mereceria, portanto, maior aprofundamento – é que as considerações de Lacan acerca dessa dupla podem lançar alguma luz sobre o que designei acima pelo termo benvenistiano syntaxe d’énonciation, o qual, em minha opinião, marca uma relação específica e singular entre forma e o sentido, relação da qual considero que advém o sujeito da enunciação.

Lacan, a partir da consideração à clínica das psicoses, faz alusão a uma distinção entre o je e o moi34, retomada em inúmeros momentos de sua obra e dos quais destacarei apenas alguns. No seminário desenvolvido entre 1955-1956, conhecido como Le Seminaire III – Les psychoses, Lacan evoca uma apresentação clínica a respeito do delírio paranóico, para, a partir disso, falar, em outro momento (nos Écrits), em sujeito da enunciação.

Observe-se, primeiramente o relato de Lacan presente no Seminário35:

Elle m’a tout de même livré qu’un jour, dans le couloir, au moment où elle sortait de chez elle, elle avait eu affaire à une sorte de mal élevé dont elle n’avait pas à s’étonner, puisque c’était ce vilain homme marié qui était l’amant régulier d’une de ses voisines aux mœurs légères. À son passage, celui-ci [...] lui avait dit un gros mot, un gros mot qu’elle n’était pas disposée à me répéter, parce que, comme elle s’exprimait, cela la dépréciait. Néanmoins [...], après cinq minutes d’entretien, à une bonne entente, et là-dessus elle m’avoue qu’elle n’était pas sur ce point tout à fait blanche, car elle avait elle-même dit quelque chose au passage. Ce quelque chose, elle me l’avoue plus facilement que ce qu’elle a entendu, et c’est – je viens de chez le charcutier [...] et alors, [...], qu’a-t-il dit, lui ? Il a dit – truie.

Séminaire III, 1981, pp. 59-60.36

A isso Lacan acrescenta, à página 62:

Qui est-ce qui parle ? Puisqu’il y a hallucination, c’est la réalité qui parle [...]. Il n’y a pas là-dessus d’ambiguïté, elle ne dit pas : J’ai eu le sentiment qu’il me répondait – truie – elle dit –J’ai dit – Je viens de chez charcutier, et il m’a dit – Truie.

Séminaire III, 1981, p. 62. [Grifo meu.]

Ainda lembrando o Seminário III, assim Lacan conclui a aula de 6 de junho de 1956:

Ce que je vous propose est encore tout à faire grossier, mais c’est le point à partir de quoi nous pourrons la prochaine fois examiner le rôle

34 O francês distingue dois empregos do que em português se traduz por eu. Há o je, que funciona como sujeito sintático e o moi que ocupa as demais funções. É nesses momentos - em que as línguas desafiam a ordenação universalista idealizada pela lingüística - que o recurso a um grande lingüista é de extrema precisão: no texto clássico L’antonyme et le pronom en français moderne, de 1965, Benveniste explique la différence entre le je et le moi: “je (...) c’est la forme toujours conjointe du pronom, immédiatement préposée à la forme verbale dans l’assertion, postposée dans la interrogation. Hormis l’impératif et les formes nominales du verbe, aucune forme verbale n’est susceptible d’imploi sans pronom” (Benveniste, 1966/ 1965, p. 199). O emprego de moi, que Benveniste chama de pronome autônomo, é bem maior e aparece em distribuição complementar em relação à série combinada, a de je.35 Tentarei reproduzir na citação abaixo, em um bloco, o que Lacan relata entre as páginas 59 e 61 do referido seminário, fazendo as devidas intercalações visando manter o máximo possível o fio narrativo proposto por Lacan.36 Os Séminaire de Jacques Lacan serão aqui referidos pela notação Séminaire seguida do número da data e da página da edição utilizada.

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de la personnaison du sujet, à savoir la façon dont se différencient en français je et moi.

Séminaire III, 1981, p. 304.

