subversÃo responsÁvel de uma …ƒo...disciplinas, como a de fundamentos, geometria analítica,...

12
SUBVERSÃO RESPONSÁVEL DE UMA PROFESSORA, PROPICIADA POR SEU PROCESSO DE DESENVOLVIMENTO PROFISSIONAL Celi Espasandin Lopes Universidade Cruzeiro do Sul Beatriz Silva D’Ambrosio Miami University Resumo Neste artigo discutem-se as ações de insubordinação criativa, reveladas por uma professora, ao narrar sua trajetória profissional. A insubordinação criativa ou subversão responsável relaciona-se a atitudes e decisões tomadas pelo profissional, em ruptura com o que está posto ou definido por outros instituições ou superiores , aos quais ele está subordinado. O objetivo é discutir o modo como o desenvolvimento profissional possibilita à professora redimensionar seus saberes, de forma a lhe atribuir segurança para ousar e inovar sua prática docente. Considera-se o desenvolvimento profissional como um processo que salienta os aspectos que o professor pode enriquecer, em função de suas potencialidades, e ocorre com base em certo autodidatismo, em que ele procura, decide, projeta e executa um plano de formação. Neste estudo a entrevista é um instrumento para construir os dados por entender que esse recurso nos permite obter descrições ricas e diferenciadas dos conteúdos manifestos do que é dito, bem como interpretações mais profundas e mais críticas sobre o que foi expresso. A análise da conversação examina os detalhes mínimos da fala na interação do entrevistador com o entrevistado e que a interpretação do significado das declarações supera a estruturação das manifestações do entrevistado, pois há uma interpretação mais profunda e crítica do pesquisador no confronto com o referencial teórico. Evidencia-se que o investimento da professora em seu desenvolvimento profissional e sua participação em diferentes espaços formativos geraram uma ampliação de seu conhecimento profissional, o que lhe permitiu atitudes de ousadia em sua prática docente, de forma a possibilitar aos seus alunos uma aprendizagem matemática mais consistente e com significados. Palavras-chave: Insubordinação criativa. Desenvolvimento profissional de professores. Trajetória profissional. Introdução O termo “insubordinação criativa”, muitas vezes denominado “subversão responsável”, refere-se às quebras de regras que profissionais assumem, ao buscar proteger aqueles a quem prestam serviços e possibilitar-lhes melhores condições de vida. Nos anos 1990, este conceito emergiu nos estudos de Enfermagem e, em seguida, as pesquisas da área de Administração Escolar passaram a utilizá-lo para discutir ações de dirigentes de escolas. Didática e Prática de Ensino na relação com a Formação de Professores EdUECE- Livro 2 06350

Upload: haque

Post on 24-Jan-2019

214 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: SUBVERSÃO RESPONSÁVEL DE UMA …ƒO...disciplinas, como a de fundamentos, geometria analítica, etc. Logo quando me formei passei no concurso da prefeitura. Minha primeira sala de

SUBVERSÃO RESPONSÁVEL DE UMA PROFESSORA, PROPICIADA POR

SEU PROCESSO DE DESENVOLVIMENTO PROFISSIONAL

Celi Espasandin Lopes

Universidade Cruzeiro do Sul

Beatriz Silva D’Ambrosio

Miami University

Resumo

Neste artigo discutem-se as ações de insubordinação criativa, reveladas por uma

professora, ao narrar sua trajetória profissional. A insubordinação criativa ou subversão

responsável relaciona-se a atitudes e decisões tomadas pelo profissional, em ruptura

com o que está posto ou definido por outros – instituições ou superiores –, aos quais ele

está subordinado. O objetivo é discutir o modo como o desenvolvimento profissional

possibilita à professora redimensionar seus saberes, de forma a lhe atribuir segurança

para ousar e inovar sua prática docente. Considera-se o desenvolvimento profissional

como um processo que salienta os aspectos que o professor pode enriquecer, em função

de suas potencialidades, e ocorre com base em certo autodidatismo, em que ele procura,

decide, projeta e executa um plano de formação. Neste estudo a entrevista é um

instrumento para construir os dados por entender que esse recurso nos permite obter

descrições ricas e diferenciadas dos conteúdos manifestos do que é dito, bem como

interpretações mais profundas e mais críticas sobre o que foi expresso. A análise da

conversação examina os detalhes mínimos da fala na interação do entrevistador com o

entrevistado e que a interpretação do significado das declarações supera a estruturação

das manifestações do entrevistado, pois há uma interpretação mais profunda e crítica do

pesquisador no confronto com o referencial teórico. Evidencia-se que o investimento da

professora em seu desenvolvimento profissional e sua participação em diferentes

espaços formativos geraram uma ampliação de seu conhecimento profissional, o que lhe

permitiu atitudes de ousadia em sua prática docente, de forma a possibilitar aos seus

alunos uma aprendizagem matemática mais consistente e com significados.

