souza et jardim - o pai x o lado esquerdo da família, uma análise de lavoura arcaica

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‘O pai x o lado esquerdo da família: uma análise de Lavoura Arcaica Jacqueline Ribeiro de Souza 1 Alex Fabiano Correia Jardim 2 Resumo: O presente trabalho tem como objeto de pesquisa Lavoura Arcaica de Raduan Nassar e objetiva analisar a construção dos sujeitos discutindo e apresentando as disparidades discursivas presentes nos discursos do pai e dos membros familiares que se encontram à sua esquerda. A tentativa do pai de moldar e disciplinar os familiares, visando à construção de subjetividades ideais, influencia na construção de discursos de desvio desse ideal, comum àqueles que estão à sua esquerda e se caracterizam como a antinorma, por tentarem romper com a tradição e com a ordem estabelecida pelo pai. Dessa forma as relações de poder que se estabelecem nesses discursos também é alvo de análise. Palavras-chave: Discurso. Poder. Transgressão. Em Lavoura Arcaica, a família é dividida em dois polos: o polo da tradição, do conservadorismo, do autocontrole e da moderação, representado pelo pai e seus seguidores, ou seja, aqueles que estão à sua direita; e o polo do afeto, da libertação, do descontrole e do descomedimento, representado pela mãe e seus respectivos segui- dores: André, Ana e Lula, que melhor diríamos, aqueles que estão à 1 Mestranda em Letras/Estudos Literários da Universidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES. [email protected]. 2 Doutor em filosofia. Professor no curso de graduação em Filosofia e no mestrado em Letras/Estu- dos Literários da Universidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES. alex.jardim38@hotmail. com. R. Língua & Literatura Frederico Westphalen v. 13 n. 21 p. 147 - 168 Dez. 2011. Recebido em: 24 out 2011. Aprovado em: 19t nov. 2011.

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  • O pai x o lado esquerdo da famlia: uma anlise de Lavoura Arcaica

    Jacqueline Ribeiro de Souza1Alex Fabiano Correia Jardim2

    Resumo: O presente trabalho tem como objeto de pesquisa Lavoura Arcaica de Raduan Nassar e objetiva analisar a construo dos sujeitos discutindo e apresentando as disparidades discursivas presentes nos discursos do pai e dos membros familiares que se encontram sua esquerda. A tentativa do pai de moldar e disciplinar os familiares, visando construo de subjetividades ideais, infl uencia na construo de discursos de desvio desse ideal, comum queles que esto sua esquerda e se caracterizam como a antinorma, por tentarem romper com a tradio e com a ordem estabelecida pelo pai. Dessa forma as relaes de poder que se estabelecem nesses discursos tambm alvo de anlise.

    Palavras-chave: Discurso. Poder. Transgresso.

    Em Lavoura Arcaica, a famlia dividida em dois polos: o polo da tradio, do conservadorismo, do autocontrole e da moderao, representado pelo pai e seus seguidores, ou seja, aqueles que esto sua direita; e o polo do afeto, da libertao, do descontrole e do descomedimento, representado pela me e seus respectivos segui-dores: Andr, Ana e Lula, que melhor diramos, aqueles que esto 1 Mestranda em Letras/Estudos Literrios da Universidade Estadual de Montes Claros UNIMONTES. [email protected] Doutor em fi losofi a. Professor no curso de graduao em Filosofi a e no mestrado em Letras/Estu-dos Literrios da Universidade Estadual de Montes Claros UNIMONTES. [email protected].

    R. Lngua & Literatura Frederico Westphalen v. 13 n. 21 p. 147 - 168 Dez. 2011. Recebido em: 24 out 2011.Aprovado em: 19t nov. 2011.

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    esquerda do pai. Responsvel pela continuidade da famlia e de perpetuar os ensi-

    namentos herdados, no quebrando o crculo de uma tradio secular, o pai Iohna tenta, de forma imperativa, impor aos membros de sua famlia regras e valores. De acordo com Jurandir Freire Costa (1992), a castrao pela linguagem pode ser entendida como as vrias formas de ensinar os sujeitos a seguirem regras morais, estruturando suas sub-jetividades de acordo com os ideais de eu ou subjetividades modelares de como deve ser o sujeito. Porm, essa construo de subjetividades ideais implica, ipso facto, a fi gura da antinorma ou do desvio do ideal, representada pelos que no podem, no sabem ou no querem seguir as injunes ideais (COSTA, 1992, p. 19). Entendemos, portanto, que a tentativa do pai de moldar e disciplinar os familiares, visando construo de subjetividades ideais, infl uencia na construo de dis-cursos de desvio desse ideal, comum queles que esto sua esquerda.

    O discurso pode ser entendido como qualquer atividade produ-tora de sentido entre os interlocutores no processo da enunciao, e regulado por uma exterioridade lingustica que o contexto histrico-social e a ideologia. O sentido de uma enunciao depende do locutor e do interlocutor, eles so os sujeitos da interao comunicativa. Esse sujeito do discurso na verdade uma forma imaginria que est ligada formao histrica e ideolgica, e como imagem pode se revelar ou se omitir, ocupando diversas posies e diferentes papis sociais.

    O sujeito , portanto, um efeito do discurso, visto que no discurso que ele se constitui. A subjetividade, dessa forma, trata-se da capacidade do indivduo de se colocar como sujeito, referindo-se a ele mesmo com o emprego do eu no seu discurso. Segundo mile Benveniste o

    eu se refere ao ato de discurso individual no qual pronunciado, e lhe designa o locutor. um ter-mo que no pode ser identifi cado a no ser dentro do que, noutro passo, chamamos uma instncia de discurso, e que s tem referncia atual. A realidade qual ele remete a realidade do discurso. na ins-tncia de discurso na qual eu designa o locutor que este se enuncia como sujeito. (BENVENISTE, 1995, p. 288).