Em D’une question préliminaire à tout traitement possible de la psychose – texto que integra os Écrits e que resume parte do seminário ocorrido durante os dois primeiros trimestres do ano letivo de 1955-1956 – Lacan procede a um raciocínio que coloca em evidência a pergunta “quem fala?” feita por ocasião do Seminário. A frase Je viens de chez charcutier evoca por alusão uma referência a Porco, referência essa também presente na palavra delirante Truie. A questão que Lacan se pergunta é: por que ela não diz, mas faz alusão ao dizer? Ela não diz Truie, mas faz alusão a isso, através do delírio Je viens de chez charcutier. Diz Lacan:

À notre fin présente il suffit que la malade ait avoué que la phrase était allusive, sans qu’elle puisse pour autant montrer rien que perplexité quant à saisir sur qui de coprésents ou de l’absente portait l’allusion, car il apparaît ainsi que le je, comme sujet de la phrase en style direct, laissait en suspens, conformément à sa fonction dite de shifter en linguistique, la désignation du sujet parlant aussi longtemps que l’allusion [...] restait elle-même oscillante.

Écrits, 1981, p. 53537

Faço ainda uma última referência à díade sujeito do enunciado/sujeito da enunciação. Em Subversion du sujet et dialectique du désir dans l’inconscient freudien, presente também em Écrits, Lacan reconhecendo “(...) la structure du langage dans l’inconscient” (p. 874), pergunta: “Quel type de sujet peut-on lui concevoir?”. Em resposta, declara:

On peut ici tenter, dans un souci de méthode, de partir de la définition strictement linguistique du je comme signifiant : où il n’est rien que le shifter ou indicatif qui dans le sujet de l’énoncé désigne le sujet en tant qu’il parle actuellement.

C’est dire qu’il désigne le sujet de l’énonciation, mais qu’il ne le signifie pas.

Écrits, 1981, p. 800. [Grifo meu.]

Guardadas as devidas diferenças, e sem querer fazer equivalências que facilmente passariam por grosseiras, acredito que essa afirmação de Lacan, feita no campo da psicanálise, segundo a qual o shifter “désigne le sujet de l’énonciation, mais qu’il ne le signifie pas”, não se opõe ao que diz Claudine Normand no campo da lingüística, quando considera “que le sujet de l’énonciation” está “loin de se limiter à une catégorie d’unités linguistiques dont le rôle et la place seraient bien cernés (les fameux shifters)”.

Sem dúvida, se pode argumentar que o “loin de se limiter” utilizado por Normand não é da mesma natureza que o “il ne le signifie pas” de Lacan, no que estou de acordo. De minha parte, estou apenas assinalando que não acredito existir antinomia entre as duas considerações.

Na verdade, quero, com base nelas, esboçar, na última parte deste texto, uma reflexão que considere a singularidade enunciativa. E penso em fazer isso a partir da aceitação de que o sujeito da enunciação advém “dans e par” a enunciação, que ele não se limita ao famoso shifter – aliás, a coincidência entre o sujeito da enunciação e o

37 Os Écrits são aqui referidos pela notação Écrits seguida da data e da página da edição utilizada.

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shifter não é, em minha opinião, mais do que aparência, porque, como diria Lacan, este pode até designá-lo, mas não o significa – e que ele se marca singularmente numa syntaxe d’énonciation.

Antes de passar a esse esboço (cf. Parte 4), faço ainda algumas últimas observações acerca dessa questão lacaniana. O que se pode entender da afirmação de Lacan, segundo a qual o “Je” “désigne le sujet de l’énonciation, mais qu’il ne le signifie pas”? Nesse ponto, me faço acompanhar do trabalho de Michel Arrivé (2001), Lacan grammairien: la grammaire française modèle de l’inconscient?, que trata, nesse texto, especificamente do “problème des shifters”.

Arrivé considera que Lacan, ao dizer que o shifter “désigne le sujet de l’énonciation, mais qu’il ne le signifie pas”, “... s’insurge contre l’idée que le shifter puisse signifier le sujet de l’énonciation” (p. 244) e que a disjunção operada por Lacan entre designação e significação coloca três questões assez troublantes. São elas: a evidência com que Lacan trata o fato de o shifter poder designar sem significar; a possibilidade de que o sujeito da enunciação venha a ser significado por outro elemento – Arrivé lembra a presença da referência ao ne expletivo em Lacan –; e, finalmente, a impossibilidade da “coalescence des deux sujets” (o je do enunciado que designa o sujeito da enunciação sem significá-lo).