Palavras-chave: Insubordinação criativa. Desenvolvimento profissional de professores.

Trajetória profissional.

Introdução

O termo “insubordinação criativa”, muitas vezes denominado “subversão

responsável”, refere-se às quebras de regras que profissionais assumem, ao buscar

proteger aqueles a quem prestam serviços e possibilitar-lhes melhores condições de

vida. Nos anos 1990, este conceito emergiu nos estudos de Enfermagem e, em seguida,

as pesquisas da área de Administração Escolar passaram a utilizá-lo para discutir ações

de dirigentes de escolas.

Didática e Prática de Ensino na relação com a Formação de Professores

EdUECE- Livro 206350

Page 2: SUBVERSÃO RESPONSÁVEL DE UMA …ƒO...disciplinas, como a de fundamentos, geometria analítica, etc. Logo quando me formei passei no concurso da prefeitura. Minha primeira sala de

Nesta pesquisa, buscamos identificar, na trajetória profissional de uma

professora de matemática, ações de insubordinação criativa que ela possa ter tido em

prol da aprendizagem e do desenvolvimento de seus alunos.

O objetivo é discutir o modo como o desenvolvimento profissional possibilita à

professora redimensionar seus saberes, de forma a lhe atribuir segurança para ousar e

inovar sua prática docente. O desenvolvimento profissional é um processo que salienta

os aspectos que o professor pode enriquecer, em função de suas potencialidades,e ocorre

com base em certo autodidatismo, em que ele procura, decide, projeta e executa um

plano de formação. É nessa busca que melhora seu conhecimento, suas competências

e/ou atitudes (LOPES, 2003).

Na época de Platão(428/27 – 347 a.C.), emAtenas, a inovação era

consideradaperigosa, e os profissionais – particularmente aqueles da educação e das

artes – estavam proibidos de inovar. A palavra “inovação”, epistemologicamente,

significa transformar algo em algo novo, o que apresenta uma significativa interface

com a criatividade, esta considerada como a capacidade de construir e elaborar o novo

de forma valiosa para os outros, bem como para si mesmo (POPE, 2005).

Randi e Corno (2000) alertam que os professores têm tido pouco apoio para

inovar, pois o modelo de transmissão hierárquica não estimula esses profissionais ao

exercício da inteligência crítica. A adoção de programas genéricos desenvolvidos por

especialistas externos à escola e o uso persistente de medidas de implementação tomam

os professores como consumidores passivos, pois os levam a concentrar a atenção no

domínio de estratégias específicas, ao invés de auxiliá-los na resolução de problemas

crônicos e complexos; e contribuem para simples aplicações de resultados de pesquisas,

opondo-se à inovação na sala de aula.

D’Ambrosio (2014) alerta que preparamos os professores para que se

conformem e sigam regras, sem considerar as implicações dessa postura para o bem-

estar das crianças. Muitas instituições escolares têm oprimido os professores e os

alunos, pois empregam, para a formação docente, processos que não visam ao

desenvolvimento da criticidade desses profissionais e não os preparam para tomar

decisões, em seu trabalho docente, que levem ao bem dos estudantes. Por vezes,

ensinamos os professores a seguir cegamente as políticas públicas, sem preocupação

com o impacto de seus atos de ensinar sobre a formação das crianças e dos jovens ou

com o impacto desse ensino para os redirecionamentos sociais.

