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escola de psicanálise dos fóruns do campo lacaniano - brasil

Stylusrevista de psicanálise

Stylus Rio de Janeiro nº23 p.1-164 novembro 2011

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2

Comissão de Gestão da Afcl/Epfcl- BrasilDiretora: Ana Laura Prates Pacheco

Secretária: Sandra BertaTesoureira: Beatriz Oliveira

Equipe de Publicação de StylusSilvana Pessoa (coordenadora)

Ana Paula GianesiAndréa Fernandes

Andréa Franco MilagresLia Carneiro Silveira

Rosana BaccariniSonia Borges

IndexaçãoIndex Psi periódicos (BVS-Psi)

www.bvs.psi.org.br

Editoração Eletrônica113dc Design+Comunicação

Tiragem500 exemplares

© 2011, Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano (AFCL/EPFCL-Brasil)Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta revista poderá ser reproduzida ou transmitida, sejam

quais forem os meios empregados, sem permissão por escrito.

STYLUS: revista de psicanálise, n. 23, novembro de 2011 Rio de Janeiro: Associação Fóruns do Campo Lacaniano

Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil - 17x24 cm Resumos em português e em inglês em todos os artigos. Periodicidade semestral. ISSN 1676-157X

1. Psicanálise. 2. Psicanalistas – Formação. 3. Psiquiatria social. 4. Psicanálise lacaniana. Psicanálise e arte. Psicanálise e literatura. Psicanálise e política. CDD: 50.195

StylusRevista de Psicanálise

É uma publicação semestral da Associação Fóruns do Campo Lacaniano/Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil. Rua Goethe, 66 – 2o andar. Botafogo. Rio de Janeiro, RJ Brasil.

CEP 22281-020 - [email protected]

FICHA CATALOGRÁFICA

Conselho EditorialAna Laura Prates Pacheco (EPFCL -São Paulo)Andréa Fernandes (UFBA/EPFCL-Salvador)Ângela Diniz Costa (EPFCL-Belo Horizonte)

Ângela Mucida (Newton Paiva/EPFCL-Belo Horizonte)Angélia Teixeira (UFBA/EPFCL-Salvador)

Bernard Nominé (EPFCL-França)Clarice Gatto (FIOCRUZ/EPFCL-Rio de Janeiro)

Conrado Ramos (PUC-SP/EPFCL-São Paulo)Christian Ingo Lentz Dunker (USP/EPFCL-São Paulo)

Daniela Scheinkman-Chatelard (UNB/EPFCL-Brasília)Edson Saggese (IPUB/UFRJ-Rio de Janeiro)

Eliane Schermann (EPFCL)Elisabete Thamer (Doutoranda da Sorbonne-Paris)

Eugênia Correia (Psicanalista-Natal)Gabriel Lombardi (UBA/EPFCL-Buenos Aires)

Graça Pamplona (EPFCL-Petrópolis)Helena Bicalho (USP/EPFCL-São Paulo)

Henry Krutzen (Psicanalista/Natal)Kátia Botelho (PUC-MG/ EPFCL-Belo Horizonte)

Luiz Andrade (UFPB/EPFCL-Paraíba)Marie-Jean Sauret (U. Toulouse le Mirail-Toulouse)

Nina Araújo Leite (UNICAMP/Escola de Psicanálise de Campinas)

Raul Albino Pacheco Filho (PUC-SP/EPFCL-São Paulo)Sonia Alberti (UERJ/EPFCL-Rio de Janeiro)

Vera Pollo (PUC-RJ/UVA/EPFCL-Rio de Janeiro)

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Stylus Rio de Janeiro nº 23 p. 1-164 novembro 2011 3

sumário07 editorial: Silvana Pessoa

conferência15 Colette Soler: Repetição e sintoma

ensaios37 Ana Laura Prates Pacheco: O livro de cabeceira: da escrita como sintoma ao sintoma como letra45 Silvia Amoedo: Sintoma: ruído da alíngua no corpo 51 Elisabeth da Rocha Miranda: Mulher, semblante e corpo: entre o empuxo à mulher na psicose e o sintoma da coqueteria histérica

trabalho crítico com os conceitos61 Jairo Gerbase: Alíngua histérica69 Sidi Askofaré: A prova do sintoma: que metáfora? que letra?81 Silvana Pessoa: A certeza do final: identificação ao sintoma

direção do tratamento91 Maria Vitória Bittencourt: Uma construção do sintoma na criança99 Conrado Ramos: Considerações topológicas da passagem do sintoma ao sinthoma109 Lenita Pacheco Lemos Duarte: O corpo falante de Gina125 Heloísa Helena Aragão e Ramirez & Tatiana Carvalho Assadi: Considerações sobre o gozo num caso clínico de psoríase

resenha139 Andréa Franco Milagres: Resenha do livro A hipótese lacaniana de Jairo Gerbase.145 Christian Ingo Lenz Dunker: Resenha da Coleção Ato Psicanalítico

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Stylus Rio de Janeiro nº 23 p. 1-164 novembro 2011 5

contents07 editorial: Silvana Pessoa

conference15 Colette Soler: Repetition and symptom

essays37 Ana Laura Prates Pacheco: The bedside book: from writing as symptom to symptom as letter45 Silvia Amoedo: Symptom: noise of lalangue in the body 51 Elisabeth da Rocha Miranda: Woman, resemblance and body: between the push towards the woman in psychosis and the symptom in hysterical coquetry

critical paper with the concepts61 Jairo Gerbase: The lalangue hysterical69 Sidi Askofaré: The symptom’s prove: which metaphor? which letter?81 Silvana Pessoa: The certainty about the end: symptom identification

the direction of the treatment91 Maria Vitória Bittencourt: A symptom construction by a child99 Conrado Ramos: Topological considerations about the passage from symptom to sinthome109 Lenita Pacheco Lemos Duarte: Gina’s speaking body125 Heloísa Helena Aragão e Ramirez & Tatiana Carvalho Assadi: Considerations about the jouissance in a clinical case of psoriasis

reviews139 Andréa Franco Milagres: Review of the book The Lacanian Hypothesis from Jairo Gerbase.145 Christian Ingo Lenz Dunker: Review of the Psychoanalytic Act Collection

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7Stylus Rio de Janeiro nº 23 p. 7-11 novembro 2011

Editorial

Eis a tese de Lacan: “todo parceiro é sintoma”. É o que nos diz a conferência de Colette Soler, publicada neste número de Stylus, segundo e derradeiro da série: A política do sintoma, que o leitor tem agora em mãos, promessa da Equipe de Publicação de continuação no mesmo tema, explicitado no Editorial da revista número 22.

Nessas duas conferências, proferidas durante o XI Encontro Nacional da Escola dos Fóruns do Campo Lacaniano em Fortale-za, Soler trata magistralmente da Repetição e Sintoma que existem para os seres falantes, fazem com que eles sofram, mas que, apesar de solidários e caminharem juntos, não podem ser confundidos.

Para marcar essa diferença, a conferencista faz um longo e con-sistente inventário das teses lacanianas a respeito desses dois concei-tos, dos quais depreende-se o ponto mínimo que nos interessa para esta publicação:

(...) todo o sujeito se define a partir de uma “fixão” de gozo, uma fixão que lhe é própria. Isto quer dizer que o sintoma não pode mais ser pensado como uma anomalia, como uma perturbação da boa or-dem. Se há uma anomalia, a única anomalia é a do sujeito dividido e da não relação sexual, mas uma anomalia que é para todo falante não se chama mais anomalia. É a regra.

Todo sujeito cindido se define por um sintoma. Trata-se de um ponto da mais alta relevância para a psicanálise. E o que se pode fazer com isso? – uma das duas importantes perguntas com as quais Soler conclui a sua exposição: “o que se pode fazer com isso graças a uma análise e o que se pode saber disso, uma questão para o passe” –, aponta para a política da psicanálise.

Tratem de não perder o fio da meada concernente ao que somos como efeito do saber. Como efeito do saber, somos cindidos. Na fan-tasia, ($ ◊ a), S barrado, punção, pequeno a; somos, por mais estranho que isso pareça, causa de nós mesmos. Só que não existe o si mesmo. Há, antes, um “si” dividido. Entrar nesse caminho, é daí que pode decorrer a única verdadeira revolução política.1

Tratar dessa forma a política da psicanálise é coisa séria, que orientada pela ética legada por Freud e Lacan, tem enorme poder. Tratar o sintoma como regra, que toma na contramão do projeto idealizado e exitoso do sucesso, pode parecer estranho ao discurso corrente, principalmente quando o estado democrático toma por

1 LACAN, J. O Seminário,

livro 16: de um Outro ao ou-

tro (1968-69/2008, p. 377).

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Editorial8

políticas públicas a promessa de felicidade para todos. Mas esse é o principal poder da psicanálise, uma possibilidade de as coisas ca-minharem de forma satisfatória, longe do imposto como absoluto e único. Ponto crucial para a clínica psicanalítica, para a direção da cura e para a edição deste número da revista Stylus, a de número 23.

Para defender esse argumento a Equipe Editorial da Stylus, com a colaboração do Conselho Editorial e pareceristas, agrupou neste nú-mero uma série de artigos, ensaios e resenhas que tratam com rigor o conceito de sintoma e/ou da clínica psicanalítica e de modo particular de como cada analista orienta a sua prática, sem prescrever técnicas, no que diz respeito aos mais variados sintomas que chegam até eles.

Inicia a série de publicações neste número o ensaio de Ana Lau-ra Prates Pacheco, que dá tratamento à questão da escrita como sin-toma ao sintoma como letra, partindo de uma questão introduzida por Lacan no Seminário 23 de como uma arte pode pretender, de maneira divinatória, substancializar o sintoma em sua consistência, mas também em sua ex-sistência e em seu furo. Para refletir sobre esse ponto a autora toma por referência um filme de Peter Gre-enway, chamado O livro de cabeceira, tomando-o como um caso clínico e dividindo-o em alguns recortes, com o objetivo de trans-mitir como o conceito de letra no último ensino de Lacan permitirá a reformulação do lugar do sintoma na clínica psicanalítica.

Em seguida, Silvia Amoedo trata da hipótese do sintoma como ruído de alíngua no corpo a partir de dois casos clínicos: A Mulher do ruído e o Homem do ronco – parodiando o clássico caso freudia-no do Homem dos lobos – para demonstrar como os sintomas po-dem ser nomes próprios, respectivamente, dos sujeitos A e B, nomes de gozo do sintoma, identificadores do ser falante, significantes da alíngua. Para dar tratamento às questões que se colocam, ou seja, o que se espera de um tratamento analítico e o que se pode escutar na relação analítica, a autora faz referências às fontes freudianas e laca-nianas sobre o sintoma e refere-se a belíssimos fragmentos na obra de Clarice Lispector para dizer da impossibilidade de a linguagem dar conta do real.

Elisabeth da Rocha Miranda, na sequência, apresenta um insti-gante caso clínico em três fases, para tratar o conceito de semblante, como resultado do esforço do simbólico para aprender o real, que fracassa. O caso permite observar a distinção entre a feminização psicótica com o empuxo-à-mulher e a posição feminina. Para a au-tora, a paciente responde à questão edípica e sintomática com o semblante da coqueteria histérica, com o qual ela busca o olhar do homem, e com o qual consegue fazer o outro desejar, tamponando simbolicamente o real pulsional de seu sintoma vivido na relação com o pai, maneira pela qual poderá nomear posteriormente seu sintoma de conversão.

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9Stylus Rio de Janeiro nº 23 p. 7-11 novembro 2011

A seção “Trabalho crítico com conceitos” é inaugurada pelo tra-balho de Jairo Gerbase. Sob o título de Alíngua histérica, o autor justifica no seu artigo, fundamentando-se em Freud e Lacan a sua hipótese de trabalho, segundo a qual, o campo das neuroses, cam-po do inconsciente real, é uma espécie de território onde domina uma língua oficial – alíngua histérica – da qual as outras formas de sintoma, especialmente a forma do sintoma obsessivo, correspon-dem a um dialeto. Esse é um texto que não se mostra facilmente e que merece ser estudado para entender essa promoção do discurso histérico à estrutura de todo sintoma e da diferenciação que o autor faz entre a estrutura da linguagem, a estrutura do sintoma e as for-mas dos sintomas.

No seu livro sob o mesmo título, A hipótese lacaniana, Gerbase desenvolve os pontos tratados neste artigo, de forma mais abran-gente e precisa, articulando-os com explanação de conceitos e fa-lando de alíngua com exemplos, tanto da sua clínica como da vida cotidiana. Para nós, da EPS, tanto quanto para a Andréa Milagres, responsável pela resenha desse livro na última parte da revista, não há dúvida sobre a pertinência desta leitura nos dias atuais. Como ela diz: “Jairo, com o seu estilo claro e conciso, nos ensina a retomar e valorizar a importância da distinção entre neurose e psicose, só que agora a partir da hipótese de alíngua”.

Sidi Askofaré, em seguida, retoma e amplia a discussão do sin-toma como metáfora e como letra. Para dar conta dessa questão, ele recorre ao conceito de sintoma na obra de Lacan, no movimento que faz passar do significante ao signo, do signo à letra, articulan-do-os com a lógica da experiência. Problematizando criticamente teses canônicas e suas consequências, o autor depreende que é a clínica psicanalítica do sintoma, que lança luz sobre a metáfora e a letra e ao sintoma no início e no final da análise, respectivamente.

Sobre esse ponto, ou seja, ao que se chega no final de análise, trata o artigo A certeza do final: identificação ao sintoma, de minha autoria. Esse trabalho tenta dar conta do fim do processo analítico pelo conceito tardio em Lacan de identificação ao sintoma, ou seja, uma certeza adquirida no fim de um percurso de análise, uma re-dução, uma possibilidade de poder dizer “esse sintoma sou eu”, sem precisar pedir mais que ele se explique. Para atingir esse objetivo, tomo por referência os últimos seminários de Lacan, nos quais ele demonstra esse fim com o estilo da escrita “joyciana” e elejo versão “manoelesca” da escrita – com o intuito de verificar os sinais do fim que se observam na clínica cotidiana.

Maria Vitória Bittencourt abre a seção “Direção do Tratamen-to”. Ela inicia o seu trabalho reconhecendo que abordar a psicaná-lise com as crianças coloca sempre a questão de sua especificidade, sobretudo quando se trata de crianças que começam a falar. Mui-

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Editorial10

tos pontos podem ser interrogados para diferenciá-la da psicanálise com adultos, diz Maria Vitória. Para realizar esse intento, ela reto-ma o conceito de sintoma para discutir a pertinência dessa distinção e seus efeitos no manejo da transferência. Como instrumento de transmissão, ela apresenta o caso de um menino que assume na transferência a posição designada pelo desejo da mãe, que mesmo cuidando do filho, deixou uma marca do seu esquecimento particu-larizado, manifestada em isolamento e indiferença.

Na sequência, temos o texto de Conrado Ramos que, com o objetivo de tentar formalizar algumas questões sobre a passagem do sintoma do início de uma análise ao que se apresenta no final, nos presenteia com ricos elementos de material clínico, trabalhando-os de maneira interessante na dialética entre a questão das superfícies e da nodalidade, colocando tensões com os elementos dos últimos seminários de Lacan. Constata-se que o questionamento topológico orienta o autor na sua escuta e posição enquanto analista e acompa-nha-se a instigante demonstração da mudança na posição do sujeito desse caso clínico diante do gozo.

A proposta central do texto da Lenita Duarte foi a de pesquisar se a dermatite atópica apresentada por uma criança em questão de-veria ser tomada como sintoma ou como um fenômeno psicossomá-tico. Para tentar responder a essa questão, a autora desenvolve deta-lhadamente, na primeira parte do trabalho, o conceito do sintoma e em seguida discorre sobre o fenômeno psicossomático. Apesar de não receber estatuto de sintoma freudiano, o FPS atesta uma inci-dência do significante no real muito perturbadora, uma marca que se imprime no corpo em qualquer uma das estruturas clínicas, que constitui um dos grandes enigmas para a psicanálise, o que justifica a publicação nesta revista.

Para finalizar essa seção, contamos com o artigo, de autoria da Heloísa Ramirez e Tatiana Assadi, que também trata de um fenô-meno psicossomático. Após a apresentação da narrativa do caso, as autoras apresentam as dificuldades clínicas de trabalhar com esse tipo de queixa como sendo da ordem do fenômeno e apontam a possibilidade clínica com esses pacientes, orientadas pela recomen-dação de Lacan de abordar o psicossomático pela revelação do gozo específico que há na sua fixação. De que gozo específico se trata no psicossomático? É dando resposta a essa questão que o trabalho dá sua contribuição ao campo de saber da psicanálise.

Por fim, encerra esta revista a resenha de Christian Dunker so-bre a Coleção Ato Psicanalítico, iniciativa da editora paulista Anna-blume, que já possui três volumes no mercado e já tem três lança-mentos previstos para 2011, todos produtos de pesquisa atual em psicanálise e/ou de autores consagrados. Acompanhamos, nessa resenha, a instigante tentativa de Dunker, diretor da Coleção, em

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11Stylus Rio de Janeiro nº 23 p. 7-11 novembro 2011

reintroduzir o debate “do real que está em jogo na formação de cada psicanalista, do ponto de vista de sua inserção no debate público, que condiciona sua existência social, epistêmica ou política”.

Vale a pena conferir o argumento desenvolvido por esse colega, que contribui para a divulgação da política da psicanálise na Pólis, as publicações mencionadas na seção “Resenha” e essa nova publi-cação da Stylus, A política do sintoma II, que ora temos em nossas mãos, que merece ser lida e estudada juntamente com A política do sintoma I. Certamente, uma efetiva contribuição da psicanálise ao debate público e à consequente capacidade de absorção de seus temas, dificuldades e contratempos.

Silvana Pessoa

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13Stylus Rio de Janeiro nº 23 p. 1-164 novembro 2011

conferência

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15Stylus Rio de Janeiro nº 23 p. 15-33 novembro 2011

Repetição e Sintoma1

Colette Soler

Conferência 1

Repetição e Sintoma são os dois eixos da questão que vou tratar hoje. Por que coloco esses dois termos juntos? São duas coisas das quais sofrem os seres falantes. Só existem para o ser falante.

Repetição e sintoma se reproduzem no campo do gozo, e ambos dependem do inconsciente. O sintoma é uma formação do incons-ciente. A repetição é um afeto. Os dois são solidários, caminham juntos, mas não podem ser confundidos.

A análise não faz com que o sintoma, nem a repetição, desapa-reçam. No entanto, sobre este ponto, há uma dissimetria: trata-se uma parte dos sintomas, mas não se trata a repetição, que é um incurável, contrariamente ao que, às vezes, se diz.

Todo gozo do ser falante se ordena entre repetição e sintoma. Eles são solidários, e cada um deles está referido ao “não há relação sexual”, mas é preciso notar que há repetição e há sintoma. Nos termos de Lacan, a repetição faz objeção à relação, porque ela não promove senão Uns de gozo. O sintoma, na definição lacaniana, su-pre a relação sexual. É o sintoma que, na ausência da relação sexual, permite que existam relações entre os seres sexuados.

Repetição SintomaRelação Sexual 0

Repetição e sintoma é um tema que concerne ao gozo do ser fa-lante. Começo pela Repetição. Ela é demoníaca, diz Freud, para ex-primir nossa impotência diante dela; ele evoca o gradus da ananké, a necessidade. Mais próximo da lógica do que Freud, Lacan a reduz ao necessário, isto é, ao “não cessa de se escrever”. Insistência, portanto.

Qual é a relação entre a repetição e o inconsciente? O inconsciente não é a repetição. Lacan não percebeu isso de ime-

diato. Somente em 1964 é que ele traz algo novo sobre a repetição. Até então, Lacan confundiu os dois conceitos: inconsciente e repetição.

Eu lhes darei múltiplas referências destes dois tempos, trazendo citações que podem ser encontradas a partir de 1953.

Como primeira referência, trago a Lição de 26 de abril de 1955, no texto A Carta Roubada. Aí Lacan diz que “o automatismo de repetição (Wiederholungszwang) ‘não pode ser concebido como um

1. Estas duas conferências

foram proferidas em Forta-

leza, durante o XI Encontro

Nacional da EPFCL-Brasil,

em 2010. Na sua edição

foi mantido o estilo de

uma conferência falada. As

citações, dentro do possível,

foram referidas às edições

brasileiras.

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Repetição e Sintoma16

acréscimo, ainda que coroador, ao edifício doutrinal’”.2 Ele prosse-gue: “é sua descoberta inaugural que Freud reafirma com ele, ou seja, a concepção da memória implicada por ‘seu inconsciente’”.3 Portanto, continuidade. Repetição tomada, então, como nada além do que a memória do inconsciente.

Contrariamente a isso, em 1969, quatro anos depois do Semi-nário 11, em O avesso da Psicanálise, Lacan designa o ano de 1920 como “o ponto de inflexão”.4 Em si mesma a expressão indica a descontinuidade. Aliás, Lacan é explícito quando diz, ainda no Se-minário 17, que a enunciação de Freud teve dois tempos. De início, a articulação do inconsciente, que permite a Freud situar o desejo e onde Lacan precisa que nada parecia impor aí a repetição.5 No segundo tempo, há a introdução à repetição que é referida ao Além do Princípio do Prazer, ou seja, àquilo que Lacan chama o gozo.

No primeiro tempo, enquanto elabora sua ideia da ordem lin-guageira do inconsciente, Lacan não marca uma ruptura, mas uma continuidade entre o inconsciente e a repetição. Ele fala de uma “repetição simbólica”. Bem longe de dissociar os conceitos, ele ho-mologa, de fato, a repetição ao inconsciente. Mais precisamente, ele a homologa à lei do retorno dos signos na sintaxe da cadeia lingua-geira que determina o sujeito. Dito de outra maneira, ele supõe que na repetição o que fica evidente é a própria ordem simbólica. Lacan identifica a repetição à insistência da cadeia significante.

É apenas em 1964 que Lacan situa 1920 como um novo avanço. Isto quer dizer que todos os textos anteriores a 64 não entram no conceito lacaniano. Se se quiser ser rigoroso, o que Lacan diz sobre a repetição, antes de 1964, não é, ainda, a repetição. Da mesma forma, o que Freud dizia em 1914 não era, ainda, a repetição. Somente em 1920 é que Freud dispõe do conceito que só foi estabelecido, por ele, em Além do Princípio do Prazer.

Então, qual é a repetição proposta por Lacan a partir de 1964? Nada do que a opinião comum possa imaginar que é a repetição. Vocês sabem que a repetição tem muito sucesso no senso comum. Ela é muito convocada na história, na economia, no nível do amor – que é seu campo eletivo. Expressões paradoxais concernentes à repetição são particularmente numerosas, mas nem todas se encon-tram no mesmo nível. Algumas estão em contraste com a ideia co-mum da repetição, e isso porque há uma ideia comum da repetição. Ora, o que diz a psicanálise se opõe, aí, ponto por ponto. Acredita--se que é o retorno do mesmo e do passado. Para a psicanálise, com Lacan, a repetição não é um retorno. Não é do passado que se trata. É a única coisa que não envelhece. Não é o mesmo. É o diferente. Não é um destino, mas uma figura do acaso. Não se duvida, tam-pouco, que não se trate do múltiplo na repetição, do várias vezes, quase que por definição porque não se pode escapar às pressões da

2. Lacan, A carta roubada

(1956/1998, pp. 49-50).

3. Ibid., p. 50.

4. Lacan, O Seminário, li-

vro 17: o avesso da psicanálise

(1969-70/1998, p. 73).

5. Ibid., p. 50.

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17Stylus Rio de Janeiro nº 23 p. 15-33 novembro 2011

língua. Mas Lacan, em A lógica da Fantasia,6 nos diz que a repeti-ção se produz uma única vez. Em uma conferência em Baltimore,7 ele vai dizer que não pode haver outra igual à primeira.

Vou direto ao objetivo da repetição: a produção do sujeito divi-dido e sua colocação em exercício.

Como distinguir Inconsciente e Repetição? O inconsciente é composto por elementos discretos, cada um di-

ferente dos outros, no plural. Inicialmente, Lacan falou de seus sig-nificantes, depois, de seus Traços Unários e, em seguida, de elemen-tos de alíngua. Quando o inconsciente trabalha, arbeiter, nos lapsos, nos atos falhos, nos sonhos etc..., o que retorna, de certa forma, são esses elementos com todos os tipos de tropeços, de fracassos, ou seja, de equivocações. De onde eles vêm, afinal? Como se constituem?

Eles se constituem a partir das primeiras experiências de gozo corporal que são, sempre, imprevisíveis, chegam de surpresa. Não são programados, mesmo quando anunciados, mesmo quando há liberdade de hábitos, mesmo quando a criança assistiu a cópulas, mesmo quando viu imagens etc. Isso porque o gozo é incomen-surável a tudo que se pode dele dizer ou ver. É incomensurável à dialética intersubjetiva, aos debates com o Outro.

Temos que sublinhar, acentuar esse termo “experiência”. Qual a concepção de experiência? É aquilo que não se imagina. Transtorna os equilíbrios. É sempre singular. Mesmo quando é para todos, não se partilha. É segregativa.

Logo, o acontecimento de corpo, que é a irrupção de um gozo, está na origem. Lacan a qualifica de experiência não marcada e que vai ser marcada por um traço unário. Ou é um trauma ou um prazer especial; essa referência é freudiana e ela é dupla. No que diz respeito ao prazer especial, ele nos envia à Interpretação dos Sonhos,8 no final, quando Freud explica a gênese do desejo indestrutível a partir da perda da experiência suposta de satisfação que o traço me-morial faz perder. Em relação ao trauma, Lacan se refere ao adendo de Inibição, Sintoma e Angústia,9 quando Freud coloca a origem traumática de toda neurose na inscrição das primeiras experiências de satisfação, aquelas nas quais o traço do sujeito é produzido como perda de gozo, queda do objeto a.

Freud vai dizer que elas são de três tipos: as coisas vistas, as coi-sas ouvidas e as percebidas no próprio corpo. A partir desses traços é produzida a perda de gozo. Essa noção de traço mnêmico convoca Freud a falar sobre algo da ordem do registro da inscrição. Sobre isso, Lacan retornou em A Instância da Letra.10 O traço unário, o que é isso? O traço unário não é propriamente um significante. Ele tem a estrutura diferencial do significante e comporta, mesmo, a única mesmidade concebível, que é, eu cito uma expressão de La-can, “la mêmeté da la différence”, que eu poderia designar como a

6. Lacan,. Seminário,

livro 14: A lógica da fantasia

(1966, lição III, 30/11/66.

Inédito).

7. Lacan, Of structure as

an inmixing of an otherness

prerequisite any subject

whatever. Comunicação feita

no Simpósio Internacional de

John Hopkins em Baltimore

(1966/ 1970, pp. 186 - 195.).

8. Freud, A interpretação

dos sonhos (1900/1987).

9. Freud, Inibição,

Sintoma e Angústia

(1926[1925]/1996).

10. Lacan, A instância da le-

tra no inconsciente ou a razão

desde Freud (1957 /1998).

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Repetição e Sintoma18

cifra da diferença. Ele se distingue do significante em dois aspectos: não tem sentido e não representa nada.

De onde vem o traço unário? Da linguagem ou de alíngua? Em A lógica da fantasia,11 Lacan diz que “ele ignora a natureza das coi-sas”. Qualquer coisa pode servir para escrever este Um da Repetição. Não é que ele seja nada, é que ele se escreve não importa com que. Não vem, necessariamente, de alíngua. Imagem, cenário, não impor-ta qual seja o elemento linguageiro ou imaginário para fazer índice de uma experiência de gozo. A definição de traço unário é que ele é um elemento discreto, distinto de qualquer outro. Ele se inscreve diacronicamente no tempo. Ele comanda, em seguida, como traço de perversão à colocação em ato da sexualidade, retorna nas formações do Inconsciente, que a arbeiter12 fomenta e, também, na associação livre, em que os traços unários são desalojados pelo deciframento.

“O traço unário é, portanto, aquilo com que se marca a repe-tição.”13 Lacan o nomeia de o Um da repetição. Ele insistiu muito em dizer que se trata do Um contável e daí advém o porquê Lacan recorreu aos problemas do incontável e a Cantor. Lacan distingue o Um contável dos outros Uns, da repetição, o Um da totalidade, de início em A lógica da fantasia e, em seguida, o Um do “Y a d’ l’Un”, “Há Um”,14 no sentido do Um-dizer, do falasser.

A repetição se marca no traço unário, mas não é o traço unário. Ela é efeito dos traços unários. O traço unário é uma marca que tem um efeito; ele afeta o gozo de uma perda. O que é perdido? É o gozo original, não marcado. Então, a repetição não é retorno do passado, ela é perda de passado.

Lacan escreveu isto de várias maneiras, principalmente no seminá-rio De um Outro ao Outro, em que ele introduz um pequeno matema.15

UM↓a=

gozo perdido

Esse efeito de perda nada mais é que a produção do sujeito divi-dido. Esses traços unários do inconsciente supõem um sujeito, mas eles não representam esse sujeito, eles o produzem como corte, na medida em que são colocados em série, corte no campo do gozo.

Uma precisão: o sujeito que chamamos, muitas vezes, de sujei-to do inconsciente, Lacan, de início, o apresentou como suposto à cadeia significante. Por quê? É o caso no Grafo do Desejo, porém, como suposto à série dos uns do trabalho do inconsciente, saber sem sujeito, que cifra o gozo; idêntico ao corte. A tese é escrita em Radiofonia,16 mas formulada muito antes.

11. Lacan, A lógica da

fantasia, op. cit.

12. A autora situa o termo

arbeiter, muito utilizado por

Freud, e que, em alemão, se

refere a trabalho.

13. Of structure as an

inmixing of an otherness

prerequisite any subject

whatever. Comunicação feita

no Simpósio Internacional de

John Hopkins em Baltimore,

op. cit.pp. 186 - 195.

14. Lacan, O Seminário,

livro 20: mais, ainda. (1972-

73/1985, p. 197).

15. Lacan, O Seminário,

livro 16: De um Outro ao

Outro. (1968-69/2008, p.

291). [Na versão publicada

pela Jorge Zahar tem-se o

matema: 1 → a surgimento

do a pela contagem.].

16. Lacan, J. Radiofonia

(1970/2003).

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19Stylus Rio de Janeiro nº 23 p. 15-33 novembro 2011

Evidentemente, estamos a mil léguas do sujeito psicológico do qual é tão difícil se desfazer. Estamos, também, a mil léguas do que, inicial-mente, os leitores de Lacan aprenderam, ou seja, que o inconsciente faz cadeia com os significantes que representam o sujeito. Porém, os traços da repetição não fazem cadeia, mas série, eventualmente.

Uma única repetição é necessária para constituir a posição do sujeito. O traço unário pode se repetir, mas a repetição, produção do sujeito dividido, não se repete, ela se produz apenas uma única vez.

Lacan insiste nisso. Em Baltimore,17 ele diz. Cito: “Esta primei-ra repetição (a do um, portanto) é a única necessária. O sujeito do inconsciente é algo que tende a se repetir, mas uma única repetição é necessária para constituí-lo”. Ele diz que o traço unário produz o sujeito sob condição de se reproduzir apenas uma vez. E acrescenta. Cito Lacan: “Ele é produzido como efeito de perda. A lei consti-tuinte do sujeito é a repetição”. Ou, ainda: “O sujeito é a introdução de uma perda no real”, sob o efeito do traço unário.

Onde localizar esta produção do sujeito dividido na experiência? Eu acabo de dizê-lo: lá, onde se constitui o inconsciente, no nível das primeiras experiências ainda não marcadas, onde o sujeito do inconsciente não está ainda constituído como efeito de perda devi-da ao traço. Então, é claro: “o traço se repete, plural, introduzindo a imissão da diferença” que produz a repetição, no singular, como efeito de perda. Uma vez produzida, essa perda não cessa de se es-crever. Logo, não se trata do passado, mas do presente perpetuado.

Em 1966, Lacan diz que a repetição é única e necessária. A re-petição insiste. Eis o termo que faltava. Ela é o destino do homem científico. Por que o homem científico? O homem científico é su-posto à linguagem, é o sujeito da ciência, da filosofia que foi inscrito pelo cogito de Descartes: “penso, logo sou”. O traço unário seria identificar-se ao eu penso do homem científico.

A repetição é “a relação vazia insistente”. Qual é a relação entre a produção do sujeito dividido, definido pela perda de gozo, e a não relação sexual que Lacan formula mais tarde, nos anos 70, notada-mente, em Radiofonia? É que a perda não determina para o sujeito outro parceiro senão o objeto a, a-sexual, que responde pela perda constituinte. O resultado é que o dois do sexo é como o número dois e, como o Aleph de Cantor, um “inacessível”. Esta referência matemática tem sua tradução clínica precisa: o parceiro do amor é incalculável. O inconsciente não calcula o parceiro; ele não pode nem calcular nem julgar. Ele trabalha para produzir os traços uná-rios do gozo castrado. Daí o problema de como aceder ao parceiro como corpo. Eu retornarei a esta questão.

A repetição, efeito do Inconsciente, deixa o sujeito sem parceiro. No entanto, há casais. O Inconsciente não fornece o dois do parcei-ro, mas o acaso, a sorte, fornece. Compreende-se melhor, então, que

17. Of structure as an

inmixing of an otherness

prerequisite any subject

whatever. Comunicação feita

no Simpósio Internacional de

John Hopkins em Baltimore,

op. cit. pp. 186 - 195.

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Repetição e Sintoma20

a repetição seja, sempre, nova, porque para envelhecer seria preciso que ela fosse submetida ao tempo e ela não o é. São as contingências que estão submetidas ao tempo, e elas são inumeráveis! A sutileza é que nos casos da sorte, nestes encontros que não fazem relação, o sujeito se repete e se mantém na sua solidão. Isto porque ele não é o parceiro enquanto tal, apenas, a causa de seu desejo. Assim a repeti-ção é renomeada por Lacan bonheur du sujet, nas duas ortografias18 que apresento a seguir:

bon heure, bonheur ► boa hora, felicidadeA repetição é, portanto, renomeada por Lacan como bon heur

do sujeito. Com o destino de solidão que comporta, a repetição se manifesta, eletivamente, nos encontros do amor. Não imaginem o contrário. A falta ao encontro, como diz Lacan, equivalente ao real da não relação, se impõe nos encontros do amor, como encontro fal-toso. E daí poderia surgir uma suspeita: desses sujeitos que choram por não reencontrarem o homem ou a mulher que eles esperam, poder-se-ia, de fato, dizer que eles se protegem do encontro faltoso.

Não sem ironia: a felicidade (boa hora) do sujeito, sua pronta submissão, é a infelicidade do falasser, reduzido ao se saber sozinho. Lacan situa aí a razão do grande clamor dos sofredores que sofrem por serem sujeito, e sujeito que se repete. Dito de outra maneira: a repetição da relação faltosa, faltosa com o Outro, (o pai, a mulher), é estritamente solidária do encontro exitoso com o objeto a que, ao mesmo tempo, objeta ao que seria o encontro com o Outro e que supre a relação que falta. Como percebeu, genialmente, Kierkega-ard no seu texto A Repetição,19 no capítulo que repete o título, a repetição é que, no amor, não se encontra senão a si mesmo. Daí o alcance ontológico da repetição que Lacan homologa.

É o mesmo esquema do Seminário XI, aplicado ao sonho “Pai não vês que estou queimando?”, e que dá coerência aos dois desen-volvimentos, já que Lacan e Freud leram diferentemente este sonho. Segundo Freud, há a realização de um desejo: o pai vê o filho vivo no sonho. Para Lacan, o pai, sujeito do sonho, não reencontra o fi-lho, contrariamente ao que diz Freud. Ele só encontra seus objetos: olhar e voz. É a mesma tese de Kierkegaard: que o sujeito encontra a si mesmo no amor. O pai não encontra o filho no sonho como Dan-te não encontra Beatriz. Ele só encontra um batimento de cílios que o olham. Não é por ironia, nem por gosto pelo paradoxo, que Lacan formula em Televisão,20 que a repetição é o bon heur, boa hora, do sujeito. É que há, a toda hora, bons encontros, acidentes, acasos; o sujeito não faz outra coisa senão repetir-se, idêntico a si mesmo, como efeito de uma necessidade demoníaca, segundo as palavras de Freud, e que Lacan situou em termos lógicos.

Qual a relação da repetição com a transferência? Da repetição sobre transferência podemos dizer: repetição é um

18. Lacan, Introdução

à edição alemã de um

primeiro volume dos Escritos

(1973/2003, p. 553).

19. Kierkegaard, A repetição

(1843/2010).

20. Lacan, Televisão

(1974/2003, pp. 525-26).

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21Stylus Rio de Janeiro nº 23 p. 15-33 novembro 2011

irredutível por estrutura que vem do efeito da linguagem sobre o gozo. Não se trata de reduzi-la. A transferência não é a repetição. O que fez com que se as confundisse? Num parágrafo de Freud em Além do Princípio do Prazer:21 a transferência aparece como repeti-ção dos amores infantis e o fracasso deles. Fracasso do amor traído, da pulsão, da criação. É porque a transferência toma a forma do amor que se acreditou que ela era repetição.

Lacan põe uma ordem nisso com o sujeito suposto saber. A trans-ferência positiva é o sujeito suposto saber, não no nível dos sentimen-tos que não são senão efeitos de uma relação ao saber suposto. Con-siste numa relação ao saber, sob o modo do sujeito suposto saber.

Há um efeito da transferência sobre a repetição. A repetição aí, não deixada a si mesma, como é no amor. Ela é provocada. Aliás, em toda parte trata-se de evitá-la.

Por que a relação ao saber provoca a repetição?A transferência é demanda. A relação ao saber provoca a repeti-

ção porque a transferência é uma demanda endereçada ao saber, o que a distingue enormemente da única reiteração das demandas in-fantis, aquelas da dita neurose infantil. O dispositivo analítico usa esta demanda para colocar o inconsciente “em exercício”, é o que chamamos efeito de histerização da análise. Como é que, a partir daí, a declinação dos Uns do inconsciente na fala analisante não reanimaria seu efeito automático de perda? O saber inconsciente que se declina via deciframento e interpretação só produz do Um. Portanto, coloca em jogo a repetição do sujeito dividido. Outra ma-neira de dizer: situa a função proposicional Φ(x), o gozo castrado, que “faz função de sujeito”.22 Ou, ainda, efeito de produção dos S1 no Discurso do analista.

Ao colocar a repetição em andamento, faz-se mais do que falar dela. Na análise, não só falamos e sofremos da repetição, mas nós a programamos, a provocamos.

O que faz confundir Transferência e Repetição é que se procura do lado do analista o dois que falta ao sujeito, o dois do Sujeito su-posto saber. Como? Pela demanda. Quaisquer que sejam os ditos o dizer analisando é demanda.

A transferência dá à repetição a forma de demanda, de fato, uma repetição endereçada. Eis porque, para situar o dizer, não os ditos, o dizer da demanda analisante, Lacan reescreve a repetição em re--petitio. Sem mesmo conhecer o latim, encontramos a raiz latina na petição que é a expressão de uma demanda, geralmente coletiva e cujo apetite designa, digamos, uma busca, talvez individual, de gozo já que o apetite evoca o corpo. A re-petitio é o que faz confundir a transfe-rência com a repetição, como retorno das exigências infantis, re-petitio endereçada ao Outro. Vejam a página vibrante que Freud consagra à transferência no começo de seu Além do princípio do Prazer para dizer

21. Freud, Além do princípio

do prazer (1920/1987).

22. Lacan, Seminário

Livro 19... ou píre (1972-75/

Inédito).

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Repetição e Sintoma22

a insistência, sob transferência, das infelicidades da infância.A repetição, fora da transferência, não é, essencialmente, de-

manda; o sujeito se repete, automaticamente, ao acaso dos apetites do amor. Vejam o exemplo de Dante e Beatriz: nem sombra de uma demanda, somente uma questão sobre o Outro. É diferente. Vejam, também, o jogo do Fort-da, esse jogo solitário da perda reiterada, jogo que, na sua virtude separadora, não demanda nada a ninguém. A transferência demanda e faz reluzir, esperar pelo Outro que pode-ria responder, justamente aquele no qual o sonho “Pai, não vês que estou queimando?”23 manifestava a falta, desoladora.

“Celle qui vient à notre charge”, aquela que vem ao nosso encar-go, diz Lacan, indicando a inflexibilidade. Busca-se o dois do lado do analista, isso toma a forma do amor, mas não o encontramos.

No entanto, o analista é o parceiro que tem a “chance de res-ponder”. Na análise, a tuchè está do lado do outro, do analista. Não se encontra no analista senão o semblante do objeto, o objeto que falta. Neste sentido, a análise opera bem no nível da repetição, ela a coloca em evidência. Ela a mostra, diz Lacan, de “notre index”. Ele toma por referência o dedo erguido de São João, de Leonardo da Vinci, que faz vislumbrar a virtude alusiva da interpretação, como se pode encontrar no texto A direção do tratamento.24 Ela a revela colocando em exercício “a relação vazia insistente”.25 Ela a faz pas-sar ao irremediável. Demonstrando o impossível da relação, a ina-cessibilidade ao dois, ela funda, de uma certa maneira, o necessário da repetição. É uma mudança, mas não a reduz. Faz-se passar a repetição do contingente, dos maus encontros, ao destino que cons-titui o necessário. Vinha-se para reduzi-la e no final se sabe que ela é irredutível... programa-se um luto das expectativas de transferência.

