sujeito

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SUJEITO ENSAIO FOTOGRÁFICO Marginalizados pela sociedade e acolhidos pela rua, P7 FILHAS DO PRAZER Retratos da mais antiga das profissões na cidade de Bauru, P9 ENTREVISTA A história de um ex-usuário de drogas e a sua recuperação, P10

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Suplemento produzido para a disciplina de Jornalismo Impresso II, 2013, do curso de Jornalismo da Unesp, câmpus Bauru, sob a orientação do Prof. Dr. Angelo Sottovia Aranha

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Page 1: Sujeito

SUJEITO

ENSAIO FOTOGRÁFICOMarginalizados pela sociedade

e acolhidos pela rua, P7

FILHAS DO PRAZERRetratos da mais antiga das

profissões na cidade de Bauru, P9

ENTREVISTAA história de um ex-usuário

de drogas e a sua recuperação, P10

Page 2: Sujeito

SUJEITO FEVEREIRO I 2014 I P2

BAUR

U ÀS

MAR

GENS

Sujeito.Como substantivo,

designa o indivíduo, pessoa de quem se omite ou desconhece o nome.

Como verbo, é estar subordinado a determinadas situações.

Todos os dias, muitos sofrem as consequências da marginalizacao social.

Ao longo da história, muitos foram os motivos encontrados para excluir o próximo e também variaram as formas de se relacionar com essas pessoas. A partir do iluminismo, por exemplo, a pessoa irracional foi excluída e começou a ser encarcerada. Sofreram com essa prática os deficientes físicos e mentais, as prostitutas,

as mães solteiras, ladrões, opositores ao governo, entre muitos outros.

Quatro séculos depois, em 2014, a ciência já evoluiu a ponto de tratar a maioria das dificuldades mentais e físicas dos seres humanos sem ser necessária a exclusão e encarceramento. Apesar dos avanços médicos, ainda persiste a cultura da segregação dos doentes físicos e mentais. As prostitutas, hoje em dia, lutam por uma regulamentação na sua profissão, mas continuam socialmente marginalizadas.

Muitos são os que vivem às margens da sociedade, e poucos os que questionam o por quê disso e refletem sobre o

destino dessas pessoas.Há quem diga que

os marginalizados são aqueles que não contribuem com modo de produção do sistema capitalista. Ciganos, drogados, prostitutas, doentes mentais, catadores de lixo e moradores de rua são exemplos de improdutividade, pelo menos aos olhos da maioria das pessoas.

Sujeito procura reportar histórias daqueles que compõem a sociedade e contribuem para seu equilíbrio, mesmo sem serem notados e auxiliados por políticas públicas efetivas. Nossa missão é valorizar a face real daquela sombra enxergada pela mulltidão. p

“EU VENDO SONHOS”Gabriela Lima e Keytyane Medeiros

LixO OU SOBREViVÊNCiA?Camila Pasin e Nathália Rocha

HERÓiS DA SARJETAIsabela Romitelli e Nathália Rocha

NO OLHO DA RUADiZEM QUE SOU LOUCO

Laura Fontana, Lígia Morais e Mariana Caires

DAMAS DE ALUGUELCaroline Braga, Marina Spada e William Orima

ENY CEZARiNOLígia Morais

ASAS DE CERACamila Pasin e Laura Fontana

BRUNO, 27Camila Pasin e Laura Fontana

iNViSÍVELGabriela Lima

ARCABOUÇOSKeytyane Medeiros

P3

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P5P6P8

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P9

P10

P10

P11

P11

ReitoR: Júlio Cézar DuriganDiRetoR Da Faac: nilson ghirarDellocooRDenaDoR Do cuRso: FranCisCo rolFsen BelDacheFe Do DepaRtamento De comunicação social: Juarez TaDeu De Paula XavieroRientaDoRes: Ângelo soTTovia aranha, Tássia Caroline zanini, FranCisCo rolFsen BelDa

Suplemento produzido peloS alunoS do 4º termo do curSo de comunicação Social: JornaliSmo do período diurno da uneSp

equipe: Camila Pasin, Caroline Braga, gaBriela lima, isaBela romiTelli, KeyTyane meDeiros, laura FonTana, lígia morais, mariana Caires, marina sPaDa, naThália roCha e William orima

aveniDa engenheiro luiz eDmunDo CarriJo CouBe, 14-01, vargem

limPa, Bauru - sP Fone: (14) 31036000

Ramal: 6063

REPORTAGEMENTREVISTAFOTOGRAFIAEXPEDIENTEJORNALISMO

iLUSTRAÇÃO DA CAPAMatheus Scarlatti Belucio

DiAGRAMAÇÃOIsabela Romitelli, Lígia Morais e William Orima

Page 3: Sujeito

SUJEITOP3 I FEVEREIRO I 2014

“EU VENdOSONHOS”Marginalizados, trabalhadores informais de Bauru são discriminados por seus ofícios

Art. 1º - O comércio ambulan-te é toda e qualquer forma de

atividade lucrativa exercida por conta própria e de terceiros, em que não se opere na forma e nos

usos do comércio localizado, ainda que com este tenha ou

venha a ter ligações ou intercor-rência caracterizando-se, nesta

última hipótese, pela improvisa-ção de vendas ou negócios, que se realizem fora do estabeleci-

mento com que tenha concessão.Lei nº 179

18 de Maio de 1972

-GL, KMVender. Comprar. Trocar di-

nheiro por algo que se deseja. A atividade de venda pode ser considerada uma das mais antigas do mundo. A história do comércio no Brasil come-çou com os vendedores ambu-lantes que desciam as ruelas das cidades litorâneas para vender objetos manufatura-dos, jóias, especiarias e teci-dos. Os vendedores tinham vários codinomes, dentre eles Barateiro, Canastreiro, Grin-go e Caneludo. Um vendedor precisava ter a eloquência de um orador, agilidade na hora das contas e ter a simpatia para conquistar a clientela. O comércio brasileiro se aprimo-rou e a população tem uma enorme variedade de pro-dutos para comprar, e pode escolher também de quem.