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    Para Benveniste o homem s tem conscincia de si mesmo, quando se coloca como o eu do seu discurso, e isso s possvel por contraste, j que o emprego do eu implica o emprego de outra pes-soa, o tu. Ento, ao se dirigir ao outro, ao tu, o homem se v como o eu do seu discurso. Dessa forma, conclui que no discurso que o homem se constitui como sujeito.

    Para Suely Rolnik, a subjetividade o perfi l do modo de ser, pensar e agir envolto num processo sem fi m, de constante muta-o, que se administra dia a dia. como um mapa de sensaes que povoam uma cartografi a mutvel. Todo ambiente scio-cultural composto de universos. E esses universos, traduzidos como sen-saes, afetam as subjetividades que se delineiam a partir de uma composio singular de foras, um certo mapa de sensaes. A cada novo universo que se incorpora, novas sensaes entram em cena e um novo mapa de relaes se estabelece (ROLNIK, 1999, p. 02), implicando, dessa maneira, uma desestabilizao do ser, um proces-so que nunca para e faz da subjetividade um sempre outro, j que est em constante mutao.

    Suely Rolnik tambm afi rma que pretender que nossas carto-grafi as, ou subjetividades, sejam puras, eternas, universais ou sim-plesmente verdadeiras em si mesmas reiterar exatamente o que faz adoecer: calar a diferena, calcifi car o existente, impotencializar a vida, travar a processualidade do ser, brecar a histria. (ROLNIK, 1995, p. 03). O ser , a todo o momento, surpreso por novos acon-tecimentos que o foram a criar novas fi guras para dar sentido s diferenas geradas. So quebras e rupturas que ocorrem repetida-mente durante toda a nossa vida, no sendo possvel fugir delas, mas adaptar nosso eu a elas, modifi cando-nos. preciso levar em conta a processualidade do ser e aprender a lidar com essas diferenas, com o mal-estar gerado por elas, j que so naturais ao ser e constituem nossas subjetividades.

    O sujeito est sempre em processo, em constante movimento na formao individual, em um permanente tornar-se. O indi-vduo no um ser constitudo, ele torna-se um ser a partir das relaes que estabelece com o meio cultural e social ao qual est in-serido atravs de seu discurso. Dessa maneira, no possvel analisar

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    a construo do sujeito sem analisar o seu discurso, j que a subjeti-vidade est fundamentada na prtica discursiva.

    Para Foucault (2005) o discurso uma prtica que provm da formao de saberes e que necessita de uma articulao com outras prticas no discursivas; um jogo estratgico e polmico de ao e reao e de dominao e de esquiva; um espao em que o saber e o poder se articulam, j que aquele que fala, fala de algum lugar, a par-tir de um direito reconhecido institucionalmente e a produo do discurso gerador de poder controlada, selecionada, organizada e re-distribuda por procedimentos que visam a eliminar toda e qualquer ameaa a esse poder. Dessa forma, o sujeito est preso a essas relaes complexas de poder, que devem ser vistas a partir das estratgias de poder/resistncia. importante destacar que essas relaes de poder so caracterizadas muito mais pela produo do que pela represso, uma vez que produzem pensamentos, ideias, palavras e atitudes.

    Segundo Foucault, em uma sociedade como a nossa existem procedimentos de excluso e o mais conhecido de todos eles seria a interdio. Sabe-se que no se tem o direito de dizer tudo, que no se pode falar de tudo em qualquer circunstncia, que qualquer um, enfi m, no pode falar de qualquer coisa. (FOUCAULT, 2005, p. 9). Evidenciando, assim, que aquele que fala, detm de certa forma um direito exclusivo e privilegiado.

    Por isso o discurso est longe de ser algo transparente ou neu-tro, Pelo contrrio, as interdies impostas a ele, revelam rapidamen-te sua ligao com o desejo e o poder. O discurso no simplesmente a manifestao ou ocultao do desejo, tambm o objeto do desejo; como tambm no s a traduo dos sistemas de dominao, mas tambm aquilo pelo qual se luta, o poder do qual nos queremos apoderar. (FOUCAULT, 2005, p. 10). O discurso , portanto, alvo de desejo e smbolo de poder.

    O pai, em Lavoura Arcaica, quer eliminar qualquer ameaa a seu poder, porm seu discurso pensado sob essas relaes de poder, que quer proibir, reprimir, restringir, inibir, fazer calar, pode ser visto como um discurso que incita, incentiva, faz falar, ou seja, um discur-so produtivo. E esse discurso imperativo pode, na realidade, estimu-lar a produo de discursos de resistncia. Alm do mais, a pretenso

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    do pai de criar subjetividades ideais, padronizadas segundo a sua vontade est fadada ao fracasso, porque sua viso no permite pensar na produo do novo, insiste numa tentativa de domesticao dos efeitos das foras externas que afetam as subjetividades, no levan-do em conta a processualidade do ser e o mal-estar que provoca a sensao de desestabilizao de cada um. Dessa forma, as relaes de poder e de resistncia se intensifi cam, produzindo pensamentos, palavras e atitudes, ou melhor, discursos, que transgridem e descons-troem o discurso paterno, sendo essa desconstruo comum queles que esto direita do pai: a me, Andr, Ana e Lula.