Além de revelar a repetição, a análise faz, ainda, uma outra coi-sa, que repercute sobre a repetição. Ela opera sobre o sintoma.

Conferência 2

Vou falar, agora, do que sustenta a repetição, que é o sintoma. O que vou explicar hoje, creio que seja um pouco difícil para aque-les que ainda não têm uma leitura completa de Lacan. Espero, no entanto, que isso lhes dê um pouco de perspectiva para o trabalho.

Então, começo com uma frase de Lacan que se encontra em O aturdito26 e que diz que as demandas têm função de “emparelhar o impossível ao contingente, o possível ao necessário”. Ao contrário, por-tanto, do que se passa na lógica modal. O que está em questão nesta frase é precisar o que pode variar, ou seja, o que pode mudar na análise.

Não se pode mudar nem o impossível, nem o necessário, que não cessam. Logo, eles só podem ser verificados. O contingente e o

23. A interpretação de sonhos

op. cit., pp 468-9.

24. Lacan, A direção do

tratamento e os princípios de

seu poder (1958/1998 pp.

591-652).

25. Ibid.,p. 648.

26. Lacan, O aturdito

(1973/2003).

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23Stylus Rio de Janeiro nº 23 p. 15-33 novembro 2011

possível, ao contrário, se definem pelo fato de cessarem. O contin-gente, diz Lacan, é o que cessa de não se escrever, ou seja, o que co-meça a se escrever na psicanálise. E o que é que se escreve? Há mui-tas formas de dizê-lo. Resumindo, é o que Lacan chama a função fálica, que é a função castração que determina o gozo Um. Então, o que se escreve na análise é o efeito castração e é uma mudança.

Agora, o possível, que cessa de se escrever. O que é, então? O que é que se escrevia e que vai cessar de se escrever graças à análise? Não seria o efeito terapêutico, logo, a ação sobre o sintoma? Enfatizo que Lacan, ao dizer “o que cessa de se escrever”, essa forma de traduzir as modalidades lógicas, implica o tempo, a duração, em relação a isso que cessa e que não cessa. É preciso não confundir, portanto, o registro da escrita, da qual ele falava, com a letra.

Pode-se dizer que uma letra, isso se escreve, certamente; mas o que se escreve na análise é um efeito do dizer, da fala. Lacan o diz explicitamente, pode-se ler textualmente, em Lituraterra,27 isto se situa no nível do significado. Eis porque ele utiliza expressões como “ravinement” – sulco. Ele diz, também, “Le rail, le canal” – a via , o canal, que são imagens de traçados, alguma coisa que faz traços, com o tempo, por efeito da fala.

Então, como disse ontem, na repetição e no sintoma trata-se de gozo. Sim, porém, o problema é o acesso ao corpo do outro, já que o gozo não faz laço. Goza-se sozinho, em todos os casos. Quanto ao inconsciente linguagem, ele estabelece bem os laços entre os signifi-cantes, mas não estabelece laços entre o corpo que suporta o sujeito e o outro do gozo. Ele não programa o parceiro sexuado. O amor, ele próprio, não é uma condição de gozo. Então, o que permite o acesso ao corpo do outro? Parece-me que Lacan respondeu a esta questão em dois tempos. De início, ele convocou as pulsões, as quatro que conhe-cemos bem: oral, anal, escópica e invocante, como mediações para aceder ao corpo do Outro, e depois, em seguida, convocou o sintoma.

Sobre o primeiro ponto, a função das pulsões, como mediação para o Outro, as referências são muito numerosas no texto de La-can. Detenho-me em duas ou três para justificar o que digo. Em O aturdito, vocês leem: “a pulsão genital é o catálogo das pulsões pré-genitais”. Em Televisão, ele fala da quádrupla instância em cada pulsão que se sustenta por coexistir com as outras três. O que quer dizer que uma pulsão jamais está sozinha, que elas são solidárias quando se trata de dar acesso à desunião a qual se trata de evitar para aqueles que “o sexo não basta para torná-los parceiros”.28 Dito de outro modo, a “não relação sexual” diz que dois não sejam par-ceiros. No entanto, graças às quatro pulsões, transpõe-se essa desu-nião e se acede ao corpo a corpo. Vocês encontrarão também uma outra referência no texto ... Ou pior, um texto muito complexo, que já citei ontem, um esquema bastante complexo, mas que no final

27. Lacan, Lituraterra

(1971/2003).

28. Televisão op. cit., p. 527.

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Repetição e Sintoma24

das contas diz uma coisa bastante simples. É o complemento dos Uns da repetição, que faz o sujeito solitário, o quatro das pulsões – que ele nomeia, aliás, “Gozo do Outro” com uma letra maiúscula.

Então, esta é a primeira tese de Lacan: não há relação sexual, mas há pulsões, o que permite conectar ao corpo do Outro. E aí será pre-ciso levar em consideração que a pulsão não opera somente em ato. A pulsão, efeito da demanda, circula na metonímia da linguagem e é por isso que ela é “gozo do Outro”. A metonímia – penso que todo mundo o sabe – transfere, de significante para significante, o mais-de-gozar pulsional. Eis porque Lacan diz: “a metonímia regula o metabolismo do gozo”. É isso que ressalta no erotismo: sem essas transferências metonímicas do mais-de-gozar, o corpo do Outro não diria nada ao primeiro corpo. E o que se chama de traços de perver-são são traços pulsionais; de fato, nada mais são que traços de uma erotização possível, que suprem a ausência da pulsão genital e que permitem produzir o gozo que há, a despeito do gozo que não há.

Sobre este ponto, são os exemplos que permitem dar um pouco de consistência clínica a estas teses difíceis. Um exemplo freudiano. O exemplo do homem do brilho no nariz. Vocês conhecem, talvez, este caso de Freud.29 De um homem cuja libido heterossexual só se anima se o nariz da dama brilha. Eis uma condição erótica que, aliás, não faz mal a ninguém. É divertido. Bastaria que a dama não colocasse muito pó na ponta do nariz. No fundo, Freud consegue colocar à mostra, com esse exemplo, a metonímia translinguística por meio da qual esse traço se fixou. No bilinguismo de origem des-te paciente, este pequeno voyeur que amava olhar, onde o “regarder” em francês é “to glance”, em Inglês, vê-se que se transferiu, por ho-mofonia, sobre uma palavra alemã “glanz” escrita com “z” e que sig-nifica, em alemão, brilhar. Logo, é uma metonímia translinguística da pulsão. Agora, um exemplo lacaniano que figura em Radiofonia. Em razão do estilo de Lacan, não é fácil de ser lido. É o exemplo do Bel Ami, um personagem de Guy de Maupassant que se chama Bel Ami. Lacan qualifica esse homem de rufião. É, de fato, o que se chama em francês de baratineur. Ele mexe com as moças. É um provocador. Qual é a tese de Lacan sobre o Bel Ami? É, também, que é uma metonímia que condiciona seu prazer em se aproveitar das mulheres. E qual é essa metonímia? É que a orelha da dama (primeiro significante) evocando a ostra a engolir (segundo signifi-cante) metonimiza a pulsão oral; esta ostra a engolir é o segredo de seu gozo de mexer com as mulheres. Aí está o charme das damas, não? Logo, não é na pulsão genital, mas na metonímia pulsional por meio da qual o desejo sexual avança. É a primeira tese de Lacan.

Mas vejam o que falta. Nenhum dos dois exemplos diz o que é o gozo do corpo do outro; eles dizem, apenas, como o corpo do outro é investido de desejo e que, do desejo ao gozo, há um abismo. Esta

29. Freud, Fetichismo

(1927/1997 p. 179).

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25Stylus Rio de Janeiro nº 23 p. 15-33 novembro 2011

construção de Lacan é comparável à ideia, bem difundida entre nós, segundo a qual o parceiro seria o objeto a, respondendo ao objeto que falta. Ora, como disto se goza não se diz. Diz como se vem a desejar.

No começo do seminário Mais, ainda, Lacan afirma: “Vou pri-meiro supor vocês na cama”.30 Todo mundo se entreolha e diz: o que é que deu no Lacan? Isso queria dizer uma coisa muito precisa: é que não se tratava mais, apenas, do vetor metonímico da pulsão, mas do gozo do corpo a corpo que, geralmente, se dá na cama. De fato, é uma questão nova. Ausente em O aturdito. Uma questão que se coloca sobre o gozo do ato, não um ato interrogado a partir de seus fracassos sintomáticos, mas do ato interrogado a partir de seu êxito.

Então, qual é a tese de Lacan? É que o gozo do corpo do Outro é sintoma. Apesar das aparências, não é a tese freudiana do sintoma subs-tituto de um gozo sexual. A tese freudiana dizia que, para o neurótico, no lugar do gozo sexual faltoso vinha o sintoma. A tese de Lacan diz: o gozo sexual, aquele do ato exitoso, é sintoma e não há senão sintoma.

É essa tese, um pouco complexa, que vou tentar desdobrar um pouco. Isso me obriga a voltar à questão do inconsciente “saber sem sujeito”, que determina o gozo do corpo. Há duas maneiras de tocar no gozo do corpo. Há a dos traços unários da repetição, com os efeitos de perda, gerador do objeto a, que falei ontem. A série deles começa, segundo Freud, na contingência, e eles ligam o inconsciente às experiências originárias. Isto é um primeiro efeito. E depois, há um outro efeito que não é o efeito de perda. É o que Lacan chama o efeito “fixão” escrito com um “x” que elimina as ficções da verdade.

Logo, todo parceiro é sintoma, eis aí a tese. E todo sujeito se defi-ne por um sintoma, ou seja, todo o sujeito se define a partir de uma “fixão” de gozo, uma fixão que lhe é própria. Isto quer dizer que o sintoma não pode mais ser pensado como uma anomalia, como uma perturbação da boa ordem. Se há uma anomalia, a única anomalia é a do sujeito dividido e da não relação sexual, mas uma anomalia que é para todo falante não se chama mais anomalia. É a regra.

Então, o que é preciso ver é que o sujeito, o que se chama o su-jeito, é bipolar – tomo o termo de Lacan. Bipolar e dividido entre o S1, que o representa, e o saber (S2). Mas o saber em questão é, ele mesmo, bipolar, dividido entre o que dele se decifra e o resto, ou seja, o que não se o decifra. Vou escrever.

S1-------------------------------------------------- → S2Os S1 decifrados -----------------→ S2

Temos o S1 do sujeito e o S2 que Lacan qualifica de saber. Mas este saber, ele mesmo, se divide entre os uns decifráveis e o resto não decifrável do grande mar que é alíngua, inexaurível. Quando se lê Lacan tem-se, às vezes, algumas dificuldades porque, ora ele chama

30. Lacan, O Seminário,

livro 20: Mais ainda. (1972-

72/1985, p.10)

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Repetição e Sintoma26

saber o conjunto (S1-S2), é o caso quando ele diz que todo saber é bipolar. E, às vezes, ele chama “saber” apenas o que permanece in-decifrável. Este saber que não representa o sujeito, mas que afeta seu corpo está, evidentemente, dentro do campo do gozo.

Depois, há, mesmo assim, um passo a mais, no fim do seminá-rio Mais, ainda, que observei recentemente. E é o que Lacan chama o enigma do saber. No começo da última lição do Mais, ainda, ele acaba de ler as provas deste seu seminário e diz: falei de muitas coisas, do amor, do gozo... mas meu objeto deste ano é o saber. E de fato, é o que creio. Já no corpo do texto ele havia perguntado: o que é o saber? Não o saber como o sujeito sabe, mas o saber como substantivo. O saber enquanto inconsciente é um saber. E o que é que ele diz? É um enigma.

Não sei se vocês alcançam o paradoxo desta afirmação. Porque, em geral, acredita-se que o saber é o que reduz os enigmas. Acredi-ta-se que quando se sabe, não há mais enigmas e que é por isso que se pode ficar de acordo. Além disso, esta fórmula “o saber, ele é um enigma”31 é um paradoxo em relação a tudo que precede no ensino de Lacan: a seu ideal de transmissão científica que ele deu como modelo à psicanálise, à sua tentativa de criar matemas. Ainda que se preste a muitas leituras, o matema é o antienigma.

É certo que o seminário Mais, ainda marca uma virada no que concerne a esta questão. Felizmente, Lacan, ele próprio, o diz, eu cito: “o truque analítico não será matemático”.32 Isso é um veredito. Coloca um ponto-final em vinte anos de ensino. E, falando de seus matemas, (S(Ⱥ),Φ, a) ele diz que é sob o ângulo depreciativo que ele os introduz.

Então, qual é a fórmula do enigma? Isso não é um enigma. Isto se lê bem no texto. A fórmula do enigma é que “o saber se goza”. E posso acrescentar: onde? Notadamente no sintoma, que é o meu tema de hoje.

Alguns comentários. Há muito tempo, Lacan formulou que o saber operava no nível do gozo. Pode-se encontrar isto no começo do Seminário 17, O avesso da psicanálise.33 Era uma tese que dizia que a linguagem é um operador, que tem efeitos sobre o gozo, o gozo do vivente. É uma tese antiga que se pode desenvolver (não vou fazê-lo), mas vai desde os efeitos da demanda sobre a necessi-dade (tese dos anos 60) até o gozo civilizado pela língua (tese final). Essa tese não coloca em questão a heterogeneidade dos dois regis-tros, que são o gozo e a linguagem, isso os deixa heterogêneos e diz apenas que um opera sobre o outro.

Mas, quando se diz “o saber se goza”, é uma coisa muito diferen-te. Isto quer dizer que as duas dimensões, saber e gozo, se homoge-neízam. Não são dois registros diferentes. Então, que o saber se goza, isso implica que para fazer um saber, o que Lacan vai chamar um saber, o saber do inconsciente, são necessários dois componentes. Ele o diz na lição “O saber e a Verdade”. É preciso o elemento formal, o elemento formal do significante diferencial, que se define pela di-

31. Ibid., p. 188.

32. Ibid. p.159.

33. Lacan, Seminário 17, O

avesso da psicanálise.(1969-

70/ 1998).

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27Stylus Rio de Janeiro nº 23 p. 15-33 novembro 2011

ferença de um para o outro – aí se está em um terreno comum, ele repete isso há vinte anos. Mas, ele acrescenta agora que ao elemento formal será preciso que se acrescente o gozo. Há aí, então, algo novo.

Certamente, o texto do final do Mais, ainda prepara as teses que se encontram em RSI, onde ele define sintoma como gozo de um elemento do inconsciente, ou ainda, cito: isto quer dizer que se trata de um inconsciente no qual o significante se tornou objeto. Não é mais significante com efeito de sentido. Eis por que evocar aqui o fenômeno esquizofrênico é perfeitamente justificado. Vocês se lem-bram da tese de Freud “o esquizofrênico trata as palavras como coisas”34, e as coisas, isto não tem sentido? Ele nem mesmo é signi-ficante com efeito de gozo. Ele é significante tornado coisa a gozar.

Esta tese de Lacan tem implicações filosóficas e éticas imensas, mas eu quero ir ao essencial que não está aí, ainda. Falando do saber assim definido, significante a gozar ou elemento a gozar, ele diz: “o gozo do seu exercício é o mesmo da sua aquisição”.35 É uma questão sobre a fabricação de um inconsciente e, se se seguir esta frase, creio que ela muda o estatuto do sintoma. Se vocês olharem os comentários que estão em volta desta frase, verão que Lacan evo-ca o problema da aquisição. Ele se pergunta: será que se dá por aprendizagem? Penso que ele se pergunta porque a ideia geral é que o saber se adquire nas escolas, nos livros, por transmissão. De fato, o que se adquire nos livros, nas escolas, é a informação, porém, não o saber, segundo Lacan. Ele faz aí uma distinção, bem precisa, entre informação e saber. Esta distinção implica que se pode estar informado, bem informado, especialmente dos saberes científicos e, no entanto, não saber no sentido em que o inconsciente é um saber. O significante basta para a informação, mas não para o saber. Para o saber é preciso que o gozo seja acrescentado, se posso dizer assim. Eis porque o computador, por exemplo, não se pode dizer que ele pensa, ele é programado para fazer aquilo para que serve, mas não se pode dizer que ele... sabe.

Há um outro exemplo que cito porque é engraçado e, também, porque me diz respeito. Ele fala dos normalistas superiores, o que se acredita que a França produz de melhor em matéria de saber. Não sei se vocês têm isso no Brasil, uma escola que se acredita ser de elite. Ele diz: eles não sabem nada, mas ensinam admiravelmente. Dizia isso em uma época em que existia na sua Escola uma oposi-ção feroz contra a chegada de Jacques Alain Miller, que vinha desta Escola Normal Superior. Poder-se-ia acreditar que era uma brin-cadeira bastante maldosa, e muitos a tomaram assim, mas não era somente isso. O que ele dizia repousava na distinção informação/saber. Informação é articulação significante correta, saber é signifi-cante gozado, objeto. E ele conclui neste texto, que para saber “não há informação que dê conta”, mas um “formado no uso”.36 Qual é

34. No texto O Inconsciente,

no capítulo VII – Avaliação

do Inconsciente, Freud apre-

senta “uma caracterização de

pensamento do esquizofrê-

nico dizendo que ele trata

as coisas concretas como se

fossem abstratas”. p. 223.

35. Mais, ainda op. cit.,

p. 131.

36. Ibid.

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Repetição e Sintoma28

o uso? É clara a referência aí a Marx e à distinção entre valor de uso e valor de troca. Isso diz que o inconsciente gozado não tem valor de troca. Aliás, ele seria obstáculo para a troca determinando o não há diálogo. Mas ele tem um valor de uso de gozo. Um uso que é sempre próprio a cada um. Portanto, adquire-se o saber gozando do elemento formal, qualquer que seja. Eis, pois, o primeiro ponto do enigma: como o gozo chega ao elemento formal?

Porém, o ponto principal não está, ainda, aí. É que o gozo de sua aquisição é o mesmo de seu exercício. De onde veio isto? É o contrário da ideia comum sobre o saber. Pensa-se, geralmente, que para adquirir um saber é preciso penar muito, mas que depois vem a retribuição dos esforços e as satisfações esperadas. Que significa esta ideia de que o exercício e a aquisição são marcados por um mesmo gozo? Eu não vejo, senão uma maneira de entendê-la: de um ao outro, da aquisição ao exercício, não há perda. Ao contrário, uma constante de gozo. Dito de outra maneira, o inconsciente é um saber sem entropia, sem variações diferenciais. Um elemento gozado na sua aquisição se gozará de modo idêntico em seu exercí-cio. Quando se lê, pela primeira vez, fica-se desconcertado. Por que? Porque se foi habituado a seguir Lacan na ideia de que há perda desde que há significante. É o que eu explicava ontem a respeito da repetição. De tal maneira se está impregnado desta ideia, que no fundo não se tem feito grande caso do que ele diz ali, sendo que já estava escrito desde 1973.

Mas o que ele adianta aí é outra coisa. Aliás, ele não emprega o termo repetição, mas exercício. No que diz respeito aos uns de repetição, sua tese é que o repetido difere; para o saber, o repetido não difere. Evidentemente, isto toca o sintoma, porque o sintoma é o produto maior do inconsciente saber e o que motiva à análise.

Isto nos leva à ideia de um inconsciente completamente bipolar: de um lado, os uns da perda e, do outro lado, os uns sem perda. E Lacan se demanda: como se constitui este saber não entrópico ? Sua referência à alíngua e a sua aquisição é uma resposta. Notadamente na conferência de 1975 sobre o sintoma, na qual ele coloca que este saber se constitui na primeira relação à alíngua do outro. Com a ideia de que, para todos os bebês, alíngua do outro não é do significante produtor de sentido. De início, é do som, do som fora sentido, mas que se goza. Isto quer dizer que este saber se encontra na origem, em alíngua. Ela, não é do simbólico, é obscena, diz Lacan, sempre obscena, para designar a conexão entre os sons de alíngua e o gozo que pode aí se realizar. Além disso, alíngua não é propícia a que, dela, o sujeito saiba alguma coisa. É por isso que Lacan diz: “como pode, de alíngua, o ser saber alguma coisa?” O ser, efeito deste saber inconsciente, falasser, não é tampouco sabedor, de preferência é mais não sabedor do todo concernente aos efeitos de alíngua que o ultrapassam, sempre.

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Então, retornemos um pouco à clínica. A tese não diz respeito a todo gozo do falante, mas o que Lacan chama o gozo próprio do sintoma, na sua segunda conferência sobre Joyce, onde se lê: “gozo opaco por excluir o sentido”,37 portanto, real. O sintoma é gozo dos uns do inconsciente, o que ele nomeia letra. Por isso, ele diz: vocês gozam do inconsciente de vocês. E até mesmo, vocês fazem amor com o inconsciente de vocês. E ele precisa: não com o inconsciente como meio para fazer o amor, mas com o inconsciente como par-ceiro. Dito de outro modo, não é graças ao inconsciente que vocês fazem amor, é que vocês fazem amor com ele.

Como conceber isso? Não é aí que Lacan introduziu a referência à letra. Desde o início, desde A Carta roubada,38 especialmente, é uma transformação do significante que faz dele um objeto gozado, idêntico a si mesmo. Daí a questão tardia de saber como alíngua “precipita na letra”, esse saber gozado, idêntico a si mesmo, na sua aquisição e no seu exercício. Então, quando ele acrescenta, no fi-nal do seminário Mais, ainda, que o “um encarnado”39 de alíngua é incerto, entre o fonema, a frase e, mesmo, todo discurso, é muito estranho. É dizer que fragmentos de discurso podem valer como Um, o tema da holófrase não está longe. Termino por compreen-der que esta série: fonema, frase, discurso, poderia designar tipos de sintomas diferentes. Se é todo o discurso que serve de “um”, isto quer dizer que este “um” inclui, ainda o elemento formal e o gozo, o imaginário do corpo com o que Lacan chama as representações imbecis que a alíngua introduz no corpo. Portanto, isso designa um sintoma que inclui a fantasia e o gozo do sentido da fantasia. Isso designa o Um de um nó borromeano que é um “um” socializante, implicando um parceiro. Se é uma frase que faz o Um, por exemplo, “bate-se numa criança”, sua fixão, com um “x”, determina um corpo a corpo, mas, pouco genital. E, se é um fonema que faz o “um” do sintoma, isso deixa o imaginário do corpo a corpo do outro fora da jogada. Encontro aí uma outra via, o que já havia desenvolvido, de uma distinção entre “o sintoma autista” e o “sintoma borromeano”.

Agora, este gozo opaco que exclui o sentido, o que é que eu pos-so saber disso? Grande questão para o Passe. Qual é a resposta que Lacan vai dar? Ele não deixa nenhuma dúvida. A resposta é: nada de certeza, o que quer dizer que os “Uns” são incertos. Posso fazer hipóteses, a partir da decifração, mas elas são elucubrações, nada mais que plausíveis. Nada de provas, nada de certo. Posso dizer que esta tese, logo que a compreendi, pareceu-me satisfatória, cor-respondendo bem mais aos fins reais das análises, que aquelas que anunciavam o nome de seu objeto ou de sua letra – o que sempre me pareceu um forçamento, um pouco derrisório. Em todo caso, que isso satisfaça ou não, é a resposta de Lacan, logo se deve, de todo modo, levar em conta.

37. Lacan, Seminário Livro

23: O sinthoma (1975/ 2003,

p.566).

38. Lacan, A carta roubada

(1956/1998).

39. Op. cit., p. 196.

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Repetição e Sintoma30

Então, como se manifesta este sintoma a gozar, que resiste a ser sabido? Evidentemente, é preciso que ele se manifeste para que se fale dele. Ele se manifesta pelo lado inamovível da fixão que supre a não relação sexual. Ele se manifesta por meio de sua constância, constância que se impõe: mesmo se não se pode decifrá-la, ela se experimenta, ela se manifesta e até mesmo se mostra em todas as minhas relações com meus parceiros.

Não se deve confundir: de um lado, a insistência da repetição, a insistência da entropia de gozo, da perda com que se sustenta o insaciável do amor; e, do outro, a constância do gozo opaco, que está aí, idêntica a si mesmo, que contrabalança a primeira dimen-são. Lacan nos diz que se pode seguir esta constância, passo a passo, justamente no que ele chama afetos enigmáticos.

Vou terminar. Graças à uma análise, o que posso fazer com essa constância opaca? Resposta de Lacan: posso, depois de tê-la perce-bido, cernido, me identificar com ela, isto é, me reconhecer aí. Ad-mitir que aí está o meu ser de gozo. É um efeito terapêutico radical. Mas ele está do lado da disposição do sujeito. Ele não é mudança do saber. Estar identificado à sua constância de gozo, isto muda muito a vida. Eu me expresso, às vezes, com uma metáfora que tomo de empréstimo de uma analisanda: “muita coisa não mudou mas, de agora em diante, a vida é colorida”. É uma metáfora para dizer uma mudança na satisfação que há na relação à vida. Esta metáfora da cor, aliás, eu já havia encontrado, há muito tempo, no caso da pe-quena Piggle de Winnicott. Não sei se vocês conhecem este caso, um lindo caso, no qual se vê que a pequena Piggle, cujas figuras de terror eram em negro e que passam ao azul. Poder-se-ia dizê-lo, de outra forma, com metáforas musicais.

Sobre o sintoma, no nível do gozo, não há “la”40. Na música se dá o “la” e ele é o mesmo para todos. Em matéria de sintoma, nada de “la”, sempre a particularidade. Poder-se-ia utilizar a metáfora da tonalidade para situar a mudança: identificar-se ao sintoma, isto pode fazer mudar a tonalidade da vida.

Termino, então, definitivamente, desta vez, sobre o que cessa de se escrever, a saber, o efeito terapêutico. Ele é, possivelmente, duplo. Quando se lida com um sujeito borromeano, o que Lacan chama um “Sinthome”, que enoda o sintoma real, fora sentido, e a fantasia, uma parte do efeito terapêutico consiste em construir e remanejar o que sobressai da ficção, do sentido. É o que se chama a travessia da fantasia. Ela opera no nível do sentido, e é por isso que Lacan diz que a análise libera ao analisando o sentido de seus sintomas. Mas, no que diz respeito ao núcleo autista, real, que Lacan escreve entre simbólico e real, no R.S.I., não se muda este saber aí, mas, sim, as relações do sujeito com esta fixão. E, portanto, há um duplo efeito terapêutico: de um lado, remanejamento do sentido, do outro lado,

40. A autora, ao dizer “não

há « la » no nível do gozo”,

faz referência à Lacan quan-

do diz: “La Femme n’existe

pas » Em português – “Não

há A mulher, artigo definido

para designar o universal.”.

Seminário, Livro 20, Mais,

ainda, op. cit., p. 98.

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identificação ao que não se remaneja e que nem mesmo se presta para ser sabido, integralmente. Eis aí, é a palavra final.

Tradução: Sonia Campos MagalhãesRevisão da Tradução: Andréa Hortélio Fernandes

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33Stylus Rio de Janeiro nº 23 p. 15-33 novembro 2011

ResumoO texto contempla duas conferências proferidas por Co-lette Soler durante o XI Encontro Nacional da EPFCL--Brasil, em Fortaleza, dedicadas ao tema “Repetição e Sintoma”. Nelas, a autora trata da repetição e do sintoma como se produzindo no campo do gozo e dependendo do inconsciente. Cada um destes conceitos, próprios ao falasser, está referido ao “não há relação sexual”. Embora sejam solidários e caminhem juntos, no entanto, a repe-tição e o sintoma não podem se confundir. Para estabele-cer essa sutil diferença, a autora trabalha exaustivamente esses e outros conceitos, sobretudo ao longo da obra de Freud e Lacan, articulando-os magistralmente à clínica.

Palavras-chaveRepetição, sintoma, inconsciente, transferência, gozo.

AbstractThis article discusses two conferences given by Colette Soler during the XI Encontro Nacional da EPFCL–Bra-zil, in Fortaleza, Ceará, about the theme “Repetition and Symptom”. In these conferences, the author explores repetition and symptom as if producing in the field of jouissance and depending on the unconscious. Each of the concepts, particular to the speaking-being refers to the “there is no such thing as a sexual relationship”. Even though they are related and walk hand-in-hand, repeti-tion and symptom cannot be confused. To establish this subtle difference, the author works exhaustively on both concepts and others, especially along Freud and Lacan’s

works, brilliantly connecting them with the clinic.

KeywordsRepetition, symptom, unconscious, transference,

jouissance

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ensaios

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O livro de cabeceira:da escrita como sintomaao sintoma como letra

Ana Laura Prates Pacheco

Inicio este trabalho com uma questão colocada por Lacan no Se-minário 23: “O problema todo reside nisso – como uma arte pode pretender, de maneira divinatória, substancializar o sinthoma em sua consistência, mas também em sua ex-sistência e em seu furo?”.1 É com essa inspiração que contarei com o auxílio de um filme de Peter Greenway, chamado O livro de cabeceira,2 para me ajudar a transmitir como o conceito de letra no último ensino de Lacan per-mitirá a reformulação do lugar do sintoma na clínica psicanalítica.

Encontramos aqui uma inspiração do cineasta na escrita feminina do Japão ancestral, especificamente na obra de Sei Shonagon – Livro de Cabeceira (Makura – nosôshi) – escrita no ano 1000. Shonagon era uma dama da corte imperial japonesa, que ajudou a criar um gênero literário, caracterizado por crônicas na forma de diário íntimo. Escre-via vários poemas/listas, tais como: “Coisas que fazem o coração bater mais forte” ou “Lista de coisas esplêndidas” e experiências eróticas.

No filme de Greenway não há nenhuma pretensão realista como a do cineasta japonês Nagisa Oshima, por exemplo, em O império dos sentidos. Aqui, ao contrário, tudo no filme é como a escrita de uma iluminura. Cada imagem, e mesmo a música, são cuidadosa-mente desenhados e emaranhados aos caracteres da língua japonesa e às outras línguas que aparecem na tela. Ele comenta: “quis fazer um filme que unisse o prazer da literatura e o prazer da carne. Uma das coisas que sempre me fascinaram é a noção de que as letras do alfabeto japonês são caracteres e significados ao mesmo tempo. Elas são imagens e texto, simultaneamente. Podem ser lidas como texto e vistas como imagens”.3

Ora, a relação entre o som e a letra e a imagem está no centro do interesse de Lacan pela língua japonesa que, segundo ele, se alimen-tou da escrita. No texto que apresentei em Roma4 – A letra de amor no corpo – tratei da relação da letra com o verdadeiro e o real no último ensino de Lacan. Não será possível retomar aqui essas elaborações, mas vou resumir brevemente um aspecto do debate a respeito do es-tatuto do conceito de letra para Lacan, que será fundamental para

1. Lacan,, O Seminá-

rio, livro 23: o sinthoma

(1975/2007, p. 38).

2. Greenway, O livro de

cabeceira (The Pillow Book),

1996.

3. Greenway, Entrevista

concedida a Wladimir Welt-

man, 2006.

4. Encontro Internacional

da EPFCL, Roma 2010.

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O livro de cabeceira: da escrita como sintoma ao sintoma como letra 38

acompanharmos meu comentário sobre o filme O livro de cabeceira.Trata-se de indagarmos se o advento do conceito de letra, em

sua especificidade, implicaria uma renúncia de Lacan à tese da pri-mazia do significante. Ora, no texto O carteiro da verdade,5 Derrida acusa Lacan de pertencer à tradição idealista da filosofia ocidental, que defende – desde Platão – o privilégio da transmissão oral em detrimento da escrita. Se vocês se lembrarem, em várias passagens do Seminário 18, Lacan responde às críticas de Derrida, bem como em Lituraterra em A Terceira e no Seminário 24. Também em seu livro A Farmácia de Platão, Derrida retoma a distinção entre a fala e a escrita, a partir do Fedro, de Platão.

Tradicionalmente concebe-se esse diálogo como uma condena-ção da escrita, feita por Sócrates contra os sofistas. Platão retoma, no Fedro, um debate entre os oradores da época, a respeito da so-berania da oralidade ou da escrita na possibilidade de transmissão da verdade. Em Fedro, Sócrates conta para seu discípulo o mito do deus Theuth, que levou a escrita para o rei Thamous, do Egito. Esse lhe pede que declare a utilidade de tal descoberta: “um conheci-mento (máthema) que terá por efeito tornar os egípcios mais ins-truídos e mais aptos para rememorar: memória e instrução ganham seu remédio (phármakon). Responde Thamous: “Tal coisa tornará os homens esquecidos, pois deixarão de cultivar a memória (...). Transmites uma aparência de saber, e não a verdade”.6

Com esse mito, Sócrates tenta convencer Fedro de que não se pode chegar ao justo, ao bom e ao verdadeiro pela via da escrita, já que ela vaga sem pai, indiscriminadamente. A memória, para Platão, é a compreensão viva da alma. Assim “só há sabedoria na alma e nunca em escrituras”.7 Daí a supremacia do conhecimento oral (ver-dadeiro) em detrimento da escrita (aparência). Ao mesmo tempo, o logos é tratado como um corpo vivo: “ter um corpo que seja o seu”.8

Derrida retoma esse mito platônico apresentado no Fedro, fazendo uma crítica à tradição platônica ocidental que preconizaria, segun-do seu argumento, a irredutibilidade do significante e sua primazia em relação à escrita. Pode-se perceber a presença constante de Lacan como referência oculta nesse livro.9 Tomando como eixo uma análise minuciosa da escrita como Phármakon (a um só tempo veneno e remé-dio), Derrida inverte, entretanto, seu sinal, apontando positividades exatamente ali onde Platão encontrava seus inconvenientes e acusa La-can de promover um formalismo estruturalista. Lacan responde lin-damente em uma conferência proferida na Bélgica em 26 de fevereiro de 1977, dizendo que não é a mesma coisa a forma e a estrutura, já que a noção de estrutura se fia na esperança de alcançar o real.10

Proponho, entretanto, como contraponto, outra leitura de Fedro – do meu ponto de vista, mais coerente com Lacan –, que destaca a escrita como ikhnos, o sinal, as pegadas, as pistas “de caminhos já

5. Derrida, O carteiro da

verdade (1975).

6. Platão, Fedro, p. 119.

7. Ibid.

8. Ibid.

9. Se vocês se lembrarem,

em várias passagens do Se-

minário 18, Lacan responde

às críticas de Derrida, bem

como em Lituraterra em A

Terceira e no Seminário 24.

10. Lacan, Conferência na

Bélgica (1977).

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39Stylus Rio de Janeiro nº 23 p. 37-43 novembro 2011

trilhados, de diálogos vivos que forjaram modos de ser”.11 Essa, me parece, é a dimensão que Lacan almeja dar à escrita: nem o simu-lacro do corpo imagem, nem o verdadeiro incorpóreo, nem mesmo a experiência do corpo como substância gozante da lalíngua, mas a dimensão de cifra dessa experiência de gozo. É do sintoma como letra que se trata, na minha leitura, o filme O livro de cabeceira. Há, evidentemente, várias leituras possíveis, especialmente para um fil-me complexo como esse, mas tomarei a licença poética de tomá-lo como um caso clínico e dividi-lo em alguns recortes:

Primeiro recorte O sintoma que opera de modo selvagem:

do contingente ao necessário. Trata-se, inicialmente, da letra no corpo como marca do gozo, e

suas consequências fantasmáticas. Nagiko, a personagem do filme, é criada com uma cena que se repete desde a mais tenra infância. No dia de seu aniversário, o pai escreve os seguintes dizeres em seu corpo:

Quando Deus fez o primeiro modelo em barro de um ser hu-mano, Ele pintou os olhos, os lábios e o sexo. Depois, Ele pintou o nome de cada pessoa para que o dono jamais esquecesse. Como Deus aprovou sua criação, Ele trouxe à vida o modelo de barro pin-tado, assinando seu próprio nome.12

A mãe ouvia na vitrola o disco que escutava quando conheceu seu pai, e ao mesmo tempo cantava em mandarim. A tia lia para ela, antes de dormir, o livro de cabeceira de Shonagon. Aos 4 anos, Nagiko vê uma cena sexual entre o pai, um escritor e seu editor chantagista, cena fantasmática que cristaliza sua posição a um só tempo excluída e identificada à posição masoquista do pai diante do editor: mito familiar do neurótico. Aos 6 anos, jura que terá, um dia, seu próprio Livro de Cabeceira.

Vemos, então, que o gozo da lalíngua materna, a letra que ci-fra esse gozo, a produção das primeiras identificações e a verifica-ção fantasmática estão presentes. Como afirma Lacan na aula de 21/01/1975 do Seminário RSI, o sintoma é a função do sintoma, no sentido matemático. E o x da função “é o que, do Inconsciente, pode ser traduzido por uma letra”.13 Mas, segundo Lacan, “qual-quer um é suscetível de se escrever como letra”.14 Da contingência da cifra de “qualquer um que para de não se escrever”15, entretanto, opera-se, de modo selvagem, como ele ensina, algo que passará para a modalidade lógica do necessário: o que não cessa de se escrever. No caso de nossa personagem, é a própria escrita no corpo que ocu-pa o lugar do x na função sintoma.

11. Pinheiro, Fedro e a

escrita (2008).

12. O livro de cabeceira,

op.cit.

13. Lacan,, O Seminário,

livro 22: R.S.I. (1974-75/Iné-

dito, aula de 21/01/1975).

14. Ibid.

15. Ibid.

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O livro de cabeceira: da escrita como sintoma ao sintoma como letra 40

Segundo recorte A fantasia: essa cadeia indefinida de significações que se

chama destino. O filme mostra, então, a escrita do destino, ou seja, a verdade

mentirosa de Nagiko na tentativa de salvar o pai da humilhação diante do editor. O primeiro marido é escolhido pelo editor do pai, numa troca de favores aos moldes daquela suposta por Dora entre seu pai e o Sr. K. Trata-se de um praticante de arco e flecha, incapaz de reconhecer o valor da literatura e da escrita, que são vitais para Nagiko. Na ausência do pai, ela tenta escrever a saudação ritualística dos aniversários no espelho. Seu Livro de cabeceira é repleto de listas negativas. O marido, inconformado, incendeia seus escritos. Os pa-péis são queimados, mas a “substância gozante” resiste ao fogo.

O pai, humilhado e subjugado pelo editor, acaba por cometer um suicídio ritual. Nagiko foge então para Hong Kong, e para manter a tradição do pai, obstina-se em encontrar, nos seus aman-tes, o calígrafo ideal, fazendo de seu próprio corpo, o papel. O que importa para ela é o ato da escrita, a caligrafia em si: “a palavra significando chuva deveria cair como chuva. A palavra significando fumaça deveria cair como fumaça”.16 Nagiko repete o destino pa-terno, fazendo-se de objeto de troca sexual, recebendo como “mais de gozar” a escrita em seu corpo.

Aqui, evidencia-se a montagem fantasmática do tipo histérico, sustentando o pai castrado pela via do sintoma. Sintoma que desafia o discurso do Mestre, na medida em que extrai o gozo como mais valia da suposta exploração do Outro. Sintoma metáfora – que em sua vertente significante seria passível de decifração, na medida em que substitui o irredutível da fantasia fundamental –, mas que des-liza metonimicamente enquanto tenta correr atrás da cadeia infini-ta de significações que chamamos de destino.

Terceiro recorte

Ser sintoma e devastação. Ocorre, então, nova contingência, e Nagiko encontra o amor.

Se, entretanto, o encontro é contingente, o que produz uma reti-ficação subjetiva é da ordem do ato. Jerome se recusa a ocupar o lugar de Outro expropriador. Ele não se interessa pela troca que ela lhe oferece. Embora ele conceda em escrever em seu corpo a sauda-ção ritualística paterna, propõe-lhe, em contraponto, uma inversão dialética: que ela passe a escrever em seu corpo. Podemos supor aqui uma passagem da ordem do ter um sintoma como f(x) a ser o sintoma de um homem.

16. O livro de cabeceira,

op. cit.

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41Stylus Rio de Janeiro nº 23 p. 37-43 novembro 2011

Agora, a partir da convocação de Jerome, é ela quem passa a escrever em seu corpo: “Trate-me como a página de um livro”. E ela lhe responde: “Agora, serei o pincel, não só o papel”.17 A inversão, entretanto, não se dá sem certa escroqueria, certa trapaça, como brinca Lacan em 1977. Nagiko trama um plano no qual usará o amante para vingar-se do editor. Ele, literalmente, empresta o cor-po para portar a letra/carta que interpelará o Outro obsceno na fantasia. O plano consiste em que Jerome se torne amante do editor, e seduza-a por meio da escritura do Livro de Cabeceira de Nagiko em seu corpo. Não é o corpo de Jerome que é o fetiche do editor, mas a letra ali desenhada: “O aroma do papel em branco é como o aroma da pele de um novo amante”.18 Seriam 13 os livros/poemas escritos no corpo do amante.