De Beirut à BauruUma volta no centro de Bau-

ru, pela manhã de segunda-feira, e já se observa várias barraquinhas com artesana-tos, vendedores ambulantes e, lógico, pessoas querendo comprar. O que vários con-sumidores não sabem são as histórias por trás daqueles que sempre oferecem um des-conto quando você pede uma pechincha. Com um pouco mais de um minuto de con-versa entre a equipe e Seu Samir, a feição das repórteres foi de espanto - o vendedor de bolsas, brincos, anéis e enfei-tes de cabelo trabalha há 40 anos na praça Rui Barbosa e o seu trajeto até chegar no centro de Bauru foi longo.

Samir veio de Beirut, no Lí-bano, quando tinha 20 anos, para trabalhar como feirante.

Na conversa informal com Seu Samir, ele foi categórico: nunca mais voltou ao Líba-no e gosta do que faz. Tem a ajuda da sua esposa na venda dos objetos e com o trabalho conseguiu conquistar muitas coisas, dentre elas, auxiliar no pagamento da mensalida-de do curso de medicina do neto. O libanês é mais um dos trabalhadores informais, aqueles que não têm vínculo com nenhuma empresa e que optam por seguir esse cami-nho em virtude dos tributos incidentes sobre o comércio formal serem muito altos.

Seu Samir conta como con-seguir o alvará, documento que aprova o direito de traba-lhar na praça foi fácil. Como trabalha há tempos no mesmo lugar, mesmo antes da praça ser fundada, a prefeitura não dificultou o processo e, atual-mente, os fiscais passam sem incomodar o seu trabalho. Di-ferentemente de Seu Samir, que nunca tira férias, aque-les vendedores que ainda não têm o alvará de licenciamento podem se complicar - a fiscali-zação pode notificá-los e obri-gá-los a sair do local de venda. O Art. 1º da Lei 179 é claro.

É necessário ter a concessão para fazer o trabalho, mas por que, ainda, muitos trabalha-dores informais não a tem? Como o trabalho alternativo não tem renda fixa e o sucesso das vendas depende dos con-sumidores, o vendedor alter-nativo sem o alvará não paga os tributos exigidos pela lei. Um deles é o imposto de ren-da sobre o lucro (Tributo Fede-ral) e o outro, o imposto sobre a mercadoria conseguida, o ICMS (Tributo Estadual). Com alvará, ou não, os vendedores estão por toda a parte. Ven-dem os mais inusitados pro-dutos e surpreendem repórte-res com histórias inusitadas.

Preconceito nas ruas

É segunda-feira de manhã e o Seu Antônio já está em sua banquinha de vinis e re-

vistas pornô antigas, a todo vapor. Há 23 anos, talvez seu espaço fosse um pouco mais movimentado. Àquela época, muito mais pessoas ouviam e tinham aparelhos de fita cas-sete ou vitrolas. Mas ele não se importa com isso. Apesar de o trabalho informal não ter algumas garantias, como pla-no de saúde ou férias remu-neradas, o Seu Antônio gosta muito do que faz. “É melhor trabalhar como autônomo, porque não tenho patrão, faço meu horário, ganho até mais do que antes”, garante.

Antes de chegar à Bauru, Seu Antônio morava em Ni-terói, no Rio de Janeiro, e trabalhava como empregado em uma firma. Chegou até a visitar a Alemanha, numa viagem de negócios. Falava inglês e “tem cultura”, como ele mesmo diz. Por isso, ele fica tão chateado quando as pessoas não entendem o tra-balho que ele tem e, inclusi-ve, já o denunciaram para a polícia, mas não houve razão para maiores alardes, pois ele possui alvará de funciona-mento concedido pela prefei-

tura municipal. Segundo ele, “tem gente que acha que toda pessoa que trabalha na rua é bandido, faz coisa errada”.

Além desse, existem outros tipos de preconceito com os trabalhadores ambulantes ou que tiram da rua o seu sus-tento. Ao andar pelas ruas do centro de Bauru, obser-vamos que os vendedores normalmente são pessoas mais idosas, como o senhor Clodoaldo, vendedor de goia-bas, ou negros, como o Décio, artesão que vende quadros pintados em azulejos bran-cos. Dessa maneira, a maior parte desses trabalhadores se configura pelas minorias brasileiras e carregam consi-go o signo da marginalização social. Para Seu Antônio, “o preconceito maior que existe é esse aqui, a cabeça branca [aponta para o cabelo]. Se al-guém me maltratar porque eu sou velhinho, não leva a nada. Governo não dá apoio pra velhinho, você entra num ônibus e você é empurrado, xingado. Ninguém faz nada”.

Apesar de tudo isso, Seu Antônio diz que não trocaria seu trabalho por nada - “ex-ceto, talvez, por uma apo-sentadoria gorda”. E se al-guém lhe pergunta a razão, ele prontamente responde: “eu trabalho com cultura po-pular. Eu vendo sonhos”. p

“tem gente que acha que

toDa pessoa que tRabalha na Rua é

banDiDo”

De cabelos brancos, Seu Antônio vende de tudo: de LPs a revistas pornô

Foto: Keytyane Medeiros

Foto: Keytyane Medeiros

Page 4: Sujeito

LIxO OUSObREVIVêNCIA?

SUJEITO FEVEREIRO I 2014 I P4

A faxineira parece pretender proteger-se: se não olha para

ninguém, evita olhares cegados, evita perceber que não é notada.