    O pai: a tbua solene

    O pai sempre to solene em seus desgnios, sempre to preso tradio, est predestinado a repassar aos fi lhos a herana cultural herdada, j que responsvel pela manuteno da ordem da famlia e da perenidade dos ensinamentos. visto sob a tica do narrador-protagonista, Andr, que rememora seus ensinamentos, retomando suas falas e muitas vezes refl etindo sobre elas.

    Se na instncia do discurso que o homem se institui como sujeito, , portanto, atravs do seu discurso fi rme e austero, mesclan-do tons doutrinrios, religiosos e profticos que Iohna se impe como senhor supremo do seu cl, alternando funes como as de chefe, sacerdote, juiz, general, ou seja, todas as funes implcitas s funes de um pai. Munido de poder, j que detm o direito privi-legiado e exclusivo do sujeito que fala, v-se no direito e na posio de impor, julgar e punir. Dessa forma, no discurso, onde exerce de forma mais efetiva, seu poder.

    O princpio bsico e essencial do seu sermo que a fam-lia deve se fechar e se deixar conduzir pelo ciclo: amor, trabalho e tempo. Advertindo que no ser jamais recompensado, aquele que ousar sair desse ciclo, quebrando sua corrente e rompendo com sua circularidade regular. Este, certamente, receber de volta um castigo implacvel do destino.

    O verbo spero do pai se fazia presente em todas as manhs e noites na mesa dos sermes. O patriarca, sem nunca perder sua

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    solenidade, comeava seu discurso sempre pela importncia e supre-macia do tempo, afi rmando que

    onipresente, o tempo est em tudo; existe tempo, por exemplo, nesta mesa antiga: existiu primeiro uma terra propcia, existiu depois uma rvore secu-lar feita de anos sossegados, e existiu fi nalmente uma prancha nodosa e dura trabalhada pelas mos de um arteso dia aps dia. (NASSAR, 1989, p. 52).

    O tempo: bem supremo e tesouro precioso, cultuado pelo pai como o bem maior que deve ter seu fl uxo respeitado para se chegar ao equilbrio. Repreendendo que na sua casa, ningum h de dar um passo maior que a perna, que ningum h de colocar o carro na frente dos bois, bem como nunca comear nada pelo teto, adverte que aquele que agir assim, de forma a impacientar o tempo, no construir suas bases de sustentao para manter tal equilbrio. preciso seguir rigorosamente a lei maior: a obedincia absolu-ta soberania incontestvel do tempo (NASSAR, 1989, p. 57). Submeter-se soberania do tempo seria para o pai uma forma de conservao do status quo familiar. Consoante Lima, a submisso respeitosa ao tempo garantiria a manuteno de uma regularidade estvel, evitando que algum membro do grupo se rebelasse contra essa ordem. (LIMA, 2006, p. 21).

    Ao falar do tempo, percebemos tambm, por parte do pai uma valorizao do passado, e conseguintemente dos antepassados, pois tudo que existe hoje exigiu, anteriormente, esforo e trabalho de outras pessoas. Notamos, dessa maneira, mais uma tentativa de ma-nuteno da ordem familiar e da estrutura patriarcal atravs do culto aos antepassados, fi gurado na presena do tempo. A incontestabili-dade do tempo pode ser entendida como a soberania incontestvel da tradio. Para Abati, o pai seria uma espcie de representante e guardio das doutrinas herdadas, contribuindo com sua lavoura ar-caica para a perpetuao do saber ancestral. (ABATI, 1999, p. 60).

    Outra regra imposta pelo pai a de manter os limites da fa-zenda sempre bem vedados, para que no entre nenhum vento pes-tilento que possa contaminar qualquer um dos membros da fam-lia. Como tambm ningum daquela casa deve buscar fora o que

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    se tem dentro das divisas de sua terra. preciso afastar-se do mun-do das paixes porque ele o mundo das trevas e do desequilbrio. necessrio erguer uma cerca ou guardar simplesmente o corpo (NASSAR, 1989, p. 56), pois somente atravs do recolhimento que se consegue fugir do perigo das paixes. Porm essa mxima do recolhimento no utilizada em relao ao trabalho. A dignidade do homem est no trabalho, no lavorar, logo, ningum h de cruzar os braos quando ainda se tem terra para lavrar. A lavoura tambm uma forma de conservao da ordem familiar atravs da tradio. Conforme Lima (2006), a lavoura mantm os laos com os antepas-sados e a tradio, j que est ligada a um conhecimento milenar. Logo, quando o pai a retoma diariamente conserva fi rmes as razes da famlia.

    Sempre agarrado tradio, o pai presta em seus sermes um culto sabedoria dos mais velhos, chamando a ateno para que a famlia no se esquea nunca das suas origens, por isso mantm, na mesa de refeies, a cadeira da outra cabeceira da mesa vazia, em homenagem ao av. Destaca ainda, que a exemplo dos mais velhos, a primeira lei da casa deve ser a pacincia, cultivada com muito zelo pelos antepassados, funciona como uma espcie de viga de suporte para os momentos de adversidade.

    Para fi nalizar seu sermo, o pai enfatiza a importncia da unio da famlia, que encontrada na obedincia, na pacincia, no reco-lhimento e na disposio para o trabalho. Enfi m, para ele, ho de ser esses, no seu fundamento, os modos da famlia: baldrames bem travados, paredes bem amarradas, um teto bem suportado (NAS-SAR, 1989, p. 60).