Quem é, entretanto, enganado no jogo do amor? Para a mulher, o homem pode ser uma devastação. Tomada pelo ciúme, Nagiko rompe com Jerome e passa ao ato, voltando a seus amantes. Ainda jogando com semblantes, Jerome decide simular a cena de Romeu e Julieta que, entretanto, torna-se real. Jerome morre envenenado com a tinta usada por sua amada para escrever em seu corpo. Eis a face veneno do phármakon. Numa das cenas mais fortes do filme, o editor rouba o cadáver de Jerome, e tira a sua pele para fazê-la, lite-ralmente de papel. As vísceras e outros pedaços de carne vão para a lixeira. Incrível transmissão em linguagem cinematográfica, do que Lacan nos ensina em Radiofonia:19 nada melhor para representar o corpo simbólico do que o cadáver.

Quarto recorte

A queda do Outro e a identificação do sintoma. Mas, para além do verdadeiro incorpóreo, há substância gozan-

te. E quanto ao gozo cifrado no sintoma, é preciso com isso se virar, ou, como diz Lacan: “usar isso até atingir seu real, até se fartar”.20 No filme, o uso lógico de Nagiko é aquele necessário para fazer cair o Outro instituído na personagem do editor. Pela escrita de 13 livros, nos corpos de sucessivos amantes, Nagiko consuma seu destino de vingança no último livro: O livro dos mortos. Enterra, então, o livro feito com a pele do amante e pode se separar de seu destino fantasmático.

O filme acaba em seu 28o aniversário, quando o Livro de cabecei-ra de Shonagon completa mil anos. Nagiko diz: “agora posso escre-ver meu próprio Livro de cabeceira”.21 Na vitrola, toca a música em mandarim cantada por sua mãe. Segurando nos braços seu filho, ela escreve em seu corpo os mesmos dizeres do pai. Como afirma Lacan, não há relação sexual, a não ser entre gerações.

17. Ibid.

18. Ibid.

19. Lacan, Radiofonia

(1970/2003).

20. O Seminário, livro 23: o

sinthoma, op. cit., p. 16.

21. op. cit.

Page 44: Stylus 23 - Varios

O livro de cabeceira: da escrita como sintoma ao sintoma como letra 42

Há alguns comentadores desse filme que veem nesse final a con-firmação da ideia de Derrida de que a escrita é mais verdadeira porque pode prescindir do pai. Eu prefiro, com Lacan, entendê-lo pela via da identificação ao sintoma: “sintoma como aquilo que se conhece melhor”.22 Ou, em outras palavras, tornar o gozo possível por meio da emenda entre ser sinthoma e o real parasita de gozo.23

Para mim, o que O Livro de cabeceira ensina é que é possível separar-se do sentido da fantasia. E quanto ao Pai, fiquemos com Lacan: “Por isso a psicanálise, ao ser bem-sucedida, prova que po-demos prescindir do Nome-do-Pai. Podemos, sobretudo, prescindir com a condição de nos servirmos dele”.24

Referências bibliográficasDERRIDA, J. (1975). O carteiro da Verdade. In: O cartão-postal.

De Sócrates a Freud e além. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2007.

DERRIDA, J. A Farmácia de Platão. São Paulo: Iluminuras, 2005.GREENWAY, P. The Pillow Book. (O livro de cabeceira). Filme

franco-britânico baseado nas Notas de Cabeceira da escritora medieval japonesa Sei Shonagon, no século X. 1996.

GREENWAY, P. Entrevista concedida a Wladimir Weltman. In: http://blogdogutemberg.blogspot.com/2006/06/livro-de-cabeceira-

de-greenaway.htmlLACAN, J. (1970). Radiofonia. In: Outros escritos. Rio de Janeiro:

Jorge Zahar Editor, 2003.LACAN, J. O Seminário, livro 22: R.S.I. (1974-1975). Inédito. LACAN, J. O Seminário, livro 23: o sinthoma (1975-1976). Rio de

Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007.LACAN, J. O Seminário, livro 24: L’ insu que sait de l’une bévue s’aile

à mourre (1976-1977). Inédito.LACAN, J. (1977). Intervention de Jacques Lacan à Bruxelles en

26/02, publiée dans Quarto (Supplément belge à La lettre men-suelle de l’École de la cause freudienne), 1981, no 2. In: http://www.ecole-lacanienne.net/pastoutlacan70.php

PINHEIRO, M. Fedro e a escrita. In: Anais de filosofia clássica, vol. 2 n. 4, 2008.

PLATÃO. Fedro. São Paulo: Editora Martin Claret, 2002.

22. Lacan, O Seminário,

livro 24: L’ insu que sait de

l’une bévue s’aile à mourre

(1976/Inédito).

23. O Seminário, livro 23: o

sinthoma, op .cit., p. 71.

24. Ibid., p. 132.

Page 45: Stylus 23 - Varios

43Stylus Rio de Janeiro nº 23 p. 37-43 novembro 2011

ResumoEste trabalho dá tratamento a uma questão apresentada por Lacan no Seminário 23, de como uma arte pode pre-tender, de maneira divinatória, substancializar o sintoma em sua consistência, mas também em sua ex-sistência e em seu furo. Para refletir sobre esse ponto, a autora toma por referência um filme de Peter Greenway, chamado “O livro de cabeceira”, tomando-o como um caso clíni-co e dividindo-o em alguns recortes, com o objetivo de transmitir como o conceito de letra no último ensino de Lacan permitirá a reformulação do lugar do sintoma na

clínica psicanalítica.

Palavras-chaveLetra, sintoma, escrita, arte, clínica psicanalítica

AbstractThis article deals with a question posed by Lacan in Se-minar 23, when he affirms that not only can art provide substance to the symptom in its consistence in a divine way, but also in its existence and its hole. In order to reflect upon this issue, the author uses as reference the movie “The bedside book” by Peter Greenway, taking it as a clinical case and dividing it into some parts, with the objective of showing how the concept of letter in Lacan’s last teaching will allow the reformulation of the place of

symptom in the psychoanalytical clinic.

KeywordsLetter, symptom, writing, art, psychoanalytical clinic.

Recebido17/02/2011

Aprovado06/03/2011

Page 46: Stylus 23 - Varios

44

Page 47: Stylus 23 - Varios

45Stylus Rio de Janeiro nº 23 p. 45-50 novembro 2011

Sintoma: ruído daalíngua1 no corpo

Silvia Amoedo

“Minha alma tem o peso da luz. Tem o peso da música. Tem o peso da palavra nunca dita, prestes quem sabe a ser dita. Tem o peso de uma lembrança. Tem o peso de uma saudade. Tem o peso de um olhar...”

Clarice Lispector

Pode-se dizer que o sintoma é um ruído da alíngua no corpo? Dos casos clínicos oriundos da experiência analítica, Freud extrai o conceito de “sintoma analítico”, desconhecido para o próprio su-jeito e que dá corpo ao corpo do ser falante, antes inerte. Como representante de um evento traumático da alíngua, de fantasias do paciente, resultantes de coisas ouvidas na infância, o sintoma é um substituto de uma satisfação pulsional. Na formação do sintoma, Lacan dá ênfase às coisas ouvidas antes da aquisição da linguagem, quando a criança ainda não tem acesso ao sentido do significante, e que ele denomina alíngua, cuja impressão sobre o corpo deixa vestígio, que ressurge, do real, como ruído no corpo, anunciando o impossível da relação sexual. O sintoma é um evento corporal, so-lução para a des/ordem, divisão causada no ser falante pela alíngua.

Para a psicanálise, os casos clínicos são imprescindíveis. A pala-vra “caso” vem do latim casus, que quer dizer aquilo que cai. Caso é também acontecimento, eventualidade, casualidade, situação parti-cular, história, aventura amorosa. Do grego Klein, a palavra “clíni-ca” significa leito e, na experiência analítica, pode-se dizer, um leito sem barragem, pelo qual correm as palavras que tentam falar da impossibilidade do leito conjugal e do leito eterno, respectivamente a relação sexual e a morte. Inesgotáveis, os casos clínicos de Freud, para todos aqueles que se debruçam sobre a fonte freudiana, con-tinuam jorrando no processo contínuo de criação da psicanálise.

Mas o que se espera do tratamento analítico em relação ao sin-toma, já que este é que sustenta, com substância de gozo, o corpo do ser falante? O que se pode escutar, na relação analítica – que dis-põe precisamente da linguagem como instrumento –, do eco desse evento corporal constituído de alíngua, antes da linguagem? São as pulsões no corpo, segundo Lacan, “o eco do fato de que há um dizer [...] é preciso que o corpo lhe seja sensível”.2

1. No presente texto,

adotei a tradução proposta

por Jairo Gerbase, “alíngua”,

para o neologismo “lalan-

gue”, o qual mantém na fala

a presença do equívoco, que

só a escrita explicita.

2. Lacan,, O Seminário,

livro 23: o sintoma (1975-

76/2007, p. 18).

Page 48: Stylus 23 - Varios

Sintoma: ruído da alíngua no corpo46

Para abordar essas questões, pretendo, com recortes clínicos, se-guir alguns dos rastros deixados no divã. A palavra do analisante é o meio pelo qual a psicanálise opera. É no dito do sujeito, sob transferência, que o inconsciente se atualiza, precisamente quando o sujeito vacila, quando diz ou duvida e, ainda, quando não conse-gue sequer dizer, como mostra a experiência analítica.

O sujeito A., após ter-se submetido a vários tratamentos de uma dermatite de contato, procura análise quando conclui que o saber médico falhou em seu caso. Sobre o sintoma, ela sabe que se trata de uma reação alérgica da pele quando tem contato com alguma substância. Mas qual substância? A pele coça, formam-se bolhas – que viram feridas –, seca e descama, num ciclo que se repete desde que A. se entende por gente. Ela se queixa: “Isso faz com que eu não trabalhe na minha profissão e não tenha relação sexual com ninguém!” E, coçando a pele, passa a discorrer sobre suas impres-sões: tinha uma sensação estranha de satisfação, quando criança, ao escutar o ruído das unhas de sua mãe coçando as costas de seu pai. De súbito, ela associa essa lembrança com a satisfação e o ruído que escuta ao coçar as próprias feridas do corpo. Encerro a sessão com a pergunta: “Que ruído é esse no corpo? O que isso quer dizer?”

Em O aturdito, Lacan observa: “para que um dito seja verdadei-ro, é preciso ainda que se o diga, que haja nele um dizer”.3 O sujeito A. diz que a cena tinha uma conotação sexual, que se expressava nos sussurros que seu pai emitia. “As feridas servem, então, como barreira, para me impedirem de tocar ou ser tocada por outro cor-po?” – pergunta. “Isso é uma contradição! Não faz sentido!” – diz, admitindo que gosta muito de tocar e ser tocada. Mas a pele des/camada continua a coçar, como se quisesse dizer coisas que não são do sujeito, para cessar a sensação indefinível que o prurido provoca e o consequente ruído que causa desordem.

O sujeito B., por sua vez, sofre com desarranjos que o acometem cada vez que é confrontado com uma situação em que tenha de dar prova de sua virilidade. A pre/tensa relação sexual, como diz, configura-se como o maior deles e, só de pensar, a barriga começa a fazer um barulho estranho, ronca sem parar, culminando numa desinteria que o deixa sem consistência. Ele se lembra de que, quan-do criança, se excitava quando ficava acordado na cama escutando barulhos vindos do quarto dos pais, e só dormia depois de ouvir os roncos do pai, quando se assegurava de que não estava havendo mais relação sexual entre eles. Isso o atordoava. Pontuo: “Sua barri-ga também ronca!” Como indica Lacan, “só é possível liberar algo do sintoma pelo equívoco que a interpretação opera. É preciso que haja alguma coisa no significante que ressoe”.4

No processo de associação livre, o sujeito B. deixa entreverem--se alusões às experiências esquecidas. Esse barulho retorna: “Sonhei

3. Lacan,, O aturdito

(1973, p. 449).

4. O Seminário, livro 23: o

sintoma, op. cit., p. 18.

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47Stylus Rio de Janeiro nº 23 p. 45-50 novembro 2011

que tinha relações sexuais com uma mulher, uma mulher muda” – relata. Diz que as mulheres, quando falam, o acessam, mas que nenhuma mulher pode acessá-lo por inteiro, senão ele esgarça, como um tecido. E acrescenta: “O melhor encontro sexual é mesmo no silêncio!”. O dito encobre um dizer – o real – que ex-siste no sujeito e que se anuncia assim: não há relação sexual – senão como interdi-ção, no silêncio. Em Alíngua também é nó, diz Gerbase: “ainda que se possa representar e discernir os ditos, resta sempre algo que não se representa e que não se diz. A palavra falta e isto é sintoma do real”.5

Sintoma do real?! De que se trata? “Sim, quero a palavra última que também é tão primeira, que já se confunde com a parte intan-gível do real”.6 Seguir o fio do discurso analítico, segundo Lacan,7 tende para refraturar, marcar com uma curvatura própria, a des-continuidade da alíngua.

Retorno às fontes freudianas, aos primórdios, quando Freud concebe o sintoma como resultado de uma eventualidade da histó-ria, na qual o sujeito era acometido de algo, inassimilável, que lhe vinha de fora – o trauma.

Desconhecidos do próprio sujeito, os sintomas causam sofri-mento, ao mesmo tempo que expressam a realização de um desejo, pois resultam de um modo de gozar do sujeito. Em lugar de mo-dificar o mundo externo para a satisfação, a modificação se dá no próprio corpo do sujeito.

Freud8 constatou que, em qualquer caso e em qualquer sintoma, chega-se infalivelmente ao campo do gozo sexual. Embora a presen-ça da significação da sexualidade, na etiologia das neuroses, como substituto sexual, já tivesse chamado a atenção de Freud desde as primeiras observações clínicas, naquela ocasião, como ele mesmo disse, ele não tinha ainda aprendido a reconhecê-la como seu desti-no inexorável, como impossibilidade da relação sexual.

Esse não saber que se revela no sintoma, e em outras formações do inconsciente, conduziu Freud a elaborar a hipótese sobre o incons-ciente, que Lacan, em seu retorno a Freud, enunciou como estrutu-rado como uma linguagem. Com a linguagem, como diz Lispector.

Eu tenho à medida que designo – e este é o esplendor de se ter uma linguagem. Mas eu tenho muito mais à medida que não consigo de-signar. A realidade é a matéria-prima, a linguagem é o modo como vou buscá-la e como não acho. Mas é do buscar e não achar que nasce o que eu não conhecia, e que instantaneamente reconheço. 9

Posteriormente, Lacan10 acrescenta que o inconsciente é estrutura-do como uma linguagem nos efeitos de alíngua, que já estão lá como saber, vão bem além de tudo que o ser que fala é suscetível de enunciar.

O sintoma é um evento no corpo, diz Lacan.11 Para esse autor,

5. Gerbase, Alíngua tam-

bém é nó (2011, p. 65).

6. Lispector, Água Viva

(1998, p. 12).

7. Lacan,, O Seminário,

livro 20: mais, ainda (1972-

73/1982, p. 61).

8. Freud, A etiologia da

histeria (1896/1980, p. 185).

9. Lispector, A paixão

segundo GH (1999, p. 176).

10. O Seminário, livro 20:

mais, ainda, op.cit., p. 190.

11. Lacan, Joyce, o sintoma

(1976/2003, p. 565).

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Sintoma: ruído da alíngua no corpo48

há o corpo imaginário, o corpo que encontra unidade com a an-tecipação da imagem corporal, quando a criança, capturada pelo engodo especular, fabrica fantasias, que vão desde uma imagem despedaçada do corpo até a forma da totalidade deste. Mas é a lin-guagem que concede ao ser falante um corpo simbólico, esteja ele vivo ou morto. Com a sepultura, da morte emerge o símbolo que preserva o corpo do ser vivente. O simbólico tem, portanto, relação com a permanência de tudo o que é humano e do próprio homem.

Segundo Lacan, “o sintoma, como formação de significante, é uma metáfora, construída como uma frase poética, que vale ao mes-mo tempo por seu tom, sua estrutura, seus trocadilhos, seus ritmos, sua sonoridade. Tudo se passa em diversos planos, e tudo é da ordem e do registro da linguagem”.12 Os sintomas de Dora, caso clínico de Freud, “são elementos significantes, mas na medida em que sob eles corre um significado perpetuamente em movimento, que é a manei-ra como Dora aí se implica e se interessa”,13 observa Lacan.

Sobre a linguagem, diz Lispector: “A linguagem é meu esforço humano. Por destino tenho que ir buscar e por destino volto com as mãos vazias. Mas – volto com o indizível. O indizível só me poderá ser dado por meio do fracasso de minha linguagem”.14 Pode-se dizer que a linguagem toca o gozo – o indizível, o encontro do real –, como mostra o sonho paradigmático do Homem dos lobos: “Sonhei que era noite e que eu estava deitado na cama. [...] De repente, a janela abriu-se sozinha e fiquei aterrorizado ao ver que alguns lobos brancos estavam sentados na grande nogueira em frente da janela. Havia seis ou sete deles. [...] Com grande terror, evidentemente de ser comido pelos lobos, gritei e acordei”.15

Além da sensação duradoura de realidade que o sonho deixou após o despertar, dois fatores foram destacados pelo paciente: o olhar atento dos lobos, como se tivessem fixado toda a atenção so-bre ele, e a própria imobilidade dele diante desse olhar. Por trás do conteúdo do sonho existia, provavelmente, uma cena desconhecida, que ocorrera havia muito tempo.

Em A terceira, Lacan diz: “o sentido do sintoma é o real, que retor-na sempre ao mesmo lugar, que não cessa de se repetir para impedir o andamento das coisas – uma pedra no meio do caminho”.16 O sin-toma segue na contramão do projeto idealizado e exitoso do sucesso, no sentido de todos; por outro lado, no sentido do um, do singular, as coisas caminham de forma satisfatória. Eis a política do sintoma.

A mulher do ruído e o homem do ronco podem ser nomes pró-prios, respectivamente, dos sujeitos A. e B., nomes de gozo do sin-toma, identificadores do ser falante. Ruído e ronco são, assim como lobos, significantes da alíngua.

12. Lacan, O simbóli-

co, o imaginário e o real

(1953/2005, p. 24).

13. Lacan, O Seminário,

livro 4: a relação de objeto

(1956-57/1995, p. 149).

14. A paixão segundo GH,

op. cit., p. 176.

15. Freud, História de uma

neurose infantil (1918 [1914],

p. 45).

16. Lacan, A terceira (1975/

Inédito).

Page 51: Stylus 23 - Varios

49Stylus Rio de Janeiro nº 23 p. 45-50 novembro 2011

Referências bibliográficasFREUD, S. (1896). A etiologia da histeria. In: Edição standard bra-

sileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1980. v. III.

FREUD, S. (1918 [1914]). História de uma neurose infantil. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sig-mund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1980. v. XVII.

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LACAN, J. (1975). A terceira. Inédito.LACAN, J. O Seminário, livro 23: o sinthoma (1975-1976). Rio de

Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007.LACAN, J. (1976). Joyce, o sintoma. In: Outros Escritos. Tradução

Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.LISPECTOR, C. Água Viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.LISPECTOR, C. A paixão segundo GH. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

Page 52: Stylus 23 - Varios

Sintoma: ruído da alíngua no corpo50

ResumoPode-se dizer que o sintoma é um ruído da alíngua no corpo? Como representante de um evento traumático da alíngua, de fantasias do paciente resultantes de coisas ouvidas na infância, o sintoma é um substituto de uma satisfação pulsional. Mas o que se espera do tratamento analítico em relação ao sintoma, já que este é que susten-ta, com substância de gozo, o corpo do ser falante? Para abordar essas questões, pretendo, com recortes clínicos,

seguir alguns dos rastros deixados no divã. 

Palavras-chaveSintoma, corpo, linguagem, alíngua.

AbstractIs it possible to say that symptom is a noise of lalangue in the body? As a representative of a traumatic event of the lalangue, of a patient’s fantasies, resulting from things captured in childhood, the symptom is a substitute of a instinctual satisfaction. But what is to expect from the analytical treatment regarding the symptom, since it is this symptom, with substance of pleasure, that sustains the body of the speaking being? To address these ques-tions, through clinical insights, I intend to follow some

of the traces left in the divan.

KeywordsSymptom, body, language, lalangue.

Recebido15/02/2011

Aprovado11/03/2011

Page 53: Stylus 23 - Varios

51Stylus Rio de Janeiro nº 23 p. 51-58 novembro 2011

Mulher, semblante e corpo:entre o empuxo à mulher

na psicose e o sintomada coqueteria histérica

Elisabeth da Rocha Miranda

Lacan, em O seminário, livro 20: mais, ainda... mais precisa-mente na lição de 20 de março de 1973, apresenta a figura de um triângulo1 cujos vértices levam as letras RSI, estabelecendo uma equivalência entre as três dimensões: real, simbólico e imaginário. Nele, situa o conceito de semblante sobre a via que vai do simbólico ao real. A oposição entre semblante e real é a essência mesma da psicanálise na medida em que o real faz vacilar os semblantes civi-lizatórios, produzindo um retorno ao real do sexo.

Fig. 1. O Seminário, livro 20: mais, ainda (p. 121)

No seminário anterior intitulado O seminário, livro 19: ... ou pire, Lacan já havia postulado o semblante como sendo a possibi-lidade de lidar com o real do sexo, com o que escapa à linguagem; logo, o semblante resulta do esforço do simbólico para apreender o real. Partindo em busca do real, o simbólico encontra o semblante, encontra o ser e fracassa justo por não reconhecer esse fracasso. O caso a que chamei Regina ilustra tal fracasso: o sujeito, em busca de se fazer existir como A mulher que não existe no impossível da relação sexual, encontra no homem o abismo próprio da falta-ser.

1. Lacan, O Seminário,

livro 20: mais, ainda (1972-

73/1985, p. 121).

verdadeiro

Simbólico Real

realidade

imaginário

S (Ⱥ)

ɸGozo

semblante, aparência

a

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Mulher, semblante e corpo: entre o empuxo àmulher na psicose e o sintoma da coqueteria histérica

52

O semblante que sustenta esse sujeito na partilha dos sexos e que denominei “a coqueteria histérica” é a atuação no “palco do corpo”2 da vida sexual e do sintoma de tal sujeito. O sintoma é o que amar-ra os três registros RSI borromeanamente, conforme proposto por Lacan em 1975-1976 em O Seminário livro 23: o sinthoma. Situado no nó borromeo entre os registros do real e do simbólico como todo sintoma, o sintoma histérico revela também a dificuldade do sujeito de se situar na partilha dos sexos, instituindo a conhecida pergunta histérica: sou homem ou sou mulher? Regina responde a essa ques-tão edípica e sintomática com o semblante da coqueteria histérica, com o qual ela busca o olhar do homem, e com o qual consegue fazer o outro desejar, tamponando simbolicamente o real pulsional de seu sintoma vivido na relação com o pai, e segundo sua própria interpretação, pelo não reconhecimento de seu lugar de filha e mu-lher, e pelo abandono em prol de outra mulher e de outra filha.

A posição sexuada é sempre um semblante, um fazer-se parecer homem ou mulher. Semblante construído pela cadeia significante de cada sujeito e que lhe permite apreender o real pela via do simbólico. Logo, o semblante é esforço para percorrer o caminho que vai do simbólico ao real e que escamotea o núcleo real do sintoma. No caso, podemos dizer que o semblante é a política do sintoma desse sujeito, que ao ruir provoca efeitos devastadores, mais uma vez no corpo, per-mitindo estabelecer a diferença entre os efeitos de despedaçamento do corpo na esquizofrenia e o corpo sintomático da histeria.

Regina, aos 65 anos, chega ao consultório em cadeira de rodas com o diagnóstico médico de reumatismo infeccioso que atingiu seus pés, deixando-os contorcidos e inutilizados, e já afetando as mãos, que começam a perder a força. Nos últimos anos, se submeteu a 11 cirurgias para correção ortopédica, série acrescida por algumas plás-ticas estéticas. A demanda de uma nova cirurgia estética de rosto é o que motiva o encaminhamento feito pelo último cirurgião consulta-do, que condiciona a intervenção a um tratamento psicanalítico. En-quanto seus pés e mãos entortavam, ela esticava rosto, seios, costas, cintura, coxas etc. O recurso às cirurgias mantém Regina solitária em seu gozo, fora do laço social, acirrando a eterna insatisfação dirigida agora aos médicos que a tratam com descaso porque está velha. Em suas palavras: “se fosse jovem, eles fariam o que eu pedisse, era bonita e sensual. Agora exigem análise como se eu fosse louca. Estou aqui para mostrar que eles são os incompetentes e não eu”.

Esse sujeito retalha e contorce o próprio corpo, denunciando o que não pôde dizer com palavras, encenando o que o afeta, e assim alivia a angústia que este mesmo afeto causa. Lacan diz que a linguagem é “um corpo sutil, mas é um corpo”,3 pois “as palavras são tiradas de todas as imagens corporais que cativam o sujeito; podem engravidar a histérica”.4 Regina está grávida de perdas não simbolizadas que retor-

2. “O corpo histérico é o

palco onde se encena a vida

sexual do sujeito” – expressão

utilizada por Antonio Quinet

e que considero precisa para

o caso aqui apresentado.

3. Lacan, Função e campo

da palavra e da linguagem

em psicanálise (1953a/1998,

p. 302).

4. Ibid.

Page 55: Stylus 23 - Varios

53Stylus Rio de Janeiro nº 23 p. 51-58 novembro 2011

nam na substância excitável, ou seja, no corpo, que na neurose histéri-ca é o cenário do sintoma do sujeito. A imagem de um corpo jovem e sedutor, assim dito pelos homens, e o lugar de filha preterida pelo pai são perdas inconciliáveis com a fixação pulsional que rege a vida desse sujeito. Regina, edipicamente seduzida pelo pai, sofre do “abandono pelo pai”, maneira pela qual podemos nomear seu sintoma.

Passado o primeiro momento de análise, Regina não fala mais de sua doença e de cirurgias e inicia uma série de queixas dirigidas ao seu homem, que a trocou pela enteada, sua própria filha. Tal fato lhe é revelado por um sonho no qual ela vê o ex-amante presentear sua filha com um perfume que sempre foi o seu preferido. Seus sonhos não falham: sempre lhe revelam a verdade – e a interpreta-ção que ela dá a este em particular adquire o peso de uma certeza inabalável, é verdadeiramente uma revelação. Afirma que no fundo já sabia do que se passava, porque “depois do sonho revelador, as ce-nas em que os dois – a filha e o ex-amante – estavam juntos surgem diante dos seus olhos insistentemente, para que não se esqueça do que se passou entre eles”. Por exemplo, diz ela: “ontem eu os vi na cozinha aos beijos, mas eles pensam que me enganam”. O amante não frequenta sua casa há oito anos, mas ela explica que “vê no presente as cenas acontecidas no passado, porque no momento em que tais cenas ocorreram, ela não as podia ver, pois ainda não tinha acontecido o sonho revelador”.

A entrada em análise se dá após outro sonho em que o cirurgião plástico lhe diz: “chega de cirurgias, você está ótima, é uma rainha, as rainhas serão sempre rainhas, você precisa arranjar um namorado”. Em associação, diz: “a primeira coisa que pensei ao acordar é que você devia ter um namorado, porque você tem nome de rainha”. Em meio a rainhas, Regina afirma que seu reino desmoronou quando, em suas palavras, “o amante tarado foi embora, deixando-a doente”.

Regina é assistente social e professora em uma universidade muito importante em âmbito nacional, título do qual se orgulha. Outro motivo de orgulho é o fato de ter cuidado de toda a família, especialmente da mãe, desde que o pai se foi com outra mulher muito mais jovem, com quem teve mais três filhas, e a quem ela também sempre ajudou por serem muito pobres e incapazes.

Aos dezoito anos se casa com o pai de sua filha, que faleceu quan-do a menina tinha seis meses. No mesmo ano conhece um médico, casado e 28 anos mais velho que ela, de quem se torna amante por 35 anos: “ele ajudou a criar minha filha, que o chama de painho”.

Seguem-se injúrias e toda sorte de pragas contra o amante, “um safado que aos 81 anos deixa de ir à sua casa e resolve que só quer vê-la na presença da filha-enteada e das netas, negando-se a qual-quer intimidade”. Revela que o relacionamento entre eles sempre foi muito sexuado: “fui para ele um objeto precioso, linda, ele adorava

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Mulher, semblante e corpo: entre o empuxo àmulher na psicose e o sintoma da coqueteria histérica

54

meu corpo, ficava olhando meus seios por longos períodos. Quando estávamos a sós ele me pedia para andar nua pela casa. Eu acordava com ele me admirando – e quando fiquei torta, fui abandonada”.

Regina ficou torta quando foi para o interior de outro estado cui-dar do pai que tivera um AVC. Mas, ao chegar lá, se viu impedida pe-las irmãs, fruto do segundo casamento do pai, que já haviam tomado todas as providências; eram, nessa situação, as responsáveis por ele e impediam o acesso de Regina ao corpo do pai doente. Ela podia visitá--lo, mas ficou sem poder agir, cuidar, dar banho, comida, assumir o tratamento; enfim, diz: “fiquei de pés e mãos atados. De tanta revolta, decepção e tristeza, adoeci, tive muita febre e fui obrigada a voltar para o Rio”. Meses depois o pai falece e ela, com fortes dores nos pés e nas mãos, tem o diagnóstico de reumatismo infeccioso progressivo.

Na histeria, o modo de tornar inócua a representação (Vors-tellung) inconciliável é transpor para o corporal a soma de exci-tação, processo para o qual Freud propõe o nome de conversão.5 Regina tinha quinze anos quando o pai abandonou a mãe para casar-se com uma jovem de vinte e três anos. Recorda-se de que na ocasião lhe rogou a seguinte praga: “um dia, ele vai ficar doente e vai precisar de mim e aí eu me vingo”. Impedida de realizar tal “vingança”, fica de “pés e mãos atados”, significante que se repete por deslizamento ao suposto relacionamento entre sua filha e o pa-drasto, diante do qual ela não pode fazer nada porque a família a ameaça de internação, acusando-a de estar louca, tendo visões.

Há, nessa fantasia, uma clara analogia entre o abandono do pai e o abandono do amante. Uma recordação da infância dá sentido ao real do gozo que amarra suas mãos e pés: “Aos seis anos se coloca de-baixo da cama dos pais pela manhã enquanto eles tomavam banho, supostamente para dar-lhes um susto. Os pais voltam para a cama e ela, ao perceber que seu pai pede à mãe que toque seu pênis, fica imobilizada, sem conseguir respirar. Toma coragem e sai do quarto correndo, se tranca em outro cômodo, sente muita dor nas mãos e as vê ficaram negras de sangue pisado e com as veias muito dilatadas”.

O sintoma de conversão é a irrupção, o retorno no corpo do gozo parasitário que não foi tomado pelo gozo do sentido. Um sintoma de conversão se decifra como um sonho, e um sonho se decifra como uma escritura antiga. Regina decifra sua escritura: “eu amava meu pai, nunca lhe perdoei o abandono, sofri mais que minha mãe”. A conversão da qual se trata é situada na histeria em outra língua, na qual o dito falta e o gozo lhe é subtraído. A erotização das mãos na cena em que, embaixo da cama, escuta a intimidade sexual dos pais retorna quando ela não pode cuidar do pai, agora doente. “No sintoma – e é isso que quer dizer conversão –, o desejo é idêntico à manifestação somática. Ela [a manifestação somática] é seu lado direito, assim como ele [o desejo] é seu avesso”.6 Regina, em pou-

5. Freud, Las neuropsicosis

de defensa (1894/2001, p.

50).

6. Lacan, O Seminário,

livro 5: as formações do

inconsciente (1957-58/1999,

p. 348).

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55Stylus Rio de Janeiro nº 23 p. 51-58 novembro 2011

quíssimo tempo, livra-se das dores, suas mãos recobram as forças e vários movimentos, a fisioterapeuta se anima com a melhora dos pés.

Em uma segunda fase da análise, após o deciframento do sin-toma conversivo que põe fim ao “corpo torto”, surge um descon-forto que se revela em uma exacerbação em seu modo de vestir-se, levando-a a não poder sair de casa por não saber mais como “vestir um corpo de mulher”. Das cirurgias às roupas e adereços o sujeito tenta se situar na partilha dos sexos. Inicia-se uma fase em que as minissaias, decotes, roupas vermelhas e extravagantes, com broches adolescentes, cabelos loiríssimos em um rosto moreno, penteados com chapinha tentam compor um corpo que ela perdeu em sua vida erótica. A angústia, antes aplacada pelo sintoma de conversão, re-torna pela impossibilidade de recompor a mascarada histérica. O semblante fálico vacila: ela não tem mais poder perante a família, está aposentada e perdeu o lugar de mulher junto ao amante. O sem-blante que a mascarada histérica sustentava – e que para esse sujeito mantinha tanto o amante desejante quanto fazia existir a mulher por meio de um corpo jovem e sedutor – cai, dando lugar ao nada.

O caminho percorrido por meio do desfile de significantes e que vai do simbólico ao real mostra, segundo Lacan, “a verdadeira natu-reza do objeto a. Se o objeto a [...] [é] aparência de ser, é porque ele parece nos dar o suporte do ser”.7 A verdadeira natureza do objeto a está em relação com o ser. Deslocar o objeto a do real para o ser é ressaltar suas afinidades com o semblante. No fundo, o objeto a é a sombra que se faz passar pelo ser, e é o que chamamos o próprio ser. Regina, destituída como mulher, de um homem – na medida em que tal homem não pode mais fazer semblante de homem para ela – che-ga ao vazio de ser e não consegue percorrer o caminho do real ao ima-ginário como vemos no triângulo, já citado acima,8 para encontrar a realidade como efeito de real. A pouca realidade sustentada pelo falo resta enraizada na fantasia que nesse sujeito pode ser dita: um corpo jovem, sedutor e belo faz existir a mulher pelo olhar do outro.

Em uma terceira fase da análise, o corpo aparece despedaçado. Seus cabelos caem, obrigando-a a usar um turbante; suas pernas apresentam eritemas em forma de nós, o ventre incha de forma des-comunal de uma sessão para outra e, por fim, aparece uma irritação nas cicatrizes cirúrgicas que as deixa avermelhadas e sobre a qual os médicos não sabem o que dizer. Acrescente-se a esses fenômenos um discurso que gira em torno de um corpo que a cada semana tem em suas palavras um órgão “em crise”, fenômeno semelhante aos de um sujeito esquizofrênico.

Regina havia construído um corpo, tamponando a falta-ser com o semblante da coqueteria histérica. Quando cai do lugar de objeto olhado pelo Outro encarnado na figura do homem, perde o corpo – que aparece fragmentado, apresentando fenômenos aparentados aos

7. Lacan, O Seminário,

livro 20: mais, ainda... (1972-

73/1985 p., 128).

8. Ibid., p. 121.

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Mulher, semblante e corpo: entre o empuxo àmulher na psicose e o sintoma da coqueteria histérica

56

de uma psicose. Mas, como ensina Freud no texto “O inconsciente”,9 a diferença está em que o sujeito histérico, ao falar a língua dos ór-gãos, estes são afetados, enquanto que o sujeito esquizofrênico não apresenta nenhum distúrbio funcional no órgão e sim na linguagem.

A noção de semblante nos convida a reordenar certos fenômenos clínicos que permanecem isolados e a explorar o que há de comum entre imaginário e semelhante e o que os separa. Para o sujeito neuró-tico, a relação ao semelhante amarra o semblante e a sensação de ter um corpo: o semblante está amarrado ao funcionamento da fantasia e por isso permite ao sujeito se reencontrar e poder ter um corpo. Para o esquizofrênico, o significante opera no real e o sujeito não tem um corpo para responder. A feminização psicótica, com o empuxo-à-mu-lher, distingue-se da posição feminina e da coqueteria histérica na medida em que na neurose o feminino se inscreve no não-todo fálico.

Em Regina, as agressões ao corpo cessam, a relação com a filha e netas se recompõe e ela faz outra conversão, desta vez financeira: cobra do ex-amante uma gorda indenização pelos 35 anos em que passou quieta sendo a outra. O ex-amante acaba cedendo e lhe dá uma soma em dinheiro que, aliada ao que ela já havia amealhado, a torna em suas palavras, “uma mulher rica e poderosa”. Com o dinheiro Regina retorna ao lugar de ser o objeto precioso olhado pelo Outro: ela monta uma casa de show em uma cidade pequena. Despede-se da análise com um “agora sim, sou rainha; velha, mas rainha”, cumprindo o vaticínio do significante que aparece no so-nho transferencial. Dessa maneira recompõe para si uma realidade sempre ficcional, posto que é efeito do real. Recompõe ainda um semblante e constrói um novo sintoma, com o qual pode sustentar sua posição subjetiva.

Referências bibliográficasFREUD, S. (1893). Sobre el mecanismo psíquico de fenómenos histéricos.

In: Obras completas, vol. III. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 2001.FREUD, S. (1893-95). Estudios sobre la histeria (Breuer y Freud). In:

Obras completas, vol. II. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 2001.FREUD, S. (1894). Las neuropsicosis de defensa (Ensayo de una teo-

ría psicológica de la histeria adquirida, de muchas fobias y repre-sentaciones obsesivas, y de ciertas psicosis alucinatorias). In: Obras completas, vol. III. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 2001.

FREUD, S. (1909 [1908]). Apreciaciones generales sobre el ataque histérico. In: Obras completas, vol. IX. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 2001.

FREUD, S. (1915). El inconsciente. In: Obras completas, vol. XIV. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 2001.

9. FREUD, O inconsciente

(1915/2001).

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57Stylus Rio de Janeiro nº 23 p. 51-58 novembro 2011

LACAN, J. (1953a). Função e campo da palavra e da linguagem em psicanálise. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1998.

LACAN, J. (1953b). Discurso de Roma. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 2003.

LACAN, J. O seminário, livro 5: as formações do inconsciente (1957-1958). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1999.

LACAN, J. O seminário, livro 14: A lógica da fantasia (1966-1967). Inédito.LACAN, J. (1970). Radiofonia. In: Outros escritos. Rio de Janeiro:

Jorge Zahar Editor, 2003.LACAN, J. O seminário, livro 20: mais, ainda... (1972-1973). Rio

de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.LACAN, J. (1974). A terceira In: Intervenciones y textos. Buenos Ai-

res: Manantial editores, 1988.LACAN, J. O seminário, livro 23: o sinthoma (1975-1976). Rio de

Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.

ResumoLacan situa o conceito de semblante sobre a via que vai do simbólico ao real, porta de entrada para sua última elaboração teórica consagrada à clínica dos nós. Partin-do em busca do real, o simbólico encontra o semblante, encontra o ser e fracassa justo por não reconhecer esse fracasso. O caso, ao qual chamei Regina, ilustra tal fra-casso: o sujeito em busca de se fazer existir como mulher na relação sexual que não existe, encontra no parceiro o abismo próprio de sua falta-ser. Regina, apesar da profu-são de fenômenos que retalham seu corpo, é um sujeito neurótico. O caso permite observar a distinção entre a feminização psicótica com o empuxo-à-mulher e a po-sição feminina que, para esse sujeito, apresenta-se como a coqueteria histérica, na medida em que na neurose o

feminino se inscreve no não-todo fálico.

Palavras-chaveSemblante, corpo-mulher, histeria, sintoma.

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Mulher, semblante e corpo: entre o empuxo àmulher na psicose e o sintoma da coqueteria histérica

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AbstractLacan situates the concept of semblance on the line that goes from the symbolic to the real, gateway to his last theoretical elaboration devoted to the clinic of knots. Departing in pursuit of the real, the symbolic finds the semblance, finds the being and fails for not recognizing that failure. The case which I called “Regina” illustrates this failure: the subject in the quest for making oneself exist as a woman in a sexual relationship that does not exist, finds in her partner the abyss of his own lack-of--being. Despite the profusion of phenomena that chop her body, Regina is a neurotic subject. The case allows us to observe the distinction between the psychotic fe-minization with the “push towards woman” and the fe-minine position, which for this subject, presents itself as the hysterical coquetry to the extent that in neurosis the feminine falls into the not-all phallicto the extent that in

neurosis the feminine falls into the not-all phallic.

KeywordsSemblance, body-female, hysteria, symptom.