Não vê que não a viram.Fernando Braga Costa

Homens invisíveis

- CP, NRCerca de 200 toneladas de

lixo por mês. Um índice de apenas 2,5% de reaproveita-mento por parte dos cidadãos. Quem cuida desse serviço? A pequena taxa de reciclagem é um dos indícios de que nem sempre se reconhece o traba-lho dos responsáveis pela lim-peza do município de Bauru. As empresas são conhecidas, o estado das ruas, sobretudo quando sujas, é avaliado pe-los moradores. O que se deixa de lado são os profissionais que diariamente contribuem para o cuidado com a cida-de. Uma greve dos catado-res, de apenas uma semana, e a cidade tropeçaria em lixo.

O cidadão bauruense, Hen-rique Nunes (30), reconhece a importância dos profissio-nais de limpeza, mas admite que nem sempre os mora-dores da cidade fazem sua parte. “Para ajudar, a respei-to de sucata, é bom separar tudo, plástico com plástico, metal com metal. Mas, no dia-a-dia, a gente acaba es-quecendo”, observa Henrique.

Eliude Alves (52) trabalha há quatro anos na Empresa Municipal de Desenvolvimen-to Urbano e Rural de Bauru (Emdurb), responsável pelo serviço de coleta de lixo na

Coletores sentem-se desvalorizados por seu trabalho

cidade. Ela dedica oito horas de seu dia varrendo a cidade e tem consciência da impor-tância do serviço que presta. Procura, então, fazer sua par-te para cuidar da cidade, evi-tando jogar lixo na rua. Cui-dado que, segundo ela, nem todos têm. “Eu acho que o povo é muito porco, joga lixo na cara da gente. As pessoas tinham que parar de jogar lixo na rua. É falta de respeito com a gente e com o meio ambien-te também”, lamenta Eliude.

Ao coletor cabe percorrer diferentes localidades, des-pejando sacos de lixo em la-tões ou caminhões especiais, trabalho que demanda es-forço físico. Além disso, de-vem transportar entulhos de construçõeslocais apropria-

dos, e coletar lixo hospita-lar, o que é muito arriscado.

Mas há mais gente envolvi-da no processo. Coletores in-formais também contribuem para a limpeza da cidade, com um trabalho igualmen-te desgastante, mas sem a estabilidade proporcionada por um contrato de trabalho. “O horário de eu sair daqui é no máximo umas 20h. En-tão, antes de eu descer, levo o carrinho para baixo, pego a vassoura, pego um saco, dei-xo tudo limpinho. Se o lixeiro não levar, eu deixo o saco ali amarrado, daí por todo lugar que eu cato, vou mantendo limpeza”. Essa é a rotina de Maria Aparecida Angelo (53), que trabalha há seis anos como coletora de recicláveis

no centro da cidade de Bauru. Maria também já trabalhou

como empregada doméstica e descreve as dificuldades de sua ocupação atual, como a rivalidade entre os coletores e a instabilidade financeira. “Tem semana que tá bom, tem semana que tá fraco. Muitos passam e me humilham, me xingam por causa dos ma-teriais, porque às vezes eles querem o material para eles e eu não quero ceder porque o lugar é meu. Encontro mui-tas dificuldades, eles judiam muito da gente, eles pisam na gente”, conta a coletora.

Isabel Fernandes (57) di-vide seu tempo entre a co-leta de recicláveis e o traba-lho como doméstica e, assim como Maria, descreve o seu dia-a-dia: “Eu já tenho mi-nhas lojas para pegar. Faço meu contrato com elas e reno-vo todo ano. Eu tiro mais do papelão do que se eu for tra-balhar na casa dos outros.”.

Ambas descrevem o desgas-te físico e a humilhação que sofrem por parte dos morado-res mas, apesar de tudo, com bom-humor e muita certeza, afirmam que gostam do que fazem e não trocariam isso por nada. “Muita gente passa bonitinha aqui de salto alto e fala ‘Olha quanto lixo!’, eu viro e falo ‘Lixo não, minha filha, é reciclável’. Se achar ruim, achou. Eu estou tiran-do meu dinheiro com caráter, vergonha na cara”, finaliza, orgulhosa, a coletora Isabel. p

Isabel trabalha há 30 anos com coleta de

reciclavéis

Eliude, que trabalha há mais de 4 anos na Emdurb

Foto: Camila Pasin

Foto: Camila Pasin

Page 5: Sujeito

SUJEITOP5 I FEVEREIRO I 2014

O grande desafio não é tirá-los da rua, mas tirar a rua deles

ex-moradores de rua concor-dam quanto à dureza da men-dicância. A violência, os dias passados sem alimento, o des-caso dos moradores da cida-de, os vícios nos quais muitos entram e mesmo as mudan-ças climáticas. A rua é abrigo e, ao mesmo tempo, um desa-fio a ser superado. “A vida no trecho é uma vida sofrida. São muitas portadas na cara, mui-tos ‘nãos’ que leva. É sofrido, mas a pessoa tem que saber viver”, relata Márcio Lucin-do, 32, residente do CEAC. p

Todos esses pobres seres vivos tristes vivem do cisco, do que

cai nas sarjetas, dos ratos, dos magros gatos dos telhados, são

os heróis da utilidade, os que apanham o inútil para viver, os

inconscientes aplicadores à vida das cidades daquele axioma

de Lavoisier; nada se perde na natureza.

João do RioA Alma Encantadora das Ruas

- IR, NRDia chuvoso em Bauru.

Ruas alagadas, pessoas so-bre ônibus perdidos em meio às águas. As ruas da cidade param por algumas horas. Ci-dadãos comuns às vezes têm a opção de esperar até que a chuva passe. Enquanto isso, correm aqueles que não têm um teto. Para eles, a rua não pára. É sua moradia, seu abrigo, e sua sobrevivência. De acordo com pesquisa rea-lizada pela Secretária do Bem Estar Social, cerca de 80 pes-soas vivem em situação de mi-séria no município. Isso sem contar aqueles que migram de uma região para outra.