Sobre essa última questão, de especial interesse para mim, diz Arrivé:

Serait-ce donc qu’il y a entre l’énoncé et l’énonciation un clivage complet, une discordance absolue ? Là encore la réponse de Lacan est totalement assurée : oui, il y a bien « béance », « discordance », Spaltung – division, scission, clivage – entre l’énoncé et l’énonciation.

p. 246

Portanto, quem fala? (cf. Le Séminaire III, 1981, p. 62). A resposta do psicanalista parece relevar da distinção radical entre o que é da ordem da designação e o que é da ordem da significação.

Há também uma cisão entre o real e o simbólico – na medida em que aquele não pode estar integralmente contido neste –; também há uma cisão radical no sujeito do desejo, do inconsciente, em que o je apenas o apreende enquanto efeito. É uma clivagem radical (a Spaltung freudiana), que, pelo mesmo movimento que dá ao sujeito um lugar no simbólico, o representa como um efeito. Ou seja, o je designa, mas não é o sujeito da enunciação. Para Lacan – admitida a clivagem radical (Spaltung) entre enunciado e enunciação –, o Je, como marca que é, não une sujeito do enunciado e sujeito da enunciação, ele apenas designa o sujeito da enunciação que, por sua vez, está em outro lugar, está no que Lacan denomina, em Remarques sur le rapport de Daniel Lagache, uma “chaîne d’énonciation”, como “lieu où le sujet est implicite comme discours” (Écrits, 1981, p. 664). A enunciação, para Lacan, é uma cadeia de enunciação.

A clivagem suposta por Lacan entre sujeito do enunciado e sujeito da enunciação é estranha aos olhos de um lingüista, e sua resposta à pergunta quem fala? é previsível, porque o lingüista até pode distinguir metodologicamente a enunciação do enunciado, mas teria de ficar com os olhos menos impassíveis que os de Sirius para admitir a Spaltung entre eles.

O lingüista não poderia, sem ver ameaçado seu lugar (imaginário?), admitir a Spaltung. Nesse sentido, não creio que a psicanálise, como clínica que é, possa ser colocada como um exterior com o qual a lingüística possa estar articulada, no sentido de formarem, ambas, uma positividade. No máximo, lingüística e psicanálise podem estar

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implicadas a partir de um ponto específico: aquele em que o lingüista se sente concernido pela existência do inconsciente.

O lingüista e o inconsciente, e não mais a lingüística e a psicanálise. Talvez seja isso que indique Jean-Claude Milner, em 1978, quando intitula o penúltimo capítulo de seu L’amour de la langue – exatamente o capítulo anterior ao Envoi – de Du linguiste. Talvez seja disso que fale Milner, quando, nas análises que faz às páginas 119 e 120 de seu livro, considera que

[...] le sujet d’énonciation : dans une première lecture, on a là un concept positif de la linguistique, qui, à des fins de pure description, doit le distinguer du sujet d’énoncé. Au plus ras des phénomènes, ne serait-ce que pour penser la possibilité du je, il lui faut poser que tout énoncé peut être rapporté à un point, dont ne suppose rien sinon qu’il énonce. Mais immédiatement, un tel concept s’ouvre à une autre lecture : le point auquel l’énoncé est rapporté est en même temps posé comme un sujet, et la possibilité demeure qu’il subjective l’énoncé d’une manière qui échappe à la représentation.

Milner, 1978, pp. 119-121.

A isso Milner acrescenta:

[...] pour peu que le linguiste ne manque pas d’un certain tact, pourra s’accomplir en quelque point des écritures savantes l’heureuse coïncidence de la règle et du Witz.

Milner, 1978, p. 133.

Finalmente, a conclusão – para mim, absolutamente reveladora – de que o inconsciente sobre o qual a psicanálise fala talvez tenha mais a dizer ao lingüista do que propriamente à lingüística, somente me foi possível de ser formulada depois do encontro com o belo livro de Claudine Normand (2006), Allegro ma non troppo. Num capítulo instigante intitulado D’une analyse à l’autre, ela fala, dentre outras coisas, sobre as análises que faz em Bouts, brins, bribes. Petite grammaire du quotidien (2002) e, em especial, sobre uma afirmação sua proferida por ocasião da apresentação de Bouts, brins, bribes. A afirmação é: “je n’aurais pas écrit (et n’écrivais pas) le genre d’articles qui ont été rassemblés dans ce livre si je n’avais pas ‘fait’ (comme on dit) une psychanalyse” (Normand: 2006, p. 113)38.