Recebido09/02/2011

Aprovado10/03/2011

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59Stylus Rio de Janeiro nº 23 p. 1-164 novembro 2011

trabalho crítico com os conceitos

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61Stylus Rio de Janeiro nº 23 p. 61-68 novembro 2011

Alíngua histérica

Jairo Gerbase

Na introdução do caso do “homem dos ratos”, Freud afirma que:

A linguagem de uma neurose obsessiva, ou seja, os meios pelos quais ela expressa seus pensamentos secretos, presume-se ser apenas um dialeto da linguagem da histeria; é, porém, um dialeto no qual teríamos de poder orientar-nos a seu respeito com mais facilidade de vez que se refere com mais proximidade às formas de expressão adotadas pelo nosso pensamento consciente do que a linguagem da histeria. Sobretudo, não implica o salto de um processo mental a uma inervação somática — conversão histérica — que jamais nos pode ser totalmente compreensível.1

Esta relação entre a língua e dialeto pode ser estendida às demais formas da neurose, inclusive à paranoia, se tomarmos por referência o caso de Cecília no qual Freud afirma que:

[...] a histeria tem razão em restaurar o significado original das pa-lavras ao retratar suas inervações inusitadamente fortes. Com efeito, talvez seja errado dizer que a histeria cria essas sensações através da simbolização. É possível que ela não tome em absoluto o uso da língua como seu modelo, mas que tanto a histeria quanto o uso da língua extraiam seu material de uma fonte comum...2

Quer dizer que não apenas a histeria, a obsessão, a fobia e a paranoia, mas a própria língua faz uso da alíngua ou, como diria Lacan, o objeto da linguística não é alíngua, mas alíngua.

1. FREUD, Notas sobre

um caso de neurose obsessiva

(1909/1976, v. X).

2. FREUD, Estudos sobre

histeria (1893-95/1976).

HISTERIA

OBSESSÃO

LÍNGUA

DIALETO

DISCURSO

FORMA

Page 64: Stylus 23 - Varios

Alíngua histérica62

Se me for objetado que Freud também destacou acima que o pensamento obsessivo é mais próximo do pensamento consciente, ou que Lacan denominou a neurose obsessiva de o princípio da consciência,3 mesmo que me agrade a ideia de elevar a obsessão à categoria de uma neurose exemplar, refutaria que ainda assim não faz discurso: não dizemos, a rigor, discurso obsessivo.

Uma terceira referência a propósito da dominância de alíngua histérica sobre o dialeto das demais formas de sintoma pode ser encontrada na fórmula 9 do artigo Fantasias histéricas e sua relação com a bissexualidade: “Os sintomas histéricos são a expressão, por um lado, de uma fantasia sexual inconsciente masculina e, por outro lado, de uma feminina”.4

Trato esta fórmula como um teorema e faço sua demonstração traduzindo fantasia sexual inconsciente masculina, primeiramen-te por significação fálica e, em seguida por gozo fálico [JФ], posto que o gozo fálico é aquele que toma por referente (ou significa-ção – Bedeutung) o falo; por outro lado, traduzo a fantasia sexual inconsciente feminina por significação tórica e, em seguida, por gozo do Outro [JȺ], posto que o gozo do Outro é aquele que toma por referente o furo e que se pode mostrar seja através do símbolo do conjunto vazio [Ø] ou da Impossibilidade da Relação Sexual [IRS] ou ainda do objeto a.

Freud termina este artigo afirmando que:

No tratamento psicanalítico é extremamente importante estar preparado para encontrar sintomas com significado bissexual. As-sim não ficaremos surpresos ou confusos se um sintoma parece não diminuir, embora já tenhamos resolvido um dos seus significados sexuais, pois ele ainda é mantido por um, talvez insuspeito, que pertence ao sexo oposto. No tratamento de tais casos, além disso, podemos observar como o paciente se utiliza, durante a análise de um dos significados sexuais, da conveniente possibilidade de cons-tantemente passar suas associações para o campo do significado oposto, tal como para uma trilha paralela.5

3. LACAN, O Seminário,

livro 24, L’ insu-que-sait de

l’une-bévue s’aile à mourre

(17/5/1977/Inédito).

4. FREUD, Fantasias

histéricas e sua relação com a

bissexualidade (1908/1976).

5. Ibid.

ALÍNGUAHISTÉRICA

HISTERIA

LÍNGUA

LÍNGUA

DIALETO

DISCURSO

FORMA

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63Stylus Rio de Janeiro nº 23 p. 61-68 novembro 2011

O significado bissexual do sintoma histérico, que nesta fórmu-la é indicado como sintoma completo, como trabalho acabado, donde seu valor de alíngua oficial, devemos traduzir por significa-do assexual, posto que sabemos que a outra parte da sexualidade não pode se escrever, não havendo por isto relação.

Quarta referência, desta vez em Lacan:

[...] Esse dizer provém apenas do fato de que o inconsciente por ser ‘estruturado como uma linguagem’, isto é, como alíngua que ele habita, está sujeito à equivocidade pela qual cada uma delas se distingue. Uma língua entre outras não é nada além da integral dos equívocos que sua história deixou persistirem nela. É a veia em que o real – o único, para o discurso analítico, a motivar seu resultado, o real de que não existe relação sexual – se depositou ao longo das eras...6

Citação que nos autoriza a atualizar o inconsciente estruturado como uma linguagem no inconsciente real estruturado como alíngua.

Prefiro traduzir lalangue por alíngua e não por lalíngua, por-que apesar de a segunda evocar a lalação, não permite o equívoco que a primeira conserva.

À objeção de que o inconsciente é estruturado como uma lin-guagem e de que a alíngua não é uma estrutura deve-se responder afirmando que o inconsciente real estruturado como alíngua cor-responde à ideia do inconsciente como aluvião dos mal-entendi-dos da língua.

O discurso histérico

Passemos ao discurso histérico, que escrevemos desse modo e podemos ler de várias maneiras. Vamos ler esse matema tal como Lacan o leu no texto sobre o sentido.7

6. LACAN, L’Étourdit,

(1972/2003, p. 492). Ver

também Thesaurus: lalíngua

[Lalíngua nos seminários,

conferências e escritos de

Jacques Lacan, organizado

por Dominique Fingermann

e Conrado Ramos. Stylus 19].

7. LACAN, Introdu-

ção à edição alemã de um

primeiro volume dos escritos

(1973/2003, p. 550).

S

a

S1

S2

Σ

DISCURSO HISTÉRICO

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Alíngua histérica64

Existe uma clínica. Ela é, inclusive, anterior ao discurso analítico, e se o discurso analítico lhe trouxe alguma luz, isso ainda é preciso ser demonstrado. A clínica é mais antiga. O que é uma clínica? Não po-demos dizer, só há uma estrutura clínica, a estrutura de linguagem, a estrutura significante, que escrevemos [S(Ⱥ)], porque isso não é uma clínica. A clínica psicanalítica é o que se diz em uma psicanálise.

Mesmo se deduzo da afirmação, da Bejahung e da não-afirmação, da Verwerfung, da primeira afirmação e da primeira não-afirmação, nesse nível ainda não há uma clínica, porque estamos no nível da gênese do julgamento, e nesse nível ou admito ou expulso, nesse nível que deduzo da estrutura de linguagem e que chamo de estrutura do sintoma.

Creio que é por esta razão que Lacan afirma que existe uma clínica no nível das formas do sintoma. Uma clínica depende das formas de sintoma. É preciso que o sintoma tome forma, configura-ção, para que se possa dizer: existe uma clínica.

É necessário que o sintoma tome a forma que convém à sua estrutura para que possamos falar de clínica. Portanto, a clínica é das formas do sintoma, das formas neuróticas do sintoma, que po-demos escrever como [Σn] e que sabemos que resulta da estrutura do recalque, ou das formas que podemos escrever como [Σp], do sintoma psicótico, que é outra forma do sintoma e que depende da estrutura da foraclusão ou da holófrase.

A holófrase precede a frase. É uma coalescência dos S1S2 da frase que suprime o intervalo S1→S2 próprio da neurose, que também se pode escrever como S1ΣS2 e funciona como Um que vai da debili-

S(Ⱥ)

AFIRMAÇÃOFORACLUSÃO DO(Ⱥ) [HOLÓFRASE]

RECALQUE DESMENTIDO FORACLUSÃODO NP

NEUROSE PERVERSÃO PSICOSE

HisteriaObsessão

Fobia

MasoquismoEscopo�liaFetichismo

ParanoiaEsquizofrenia

Elação

A ESTRUTURADE LINGUAGEM

AS ESTRUTURASDO SINTOMA[ESTRUTURAS

CLÍNICAS]

AS FORMASDO SINTOMA

[TIPOS CLÍNICOS]

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65Stylus Rio de Janeiro nº 23 p. 61-68 novembro 2011

dade à psicose. Alíngua é uma holófrase. É um jouis-signes distinto da mensagem articulada. Um é do simbólico o outro é do real. Um é pré-verbal, o outro é pré-linguagem.8

Podemos partir de [S(Ⱥ)] e deduzir daí o discurso histérico; isso torna possíveis as formas histérica, obsessiva e fóbica do sintoma.

Em um esquema como esse, temos, num primeiro nível, a estru-tura da linguagem, do significante e, num segundo nível, a estrutu-ra do sintoma, que é, por exemplo, o discurso histérico.

Hoje, vou dizer que o discurso histérico é a estrutura do sintoma por excelência, dado que esse discurso operou do lado da afirma-ção primordial, operou negando essa afirmação de modo veemen-te, afirmando: tenho horror de saber disso, que é o que se chama de mecanismo do recalque e que permite constituir a estrutura do sintoma que atinge um discurso, o discurso histérico, do qual po-demos deduzir diversas formas de sintoma.

De acordo com essa concepção, a obsessão e a fobia deveriam ser consideradas como formas do discurso histérico, ou tipos de sinto-ma que resultam da estrutura do recalque. Dessa maneira, gostaria de elevar o discurso histérico à estrutura de todo sintoma ou, pelo menos, à estrutura de todo sintoma neurótico e fazer da obsessão e da fobia formas do sintoma histérico.

Dizer que o sintoma obsessivo é uma forma do discurso histérico é, no léxico de Freud, dizer que a obsessão é um dialeto da histeria, ou que é uma forma inacabada do sintoma. Poderíamos usar o léxico de Joyce e dizer que o sintoma obsessivo é um “Work in progress”, um sintoma em construção, um trabalho em andamento. O sintoma fóbico é também um “Work in progress”, dado que não sabemos se ele vai se concluir em um sintoma histérico, em um sintoma obsessivo, ou se vai permanecer, todavia, como um sintoma fóbico.

Podemos estender este argumento ao extremo para poder dizer que, inclusive a paranoia, uma vez colocada no dispositivo analíti-

8. SOLER, O “corpo

falante” (2010, p. 27).

LÍNGUA OBSESSÃO FOBIA

DISCURSODO ANALISTA

DISCURSOHISTÉRICO

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Alíngua histérica66

co, isto é, uma vez operada a partir do discurso do analista, deve ser hystorizada ou histerizada a fim de se tornar sintoma analítico.

Isto parece contrariar o conceito de estrutura clínica, a ideia de que as estruturas clínicas não são intercambiáveis. Porém, atenção: não disse que a histeria pode virar paranoia, nem mesmo disse que a paranoia pode virar histeria; disse que o paranoico pode historizar seu discurso, posto que a paranoia é igualmente um fato de discurso. O paranoico continuará paranoico, porém com um discurso histeri-zado, historizado. Isto, certamente implicará uma estabilização.

Talvez possamos tomar como exemplo de sintoma em constru-ção o caso do Índio. Trata-se de uma “personalidade” anancástica. Um estudante de engenharia ambiental que se preocupa desde já em proteger o ambiente, por exemplo, pelo reaproveitamento da água suja para a descarga. Suas máximas: o homem destrói o am-biente; o sol vai esfriar; o índio já era artista muito antes de Tar-zan... Com quatro anos de idade perguntou à sua mãe: e quando a água do mundo acabar? Ela respondeu: não vai acabar. Ele repli-cou: como não vai acabar, se todo mundo usa a água? Desenvolveu uma inibição escopofílica [fobia social] que lhe impôs um atraso escolar considerável, uma procrastinação. Para me explicar, diz que era uma criança tão hiperativa, que certa vez seu pai foi à escola lhe obrigar a pedir desculpas à professora e aos colegas; morreu de vergonha. Seu pai gostava de lhe expor ao ridículo: vestir-lhe de pa-lhaço com a cara lambuzada em festas juninas; em um carnaval lhe vestiu uma fantasia de índio, sem roupas, sob o argumento irônico de que: índio anda nu. De modo que acredito que esta fixão de gozo determinou tanto seu sintoma como sua escolha vocacional.

DISCURSODO ANALISTA

DISCURSOHISTÉRICO

HISTERIA OBSESSÃO FOBIA PARANOIA

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67Stylus Rio de Janeiro nº 23 p. 61-68 novembro 2011

Referências bibliográficasFREUD, S. (1893-1895). Estudos sobre a histeria. Trad. sob a di-

reção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1976. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sig-mund Freud, vol. II).

FREUD, S. (1908). Fantasias histéricas e sua relação com a bissexu-alidade. Trad. sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1976. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológi-cas Completas de Sigmund Freud, vol. VIII).

FREUD, S. (1909). Notas sobre um caso de neurose obsessiva. Trad. sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1976. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. X).

LACAN, J. O Seminário – livro 24: L’ insu-que-sait de l’une-bévue s’aile à mourre. (1977) Inédito.

LACAN, J. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.SOLER, C. O “corpo falante”. Caderno de Stylus. Rio de Janeiro:

EPFCL-Brasil, 2010.

Page 70: Stylus 23 - Varios

Alíngua histérica68

ResumoSob o título de alíngua histérica, escrita com uma só pa-lavra como propõe Lacan, gostaria de justificar nossa hi-pótese de trabalho segundo a qual o campo das neuroses, campo do inconsciente real, é uma espécie de território onde domina uma língua oficial – alíngua histérica – da qual as outras formas de sintoma, especialmente a forma

do sintoma obsessivo, correspondem a um dialeto.

Palavras-chaveAlíngua, discurso histérico, inconsciente real.

AbstractsUnder the title lalange hysterical, written with a single word as proposed by Lacan, I would like to justify our working hypothesis in which the field of neuroses, field of real unconscious, is a kind of land where dominates an official language – lalange hysterical – in which other forms of symptom, especially a form of obsessive symp-

tom, correspond to a dialect.

KeywordsLalangue, hysterical discourse, real unconscious.

Recebido15/02/2011

Aprovado06/03/2011

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69Stylus Rio de Janeiro nº 23 p. 69-79 novembro 2011

A Prova do sintoma:que metáfora? que letra?

Sidi Askofaré

Os binários palavra/ escrita e metáfora/ letra não se impõem a nós apenas devido à lealdade momentânea de Lacan ao estrutura-lismo. É o próprio dispositivo da psicanálise que os convoca – pela regra da associação livre, pela operação de deciframento das for-mações do inconsciente e pela interpretação – e é a própria teoria do inconsciente que os supõe. E isso, desde Freud. Basta relembrar seu binário representação de coisa/ representação de palavra, os Wahrnemungszeichen (traços de percepção), sua hipótese da dupla inscrição etc., indo até a articulação explícita, feita por Lacan, da estrutura de linguagem do inconsciente. Como nós sabemos, uma insistência inicialmente marcada sobre a “função da palavra” antes de passar a destacar a “função de escrita”.1

Mas acontece que nós não investimos os temas e conceitos de nossa disciplina todos da mesma maneira, pois eles se inscrevem na história da nossa formação e de nossa relação com a psicanálise. Devo dizer que, de minha parte, foi pela via do traumatismo que se deu para mim o encontro com esta questão. O que suscitou este “trauma”? A leitura, bem no início de minha frequentação aos tex-tos analíticos, de uma revisão publicada na revista da E.F.P., Scili-cet, da obra de Serge Leclaire: Psicanalisar.

Eu lhes apresento exatamente o que o autor do relato escreveu ao final de sua análise do primeiro capítulo. Na verdade, parece bastar para desenvolver, sem nenhum outro processo, o restante da obra sobre a teoria de um inconsciente organizado pela letra. “Um só e mesmo texto, ou melhor, uma só e mesma letra, constitui e representa, simultaneamente, o desejo inconsciente.”2

Ao ouvinte desatento, continua o autor, a fórmula pode parecer homogênea àquelas de Lacan, quando ele diz, por exemplo, que o inconsciente é estruturado como uma linguagem, sua “extrema singularidade”, para dizer como o autor, àquilo que se determina como efeito de uma estrutura, aquela do significante.

Mas basta seguir as voltas e meandros que a teoria da letra em Le-claire impõe, suas consequências práticas, para perceber que estamos em terreno estranho e não mais nos surpreendermos com o fato de que o próprio conceito de significante tenha sido foracluído da obra.3

1. Lacan, cf. Seminário 18

e, sobretudo, Seminário 20.

2. Leclaire, Psychanaly-

ser. Un essai sur l’ordre de

l’ inconscient et la pratique de

la lettre (1968/cf. o início do

terceiro capítulo). 

3. Psychanalyser. op. cit.,

p. 374.

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A Prova do Sintoma: que metáfora? que letra?70

Preciso dizer que a leitura desse texto, e o que será confirmado pela de Lituraterra – sem falar nas controvérsias e polêmicas em torno dos textos de Derrida e de seus “alunos” – me inspiraram por um bom tempo certa desconfiança da categoria de “letra”?

Fechemos este parêntese epistemo-biográfico para abordar mais diretamente a questão: “o sintoma: metáfora ou letra?”.

1.Mas pode-se abordar diretamente uma questão como esta? Ou

então a resposta irrompe, lacônica: o sintoma é metáfora e letra, isto é, significante e letra. Por que então distingui-los, se esta discrimi-nação é, sem consequências, sobre a ideia a ser feita do sintoma e, logo, da psicanálise?

Daí o leve deslocamento que propus no título de minha inter-venção, ao acrescentar: que metáfora? que letra? Subentendido: de que metáfora e de que letra falamos? Mas também: como o sintoma pode ser ao mesmo tempo tanto uma quanto outra? E por fim: ele é uma e outra, ou primeiro uma e depois outra?

Imagino que se Lacan dedicou tanto tempo a “desembaraçar” a questão do significante – logo, da metáfora – e da letra, é exatamente porque, por um lado, as definições extra-analíticas desses dois ter-mos lhe pareceram insuficientes, e por outro, sua concepção de saber analítico não é uma justaposição de conceitos predefinidos, mas uma ordenação que visa casar-se o mais próximo possível com a lógica da experiência. Ele o fez por meio dos quatro conceitos fundamentais da psicanálise (inconsciente, repetição, transferência, pulsão). Pare-ceria que seria o mesmo para o sintoma enquanto metáfora e como letra. O que se depreende é que é a clínica psicanalítica do sintoma que lança luz sobre a metáfora e a letra – muito mais que o inverso.

Comecemos pela metáfora do sintoma. Sabemos que essa não é a conceitualização inicial, pois o sintoma, no Discurso de Roma, era definido apenas como “o significante de um significado recalca-do da consciência do sujeito”.4 Estrutura de linguagem certamente, mas nenhuma metáfora, no entanto, embora o próprio sintagma freudiano de “formação substitutiva” já o dissesse à sua maneira. Será preciso então o trabalho considerável de Lacan sobre o artigo de Roman Jakobson, Dois aspectos da linguagem e dois tipos de afasia, a reconsideração da metáfora a partir da condensação freudiana e sua aplicação à função paterna, para que Lacan chegue a afirmar ao final de sua Instância da Letra… que “o sintoma é metáfora” assim como ele sustentará no ano seguinte que “o pai é uma metáfora”.5

Para o sintoma, assim como para o pai, é a metáfora que vai ser-vir de definidor. Alias, não sem consequências quanto à ideia que se faz de um e de outro, e isso até sua quase identificação ao final: “o pai é um sintoma” e o sintoma pode ligar, amarrar e nomear. Mas no

4. Lacan, Função e

campo da fala e da linguagem

(1953/1998, p. 282).

5. Lacan, As Formações do

Inconsciente (1957-58/1999,

p. 180).

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ponto em que estou, isso não é o mais importante. O mais impor-tante é que existe uma profunda solidariedade entre isso que «pro-mete» a psicanálise – “a experiência de uma análise entrega àquele que chamo de analisante (…) o sentido de seus sintomas”6 –, o enig-ma do sintoma, a operação de decifração e a estrutura da metáfora.

Sem dúvida que o sintoma pode, no início, ser abordado como um signo – “Psicanalista, é do signo que estou advertido”7 –, mas este último não lhe fornece, forçosamente a estrutura, pois não im-plica necessariamente o recalcado, logo, a verdade.

É por isso, talvez convenha lembrar, que a doutrina do sintoma, em Lacan, se articula em torno de duas proposições principais: 1) o sintoma é metáfora (= verdade); 2) o sintoma é gozo (= real).

Que o sintoma seja uma metáfora, trata-se de uma reincidência ou da estrita aplicação à questão do sintoma de tudo o que Lacan elaborou entre 1953 e 1964, sob o título de uma lógica do signi-ficante. Essa tese tão «canônica» e que parece tão evidente é, no entanto, ao menos em parte, problemática.

Relembrarei brevemente que ela procede de toda uma série de reduções e de equivalências: redução do sintoma à formação subs-titutiva e ao sintoma histérico (acontecimento de corpo); redução da substituição à condensação; redução da condensação à metáfora e mais exatamente à metáfora poética; equivalência entre processo metafórico e mecanismo do recalque; equivalência entre recalcado e verdade. É sob esse fundo que convém decifrar e reavaliar a posição segundo a qual o sintoma é metáfora, e na qual a formulação mais precisa me parece ser aquela formulada em A Instância da Letra no Inconsciente ou a razão desde Freud:

O mecanismo de duplo gatilho da metáfora é o mesmo em que se determina o sintoma no sentido analítico. Entre o sig-nificante enigmático do trauma sexual e o termo que ele vem substituir numa cadeia significante atual passa a centelha que fixa num sintoma – metáfora em que a carne ou a fun-ção são tomadas como elemento significante – a significação, inacessível ao sujeito consciente onde ele pode se resolver.8

Vou fazer três comentários antes de tentar cernir melhor o que recobre essa identificação do sintoma à metáfora e suas consequên-cias, tanto clínicas quanto doutrinais.

1) É a «metáfora poética» que constitui a operação significante homogênea à formação do sintoma como «efeito de criação», mas ao revelar um fazer, ela é suscetível de se desfazer. Aqui, eu apenas tomo em consideração a correção que Lacan aporta à sua teoria da metáfora em Radiofonia, integrando assim a crítica feita por J.-F. Lyotard em O Trabalho do Sonho Não Pensa.9

6. Lacan , Introdução à edi-

ção alemã de um primeiro vo-

lume dos Escritos (1973/2003,

p. 553).

7. Lacan, Radiofonia

(1970/2003).

8. Lacan, A instância da

letra no inconsciente ou a ra-

zão desde Freud (1957/1998,

p. 522).

9. Lyotard, O Trabalho do

Sonho Não Pensa (1971, pp.

239-270).

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A Prova do Sintoma: que metáfora? que letra?72

2) A tese do sintoma como metáfora concede um privilégio ao sintoma histérico e ao modo histérico de formação do sintoma: compromisso, recalcamento por amnésia e conversão somática.

3) A noção de substituição significante merece ser precisada: pare-ce que Lacan entende por substituição significante não a substituição de um significante por um outro, mas a substituição de significante a significante; o termo significante não remetendo aqui a uma uni-dade morfológica estrita e identificável à palavra, mas subsumindo o material da linguagem como indo do fonema à locução composta.

Aliás, uma referência simples: a análise proposta por Freud, da tosse de Dora, nos permite apreender os diferentes valores da propo-sição teórica de Lacan, segundo a qual o sintoma é uma metáfora:

1) Primeiramente, ele permite desprendermo-nos da ideia ingê-nua segundo a qual é o próprio significante recalcado que retornará para se erigir em sintoma; dito de outro modo, os fatores dinâmicos e econômicos estão sempre presentes na formação do sintoma por meio do contrainvestimento e da censura, notadamente.

2) Pelo mecanismo da conversão somática, modo mais puro da metáfora do sintoma; parece que o sintoma histérico opera segundo um novo uso, um investimento secundário de um sintoma ordiná-rio, pré-existente, que fará as vezes de envelope formal.

3) Este envelope conterá uma mensagem – cifrada pelo trabalho do inconsciente, daí a opacidade subjetiva do sintoma – e um gozo, uma satisfação paradoxal. Desta maneira, e é isso que convém sublinhar, a mensagem do sintoma, seu sentido – de fazer aparecer a significação fálica, de evocar (-ϕ) – é ela mesmo denúncia de uma falta de gozo.

A clínica freudiana nos ensina, portanto, que é ao mesmo tempo por sua ligação com o corpo, sua determinação por uma fantasia de conteúdo sexual e por seu uso na relação do sujeito com o Outro que o sintoma consegue, ou mesmo atinge um gozo substitutivo.

Deduzo daí, então, que a metáfora do sintoma não deve ser en-tendida como pura e simples substituição significante. Talvez sua melhor definição, aquela que melhor se ajusta à experiência, seja aquela desenvolvida por Lacan em 1960: “O sintoma é o retorno, por via de substituição significante, do que se encontra na ponta da pulsão como seu alvo”.10

2.Passo agora à letra. Não retomarei aqui a oposição formal entre

significante e letra. Outros já o fizeram, e muito bem. Duas páginas – da 128 a 130 de A Obra Clara – bastaram para que J. C. Milner o conseguisse. O único problema é que ele não fez referência ao sin-toma em parte alguma, e que toda sua elaboração, muito astuciosa, promove apenas a função da letra na teoria do matema.

Tendo em vista que me interesso menos pela função de transmis-

10. Lacan, A ética da

psicanálise (1959-60/1997,

p. 139).

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são da letra e mais por sua função de gozo do inconsciente, deter-me--ei inicialmente no movimento que faz Lacan passar do significante ao signo, e do signo à letra, no refinamento de sua teoria do sintoma.

Afirmar que, para Lacan, a clínica do sintoma, e de uma manei-ra mais geral, a clínica analítica não é uma clínica do significante, mas uma clínica do signo pode soar paradoxal... Desde o Discurso de Roma, e de maneira mais decisiva desde A Instância da Letra..., a orientação lacaniana se definiu e se propagou como uma lógica do significante e de seus efeitos. Podemos e devemos, tendo em vista que ela é fundadora, silenciar sob o fato de que essa teoria é, se não recusada, de qualquer maneira modificada, alterada?

A posição de Lacan, em 1970, é inequívoca, quando ele escreve em Radiofonia.

Para começar, a pretexto de eu haver definido o significante como ninguém ousou fazê-lo, não se vá imaginar que o signo não seja as-sunto meu! Muito pelo contrário, é o primeiro, e será também o últi-mo. Mas, para isso, faz-se necessário este desvio. (...)

Como psicanalista, é pelo signo que sou alertado. Se ele me assinala o algo que tenho de tratar, sei, por ter encontrado na lógica do signi-ficante um meio de romper com o engodo do signo, que esse algo é a divisão do sujeito: divisão esta decorrente de que o outro é aquele que cria o significante, pelo que não pode representar um sujeito senão por ele só ser um do outro.11

Se Lacan retorna ao signo para aí ordenar o princípio de leitura do sin-toma, é porque apenas o signo permite pensar a conexão do significante, do sujeito e do gozo, por ser o produto fora-do-discurso de uma cifração.

É essa ideia de que o inconsciente cifra o gozo, ou mais radical-mente, que o gozar se dá na cifração – o que certamente não exclui gozar também da decifração (cf. a duração das análises) – que con-duzirá Lacan a uma distinção fina e sutil entre signo e significante, distinção cujo fundamento reside no seguinte: a bateria do signifi-cante é fornecida na língua, face universal, enquanto que o signo é o próprio a cada um, já que ele é definível como um significante elevado ao mais-de-gozar, ou seja, um significante que um sujeito faz devir objeto para gozar dele, independentemente de seus efeitos de significado. Nós pressentimos aí que a letra não está longe... Daí se deduz que é a conexão do significante ao gozo – à libido, para falar de acordo com o léxico freudiano – que faz o significante cair como signo: signo de divisão, ou seja, do sujeito e, simultaneamente, signo de que isso goza. É o próprio estatuto do sintoma na clínica analítica.

O estado terminal desse sintoma, esse que chamamos sinthome ou letra, é o que resta desse signo ao fim do processo de sua decifra-ção, da liberação de seus efeitos de significado.

11. Lacan, Radiofonia

(1970/2003, p. 411).

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A Prova do Sintoma: que metáfora? que letra?74

Consideremos agora mais precisamente a questão da letra.A partir de 1970-71 – De um discurso que não seria do semblante

e Lituraterra – Lacan vai cada vez mais privilegiar a dimensão da letra, que inicialmente ele faz equivaler ao “retorno do recalcado”,12 a função do escrito em psicanálise. Durante muito tempo pensei que isso seria uma reação às teses de Derrida ou um eco aos trabalhos de Roland Barthes e/ ou de Sollers e seus amigos de Tel Quel. Hoje, me parece que a razão decisiva de um tal recentramento sobre a letra se deve à articulação cada vez mais rigorosa da clínica do fim de análise.

Nessa reorganização, um texto ocupa um lugar bastante estraté-gico: “Lituraterra”, que no volume dos Outros Escritos, vocês devem ter percebido, ocupa um lugar homólogo ao do Seminário da Carta Roubada nos Escritos. Dois textos sobre a letra, portanto!

Lituraterra desenvolve uma tese radical que vai contra a evidência fenomenológica segundo a qual a escritura não seria nada além da trans-crição do significante. Contra essa concepção é preciso afirmar que, se o significante se caligrafa, a escrita não é o decalque do significante.

Mas dessa vez Lacan discorda de Freud, de que a escrita seria uma impressão:

Se eu houvesse considerado aceitáveis os modelos articulados por Freud num Projeto em que ele abriu para si rotas calcadas na impres-são, nem por isso teria retirado metáfora da escrita, ela não é impres-são, a despeito do bloco mágico.

Quando tiro partido da carta 52 a Fliess, é por ler nela o que Freud pôde enunciar, sob o termo que forjou – WZ, Wahrnehmungszeichen – , como sendo o mais próximo do significante, numa época em que Saussure ainda não o havia reproduzido (do signo estoico).

Que Freud o escreva com duas letras prova tão pouco quanto eu que a letra é primária.13

Se a escrita não é nem decalque do significante, nem a impressão – a velha imagética do pedaço de cera – o que é, afinal, essa aplicação de caracteres sobre uma superfície que delas se faz memória? A escri-ta é ravinamento e rasura. Por ravinamento é preciso entender pre-cisamente a operação que transforma um estado do “real prévio”, a superfície da terra, devido ao transbordamento das nuvens. A rasura é de uma ordem bem diferente, já que se refere ao grafismo, no que ela pertence a um campo inseparável daquele da linguagem. Além disso, em sua referência ao apagamento, ao não-traço, ela é o próprio sujeito, já que só um sujeito pode operar nessa dimensão.

Linguística, liguisteria ou filosofia natural da linguagem? Sabe-mos que a experiência de sobrevoar a “Sibéria Soviética” por ocasião de sua viagem ao Japão foi determinante para o advento desta teoria da escrita de Lacan. A água que escorre das nuvens é tomada aqui

12. Lacan, ... Ou Pior

(1971/Inédito, lição de

15/12/1971).

13. Lacan, Lituraterra

(1971/2003, p. 19).

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como suporte para introduzir uma nova metáfora dos dois níveis que estruturam o campo da linguagem, pelo menos desde Saussure.

Assim, ele identifica as nuvens ao significante, ao semblante – o tema mesmo de seu Seminário de 1970-71 – e o ravinamento ao fenômeno do significado.

A metáfora do ravinamento, da chuva que ao cair sobre a su-perfície da terra faz efeito de escrita, é transposta tal e qual para o campo da linguagem.

Resta a questão: sobre qual real o significante faz ravinamento do significado? Em psicanálise é difícil conceber outro real que não seja o organismo, o vivente que serve de suporte à variável sujeito. Daí resulta que a função de escrita, na nova perspectiva aberta por Lacan, consiste em conectar o efeito de significado e o gozo; ela opera uma localização do gozo no nível do efeito de significado, ou seja, “realiza” isso que se deve chamar “ joui-sens”.14

Esta concepção de escrita como “ravinamento do significado” no real, no real da substância gozante, ao mesmo tempo em que coloca em evidência os limites do algoritmo saussuriano para dar conta da eficácia da linguagem na experiência analítica, mostra também o inconveniente de se recalcar ou foracluir isso que é do gozo, de se constituir, como toda disciplina científica, sobre o fundo de sua exclusão. Donde o recurso à categoria de discurso, que permite pen-sar simultaneamente as relações significantes e seus efeitos de gozo.

A escrita, direi eu, é isso por meio do que o efeito de discurso, no nível do significado, pode ser fixado.

Lacan, brincando com a homofonia, evoca a passagem do literal ao litoral. Na verdade, a letra “faz borda” entre o saber e o gozo, isto é, ela separa ao mesmo tempo em que conecta, como toda fronteira, por assim dizer. Uma tal localização da letra, entre saber e gozo, em vez do significado saussuriano, implica, no mínimo, que a escrita não seja primária. Mas se ela não é primária, é menos em termos de significante ou de palavra, que do discurso.

Por sinal, esta posição é claramente afirmada por Lacan, quando ele situa Serge Leclaire e Derrida quase no mesmo nível – Psicanali-sar e Da Gramatologia – , e em menor medida O Império dos Signos, de Roland Barthes, essas três obras constituindo os textos com os quais Lacan dialoga ou polemiza.

A posição de Lacan sobre a escrita é, portanto, ao mesmo tempo firme e sutil. Ela deve seu interesse e sua pertinência a isso que a in-venção da categoria de discurso (1970) movimenta nas coordenadas da questão da escrita. Além disso, as interrogações, os debates sobre a primariedade ou secundariedade da letra em relação ao significante deixam escapar o essencial. O que importa, na verdade, é o discurso, a decifração e a leitura, sem os quais a questão das relações entre sig-nificante e letra, a palavra e a escrita, nem mesmo fará sentido.

14. Jogo de palavras que

se perde na traducão para o

português e envolve o verbo

jouir (gozar) e sens (sentido).

Somadas, soam homófonas à

palavra francesa que designa

o gozo ( jouissance).

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A Prova do Sintoma: que metáfora? que letra?76

É essa doutrina da letra que, bem antes da introdução do para-digma borromeano, orientará a perspectiva de Lacan sobre o fim de análise e sobre os destinos do sintoma. É menos a decifração que a interpretação que lhe dá a chave, uma vez que a interpretação é a con-dição do gozo da letra à qual o processo analítico reduz o sintoma:

Sob a ponte Mirabeau, é verdade, assim como sob aquela de que uma revista que foi a minha se fez emblema, ao tomar emprestado essa ponte-orelha a Horus Apolo, sob a ponte Mirabeau, certo, corre o Sena primitivo, e a cena é tal que nela pode soar o V romano da quinta hora (cf. O Homem dos Lobos). Mas também só se goza com isso ao chover aí a fala de interpretação. 15

Daí deduzo que a letra, do ponto de vista que nos interessa, aquele da psicanálise, não é nem o signo, já que ele se decifra, nem o significante, já que ele significa, menos ainda o sentido, já que ele se lê. Radicalmente então a letra é isso que, do inconsciente, se goza!

Impossível seguir adiante. O pouco que eu pude evocar aqui basta para atestar que a abordagem lacaniana do sintoma consistiu num triplo movimento de redução, de orientação e, enfim, de ex-tensão do sintoma. Já desenvolvi isso em outro lugar.

Acrescentarei hoje apenas que, se isso que Lacan pôde elaborar do sintoma como metáfora, esclarecia perfeitamente a clínica freu-diana e a clínica da entrada em análise, já que ela articula a estru-tura do sintoma e a função do sujeito suposto saber, esta perspec-tiva torna-se um pouco “restrita” quando se trata de dar conta do sintoma na extensão mais ampla que lhe dará Lacan, notadamente quando ele fará de uma mulher, de uma criança, de uma obra, ou mesmo do psicanalista, um sintoma. Mas essa não é uma maneira de indicar que, passada a metáfora, resta o literal? O que conduz a uma concepção especificamente analítica da letra, que não é nem a da ciência, nem a da literatura, seja no nome do sintoma reduzido à sua pura função de gozo do inconsciente, do inconsciente desabo-nado do sujeito suposto saber!

Tradução: Lia Carneiro Silveira Revisão da tradução: Paulo Marcos Roma

15. Lituraterra, op. cit.,

p. 23.

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77Stylus Rio de Janeiro nº 23 p. 69-79 novembro 2011

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A Prova do Sintoma: que metáfora? que letra?78

ResumoNo centro do ensino de Lacan, a categoria do sintoma. Ao mesmo tempo, a noção clínica, o conceito teórico e o princípio ético. Se ele está presente do início ao fim no seu ensino, sua abordagem está longe de ser unívoca. Re-corre-se à estrutura de linguagem no seu primeiro classi-cismo, é como metáfora que inicialmente ele é apresenta-do; ao fim do percurso, é como letra, função de gozo do inconsciente, que ele é apresentado. Ora, metáfora e letra não se equivalem, sem mencionar que essa tensão atra-vessa o ensino de Lacan e os debates que ela suscitou. Por outro lado, ele não pode tratar de escolher simplesmente entre metáfora ou letra para isolar a estrutura e a fun-ção do sintoma. É do exame dessas numerosas questões levantadas por essa oposição e as indicações que levam ao fim da análise, que se ocupa a presente contribuição.

Palavras-chavesintoma, metáfora, letra, fim de análise

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AbstractIn the center of Lacan’s teaching, the category of symp-tom. At the same time, the notion of clinic, the theoreti-cal concept and the ethical principle. Even being present from the beginning to the end, Lacan’s approach is far from being unanimous. In its first classisism, language structure is taken into consideration  ; it i initially pre-sented as a metaphor; at the end of the trajectory, it is as letter, function jouissance of the uncounsious, that he pre-sents. Well, metaphor and letter do not equate with each other, not to mention that this tension crosses Lacan’s teaching and all debated it has generated. On the other hand, it is not a matter of simply choosing between me-taphor or letter in order to isolate the structure and the symptom’s function. It is from the examination of these numerous questions raised by this oposition and the indi-cations which make way to considerations about the end

of analysis, that this contribution is concerned about.

KeywordsSymptom, metaphor, letter, the end of analysis.

Recebido03/02/2011

Aprovado19/02/2011

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A certeza do final:identificação ao sintoma1

Silvana Pessoa

O que significa a “identificação ao sintoma”2 no final de análise? Se fosse apenas saber lidar com o sintoma de entrada, ou seja, aque-le sintoma-queixa do início, ou com um ato de resignação ou cansa-ço por não mais suportar a repetição – o que faz com que algumas pessoas busquem análise –, não precisaríamos publicar artigos, pois não haveria razão para existir esta revista e tampouco a psicanálise.

Certamente “metamorfoses” acontecem na direção da cura, como por exemplo: a passagem de um analisando ao “analisado”, no particípio3; a mudança do sofrimento do início à satisfação do final; de ter um sintoma e da incerteza do seu sentido à certeza do fim..., ou seja, distintas formas de mudanças. Entretanto, neste tra-balho, interessa-me prioritariamente abordar o fim deste processo pelo conceito tardio em Lacan de identificação ao sintoma, ou seja, como uma certeza adquirida no fim de um percurso de análise, uma possibilidade de poder dizer “esse sintoma sou eu”, sem pre-cisar pedir mais que ele se explique – um final de análise possível.

Para atingir este objetivo, tomarei por base os últimos seminá-rios de Lacan, nos quais ele demonstra esse fim com o estilo da escrita “joyciana”, e elegerei para reflexão a nossa versão “manoe-lesca” – com o intuito de verificar os sinais do fim que se observa na clínica cotidiana e interrogar, sem pretender responder, como alguém que já tenha atingido a certeza do sem-sentido do final, poderia ainda demandar: “o que isso quer dizer?”.

Reticências [...]

Uma pessoa só se dirige a uma análise, salvo algumas exceções, a partir de uma manifestação sintomática de sua divisão, que ameaça a sua unidade, ou seja, quando as identificações, modos de apreen-são da realidade imaginária, simbólica ou real, passam a não res-ponder ao sujeito.4 Todavia, todo sujeito busca uma análise porque crê no sintoma, crê que um S1 vai representá-lo para um S2, crê que o sintoma diz algo, que é decifrável, que tem um sentido que irá restaurar essa suposta unidade perdida.

1. Existe uma convenção

largamente utilizada no

Campo Lacaniano que

utiliza a grafia sinthoma

para tratar do sintoma

analisado e sintoma para

falar do sintoma-queixa do

início. Neste trabalho não

faço essa distinção, pois até

o momento não encontrei na

obra de Lacan uma referência

explícita a esse apotegma.

Entendo que Lacan quis

tratar o sintoma não mais

como patologia, mas sim

como a verdadeira identidade

do sujeito do inconsciente,

tal como a imagem e o

nome. Desse modo, um final

possível da análise é aprender

a lidar com seu sintoma, a

se identificar com ele. É o

que tentarei abordar neste

trabalho.

2. Lacan, O Seminário,

livro 24: L’ insu-que-sait

de l’une-bévue s’aile à

mourre (Inédito/lição de

16/11/1976).

3. Soler, O que Lacan dizia

das mulheres (2005, p. 189).

4. Gerbase, Complexo de

Lacan: RSI∑ (2004, p. 77).