Dentre as razões que levam um cidadão às ruas, as mais comuns são as perdas fami-liares, as desilusões amorosas e o envolvimento com drogas. Uma vez no asfalto e diante de suas dificuldades, esses indivíduos ainda enfrentam o descaso daqueles que passam e não só deixam de ajudá-los, mas, muitas vezes, os destra-tam. “A pior parte é a humi-lhação. Ficar sujo, fedendo, pedindo as coisas. Olhar na cara das pessoas e elas não fa-larem nem ‘bom dia’. Você vai chegando e fecham a porta, te tratam como um presidiário”, desabafou Carlos Roberto, 51.

Em Bauru, algumas entida-des oferecem abrigo e alimen-tação a pessoas em situação de rua, como o Centro POP e o Centro Espírita de Amor e Caridade (CEAC). No CEAC, além do serviço de pernoite, há atendimento àqueles que bus-cam sair da rua, a chamada “casa de passagem”, em que os indivíduos recebem apoio psicológico, fazem atividades

terapêuticas e seguem uma rotina de reinserção social e, ao final, são encaminhados para oportunidades de emprego.

Apesar dos serviços de as-sistência, muitos se recusam a aceitar ajuda e preferem continuar vivendo daquilo que conseguem na rua. Fica claro o contraste entre aqueles que procuram auxílio do CEAC, os quais descrevem o centro e sua equipe como os únicos que lhes ofereceram uma oportu-nidade, e os cidadãos que pre-ferem continuar onde estão. “Você vai no albergue e fica tipo em uma cadeia, é trata-do de uma forma diferente. Na

rua eu estou melhor. No alber-gue hoje em dia tem guarda, tem polícia, eu prefiro a rua”, afirma Morador de Rua, que preferiu assim ser identificado.

Essa visão negativa talvez ex-plique o fato de o albergue, que oferece vinte vagas, nunca ter atingido sua capacidade má-xima. “A gente vê a rua como algo muito fácil. Enquanto os usuários encontrarem na rua tudo o que eles tinham dentro de casa, eles não vão ter porque sair. Enquanto a sociedade indiretamente sus-tentar um morador de rua, ele não vai voltar para um lugar onde ele tem regras para se-guir. Essa falsa liberdade que a rua dá para a pessoa talvez seja o ponto mais difícil a ser trabalhado”, explica Francine.

Apesar da observação da as-sistente social, moradores e

INFORMAÇÕES

Até o finAl de 2009 forAm servidAs 12.702 refeições, 9.816 lAnches, min-istrAdAs 5.988 medicAções e doAdAs

4.030 peçAs de roupAs. nos 63 Anos de funcionAmento o ceAc registrou AproximAdAmente 750.000 pernoites.

DoRme sujo

Duilio FerronaTo Dash eDiTora

R$ 35,00

Os moradores da “casa de passagem” produzem

arte como forma de terapia

HERóIS dA SARJETA

Foto: Isabela Romitelli

Foto: Isabela Romitelli

Page 6: Sujeito

SUJEITO FEVEREIRO I 2014 I P6

OLHO RuAdA

Page 7: Sujeito

SUJEITOP7 I FEVEREIRO I 2014

De rua em rua, a rua em que se passa é aquela que se abraça e do tempo se embriaga.

Na viela onde me deito, o outro estaciona e a moça manda um beijo.

De noite o trem não anda, o louco perde a grana e o ponto desencanta.

Sem paz ou guerra a rua brilha conforme a lua sem escolher seu dono. p

Page 8: Sujeito

SUJEITO FEVEREIRO I 2014 I P8

dIzEM qUE SOU LOuCOA luta contra os hospitais psiquiátricos também passa por Bauru

Assim é que cada louco furioso era trancado em uma

alcova, na própria casa, e, não curado, mas descurado,

até que a morte o vinha defraudar do benefício da

vida. Machado de Assis

O Alienista

- LF, LM, MCA Bastilha da razão huma-

na toma forma na Casa Ver-de, hospital psiquiátrico de O Alienista, de Machado de Assis. O conto questiona o cientificismo do século XIX e leva um dos próprios perso-nagens à dúvida: “Se tantos homens em quem supomos juízo são reclusos por demen-tes, quem nos afirma que o alienado não é o alienista?”.

Do espetáculo à doença, a loucura já foi tratada de dife-rentes formas pela sociedade. Desde a Idade Clássica, as po-líticas do Grande Enclausura-mento começaram a destinar os loucos a hospícios apenas para tirá-los de perto da so-ciedade. No período do ilumi-nismo, os loucos eram tidos como irracionais. Marginalizá-lo socialmente ainda era a al-ternativa mais comum. No fim do século XVIII, o louco passa a ser visto como alienado e é nesse contexto que surge a pesquisa em psiquiatria. Com o tempo, a proposta do hospi-tal passa de hospedaria a lo-cal de tratamento médico. É o começo da medicina mental.

Com nomes importantes como Michel Foucault e Phi-lippe Pinel, a psiquiatria foi se desenvolvendo e o louco ganhou alternativas para se reinserir na sociedade. Ape-sar dos avanços em pesqui-sas, elas eram praticamente

ignoradas pelas políticas pú-blicas brasileiras. O maior exemplo de violência contra a loucura no Brasil foi o Hos-pital Colônia, em Barbacena (MG), retratada pela jornalis-ta Daniela Arbex, em “Holo-causto Brasileiro”. Naquele local morriam todos os dias pessoas que não tinham di-reito a privacidade, a trata-mento médico e sequer à vida.