    Com isso, percebemos que o pai se utiliza de procedimentos de excluso e de controle para manter-se no poder, frente da fam-lia. Segundo Foucault (2005), os procedimentos de excluso seriam a interdio, a separao ou rejeio e o discurso da verdade. A in-terdio, o mais familiar meio de excluso, formado por uma grade complexa que envolve o tabu do objeto, ritual da circunstncia e direito privilegiado e exclusivo do sujeito que fala, utilizada pelo pai ao proibir os familiares ultrapassar os limites da fazenda, abrir-se para as paixes e os desejos, impondo a eles o comedimento; bem

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    como, ao proibir o direito da fala, pois somente a ele dado esse di-reito, aos outros cabe simplesmente a aceitao e repetio dos seus preceitos.

    Outro princpio tambm usado pelo pai o princpio da se-parao ou rejeio. Conforme Foucault (2005) este procedimento caracterizado pela oposio entre a razo e a loucura. Para o pai, aquele que contraria os seus desgnios, blasfema, j que seu discurso sagrado, construdo na base de uma tradio milenar, o discurso da razo, e qualquer indivduo que venha contrapor a essa razo, ser tomado como louco. E o discurso do louco deve ser impedido de circular.

    O discurso da verdade como terceiro sistema de excluso im-pe uma separao entre o verdadeiro e o falso e essa separao histrica e institucionalmente constituda e no se exerce sem pres-so ou violncia. A todo instante o ser humano, ou melhor, a so-ciedade em geral produz verdades. E essa produo de verdade est totalmente ligada ao poder e seus mecanismos. Esses mecanismos de poder tornam possvel a produo de verdade, bem como a prpria produo de verdade tem efeitos de poder que prendem os indiv-duos a ela. Dessa maneira, as relaes entre verdade/poder e saber/poder so indissociveis.

    Consoante Foucault (2005), esse discurso verdadeiro ou essa vontade de verdade se modifi ca pela histria, cada perodo mar-cado por uma vontade de saber diferente. Na Grcia Antiga, por exemplo, o discurso verdadeiro era o discurso precioso e desejvel, respeitado e atemorizado. Com as mutaes cientfi cas, a vontade de verdade se desloca para as descobertas cientfi cas. De qualquer forma, a vontade de verdade tem sua prpria histria: a histria dos objetos a conhecer e a histria das funes e posies do sujeito.

    Esse discurso da verdade, como os outros sistemas de excluso, apoia-se em um suporte institucional, que tem suas prticas recondu-zidas e reforadas por uma pedagogia e tambm pelo modo como essa verdade aplicada em uma sociedade. Logo, essa vontade de verdade assim apoiada sobre um suporte e uma distribuio institucional ten-de a exercer sobre os outros discursos [...] uma espcie de presso e como que um poder de coero. (FOUCAULT, 2005, p. 18).

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    Esse procedimento de separao entre o verdadeiro e o falso tambm utilizado pelo patriarca de Lavoura Arcaica, que estipula o seu discurso como verdadeiro, apoiando-se na famlia, que pode ser vista como uma instituio, j que tem suas regras e valores distribu-dos e atribudos a cada membro familiar, e na tradio, construda ao longo da histria, herdada e repassada por ele. Seu discurso coer-citivo exerce presso aos demais sujeitos, com o intuito de promover a excluso daqueles que por ventura contrariar o seu poder.

    O pai tambm utiliza mecanismos de controle dos discursos. Esses procedimentos de controle tratam de determinar as condies de seu funcionamento, impondo regras e no permitindo que todos tenham acesso a ele. Conforme Foucault, ningum entrar na or-dem do discurso se no satisfazer a certas exigncias ou se no for, de incio, qualifi cado para faz-lo. (FOUCAULT, 2005, p. 37). A forma mais visvel desse sistema de restrio o ritual. Ele

    defi ne a qualifi cao que devem possuir os indivdu-os que falam (e que, no jogo do dilogo, da interro-gao, da recitao, devem ocupar determinada po-sio e formular determinado tipo de enunciados); defi ne os gestos, os comportamentos, as circunstn-cias, e todo o conjunto de signos que devem acom-panhar o discurso; fi xa, enfi m, a efi ccia suposta ou imposta das palavras, seu efeito sobre aqueles aos quais se dirigem, os limites de seu valor de coero. (FOUCAULT, 2005, p. 39).

    O pai, em seus sermes, seguia sempre o mesmo ritual, a fi m de que a famlia fi xasse suas palavras e internalizassem o seu cdigo de conduta: o excesso proibido, o zelo uma exigncia, e, condenado como vcio, a prdica constante contra o desperdcio, apontando sempre como ofensa grave ao trabalho (NASSAR, 1989, p. 75-76). Andr relata que esse ritual de austeridade se cumpria trs vezes ao dia, na hora de repartir o po, principalmente na mesa de refeies, lugar onde faziam o aprendizado da justia do pai.

    Esse ritual se completava com gestos, comportamentos e sig-nos que acompanhavam os sermes do patriarca. O pai sempre cabeceira fazia uma pausa de costume para que refl etissem sobre suas palavras e, segundo Andr, medissem a majestade rstica de sua

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    postura: fi rme, solene, pescoo slido, cabea grave e as mos pren-dendo a quina da mesa.

    A doutrina tambm um procedimento de controle dos dis-cursos, com tendncia a difundir-se, caracteriza-se pela partilha en-tre os indivduos de um s e mesmo discurso. Ela liga os indivduos a certos tipos de enunciao e lhes probe, consequentemente, todos os outros. (FOUCAULT, 2005, p. 43). Em Lavoura Arcaica, o pai impetra ao seu discurso esse trao doutrinrio, porquanto pretende que a famlia partilhe o mesmo discurso que ele, proibindo qualquer outro discurso que no seja o seu. Tambm pretende que seus en-sinamentos sejam difundidos, repassados pelos fi lhos. Percebemos esse desejo de perenidade, quando mantm viva a memria dos ante-passados, exaltando a todo o momento a sabedoria dos mais velhos. Se hoje ele colhe o que semearam antes, um dia colhero daquilo que ele semeia hoje.