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A certeza do final: identificação ao sintoma82

Nesse momento da clínica, podemos dizer que a noção de su-jeito representado por um significante para outro significante, em que, por definição, não é igual a si mesmo, condiz com a noção lacaniana de sintoma, definida nos anos 50 a partir do simbólico, como metáfora, mensagem dirigida ao Outro, primeiro classicis-mo lacaniano, que tinha por principal postulado: o inconsciente é estruturado como uma linguagem, com significantes e estrutura gramatical que participam do sentido.

Já nos anos 70, a noção de sintoma passou a ser definida pelo real. Anos marcados pelos matemas e desconstruções de linguagem, que caracterizaram o segundo classicismo de Lacan, que começa com o nó borromeano nos últimos seminários, particularmente de-pois do RSI, período da obra no qual o sujeito é identificado como um falasser, o inconsciente como aluvião de restos significantes sem sentido e o sintoma como tendo função de letra, portanto, “igual a si mesma”,5 contendo a dimensão de hieróglifo e do contrassenso.

No entanto, o caráter de “cifra” do sintoma – que pede decifra-ção –, ou seja, o caráter de signo do real do sintoma, está presente desde o início da psicanálise, quando Freud concebe que as histé-ricas reviviam no corpo um trauma impossível de ser simbolizado que deveria ser decifrado. Mesmo que posteriormente essa con-cepção fosse um pouco modificada com a introdução da noção de formação de compromisso ou como satisfação pulsional substituta, Freud propõe pensar o sintoma não mais como evento, mas como síntese entre o desejo e o recalque, não mais pautada num evento da realidade, mas na inadequação de um desejo.

Portanto, do sintoma de entrada como divisão do sujeito – uma mensagem que pede deciframento – ao sintoma de saída, como um signo do real em que não há sentido, que comporta a certeza do “não sei por que faço isso, mas não sei fazer de outro jeito”, – que põe fim às reticências do início, que abriam caminhos para novas significações, que não cessavam de se escrever e que eram necessárias, mas não suficientes –, contemplamos, na clínica, uma metamorfose do sintoma, que permite outro tipo de satisfação que examinaremos a seguir.

Passagem [metamorfose]

A queda das identificações, isto é, a quebra das certezas ao longo do percurso, vai deixando quem procurou a análise cada vez mais “em xeque”, sem saída, tal como um dos movimentos num jogo de xadrez, pois o modo de abordagem da realidade que anteriormente era satis-fatório passa a não servir mais. A destituição subjetiva – outro nome dado para essa “queda” – leva o sujeito a experimentar novas modali-

5. Quinet, A estranheza da

psicanálise: a Escola de Lacan

e seus analistas (2009, pp.

167-8).

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83Stylus Rio de Janeiro nº 23 p. 81-88 novembro 2011

dades de gozo, sujeito esse transformado pela análise, que “se definirá por uma nova relação tanto com a castração quanto com a pulsão”.6

Porém, ainda resiste e insiste um resquício de sentido inefável no sintoma, algo a que ele se vê “peado”. Em Freud, a última palavra sobre o final de análise aponta para “a insondável decisão do ser, armadilha do nosso destino, a lei do nosso devir”,7 quando diz que apesar de tudo ficar como era, quando a resistência impede qual-quer mudança, “consolamo-nos com a certeza de havermos propor-cionado ao analisado todo o estímulo possível para rever e modifi-car a sua posição diante desse fator”8 – do repúdio à feminilidade, uma parte do grande enigma do sexo. Lacan, por sua vez, define o final da análise da seguinte maneira:

É possível definir o fim da análise. O fim da análise é quando se deu duas voltas, isto é, quando se achou aquilo de que se está prisioneiro. Recomeçar duas vezes a volta em círculo certamente não é necessá-rio, basta que se veja de que se está cativo, e o inconsciente é isso. É a face de real [...] à qual se está peado. [...] A análise não consiste em ser liberado de seus sintomas [sinthomes], pois é assim que escrevo sin-toma [symptôme]. A análise consiste em que se saiba por que se está peado a ele. Isso se produz pelo fato de que há o simbólico. O simbóli-co é a linguagem. Aprendemos a falar e isso deixa traços. Porque isso deixa traços, isso tem consequências, que não é outra senão o sintoma [sinthome], e a análise consiste [...] em se dar conta de porque se tem esses sintomas [sinthomes]. De modo que a análise é ligada ao saber.9

Um saber paradoxal que junta dois termos aparentemente anti-nômicos: a identificação, que cria o mesmo, um estigma que marca o sujeito, passa a orientá-lo e assinala o seu caráter educável e sujeito à influência; e o sintoma que cria a diferença, que resiste às ordens do significante-mestre, é sempre rebelde à universalização e tem alguma coisa de real.10 A junção destes dois termos que se opõem como princípio de homogeneização só pode designar uma mudan-ça mais radical na maneira por meio da qual o sujeito se relaciona com o seu sintoma, que precisa ser definido.

A que, pois a gente se identifica ao fim da análise? Identificar--se-ia a seu inconsciente? É o que não creio, porque o inconscien-te permanece [...] o Outro. [...] Em que consiste essa situação que é a análise? Seria ou não se identificar [...] a seu sintoma? Propus que o sintoma pode ser o parceiro sexual. [...] Tomado nesse sen-tido, o sintoma é o que se conhece [...] melhor. [...] Conhecer seu sintoma quer dizer saber fazer com, saber desvencilhar-se dele, manipulá-lo. O que o homem sabe fazer com sua imagem cor-responde de algum modo a isto e permite imaginar a maneira

6. O que Lacan dizia das

mulheres, op. cit., p. 191.

7. Lacan, Formulações

sobre a causalidade psíquica

(1946/1998, p. 179).

8. Freud, Análise

terminável e interminável

(1937/1975, p. 287).

9. Lacan, O Seminário,

livro 25: O momento de con-

cluir (lição de 10/01/1978).

Tradução: Jairo Gerbase.

Comentário: Gerbase justi-

fica a sua tradução, dizendo

que Lacan queria dar uma

injeção de grego na língua

francesa assim como Joyce

fez com a língua inglesa; por

isso foi buscar a grafia antiga

da palavra sintoma.

10. O que Lacan dizia das

mulheres, op. cit., p. 192.

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A certeza do final: identificação ao sintoma84

como a gente se desvencilha do sintoma. [...] Saber lidar com (sa-voir y faire avec) seu sintoma, é isso o fim da análise.11

Identificação ao sintoma é isso, é o que o sujeito pode fazer de melhor, e não a identificação ao analista, como está implícito para os que se orientam pela psicologia do ego, ou seja, “sendo a norma-lidade assintomática pensada em termos de identificação, é isso que se busca restaurar no sujeito (...) restabelecer, no final, um efeito de identificação melhorada”.12 Nesta modalidade de tratamento, inde-vidamente chamado “analítico” – como se isso se tratasse de uma psicanálise – o analista é tomado como modelo, e a análise como uma segunda educação. Forma equivocada que, em vez de abalar as identificações, “retifica e reforça as marcas identificatórias deixadas pelo Outro. Para isso não seria necessário inventar a análise”.13

Ponto-final [ . ]

O sintoma do final de uma análise não é mais um sofrimento a ser removido, como aquele pedido pelo analisando na entrada, mas uma forma descoberta de gozar do inconsciente, que já estava lá desde antes e que o analisando “não sabia”. Dizendo de outra maneira, a identificação ao sintoma, “o modo mais particular de enlaçamento de um desejo e de um modo de gozo, bem como os feitos e desfeitos dos sujeitos (...) como Zorro, o justiceiro; Jack, o estripador; Joyce, o sintoma. Isso faz com que o sujeito tenha dois nomes próprios: no sentido comum do termo, seu patronímico (...) e seu nome reservado, o de seu sintoma,14 que fixa a sua identidade verdadeira, que registra esse gozo sem par, solitário; o “mas isso não”, caráter de impossível, após a vírgula do tudo.15

Alguns podem prescindir da psicanálise para descobrir seu nome reservado, seu modo de gozo. Joyce certamente prescindiu. Nada podemos dizer sobre Manoel de Barros, escritor brasileiro que pre-tendemos examinar. Não temos informações suficientes. Em sua única biografia documentada,16 que é mais uma “desbiografia”, ele se recusa a falar, e argumenta da seguinte forma: “minha vida não tem nada interessante. O que é interessante é o que escrevo”.

Durante todo o documentário não há referência alguma à família ou à atividade profissional, mas sabemos que ele foi advogado, que morou em Nova York, que sofreu influência dos modernistas e que casou e teve três filhos. Dos familiares, recebemos algumas informa-ções: “meu irmão nasceu com uma disfunção lírica afetiva” – hoje, um poeta em tempo integral, não pensa em nada mais a não ser po-esia; diz que “comprou o ócio e fica à disposição da poesia” – aquela em que a palavra poética chega a um grau de brinquedo –, que não

11. O Seminário, livro 24,

L’ insu-que-sait de l’une-

-bévue s’aile à mourre, op. cit.,

16/11/1976.

12. O que Lacan dizia das

mulheres, op.cit., p. 194.

13. Ibid.

14. Soler, Os nomes da

identidade (2010, p. 53).

15. No Seminário, livro 23,

o sintoma é o “mas isso não”,

contido na frase: “Tudo, mas

isso não” que aponta para o

impossível, para o diz

Lacan, “O mas isso não é o

que introduzo sob meu título

desse ano como sintoma”

(p. 15).

16. César, Só dez por cento é

mentira: a desbiografia oficial

de Manoel de Barros (2009).

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85Stylus Rio de Janeiro nº 23 p. 81-88 novembro 2011

quer dizer nada, não quer dar informações, quer dar encantamento. Podemos também dizer isso de outro modo: “quando o esp de

um laps (...), o espaço de um lapso, já não tem nenhum impacto de sentido (ou interpretação), só então temos a certeza de estar no inconsciente”.17 Isso é a certeza do final. Apaga as reticências e insere um ponto-final do silêncio. Ponto de ateísmo da falha na transferên-cia, de não mais supor saber no Outro, de não mais crer no sintoma.

Quanto a isso, os analistas precisam ser prudentes na direção do tratamento, para não idealizarem um final e levarem a coisa longe demais. Quem nos adverte disso é o próprio Lacan:

Não penso que se possa dizer realmente que os neuróticos se-jam doentes mentais. A maioria dos neuróticos são o que são. Felizmente não são psicóticos. O que se chama de um sintoma neurótico é alguma coisa que lhes permite viver. Eles vivem uma vida difícil e nós tentamos aliviar seu desconforto. Às vezes lhes damos o sentimento de que são normais. Graças a Deus, não os tornamos tão normais para que acabem psicóticos. É o ponto em que temos de ser muito prudentes. Alguns dentre eles têm realmente a vocação de levar as coisas até o limite [...] Uma aná-lise não tem de ser levada longe demais. Quando o analisando pensa que está feliz em viver, é o suficiente.18

A questão que submeto à apreciação é como alguém que levou a sua análise até esse ponto, depois de esgotadas as interpretações que ela poderia gerar, de identificar-se com algo que não pode ser mais re-duzido, mudado ou interpretado, ou seja, até atingir a certeza do sem--sentido do sintoma, a esse savoire-y-faire, que leva à satisfação, “que só é atingida no uso, em particular”19 ou quando o sujeito para de colocar obstáculos ao saber sobre a inconsistência do Outro, possa ainda dese-jar endereçar-se a um Outro, supondo, talvez, a um outro analista – já que o outro “não funcionou” – o lugar de sujeito suposto saber?

Voltar a colocar a questão do sentido em campo mais uma vez e voltar a se perguntar “o que quero dizer com isso?” faz com que o “esp de um lapso” volte a ter sentido. Basta querer, mais uma vez, “levar isso para análise” para que se saia da certeza atingida no fim, pois “não há verdade que, ao passar pela atenção, não minta. O que não se impede de que se corra atrás dela”.20

Mas, como passar por isso novamente, já tendo gastado até se fartar do gozo do sentido, tal como faz Manoel de Barros, tal como faz Joyce, tal como fizeram muitos analisandos? Seria por isso que Lacan recomendava a leitura de Finnegans Wake aos psicanalistas, ou melhor, será que é porque Joyce demonstra a psicanálise, instau-ra a prática da homonímia – do joyer com os significantes?

Certamente Lacan recomendaria também Manoel de Barros, se

17. Lacan, Prefácio à edição

inglesa do Seminário 11

(1976/2003, p. 567). [Grifo

meu].

18. Lacan,, Conférences et

entretiens dans des universités

nord-américaines (1976).

19. Ibid.

20. Prefácio à edição inglesa

do Seminário 11, op. cit.,

p. 567.

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A certeza do final: identificação ao sintoma86

o conhecesse, e talvez até o colocasse na série do “Tudo, mas isso não”, inventando: Manoel, vagabundo profissional, pois ele também, por meio do seu idioleto manoelês arcaico21 explode significâncias, inventa sem querer dizer nada, apenas porque “as coisas pedem so-corro para serem vistas de forma diferente. Elas pedem para ser olhadas de outro modo e não com o olhar das pessoas razoáveis”.22

Só virando as coisas de ponta cabeça, costurando e descosturan-do os sentidos trazidos pelos analisantes, se pode levá-los da crença no sintoma à certeza da identificação ao sintoma, um final possível, que não se justifica nem se explica, mas se percebe.

Referências bibliográficasBARROS, M. Livro sobre nada. Rio de Janeiro: Record, 2009. CÉSAR, P. Documentário: Só dez por cento é mentira: a desbiografia

oficial de Manoel de Barros. Petrobras, 2009.FREUD, S. (1937). Análise terminável e interminável. Trad. sob a

direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro, Imago, 1975. (Edi-ção Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. XXIII).

GERBASE, J. Complexo de Lacan: RSI∑. Stylus: revista de psicanálise 9. Rio de Janeiro: Associação Fóruns do Campo Lacaniano, 2004.

LACAN, J. Conférences et entretiens dans des universités nord--américaines. Yale University, Kanzer Seminar. Scilicet 6/7. Pa-ris: Éditions du Seuil, 1976.

LACAN, J. (1946). Formulações sobre a causalidade psíquica. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1998.

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LACAN, J. O Seminário, livro 24: L’ insu-que-sait de l’une-bévue s’aile à mourre. (1976-1977). Inédito.

LACAN, J. O Seminário, livro 25: O momento de concluir. (1977-1978). Inédito.

QUINET, A. A estranheza da psicanálise: a Escola de Lacan e seus analistas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.

SOLER, C. O que Lacan dizia das mulheres. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.

SOLER, C. Os nomes da identidade. In: Caderno de Stylus, Inter-nacional dos Fóruns/ Escola Internacional dos Fóruns do Cam-po Lacaniano – Brasil. Rio de Janeiro, 2010.

21. Barros, Livro sobre nada

(2009. p. 43).

22. Comentário feito no

Documentário: Só dez por

cento é mentira: a desbio-

grafia oficial de Manoel de

Barros (2009).

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ResumoEste artigo trata de forma restrita as metamorfoses que acontecem durante a direção da cura e prioritariamente aborda o fim desse processo pelo conceito tardio em La-can de identificação ao sinthoma, uma certeza adquirida no fim de uma análise. Com o intuito de examinar esse ponto teórico, a autora toma como referência os últimos seminários de Lacan, que sofreram influência da escrita joyciana, escrita que explode significâncias, tal como a de Manoel de Barros, concluindo que a passagem de anali-sando para analisado implica saber lidar com o sintoma e poder dizer “esse sintoma sou eu”, sem precisar continuar pedindo para que ele se explique, uma vez que não se

pode dizer de onde isso vem.

Palavras-chaveFinal de análise, identificação ao sintoma, Joyce, Manoel

de Barros.

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A certeza do final: identificação ao sintoma88

AbstractThis article, in a restrict way, discusses the metamorpho-ses that occur during the psychoanalysis process and, mainly, it approaches the end of such a process through the late concept of identification with the symptom in Lacan, a certainty acquired at the end of an analysis. In order to examine this theoretical point, the author takes as references Lacan’s last seminars, which were influenced by Joyce’s writing which, in turn, explodes significances, as much as Manoel de Barros’, concluding that the passa-ge of being in analysis and to be analyzed implies in being able to deal with the symptom and say “I am this symp-tom”, without continuing to ask for explanations, once it

is not possible to say where this comes from.

KeywordsEnd of psychoanalysis, symptom identification, Joyce,

Manoel de Barros.

Recebido13/02/2011

Aprovado10/03/2011

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direção do tratamento

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90

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91Stylus Rio de Janeiro nº 23 p. 89-98 novembro 2011

Uma construção dosintoma na criança1

Maria Vitória Bittencourt

Abordar a psicanálise com as crianças coloca sempre a questão de sua especificidade, sobretudo quando se trata de crianças de dois a três anos de idade, crianças que começam a falar. Muitos pontos podem ser interrogados para diferenciá-la da psicanálise com adultos. No entanto, gostaria de retomar o conceito de sintoma para discutir a pertinência dessa distinção e seus efeitos no manejo da transferência.

Na Conferência em Genebra sobre o sintoma, Lacan faz uma relei-tura do caso do pequeno Hans para definir o sintoma fóbico como o resultado do encontro com a realidade sexual, realidade especifi-cada que não existe relação sexual. A criança descobre essa realida-de em seu próprio corpo, um gozo real que lhe é estrangeiro. Daí sua conclusão que não é autoerótico, mas hétero, um cavalo que vem encarnar esse estrangeiro, com a eclosão de sua fobia. Essa tese de Lacan remete ao que vai chamar de “moterialismo” do sintoma, produzido pela alíngua. que a criança escutou, “graças ao fato que tem um certo tipo de pai e um certo tipo de mãe”.2

Se a letra do sintoma vem condensar o gozo e o significante, como operar a interpretação com crianças que não têm acesso à escrita? Colette Soler levanta essa questão em relação ao desenho infantil e sua “visibilidade interpretativa”.3 Questão que pode tam-bém ser colocada com a criança psicótica não escolarizada. Que tipo de intervenção o analista pode efetuar nesses dois casos? Um caso clínico poderia nos ajudar a responder a essas questões.

Trata-se de uma criança de três anos e meio, considerada por to-dos como muito comportada, a ponto de fazer com que se esqueçam dela, sempre com a cabeça nas nuvens. Foi um bebê tranquilo de-mais, que nunca causou problemas, calmo demais, pouco estimu-lado. A professora do maternal acha que ele tem dificuldades, pois não se integra ao grupo, está sempre isolado, não fala e se movimenta muito pouco. Quando alguém se aproxima dele, ele joga os obje-tos, torna-se agressivo; uma vez chegou a machucar seriamente outra criança, quebrando-lhe o braço. Em casa também a mãe se preocupa, pois sendo muito fechado, ele começa a apresentar comportamentos de oposição; os outros lhe chateiam, podendo reagir de maneira mui-to violenta quando se fala com ele. Então, ele gosta mesmo é de ficar

1. Texto publicado na

Revue de psychanalyse Champ

Lacanien no 8 Psychanalyse

et religion. Março 2010.

2. Lacan, Conférence

à Genève sur le symptôme

(1975).

3. Soler, Une difficulté de la

psychanalyse d’enfant (1987,

p. 7).

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Uma construção do sintoma na criança92

no seu canto e grita quando se chega perto dele: chama os adultos e as crianças de malvados, sobretudo a mãe, que força a lhe dar de comer. Uma demanda que toma uma dimensão de exigência.

Durante a primeira entrevista com a mãe, Max não se opõe entrar no consultório, mas fica ausente, nem olha para mim. So-zinho, joga com os objetos, ficando afastado no seu canto, como se não estivéssemos falando dele. Max é a segunda criança de um casal que se casou muito jovem, a mãe tendo perdido sua própria mãe antes dessa união. O sonho de ter filhos foi frustrado, e como os dois tinham problemas para procriar, tiveram de tentar fecun-dações in vitro durante muitos anos. “Por acaso”, a primeira filha nasceu entre duas fecundações, o que é descrito como um momen-to de alegria inesquecível para os pais. Porém, logo depois ela fica grávida de novo, gravidez “não programada”, e nove meses depois nasceu outro menino. Para esse casal jovem é como um transtorno, pois estavam ainda em plena construção da casa. A mãe confessa que a alegria de ter um primeiro filho fez com que “esquecesse” o segundo. Não somente eles o “esqueceram”, mas o terceiro filho toma todo seu tempo, pois é uma criança “muito dinâmica”. Aliás, foi com sua avó paterna que Max começou a falar.

A escolha do seu nome evoca o herói de um romance que os pais gostam muito, romance que conta da história de um órfão que, so-zinho, se aventura no mundo dos adultos. Essa é uma boa descrição do casal: sozinhos no mundo dos adultos. Eles se encontraram na adolescência e, tendo problemas com suas respectivas famílias, se uniram fortemente contra as intempéries da vida.

Proponho um encontro com Max. Ocorre frequentemente que crianças pequenas, no início do tratamento, se recusam a entrar so-zinhas no consultório, sem a presença da mãe. Não é o caso de Max, pois ele entra voluntariamente, quase indiferente, vai brincar sozi-nho no canto, não me olha e não responde às minhas perguntas. Ele se dirige à casinha de boneca, brinca com os móveis, sobretudo com a cama, que resolve deixar vazia, ignorando os personagens. Eu ten-to falar e brincar com ele, porém não há nenhuma reação, nenhuma resposta de Max. Ele queria ficar tranquilo no seu canto, ignorando minha presença. Isso continua durante várias sessões, mesmo que tenha sempre dificuldade de aceitar o final, exercendo uma certa tirania, fato que lembra o que sua mãe relatou quanto às refeições.

Assim, na transferência, ele assume a posição descrita pela mãe – ele quer que esqueçam dele – transferência na vertente de repeti-ção enquanto “modo permanente segundo o qual ele constitui seus objetos”,4 afirma Lacan. Max mostra o lugar designado pelo desejo da mãe que, mesmo que cuide de seu filho, deixou uma marca de seu esquecimento “particularizado”.5 Pouco investido do lado da mãe, Max encontrou o valor fálico no seu mutismo de oposição:

4. Lacan, Intervenção sobre

a transferência (1957/1998,

p. 224).

5. Faço referência à

observação de Lacan sobre a

“marca de um interesse parti-

cularizado” da mãe em Note

sur l’enfant (1969/2001, p.

373).

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um lugar de exceção. A questão que se coloca nesse momento é a estratégia da transferência, pois Max não se queixava de nada e ma-nifestava uma satisfação de ficar nessa posição. Não querendo saber de nada, ficava mudo. A questão era fazer com que falasse para que a psicanálise pudesse operar.

Essa indiferença e isolamento me fizeram pensar numa estrutu-ra psicótica. Como destrinchar o diagnóstico? Será que se trata de uma criança psicótica, fechada no seu mundo, numa atitude nega-tivista? Num primeiro tempo, poderíamos pensar que esse menino, instalado na linguagem, não tinha acesso à dimensão da palavra, pois nenhum apelo vinha de seu lado.

Esse caso não deixa de lembrar o caso Dick, de Melanie Klein,6 comentado por Lacan no Seminário I, Os escritos técnicos de Freud, que traz várias indicações do diagnóstico e suas consequências na direção do tratamento.

Dick era um menino de quatro anos, descrito como desprovi-do de afeto, manifestando uma indiferença notável, pois não se interessava por nada, não brincava e não tinha nenhum contato com seu círculo familiar. Sua linguagem se resumia em emissões de sons, desprovidos de significação e de barulhos que repetia sem parar, sem nenhum desejo de ser compreendido. Sua mãe falava de uma atitude negativa, pois fazia o contrário do que se esperava dela. Por exemplo, quando lhe pedia para repetir as palavras, fazia de modo incorreto, o que não ocorria em outros momentos.

Logo no início, Melanie Klein questiona o diagnóstico dessa criança. Ela nota que seu comportamento de oposição não era o mesmo de uma criança neurótica, pois não se dirigia a ninguém em particular, nem a qualquer objeto, a não ser os trens, as estações e as portas: maçanetas, fechar e abrir portas. A analista não hesita em fazer um diagnóstico de esquizofrenia, em virtude da incapaci-dade total desta criança de suportar a angústia e a inibição excep-cional de seu desenvolvimento que, segundo ela, teria suas origens na falência de todas as primeiras etapas de sua vida. Hoje em dia, poderíamos evocar o autismo, pois na época essa noção não tinha ainda sido designada enquanto tal. Somente em 1943 é que Kanner introduziu essa noção.

Lacan não contradiz esse diagnóstico, mas acrescenta que a cau-sa se encontra em sua relação com a linguagem. Dick está totalmen-te numa “realidade no estado puro”,7 pois essa não é simbolizada. Seu eu não está formado, pois para ele não existe nem o outro, nem o eu. Os objetos existem, mas não são nomeados. O que existe para Dick é o intervalo entre duas portas – o corpo da mãe – o escuro. Para Lacan, o que está em jogo é a ausência do que chama nessa época de simbolização primitiva da lei – uma afirmação da exis-tência da castração pelo complexo de Édipo. Dick mostra que não

6. Klein, A importância

da formação dos símbolos

no desenvolvimento do ego

(1948/1982, p. 92).

7. Lacan, O Seminário,

livro 1: Os escritos técnicos de

Freud (1953-54/1979, p. 84).

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Uma construção do sintoma na criança94

assumiu essa afirmação, e sua relação à linguagem se situa num ne-gativismo, uma oposição às tentativas de intrusão dos adultos. Ele tem a linguagem, mas não a palavra. Essa palavra vai advir como efeito da interpretação edipiana de Melanie Klein, permitindo à criança simbolizar a realidade a partir desse núcleo: a linguagem se liga ao sistema imaginário, distinguindo assim o imaginário e o real. A relação à imagem só pode ser concebida pela interferência do simbólico – a imagem sempre é imagem de alguma coisa.

Lacan enfatiza a importância do diagnóstico para a direção da cura e afirma que, se a técnica de Melanie Klein pode ser discutida, ela não é dissociada do diagnóstico do caso. Assim, explica que é em função das primeiras experiências do encontro com o desejo do Ou-tro, do Outro primordial – a mãe, a realidade sexual –, que a lingua-gem emerge no ser humano. Pois é por meio da interpretação do grito do bebê que a mãe introduz a dialética da demanda, respondendo às necessidades de seu organismo. Nesse período de completa imatura-ção, o corpo da criança, que se encontra num estado de impotência vital, depende totalmente do Outro que se ocupa dele, construindo assim as demandas. No ser humano, a satisfação das necessidades vitais deve passar pelo apelo dirigido ao Outro, o que desnatura de vez a satisfação, transformando-a em demanda de amor.

Nesse primeiro tempo, a criança faz a experiência perceptiva de sua imagem no espelho, uma imagem virtual que terá um papel decisivo na constituição do eu. Essa imagem, que captura a libido do sujeito, permite uma certa apreensão do mundo, “uma realidade virtual a ser conquistada”.8 De um lado, isso traz os fundamentos para que o sujeito se oriente em relação à realidade; de outro lado, abre as possibilidades de efetuar as primeiras identificações do eu, cujo valor de atividade jubilatória da criança diante de sua imagem designa um lugar no desejo da mãe. Esse lugar é fundamental para o diagnóstico, pois é por meio da introdução do falo nessa dialética da dupla imaginária, que a matriz simbólica pode se inscrever. Para a entrada do sujeito no mundo simbólico, é preciso que seja consti-tuído como sujeito do significante, ou seja, é preciso que a operação da metáfora paterna seja efetuada, pois o suporte da imagem não basta. A percepção de uma imagem sempre pode enganar, sempre submetida à uma marca narcísica. Daí a imagem ser insuficiente para abordar o sujeito que nos interessa, o sujeito do inconsciente, efeito da linguagem, sujeito definido na estrutura significante onde o Édipo constitui o núcleo simbólico.

Assim, poderíamos pensar que Melanie Klein, com sua injeção edipiana, introduz uma instância terceira que permite o estabele-cimento de uma dialética, extraindo a criança dessa “realidade em estado puro”. Ela confessa que mudou sua técnica com Dick, pois sua capacidade de representar era quase inteiramente ausente. Com

8. Lacan, Le séminaire,

livre 5: les formations de

l’ inconscient (1957-58/1998,

p. 225).

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uma criança neurótica, ela interpreta o material segundo a expres-são da criança (play technique). Nesse caso, afirma que se encontrou forçada a interpretar sobre seus conhecimentos gerais, ela falava de sua teoria, de sua invenção, o que fazia função de terceiro. Aliás, segundo a biógrafa de Melanie Klein, Phyllis Grosskurth, que en-controu Dick quando ele tinha 5 anos, ela sabia do artigo de sua analista, pois ela tinha o hábito de ler para ele as frases que se refe-riam a ele. Ele achava tudo “baratin”9, que se ela estivesse viva, teria lhe dito “é demais”. Mas, ao mesmo tempo, confessa que gostava muito dela, pois quando ele chorava, ela lhe assegurava ao dizer: “a vida não é tão ruim assim”.10

Esse manejo da transferência nos leva a refletir, pois os efeitos são incontestáveis. Dick começa a angustiar, o que permite o acesso a seu inconsciente. Uma espécie de agieren que requer do analista um certo desejo decidido, desejo que não se pode negar em Melanie Klein.

Para Lacan, o acesso a seu inconsciente só é possível graças ao símbolo que se forma em Dick, sob o modo da negação. O efeito da sua interpretação é o apelo que abre à possibilidade de uma re-cusa – presença da negação na constituição do sujeito. O aparelho psíquico não é fechado nele mesmo, mas sempre em relação com o Outro, lugar da linguagem. Um Outro que não é completo, pois como Dick afirma depois de uma outra interpretação da analista: “Pobre coitada, Melanie Klein”.

Voltemos a Max. Do ponto de vista dos fenômenos, poderíamos dizer que Max, assim como Dick, está na linguagem, mas não na dimensão da palavra, do apelo. Daí, será preciso concluir que se tra-ta de uma estrutura psicótica? A sequência do caso vai nos mostrar uma outra posição subjetiva, pois do meu lado, persisto no fato de estar ali, numa espécie de presença falante que ele aceita mesmo que não me olhe, me ignorando solenemente. Eu nomeio os objetos que ele pega para brincar como um porta-voz de sua atividade lúdica.

Após várias sessões, Max começa a responder algumas pergun-tas, com uma voz bem baixinha, com monossílabos, sussurrando “sim” ou “não”. A primeira entrevista com o pai em sua presença vai trazer efeitos muito importantes para a continuação da cura. Com efeito, ele é jovem, como a mãe, também esgotado com essa família numerosa. Ele fala da preocupação com seu filho e também de seus problemas quando tinha a idade de Max. De uma família muito fechada, ele acha que seu filho tem os mesmos defeitos que ele: reservado, isolado e passivo. Aliás, foi por essa razão que viu um psicólogo quando era pequeno. Pareceu-me que “pequeno” era um significante privilegiado nessa família em que não haveria “os grandes”, pois era o que Max encarnava, tornando-se o tirano desse círculo familiar.

Depois dessa entrevista, tento brincar com Max e os móveis,

9. Gíria que quer dizer

uma bobagem

10. Grosskurth, Melanie

Klein: son monde et son oeuvre

(1990, p. 342).

Page 98: Stylus 23 - Varios

Uma construção do sintoma na criança96

e começo a notar que ele não recusa minha presença, mesmo que não dê sinal do seu olhar. Ao mesmo tempo, a mãe me informa algo novo: Max come normalmente, sem exigir sua presença. Um dia, ele pega um animal e eu digo que é uma rã; ele me responde duramente, com uma voz bem afirmativa – não é uma rã, mas um sapo – a rã é pequena; o sapo, não”.11 É a primeira vez que escuto sua voz, pois até esse momento só murmurava as palavras.

Penso que aqui Max apresenta sua teoria sexual infantil, na qual tenta resolver o enigma da diferença sexual. Ele começa a elaborar oposições significantes: macho x fêmea; grande x pequeno, que re-metem à dialética de combinações binárias. Uma história começa a fazer parte de nosso diálogo, e daí em diante trata-se de construir uma casa bem fechada, para proteger o sapo das tempestades. É o que Max chama de seu “trabalho”: ele vem me ver para fazer um trabalho. Afirmando-se como menino-sapo, trata-se de construir um lugar, pois o sapo precisa de um telhado para se abrigar das intempéries e, sobretudo, do olhar dos outros. Uma ponta de an-gústia surge, pois me fala de seu medo de olhar os homens grandes, “o Mestre do telhado”. Começa assim a desenvolver um sintoma fóbico – medo dos homens grandes que podem matar os pequenos sintomas do qual se queixa pela primeira vez. A mãe confirma esses fatos, pois não somente ele se gruda nela quando estão na rua, com medo dos homens, como também conta seus pesadelos, seu medo de morrer, acordando à noite.

Assim, um diálogo se estabelece em torno de suas histórias, e penso na identificação com o herói do livro – órfão nas tempestades – que precisa de proteção numa casa bem sólida. Ele pede que eu guarde bem a casa do sapo para a próxima sessão, uma primeira de-manda, me constituindo como um lugar onde pode depositar seus objetos. Outras demandas vão surgir, como brincar com o compu-tador com o seu pai. O trabalho vai prosseguir em torno de cons-truções de casa – identificação simbólica a seu pai arquiteto – com três camas e personagens humanos. Mais tarde, ele vai dizer que, quando crescer, vai ter uma caixa de ferramentas, como seu pai. Ter ou não ter o falo começaria a se introduzir na subjetividade de Max?

Assim, o que ele chama seu trabalho – sua própria casa ainda tem “trabalho”12 – o levou a fazer de outra maneira. O silêncio le-vou a fazer demandas, dando lugar a uma certa tagarelice, não sem alguns traços irônicos. No que se refere à estrutura, não podemos ainda nos pronunciar, pois tem um “trabalho” a ser feito em torno de sua escolha de aceitar ou não o que concerne à castração mater-na, à qual deve se afrontar.

Faço a hipótese de que, sob transferência, Max construiu um sintoma fóbico, sintoma que vem como suplência à carência pater-na, um homem pequeno, sempre tentando construir sua própria

11. Em francês – une

grenouille et un crapaud.

12. Em francês, quando se

está fazendo obras em casa se

diz “des travaux”.

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97Stylus Rio de Janeiro nº 23 p. 89-98 novembro 2011

casa, impotente no que se refere a assumir o encargo familiar – aliás como todo pai. Foi a partir do momento em que Max pôde falar de sua teoria sexual, uma resposta ao encontro com a realidade sexual, que pôde sair de seu isolamento mudo, não sem a proteção do olhar do Outro, por meio do qual ele constrói o sintoma que, dessa vez, o faz sofrer. Com o sintoma, o gozo em que se havia fechado no silêncio da pulsão oral, fazendo dele um estrangeiro ao mundo que o cerca, pôde ser localizado num objeto hétero, e Max pôde, desta maneira, entrar no discurso do Outro, discurso do inconsciente.

Falamos, geralmente, de construção da fantasia na criança, para responder ao enigma do desejo do Outro. Aqui, proponho a cons-trução do sintoma, pois com crianças pequenas, ainda tomadas pela coisa dos pais – alíngua que escuta – não fizeram ainda sua “entrada no real”, ou seja, estão ainda no lugar do objeto real da fantasia da mãe. É preciso um longo caminho a percorrer para se extrair desse lugar e entrar na dialética da identificação ao falo. Para a entrada do sujeito no simbólico, existe o tempo das teorias sexuais infantis, que vão promover um saber cuja origem, segundo Freud, é pulsio-nal, operando assim uma conjunção do gozo com o significante. Essas teorias são o fundamento de uma invenção de saber que leva a criança à invenção de um sintoma. Um trabalho preliminar à res-posta ao desejo do Outro que a fantasia virá estabelecer.

Para o analista, isso supõe estratégias bem diferentes, com uma presença efetiva, deixando-se dirigir, porém introduzindo a palavra, por meio da qual sua demanda se manifesta, assim como seu desejo. Encarnar um “isso fala” na transferência aqui viria frear uma posição de gozo que aprisiona o sujeito. Isso pode tomar a forma kleiniana de ler um texto ou a forma lacaniana de escrever os ditos do paciente – o famoso escriba que frequentemente suscita efeitos terapêuticos para a criança psicótica. Max me levou ao lugar de porta-voz, uma espécie de dicionário que nomeia os objetos. Isso pode evocar o lugar do Outro da linguagem, porém um Outro desejante.

Referências bibliográficasGROSSKURTH, P. (1990). Melanie Klein: son monde et son oeuvre.

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Uma construção do sintoma na criança98

LACAN, J. (1957-1958). Le Séminaire, livre 5: les formations de l’ inconscient, Paris: Seuil, 1998.

LACAN, J. (1969). Note sur l’enfant. In: Autres écrits. Paris: Seuil, 2001. LACAN, J. (1975). Conférence à Genève sur le symptôme. In: Bloc

notes de psychanalyse no 5, Genève, 1985. SOLER, C. (1987). Une difficulté de la psychanalyse d’enfant. In:

La lettre mensuelle no 63, novembre 1987, ECF, Paris.

ResumoEste artigo retoma o conceito de sintoma por meio de um caso clínico de uma criança de 4 anos, com o objetivo de debater a especificidade da psicanálise com crianças e as consequências para a direção da cura. Esse caso é arti-culado ao caso Dick, de Melanie Klein, ilustrando dessa maneira como o manejo da transferência pelo analista permite ao sujeito entrar no discurso do inconsciente por

meio de um apelo, no qual se instaura a palavra.

Palavras-chaveSintoma, direção da cura, transferência.

AbstractThis article revisits the concept of symptom through a clinical case of a four-year-old child. It aims to debate the specificity of psychoanalysis with children and the con-sequences towards the cure. This case is articulated to the Dick case conducted by Melanie Klein, illustrating how the management of transference by the analyst allo-ws the subject to enter the discourse of the unconscious

through a plea, where the word sets in.

KeywordsSymptom, direction of the treatment, transference.

Recebido10/02/2011

Aprovado06/03/2011

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99Stylus Rio de Janeiro nº 23 p. 99-108 novembro 2011

Considerações topológicasda passagem do sintoma

ao sinthoma1

Conrado Ramos

Com o objetivo de formalizar algumas questões sobre o sintoma, apresento fragmentos clínicos de um caso, e em seguida a sua teorização.

Um analisante passou seus anos de decifração em torno da rela-ção entre três questões: o que é ser um filho, o que é ser um pai, e como isso se articulava nos seus laços amorosos e de trabalho. Ele fazia de sua vida um morrer de trabalhar pelo que repetia o esforço, por um lado, de ser reconhecido e amado pelo pai cruel e insaciável que teve, e por outro lado, um meio de fazer diferente de seu pai, tomando por filhos aqueles implicados nos efeitos de seu trabalho. Morrer de trabalhar era um sintoma que atravessava a sua história significando suas posições, ora de filho, ora de pai. Durante anos tomou remédios psiquiátricos por estar sempre uma pilha de nervos. De tanto querer livrar-se desta situação, concluiu que foi por meio dela que se constituiu e que tentava fazer do morrer de trabalhar uma forma paradoxal de vida. Começou a referir-se ao trabalho como uma estranha satisfação que o fazia sentir-se pilhado (de pi-lha, bateria). Pilhado, significante que se repetiu em outro momen-to de sua análise, quando ele se dizia trabalhando sempre para o Outro, que o fazia sentir-se pilhado (isto é, roubado). No início do tratamento, ele fazia constantes referências à pilha de coisas que tinha para fazer, modo pelo qual apresentava, angustiado, o peso gigantesco de suas intermináveis tarefas. Mas eis que um dia veio a seguinte construção: “acho que não tenho como mudar a minha relação com o trabalho: eu sempre pilho”. E então eu pontuo: “pai e filho, pilho?!”, ao que ele responde: “É isso! Eu sempre pilho: pai e filho, pilho! Não tem jeito! E o que eu tenho que me perguntar é o que fazer com isso...”.

Essa interpretação da posição de gozo, a partir do equívoco in-troduzido pelo significante pilho, trouxe desdobramentos e fez, em algumas semanas, a análise trazer à tona o objeto da fantasia no su-jeito cristalizado no olho do filho do grande pai: ocorreu-lhe, no meio de uma sessão, a recordação súbita da reprodução de um Sagrado Coração de Jesus, da parede do corredor de sua casa de infância, cujo

1. Trabalho apresentado

no XI Encontro Nacional

da EPFCL, em Fortaleza,

em 2010.

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Considerações topológicas da passagem do sintoma ao sinthoma100

olhar sagrado, refletido no espelho de seu quarto, aterrorizava-o, e de onde ele tirava os imperativos de seus sacro-ofícios (sacrifícios).

Seguiu-se a isso um percurso de tentativas de dar sentido a esse lugar: uma nova relação na qual ele se descobriu agindo sempre como pai da namorada; um novo emprego (“agora vou fazer diferen-te”) em que quase morreu verdadeiramente de trabalhar, colocando--se diante do patrão numa posição que julgou feminina; reatou laços com o filho do primeiro casamento e se descobriu filho do próprio filho por ver que esse aprendeu a se virar sem o pai (coisa que ele mesmo dizia jamais ter conseguido); tornou-se provedor de parte da família e viu-se explorado no lugar do próprio pai falecido... Enfim, pela tagarelice, identificações foram caindo pelo caminho.