Diante disso, os processos de formação – inicial ou contínua – de professores

Didática e Prática de Ensino na relação com a Formação de Professores

EdUECE- Livro 206351

Page 3: SUBVERSÃO RESPONSÁVEL DE UMA …ƒO...disciplinas, como a de fundamentos, geometria analítica, etc. Logo quando me formei passei no concurso da prefeitura. Minha primeira sala de

precisam ser redimensionados. Gutiérrez (2013) afirma que, no ensino da matemática,

as insubordinações criativas dos professores manifestam-se por meio dos seguintes atos:

criar argumentações alternativas para explicar as diferenças de aproveitamento dos

alunos, rompendo com a generalização normalmente presente nos discursos de análise

dos resultados deles; questionar as formas como a matemática é apresentada na escola;

enfatizar a humanidade e a incerteza da disciplina de matemática; posicionar os alunos

como autores da matemática; e desafiar os discursos discriminativos sobre os alunos.

Considerando tais pressupostos, desenvolvemos este estudo.

A pesquisa e a professora Julianai

Utilizamos a entrevista para construir os dados deste estudo, por entender que

esse recurso nos permite obter descrições ricas e diferenciadas dos conteúdos

manifestos do que é dito, bem como interpretações mais profundas e mais críticas sobre

o que foi expresso.

Consideramos que a entrevista é uma interação linguística e se constituiem texto

de linguagem produzido pelo entrevistado. A atenção aos aspectos linguísticos de uma

entrevista pode ajudar a gerar e verificar o significado das declarações (KVALE, 2011,

p. 144).

A análise da conversação examina os detalhes mínimos da fala na interação do

entrevistador com o entrevistado. A interpretação do significado das declarações supera

a estruturação das manifestações do entrevistado, pois há uma interpretação mais

profunda e crítica do pesquisador no confronto com o referencial teórico. Assim, não

utilizamos aqui técnicas analíticas para a leitura da entrevista e optamos por escutar a

voz da professora falando sobre sua formação, trajetória profissional e ações docentes

que consideramos atitudes de insubordinação criativa. Procuramos manter um diálogo

entre diferentes teorias e os dados, sem a intenção de validar uma perspectiva suposta,

mas na busca de compreender os problemas em seu contexto, da forma como a

professora vivenciou e relatou. A seguir, apresentaremos a professora.

Juliana é professora de Matemática efetiva desde 2002 na Secretaria Municipal

de Educação de uma cidade do interior do estado de São Paulo,e desde sua formação

inicial, sempre esteve inserida em grupos de estudos e pesquisas e em processos de

formação continuada. Ela sempre lecionou para os anos finais do Ensino Fundamental e

atualmente, além de lecionar, trabalha com a coordenação da área de Matemática.Sua

jornada de trabalho é de 44 horas, das quais 24 são dedicadas a lecionar e 20 são para a

Didática e Prática de Ensino na relação com a Formação de Professores

EdUECE- Livro 206352

Page 4: SUBVERSÃO RESPONSÁVEL DE UMA …ƒO...disciplinas, como a de fundamentos, geometria analítica, etc. Logo quando me formei passei no concurso da prefeitura. Minha primeira sala de

orientação pedagógica. Ela frequenta três grupos de estudos e pesquisas em Educação

Matemática, vinculados a universidades, dois deles com encontros quinzenais no espaço

físico de uma universidade pública; o terceiro, coordenado por uma pesquisadora de

universidade privada, realiza os encontros quinzenais em um espaço físico da rede

municipal onde Julianaatua, destinado aos encontros de formação continuada de

professores. Sua participação nesses grupos é voluntária e não compõe sua jornada de

trabalho, nem sequer auxilia em sua ascensão profissional.

Juliana já cursou três especializações em Ensino de Matemática em uma

universidade pública da região. Nessa mesma instituição fez especialização em Prática

Pedagógica em Matemática e tornou-se Mestre em Educação.

A narrativa da professora

A professora relata que iniciou a carreira na rede municipal de ensino em uma

cidade do interior de São Paulo, onde lecionou nos primeiros quatro anos em turmas da

EJA. E, ao longo de sua carreira, adquiriu a preferência por ministrar aulas para o 7o.

ano do Ensino Fundamental. Ela declara que tinha como expectativa que seu curso de

licenciatura em Matemática a preparasse para lecionar; no entanto, ao se deparar com o

desafio de promover a aprendizagem de seus alunos, percebeu que todo o conteúdo

matemático que dominava não era suficiente para isso: lacunas em sua formação inicial

remeteram-na à busca por processos de desenvolvimento profissional.