A reforma psiquiátrica se instaura contra os grandes e ineficazes hospitais psiquiá-tricos. Seu grande agitador, o italiano Francisco Besaglia lutou para que em 1973 se instalasse na Itália a Lei 180 (Lei Francisco Besaglia), que extinguiu hospitais psiqui-átricos no país. Em contato com o horror do Colônia, em julho de 1979, Besaglia con-vocou a imprensa para de-nunciar: “Estive hoje num campo de concentração na-zista. Em lugar nenhum pre-senciei tragédia como esta”. Besaglia incentivou a luta an-timanicomial brasileira, que teve impulso também com os grandes congressos de tra-balhadores da saúde mental.

Bauru, 1987: Por uma sociedade sem manicômiosSujeitos da diferença. É as-

sim que o Prof. Dr. Osvaldo Gradella Jr. define os que fo-ram excluídos, pelo sistema capitalista, das relações so-ciais. Ele explica que a orga-nização do modo de produção capitalista cria um grande grupo de marginalizados, in-cluídos aí os sujeitos da lou-cura. “Quem não produz, é excluído de alguma forma”, completa ele quando se refere à criação de instituições para abrigar os marginalizados.

No Brasil do final da década de 1970, a fundação do Movi-mento dos Trabalhadores em Saúde Mental passa a denun-ciar as péssimas condições, a violência e os grande gastos dos manicômios. Nos anos 80, co-meçam a surgir novas formas de atenção à saúde mental, fora dos hospitais. A 8ª Confe-rência Nacional de Saúde, em 1986, aprovou diretrizes que propunham mudanças no sistema de saúde brasileiro. Gradella retoma, então, o 18 de maio, em Bauru de 1987.

O II Encontro dos Trabalha-dores da Saúde Mental reuniu

não só os próprios técnicos, mas também os chamados sujeitos da loucura e seus fa-miliares. Unidos, levantaram a bandeira “Por Uma Socieda-de Sem Manicômios” e cha-maram a atenção não só dos bauruenses nas passeatas pela cidade, mas do país intei-ro. O Encontro tornou pública a Carta de Bauru , um mani-festo contra a mercantilização da doença e a favor de uma sociedade sem manicômios.

Para ressocializarUm mecanismo inovador de

reintegração foi a criação dos Centros de Atenção Psicoso-cial (CAPS). O primeiro cen-tro surgiu em 1986, em São Paulo, e pode ser considerado um dispositivo de atenção à Saúde Mental com a possibi-

lidade de organizar uma rede substitutiva ao Hospital Psi-quiátrico. O tratamento no CAPS busca preservar o vín-culo social ao acolher as pes-soas com transtornos men-tais graves tais como psicoses e neuroses persistentes. Por meio do acompanhamento in-terdisciplinar e da articulação com recursos sociais e cultu-rais, o centro busca preservar e fortalecer os laços sociais do usuário em seu território.

O Brasil conta atualmente com 1.620 centros de Aten-ção Psicossocial. Em Bau-ru, há três CAPS coordena-dos pela Secretaria de Saúde Mental. As equipes incluem médicos psiquiatras, enfer-meiros, psicólogos e outros profissionais de saúde e os atendimentos são feitos no período diurno (para evitar internações).O atendimento no CAPS requer uma ava-liação na Unidade Básica de Saúde ou em outros serviços que justifiquem a necessida-de de atenção especializada.

Outros programasO poder público oferece o

Saúde da Família, com qua-se 32 mil equipes em todo o país, as Casas de Acolhimen-to Transitório (CATs), os Con-sultórios de Rua e as Comu-nidades Terapêuticas. Outra alternativa é o programa De Volta Para Casa, que dá au-xílio financeiro mensal de R$ 320 a pacientes que recebe-ram alta hospitalar após um histórico de internação. O programa foi criado pelo go-verno federal em 2003 e be-neficia mais de 3,7 mil brasi-leiros em 614 municípios. p

CenTro De aTenção PsiCossoCial (CaPs i)rua monsenhor Claro, nº 6-99Fone: (14) 3227-5022

“estive hoje num campo De concentRação

nazista. em lugaR nenhum pResenciei

tRagéDia como esta”

CenTro De aTenção PsiCossoCial álCool e Drogas (CaPs aD)rua anTônio alves, 17-58Fone: (14) 3227-3287

CenTro De aTenção PsiCossoCial inFanTo-Juvenil (CaPs i) rua vírgilio malTa, 16-57Fone: (14) 3227-2574

INFORMAÇÕESholocausto bRasileiRo Daniela arBeX

geração eDiTorial

R$ 31,90

Foto: Luiz Alfredo/O Cruzeiro

Internas do Hospital Colônia reunidas no pátio

Page 9: Sujeito

SUJEITOP9 I FEVEREIRO I 2014

dAMAS dE ALuGuELEm 50 anos , as transformações do meretrício em Bauru

Quando completou 29 anos, no dia 23 de abril de 1946, Eny já tinha decidido que conquistaria poder e di-nheiro, mas pensava num futuro diferente do imagi-nado pelos pais. Ao invés de um rico casamento, eco-nomizaria para abrir seu próprio bordel, ali mesmo na cidade em que trabalha-va. Em 1941, Eny fugira de casa para a prostituição, no dia seguinte ao 23 de abril daquele ano. Pela Rua Ai-morés, Avenida João Luís Al-ves, Rua Botafogo, pelo porto de Paranaguá. Eny atraiu a atenção dos homens passan-do por pensões paulistanas, cariocas e gaúchas. Famosa no avesso da sociedade bra-sileira, Eny chegou a Bauru já depois da instalação da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, linha que levava e trazia grandes políticos e personalidades para os bor-déis bauruenses. Em 1947, Dona Eny abriu finalmente sua primeira pensão. A casa sempre cheia, não só de pes-soas, mas também de posi-ções políticas, continuava a faturar. Era zona eleitoral da cidade. Ao lado de Eny, o amigo Nicolinha, dono do Diário de Bauru, e Maurício, grande amor que durou 22 anos, até a morte dele, em 1973. Dez anos antes, a casa noturna tinha se mudado do Centro para a entrada princi-pal da cidade. Depois do sol, era lá que existia “o mais belo buquê de mulheres”, como dizia Jânio Quadros. O gran-de bordel brasileiro dos anos 50 e 60 foi vendido em 1983. Eny não podia mais compe-tir com a mudança de cos-tumes e o crescimento dos motéis na cidade. E foi em 1997, que já adoecida e endi-vidada, Eny Cezarino viveria o seu último 23 de abril. p