Algum tempo depois, numa sessão, ele trouxe o seguinte, referin-do-se à religião como uma prática de dar sentidos à sua submissão: “sem nunca ter sido religioso, aqui eu sempre fui religioso, porque eu sustentava minha loucura buscando sempre um sentido para ela. Um sentido não dava certo, eu buscava outro; esse não dava certo, eu buscava outro. Agora, eu vejo que meu erro não era não encontrar o sentido certo. Meu erro era ser religioso. A minha loucura não tem sentido. E se não tem sentido, por que eu preciso dela? Se eu não preciso mais ser religioso, não preciso mais também da minha lou-cura. Vai ver que a minha loucura era justamente este ‘ser religioso’: minha mania de achar que preciso me sacrificar pelo Pai”. Aqui, veio um silêncio e hesitei quanto ao corte da sessão, pois apesar de ser um momento conclusivo, entendi que um corte aí poderia dar consis-tência justamente ao sentido que ele esvaziava. Segurei um pouco mais e ele seguiu: “E por falar em Pai, ‘Fiat lux’... Eu me orientava pela luz do outro. Mas essa luz sempre foi minha: eu é que colocava a luz no outro. Não tem luz nenhuma lá”. Cortei a sessão; aqui sim, provavelmente, na conclusão pela queda do sentido.

Depois dessa sessão, ele redescobre aos poucos o prazer da leitura e, admirador da arte, diz permitir-se levar adiante o que julga ser seu maior deleite, a experiência estética. Descobre ainda a satisfação que tem ao preparar suas aulas e, em relação ao dar aulas, comenta: “dar aulas não precisa ser um jogo de lugares – meus alunos não são meus filhos ou meu pai –, mas sinto ali uma estranha fruição... Engraçado dizer isto, mas se ali algo frui, é porque sou visto: tem ali um olhar que não é o olhar do meu pai, mas é um olhar... é só um olhar”.

Cai o olhar do pai, o olhar que se pretendia verdadeiro e universal. O olhar que fica, esse que é só um olhar, já não é universal, mas esse olhar, embora não verdadeiro e não universal, nem por isso é uma mentira se ele tem o real por medida. Em outros termos, pergunto-me se este olhar não se situa na ex-sistência em relação ao juízo da verdade.

Este caso me faz questionar, entre outras coisas, se um sintoma não é aquilo que uma análise pode levar do morrer de trabalhar para

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101Stylus Rio de Janeiro nº 23 p. 99-108 novembro 2011

o Outro ao fazer-se ver. O gozo parasita do morrer de trabalhar pôde, no fazer-se ver, articular-se não-todo à cadeia significante e entrar no laço sem precisar ser pela via do mais-gozar extraído por meio da fantasia obsessiva de servidão ao pai: do morrer de trabalhar en-quanto sintoma (S1) que tenta, para capturar S2 (tornar a relação sexual possível), fazer a coalescência entre a falta de um significante para o lugar de filho [S (Ⱥ)] e o olhar como objeto a, pôde-se che-gar ao fazer-se ver como o incurável do sintoma que se descolou da fantasia (do gozo do sentido) e pôde ser gozado não-todo, isto é, sabendo-se não recobrir o JȺ com o gozo do sentido por meio do JΦ. Isto pode ser visto no grafo do desejo quando, com a queda da consistência do Outro, o circuito do grafo faz passar do sintoma [s(A): morrer de trabalhar] para a pulsão [Ǝ&D: uma estranha frui-ção]: há, neste novo vetor, uma mudança de estatuto do sintoma?

Se coloco a pulsão articulada a um novo estatuto do sintoma, após a travessia da fantasia, é por entender que é a isso que La-can aponta quando diz, no Seminário 11, que a travessia do plano da identificação reconduz a experiência do sujeito “ao plano onde se pode presentificar, da realidade do inconsciente, a pulsão”.2 Ou seja, atravessado o plano das identificações, resta ainda o plano da pulsão. Estaria aí o irredutível da identificação do parlêtre?

Não podemos, ainda, entender esta passagem do sintoma [s(A)] para a pulsão [Ǝ&D] como passagem da petrificação do sujeito pe-los significantes da demanda ao consentimento com a pulsão fixada no ponto extimo desse olhar não-todo?

Com o esvaziamento dos sentidos da posição de pilho e com a queda do objeto, olhar onividente (que carrega de sentido o gozo do grande Pai3), entendo ter havido um descolamento do sintoma em relação à fantasia, isto é, um reviramento tórico pelo qual o olhar onividente do objeto de amor vira um traço da lei que faz um desejo

2. Lacan, O Seminário,

livro 11: os quatro conceitos

fundamentais da psicanálise

(1964/1988, p. 259).

3. A Sandra Berta agrade-

ço esta observação precisa.

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Considerações topológicas da passagem do sintoma ao sinthoma102

corresponder a uma causa. Na matemática, essa lei se escreve; se escreve com letras; e se chama função: F(x).

Podemos lembrar, para sustentar a relação que proponho entre sintoma e pulsão, que em 1964 Lacan chegou a definir também a pulsão como aquilo que faz corresponder um desejo a uma causa, mas não como função, e sim como mito: “As pulsões são nossos mi-tos”, disse Freud. “Não se deve entender isso como uma remissão ao irreal. É o real que elas mitificam, comumente, mitos: aqui, aquilo que produz o desejo, reproduzindo nele a relação do sujeito com o objeto perdido.”4

Com a queda da consistência do Outro, o sintoma passa de uma resposta da fantasia que visa sustentar esse Outro por meio do sa-crifício, para uma pura função F(x) em relação ao objeto a como causa, como o corte que produz a borda e transforma o sintoma em resposta do real (ou seja: uma pulsão). Entendo aqui o sintoma como resposta do real, como aquilo que faz pura função em relação à borda e que Lacan associou, em Posição do inconsciente, ao teore-ma de Stokes, como “um fluxo invariante ‘através’ de um circuito orificial, isto é, tal que a superfície inicial já não entra em conside-ração”.5 O que responde por esta função de fluxo é a pulsão. Assim, do furo real no toro (que não é o eixo!), para o qual a superfície já não conta, mas sim a propriedade borromeana que daí surge pelo reviramento do toro, se faz passar do furo falso do sintoma [s(A)] para a pulsão [Ǝ&D] como função de sintoma real.

4. Lacan, Do “Trieb” de

Freud e do desejo do psicana-

lista (1964/1998, p. 865).

5. Lacan, Posição do incons-

ciente (1960/1998, p. 861).

Borda

Eixo

Alma

Alma

Eixo

Alma

BordaEixo

AlmaEixo

Borda

Con�guração Borromeanado reviramento do Toro

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103Stylus Rio de Janeiro nº 23 p. 99-108 novembro 2011

Aí está: do sintoma ao sinthoma, temos topologicamente a pas-sagem do eixo como furo falso da superfície sem furos do toro à propriedade borromeana que advém do furo real, para o qual a su-perfície já não conta mais: por isso, sustento que o sinthoma foi posto por Lacan como um quarto nó apenas para mostrar que sua função implica a propriedade borromeana, pela qual uma corres-pondência mínima une círculos que, em si mesmos, não passam de nós triviais (isto é, de círculos soltos). Se os círculos do nó borrome-ano encontram alguma correspondência, se há entre eles uma lei, isso não vem deles mesmos, mas da propriedade borromeana que, minimamente, escreve ali uma função de nó.

No campo do falatório, da tagarelice, o sintoma desse obsessivo não teve parada, continuou se deslocando nas falhas do sentido, na insuficiência radical do significante. Para que houvesse algo que julguei aproximar-se da identificação com o sintoma foi preciso que seu gozo encontrasse uma fixação que não fosse da ordem da repe-tição que negava o real do furo na medida em que tentava fazer a relação sexual ex-sistir por um ser pai-filho (pilho) que se repetia toricamente [S1(S1(S1(S1→S2)))] na esperança de gerar superfície e se transformar no signo do amor ao Pai. Para que houvesse uma identificação com o sintoma foi preciso que seu gozo fosse além da petrificação que tentou fixar o corpo do Outro como signo do amor no olhar sagrado do Cristo visto no espelho do quarto [Ǝ→a]. Para que fosse possível uma identificação com o sintoma foi preciso que seu gozo encontrasse uma fixação que funcionasse como ponto de basta, o que pressupõe a dimensão da referência que toca o real da inexistência da relação sexual (uma Bedeutung) e que, deste modo, por deixar cair o sentido (S2, queda do SsS), acaba logicamente valendo por si mesma (S1=S1): faço menção aqui ao que se pode extrair da tautológica formulação de que “tem ali um olhar que não é o olhar do meu pai, mas é um olhar... é só um olhar”. Além disso, se a finalidade última da pulsão é a satisfação, isto não se dá sem

a

R I

S

Σ

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Considerações topológicas da passagem do sintoma ao sinthoma104

retorno à fonte, mesmo porque “as pulsões são, no corpo, o eco do fato de que há um dizer”.6 Que se diga, portanto, não é sem o corpo, e mesmo sem retorno ao corpo. Há na pulsão algo de si a si, mas que não deixa de fazer laço, não deixa de buscar algo no campo do Outro. Não há na pulsão, neste de si a si não sem Outro, uma função de identidade? Cito Colette Soler:

Interrogo a pulsão, e lhe pergunto: quais são suas funções? Não se deve esquecer que Lacan sempre deu uma função subjetiva à pulsão, poderíamos seguir o fio em todos os textos, e é uma função de identi-dade. Não há somente o benefício erótico na pulsão, há um benefício de identidade.7

É por essa razão que entendo haver identidade no fazer-se ver fi-nal, sob o qual não incide a consistência (a superfície) de um olhar universal, mas de um olhar que é só um olhar (objeto a como objeto evanescente). Talvez seja aqui também, no meu entender, que po-demos interrogar o que é da ordem da letra, pois lembremos que à letra cabe a tautologia que estruturalmente não podemos atribuir ao significante.

Este tocar o real é o que revela a condição de metáfora do sintoma:

[...] não é à toa que, em uma corda, a metáfora advenha do que faz nó. O que tento é descobrir a que se refere essa metáfora. Se há uma corda vibrante de barrigas e de nós, é na medida em que nos referi-mos ao nó. Quero dizer que usamos a linguagem de um modo que vai mais longe do que o que é efetivamente dito. Sempre reduzimos o alcance da metáfora como tal. Ou seja, ela acaba reduzida a uma metonímia.8

O sintoma simbólico não passa de metonímia: [S1(S1(S1(S1→S2)))]. Só o sintoma real faz metáfora, porque deixa cair S2 e, então, pode fazer função, pode fazer um desejo corres-ponder a uma causa, pode escrever um gozo, pode fazer um nó: [S1=S1//S2].

É nesse sentido que sugiro pensar topologicamente o sintoma obsessivo do início do tratamento como uma banda tripla, ou seja, como tagarelice, como metonímia sem fim, porque dá voltas infi-nitas com a impotência que carrega para morder o próprio rabo ou para ter uma referência acerca de que lado da banda se está: nestas voltas, só se reencontra a insuficiência radical do significante. Se a metáfora advém do que faz nó, isso se dá na passagem da banda tripla para o nó de trevo (o que Lacan só vai concretizar topologi-camente na última aula do Seminário 25, em 11 de abril de 1978).9 É no nó de trevo que localizo a topologia do fazer-se ver, como te-

6. Lacan, O Seminário,

livro 23: o sinthoma (1975-

76/2007, p. 18).

7. Soler, Los ensamblajes

del cuerpo (2006, p. 41) [a

tradução livre do espanhol

para o português é minha].

8. O Seminário, livro 23: o

sinthoma, op.cit., p. 41.

9. Lacan, O Seminário 25:

O momento de concluir (1977-

78/ inédito).

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105Stylus Rio de Janeiro nº 23 p. 99-108 novembro 2011

citura pulsional do furo, à qual a análise conduz o sintoma inicial. Somente quando a superfície deixa de contar, quando a superfície calcada no sentido encontra o limite de sua condição de semblante e se revela uma verdade mentirosa, é que a propriedade borromeana pode se escrever: metáfora da estrutura.

Se o analisante pôde desenrolar o toro de sua verdade mentirosa, deparando-se sempre com uma volta não contada em cada “sentido que não dava certo”, foi para cingir um furo que se escreveu ao final como um nó, por um reviramento tórico, quando ele deixou cair o estofo da superfície ao se separar do que chamou de ser religio-so. O que é isso que ele chamou de ser religioso, senão sua própria condição tórica vista de um outro lugar? O que restou aí não foi o verdadeiro como consistência, como medida, mas a verdade do real, como orientação para o inconsciente real. A diferença entre o ver-dadeiro e a verdade do real é que o primeiro é feito de superfície, de consistência, de sentido, enquanto que a verdade do real é feita da geometria do fio: enquanto um nó mínimo, um nó de trevo, ela não tem sentido algum, mas dá sentido (orientação) quando, ao passar por cima e por baixo de si mesma três vezes e voltar ao mesmo lu-gar, separa furos e, com eles, gozos (isto é, faz litoral). Para deixar cair a superfície do verdadeiro e fiar-se nos furos do real, é preciso trocar de medida: substituir o verdadeiro do sentido pelo sentido do real. Daí que o verdadeiro, no final, não pode mais coincidir com o real.

A dimensão topológica pela qual Lacan teoriza a estrutura do par-lêtre – dimensão esta que vai da teoria matemática dos grafos e redes, que Lacan utilizou já em 1956 (O seminário sobre ‘a carta roubada’), até as complexas relações entre toros e nós, em 1978 – revela sua pre-ocupação de extrair a formalização da psicanálise dos limites de uma lógica proposicional sempre reduzida à ordem dos ditos. Pela topolo-gia, Lacan busca mostrar o que é do dizer, visto que é só pelo dizer que os ditos se revelam em sua suplência. Mas o que é do dizer se ex-trai pela lógica temporal do nachträglich, e é a topologia, desde 1956, que permitiu a Lacan articular o tempo à estrutura. É pelo dizer que os ditos podem ser apreendidos como possíveis. É graças ao dizer que podemos conceber que “não há universal que não se reduza ao pos-

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Considerações topológicas da passagem do sintoma ao sinthoma106

sível”.10 Sem o dizer, o risco é de se tomar os ditos como necessários, como universais. É deste modo que entendo ser justificável que este esforço de teorização topológica de um caso clínico articule recursos de momentos tão distantes do ensino de Lacan: o que permite aqui a união dos mesmos é o inconsciente, que é topológico.

De volta ao caso, mais recentemente, uma sessão foi interrom-pida após a seguinte frase: “não sei por que nunca pude reconhecer isso, mas o fato é que eu posso ter brilho”: filho, pilho, brilho. Acerca deste significante brilho, menciono Lacan:

Conhecer quer dizer saber lidar com esse sintoma, saber desembara-çá-lo, saber manipulá-lo, saber – isso tem alguma coisa que corresponde ao que o homem faz com sua imagem – é imaginar a maneira pela qual a gente se vira com esse sintoma. Trata-se aqui, certamente, do narcisis-mo secundário; o narcisismo radical, o narcisismo que chamamos pri-mário estando, nessa ocasião, excluído. Saber se virar com o seu sintoma está aí o fim da análise; é preciso reconhecer que é conciso.11

Entendo que este brilho aparece nesta análise marcando o lugar do que Lacan12 chamou de escabelo.

Posso dizer, em resumo, que o sintoma do início, na for-ma do morrer de trabalhar, era um não saber que se gozava de um saber, enquanto o sintoma do fim, o fazer-se ver, é um saber gozar de um saber que não se sabe. Posso afirmar, assim, que houve uma mudança na posição desse sujeito diante do gozo.

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mourre. (1976-77). Edição heReSIa (para circulação interna). Inédito.

10. Lacan, O aturdito

(1972/2003, p. 450).

11. LACAN, O Seminário,

livro 24: L’ insu que sait de

l’une bévue s’aile à mourre

(1976-77/ inédito, p. 8).

12. LACAN, Joyce, o sinto-

ma (1975/2003).

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LACAN, J. O Seminário 25: O momento de concluir. (1977-78). Tra-dução de Jairo Gerbase. Inédito.

SOLER, C. Los ensamblajes del cuerpo. Medellín: Asociacion Foro Del Campo Lacaniano de Medellín, 2006.

ResumoA partir de fragmentos de um caso clínico, procuro tecer considerações topológicas da passagem de um morrer de trabalhar para Outro como sintoma obsessivo para um fazer-se ver entendido como um sintoma que se desco-lou da fantasia. A teorização do caso visa formalizar que, com a queda da consistência do Outro, o sintoma passa de uma resposta da fantasia que visa sustentar esse Outro por meio do sacrifício, para uma pura função F(x) em relação ao objeto a como causa, como o corte que produz

a borda e transforma o sintoma em resposta do real.

Palavras-chaveTopologia lacaniana, sinthoma, neurose obsessiva,

direção da cura.

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Considerações topológicas da passagem do sintoma ao sinthoma108

AbstractDeparting from the fragments of a clinical case, I try to post topological considerations about the change from a dying of working for the Other, as an obsessive symptom, to a make oneself be seen, understood as a symptom which detached itself from the fantasy. The theorization of the case intends to formalize that, with the fall of the Other’s consistency, the symptom changes from an answer to the fantasy that intends to sustain the Other by means of sacrifice, to a pure function F(x) in relation to the object a as cause: as the cut off which produces the margin and

transforms the symptom in an answer to the real.

Keywords Lacanian topology, sinthome, obsessional neurosis, direc-

tion of the cure.

Recebido04/02/2011

Aprovado10/03/2011

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109Stylus Rio de Janeiro nº 23 p. 109-124 novembro 2011

O corpo falante de Gina1

Lenita Pacheco Lemos Duarte

A proposta deste texto é pesquisar se a dermatite atópica2 apre-sentada pelo sujeito criança Gina deve ser tomada como sintoma ou fenômeno psicossomático.

Na clínica psicanalítica defrontamo-nos com os mais variados sintomas que indicam enigmas a serem decifrados pelo sujeito. Aprendemos que o sintoma constitui uma formação do inconscien-te, uma formação da linguagem. O sintoma fala, jogando com o equívoco da língua. Segundo Freud, “os sintomas têm um sentido e se relacionam com as experiências do paciente”.3 Portanto, o sin-toma é uma mensagem plena de sentido latente a ser desvelado, e condensa uma significação. No artigo Inibições, sintomas e angústia Freud afirma que o sintoma “é o sinal e o substituto de uma satisfa-ção pulsional que não teve lugar”.4

Como indica Lacan, o sintoma é uma metáfora cuja função é dar consistência de ser ao sujeito, que, no lugar de sujeito do incons-ciente, é da ordem da falta-a-ser. O sintoma pode ser entendido em psicanálise por suas vertentes de metáfora e de gozo. Assim, temos duas definições de sintoma que são complementares e não exclu-dentes. Temos o sintoma como significado do Outro, tal como vai aparecer no gráfico do desejo s(A), em que Lacan vai nos dizer que o sintoma aí aparece como uma resposta a uma questão, a que se coloca para o sujeito como sua determinação significante a partir do Outro. O sintoma como mensagem do Outro para o sujeito, uma mensagem como discurso, que é do inconsciente. O sintoma é a estratégia que o sujeito tem para se relacionar com o Outro, do ponto de vista sexual. O sintoma é uma mensagem do Outro (do pai, da mãe, ou substitutos).

Em análise, o sintoma é endereçado pela cadeia dos significantes ao analista, que está no lugar do Outro (A), cabendo-lhe transfor-mar esse sintoma na questão, nomeada por Lacan de “Que queres?” (che vuoi),5 questão chamada desejo. O sintoma tem um sentido que se tenta fazer deslizar na cadeia significante, deslizar até en-contrar o não sentido. O sintoma é um nó de significantes, daí a estrutura de linguagem. Uma análise consiste em deslizar o sentido até o indecifrável. O ponto a partir do qual não se pode mais ir, que Freud chamou o umbigo do sonho, de rochedo da castração, o ponto em que para o deciframento do sentido.

1. Parte deste trabalho foi

apresentado originalmente

na V Jornada de Formações

Clínicas do Campo Lacania-

no em 11/2004.

2. Doença nomeada tam-

bém como eczema. A neuro-

dermatite se define como um

problema caracterizado pela

reação de hipersensibilidade

(relacionada com alergia) na

pele, caracterizada por infla-

mação, coceira e esfoliação.

A exposição a fatores irritan-

tes do meio ambiente pode

piorar os sintomas, como

o ressecamento da pele,

exposição à água, alterações

de temperatura e estresse.

3. FREUD, Conferência

XVII: O Sentido dos Sintomas

(1916/1980, p. 305).

4. FREUD, Inibições, sin-

tomas e angústia (1926 [1925]

1980, p. 112).

5. LACAN, Subversão do

sujeito e a dialética do desejo

(1960/ 1988, p. 829).

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O corpo falante de Gina110

O sentido enquanto indecifrável, enquanto letra de gozo, vai ser conceituado por Lacan a partir do Seminário RSI, 1975, como o quarto nó que ata os três registros: real, simbólico e imaginário. Esta é a última definição de sintoma em Lacan: “a forma como cada um goza do seu inconsciente, enquanto é o inconsciente que o determina”. Temos então o sintoma como o verdadeiro parceiro do gozo do sujeito, aquele que surge para fazer existir a relação sexual.

Na Conferência de Genebra sobre o sintoma, 1975, Lacan indi-ca que o único sentido possível ao sintoma é sexual, tendo como referência a obra de Freud: Conferências introdutórias à psicanálise, Conferência XVII, O sentido dos sintomas. Na Conferência XXIII, Os caminhos da formação dos sintomas, Freud introduz no sintoma a dimensão do evento, ou seja, a manutenção do acontecimento sexual. O sintoma está presente no encontro com o sexo, ou seja, no trauma. O sentido do sintoma é o real do sexo. Nessa Conferência Freud destaca que os sintomas neuróticos são resultado de um con-flito, e que este surge em virtude de um novo método de satisfazer à libido. Um dos componentes do conflito é a libido insatisfeita, que foi repelida pela realidade e agora vem procurar outras vias para se satisfazer. Freud aponta ainda no mesmo texto que a investiga-ção analítica mostra que a libido dos neuróticos está ligada às suas experiências sexuais infantis, ressaltando que os mesmos processos pertencentes ao inconciente têm o seu desempenho na formação dos sintomas, tal qual o fazem na formação dos sonhos, ou seja, condensação e deslocamento.

O fenômeno psicossomático (FPS)

O FPS não recebe o estatuto de sintoma freudiano. Ele atesta uma incidência do significante no real que é muito perturbadora. Por trás do FPS temos a holófrase, “que é um termo usado pela lin-guística para designar a estrutura de algumas línguas, denominadas holofrásicas, cujos componentes básicos da frase – sujeito, verbo e predicado – são aglutinados numa só palavra”.6

Tal como o sintoma, o FPS também se inscreve no corpo, e o sig-nificante determina o que pode acontecer com esse corpo. Por não ter apenas relação com o significante, pela marca que imprime no corpo, o FPS constitui um dos grandes enigmas para a psicanálise.

O termo psicossomática traz em si o problema do dualismo en-tre o corpo e a alma, dentro de uma perspectiva cartesiana, que excluía da razão tudo o que fosse singular, uma verdade do sujeito, por exemplo, que não se enquadra no universal da ciência.

Na psicossomática trabalha-se com a visão de categoria de gozo e suas incidências sobre o corpo. Lacan vai nos mostrar que existe

6. ELAEL, Pesquisa: A ho-

lófrase e o posicionamento do

sujeito diante dos S1 absoluto

(2008, p. 53).

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algo para além do órgão que extrapola a sua função. Qual seria a re-lação entre estes dois termos para Descartes? Haveria entre ambos a relação de oposição. Para os cartesianos o corpo não pensa, e o que define a alma é o pensamento. O que faz parte da razão, da verdade, da ciência, jamais se mistura com o que faz parte do corpo. Des-cartes excluía da razão tudo o que fosse singular, uma verdade do sujeito, por exemplo, o que não se enquadra no universal da ciência, que se sustentava no dualismo. O ponto de ruptura acontece com Freud, que apresenta uma linha de pensamento que rompe com essa situação. Ao falar das pulsões, Freud fala de conceitos básicos e questiona o limite no universal na clínica, destacando a singulari-dade de cada caso. A importância do conceito do inconsciente e da sexualidade vai mostrar como a ciência não inclui o sujeito.

Para Freud, o FPS é uma libido corporificada que se instala no corpo e causa uma ferida. É possível pensar o gozo no FPS instalado num pedaço de carne, sobre o corpo. Tenta-se se superar o dualismo pela via da linguagem. Não se pode pensar o FPS como algo somente da ordem médica, mesmo que se trate de uma lesão orgânica, mas tratá-lo a partir da teoria das pulsões e da linguagem. Há no incons-ciente representantes, assim como há alguma coisa que escapa à re-presentação inconsciente. Temos, então, a pulsão, que segundo Freud corresponde àquele resto que escapa aos pensamentos inconscientes.

Lacan vai propor algo fora do pensamento dualista em que Freud já trabalhava, colocando a fonte da pulsão no organismo. Com as dificuldades geradas pelo dualismo, Lacan tenta uma solução com a teoria da subversão do sujeito, 1960. O sujeito, para Lacan, é sub-vertido pela linguagem – significante que opera uma subversão – definindo o sujeito pelo significante, o que vai influir na relação do corpo por meio da linguagem. Lacan vai mostrar o poder da lingua-gem sobre o sujeito. A formalização lógica da linguagem para Lacan é não-toda, inclui um resto que ele chama de gozo, que correspon-deria a uma dimensão real. O esquema lacaniano dilui o dualismo porque o campo da linguagem não é fechado, não totalizado, é não todo. Toda operação significante vai se apresentar como interior e ao mesmo tempo exterior ao tesouro dos significantes.

Lacan dedicou-se a pesquisar o FPS em momentos distintos de seu ensino, apresentando suas construções e conclusões sobre a ho-lófrase. Em O Seminário, livro 1, formula: “toda holófrase se liga a situações-limite, em que o sujeito está suspenso numa relação espe-cular com o outro”.7

Em 1964, no Seminário, livro 11, Lacan trabalha a questão da holófrase nas operações de constituição do sujeito, alienação e se-paração, quando coloca o FPS em série com a debilidade mental e a psicose, precisando a sua localização limítrofe em relação ao sim-bólico. Em suas palavras, “quando a primeira dupla de significantes

7. LACAN, O Seminário:

livro 1: os escritos técnicos

de Freud (1953-54/ 1979,

p. 258).

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O corpo falante de Gina112

se solidifica, se holofroseia, temos o modelo de uma série de casos – ainda que, em cada um, o sujeito não ocupe o mesmo lugar”.8 Esta formulação, entretanto, apresenta uma questão complexa. O que Lacan quer dizer quando refere que o sujeito não ocupa o mesmo lugar nos três casos? Tal indagação nos remete à análise do efeito da holófrase na debilidade mental, na psicose e no FPS, objetivando situar o lugar que o significante S1 em holófrase ou congelamento ocupa diante do sujeito. Esta análise, no entanto, não será desen-volvida neste trabalho.

O FPS pode ser tratado como um modo de pensar médico, no qual se trabalha com a oposição do discurso científico (corpo e alma), ou como um modo de pensar analítico, diferente do pensa-mento da medicina. O FPS é um fenômeno e não uma estrutura. Ele está subordinado à estrutura, intimamente ligado ao sujeito. Há situações em que “estrutura e fenômeno se confundem”9 e, como sabemos que o FPS pode incidir em todas as estruturas clínicas, depreendemos disso que todo sujeito poderá ser acometido por ele, dificultando um diagnóstico preciso em vários casos.

Feitas estas considerações teóricas, vejamos agora recortes do caso de um sujeito criança que apresenta dermatite atópica. Trata-se de um sintoma ou de FPS? Essa questão apareceu no caso de Gina, que será relatado a seguir.

Durante as entrevistas preliminares com a mãe, ela revelou que Gina, atualmente com sete anos, foi muito manipulada por vários médicos em virtude dos problemas orgânicos evidenciados. Come-çou a apresentar rinite e conjuntivite alérgica com cerca de um ano e meio, apresentando muita coceira, coriza e lacrimejamento, o que a levou ao otorrino e ao alergista. Foi encaminhada à dermatolo-gista com três anos de idade, quando apareceram os problemas na pele, recebendo o diagnóstico de dermatite atópica. A mãe revelou que os sintomas da dermatite, “inflamação na pele”, apareceram sob a forma de coceiras no corpo que transformavam-se em feridas e machucados, após a manipulação das áreas afetadas. Com quatro anos, a escola sinalizou que a menina apresentava uma linguagem “tatibitate”, trocando fonemas, além de intensa agitação e falta de concentração, sendo então encaminhada à fonoaudióloga. A mãe disse que a filha não se olhava no espelho, pois achava-se feia com as marcas que apresentava no rosto e no corpo, além das intensas olheiras, lacrimejamento e catarro nasal.

Gina é filha de um relacionamento de constantes “idas e vindas” entre seus pais, e o seu genitor era casado com outra mulher com quem tinha dois filhos adolescentes. A menina “é louca pelo pai”, segundo a mãe, mas poucas vezes o vê, porque ele viaja muito a trabalho. A mãe informa que quando Gina se arruma e prepara sua bolsa esperando para sair com o pai e ele demora a chegar, ela

8. LACAN, O Seminário:

livro 11: os quatro conceitos

fundamentais da Psicanálise

(1963-64/1996, p. 225).

9. VALAS, Horizontes da

psicossomática (1990, p. 70).

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fica muito ansiosa. Vai para a janela aguardá-lo e começa a roer as unhas. Na expectativa de ver o seu carro chegar, que geralmente demora, e que às vezes nem aparece, ela começa a chorar e depois se coça compulsivamente, chegando a se ferir. A mãe considera que os sintomas apresentados pela filha têm relação com causas emocionais e com as mudanças do tempo. Ela diz que não tem paciência para atender a menina, porque “conhece bem a peça”, referindo-se ao ex--companheiro, ou seja: “Um atraso dele, pode levar horas, também não avisa que não vem”. A mãe permite que ele veja a filha quando quer, e que só recorreu à Justiça para requerer a pensão alimentícia, porque ele ignorava as datas de fazer os depósitos, deixando-as em dificuldades financeiras.

Para a dermatite Gina usa sabonete, creme e protetor labial dia-riamente, que funcionam como uma proteção, responsável pela hidratação de sua pele. Embora reconheça problemas de origem emocional nas queixas apresentadas por sua filha, a mãe faz questão de ressaltar a parte física, que a faz necessitar ingerir um remédio antialérgico diariamente. Quando não faz uso dele, os olhos coçam, o nariz escorre, e ela acaba se esfolando e se ferindo no rosto e no corpo por causa da coceira, apresentando também cabelo e pele ressecados, além de intensas olheiras que lhe conferem um aspecto de tristeza, abatimento e envelhecimento precoce. Gina expressa intensa necessidade de abraçar e ser abraçada. Segundo a mãe, ela “não tem limites”, querendo agarrar todos que encontra. Quando Gina iniciou a análise apresentava uma imagem desvalorizada de seu corpo e de seu rosto. Desenha a figura de um “espantalho”, afirmando que este a representava: “Este sou eu. Sabe para quê ele serve? Para espantar as pessoas”, (figura 1).

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Ao desenhar a família, representa a mãe grávida, e colocou-se ainda dentro de sua barriga, quando exclamou: “Eu nem sei quem sou eu, ainda nem tenho braços. Não sei fazer eu fora da barriga da mãe”. Ao lado estavam sua irmã e seu irmão por parte de pai, de 15 e 17 anos, respectivamente. Afirmou a seguir: “Eles não têm pai, ele morreu!”, (figura 2).

Depois, desenhou apenas a cabeça de uma figura humana, e a seguir, dando sequência à figura, desenhou meninas, quando excla-mou: “Estão horríveis!”. Geralmente faltavam partes do corpo ou en-tão ela as anulava, rabiscando-as. As figuras eram sempre nomeadas com seu próprio nome (figuras 3 e 4). Em seguida, afirmou que o seu maior desejo era ter os dois braços, pois ela só tinha “cotoquinhos”.

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Além dos desenhos, suas brincadeiras repetiam sempre histórias de casais que moravam juntos em uma casa e tinham filhos. As cenas de beijos eram constantes, e ela sempre colocava o homem e a mulher na cama agarrados, tentando fazer existir a relação sexual. Geralmente mostrava-se muito excitada com a cena e com as fanta-sias sexuais que ela criava. Ficava muito agitada com o retorno das viagens do pai das crianças, procurando deixar o casal nu, depois de tirar e botar, inúmeras vezes, suas roupas. Em certas ocasiões dizia que tinha namorado; e em outras, que ninguém queria sua com-panhia por ser feia, e que os garotos preferiam as meninas bonitas.

Um dia, após uma crise forte de rinite e eczema, quando veio com uma caixa de lenço e com cerca de 30 curativos espalhados pelo corpo, fez um desenho de duas figuras femininas, em que escancarou o real do corpo, ou seja, pontilhou muitas marcas es-palhadas pelo corpo de uma das figuras, expondo seu sofrimento. Afirmou que “a menina machucada, cheia de feridas e esparadrapos era ela e a outra era a avó”, em quem busca amor e apoio em seus momentos de angústia, e em seguida nomeou-a como “a analista”, apontando para uma transferência imaginária (figura 5).

Certo dia Gina exclamou: “Eu não posso esperar nada do meu pai, ele não liga para mim, mas também não posso desistir”. Segun-do a mãe, o pai “é um passivo perigoso, um mulherengo que está no sexto casamento”. Diz que Gina é apaziguadora, e que hoje conse-

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O corpo falante de Gina116

gue falar algumas coisas que pensa, como: “Até hoje fico com raiva, quando vejo que não tem jeito”. A genitora informa que quando sua filha reclama da ausência do pai, ela fala a verdade para ela, afirmando que esta é a forma de ele amá-la, assim como a mãe dele, a avó paterna, e seus irmãos. A família do pai de Gina a trata com carinho, procurando estar sempre presente na vida da menina. Eles comparecem à festa dela e o pai não, quando começam as pergun-tas de Gina: “Meu pai não veio, por quê? Eu fico sentida porque ele não me procurou no meu aniversário. Estou cansada disso, vou falar com ele”. Logo depois recua, dizendo: “Mãe, resolvi não falar nada com meu pai sobre aquele assunto. Passado é passado. Achei melhor não falar do passado para não estragar os poucos momentos felizes que tenho com ele”.

Atualmente, a mãe procura explicar a Gina que ele é seu pai, mas que não representa mais nada para ela como marido e amigo, buscando separar, desta forma, a relação parental da conjugal, em-bora o tenha sempre “supervalorizado” para ela. Explica que após os encontros frustrantes com o pai, Gina começa a respirar mal: “O nariz entope, vem a ansiedade e a inquietude”. Ao relatar à analista uma consulta da filha com o alergista, exclamou num ato falho: “O médico sabe que Gina é separada do marido”. Após tal afirmativa, pontua a analista: “Gina separada?” E ela responde, desculpando--se: “Eu queria dizer que eu que não vivo com o pai dela, eu que sou separada”. Aqui observamos a identificão da mãe com o lugar de fi-lha. A mãe diz perceber que as mudanças de temperatura reforçam a dermatite, que passam a aparecer em determinados lugares, nos quais ela se queixa de dor: “No cotovelo, no peito e nas nádegas”. A genitora acrescenta que a dermatite começa em certos lugares carac-terísticos, como nas dobras do braço e das pernas, exclamando: “O lugar muda como se estivesse indo embora, mas depois volta. Apa-rece atrás da orelha, ficando primeiro aquela coisa escondida que depois vai se espalhando”. Comenta que também é frequente Gina apresentar dermatite quando chega em casa e não encontra a avó. Imediatamente pergunta por ela, imaginando que algo pode ter-lhe acontecido, chegando até a pensar em sua morte. Nestes momen-tos, Gina evidencia angústia e fantasias de morte, do mesmo modo que apresenta quando não vê o pai nos dias marcados, chegando a referir no seu desenho (figura 2) que “ela e os irmãos não têm pai, ele morreu!”. A mãe considera que a avó faz o papel do pai, mas que briga com a filha quando é necessário, dizendo para a analista: “Cada um faz um papel lá em casa, eu que coloco a lei”.

Nos dias atuais, embora não seja muito vaidosa, nem chegada a batom, Gina mostra-se preocupada com os cabelos, inventando penteados diferentes e buscando admirar-se no espelho, inclusive na escola, quando se distrai nas tarefas. Recentemente está mais

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independente, adorando passar dias na casa de amigas. Quando sai, acaba esquecendo de levar os cremes e os remédios. E quando a mãe liga para lembrá-la, ela responde: “Esquece isso, mãe, eu estou bem. Pare de me tratar como um bebê”. A analista indaga à mãe se Gina refere alguma queixa nessas situações. Ela responde que não, pois acha que quando a filha está feliz e distraída, ela passa bem. No entanto, a mãe fica ansiosa em prestar-lhe os cuidados necessários para evitar as crises alérgicas de repetição. Comenta que está apren-dendo a se policiar ao não mandar a bolsa de remédios, deixando Gina sair sem nada. Diz que há pouco tempo teve um namorado a quem a filha chamava de tio. Segundo a genitora, “o rompimento da relação foi igual a um aborto, tirado à força, como se tivesse sido cortado com a faca”. Apesar disso, só no relacionamento com ele que ela pôde experimentar o que é ser amada, fato que não acon-teceu com o pai de Gina, que não se interressava por ela, e nem se envolvia com nada, nem com os filhos. Atualmente, a menina vive falando que a mãe precisa de outro namorado, que até conheceu um homem que faz o tipo dela, que vai interessá-la!

De que maneira Gina reage perante a relação conturbada entre seus genitores e a situação de abandono e rejeição por parte de seu pai? Este caso nos levanta várias questões, pois seu corpo foi também afetado, evidenciando marcas de situações traumáticas vivenciadas no meio fa-miliar. Até que ponto Gina não “passa dos limites em suas coceiras”, até provocar feridas em seu próprio corpo, obtendo daí um gozo?

Segundo Valas, “o termo gozo (Lust ou Genuss) foi utilizado por Lacan e por Freud como sinônimo de alegria, prazer, mas princi-palmente de prazer extremo, beatitude, êxtase ou volúpia, quando se trata de satisfação sexual”.10 Freud utiliza Genuss (gozo) quando quer ressaltar o caráter excessivo de um prazer, associando-o em certas situações com o júbilo mórbido ou o horror. Embora Freud não tenha conceituado o gozo, ele definiu o seu campo, situando-o no mais-além do princípio do prazer, regulando o funcionamento do aparelho psíquico, no qual se manifestam como prazer na dor, fenômenos repetitivos que podem ser remetidos à pulsão de morte. Como indica Lacan, o prazer e o gozo não fazem parte do mesmo registro. O gozo se apresenta sempre como um excesso em relação ao prazer confinando com a dor. O referido autor vai redefinir a pulsão de morte caracterizando-a como uma pulsação de gozo que insiste na repetição da cadeia significante inconsciente. Ao perceber que nem tudo pode ser dito pela linguagem, Lacan se depara com uma dificuldade associada à sua concepção do inconsciente estrutu-rado como uma linguagem, para explicar as manifestações do gozo que escapam ao funcionamento de princípio de prazer.

Gina referiu que, “em certas ocasiões, ninguém quer a sua com-panhia por ser feia”. Procura expressar-se por meio de desenhos e

10. VALAS, As dimensões do

gozo (2001, p. 7).

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O corpo falante de Gina118

nomear-se de vários modos, como: um “espantalho que espanta as pessoas” (figura 1); em estado de gestação, quando exclama: “Eu nem sei quem sou eu, ainda nem tenho braços. Não sei fazer eu fora da barriga da mãe” (figura 2); como “meninas horríveis”, uma sem pernas e que só tem cotoquinhos no lugar dos braços, e outra com braços e pernas, mas que logo ela procura destruir, rabiscando-a (figuras 3 e 4); e como “uma menina machucada, ferida”, (figura 5), na qual observam-se expressões pictóricas de um sujeito criança cheio de marcas, marcas que nos fazem pensar no FPS, e na possível existência de uma falha narcísica. Nesse sentido, podemos indagar até que ponto o fenômeno mascara a estrutura neste caso, no qual se presentifica a pulsão de morte,11 com demontrações de prazer na dor, de referências repetitivas de autodesvalorização. Parado-xalmente, Gina ora se apresenta regredida, posicionada “dentro da barriga da mãe grávida”, com fala “tatibitate”, ora evidencia ditos de um sujeito adulto compreensivo, que procura desculpar e compre-ender “o pai que falha, que falta para conter a lei do puro capricho da mãe”, uma mãe onipotente e absoluta que priva e doa de acordo com seu próprio desejo, o que pode ser ilustrado pelo dito materno: “Lá em casa eu que coloco a lei”. No entanto, em um momento posterior do tratamento, Gina indaga: Por que papai não veio?, o que sugere um apelo ao pai.