Eu sempre quis ser professora de matemática, quando fui

fazer a faculdade pensei que aprenderia a dar aula, mas

não foi isso que aconteceu. Eu gostava de algumas

disciplinas, como a de fundamentos, geometria analítica,

etc. Logo quando me formei passei no concurso da

prefeitura. Minha primeira sala de aula foi um 6º ano,

como eu não tinha feito magistério tive dificuldade no

começo. Meus alunos não sabiam fazer as quatrooperações,

fiquei desesperada e enchia a lousa de tópico, teorias e

atividades. Comecei dar aula em julho, e em agosto iniciei

um minicurso na IMECC aos sábados. Nesses cursos fui

aprendendo a ensinar os conceitos de divisão. No ano

seguinte eu fiz o MAT 300, em 2004 eu prestei o MAT 100.

Em 2005 iniciei a participação em um grupo de estudos e

pesquisas na Unicamp, o grupo do GDS. No ano seguinte

iniciei o MAT 500. Esses cursos tinham custos acessíveis, e

Didática e Prática de Ensino na relação com a Formação de Professores

EdUECE- Livro 206353

Page 5: SUBVERSÃO RESPONSÁVEL DE UMA …ƒO...disciplinas, como a de fundamentos, geometria analítica, etc. Logo quando me formei passei no concurso da prefeitura. Minha primeira sala de

também porque eu sentia falta de alguém para trocar

experiências.ii (Entrevista, 18/03/2014)

No entanto, reconhece que adquiriu habilidades para organizar atividades de

ensino no curso de licenciatura, com a proposta de um professor de que o estágio de

docência fosse feito pelos alunos, por meio do oferecimento de oficinas a outros alunos

e/ou a professores em exercício.

nós tínhamos que dar oficinas para cumprir o estágio.

Organizávamos jogos interessantes, e isso me marcou. Tive

uma professora que era superdidática, que me marcou

também. Todos esses professores tinham postura humana

de professores, e não apenas especialistas, então

conversávamos muito. Os outros professores eram bem

diferentes, eu me desesperava ao estudar os livros didáticos

(6º ao 9º ano), porque via que o que eu aprendia não me

ajudaria na sala de aula. (Entrevista, 18/03/2014)

Esse depoimento evidencia a importância da realização de atividades

relacionadas à prática de ensino, pois essas aproximam os futuros professores de ações

que serão fundamentais no exercício da docência.

Entendemos que a retrospectiva reflexiva da professora sobre sua formação

inicial já revela uma dimensão de sua subversão responsável, ao relatar que esperava

“que aprenderia a dar aula, mas não foi isso que aconteceu” e ao dizer que os

professores de disciplinas relacionadas à prática “tinham postura humana de

professores, e não apenas especialistas”. O questionamento sobre as formas como a

Matemática é abordada no curso de licenciatura evidencia a avaliação do valor de suas

experiências de formação para o seu preparo docente.

A professora Juliana relata que oscursos de Pós-Graduação ajudaram a ampliar o

domínio de conteúdo matemático e também a redimensionar o seu conhecimento

profissional.

Me lembro que, ao ministrar um minicurso no SHIAMiii

, um

professor, que havia estudado comigo, perguntou onde eu

aprendi toda aquela didática, pois na faculdade onde

estudamos juntos não aprendemos isso. A participação no

primeiro curso de especialização que fiz me estimulou a

socializar minhas práticas, o curso possibilitou um outro

olhar, me ajudou a aprofundar matematicamente e

didaticamente. (Entrevista, 18/03/2014)

Didática e Prática de Ensino na relação com a Formação de Professores

EdUECE- Livro 206354

Page 6: SUBVERSÃO RESPONSÁVEL DE UMA …ƒO...disciplinas, como a de fundamentos, geometria analítica, etc. Logo quando me formei passei no concurso da prefeitura. Minha primeira sala de

A professora se refere ao MAT 300, um curso com processo avaliativo

diferenciado: quando o professor participante era convidado a elaborar atividades para

as suas aulas, de acordo com os temas discutidos na disciplina, deveria apresentar para a

turma como havia sido o desenvolvimento e sua reflexão sobre sua prática nessa

proposta.

Ela também nos conta que buscou grupos de estudos e pesquisa para sair do

isolamento.