Normand desenvolve esse delicado tema dizendo:

[...] pour que cette tentative ait quelque intérêt pour d’autres que moi il faudrait pouvoir montrer qu’entre l’expérience singulière d’une cure (dont le discours, comme tel, ne concerne que l’analysant et, éventuellement, l’analyste) et la pratique des linguistes, ce qu’ils peuvent dire et écrire de leur objet, qu’entre ces deux expériences, il peut y avoir un rapport qui soit autre qu’entièrement singulier.

Normand, 2006, p. 113.

38 Esse comentário que faço sobre Allegro ma non troppo nem de longe faz justiça à fecundidade das idéias que o livro carrega. Nem mesmo minha referência ao capítulo é justa, uma vez que, assim descontextualizada, ela não apresenta toda a complexidade do que é ali formulado. O correto seria transcrevê-lo na íntegra, mas, na impossibilidade disso, resta lembrar ao leitor da parcialidade do que é aqui apresentado.

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Deixo ao leitor a “experiência singular” de ler este texto. A mim, me concerne apenas dizer que ele me convoca na exata medida em que formula o impossível que produz uma determinada escuta da língua.

PARTE 4 – ESBOÇO DE UMA REFLEXÃO SOBRE AS SINGULARIDADES ENUNCIATIVAS OU SOBRE A SYNTAXE D’ÉNONCIATION

Finalmente, passo a apresentar o já tão anunciado esboço de uma reflexão sobre as singularidades enunciativas39 que, como o título acima já diz, é, em minha opinião, relativa à syntaxe d’énonciation. E começo fazendo uma distinção que é fundamental para o que estou propondo.

De um lado, o conceito de enunciação está ligado ao princípio da generalidade do específico. Explico-me: o aparelho formal da enunciação – expressão cunhada por Benveniste para designar os dispositivos que as línguas têm para, por um ato singular de utilização, os locutores se proporem como sujeitos – é geral – alguns diriam universal, já que não se admite língua que não o tenha – e específico, simultaneamente. A especificidade, por sua vez, se apresenta em dois planos distintos e interligados: a) no plano das línguas, já que cada língua apresenta seus próprios mecanismos; b) no plano da singularidade que advém de cada instância de discurso.

Assim, a enunciação é um conceito, a um só tempo, universal (geral) e particular (específico). Isso pode receber a seguinte formulação axiomática: é universal que todas as línguas tenham dispositivos que permitam um uso singular na instância de discurso. A essa formulação axiomática chamo de noção teórica40 de enunciação.

Por outro lado, o conceito de enunciação está ligado a uma noção que chamo de descritiva, relativa à análise dos fatos de língua. Para mim, do ponto de vista descritivo, a enunciação é o ato de tentar afunilar o sentido41.

É nesse ponto que vislumbro a possibilidade de falar no sujeito da enunciação, no sujeito que advém da enunciação, que se marca via syntaxe d’énonciation cuja característica mais óbvia, mas não a única, é ser uma relação singular entre forma e sentido. Para usar uma metáfora, a enunciação é uma espécie de “funil” mesmo por onde o locutor faz passar a língua na tentativa de assegurar um sentido42.

O sujeito da enunciação advém do ato de tentar afunilar o sentido. Essa tentativa de afunilar requer e, por isso mesmo, produz uma syntaxe d’énonciation.