No ato falho da mãe: “Gina é separada do marido”, observa-se que a menina encontrava-se identificada imaginariamente à mãe, que “espantou” o companheiro, sendo desprezada como mulher, ob-jeto causa de desejo do parceiro. O referido dito da mãe equivale a um nó de significações tendo efeito equivocado e enigmático sobre a menina, que procura decifrá-lo. “Ter tido um marido” está associado à questão da sexualidade, vindo no lugar do que está recalcado, tema geralmente proibido. Como Gina vem atendendo a essa fala materna e ocupando o referido lugar? Tal situação colaborou, provavelmente, para o aparecimento dos sentimentos de rejeição, abandono, perda e desvalorização evidenciados nos desenhos, falas e brincadeiras repe-titivas de Gina que indicam um sujeito angustiado, principalmente no momento em que caminha em direção à feminilidade.

Nos artigos sobre metapsicologia O Inconsciente, A pulsão e seus destinos e O recalque, Freud une a teoria do inconsciente com a te-oria pulsional, mostrando que a pulsão tem sempre a característica de ser parcial. Essa pulsão tem uma representação na linguagem, que se encontra no inconsciente. Porém, há uma parte que não é en-contrada no inconsciente, que é a parte energética, segundo Freud, o que Lacan mais tarde vai chamar de real pulsional da libido.

O que Freud chama de pulsões parciais é que vão originar o que é propriamente a sexualidade humana. O que constitui o que ele nomeou de zonas erógenas corresponde à ação da linguagem

11. LAPLANCHE e

PONTALIS. “A noção de

pulsão de morte foi introdu-

zida por Freud em Além do

princípio do prazer (1920) e

é constantemente reafirmada

até o fim da sua obra. No

quadro da última teoria das

pulsões, Freud designa uma

categoria fundamental de

pulsões que se contrapõem às

pulsões de vida e que tendem

para a redução completa

das tensões, isto é, tendem

a reconduzir o ser vivo ao

estado inorgânico. Voltadas

inicialmente para o interior

e tendendo à autodestruição,

as pulsões de morte seriam

secundariamente dirigidas

para o exterior, manifes-

tando-se então sob a forma

da pulsão de agressão ou de

destruição”, (1991. p. 407).

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do Outro (mãe ou substituto) sobre essas estruturas de borda. O processo de erogenização não se restringe às regiões corporais espe-cíficas, mas espalha-se por todo o corpo do sujeito, transformando--o assim num corpo erógeno, num corpo pulsional. Lacan isola no circuito pulsional a própria ação do significante sobre o organismo biológico. Para Lacan, “a pulsão é uma montagem com a qual a sexualidade participa da vida psíquica, de uma maneira que deve se conformar estrutura de hiância, que é a do inconsciente”.12

Após as pesquisas realizadas e o estudo clínico do caso da der-matite atópica de Gina, preliminarmente lançamos a hipótese diag-nóstica de um sujeito que apresenta fenômenos psicossomáticos. O que pode fazer a psicanálise neste caso?

Lacan volta ao tema do FPS em O Seminário, livro 22: R.S.I., em 1974, quando procura falar do gozo do Outro que se localiza entre o Real e o Imaginário, fora do Simbólico; e em 1975, na Conferência de Genebra sobre o sintoma, destaca a importância do gozo específico no FPS, [J(A)]. Aqui, localiza-se uma questão para os analistas que recebem pacientes portadores de FPS, apontada por Colette Soler13, como ressalta Ribeiro: “assim como, no sintoma neurótico, podemos tratar por meio da associação livre, o gozo fálico (Jɸ) pelo gozo do sentido, será possível apostar em fazer passar também esse gozo es-pecífico [J(A)] e enigmático pelo gozo da fala [J-sens]?”.14

Transportando a referida questão para o caso em pauta, ob-serva-se que a experiência analítica convoca o sujeito a se implicar em suas questões de forma a encontrar respostas distintas do FPS, buscando deslizar do significante congelado, inscrito na carne, em seu trabalho de decifração inconsciente. O tratamento vem mobi-lizando, de alguma maneira, os fenômenos apresentados por Gina, quando é possível observar que ela vem fazendo associações livres, se deslocando do lugar de “espantalho”, daquele que espanta as pes-soas, de um objeto “nas mãos de sua mãe, dispensando os ditos e excessivos cuidados dela, desviando seu olhar à procura de espelhos que reflitam outras imagens mais libidinizadas e valorizadas, ao in-ventar penteados diferentes, ao buscar a companhia das amigas”. Gina sinaliza a emergência de um sujeito histericizado e desejante, o que indica a entrada em análise mediante suas interrogações e afirmações, por exemplo: “Papai não veio, por quê?”, “Meu maior desejo é ter dois braços”, e a transferência imaginária com a analis-ta, ao afirmar diante da figura 5: “A menina machucada e ferida sou eu e a outra é você”. Nesta figura ela se desenha toda marcada com pontos e traços que indicam os machucados cobertos por espara-drapos, mostrando-se como ela é, com cabelo preto; e ao seu lado desenha outra figura com cabelo pintado de amarelo, que aponta para a analista, que é loira, a qual está na posição de parceira de suas brincadeiras, falas e associações. Aos poucos Gina vai se descolando

12. LACAN, O Seminário:

livro 11 Os quatro conceitos

fundamentais da psicanálise

(1963-64/1996. p. 167).

13. SOLER, Apud Ribeiro

(1995/2004, p.53).

14. RIBEIRO, O traço que

fere o corpo (2004, p. 53).

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O corpo falante de Gina120

da auto imagem desvalorizada, condensada nos significantes “es-pantalho; menina sem braços, só com cotoquinhos; meninas hor-ríveis; menina feia; menina machucada; menina ferida”, lançando mão de significantes que expressam a emergência da libido, de um desejo fálico de ser amada, metaforizado pela sua fala dirigida à mãe “de que conheceu um homem que faz o tipo dela”. Aqui, pode--se indagar se os significantes que ela se atribuía, desvalorizando--se, não convergiam, em última instância, para a holófrase “menina feia”. Partindo desta suposição, pode-se pensar numa abertura da holófrase com o tratamento analítico, quando se observa um gozo fálico, no sentido de gozo significante que foi esvaziado de seu gozo enigmático. Assim, por meio da análise, Gina demonstra a possi-bilidade de passagem do gozo do Outro para um gozo fálico, e do gozo fálico para o gozo do sentido.

A aposta da psicanálise no fenômeno psicossomático é que o sujeito suporte falar, não da lesão apresentada enquanto tal, mas da constelação significante que é sua vida. É importante tentar recolo-car o nó na cadeia significante do sujeito. O órgão não fala e a lesão cala o sujeito, portanto, é necessário fazê-lo falar para que apareçam os significantes que o aprisionam e norteiam a sua vida.

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O corpo falante de Gina124

ResumoNa clínica psicanalítica, os sintomas constituem forma-ções do inconsciente que indicam enigmas a serem deci-frados. O sintoma condensa uma significação, segundo Freud; e para Lacan, é uma metáfora cuja função é dar consistência de ser ao sujeito do inconsciente. No fenô-meno psicossomático (FPS) trabalha-se com a visão de categoria de gozo e suas incidências sobre o corpo, ates-tando a incidência do significante no real. A partir dessas pontuações, levanto questões e a hipótese diagnóstica de um caso de minha clínica, um sujeito criança que apre-

senta dermatite atópica.

Palavras-chave Corpo, significante, sintoma, gozo, fenômeno psicosso-

mático, dermatite atópica.

AbstractIn psychoanalysis, the symptoms are unconscious forma-tions which indicate enigmas to be deciphered. Accor-ding to Freud, the symptom synthesizes significance, whi-le for Lacan it is a metaphor which provides consistency of being to the subject. The psychosomatic phenomena (PSP) must be managed with a view of jouissance category and its effects on the body, attesting the incidence of the significant in the real. Based on these reflections, I raise questions and the diagnostic hypothesis of a clinical case

of mine, a child who has developed atopic dermatitis.

KeywordsBody, symptom, jouissance, psychosomatic phenomena,

atopic dermatitis.

Recebido17/01/2011

Aprovado11/03/2011

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125Stylus Rio de Janeiro nº 23 p. 125-135 novembro 2011

Considerações sobre o gozo em um caso clínico de psoríase

Heloísa Helena Aragão e Ramirez

& Tatiana Carvalho Assadi

Se o que mais existe de mim mesmo está do lado de fora, não tanto porque eu o tenha projetado, mas por ter sido cortado de mim, os caminhos que eu seguir para sua recuperação oferecerão uma varie-dade inteiramente diferente.1

O trabalho desenvolvido no Instituto da Pele, da UNIFESP, nos colocou em contato com a psoríase, doença de pele que no Brasil atinge mais de cinco milhões de pessoas. Trata-se de uma afecção crônica de causa desconhecida que pode se apresentar desde formas mínimas, com pouquíssimas lesões, até a chamada psoríase eritro-dérmica, na qual toda a pele se encontra comprometida. A forma mais frequente é a psoríase em placas, que se caracteriza pelo surgi-mento de lesões avermelhadas e descamativas na pele. Ocorre igual-mente em homens e mulheres. A medicina leva em consideração que em boa parte dos casos, fenômenos emocionais podem estar relacio-nados com o surgimento ou o agravamento da psoríase, associado a uma predisposição genética para a doença. O mal-estar geralmente é determinado pelo prurido e pela coceira, e nos casos mais severos, pelo aspecto das lesões, que em geral é motivo de vergonha e senti-mento de rejeição. Quase invariavelmente nos deparamos na clínica com a repercussão psíquica do impacto que a doença causa na rela-ção do sujeito com o laço social, evidenciada pela lesão que se mostra na pele, e que interfere na maneira do sujeito existir no mundo.

Helena foi indicada para fazer análise por outra paciente que também “lutava contra a psoríase”, uma indicação que passou, sem dúvida, pela suposição de saber uma vez que a analista estava vincu-lada à coordenação do projeto alocado no Instituto da Pele (UNI-FESP): “Aspectos Psicológicos do Paciente com Vitiligo e Psoríase”, ligado à Rede de Sintoma e Corporeidade do FCL-SP. No entanto, não é difícil conjeturar que neste primeiro momento a transferência não estava colocada na suposição de saber sobre o sujeito do in-consciente, como é de se esperar em um caso de análise, mas numa suposição de saber sobre o objeto psoríase, com o qual Helena con-

1. Lacan, O Seminário:

livro 10: a angústia (1962-

1963/ 2005, p. 256).

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Uma construção do sintoma na criança126

vivia havia mais de 30 anos. Tanto foi assim, que pediu à analista a indicação de um médico que pudesse ajudá-la a se livrar de uma vez por todas, “dessa coisa horrorosa”, disso que “impregnou seu corpo”. Disse à analista que estava esperançosa e reanimada pela possibilidade de fazer um “tratamento novo, mais abrangente” por meio do qual ela iria conciliar os avanços da medicina, e quem sabe por um fim definitivo, às feridas de seu corpo, e contaria, para isso, com a ajuda da psicanálise.

Em A terceira, Lacan disse que sempre existe uma expectativa de êxito da psicanálise: “O que lhe pedimos é que ela nos livre tanto do real quanto do sintoma”.2 Mas como psicanalistas, entendemos que não é desse lugar que devemos responder. Foi justamente isso que me fez rever este caso e pensar o que operou no manejo que produziu um efeito terapêutico reduzindo a psoríase a zero. Dife-rentemente da demanda médica, cujo princípio é eliminar o sinto-ma, para a psicanálise “o sintoma é uma formação de gozo singular, determinada ou ordenada pelo inconsciente”, e atua como “solu-ção”, uma vez que surge na suplência ao “corpo a corpo de gozo”.3 A questão que está posta é “saber se e como a psicanálise, que opera pela palavra, dá um acesso eficiente a algo do corpo que seria real”.4

O que da história de Helena foi subtraído e inscrito no real do corpo, ferindo a carne?

Nos primeiros encontros com o dispositivo de análise ela se li-mitou a descrever o longo percurso que trilhou e os detalhes da peregrinação na busca de algo que resolvesse sua psoríase. A ana-lista manteve o silêncio durante boa parte das entrevistas, e que foi interrompido pela a questão: “Pare... Diga-me o que veio fazer aqui?”. Surpresa pela repentina interrupção em sua falação, Helena consegue responder: “eu sei que boa parte do meu mal tem a ver com minha cabeça. Eu sei que tudo tem a ver com o meu emocio-nal. Eu sei que você pode me ajudar”. Estabelecia-se aí um reposi-cionamento da analista, o início de uma transferência dirigida ao sujeito suposto saber da psicanálise e uma modesta implicação com o dispositivo de análise.

Foi um choro convulsivo e copioso o que marcou daí para frente as entrevistas preliminares. Ao sentar-se na poltrona do consultório, invariavelmente, a garganta de Helena se embargava, impedindo-a de falar livremente. Sua voz se ouvia entrecortada por soluços, sons e fungadas e, muitas vezes, apenas grunhidos. Eram momentos de muita aflição em que a analista precisava esperar um bom tempo para que a analisante se recuperasse da angústia que a experiência suscitava e pudesse articular alguma fala, estratégia que tornava as sessões mais longas, mas era uma tentativa de fazer emergir ali al-guma revelação. Havia sessões em que Helena expressava apenas sons, sem sentido, nenhuma palavra, ela não sabia o que dizer e

2. Lacan, A Terceira,

31/10/1974.

3. Soler, Sintoma, Aconte-

cimento de corpo (2010, pp.

31-52).

4. Soler, A psicanálise e o

corpo no ensino de Jacques

Lacan (2010, pp. 65-91).

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127Stylus Rio de Janeiro nº 23 p. 125-135 novembro 2011

nem por que o choro aflorava quando estava com a analista. Helena não compreendia o que se passava, era algo mais forte do que ela, alguma coisa que fugia ao seu controle. Esses episódios me fizeram pensar em algo como uma reatualização de lalíngua. Seria possí-vel? Um som separado de sentido, mas afetado, gozado pelo corpo, um som reatualizado na experiência de análise de uma erupção de gozo cuja origem aconteceu mesmo antes da fala primeira? Esta é uma questão que merece consideração maior e que deixo aqui para futura discussão.

Extraí da história desta paciente alguns pontos que considero relevantes e que vale a pena relatar. Somente agora que ela estava com quase 60 anos, resolvera procurar por uma análise. Vivera toda a sua vida abalada pela tristeza. “Sozinha”, não tinha com quem contar. Havia muito tempo que sua família se “acabara”. Hoje, só tem um irmão vivo e não consegue se entender com ele. Mas Hele-na diz que sempre foi assim: “sozinha”! Tinha apenas dez anos na época em que sua mãe morreu, e esta foi uma experiência terrível. “Eu ainda precisava muito dela.”

Helena começou a sentir a falta da mãe pelo menos uns dois anos antes de sua morte, quando a doença se agravou e tornou-se insu-portável. Sua mãe definhava a cada dia e sua ausência se fazia sentir em presença. Lembra-se que ela gemia e chorava baixinho e que de seu quarto podia ouvir os seus ais e os soluços de dor. O vômito e as cusparadas também faziam muito barulho, ficavam ecoando em seus ouvidos ao ponto de precisar tapá-los para conseguir dormir. Recorda--se da impotência do pai diante da doença da mãe e relata uma cena em que o vê sentado numa cadeira, com as mãos na cabeça como se a apertasse, chorando, desesperado “feito uma criança”. Uma imagem que ela nunca mais esqueceu e que vez por outra ainda a invade.

Surgiram outras cenas dantescas que costumavam invadir seus pensamentos. Na primeira delas, sua mãe encontrava-se sentada à beira da cama, muito pálida, segurando nas mãos um penico cheio de sangue. Ao término do relato, diz: “ela cuspia sangue. Era um horror”. Conta que aquele foi um período marcado por uma série de acontecimentos carregados de desalento e que ficaram para sem-pre em sua memória. No dia em que a mãe morreu, Helena voltou da escola e levou um grande susto. Naquele tempo era costume velar os mortos em casa e forravam-se as paredes com um pano preto numa demonstração do luto em que se viam envolvidos os familiares. O preto era a representação do nada, da ausência e da escuridão. Criança, ainda, ao entrar em casa deparou-se com a mãe dentro de um caixão iluminado apenas pelas velas acesas em meio à sala escura. Helena disse que foi um “horror” tão grande, que ela saiu da sala gritando e chorando, completamente transtornada. “O meu pai teve o bom senso de não me deixar ir ver o enterro dela”,

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Uma construção do sintoma na criança128

e completa esta fala dizendo que “o mais impressionante de tudo isso” foi o fato de que para ela, durante um bom tempo, era como se a mãe não tivesse morrido. Ela passou anos mentindo para as co-legas do colégio, fingindo que sua mãe estava viva. Quando alguém perguntava por ela, Helena tinha sempre uma resposta pronta ou criava uma nova história. Dizia: “minha mãe não gosta que eu faça isto...; ou minha mãe não quer que eu fique na rua; minha mãe não deixa; tenho que ir para casa porque minha mãe tá esperando etc.”. Não participou da festa de formatura do colégio, porque não tinha como apresentar sua mãe para as colegas de turma. Estas lem-branças surgidas nas sessões eram sempre acompanhadas de muita angústia e comoção. Helena demanda uma resposta sobre a razão de fazer o que fazia. Ela quer saber por que não dizia que a mãe já estava morta? Ela quer saber por que mentia para as pessoas? Diz: “tem de haver alguma razão; sabe, eu sinto falta dela até hoje. Mor-rer o pai é difícil, mas a mãe...”.

Foram mais de dez anos alimentando a fantasia de que a mãe estava viva. Uma estratégia para não sofrer a dor do luto. Sem per-da, não há separação. Foi a concreção imaginária do objeto de amor perdido que garantiu a Helena sustentar a falta da mãe que a privara de proteção e amor. A invocação deste espectro assegurava-lhe a ilu-são de que ela estava viva, suprindo-a, desta forma, do desamparo avassalador. Não era uma visão fantasmagórica no sentido clássico da palavra: quimérica e assustadora que aparece inoportunamente. Ao contrário, era uma fixação, uma obsessão protetora que garantia sua sobrevivência, dando-lhe forças para: “eu aprendi tudo na rua, do jeito que deu, com as amigas”. Levanto aqui a hipótese de que esta não era uma simples falta que se substituiria por algum outro objeto, mas algo com valor de um furo, insubstituível, que fazia desaparecer o lugar na combinatória, a falta no lugar do Outro. Helena não conseguiu reatualizar esta falta fundamental, porque não havia a condição para isso: não tinha ao seu lado o Outro de-sejante. O lugar desde sempre vazio que não pode ser ocupado pela mãe, ela própria impotente, abriga o seu fantasma como forma de cerzidura. “É na medida em que a criança descobre que o Outro deseja, que poderá, por sua vez, desejar sob a forma de um objeto que lhe retornaria como falta.”5

Os momentos destas lembranças provocaram efeitos importan-tes na análise. A primeira cena, a do sangue, certamente faz refe-rência à dimensão do real apontando para um objeto não especular próprio da sexualidade feminina. A segunda cena mostra o horror à morte irrompido pela presença implacável do corpo inerte, sem vida. Cenas que apontam para o real em jogo e para um gozo específico.

Os primeiros pontos de psoríase apareceram nos joelhos e coto-velos logo depois que menstruou pela primeira vez. Ficou apavorada.

5. Nasio, Psicossomática

– As formações do objeto a

(1983, p. 50).

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129Stylus Rio de Janeiro nº 23 p. 125-135 novembro 2011

Não tinha com quem falar sobre isso. Não sabia muito bem o que fa-zer com todo aquele sangue. Teve que se “virar” sozinha. Passando o impacto da menarca, começaram a aparecer os primeiros pontinhos vermelhos em sua pele, que só a incomodavam pelo fato de coçar.

Fez inúmeros tratamentos, passou por dezenas de médicos der-matologistas e outras opções alternativas. Por ser uma doença crôni-ca, enfrentou diversas crises, de maior ou menor amplitude ao longo de sua vida. Em determinada ocasião atravessou uma delas em que 70% de sua pele esteve afetada. As lesões eram muito feias, coça-vam sem parar e a pele escamava. Como estava “muito atacada” pela psoríase, procurou um curandeiro de quem havia obtido ótimas re-ferências. Ele lhe ofereceu uma medicação cuja fórmula era compos-ta com uma boa dose de cortisona. Helena sabia que a formulação continha a droga, mas não sabia dos efeitos colaterais que a droga provocava e fez uso contínuo da solução. A psoríase desapareceu no tempo em que usou o remédio. Alertada pelo farmacêutico que lhe aplicava as injeções e diante do inchaço que apareceu em seu rosto, parou de usar o remédio. O efeito rebote6 foi imediato, “um hor-ror”, se viu atacada por uma psoríase extremamente acentuada. No entanto, esta experiência lhe trouxe um ganho absoluto. Conheceu o efeito que a cortisona proporciona de “limpar” a pele das feridas, quase que instantaneamente. Daí para frente Helena passou a fazer um uso conveniente da medicação. Sempre que tinha um encontro amoroso com alguém e sua pele estava “atacada”, preparava-a besun-tando-se, uns dois dias antes, com uma pomada à base de cortisona que a livrava do constrangimento de sentir a mão do companheiro no seu corpo áspero. Estes eram tempos de amor quando oferecia seu corpo, narcisicamente investido ao outro.

Por que privilegiar esta história e o que nela foi pinçado como fundamentação da clínica? Seguramente, porque aqui repercute a forma como foi escrita e que se repete quase que invariavelmente em outros casos que temos atendido no Instituto da Pele quando se trata de algo como psicossomática. Foi escrita no corpo, ou melhor, inscrita no corpo, incrustada na carne em forma de lesão, uma lin-guagem que não passou pela simbolização, uma escrita hieroglífica, ilegível, indecifrável, mas que pode perfeitamente se revelar, já que o fenômeno psicossomático é da ordem da mostração, não satisfaz às leis da linguagem do inconsciente.

Retomando a teoria7 na fundamentação do fenômeno psicos-somático, o que ocorre é uma incidência do significante sobre o corpo em virtude de um fracasso da função do Nome-do-Pai, um holofraseamento, permitindo que se estruture alguma coisa que é da ordem da letra. S1 cola em S2, sem o intervalo que possibilita a divisão do sujeito. Como não existe intervalo, não existe também objeto perdido, estilhaços pulsionais. O sujeito é compactado ao

6. O efeito rebote é a ten-

dência que um medicamento

tem de provocar o retorno

dos sintomas que estão sendo

tratados. Em casos extremos

de efeito rebote, o reapareci-

mento dos sintomas poderão

ser mais graves que no início

da doença.

7. Este parágrafo foi

retirado do artigo A Fantasia

Encarnada: um estudo sobre

o fenômeno psicossomático

de Ramirez & Dunker

(2011).

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Uma construção do sintoma na criança130

objeto. É como se todo o narcisismo se concentrasse nessa “marca que é antes de tudo uma assinatura...”. Além disso, Lacan fala em autoerotismo sem relação de objeto, e precisa, “que a indução sig-nificante, no nível do sujeito se passa de um modo que não colo-ca em jogo a afânise”, referindo-se a uma espécie de bloqueio, “de congelamento do significante no corpo, um curto-circuito que será responsável pelas manifestações corporais”.8

Isto significa que o sistema significante perde sua consistência, já que um significante não se remete mais a outro significante. Assim, conforme Nasio “há um objeto, e depois uma chamada significante que não teve resposta significante, mas teve uma resposta de objeto... A psoríase é uma resposta objeto para uma chamada significante, um significante remete a uma psoríase”.9 Um significante inventado que não é do Outro, é do Um, diferente dos outros que têm valor de real.

Por isso é tão difícil trabalhar na clínica com esses casos que se apresentam como sendo da ordem do fenômeno. A prática nos coloca sempre em xeque uma vez que nos deparamos com a falta daquilo que é justamente a mola, o artifício que impulsiona uma análise, que é a associação livre. Ainda mais, o corte não funciona, a interpretação não faz sentido com estes pacientes, porque estamos diante de algo que não responde à estrutura metafórica.

Retomo, então, a recomendação de Lacan10 sobre a possibilida-de clínica com estes pacientes: “É por esse viés, pela revelação do gozo específico que há na sua fixação que sempre é preciso visar abordar o psicossomático”. De que gozo específico se trata no psi-cossomático? Trata-se de um gozo fora do sentido, um gozo que ex-siste ao sentido, um gozo cortado da relação com o Outro, um gozo autoerótico, um gozo do corpo próprio. Um gozo que nos remete a uma foraclusão da significação fálica, portanto, do gozo fálico. O fenômeno psicossomático está arraigado no imaginário, é o imaginário invadindo o real, em oposição ao sintoma que é do simbólico elevado ao real. São formas diferentes de gozar. “No sin-toma, os significantes, aqueles que deciframos, são significantes que tomaram corpo, que são gozados pela via de sua encarnação.”11 No fenômeno psicossomático o que nós temos é o retorno do objeto no real, é o buraco no real do corpo. É o corpo em carne viva.

A partir do que se coloca, poder-se-ia dizer que o fenômeno psicossomático é um acontecimento de corpo? Ouso pensar que ele é diferente do sintoma, este sim um acontecimento de corpo cujo gozo “letrificado” é passível de decifração por meio do sen-tido. No entanto, Colette Soler diz que o sintoma é sempre um fenômeno de corpo, do corpo de gozo.12 Ao tratar o sintoma como um fenômeno de corpo, pode-se dizer que o fenômeno psi-cossomático obedece à mesma lógica do sintoma? Um substituto sexual, decifrável? Temo que não. Seria, então, o fenômeno psi-

8. Lacan, O Seminário:

livro 11: os quatro conceitos

fundamentais da psicanálise

(1964/1973, p. 215).

9. Psicossomática – as

formações do objeto a. op. cit.,

p. 23.

10. Lacan, Conferência

em Genebra sobre o sintoma

(1975/1998).

11. Soler, O “corpo falante”

(2010).

12. Ibid.

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131Stylus Rio de Janeiro nº 23 p. 125-135 novembro 2011

cossomático um acontecimento no corpo inscrevendo um traço do gozo Outro?

O fenômeno psicossomático é o retorno no corpo do próprio objeto a, é a exterioridade interior tornada real.

Então, o que faz a psicanálise operar diante de um acontecimento no corpo, algo que o esburaca até se fazer carne, ou qual é a direção do tratamento diante do corpo tomado pelo fenômeno? São estas ques-tões que têm nos tomado tempo na Rede de Sintoma e Corporeidade.

No caso em discussão, vimos claramente a prevalência do ima-ginário sobre o real. Não havia equivalência entre as consistências. Um imaginário alargado em detrimento do simbólico, do sentido.

Assim, como estratégia optou-se pela manutenção das sessões mais longas, com o objetivo de deixar o analisante “trabalhar”, em seu tempo, com as lembranças mais primitivas e privilegiar a elabo-ração do luto, a simbolização do que há de mais fundamental: o de-samparo sentido, que incidiu no para além do horror. Para isso, foi necessário que Helena perdesse, simbolicamente, a mãe, o objeto amado, possibilitando-a, desta forma, fazer o luto do objeto perdi-do. Suponho que isto também é o que tenha desencadeado sessões tão angustiantes. Paralelamente, o sujeito trabalhou com o gozo implicado no significante “sozinha” e no laço que isso fazia com a psoríase, e com a dor, já que Helena “sentiu na pele”, literalmente, o abandono. Presença/ ausência não simbolizada, que reaparece na alternância do aparecimento/ desaparecimento da psoríase.

[...] porque aquilo que chamo de gozo, no sentido em que o corpo se experimenta, é sempre da ordem da tensão, do forçamento, do gasto, até mesmo da proeza. Há incontestavelmente gozo no nível em que começa a aparecer a dor, e nós sabemos que é somente neste nível da dor que pode se experimentar toda uma dimensão do organismo que de outra forma fica velada.13

Mas Helena não conseguiu sustentar a experiência e foi-se em-bora. Disse para a analista: “Chega! Não aguento mais! Não quero mais sofrer. Vou parar de vir aqui, não estou suportando!”.

Restou à analista o sentimento de não ter sabido manejar adequa-damente a angústia e a frustração diante do vazio. Será que algumas tentativas de corte, ao longo daquele percurso, foram inadequadas, culminando num sofrimento maior do que a paciente pudesse su-portar? A insistência do uso do artifício do corte, em que ele parece não operar, levou para a consequência desastrosa? Foram muitas as questões que me remeteram à lição lacaniana que se encontra na última página de seu seminário O Desejo e sua Interpretação:

13. Lacan, O lugar da psi-

canálise na medicina (1966/

2001, p. 12).

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Uma construção do sintoma na criança132

Será que não devemos fazer uma parte essencial ao que se repro-duz no fim de cada sessão, mas ao que é imanente a toda situação ela mesma, na medida que nosso desejo deve limitar-se a esse vazio, a esse lugar que nós deixamos ao desejo para que ele aí se situe, ao corte? Ao corte que é, sem dúvida, o modo mais eficaz da intervenção e da interpretação analítica, é também um daqueles que devíamos nos aplicar mais. Mas nesse corte há algo, esta coisa mesma que nós aprendemos a reconhecer sob a forma desse objeto fálico latente a toda relação de demanda como significante do desejo.14

Para surpresa da analista, pouco antes do Natal Helena mandou notícias suas por intermédio de uma amiga, a mesma que a indicou para a análise. Pediu-lhe para me dizer que estava muito bem, sem angústias e sem a psoríase. Estava “limpa de corpo e alma” e que agradecia aos céus, todos os dias, o tempo em que esteve em análise. Embora o par significante sujo/ limpo apareça com muita cons-tância na clínica com os pacientes de psoríase, neste caso somente apareceu depois que efetivamente Helena sentiu-se limpa, talvez como resultado da operação que permitiu passar do sem sentido do corpo para o enigma do inconsciente.

Foi bom saber disso. Mas um novo questionamento apareceu. Se o paciente melhorou ou não, não é disso que se trata se pensar-mos no sintoma como uma solução inconsciente dada por cada um “diante do enigma do corpo e seu saber”.15

De que se trata, então? Penso que o fenômeno psicossomático é um acontecimento no corpo, diferente do acontecimento de cor-po dado pela via da histeria. Ele é um fenômeno de corpo, é “o despertar de um corpo que em sua essência é silencioso.”16 Não diz respeito à imisção do significante no corpo, mas a uma fixação, a uma colagem do par S1 – S2. “Se evoquei uma metáfora como a do congelado, é porque existe, efetivamente, essa espécie de fixação... O corpo se deixa levar para escrever algo da ordem do número.”17 Exatamente por isso é que Lacan recomenda tratar o psicossomáti-co pelo viés do gozo. É preciso que o gozo tome um sentido, é pre-ciso fazê-lo deslizar do gozo Outro para o gozo do sentido. Assim, no manejo da clínica com o paciente psicossomático o que se visa é a um trabalho para chegar ao sentido do que se trata, já que ele se encontra profundamente “arraigado no imaginário”, e para dar sentido ao gozo é preciso que se fale dele.

14. Lacan, O Desejo e sua

Interpretação (1958, p. 517).

15. Izcovich, L. O Corpo

Sintoma. (2010).

16. Ibid.

17. Conferência de Genebra

sobre o sintoma op. cit.

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133Stylus Rio de Janeiro nº 23 p. 125-135 novembro 2011

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Uma construção do sintoma na criança134

ResumoO artigo trata de um caso clínico, cuja paciente procurou a psicanálise com o objetivo de pôr fim a uma doença (psoríase) com a qual convivia havia mais de 30 anos. O atendimento psicanalítico foi realizado paralelamente ao atendimento feito pela médica dermatologista, e o resul-tado foi a remissão da doença. Foi isto que fez a analista rever o caso e pensar o que operou e quais foram as par-ticularidades que permitiram, mesmo que momentanea-mente, reduzir a psoríase a zero. O que faz a psicanálise operar diante de um acontecimento de corpo, cujos sig-nificantes estão encarnados, ou ainda qual é a direção do tratamento diante da tomada de corpo pelo fenômeno? Assim, tomando-se alguns fragmentos do caso clínico, a analista perpassa pela relação do sujeito com seu corpo de gozo, tendo como base para a discussão o corpo enfer-mo, ferido, tomado pelo fenômeno, e a reflexão sobre a dificuldade que o paciente psicossomático tem no acesso ao simbólico, que é diferente da clínica clássica do sinto-

ma histérico.

Palavras-chaveGozo, fenômeno psicossomático, clínica psicanalítica.

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AbstractThe article discusses a clinical case of a patient who sou-ght psychoanalysis in order to put an end to her disease (psoriasis), with which she had lived for over 30 years. The psychoanalytic treatment was conducted along with the medical assistance carried out by the dermatologist. As a result, the remittance of the disease occurred. It was precisely this remittance that made the analyst review the case and wonder what happened during the treat-ment and which particularities, even momentarily, allo-wed a reduction of the psoriasis to zero. What makes psychoanalysis operate in an event of the body, whose significants are embodied, or else, what is the direction of the treatment when the body is taken by the pheno-menon? Taking a few fragments of this clinical case, the analyst goes beyond the relationship of the subject and his/her body of jouissance. The discussion relies on the sick body, hurt, taken by the phenomenon, and the re-flection is on the difficulty that the psychosomatic pa-tient has towards the access to the symbolic, which is di-fferent from classical clinical of the hysterical symptom.

KeywordsJouissance, psychosomatic phenomenon, psychoanalytic

clinic.

Recebido17/02/2011

Aprovado11/03/2011

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resenha

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A hipótese lacaniana

Andréa Franco Milagres

Resenha do livro de Jairo Gerbase: A hipótese lacaniana. Salva-dor: Campo Psicanalítico, 2011.

O anúncio da publicação do livro de Jairo Gerbase, intitulado “A hipótese lacaniana”, instigou-me, pois não creio que tivesse me ocorrido a ideia de uma hipótese lacaniana, habituados que esta-mos aos inúmeros aforismos de Lacan. Todavia, logo no primeiro parágrafo Jairo esclarece a fonte, dizendo não ter sido ele o inventor da expressão, que recupera, no entanto, no Seminário XX: “Mi-nha hipótese é a de que o indivíduo que é afetado pelo inconsciente é o mesmo que constitui o que chamo de sujeito de um significante”.1 Sabemos que uma hipótese não é o mesmo que um aforismo. Na terminologia científica, um aforismo é uma máxima doutrinal. Em contrapartida, quando delimitamos um problema de pesquisa ou uma pergunta, acrescentamos-lhe uma hipótese, que não é uma máxima, e sim uma resposta preliminar à questão formulada.

Ao longo de 17 capítulos, todos breves, Jairo se ocupará da hipó-tese lacaniana, desdobrando-a e recolhendo argumentos que permi-tam verificá-la, com um estilo que já conhecemos e que lhe é muito particular. Qual é o estilo? Ao mesmo tempo concisão e rigor. O resultado é um texto limpo, sem prolixidade, e apoiado em inúme-ras outras indicações que sustentam a referida hipótese.

No primeiro capítulo encontramos de forma condensada o que será desdobrado nos demais. A partir da hipótese de que o indiví-duo que é afetado pelo inconsciente é o mesmo que constitui o que Lacan chamou de um sujeito do significante, Jairo proporá uma homologia entre os termos indivíduo, sujeito e corpo. Em psicanáli-se não concebemos o indivíduo como integral: isto só seria possível para o animal, que é um indiviso. Assim, o indivíduo afetado pelo inconsciente é o mesmo sujeito de um significante, dado que todo ser humano é afetado pelo inconsciente. Em psicanálise podemos equivaler também corpo e sujeito, pois trabalhar o corpo em psi-canálise é o mesmo que trabalhar o sujeito. Mas é preciso que se saiba que um corpo afetado pelo inconsciente é o corpo sensível ao significante. Por esta razão pode-se dizer que o inconsciente é o significante. O autor nos relembra a definição de pulsão, dada por Lacan no Seminário 23: “ao eco que a palavra pode fazer em deter-

1. LACAN, (1972/1982,

p. 194).

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A hipótese lacaniana140

minado corpo chamamos de pulsão” (p. 10). Assim, diremos que somente o corpo do falante é afetado pelo inconsciente, o que torna o sintoma dependente da linguagem. Desta maneira, “a hipótese lacaniana propõe circunscrever, da experiência infantil, exatamente o que diz respeito ao significante” (p. 11) e é por esta razão que Lacan propõe o neologismo alíngua. Assim, antes mesmo que a criança tenha acesso ao sentido de um significante, tem acesso ao significante: um Outro lhe fala. Segue-se a dedução de Jairo relativa à hipótese lacaniana: há sintoma porque há corpo falante e todas as manifestações humanas estão condicionadas pelo significante. Entretanto, para trabalharmos com a hipótese lacaniana será ne-cessário introduzir o termo inconsciente real (ICSR), pois, ainda que toda formação humana passe pelo significante, há no sintoma um significante impossível de dizer. Enfim, com relação aos ditos do Outro, Jairo nos diz que é preciso valorizar a contingência do ouvir. O sujeito deve escolher entre os ditos do Outro, aquilo que lhe convém. É a hipótese do equívoco, da interpretação equivocada que o sujeito faz dos ditos do Outro. É o que permite dizer que o sujeito é autor do seu sintoma.

No segundo capítulo, “Sargento Pimenta”, Jairo nos traz um fragmento de sua clínica para explicar a formação de um sintoma a partir do real. O sintoma do sujeito, um músico talentoso, mas sem sucesso, é a procrastinação. Alega que o que o deixou na irresolução foi ter sofrido um abuso sexual. Por trás da realidade do abuso se-xual Jairo nos propõe procurar a autoria do sujeito, sua participação neste dado da realidade. Explica a formação do sintoma lembrando Lacan: “estamos no inconsciente quando uma formação do incons-ciente não tem mais sentido algum”. Segue o relato do sujeito: “Eu só tinha sete anos quando ouvi pela primeira vez Sgt. Pepper: foi como um dèjá vu; eu ainda não sabia inglês, mas tive uma compre-ensão profunda desta expressão: lonely hearts. Isto me fez interessar muito pela língua inglesa e logo descobri que a tradução desta ex-pressão era: corações solitários. Entrei, a partir daí, para a Banda do Clube dos Corações Solitários do Sargento Pimenta” (p. 27).

A experiência do sujeito é privilegiada por Jairo, pois lhe permite dizer que foi a banda The Beatles que o traumatizou. O encontro com o par de significantes lonely hearts surgiu para o sujeito como “careta do real”. Não importa quem o diga, pois o que está em jogo é a contingência do ouvir, é esta contingência que decidirá se um dito do Outro se tornará traumático.

No capítulo três Jairo retoma a definição de inconsciente real. Estar no ICSR exclui o sentido, e toda vez que seja o que for que nos for dito faz sentido, saímos do inconsciente. O inconsciente é real quando o significante está sozinho (S1): basta que ele se articule a outro (S2) para produzir sentido. A escroqueria do significante,

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prossegue Jairo, é a promessa de que é possível dar sentido. Porém, procurar o sentido e a conexão gera sempre resistência. Advertido disso, Freud, quando propõe o método da associação livre, prescre-ve que este seja utilizado sob uma atenção flutuante, pois se presta-mos atenção demais na busca do sentido, o método fracassa.

No capítulo seguinte, sobre a anatomia imaginária, Jairo reto-ma a ideia de que só há inconsciente no ser falante e por isso, para estes, não há instinto, somente pulsão. Assim, se Lacan afirma que a pulsão é ressonância do dizer no corpo, a psicanálise pode afirmar que a definição do inconsciente é compatível com a de pulsão. Jairo extrai a conclusão: o inconsciente é a pulsão que, estruturada como uma linguagem, afeta o corpo. Deste modo, a hipótese lacaniana afirma que o homem não pensa com seu pensamento, mas com seu corpo. É o que Freud descobriu com a histeria.

No quinto capítulo encontramos um desdobramento da pro-posta de que a realidade em nada participa da formação do sinto-ma. O mundo externo é apenas a fantasia na qual o pensamento se sustenta. A realidade deve ser entendida como “careta do real” (p. 42). Jairo parte do exemplo citado por Freud no texto “O sentido do sintoma”, no qual a jovem esposa tentar corrigir o fracasso do marido na noite de núpcias com um sintoma obsessivo. Trata-se de um primeiro encontro com o gozo do Outro sexo, do Outro corpo. A impossibilidade da relação sexual faz o sujeito topar com o não sentido, acontecimento impossível de ser enunciado.