    Outro procedimento de sujeio do discurso a apropriao social. O indivduo, atravs da educao, pode ter acesso a qualquer tipo de discurso, porm o sistema de ensino uma maneira poltica de manter ou modifi car a apropriao dos discursos. De acordo com Foucault

    O que afi nal um sistema de ensino seno uma ri-tualizao da palavra; seno uma qualifi cao e uma fi xao dos papis para os sujeitos que falam; seno a constituio de um grupo doutrinrio ao menos difuso; seno uma distribuio e uma apropriao do discurso com seus poderes e seus saberes? (FOU-CAULT, 2005, p. 44-45).

    Desse modo, podemos parafrasear Foucault, afi rmando que o sistema familiar, visto como um sistema de ensino com seus ritos e doutrinas, uma maneira poltica de manter ou dominar os discur-sos e, por conseguinte, os sujeitos. Segundo o protagonista Andr, o pai quer transformar a famlia em uma escola de meninos-artesos, onde tudo cultivado e produzido em casa. Porm, mais que uma questo particular de trabalho, uma questo poltica do exerccio do seu poder, onde o pai quer impor o seu discurso, fazendo da ins-tituio familiar, uma instituio de ensino. Ele quer ritualizar sua

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    palavra, constituir um grupo doutrinrio das suas leis, fi xar papis para cada membro familiar, segundo a sua vontade, alm de impor a todos a apropriao de suas palavras com vistas manuteno e di-fuso dos seus ensinamentos. Para isso, faz uso de um tipo de poder chamado disciplina. Uma modalidade constituda por um conjunto de instrumentos, procedimentos, tcnicas e nveis de aplicao que permite exercer o poder de forma efetiva. Todo poder se instaura mediante tcnicas e mtodos.

    Vale ressaltar que o poder deve ser entendido como uma estra-tgia, como um jogo onde se encontram as relaes de foras. Um jogo que, atravs de lutas ininterruptas, transforma essas relaes, reforando-as ou invertendo-as e no como uma instituio maior de dominao irreversvel. So relaes de foras entre indivduos: entre um homem e uma mulher, entre pais e fi lhos, entre irmos e irms, dentre vrias outras relaes infi nitas do cotidiano. Tam-bm preciso destacar que essas relaes de foras suscitam uma resistncia. No existe um poder irreversvel ou incontornvel, mas ao contrrio, todo poder passvel de reversibilidade, j que todo poder faz surgir uma recusa ou uma revolta. Para Foucault (1987), o indivduo alm de ser fi cticiamente a representao da sociedade tambm uma realidade fabricada por esse tipo de poder. Dessa for-ma, faz-se necessrio abandonar a viso de que os efeitos desse poder sejam sempre negativos: ele exclui, reprime, recalca, censura, abstrai, mascara, esconde. (FOUCAULT, 1987, p. 161). O po-der se caracteriza pela produo, ele produz realidades e o indivduo , portanto, um fruto dessa produo.

    Atravs do seu discurso, Iohna pratica o exerccio do seu poder, possvel pelo seu direito de soberania e pelo mecanismo da disciplina. Seu poder exercido na tentativa de moldar os sujeitos conforme suas prprias regras. No dilogo com Pedro, Andr afi rma que o pai

    na sua sintaxe prpria, dura e enrijecida pelo sol e pela chuva, era esse lavrador fi broso catando da terra a pedra amorfa que ele no sabia to modelvel nas mos de cada um; [...] mas era assim que ele queria as coisas, ferir as mos da famlia com pedras rsti-cas, raspar nosso sangue como se raspa uma rocha de calcrio. (NASSAR, 1989, p. 42).

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    O patriarca, atravs do seu discurso autoritrio e austero uni-do fora fsica, quer reprimir, calar e excluir a diferena. Nota-se na fala de Andr, o esforo do pai de impor a sua vontade famlia a qualquer custo, de forma imperiosa e rude. Na tentativa de padroni-zar o processo de constituio dos sujeitos, formando subjetividades ideais, o pai no leva em conta a processualidade do ser, que faz do sujeito um sempre outro, e no reconhece a dinmica de que a todo o momento um perfi l se dilui enquanto que outro imediatamente se esboa. O pai ignora que o seu poder funciona antes como produ-o do que represso, que o seu poder incita a produo de ideias, palavras, discursos e, por conseguinte, sujeitos. E esses sujeitos en-volvidos nessas relaes complexas de poder, muitas vezes assumem papis de resistncia.

    De acordo com Gilles Deleuze e Flix Guattari (1966), no conjunto social existem dois tipos de grupos, os grupos-sujeitos e os grupos-sujeitados e estes grupos esto em constante movimen-tao: um grupo-sujeito corre a todo momento o risco de sujeio e um grupo sujeitado pode ser, em certos casos, forado a assumir um papel revolucionrio. (DELEUZE & GUATTARRI, 1966, p. 66). Em Lavoura Arcaica, o pai se encontra nesse grupo-sujeito, en-quanto que os demais familiares pertencem ao grupo-sujeitado. No entanto, parte desse grupo-sujeitado assume o papel revolucionrio, de resistncia e de transgresso.