Na minha escola só tem eu de professora de matemática (6º

ao 9º ano), então tive dificuldade de fazer o planejamento, e

a prefeitura não oferecia formação. Hoje em dia temos os

grupos, plano de curso único... A participação nos grupos

foi uma busca para ter continuidade do que ocorria no

primeiro curso de especialização, um espaço para

compartilhar as dificuldades de sala de aula. Aprendo

muito com meus colegas de grupo, as leituras, os olhares

são diferentes. A intenção nos grupos é discutir e ir além do

que todos sabem. (Entrevista, 18/03/2014)

A professora revela a importância de ser ouvido e de ouvir, compreender e ser

compreendido pelos pares e, a partir daí e do estudo teórico, redimensionar suas

práticas. Para ela, a participação nos grupos de estudos e pesquisas contribui para oseu

desenvolvimento profissional.

No grupo temos as discussões pedagógicas e os

aprofundamentos teóricos. Formamos, eu e duas colegas,

um subgrupo em um dos grupos da universidade pública,

com foco de estudo sobre o conteúdo de medidas, e tem sido

muito relevante. Então, focar num estudo sobre o tema

ajuda a perceber novas maneiras de trabalhar em sala de

aula. (Entrevista, 18/03/2014)

Apesar de todos os cursos que já fez,Juliana ainda sente necessidade de

aprofundar estudos conceituais e procedimentais sobre temáticas a serem trabalhadas no

ensino fundamental, de forma a ser capaz de criar atividades diferenciadas para suas

aulas.

Os professores precisam possuir conhecimentos sobre a matéria que ensinam;

conhecer o conteúdo em profundidade, para organizá-lo mentalmente, de forma a

estabelecer inúmeras inter-relações; relacionar esse conteúdo ao ensino e à

Didática e Prática de Ensino na relação com a Formação de Professores

EdUECE- Livro 206355

Page 7: SUBVERSÃO RESPONSÁVEL DE UMA …ƒO...disciplinas, como a de fundamentos, geometria analítica, etc. Logo quando me formei passei no concurso da prefeitura. Minha primeira sala de

aprendizagem, em um processo de interação com os alunos, considerando o

desenvolvimento cognitivo destes; e, também, dominar o contexto, tendo clareza do

local em que ensinam e a quem ensinam.

O elemento central do conhecimento profissional do professor é o conhecimento

didático do conteúdo, que se constitui em uma síntese dos conteúdos a ensinar com os

modos de fazê-lo, incluindo formas de representação das ideias, analogias importantes,

ilustrações e exemplos próximos ao contexto. Está incorporada a esse conhecimento a

habilidade para representar e formular o conteúdo conceitual e/ou procedimental,

tornando-o acessível aos alunos, gerando a compreensão do que torna mais, ou menos,

difícil a aprendizagem de um conceito (LOPES, 2003).

Os encontros realizados em grupos de estudos e pesquisas, que assumem a

perspectiva de trabalho colaborativo, como esses dos quais a professora é membro,

permite debates sobre as reflexões de suas práticas, a fim de aprofundar e redimensionar

os saberes e fazeres docentes dos participantes. O professor é o elemento-chave na

criação do ambiente que se vive na sala de aula: cabe a ele a responsabilidade de propor

e organizar tarefas, bem como de coordenar o desenvolvimento das atividades de ensino

com os alunos.

O professor age como pessoa e suas ações profissionais o

constituem. Esta é uma linha definidora para pensar as ações

como produtos e processo, que correspondem a pessoas

singulares. Atrás da ação está o corpo, a inteligência os

sentimentos, as aspirações, as maneiras de compreender o

mundo, etc. Tudo isso se projeta no que cada um empreende,

construindo a biografia do agente. (SACRISTÁN, 1999, p. 31)

Nesse sentido, cada professor é único, define seu caminho e decide suas ações de

acordo com sua personalidade, seus afetos, crenças e expectativas. Ser membro de um

grupo permite ao professor o estudo e a reflexão, o estar junto com seus pares,

independentemente de seu vínculo profissional; torna a profissão docente menos

solitária; e possibilita um diálogo livre de qualquer censura.

A participação em espaços de desenvolvimento profissional escolhidos pela

professora permite a ela ponderar e superar determinações da instituição à qual está

vinculada.

No começo da carreira eu era muito obediente, hoje

questiono mais, porém estou distante de ser muito política.