Ardentes filhas do prazer, dizei-me! Vossos sonhos quais

são, depois da orgia?Antero de Quental

Metempsicose

- CB, MS, WO“Isto é um palácio. Não

sabia que em Bauru existiam áreas palacianas”, disse Jânio Quadros ao adentrar pela primeira vez no salão que, assim como o restante da casa, estava decorado com rosas. Eram as flores preferidas da Dona e combinavam perfeitamente com a atmosfera

luxuosa da Casa. Celebridades bebiam, homens de negócio jogavam e políticos influentes desfrutavam da companhia de suas garotas; era uma típica noite no Eny’s Bar.

Quando a prefeitura de Bauru removeu os meretrí-cios do Centro da cidade, Eny renegou a nova área demar-cada na periferia e decidiu investir na construção estra-tégica de um bordel próximo à entrada principal da cidade. Inicialmente, contava com 20 suítes, cozinha, bar, salão, além de apartamento privati-

vo da dona. No auge, o bordel mais famoso do Brasil chegou a ter 40 quartos, 28 funcio-nários e 70 inquilinas - Eny tornara-se uma celebridade.

Longe dos holofotes, o con-tador da cafetina desviava os rendimentos do estabe-lecimento, dando início à queda do império de Eny. As dívidas somadas à ascen-são dos motéis fizeram-na sucumbir. Eny Cezarino fa-leceu pobre, esquecida em um leito de hospital; afasta-da de seus tempos de ouro.

Sentada à sombra de um motel à beira da Rodovia Marechal Rondon, Shantala aguarda os clientes da tarde com outras cinco prostitutas. Hoje, dona de alguns pontos de prostituição em Bauru, saiu de São Paulo aos 22 anos - já prostituta. “Eu gosto des-sa vida”, disse com naturali-dade, “não me imagino fazen-do outra coisa”. Fazendo de quinze a vinte programas, um dia bom lhe chega render 600 reais. Até 20.000 em um mês.

“Não gosto de bagunça no meu ponto”, disse Shantala depois de perguntada se há ri-validades entre outras prosti-tutas e suas meninas. Naque-le local, ela “cuida” de quinze a vinte. É dona da casa em que

mora e aluga quartos em ou-tra casa para que suas garo-tas tenham uma vida normal; “para comer, dormir, tomar banho, não para trabalhar”.

A cafetina comenta que o movimento é constante em qualquer período do dia. Na-quela tarde de terça-feira, cinco horas, três carros pa-raram e duas meninas saí-ram com clientes. Sobre seus frequentadores, respondeu “brancos, pretos, ricos, po-bres…”. E acrescentou que a maioria procura travestis.

Shantala é dona da boa-te Suave Veneno, um dos prostíbulos mais famosos de Bauru - em funcionamen-to há aproximadamente oito anos. Seu império sexual vai

bem, mas concorda que a regularização da profissão seria bem-vinda: “É um tra-balho como qualquer outro”.

Ela não tem planos de voltar para São Paulo, gosta da calma do interior e já tenciona abrir um bar em Botucatu - além dos programas, contaria com shows e eventos. Apesar da calmaria, há programas que acabam sendo problemáticos; alguns clientes recusam-se a pagar, outros abandonam as garotas em lugares afastados.

Shantala terminou a conver-sa comentando que adora dias de chuva. Nestes, a clientela aumenta muito, atraída pela discrição de um vidro abafa-do. Aparentemente, “são bons tempos para ser prostituta”. p

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eDiTora oBJeTiva

R$ 39,90

ENYCEzARINO

Foto: Willliam Orima

“Eu gosto dessa vida”, disse Shantala, com

naturalidade. “Não me imagino fazendo outra

coisa”

Foto: Luiz A. Teixeira

O salão estava sempre decorado com rosas. Dona

Eny apreciava as flores

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SUJEITO FEVEREIRO I 2014 I P10

As drogas me deram asas para voar, depois me tiraram o céu.

John Lennon

- CP, LF“Entre pela rua Peru, quadra

2”. Eis o recado escrito na fa-chada da Comunidade Tera-pêutica Vida & Paz. A entidade funciona sem fins lucrativos e atende a todos os tipos de pes-soas de diferentes credos, sem discriminação social ou racial. Oferece uma nova vida aos que necessitam de ajuda con-tra a dependência química.

Fundada no ano 2000 como igreja, passou a ser casa de recuperação de dependentes químicos pouco tempo mais tarde. No entanto, a questão espiritual manteve a comuni-dade presa às origens: como filosofia, a instituição acredita que a libertação e a cura das drogas não dependem exclu-sivamente de uma interna-ção, conscientização sobre seu vício e luta espontânea contra os prazeres que os en-

torpecentes proporcionam. É necessária uma mudança na mente para que o usuário cure suas doenças espirituais e para que o caminho rumo à autodestruição seja revertido.

Leandro (22) se envolveu com cocaína e álcool quando tinha 14 anos. Há dois me-ses na Comunidade Vida & Paz, reconhece a importância do tratamento espiritual. “Eu realmente acho que tem que buscar ajuda do céu. Tem que pedir pra Deus porque se você ficar na vida que estava, é buraco, não é vida. Lá fora, a bandeja é cheia, as oportu-nidades vêm de fartura e, se você for buscar força no ho-mem, você entra aqui num dia e sai no outro”, comenta.