    O enfermio lado esquerdo

    Em Lavoura Arcaica, o papel revolucionrio do grupo-sujeita-do fi ca a cargo daqueles que esto esquerda do pai, j que o lado direito da famlia uma continuao espontnea do tronco, que se-ria o patriarca. Essa dualidade resistncia/revoluo s possvel a partir da constatao das falhas do discurso paterno. Com vistas a conservao da estrutura da famlia de forma arcaica, o pai man-tm seu discurso estagnado frente a constante mutabilidade do ser. Seu discurso no evolui, no se transforma para adequar-se as novas realidades e novas subjetividades que vo surgindo, apresentando, portanto, falhas que permitem serem questionadas e abrem espao

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    para a transgresso.Seu discurso falho medida que se observa a repetitividade

    de seus sermes, construdo com frases feitas de refres populares e trechos retirados da Bblia ou do Alcoro. Teixeira (2002) destaca em seu trabalho a intertextualidade que Lavoura Arcaica estabele-ce com os textos bblicos e o Alcoro, citando principalmente as aproximaes do discurso paterno aos livros sagrados: Provrbios, Eclesiastes e o Evangelho de So Lucas. Sedlmayer (1997) j havia discutido anteriormente essa questo, ao fazer um paralelo entre o romance e os textos bblicos: Provrbios, Eclesiastes e Cantares, livros cuja escrita so atribudos a Salomo. J Rodrigues (2006) apresenta uma analogia mais ampla, comparando vrios textos do Antigo e Novo Testamento da Bblia com Lavoura Arcaica. Faz aproximaes com os livros dos profetas Isaas, Jeremias e Habacuc, com os livros chamados sapienciais: Deuteronmio e Provrbios do Antigo Tes-tamento, e do Novo Testamento faz referncia aos evangelhos e as epstolas: Matheus, Lucas, Romanos, Corntios, Efsios, dentre outros.

    De fato, em Lavoura Arcaica o discurso paterno abarca uma mescla de textos bblicos, cornicos e ditos populares. Fato este, j detectado pelo prprio protagonista do romance. Andr menciona a solenidade do pai ao ler textos compilados em uma velha brochura: abrindo com os dedos macios a velha brochura, onde ele, numa caligrafi a grande, angulosa, dura, trazia textos compilados, o pai ao ler, no perdia nunca a solenidade (NASSAR, 1989, p. 61). Os tex-tos de origens diversas reunidos nessa nica obra, a velha brochura, faziam do discurso paterno falho, j que o pai no sustentava um discurso prprio. Isso faz com que seu discurso seja inconsistente e, ao mesmo tempo, incoerente, j que o excesso de repetio mostra a incompatibilidade entre os seus discernimentos e as suas aes.

    Segundo Rodrigues, o discurso do pai prega o comedimento e a moderao, porm sua fala contrape o seu discurso e se apresenta como descomedida, repetitiva e excessiva. O que j no pode mais ser obtido unicamente pela presena requer a palavra persuasiva a acompanh-la. E a insufi cincia dessa palavra primeira requer ou-tras e mais outras e assim sucessivamente. (RODRIGUES, 2006, p. 40). A presena do pai j no sufi ciente para a manuteno da

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    ordem, pois se seu discurso se apresenta como incoerente, o sujeito pai consequentemente tambm o . Por isso a insistncia da repeti-o dos seus sermes uma forma de convencer a famlia e qui a ele prprio a aceit-los como uma norma.

    O excesso, a incompatibilidade e a incoerncia do discurso paterno fazem com que o protagonista perceba que o pai no de-tm a sabedoria que tenta passar famlia. Em vrios momentos da narrativa, Andr denuncia e critica a hipocrisia desse discurso, afi r-mando serem inconsistentes os sermes do pai (NASSAR, 1989, p. 47), uma vez que o que ele falava era dito provavelmente sem saber o que estava dizendo (NASSAR, 1989, p. 41-42). A suposta atmosfera harmnica dessa famlia encobria desejos, vontades, dores e solido. O discurso do pai no alcanava a famlia. Petrifi cado e re-pleto de frases feitas retiradas de textos compilados, seu discurso era simplesmente discernimentos promscuos [...] em que apareciam enxertos de vrias geografi as (NASSAR, 1989, p. 89). Ou seja, o pai falava daquilo que nem ele prprio compactuava.

    O comedimento, o equilbrio e a pacincia no estavam pre-sentes nas suas falas, mas ao contrrio, essa fala se mostrava desco-medida, desequilibrada e impaciente. Essa palavra excessiva tambm vinha acompanhada de fora fsica e gritos de impacincia: de que adiantavam aqueles gritos, se mensageiros mais velozes, mais ativos, montavam melhor o vento, corrompendo os fi os da atmosfera? (NASSAR, 1989, p. 12). O questionamento de Andr d claras evi-dncias de que a aparente unio da famlia construda em torno da ordem no existia. O discurso do pai no tinha efi ccia porque ele no conhecia a sua famlia. Com os olhos vedados para as possveis mudanas, s objetivava a domesticao dos sujeitos. Atitude segu-ramente malograda.

    Diante disso, Andr tem conscincia da tentativa do pai de brecar a processualidade do ser e de tentar modelar a famlia, cas-trando os desejos e pulses do corpo de cada um. Em nome do amor, Andr quer libertar a famlia da palavra mrbida do pai. Dessa for-ma, contra a negao da carne, cheia de fome e de desejos, que se insurge o fi lho. (PERRONE-MOISS, 1996, p. 64).

    Andr, fi lho transgressor, desconstri o discurso paterno. Re-

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    fere-se a ele como promscuo por ser composto por vrias geografi as, ou seja, um discurso compilado e, portanto, invlido. Assim, quer se ver livre e tambm livrar a famlia dessa lei falsa e hipcrita. Por isso suas falas funcionam como uma resposta de resistncia e ao mesmo tempo de afronta contra os sermes do pai. Ope-se ordem, ins-taurando a desordem a mando dos desejos e das palpitaes da sua carne.