No sexto capítulo a pergunta em jogo é: a que uma análise deve visar? Ao verdadeiro ou ao real? O assunto é de interesse, visto que Jairo não considera adequada a explicação para a cura por meio da fala. A cura não depende do analista, mas de sua interpretação. In-terpretar seria tornar consciente o inconsciente? A hipótese lacaniana supõe outra coisa: é na tagarelice, no riso, no equívoco, que podemos tocar o sentido que se encontra conservado no real. Se na lógica for-mal estamos habituados a interpretar baseados no binarismo V e F, a hipótese lacaniana propõe outra lógica. Na alucinação, por exemplo, de nada adianta dizer ao sujeito alucinado que sua premissa é falsa. Ele responderá que a voz pode não ser verdadeira (V), mas é real (R). A certeza alucinatória impede o êxito da lógica, do binário, dos valores V e F. Jairo aponta que a hipótese lacaniana propõe conceber a verdade como um lugar no discurso, e só se pode meio-dizê-la. Então, se o intérprete lógico segue pela via do sentido (Vou F), o intérprete psica-nalítico o faz pela via do nonsense: verdadeiro ou real (V ou R). Porém, não há como trazer o sentido real do sintoma para o simbólico, temos de ir ao real para tocar o sentido do sintoma, diz Jairo.

No capítulo sete, Jairo diz que entre os axiomas lacanianos, tem preferência por alíngua. Uma criança diz mostrando o próprio pin-tinho: “Vovó, mamãe diz que eu não tenho um pinto de vergonha!

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Eu tenho”. E mostrou o pintinho para a vovó. A criança passa de uma palavra à outra, diferindo apenas em uma letra. “Pinto” é um significante carregado de catexia, o que o torna sensível ao desliza-mento de um som: “pingo” por “pinto”. É uma ilustração do que é alíngua: o fundamental é como cada criança ouve o que vem do Outro. Trata-se da contingência do ouvir: “você não tem um pinto de vergonha”. Jairo argumenta sua preferência pelo axioma de alín-gua para permanecer na dimensão da pulsão, do eco de um dizer em um corpo sensível ao significante: pingo-pinto. O que equivoca é um significante de alíngua, e por isso é inútil interpretar seu sentido.

No capítulo oito Jairo aborda alíngua na psicose. Procura a re-lação entre as palavras e as coisas, ou seja, entre a dimensão lite-ral e metafórica do significante. Lembra-nos que na esquizofrenia há um grande número de modificações na fala: o sujeito faz um uso peculiar do significante com muitas referências ao corpo. Uma palavra de alíngua ganha um significado particular que escapa à comunidade falante da mesma língua. A partir do conhecido exem-plo do paciente de Tausk, mostra que está em jogo um significante de alíngua cujo sentido é corporal: Augenverdreher. Ao que Freud chamou de fala do órgão, poderíamos chamar de “fala de alíngua”. Jairo propõe então que há um efeito Imaginário (I), um efeito Sim-bólico (S) e um efeito Real (R) do significante (S1) no corpo. O esquema proposto é o seguinte: na psicose, tratar o corpo de modo irreal é o efeito Real do significante no corpo. Na histeria, o sujeito trata o corpo, ou seja, a anatomia, de modo Imaginário. Na neurose obsessiva, teríamos um efeito Simbólico (S) de S1 no corpo. Sua intenção, como ele nos diz, é “forçar uma correlação entre os efeitos do significante no corpo e as estruturas clínicas” (p. 66).

O nono capítulo é sobre as diferenças no uso do significante na neurose e na psicose. Segundo Jairo, os psicóticos não sabem distin-guir a função denotativa da função conotativa do significante, não sabem usar a metáfora e a metonímia. Estas diferenças no uso do significante são devidas ao manejo da relação significante/ signifi-cado. Jairo diferencia ainda o uso do significante na histeria (forma-ção sintomática), na fobia (formação reativa), na obsessão (forma-ção substitutiva) e finalmente na psicose (formação hipocondríaca).

Nos capítulos dez e onze, Jairo prossegue, mostrando-nos que alíngua também é nó, é simultaneamente, Imaginária, Simbólica e Real. Na vertente imaginária alíngua é linguagem, é feita de signi-ficantes e serve à comunicação entre dois. Na vertente simbólica, alíngua é língua, objeto da linguística, é social, depende dos signi-ficantes que se opõem. Na vertente real, é alíngua, o que está além dos efeitos de comunicação (I) e do discernimento (S). O ponto central em jogo é mostrar como se articulam a palavra e a coisa que ela nomeia; a pulsão de vida e a pulsão de morte. Unem-se ou

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desunem? Articulam-se ou desarticulam? O acento dado é sobre o termo articulação em substituição à representação. É, portanto, a partir das relações entre palavra e coisa que Jairo diferenciará a neurose da psicose, mostrando que nesta última há desunião entre palavra e coisa, deixando o sujeito com problemas para realizar a função conotativa do significante. Encontramos ainda a diferencia-ção entre conversão e somatização. Na conversão, efeito imaginário do significante, na somatização, efeito simbólico do significante. Em um e outro caso, há coincidência entre palavra e coisa, o que não acontece na hipocondria.

Os capítulos finais são dedicados ao aprofundamento e distinção entre conversão, somatização e hipocondria, sintomas físicos que in-cidem no corpo. Para abordar a conversão, Jairo trará o caso Cecília, de Freud. O insulto sofrido por parte do marido lhe soa como “uma bofetada no rosto”, e a paciente faz seu sintoma: uma neuralgia facial. Jairo toma a frase da paciente como um significante de alíngua. É uma frase que está sendo simbolizada, representada por uma dor no rosto. A indicação de Freud é que houve conversão de uma frase em um sintoma físico, que tem significação fálica: “Cecília goza (sofre) de certas frases que se traduzem em sintomas físicos. Cecília goza (sofre) de alíngua. A hipótese freudiana e a lacaniana são a hipótese da linguagem, do significante, mais precisamente de alíngua” (p. 94).

Aos sintomas que tomam a forma de sintomas somáticos, Jairo propõe tratá-los como sintomas obsessivos. Argumenta que na es-trutura do sintoma somatoforme obsessivo reside a ideia de defor-mação topológica do corpo. Toma o exemplo do sujeito preocupado com a forma, que ao fazer uso de anabolizantes para encontrar a forma ideal, exprime seu temor de alteração morfológica do corpo. O que está em jogo é o binário belo-feio, par de opostos que evoca a dúvida obsessiva. A verificação metódica do corpo (feio ou belo?) corresponde à verificação dos objetos externos (o fogão, a porta, a luz...). O obsessivo é sujeito à dúvida, a escolher entre dois, hesi-tação entre beleza e feiura, entre saúde e doença. A somatização é uma ideia de que é preciso ter uma saúde perfeita ou uma beleza absoluta. Conclui dizendo que o sintoma somático responde à ame-aça de castração, ameaça do real. Fechando o bloco, Jairo fala da holófrase, como um “outro modo de nomear os sintomas físicos na estrutura”. A questão colocada por Jairo é que a definição de holó-frase é a mesma do FPS. O problema, diz ele, é saber se a somatiza-ção inclui um fenômeno dessa natureza, ou se deveríamos dedicar ao FPS um outro termo, que não a holófrase.

O capítulo derradeiro é uma costura de todos os desdobramen-tos que Jairo pôde extrair quase que à exaustão, da hipótese laca-niana. Esclarece-nos que submete um método de fazer psicanálise à apreciação dos leitores. Método em que não se privilegia o sentido,

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A hipótese lacaniana144

mas que procura orientar-se por alíngua e pelo inconsciente real. O mérito de seu trabalho, para além da fineza na pesquisa e articula-ção dos conceitos, reside no fato de cumprir a promessa declarada na página 68: falar de alíngua com exemplos, tanto de sua clínica como da vida cotidiana. Assim, não há dúvida sobre a pertinência desta leitura nos dias atuais, quando por vezes se cai no engodo de dissolver as diferenças entre as estruturas clínicas em prol da chamada “clínica borromeana”. Jairo nos ensina retomar e valorizar a importância da distinção entre neurose e psicose, só que agora a partir da hipótese de alíngua. Não seria esta a sua hipótese?

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Resenha da ColeçãoAto Psicanalítico –

Editora Anna Blume

Christian Ingo Lenz Dunker

Depois de quase trinta anos, podemos dizer que a psicanálise de extração lacaniana implantou-se definitivamente no Brasil. Contu-do, ainda é cedo para saber o que isto significa nos termos do que Antonio Candido, a propósito da literatura, chamou de sistema de formação. Um sistema de formação é algo mais que um conjunto regular de leitores, uma conversa contínua entre autores, envolven-do dispositivos de produção e sua respectiva política cultural. Um sistema de formação é diferente de uma série ordenada de recepção de ideias e de multiplicação de práticas. Ele compreende ainda efei-tos de unidade e identificação. Só então pode-se reconhecer a exis-tência de um sistema de transmissão literário. De modo análogo, pode-se dizer que hoje há um sistema de transmissão da psicanálise, quiçá lacaniana, no Brasil. E talvez não tenha sido o primeiro.

Haroldo de Campos ressalta que um sistema de transmissão não é tudo, que a própria noção de transmissão limita, senão exclui a função poética e metalinguística da linguagem. No caso da litera-tura brasileira isso ficou conhecido como a exclusão do Barroco, notadamente de Gregório de Matos, como elemento constituinte de nossa literatura. Questão que no caso da psicanálise não deveria assumir a forma da oposição entre nativismo e globalização de cos-tumes psicanalíticos, mas a da efetiva contribuição da psicanálise ao debate público brasileiro e a consequente capacidade de absorção de seus temas, dificuldades e contratempos. Ou seja, nos termos da exigência pragmático-chistosa estabelecida por Freud: somos capazes de contar a piada fora de nossa própria paróquia?

Para ultrapassar o escopo do sistema de formação não basta, portanto, o matema; é preciso, também, o poema, e talvez esta seja realmente sua condição maior de existência. O poema em sua gra-tuidade, em sua lalíngua, em sua autorreferencialidade introduz o suspense nas engrenagens da transmissão, indicando que seus efei-tos são refratados fora do solo previsto para sua recepção. Cabe aqui lembrar este trecho da primeira página do ensaio-chave no qual Haroldo de Campos aponta a solidariedade entre a noção de trans-

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Resenha da Coleção Ato Psicanalítico – Editora Anna Blume146

missão e a construção de uma história feita de atos de não reconhe-cimento, de subtrações forçadas, de sequestros:

No caso brasileiro, este enredo metafísico vê acrescida à sua intriga uma componente singular de “suspense”: o nome-do-pai (le nom du père) apresenta-se (ou ausenta-se), desde logo, submetido à rasura e em razão, exatamente de uma “perspectiva histórica”.1

A alusão ao conceito de Lacan, retomado de um texto brasi-leiro da década de 1970, não é gratuita ou ocasional. Ela indica o ponto no qual nosso próprio discurso é antecipado por efeitos de recepção no debate cultural. Isso faz lugar, o que não significa que o tenhamos assumido como posição própria. Se para um sistema de formação a origem é o conceito central, para a constituição de uma prática de desintegração cultural é preciso contrapor o lugar. A origem sem lugar é cega, o lugar sem origem é vazio. A categoria que consegue articular duas superfícies, de modo unilátero, é jus-tamente a noção de ato, que escolhemos para designar uma coleção de livros de psicanálise que ora apresento.

O discurso não é o ato e o ato não é o movimento. Limitados às exigências que definem uma linha editorial – concernida ao espa-ço de um pequeno coletivo cultural, formado por relações de livre colaboração, premida por mazelas universitárias –, pensamos em favorecer um debate sobre a justificação e fundamentação de nossa prática. Um debate que force o matema contra o poema. Um debate que tente reintroduzir o real que está em jogo na formação, e cada psicanalista, agora do ponto de vista de sua insersão no debate pú-blico, que condiciona sua existência, social, epistêmica ou política.

Quando verificamos condições necessárias para a existência de um sistema de formação, podemos dizer que temos um conjunto e seu domínio, temos uma função, com seu argumento e variáveis. Mas este conjunto ainda não forma, necessariamente, uma topolo-gia. É preciso introduzir ainda os valores, e é neste momento que um determinado regime de verdade, em sua estrutura de ficção, é con-frontado com o Real em suas diferentes impossibilidades: metalin-guísticas, discursivas e autorreferenciais. Lembremos que uma coleção T de subconjuntos de X é uma topologia em X se, e somente se, T satisfaz os seguintes axiomas: X e Ø pertencem a T; a união de um número qualquer de T pertence a T; a interseção de dois conjuntos quaisquer de T pertence a T.2 Há, portanto, regras de associatividade lógica que definem condições de reconhecimento, de modo que um determi-nado sistema é capaz de formar regularmente unidades (união) e também diferenças (intersecção). Contudo, condições não são fatos, e conjecturas não são existências. Passar do conjunto, matéria-prima que rege um sistema de formação; para a topologia, substância na

1. CAMPOS, Haroldo

(1989). O Sequestro do Barro-

co na Formação da Literatura

Brasileira: o Caso Gregório

de Matos. Iluminuras, São

Paulo, 2011.

2. LIPSCHUTZ; Seymour.

Topologia Geral McGraw

Hill, Rio de Janeiro, 1971.

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147Stylus Rio de Janeiro nº 23 p. 145-150 novembro 2011

qual se constitui o espaço mais extenso da política e da cultura, é sempre uma experiência contingente. Como toda passagem.

Para isso, tal qual a torção que define o Barroco, é preciso en-contrar este ponto sem volta, a partir do qual torna-se indiscernível a fronteira entre o que é letra universal e o que é traço local no con-junto articulado de uma produção. Por outro lado, é preciso criar condições que tornem indecidíveis as regras de pertencimento e de inclusão pelas quais a identidade pode ser reconhecida em discurso e na prática do saber. Tal qual a consciência esclarecida que define o Romantismo. Nada muito diferente do que se espera de uma Escola que ambiciona ser reconhecida pela forma particular como produz o fracasso da identidade universal de seu próprio conjunto. Isso traz alguns elementos particulares. Quando se trata da entrada no espaço público, quando se trata de publicar, em uma determinada língua, sob um determinado escopo cultural, há sempre duas dimensões tensionadas, que é preciso traduzir, transliterar ou transcriar; a do matema-universal-necessário ao sistema de formação e a do poema--particular-contingente à constituição de uma nova prática.

A Coleção Ato Psicanalítico objetiva tornar público trabalhos de orientação psicanalítica voltados para a reflexão sobre sua prática clínica. Nosso objetivo é publicar tanto estudos temáticos sobre grandes figuras da psicopatologia psicanalítica, quanto desenvolvi-mentos de formalização e crítica sobre a estrutura do tratamento, o diagnóstico e as variedades de intervenção. Incluem-se neste projeto estudos epistemológicos sobre a história e constituição da clínica psicanalítica, com ênfase na perspectiva de Freud e de Lacan, privi-legiando a interlocução com a filosofia e a teoria social crítica.

Ato Psicanalítico é uma noção introduzida em psicanálise por Jacques Lacan, com o objetivo de pensar o conjunto da experiência psicanalítica. É sabida a crítica que este autor faz da ideia de técnica, da padronização de procedimentos e da reificação da prática, com o consequente esquecimento do conceito de práxis. Pensar o trata-mento como uma experiência dialética ou como uma exploração ética do inconsciente, em afinidade com o desejo do psicanalista, foram as respostas iniciais de Lacan à questão da técnica. Contudo, mais ao final de seu ensino surge esta noção de ato psicanalítico como expressão de uma tentativa de formalização lógica do trata-mento. Quais seriam seus momentos cruciais? De que forma variam as estruturas fundamentais da cura? Como encontrar e transmitir a regularidade do que se poderia esperar do tratamento, em seu início e em seu fim? O que fazemos quando fazemos psicanálise? Quais são os litorais desta prática? É esta prática, ela mesma, una e indivisa? Ou múltipla, efêmera e fragmentária?

Entendemos que a extensa, contudo recente tradição de comentá-rio e elucidação conceitual sobre a psicanálise de orientação lacania-

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Resenha da Coleção Ato Psicanalítico – Editora Anna Blume148

na ainda está longe de estabelecer um consenso sobre os elementos da prática, sobre as modalidades de intervenção, sobre as estratégias de transferência ou sobre as políticas da cura. Vivemos ainda um momento de luta pelo hegemonismo do legado lacaniano, que tende a ser superado pelo real da experiência e pela verdade da difusão da clínica psicanalítica muito além de seu enquadre típico. As variantes da cura mostram que o que há de comum é a sua variação. É neste ponto que a psicanálise tem descoberto novas e inusitadas exterio-ridades. Inversamente nunca tantos psicanalistas escreveram, leram e falaram com tantos outros psicanalistas. Os sistemas genealógicos hierárquicos e verticais de transmissão dificilmente sobreviverão a isso. Pode se ler aqui apenas sinais de desorientação, mas também, ou talvez, sinais de outras formas de orientação, nem orientalizado-ras, nem ocidentalizadoras, nem acidentalizadoras.

Por outro lado, os tipos de direção e as táticas clínicas refletem mui-to mais a maneira singular como uma proposta de formação de psica-nalistas autoriza a diversidade de estilos do que o consenso normativo ou a concorrência epistêmica. É tempo de reunir a extensão e polisse-mia da noção de ato em uma série que tente confrontar suas variações sem esperar homogeneidade. Ato poético, ato político, ato estético, ato ético. O ato psicanalítico apresenta-se nas bordas entre gesto e compor-tamento, entre atitude e disposição, entre aposta e estilo.

Escolhemos editar nesta coleção volumes que são, preferencial-mente, produtos de pesquisa atual em psicanálise, orientada pela tradição lacaniana e para a formalização crítica da prática clínica. A Coleção Ato Psicanalítico representa uma iniciativa original de uma editora paulista, disposta a publicar tanto escritos recentes quanto de autores consagrados em orientação lacaniana. Privilegiando tex-tos de inovação clínica, crítica e conceitual, a coleção visa favorecer um espaço de diálogo entre psicanalistas de orientação lacaniana que até agora publicam em revistas específicas, edições isoladas ou coleções provenientes de outros estados.

No primeiro volume Dimensões do Ato em Psicanálise, Ronaldo Torres trata da proposição de uma solução para uma conjectura de Lacan. Conjectura chamada ato analítico. Ou seja, este não é um livro apenas descritivo, mas possui a ambição de propor uma solução possível para um bom problema legado por Lacan. É um livro que tem o tom de uma nova época dentro dos estudos lacanianos, quiçá um convite ao ultrapassamento destas falsas fronteiras que grassam na psicanálise. A reconstrução clara do caminho lógico feito por La-can desde a teoria dos conjuntos até o uso do grupo de Klein, para definir o ato analítico, conjuga-se à redescoberta da insistência ética da noção de ato. É neste ponto que se introduz a hipótese de nosso autor sobre os atos falhos e a ação específica no tempo. Mas isso, é preciso insistir, Lacan não disse. Foi uma invenção de nosso autor.

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No segundo volume Causalidade e Desencadeamento na Clínica Psicanalítica, Ana Paula L. Gianesi examina cada um dos grandes casos de Freud e de Lacan em busca da concepção prática e teórica de causalidade e desencadeamento, empregados na clínica destes auto-res. Causalidade que se dissemina no texto freudiano, no quadro de uma concepção sobre a gênese e estrutura do patológico, notadamen-te da formação de sintomas. Sintomas que se distinguem de inibições, que não são o mesmo que as formas da angústia. Em Lacan, a teoria freudiana das quatro causas se desdobra e ramifica, como nos mostra o brilhante trabalho de Ana Paula, entre a noção de determinação, desenvolvida em torno e em dependência da teoria do significante, e a teoria propriamente da causa, conexa da noção de objeto a.

O terceiro volume, A Pele como Litoral – Fenômeno Psicossomá-tico e Psicanálise, foi organizado por Heloísa Ramirez, Tatiana As-sadi e por mim, tendo em vista nosso trabalho nos hospitais de São Paulo no escopo da Linha de Pesquisa em Psicossomática (agora chamada Sintoma e Corporeidade) do Fórum do Campo Lacania-no em São Paulo. São quase dez anos de pesquisas clínicas em tor-no, principalmente, dos quadros de vitiligo e psoríase, envolvendo inúmeras particularidades do trabalho junto aos dermatologistas, instituições hospitalares, agências e instâncias universitárias pelas quais passaram muitos de nossos jovens analistas, colaborando consistentemente com seus percursos formativos. A exigência teó-rica de um modelo que distinga semiologicamente a lesão de órgão do fenômeno psicossomático, as implicações desta descoberta para nossos procedimentos diagnósticos, a experiência das consultas compartilhadas e os desenvolvimentos sobre construção de casos clínicos faz deste estudo um caso exemplar de associação entre pes-quisa e extensão, entre clínica e formação e entre invenção e aposta.

O quarto volume, previsto para agosto de 2011, chama-se Es-trutura e Constituição da Clínica Psicanalítica – uma arqueologia das práticas de cura, tratamento e terapia, de minha autoria, propõe uma história das práticas que deram origem e lugar à psicanálise, da retórica e medicina da antiguidade até Descartes, Kant e Hegel.

O quinto volume O Que é o Inconsciente?, de Colette Soler, pre-visto para o final deste ano, traz um exame circunstanciado da no-ção mais elementar da psicanálise, o inconsciente, mostrando sua pujança conceitual crítica no contexto das novas práticas psicobio-lógicas e psicoeducativas de tratamento da alma. Cruzando Freud e Lacan com seus estilos rigorosos, ela mostra a força deste conceito desde sua descoberta na clínica freudiana da histeria até a noção de inconsciente real em Lacan.

O sexto volume, previsto para o final deste ano, Psicanálise La-caniana – revolução na subjetividade, do psicanalista e teórico críti-co inglês Ian Parker, aborda as principais condições ideológicas do

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Resenha da Coleção Ato Psicanalítico – Editora Anna Blume150

aparecimento da prática psicanalítica na modernidade, suas rela-ções com o capitalismo e com a produção e a resistência aos modos hegemônicos de alienação, bem como um balanço crítico das solu-ções apresentadas por Lacan.

Temos, como horizonte, o deslocamento da prática de comentário do texto e da tradução isolada para a valorização do diálogo e colabo-ração entre autores nacionais e internacionais. Tanto as universidades quanto os centros de pesquisa e ainda as associações psicanalíticas passam por um processo de intensa internacionalização. Isso gera co-laborações continuadas no âmbito institucional que requerem uma nova frente de publicação. Nossa linha editorial favorece, nesta me-dida, a publicação de textos inseridos em projetos de pesquisa, pós--doutorados e doutorados, convênios e colaborações, que envolvam autores nacionais em contato com psicanalistas de outros países.

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Orientações editoriais

STYLUS é uma revista semestral da ESCOLA DE PSICANÁ-LISE DOS FÓRUNS DO CAMPO LACANIANO - BRASIL e se propõe a publicar artigos inéditos das comunidades brasileira e internacional do CAMPO LACANIANO, e os artigos de outros colegas que orientam sua leitura da psicanálise principalmente pe-los textos de Sigmund Freud e Jacques Lacan. Serão aceitos artigos provenientes de outros campos de saber (arte, ciência, matemática, filosofia, topologia, linguística, música, literatura etc.) que tomem a psicanálise como eixo de suas conexões reflexivas. Aos manuscri-tos encaminhados para publicação, recomendam-se as orientações editoriais que se seguem.

Serão aceitos trabalhos em inglês, francês e/ou espanhol. Se aceitos, serão traduzidos para o português. Todos os trabalhos en-viados para publicação serão submetidos a, no mínimo, dois pare-ceristas, membros do CONSELHO EDITORIAL DE STYLUS (CES). A EQUIPE DE PUBLICAÇÃO DE STYLUS (EPS) pode-rá fazer uso de consultores ad hoc, a seu critério e do CES, omitida a identidade dos autores. Os autores serão notificados da aceitação ou não dos artigos. Os originais não serão devolvidos. O texto aceito para publicação o será na íntegra. Os artigos assinados expressam a opinião de seus autores.

A EPS avaliará a pertinência da quantidade dos textos que irão compor cada número de STYLUS, de modo a zelar pelo propósito dessa revista: promover o debate a respeito da psicanálise e suas conexões com os outros discursos.

O fluxo de avaliação dos artigos será o seguinte:

1. Recebimento do texto por e-mail pelos membros da EPS de acordo com a data divulgada na [email protected]

2. Distribuição para parecer. 3. Encaminhamento do parecer para a reunião da EPS para deci-

são final. 4. Informação para o autor: se recusado, se aprovado ou se ne-

cessita de reformulação (neste caso, é definido um prazo de 20 dias, findo o qual o artigo é desconsiderado, caso o autor não o reformule apropriadamente).

5. Após a aprovação o autor deverá enviar à EPS no prazo de sete dias úteis uma cópia de seu texto em CD e outra em papel. A revista não se responsabiliza pela conversão do arquivo. O

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endereço para o envio do original será fornecido nessa ocasião pela EPS.

6. Direitos autorais: a aprovação dos textos implica a cessão ime-diata e sem ônus dos direitos autorais de publicação nesta revis-ta, a qual terá exclusividade de publicá-los em primeira mão. O autor continuará a deter os direitos autorais para publicações posteriores.

7. Publicação. Nota: não haverá banco de arquivos para os números seguintes.

O autor que desejar publicar deverá encaminhar seu texto a cada número de Stylus.

Serão aceitos trabalhos para as seguintes seções:

Artigos: análise de um tema proposto, levando ao questiona-mento e/ou a novas elaborações (aproximadamente 12 laudas ou 25.200 caracteres, incluindo referências bibliográficas e notas). En-saios: apresentação e discussão a partir da experiência psicanalíti-ca de problemas cruciais da psicanálise no que estes concernem à transmissão da psicanálise (aproximadamente 15 laudas ou 31.500 caracteres, incluindo referências bibliográficas e notas). Resenhas: resenha crítica de livros ou dissertações de mestrado ou teses de doutorado, cujo conteúdo se articule, ou seja, de interesse da psica-nálise (aproximadamente 60 linhas (3.600 caracteres). Entrevistas: entrevista que aborde temas de psicanálise ou afins à psicanálise (aproximadamente 10 laudas ou 21.000 caracteres, incluindo refe-rências bibliográficas e notas). A revista Stylus possui as seguintes seções: ensaios, trabalho crítico com os conceitos, direção do trata-mento, entrevista e resenhas. Cabe à EPS decidir sobre a inserção dos textos selecionados no corpo da revista.

Apresentação dos manuscritos:

Formatação: os artigos devem ser enviados por e-mail, no mí-nimo, em arquivo no formato “Word for Windows 6.0/95, 98 ou 2000 (doc.)” à EPS conforme indicado na home page da AFCL e endereçados à EPS em tamanho A4, letra Times New Roman, corpo 12, espaço 1,5, justificado, margens de 2 cm, lauda do texto em torno de 2.100 caracteres. A primeira lauda do texto original deve conter apenas o título do trabalho, nome completo do autor (se for único) ou dos autores (no caso de coautoria), biografia(s) e seu(s) respectivo(s) endereço(s) completo(s). As demais páginas (contendo título e texto)

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devem ser numeradas, consecutivamente, a partir de 2.

Ou mais recente como está abaixo:Os artigos devem ser enviados por e-mail, no mínimo, em ar-

quivo no formato “Word for Windows 6.0/95, 98, 2000 (doc.) ou mais recente” à EPS conforme indicada na “home page” da AFCL e endereçados à EPS

Ilustrações: o número de figuras (quadros, gráficos, imagens, esquemas) deverá ser mínimo (máximo de 5 por artigo, salvo exce-ções, que deverão ser justificadas por escrito pelo autor e avalizadas pela EPS) e devem vir em separado e devidamente nomeadas como Fig. 1, Fig. 2 e indicadas no corpo do texto o local específico dessas Fig. 1, Fig. 2., sucessivamente. As ilustrações devem trazer abaixo delas um título ou legenda com a indicação da fonte, quando hou-ver. As imagens precisam ser enviadas em alta resolução. Gráficos e tabelas devem estar em formato PDF. No caso de fotos ou imagens digitalizadas, deve ser enviado o arquivo JPG original.

Resumo/Abstract: todos os trabalhos (artigos, entrevistas) deve-rão conter um resumo na língua vernácula e um abstract em língua inglesa, em um parágrafo único e contendo de 100 a 200 palavras. Deverão trazer também um mínimo de três e um máximo de cinco palavras-chave (português) e key-words (inglês) e a tradução do tí-tulo do trabalho. As resenhas necessitam apenas das palavras-chave e key-words.

Citações no texto: as citações de outros autores que excederem quatro linhas devem vir em parágrafo separado, margem de 2 cm à esquerda (além do parágrafo de 1,25 cm) e 1 cm à direita, tama-nho e letra igual ao texto. Os títulos de textos citados devem vir em itálico (sem aspas), os nomes e sobrenomes em formato normal (Lacan, Freud).

Citações do texto nas notas:

1. As notas não bibliográficas devem ser reduzidas a um mínimo, ordenadas por algarismos arábicos e arrumadas como nota de rodapé ou notas de fim de texto antes das referências bibliográ-ficas (citadas no corpo do texto);

2. As citações de autores devem ser feitas por meio do último so-brenome, da obra citada e do ano de publicação do trabalho. No caso de transcrição na íntegra de um texto, a citação deve ser acrescida da página citada;

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3. As citações de obras antigas e reeditadas devem ser feitas da seguinte maneira: Kraepelin (1899/1999);

4. No caso de citação de artigo de autoria múltipla, as normas são as seguintes: A) até três autores – o sobrenome de todos os autores é mencionado em todas as citações, usando e ou &, con-forme exemplo (Pollo & Rossi & Martielo, 1997). B) de quatro a seis autores – o sobrenome de todos os autores é citado na primeira citação, como acima. Da segunda citação em diante só o sobrenome do primeiro autor é mencionado, como abaixo (Pollo et al., 1997, p. 120). C) mais de seis autores – no texto, desde a primeira citação, somente o sobrenome do primeiro au-tor é mencionado, mas nas referências bibliográficas os nomes de todos os autores devem ser relacionados;

5 Quando houver repetição da obra citada na sequência da nota deve vir indicado Ibid., p. (página citada.);

6. Quando houver citação da obra já citada, porém fora da sequên-cia da nota, deve vir indicado o nome da obra em itálico, op. cit., p. (Fetischismus, op. cit., p. 317).

Referências bibliográficas(outras informações: consultar a NBR 6023 da ABNT-2002):

Os títulos de livros, periódicos, relatórios, teses e trabalhos apre-sentados em congressos devem ser colocados em itálico. O sobreno-me do(s) autor(es) deve vir em caixa alta.

1. Livros, livro de coleção: 1.1. LACAN, J. Autres Ecrits. Paris: Editions Seuil, 2001. 1.2. FREUD, S. (1905) Die Traumdeutung. In: Studienausgabe.

Frankfurt a. M.: S. Fischer, 1994. Band II. 1.3. FREUD, S. (1905) A interpretação dos sonhos. Trad. sob a

direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro, Imago, 1994. (Edi-ção Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. II).

1.3. LACAN, J. O seminário – livro 8: A Transferência (1960-1961). Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1992.

1. 4. LACAN, J. O seminário: A Identificação (1961-1962): aula de 21 de março de 1962. Inédito.

1.5. LACAN, J. O seminário: Ato psicanalítico (1967-1968): aula de 27 de março de 1968. (Versão brasileira sem fins comerciais).

1.6. LACAN, J. Le séminaire: Le sinthome (1975-1976). Paris: Association freudienne internationale, 1997. (Publication hors commerce).

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2. Capítulo de livro: FOUCAULT, Michel. Du bon usage de la liberté. In: FOUCAULT, M. Histoire de la folie à l’ âge classique (pp. 440-482). Paris: Gallimard, 1972.

3. Artigo em periódico científico ou revista: QUINET, A. A his-teria e o olhar. Falo. Salvador, n.1, p. 29-33, 1987.

4. Obras antigas com reedição em data posterior: ALIGHIERI, D. (1321). Tutte le opere. Roma: Newton, 1993.

5. Teses e dissertações: TEIXEIRA, A. A teoria dos quatro discur-sos: uma elaboração formalizada da clínica psicanalítica. Rio de Janeiro, 2001, 250f. Dissertação. (Mestrado em Teoria Psicana-lítica) – Instituto de Psicologia. Universidade Federal do Rio de Janeiro. 2001.

6. Relatório técnico: BARROS DE OLIVEIRA, M. H. Política Nacional de Saúde do Trabalhador. (Relatório Nº). Rio de Janei-ro. CNPq, 1992.

7. Trabalho apresentado em congresso, mas não publicado: PAM-

PLONA, G. Psicanálise: uma profissão? Regulamentável? Questões Lacanianas. Trabalho apresentado no Colóquio Internacional Lacan no Século. 2001 – Odisseia Lacaniana, I, 2001, abril; Rio de Janeiro, Brasil.

8. Obra no prelo: no lugar da data deverá constar (No prelo). 9. Autoria institucional: American Psychiatric Association. DSM-

III-R, Diagnostic and statistical manual of mental disorder (3rd edition revised.) Washington, DC: 1998.

10. CD ROM – GATTO, C. Perspectiva interdisciplinar e atenção em Saúde Coletiva. Anais do VI Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva. Salvador: ABRASCO, 2000. CD-ROM.

11. Home page – GERBASE, J. Sintoma e tempo: aula de 14 de maio de 1999. Disponível em: <htttp://www.campopsicanaliti-co.com.br>. Acesso em: 10 de julho de 2002.

Outras dúvidas poderão ser encaminhadas para a Equipe de Publicação da Revista Stylus (EPS) para o e-mail [email protected]

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Sobre os autores

Ana Laura Prates PachecoPsicóloga. Doutora em Psicologia Clínica pela USP. Pós-Doutorado em Psicanálise na UERJ. Psicanalista. Membro e atual Diretora da EPFCL – Brasil (2010-2012). Membro do FCL – SP. AME da EPFCL. Coordenadora da Rede de Pesquisa de Psicanálise e Infân-cia. Autora de “Feminilidade e experiência psicanalítica” (2001).Email: [email protected]

Andréa Franco MilagresPsicóloga. Mestre em Psicologia pela UFMG. Professora da PUC Minas. Coordenadora do Curso de Especialização em Clínica Psi-canalítica nas Instituições de Saúde da PUC Betim. Psicanalista. Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacania-no-Brasil/ Fórum Belo Horizonte. Diretora de ensino do Fórum Belo Horizonte. Email: [email protected]

Colette SolerDoutora em Psicologia (Paris VII), AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – França. Professora de FCCL – Paris. Autora de vários livros, entre os quais “Psicanálise na ci-vilização” (Contracapa), “O que Lacan dizia das mulheres” (JZE), “O inconsciente a céu aberto na psicose” (JZE) e a recém-lançada edição bilíngue do caderno “Stylus 1: O corpo falante”.E-mail: [email protected]

Christian Ingo Lenz DunkerPsicanalista. Professor Livre-Docente do Instituto de Psicologia da USP. AME da EPFCL. Autor de O Cálculo Neurótico do Gozo (Es-cuta), Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica, (Anna Blume).E-mail: [email protected]

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Conrado RamosPsicanalista. Pós-doutor pelo Núcleo de Pesquisa Psicanálise e So-ciedade do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia So-cial da PUC/SP. Doutor pelo Instituto de Psicologia da USP. Mem-bro da EPFCL – São Paulo. E-mail: [email protected]

Elisabeth da Rocha MirandaPsicanalista. Doutora pelo Programa de pós-graduação em Psica-nálise da UERJ. Professora do curso de Especialização em Psico-logia Clínica da PUC-Rio. Professora do curso de Especialização em Psicologia da UVA. AME da EPFCL, Membro do colegiado e Presidente de Formações Clínicas do Rio de Janeiro. Coordenadora da Rede de Pesquisa em Psicanálise com Crianças de FCCL-Rio. E-mail: [email protected]

Heloísa Helena Aragão e RamirezPsicanalista. Membro da EPFCL (Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano); Membro do Fórum do Campo Lacania-no – SP. Coordenadora da Rede de Sintoma e Corporeidade do Fórum do Campo Lacaniano – São Paulo e do Projeto do grupo Psicanálise e Filosofia: implicações clínicas (USP/SP) na linha de pesquisa: Corporeidade em psicanálise: a psicossomática, alocados em São Paulo, no ABC e em Mogi das Cruzes. Autora de artigos de psicanálise publicados em revistas científicas. E-mail: [email protected]

Jairo Gerbase Médico. Psiquiatra. Psicanalista. AME da EPFCL – Brasil/ Fórum Salvador. Membro da Associação Científica Campo Psicanalítico – Salvador. Autor de Comédias familiares, Os paradigmas da psi-canálise e A hipótese lacaniana. E-mail: [email protected]

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Lenita Pacheco Lemos DuartePsicóloga. Mestre em Pesquisa e Clínica em Psicanálise pela Uni-versidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Pós-graduada em Psicanálise pela Universidade Estácio de Sá (UNESA). Psicanalista. Membro da Escola de Psicanálise Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil / Fórum Rio de Janeiro. Participante de Formações Clínicas do Campo Lacaniano – Rio. E-mail: [email protected]

Lia Carneiro Silveira Psicanalista. Doutora em Enfermagem, Professora da Universidade Estadual do Ceará. Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil / Fórum Fortaleza. E-mail: [email protected]

Maria Vitória BittencourtPsicanalista. D.E.S.S. de Psychologie Clinique et Patologique (Pa-ris V). D.E.A. de Psychanalyse du Champ Freudien (Paris VIII). AME da École de Psychanalyse des Forums du Champ Lacanien – France. Professora no College Clinique de Paris. E-mail: [email protected]

Sidi AskofaréPsicanalista. Doutor em Letras e Ciências Humanas e em Psico-logia. Professor e Diretor de Pesquisa da Université de Toulouse 2 – Le Mirail. Professor do Colégio do Sudoeste (França). AME da Ecole de Psychanalyse des Forums du Champ Lacanien – France.E-mail: [email protected]

Silvana PessoaEspecialista em Psicologia Clínica. Mestre em Educação pela Uni-versidade de São Paulo. Psicanalista. Membro Honorário da As-sociação Científica Campo Psicanalítico – Salvador. Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil/ Fórum São Paulo. Ensinante em Formações Clínicas do Fórum do Campo Lacaniano – São Paulo. E-mail: [email protected]

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Silvia Helena Facó AmoedoPsicanalista. Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Fórum Natal.E-mail: [email protected]

Sonia Campos MagalhãesPsicóloga. Analista Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil/ Fórum Salvador. Membro da Associa-ção Científica Campo Psicanalítico – Salvador. E-mail: [email protected]

Tatiana Carvalho AssadiPsicanalista. Pós-doutoranda em Psicologia Clínica (USP/SP). Dou-torado em Ciências Médicas pela Universidade Estadual de Cam-pinas (2007). Pesquisadora do grupo Psicanálise e Filosofia: impli-cações clínicas (USP/SP) na linha de pesquisa: Corporeidade em psicanálise: a psicossomática. Pesquisadora do Estudo comparativo internacional das marcas-corporais autoinfligidas à luz dos laços sociais contemporâneos: Função das tatuagens e escarificações na economia psíquica dos jovens adultos: gênese, relação com o corpo, solução subjetiva. PST-USP e Laboratoire de Psychopathologique et clinique psychanalytique. – Rennes 2 – Fr. Membro do Fórum do Campo Lacaniano – SP. Coordenadora da Rede de Pesquisa e Clí-nica em Psicossomática em MC/SP. Autora de artigos, entre outros, sobre psicossomática. E-mail: [email protected]

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stylus, m. 1. (Em geral) Instrumento formado de haste pontiaguda. 2. (Em es-pecial) Estilo, ponteiro de ferro, de osso ou marfim, com uma extremidade afia-da em ponta, que servia para escrever em tabuinhas enceradas, e com a outra extremidade chata, para raspar (apagar) o que se tinha escrito / / stilum vertere in tabulis, Cic., apagar (servindo-se da parte chata do estilo). 3. Composição escrita, escrito. 4. Maneira de escre-ver, estilo. 5. Obra literária. 6. Nome de outros utensílios: a) Sonda usada na agricultura; b) Barra de ferro ou estaca pontiaguda cravada no chão para nela se estetarem os inimigos quando atacam as linhas contrárias.

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Ana Laura Prates Pacheco (EPFCL - São Paulo)Ana Paula Gianesi (EPFCL - São Paulo)Andréa Hortélio Fernandes (UFBA / EPFCL – Salvador)Andréa Franco Milagres (EPFCL- Belo Horizonte)Beatriz Oliveira (EPFCL - São Paulo)Clarice Gatto (FIOCRUZ / EPFCL - Rio de Janeiro)Conrado Ramos (PUC-SP/ EPFCL - São Paulo)Eugênia Correia (Psicanalista – Natal)Graça Pamplona (EPFCL – Petrópolis)Kátia Botelho (PUC-MG / EPFCL- Belo Horizonte)Lia Carneiro Silveira (UECE / EPFCL - Fortaleza)Leandro Santos ((EPFCL - São Paulo)Maria Helena Martinho (UVA / EPFCL – Brasil)Nina Araújo Leite (UNICAMP / Escola de Psicanálise de Campinas) Paulo Rona (EPFCL - São Paulo)Sônia Alberti (UERJ /EPFCL - Rio de Janeiro)Sônia Borges (EPFCL - Rio de Janeiro)

Pareceristas do número 22

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163Stylus Rio de Janeiro nº 23 p. 1-164 novembro 2011

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