O pastor Carlos Hosken (42), responsável por minis-trar os cultos e cuidar da or-ganização geral da instituição, nos recebeu na comunidade. Ele explicou como funciona o ingresso e a rotina na casa de reabilitação. Com muito

Como se deu seu primeiro contato com as drogas?Foi aos 12 anos de idade com o cigarro, na balada. Comecei fumando cigarro, e as compa-nhias foram ajudando a apa-recer as drogas e a bebida. Até que despertou a vontade de conhecer mais. Fiquei na maconha por quatro anos, mas parei de fumar, porque não gostava mais. Fiquei um bom tempo sem usar nada, só bebendo e fumando cigar-ro. Depois, mudei de Bauru, fui pra Três Lagoas no Mato Grosso do Sul. Lá eu conheci a cocaína. Usei minha primei-ra vez com 16 anos. E, a partir de então, fui usando, usando, até o dia em que me envolvi com o tráfico de drogas. Fui me aprofundando cada vez mais no tráfico lá, usando também, constantemente. Até que eu parei na cadeia. Fui preso por tráfico de drogas. E vim aqui para a clínica por mandato do juiz. Hoje, já faz um ano que estou recuperado,

contando com o tempo que eu fiquei no cárcere e aqui. Graças a Deus, hoje eu estou limpo! Como é o tratamento? O tratamento aqui é muito efi-caz, tanto na parte espiritual quanto na parte de terapias, a ocupacional. A parte espiritual aqui é o estudo da Bíblia. E tem as terapias do dia-a-dia, que vão desde a limpeza da casa até fazer tapete, manutenção da casa, aulas de pintura, aulas com psicólogo… Então tem várias atividades que fa-zem ocupar a nossa mente e, com isso, deixando de lado os pensamentos negativos. Isso é muito bom! Tem também es-portes, academia, futebol. E, à noite, o estudo da palavra.

Como as amizades o in-fluenciaram em seu ingres-so no mundo das drogas?Quando você está no meio de pessoas que fazem o uso das drogas, você fala “pô, só eu que não to?”, então você vai querer conhecer, se envolve, deixa rolar e, sem perceber, você já está na pior. E aconte-

trabalho, dedicação e amor, os internos são submetidos a uma rotina disciplinada e composta por atividades e estudos, de 7 a 18 meses.

Como uma família, os ex-usuários devem zelar pelos cuidados domésticos do lar. Todas as horas do dia devem ser ocupadas para que as lembranças da droga sejam, aos poucos, apagadas. O uso de drogas é um problema so-cial que afeta toda a família de quem é dependente. O de-sequilíbrio começa da mesma forma que todos os problemas começam: pela falta de infor-mação e de prevenção, além da questão das influências.

Segundo o pastor Carlos, é fundamental que as famílias e o próprio usuário adquiram informações sobre a depen-dência química e sobre os per-

calços a serem enfrentados ao optarem por uma internação. “O álcool e as drogas dispu-tam espaço com o amor e a paz, que deveriam ser os pro-tagonistas do lar”, comenta Carlos. Feliz com o tratamen-to e se sentindo na respon-sabilidade de ajudar aqueles que estão passando pela situ-ação que já enfrentou, Lean-dro conta sobre os problemas que a droga implanta entre o usuário e sua família: “Muitos aqui vêm porque nem a famí-lia os quer dentro de casa. A gente abandona a família por causa da droga. Só droga, dro-ga, droga. Tudo que você tem não basta. Eu mesmo, era pra ter conquistado tanta coisa e perdi tudo. Ainda bem que eu vim pra cá cedo, vim na hora. Depois que eu ficasse velho, o que eu ia buscar?!”, relata.p

ce naturalmente. Pra você não está acontecendo nada, mas você está cego e as coisas es-tão indo. Está indo pro cami-nho da perdição e nem está vendo, essa é a verdade.

Como está sua saúde, de-pois de deixar as drogas?Ah, um respirar bem melhor! Porque eu fumava também, era um maço de cigarro por dia. Hoje eu já não fumo mais, não uso mais drogas, então já dá um outro gás.

Quando você usava drogas, você sentia alguma forma de repressão social? Não. Tanto é que muitas pes-soas que consumiam a dro-ga, que compravam cocaína de mim eram de classe social alta. Dentista, advogado com-pravam de mim, por exemplo. Várias pessoas de classes di-ferentes compravam.

Você tem alguma coisa a di-zer às pessoas que passaram pela mesma situação e têm a possibilidade de procurar ajuda logo no começo?

Não deixar se levar por influ-ência nenhuma. O que não é uma tarefa fácil, com o mundo em que as crianças estão cres-cendo hoje. Acho que o funk é uma das coisas que mais leva as pessoas a isso, porque não tem foco, não tem pensamento mais pra frente. Eu mesmo não pensava em faculdade e nada disso. Então, a própria música e as amizades podem influen-ciar muito. Mas não foi falta de oportunidade não, foi falta de vontade. É a opção que cada um faz e segue. Independente das circunstâncias que tudo aconteceu, sempre trabalhei, já fui funcionário da TV Unesp, como acessor do professor An-tonio Carlos de Jesus, que fa-leceu recentemente.Quer dizer, eu tive uma vida social legal, só que eu também achava le-gal vender droga… Isso aí é coisa que vem de muito cedo. Hoje eu tenho uma filha, a Be-atriz de um ano e dois meses, então já penso com outra cabe-ça. Se, quando era mais jovem aconteceu isso comigo, imagi-na hoje, com tantas coisas que o mundo tem. p

bRuNO, 27

INFORMAÇÕEScomunidAde terApêuticA vidA & pAz - ruA méxico, quAdrA 8. BAirro JArdim terrA BrAncA.

telefone: (14) 3276-1615reuniões semAnAis ABertAs: quArtAs às 19h30, e domingos às 20h.