    O embate divergente entre o discurso paterno e o discurso de Andr evidente em toda a narrativa. O pai se inscreve como instau-rador da lei, defensor da ordem e dos bons costumes. Fundamenta-do sempre na tradio o responsvel pela perpetuao da mesma. J o fi lho, alicerado nos desejos de sua carne, inscreve-se como trans-gressor dessa lei e dessa ordem. instaurando o caos e a desordem. O discurso do pai o discurso da razo, enquanto que o discurso do fi lho o da paixo. De acordo com Georges Bataille (1987), a paixo introduz no indivduo uma confuso e uma desordem.

    Srgio Paulo Rouanet (2009) desenvolve uma pesquisa base-ada na teoria freudiana sobre a interao entre a razo e a paixo. A paixo, segundo ele, pode visar demolio do status quo, ou sua consolidao, ou as duas coisas ao mesmo tempo. (ROUANET, 2009, p. 447). Existem duas paixes: uma que remete paz e outra guerra. A paixo que leva guerra seria destrutiva por apresen-tar um lado violento, cruel e irracional, relacionado morte. Essa morte deve ser compreendida no sentido fi gurado, pois essa paixo destrutiva subversiva medida que viola consideradamente as leis, causando a morte da ordem e inserindo o caos.

    A razo, por sua vez, defi ne-se pela forma como interage com as paixes, podendo ser esse vnculo negativo ou positivo. negativo quando a razo nega a importncia da paixo, reprimindo qualquer atitude passional. E positiva quando reconhece todas as formas de paixo que torne a vida mais humana. Rouanet chama aquela de razo louca e esta de razo sbia.

    A razo louca no impede a refl exo, porm cria uma falsa conscincia. Julga-se sensata e nega a infl uncia perturbadora das paixes. Essa razo nega a paixo, no entanto, de forma inconscien-te, sucumbe-se a ela.

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    A razo louca porque se deixou arrastar, sua reve-lia, pela paixo. No caso que nos ocupa agora, a ra-zo nega, de todo, que exista algo do que libertar-se. No uma razo ingnua, mas uma razo arrogante. Sua loucura hubris, excesso, demasia, no a loucu-ra inocente da demncia involuntria, mas a loucura narcsica de quem recusa, como fi ctcia, a infl uncia dos condicionamentos passionais. Ora, a razo que rejeita o que nela irracional acaba sucumbindo ao irracional. Ela se condena perpetuao da falsa conscincia. (ROUANET, 2009, p. 453).

    A razo louca produz a heteronomia, repressiva, regulamenta o comportamento social do indivduo e inibe a ao dos sinais emi-tidos pela realidade externa. Essa inibio faz dela uma razo funda-mentalmente conformista, incapaz de se rebelar efi cazmente contra o poder externo porque o poder interiorizado a impede de pensar e agir. (ROUANET, ano, p. 457). Em contrapartida a razo sbia produz saber e autonomia. Quando necessrio, afasta as paixes para assegurar a objetividade do saber e libera as paixes quando so favo-rveis para aumentar a autonomia do indivduo.

    Esse confronto entre a razo e a paixo est presente em La-voura Arcaica, respectivamente no confronto entre o pai e Andr. O pai detm o discurso da razo, no obstante sua razo louca. Louca porque distorce o conhecimento inibindo a manifestao da paixo. Enquanto soberana suprime injustifi cavelmente as paixes, no re-conhecendo a importncia da vida passional para o indivduo. O pai abusa de seu poder repressivo e impe uma vigilncia contra os im-pulsos da carne. Ele a base e o freio da famlia. E contra essa base e esse freio que Andr tenta se impor. Seu discurso marcado pela paixo e pela loucura. Paixo destrutiva que abala o alicerce familiar, demolindo valores e costumes antes consolidados. Loucura isenta de razo, que responde unicamente fome do corpo.

    Andr tem fome. Uma fome impossvel de ser apaziguada. Uma fome profana e obscena. O desejo de um corpo possudo e ardente em chamas. Esse corpo carrega uma mistura divina e demo-naca. Conhecedor da lei sagrada reverte-a, derramando o sangue de Cristo no lamaal vulcanizado que tem dentro de si: eu, o epilti-co, o possudo, o tomado, eu, o faminto, arrolando na minha fala

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    convulsa a alma de uma chama, um pano de vernica e o espirro de tanta lama, misturando no caldo deste fl uxo o nome salgado da irm, o nome pervertido de Ana (NASSAR, 1989, p. 110). Andr quer liberar o fl uxo da vida, quer incendiar o mundo e amenizar a sua fome, mas para isso ele precisa do seu complemento, ou melhor, do seu alimento: era Ana, Pedro, era Ana a minha fome (NASSAR, 1989, p. 107). Ana o sal, o tempero, o alimento que d sentido existncia de Andr.

    No entanto, o pai o obstculo que o impede de saciar essa fome. Como senhor da mulher e da prole (DUPUIS, 1989, p. 137), o pai o empecilho concretizao do seu desejo e tambm dos desejos de toda a famlia. O cesto de roupa suja era o ossurio desses desejos reprimidos e to bem conhecidos por Andr, j que ningum afundou mais as mos ali do que ele.

    era o pedao de cada um que eu trazia nelas quan-do afundava minhas mos no cesto, ningum ouviu melhor o grito de cada um, [...] bastava afundar as mos pra colher o sono amarrotado das camisolas e dos pijamas e descobrir nas suas dobras, ali perdido, a energia encaracolada e reprimida do mais meigo cabelo do pbis, e nem era preciso revolver muito para encontrar as manchas peridicas de nogueira no fundilho dos panos leves das mulheres ou escu-tar o soluo mudo que subia do escroto engomando o algodo branco e macio das cuecas. (NASSAR, 1989, p. 42-43).