39 Evidentemente não se desconhece que supor uma reflexão lingüística que tome por princípio a noção de singularidade é, no mínimo, tocar em questões muito caras à lingüística geral. Em outros termos: é possível fazer teoria sobre o singular? A palavra teoria não seria refratária à noção de singularidade? Qual a validade de uma teoria que se propõe a discorrer sobre o que não é generalizável?40 Quando uso a expressão quase tautológica “noção teórica” é para assinalar que não se está, ainda, no campo da descrição lingüística. A seguir, a enunciação será também definida quanto aos aspectos descritivos que supõe.41 Esse ato é constituído por “tudo não se diz”, uma espécie de eixo associativo que se faz presente pela ausência; ausência convocada pelo elemento que está na cadeia. Trata-se de uma ausência radical, ausência barrada ao campo no simbólico, mas que nele aparece numa singular à syntaxe d’énonciation.42 O locutor pode, inclusive, fazer uso inverso desse “funil”, quando exatamente o que está em jogo é não assegurar um sentido. No primeiro caso, estão os discursos que visam ao monossemismo, no segundo caso, os que visam à polissemia.

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Resta ainda explicitar o que estou entendo pela palavra “tentativa” usada acima. Ela, em suma, resguarda a instabilidade constitutiva de todo o dizer. A isso que estou chamando de “tentativa” faço corresponder, no campo lingüístico, as implicações decorrentes da clivagem do sujeito estabelecida, no campo da psicanálise, por Jacques Lacan.

Explico-me: se, por um lado, o ato de afunilar o sentido é sempre um esforço para tudo dizer, para direcionar, para cercar o sentido; por outro lado, a syntaxe d’énonciation mostra o que há de vão nesse esforço; mostra a impossibilidade que o sentido dirigido seja integralmente construído. Essa impossibilidade de tudo dizer precisa ser, em minha opinião, referida a uma exterioridade lingüística.

A eterna tentativa de afunilar o sentido é, em última instância, uma apropriação imaginária que se marca no simbólico por operações específicas. Tais operações fazem parte da syntaxe d’énonciation.

Isso posto, cabe ainda fazer algumas observações, mesmo que introdutórias, a respeito dos “dados” que sustentariam, do ponto de vista da análise lingüística, essa abordagem da syntaxe d’énonciation, ou ainda, a respeito do que chamei, inspirado em Benveniste, de fatos de língua. Em outras palavras, que mecanismos lingüísticos, que fatos de língua, permitiriam ver que o sujeito da enunciação dela advém por um recurso singular à syntaxe d’énonciation.

Para falar disso, começo com uma observação que, apesar de aparentemente banal, é instigante: trata-se do fato de que é constitutivo do homem que ele tenha de se expressar na língua. Podemos até não falar a mesma língua, mas precisamos estar em uma língua, seja ela qual for. Essa é a condição de existência do homem, e sobre isso Benveniste discorre com maestria, como espero ter demonstrado acima.

De certa maneira, Roland Barthes também fala disso, em aula inaugural da cadeira de Semiologia Literária no Collège de France: “... la langue, comme performance de tout langage, n’est ni réactionnaire, ni progressiste; elle est tout simplement fasciste; car le fascisme, ce n’est pas d’empêcher de dire, c’est d’obliger à dire” (1978, p. 14).

A questão que se coloca é, então, como se coaduna o “fascismo” da língua que parece evocar a repetibilidade com o que tenho colocado sob o rótulo – genérico, é verdade – da singularidade enunciativa.

A primeira observação que salta aos olhos é que, considerada uma situação trivial de diálogo, não se teria dificuldade em dizer se os interlocutores falam, ou não, a mesma língua, o português, por exemplo. Reconhecem-se nos enunciados proferidos estruturas gramaticais e lexicais que permitem afirmar se falam, ou não, uma dada língua.

Por outro lado, não se poderia negar que cada um fala essa língua de maneira muito singular. Essa singularidade não é acessória, mas, ao contrário, ela contribui definitivamente para que se possa atribuir este ou aquele sentido ao que foi dito. É tal singularidade que é colocada em relevo quando, por exemplo, se retoma em discurso citado as palavras de alguém. O falante comum sabe bem da dificuldade que constitui todo o ato de retomar a – e retornar à – palavra alheia, e não raras vezes traduz isso em comentários próprios à metalinguagem natural. São as dúvidas – “não sei se foi bem isso que ele disse” –, são as indagações acerca da verdade do dito – “mas o que ele quis dizer com isso?” –, são as recomendações em prol da exatidão – “diga exatamente o que ele disse”, entre outras.