Às vezes, concordo na hora em que sou questionada para

não enfrentar um conflito que pode ser desnecessário, mas

depois faço do meu modo. Porque penso que do meu modo

Didática e Prática de Ensino na relação com a Formação de Professores

EdUECE- Livro 206356

Page 8: SUBVERSÃO RESPONSÁVEL DE UMA …ƒO...disciplinas, como a de fundamentos, geometria analítica, etc. Logo quando me formei passei no concurso da prefeitura. Minha primeira sala de

está correto e, como sempre é uma pessoa superior e tenho

que obedecer, daí eu prefiro concordar. Por exemplo, a

diretora que tenho hoje me cobra que eu trabalhe o jogo

com os alunos o tempo todo, eu proponho jogos, mas na

minha visão não dá para largar tudo e só jogar. Nesse

sentido, vejo que o mínimo de conteúdo que tenho que

passar vou passar independente do que ela fala.

(Entrevista, 18/03/2104).

Nesse momento, a professora revela que, por vezes, tem atitudes de

insubordinação criativa que são intencionais e veladas, mas ocorrem em prol do que

considera um melhor exercício de sua docência. Ela define o currículo no que se refere

ao conteúdo e à metodologia, bem como, à maneira como utiliza o material didático

ofertado pela instituição.

Já faz algum tempo, cerca de seis anos, a rede municipal

fornecia apostilas péssimas. Eu mandava as apostilas

como lição de casa e mostrava os erros que a apostila

continha para os alunos. Nunca falava que não iria usar,

mas dava uma contornada. Veio com muita coisa

copiada da Internet, erros conceituais absurdos. Fui

convidada para fazer uma análise crítica do material, e

apontei os erros, mas no ano seguinte não fizeram a

correção. O material do 6º ano era inquestionável, pois

trazia a reflexão sobre as quatro operações. Eu não

consigo seguir a apostila da escola, prefiro o livro

didático fornecido pelo MEC. Eu tenho em mente o que

trabalhar com os alunos do 6º, 7º e 8º ano, não dá para

ficar presa nas apostilas. (Entrevista, 18/03/2104).

A professora nos conta que já tem sua sequência de trabalho estabelecida e

definida pela sua experiência profissional, e não importam as indicações feitas pela

instituição educacional, pois é ela quem determina a formação matemática de seus

estudantes.

O conflito entre o profissionalismo autônomo, a liberdade de

cátedra e o respeito à livre consciência, por um lado, e, por

outro, o acatamento dos currículos estabelecidos ou o pôr-se ao

serviço do projeto do outro (seja o Estado, o patrão, os pais ou o

grupo colegiado de professores), não é fácil de resolver.

(SACRISTÁN, 1999, p. 41, grifo do autor)

Didática e Prática de Ensino na relação com a Formação de Professores

EdUECE- Livro 206357

Page 9: SUBVERSÃO RESPONSÁVEL DE UMA …ƒO...disciplinas, como a de fundamentos, geometria analítica, etc. Logo quando me formei passei no concurso da prefeitura. Minha primeira sala de

Na trajetória desta professora,seu investimento em seu desenvolvimento

profissional, com a participação em cursos e grupos de estudos e pesquisas,lhe permitiu

a aquisição de uma autonomia profissional determinada pela mobilização de seus

saberes. Ela estabelece o currículo de matemática em suas aulas, o que se constitui na

manifestação da insubordinação criativa em vários momentos de sua atividade

profissional.

Tornar-se uma profissional subversivamente responsável ao longo de sua

trajetória exigiu da Professora Juliana um confronto com os conflitos que surgiram

desde sua formação inicial até o desempenho de suas atividades docentes. Contreras

(1997) considera que o ensino é uma atividade que sempre se pode melhorar, e o

professor precisaabrir-se ao inesperado, para entender a relação complexa e conflitiva

presente nas aspirações educativas.

A abertura à imprevisibilidade da professora ocorre quando ela se sente segura,

ou seja, ela pauta suas ações em fundamentações teóricas construídas por ela mesma, a

partir da reflexão e da sistematização de sua prática docente. Essas atitudes são

possíveis pelo fato de ela assumir a solução dos conflitos emergentes da complexidade

da sala de aula.

Juliana evidencia, em sua trajetória profissional, um momento ímpar de

redirecionamento de suas ações, no que se refere à sua prática avaliativa.