ASAS dE CERA

Foto: Camila Pasin

Não há dinheiro que afaste das drogas se não mudar o foco, o interesse pela vida “O álcool e as drogas

disputam espaço com o amor e a paz”

Page 11: Sujeito

SUJEITOP11 I FEVEREIRO I 2014

OPINIÃO

ARCAbOuÇOS

- GL Era no segundo colegial e

na lista de livros que a esco-la dava para os alunos lerem estava um que me suscitou a curiosidade: “Homens invi-síveis: relato de uma humi-lhação social”, de Fernando Braga da Costa. O título tão destoante dos outros roman-ces de vestibular que éra-mos acostumados a ler, me fez pensar que tipo de leitu-ra seria aquela que o profes-sor de literatura mandara ler e, embora a prova deste livro fosse uma das últimas, come-cei a lê-lo logo que comprei.

Este foi o meu primeiro con-tato com as pessoas que fi-cam à margem da sociedade, através das páginas de um livro. A história foi resultado do mestrado do autor, que in-vestigou como os garis, profis-são não valorizada e de menor

status perante a sociedade, vivem e como a população os vê (ou não). Daquele livro em diante, passei a observar cada vez que passava na fren-te de um gari, vendedor am-bulante ou prostituta e como simplesmente passava, sem realmente enxergá-los como seres humanos e pessoas que tem um valor para a socieda-de. Minha imaginação sobre prezar pela limpeza da cida-de de São Paulo e milhões de pessoas passando por mim sem conseguir me olhar nos olhos, ou então, ser alvo de um olhar de “dó” por ter uma incumbência tão “baixa” na sociedade foi perturbadora. Como uma menina do se-gundo colegial, que se julgava justa e honesta, que estudava em um colégio particular para passar no vestibular pudera ser acometida pela patologia

da indiferença perante as pes-soas? Guardei o livro e anos depois fui estudar jornalismo.

Era no segundo ano da fa-culdade e um colega de classe apareceu com uma camiseta curiosa – Um quadrado sendo observado por algumas pes-soas, exceto uma, que esta-va excluída ao lado sem que ninguém a percebesse. Pron-to. Aquilo foi o suficiente para recobrar a memória de todo sentimento que tive quando li aquele livro. Dois objetos tão simples com uma reflexão tão profunda sobre “pessoas sim-ples” que têm as experiências mais diferentes. Não que um suplemento como esse possa legitimar tudo o que estas pes-soas fazem, mas pode ser o es-topim, aquele mesmo que tive no segundo colegial, para des-pertar a atenção de outros. pCR

ÔNIC

A

- KMA recente atuação do De-

partamento de Narcóticos (Denarc) de São Paulo re-acende uma discussão im-portante sobre o compor-tamento da mídia. A ação realizada no dia 23 de ja-neiro denotou o desprepa-ro, não apenas do governo estadual, como dos gran-des veículos de comunica-ção em suas coberturas, em lidar com usuários de drogas da região da Cra-colândia. Além da violên-cia física e moral praticada pelos agentes do Estado, a mídia também não aju-dou a desconstruir o ima-ginário comum sobre os dependentes químicos e moradores de rua. Gran-de parte da mídia conser-vadora estava tentando elucidar os supostos pro-pósitos políticos da ação.

No entanto, a atuação capenga, partidária e de-sumana da mídia foi uma

das coisas que mais cho-cou. Poucos veículos entre-vistaram os dependentes químicos para saber o que tinham achado da atua-ção do Denarc ou para fa-lar do programa municipal. E também não ajudaram a desmistificar a ideia de que todo usuário é ban-dido ou que todo morador de rua é usuário. Parecia ter lugar para ambos no saco de mediocridade e preconceito destilado por veículos como Folha de São Paulo, Estadão e G1. Da mesma forma, came-lôs e pessoas que sofrem de distúrbios psiquiátricos são constantemente igno-rados ou só aparecem na mídia quando os valores-notícia imperam (valores como morte, desastre ou desvio moral de conduta).

Nesse ponto, chega a ser engraçado como o nosso país e a nossa mídia pare-cem estar alocados no lado

oriental do planeta. No Afeganistão é bastante co-mum que crimes de cunho moral como fugir de casa, por exemplo, sejam puní-veis com prisão. Da mesma maneira, grande parte da mídia ainda é muito resis-tente quando se fala em re-gulamentar o trabalho das prostitutas embora já exis-tam projetos de lei que cri-minalizam a cafetinagem e solicitam a regulamenta-ção de casas de prostitui-ção. Agora, como discutir a descriminalização das prostitutas e ao mesmo tempo exigir a prisão dos homens que as exploram, se os estereótipos traçados pela mídia são arcabouços quase intocáveis? Quan-do os programas de fim de tarde, com um público mais familiar, não conse-guem abordar mais do que preconceitos sobre estas pessoas já marginalizadas em nossa sociedade? Essa

sociedade que se crê bran-ca, classe média e meritro-crática e que é completa-mente diferente disto mas é constantemente manipu-lada pelos padrões dos ba-rões da mídia. Esses mes-mos barões que creem que só pelo esforço contínuo é que se consegue dignidade humana, e para quem es-ses doentes, loucos e bar-deneiros só existem nessas condições precárias por preguiça ou mau caráter.

O papel da mídia deveria ser demonstrar que igual-dade de direitos não sig-nifica igualdade de opor-tunidades e por isso estas pessoas marginalizadas não são “más” ou preguiço-sas. Nesse sentido, a mídia tem cometido erros crassos.

Enquanto a mídia con-tinuar ditando o certo e o errado e se colocando acima das leis e dos pro-gramas de assistência so-cial, o país será vítima de equívocos e mazelas. E as vítimas preencherão, even-tualmente, algumas notas de rodapé noticiando sua briga, a agressão sofrida ou a morte prematura por hipotermia nas ruas. p

Foto: Giovanna Diniz

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