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Penso que a essa obviedade é possível fazer corresponder um princípio cujo alcance precisa ser mais bem avaliado. Chamo-o de princípio da irredutibilidade do dizer de um ao dizer do outro. Segundo esse princípio, aquilo que é enunciado comporta especificidades que, em minha opinião, são relativas à syntaxe d’énonciation. Essa irredutibilidade constitutiva implica admitir certa intraduzibilidade do dizer de um pelo dizer do outro.

Esse princípio se assenta na admissão de certa “assimetria” constitutiva de toda a enunciação. Essa assimetria está para além da acomodação no face a face – sua mais óbvia manifestação –, ela diz respeito à inexistência da total equivalência entre duas coisas, quando o que está em questão é o sujeito.

O princípio da irredutibilidade do dizer de um ao dizer do outro, a meu ver, dá indicações sobre a natureza dos fatos de língua que podem ser analisados sob a ótica do que estou esboçando aqui. Se a enunciação pode ser vista como uma tentativa de afunilar o sentido, os mecanismos inerentes a isso marcam uma relação entre a forma e o sentido que é sempre da ordem do singular e que configura a syntaxe d’énonciation.

Os fatos de língua eleitos para a análise – para cada análise – estão na dependência da escuta que o lingüista possa ter deles43. A minha hipótese é que tanto os fatos como a análise que se faz deles decorrem da escuta do lingüista no après-coup, o que coloca em relevo a syntaxe d’énonciation e o sujeito da enunciação que “dans et par” ela tem existência.

O après-coup, da forma como o entendo aqui, nada mais é do que um tempo ligado a um “... efeito de sentido na frase, o qual exige, para se fechar, sua última palavra” (Écrits, 1981, p. 838). A syntaxe d’énonciation se oferece à interpretação somente no après-coup. Esse tempo é-lhe constitutivo.

Para ilustrar o que estou dizendo, gostaria de tomar em análise um fato de língua que, ao menos na interpretação que dele faço, ilustra a syntaxe d’énonciation.

O fato44 diz respeito à fala de Franciele, uma menininha de pouco mais de um ano e oito meses. O episódio é o seguinte: Franciele usava com freqüência a expressão de xingamento “droga” (na fala de Franciele, na verdade, ouve-se “dóga”) sempre que algo não dava certo em suas brincadeiras, motivo pelo qual a mãe seguidamente a repreendia. Certo dia, a criança estava brincando, sua mãe estava por perto e algo deu errado na brincadeira. Então Franciele começou a dizer: dó... A mãe, imediatamente, antes mesmo que Franciele acabasse a palavra, repreendeu-lhe dizendo: Franciele!, ao que a menina encadeia dizendo doguinha45.43 Um bom exemplo do singular que essa escuta pode implicar são as análises apresentadas em Bouts, brins, bribes. Petite grammaire du quotidien (2002).44 Originalmente usado em artigo de Silva (2002) e também em Silva (2006).45 Optei aqui por uma transcrição sem maiores recursos notacionais. No entanto, acredito que a atividade de transcrever, tão comum aos lingüistas, deve ser tema de maior aprofundamento quando o que está em questão é a análise enunciativa. A transcrição, na medida em que é produção de um sujeito, tem também estatuto enunciativo. Em enunciação o dado nunca é dado. A transcrição é uma enunciação sobre outra enunciação, é ato submetido à efemeridade da enunciação que, por sua vez, está na dependência da impossibilidade de que tudo se diga. A transcrição é uma modalidade de enunciação que, de um lado, comporta uma operação de ciframento (já que é uma escrita baseada em algo que não é ela – a fala). A operação de ciframento é uma tentativa de burlar o tudo não se diz, já que seu sucesso depende do quanto ela consegue, através de um sistema de notação, manter a integralidade do que é notado. Por essa operação, tenta-se ignorar o impossível da passagem da fala à escrita. A transcrição, de outro lado, comporta

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Do ponto de vista da morfologia do Português do Brasil (PB), –inha/–inho pode aparecer ligado a substantivos (mesinha), adjetivos (bonitinho), advérbios (agorinha), pronomes (tudinho) etc. O sentido que ele pode receber no uso é bastante variado na Língua Portuguesa e inclui, no mínimo46: descrição do “tamanho” do objeto acompanhada de alguma avaliação (Eram duas caixas, com vinte ovinhos de chocolate cada); função denotativa do “tamanho” do objeto (cafezinho, colherinha); marcação de depreciação (pedacinho, livrinho); função de atenuação (Pode me dar um momentinho só); marcação de afetividade em relação ao objeto referido (Eu fiz um franguinho especial para você!); indicação de afetividade em relação ao interlocutor (Filhinho, toma a sopinha).