Minha participação nos grupos de pesquisa também

contribuiu para que eu pudesse rever minha forma de

avaliar. Atualmente, eu procuro ter um olhar avaliativo não

só para a nota da prova. As questões de desafios eu

costumo dar durante as aulas, e para a prova aplico

exercício mais simples para não prejudicar os alunos.

Trabalho com atividades gradativas para observar o

quanto o aluno está avançando. Tem aluno que não irá

fazer a prova ideal que o professor espera (principalmente

os do 6º ano), com isso, aplico atividades que ele dê conta.

A orientação da secretaria seria essa recuperação paralela

e contínua. (Entrevista, 18/03/2014)

A partir disso, ela nos conta que adquiriu novos olhares para a avaliação, ao

colaborar com a realização de uma pesquisa de mestrado, quando desenvolveu um

projeto de avaliação com seus alunos, o qual foi relatado posteriormente, em um

capítulo de livro publicado em 2012.

Didática e Prática de Ensino na relação com a Formação de Professores

EdUECE- Livro 206358

Page 10: SUBVERSÃO RESPONSÁVEL DE UMA …ƒO...disciplinas, como a de fundamentos, geometria analítica, etc. Logo quando me formei passei no concurso da prefeitura. Minha primeira sala de

A professora reconhece o desenvolvimento desse projeto como uma de suas

ações mais insubordinadas criativamente, por ter assumido os alunos como coautores no

processo avaliativo.

Desenvolvi um projeto de avaliação em que eram

produzidas fichas de registros (notas de trabalhos,

participação, etc.), no qual os alunos somavam a própria

nota e fechavama média (tive cuidado de propor essa

avaliação na escola da manhã, é uma escola maior, a

direção é autoritária e os pais são mais questionadores,

etc.). Essa avaliação é feita durante o processo de

atividades pelo próprio aluno. Aconteceu um fato, em que a

diretora veio questionar a nota de um aluno considerado

ruim que fechou com 7,5 na minha matéria. E esse aluno já

sabia a nota antes do conselho, porque ele mesmo

preencheu a ficha avaliativa. A diretora não gostou, mas a

ficha foi a única coisa que me garantiu não mudar a nota

dele. Existem fatos que não temos como discutir na escola,

a direção tem muita autoridade sobre nós professores.

(Entrevista, 18/03/2014).

Muitas vezes, os gestores escolares consideram que as regras de avaliação têm

que ser definidas por eles e que devem ser comuns para todos os professores,

desconsiderando as diferenças de práticas pedagógicas, as quais requerem articulação

direta com os processos avaliativos.

Essa realidade exige do professor uma tomada de decisão e uma ruptura com o

que está estabelecido. Freire (1997, p. 115) considera que não podemos ser professores,

se não percebermos, cada vez mais, que, por não poder ser neutra, nossa prática exige

de nós uma definição. Exige de nós uma escolha. “Não posso ser professor a favor de

quem quer que seja e a favor de não importa o quê.” Comungamos das ideias freireanas

de que nós, professores, temos que estar “a favor da decência contra o despudor, a favor

da liberdade contra o autoritarismo, da autoridade contra a licenciosidade, da

democracia contra a ditadura de direita ou de esquerda” (FREIRE, 1997, p. 115).

Considerações finais

A trajetória da professora Juliana evidencia que as atitudes de insubordinação

criativa passaram a ocorrer após sua inserção em espaços formativos nos quais a

reflexão sobre a prática docente é socializada e pautada em estudos teóricos.

Didática e Prática de Ensino na relação com a Formação de Professores

EdUECE- Livro 206359

Page 11: SUBVERSÃO RESPONSÁVEL DE UMA …ƒO...disciplinas, como a de fundamentos, geometria analítica, etc. Logo quando me formei passei no concurso da prefeitura. Minha primeira sala de

As necessidades emergentes no contexto das aulas de Matemática da professora

foram determinantes para o direcionamento de suas ações. O percurso realizado por ela

enlaça as suas intenções e os seus motivos para tentar solucionar problemas de suas

atividades docentes. A sua busca por constantes processos de desenvolvimento

profissional lhe permiteenfrentar os conflitos decorrentes de suas ações sobre a

complexidade da sala de aula.

Podemos evidenciar que a professora supera o conflito das limitações e lacunas

deixadas pelo curso de licenciatura,ao avaliar criticamente sua formação inicial e

perceber a necessidade de ampliar seus conhecimentos para uma prática eficaz.A

ampliação de seus conhecimentos profissionais, decorrente de seu processo de

desenvolvimento profissional, possibilita a ela superar os conflitos em relação ao

currículo de Matemática; à sua concepção e prática de avaliação; aos questionamentos e

às determinações da direção da escola; e às suas práticas, diante das expectativas dos

pais.

Essas habilidades profissionais reveladas pela professora remetem à

insubordinação criativa, na medida em que ela cria movimentos, em suas ações teóricas

e metodológicas, em favor da aprendizagem matemática do aluno.

Tornar-se uma profissional subversivamente responsável exigiu da professora

atitudes complexas e não lineares, determinando um fazer pedagógico que não pode ser

analisado somente do ponto de vista instrumental, sem percepção do envolvimento da

professora e das consequências para sua subjetividade;e que intervirá e se expressará em

suas atitudes ousadas.

Como afirma Sacristán (1999), a intencionalidade é condição necessária para a

ação, e compreender esse elemento dinâmico e motor é fundamental para qualquer

educador, especialmente em um contexto de valores imprecisos e de rotinas

estabelecidas diante de desafios importantes, que exigem respostas comprometidas.

No caso da professora Juliana, o constante investimento feito por ela em seu

desenvolvimento profissional, o autoconhecimento, suas motivações e as reflexões

compartilhadas com seus pares são essenciais para a superação dos desafios da profissão

docente.

Didática e Prática de Ensino na relação com a Formação de Professores

EdUECE- Livro 206360

Page 12: SUBVERSÃO RESPONSÁVEL DE UMA …ƒO...disciplinas, como a de fundamentos, geometria analítica, etc. Logo quando me formei passei no concurso da prefeitura. Minha primeira sala de

Referências

CONTRERAS, J. La autonomia delprofesorado. Madrid: Morata, 1997.

D'AMBROSIO, B. S. Living Contradictions: Negotiating Practices as Mathematics

Teacher Educators. Disponível em: <http://amte.net/sites/default/files/living-

contradictions-dambrosio-amte-2014.pdf>. Acesso: 12 abr. 2014.

FREIRE, P. Pedagogia da autonomia – saberes necessários à prática educativa. Rio de

Janeiro: Paz e Terra, 1997.

GUTIERREZ, R. Mathematics teachers using creative insubordination to advocate for

student understanding and robust mathematical identities. In: MARTINEZ, M.;

CASTRO SUPERFINE, A. (Ed.). Proceedings of the 35th annual meeting of the

North American Chapter of the Inter-national Group for the Psychology of

Mathematics Education. Chicago, IL: University of Illinois at Chicago, 2013. p.

1.248-1.251.

KVALE, S. Las entrevistas en investigacióncualitativa.Madrid: Morata, 2011.

LOPES, C. E. O conhecimento profissional de professores da Educação Infantil e

suas relações com a Estatística e a Probabilidade. Tese (Doutorado) – Faculdade de

Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas/SP, 2003.

POPE, R. Creativity: theory, history, practice. New York, NY: Routledge, 2005.

RANDI, J.; CORNO, L. Los profesores como innovadores. In: BIDDLE, B. J.; GOOD,

T. L.: GOODSON, I. F. La enseñanza y los profesores III: la reforma de la enseñanza

en un mundo en transformación. Barcelona/ES: Paidós, 2000.

SACRISTÁN, J. G. Poderes instáveis em Educação. Porto Alegre: Artmed, 1999.

i Nome fictício escolhido pela professora entrevistada.

ii IMECC – Instituto de Matemática, Estatística e Ciência da Computação da Universidade

EstadualCampinas. O MAT 100 é Curso de Especialização em Matemática para Professores de Ensino

Fundamental e Médio; o MAT 300 é curso de Especialização em Matemática para Professores da

Educação Infantil e do Ensino Fundamental; e o MAT 500 é Curso de Especialização em Matemática

para Professores de quinta a oitava séries do Ensino Fundamental. iii

Seminário Nacional de Histórias e Investigações de/em Aulas de Matemática.

Didática e Prática de Ensino na relação com a Formação de Professores

EdUECE- Livro 206361