Não ficarei listando mais usos que os lingüistas que descrevem a morfologia do (PB) identificam, detalhadamente, para as ocorrências de –inha/–inho. Minha questão aqui é mostrar que o recurso a –inha instaura na fala de Franciele algo muito distinto se comparado a essas descrições.

Proponho que –inha, na fala de Franciele, seja tomado como uma negação. Explico-me: pelo uso de –inha, em doguinha, Franciele nega em várias instâncias: primeiro, na instância relativa à expectativa de que ela diria dóga – expectativa que está presente na repreensão que lhe é dirigida pela mãe –; segundo, na instância que rejeita o traço negativo de “droga”, ao mesmo tempo em que o reconhece, contido no coletivo da língua; terceiro, na instância que, em minha opinião, toca mais de perto o ponto que busco enfatizar, trata-se da negação à interdição de enunciar que a fala da mãe produz. Franciele nega que a mãe lhe negue a condição de quem pode enunciar. Ao menos da forma como escuto este fato de língua, doguinha – uma reformulação de doga – permite a Franciele manter (ou talvez, restaurar) sua posição de quem pode enunciar, sua posição de quem pode fazer da língua algo que lhe é próprio e disso decorre o efeito de absoluta singularidade de sua fala.

Essa interpretação decorre do que estou chamando de après-coup da análise, a partir do qual é possível visualizar o que chamo de syntaxe d’énonciation, ou seja, de uma sintagmação muito singular, não generalizável.

Em outras palavras, não creio que se possa dizer, sem incorrer em alguma impropriedade, que –inho/–inha é marca de negação no Português do Brasil. Minha conclusão é apenas a de que –inho/–inha é, na fala de Franciele, tomada com relação à fala da mãe e nos termos que descrevi acima, uma negação. Essa análise que apenas esboço é da ordem da syntaxe d’énonciation, entendida não como uma concatenação de formas, mas como uma relação não linear e não limitada a categorias lingüísticas apriorísticas de forma e sentido. O sujeito da enunciação na proposta aqui apresentada advém da enunciação, dessa relação singular entre a forma e o sentido na linguagem.

Afunilar o sentido, ou seja, enunciar é, vale repetir, em última instância, uma apropriação imaginária marcada no simbólico por operações singulares que integram a syntaxe d’énonciation.

também uma operação de deciframento: implica uma leitura do transcrito. A transcrição é um texto que pede uma leitura. Também a operação de deciframento supõe uma totalidade: que nela não seja lido mais do que aquilo que se pretendeu escrever. Trata-se de uma leitura do mostrado. A transcrição comporta dois tempos: o tempo do dizer e o tempo do mostrar, para usar as palavras de Wittgenstein. Cf. FLORES, Valdir. “Entre o dizer e o mostrar: a transcrição como modalidade de enunciação”. In: Organon. Revista do Instituto de Letras da UFRGS. Porto Alegre, Brasil. V. 40-41 (p. 61-76).46 Os exemplos são retirados de Basílio (2004).

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Para finalizar, cabe dizer que vincular singularidade a sujeito parece ser uma formulação que nada acrescenta à ordem das coisas, já que não se pode dizer que ela seja inédita. Lembre-se apenas um: Jacques Lacan escreve a Abertura de seus Escritos, em 1966, evocando Buffon que anuncia: “o estilo é o próprio homem”. Ao que acrescenta Lacan: “repete-se sem nisso ver malícia, e sem tampouco se preocupar com o fato de o homem não ser mais referência tão segura” (Lacan: 1981, p. 9).

Enfim, tenho clareza de que a proposta que fiz está ainda numa dimensão embrionária. Desenvolvê-la é objetivo que tenho. Por ora, creio que posso argumentar a seu favor o fato de ser ainda um esboço.

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