    Andr, conhecendo os confl itos, as dores e os desejos repri-midos da famlia, quer libert-los da palavra mrbida do pai, que os impedia de matar sua fome e sua sede. Dessa forma, ridiculariza, ironiza e nega o discurso paterno. Para ele o arroto tosco do av valia muito mais que os discernimentos promscuos do pai, bem como a sua loucura era mais sbia que a sabedoria do pai (NASSAR, 1989, p. 109) que ignorava o poder modelador de cada um, na construo de sua subjetividade.

    Andr no se deixa arregimentar pelo pai e se colocando como o eu do seu discurso, impe-se como o oleiro do seu prprio barro: eu sou um epiltico fui explodindo, [...] sabendo que atirava numa suprema aventura ao cho, descarnando palmas, o jarro da minha

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    velha identidade elaborado com o barro das minhas prprias mos (NASSAR, 1989, p. 39). Andr o irmo acometido, o fi lho tres-malhado que s reconhece o seu ponto de vista. Uma planta nunca enxerga a outra (NASSAR, 1989, p. 160). Da mesma forma que o pai no reconhece outro discurso que no seja o seu, Andr tambm no reconhece outra cincia que no seja a sua. Ao revelar a Pedro a relao incestuosa com Ana, Andr virando a mesa dos sermes num revertrio, destruindo travas, ferrolhos e amarras, tirando no obstante o nvel, atento ao prumo, erguendo um outro equilbrio (NASSAR, 1989, p. 109) quer mostrar que outro discurso e, por conseguinte, outra lei pode ser seguida, a sua.

    Mesmo Andr se posicionando como o transgressor da fam-lia, no cabe s a ele a romper com o discurso paterno. A me a origem da trama canhota que o enredou, era ela destecendo desde cedo a renda trabalhada a vida inteira em torno do amor e da unio da famlia (NASSAR, 1989, p. 37), era ela que, mesmo coberta pelas pedras da catedral erguida por Iohna, conseguia que sua luz vazasse e atingisse os fi lhos: era como se viesse do interior de um templo erguido s em pedras mas cheio de uma luz porosa vazada por vitrais (NASSAR, 1989, p. 31), como tambm era ela a planta sedutora da infncia: que culpa temos ns dessa planta da infncia, de sua seduo, de seu vio e constncia? (NASSAR, 1989, p. 129). A me tambm favorece para a desconstruo do discurso paterno ao transbordar-se de carinho e compreenso em relao aos fi lhos, contrariando a austeridade e a severidade do pai.

    Lula, tendo Andr como espelho, tambm um desconstrutor do discurso paterno, pois carrega dentro de si o desejo de fuga, no su-porta a imanncia do campo e quer ser dono dos seus prprios desejos e vontades. Bem como Ana, irm que Andr afi rma ser igual a ele, por tambm carregar o demnio no corpo, pode ser interpretada como uma das personagens mais transgressoras do discurso paterno, j que ela que, agindo de forma desvairada, coberta das quinquilharias mun-danas de Andr, expe a decadncia familiar. Sua dana, carregada de sentido, pode ser lida como um sim a Andr em resposta s interpe-laes do irmo feitas na capela, uma afi rmao paixo e ao desejo, bem como um sim transgresso da ordem estabelecida pelo pai.

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    Ana (que todos julgavam na capela) surgiu impa-ciente, numa s lufada, os cabelos soltos espalhando lavas, ligeiramente apanhados num dos lados por um coalho de sangue (que assimetria mais provo-cadora!), toda ela ostentando um deboche exube-rante [...] varando com a peste no corpo o crculo que danava, introduzindo com segurana, ali no centro, sua petulante decadncia. (NASSAR, 1989, p. 186).

    Sua dana provoca no s seduo, mas tambm tenso, numa famlia j tensa, em vias de uma exploso, que sente que a destruio to anunciada pode ser ento concretizada. E confi rmando o destino trgico dessa famlia, o pai, com sua autoridade absoluta, tendo o direito de vida e de morte sobre os fi lhos, assassina Ana, porque esta expe a decadncia familiar. Segundo Jacques Dupuis: o pai tendo-se arrogado a propriedade da esposa e dos fi lhos, dispe do direito de vida e morte sobre estes ltimos. (DUPUIS, 1989, p. 153). Possu-do desse direito que a mata, sendo a morte de Ana necessria para tentar manter a ordem. Ordem esta, que j no existia.

    O pai representa um obstculo ao poder e a concretizao dos desejos sexuais, logo para se apropriar desse poder e obter a liberao desses desejos necessrio que o pai morra. Percebe-se em Lavoura Arcaica o desejo de Andr em ocupar o lugar do pai. O pai tem que ser devorado para que ele assuma seu lugar, pois o ato de devorar o pai faz com que o fi lho se identifi que com ele e adquira parte de sua fora. A morte do pai anunciada ao fi nal do livro deixa subtendido o seu banquete.

    Resumen: El presente trabajo tiene como objeto de investigacin Lavoura Arcaica de Raduan Nassar y objetiva analisar la construccin de los sujetos discutiendo y presentando las disparidades discursivas presentes en los discursos del padre y de los miembros familiares que se encuentran a su izquierda. La tentativa del padre de modelar y disciplinar los familiares, visando la construccin de subjetividades ideales, infl uencia en la construccin de discursos de desvio de ese ideal, comum a aqullos que estn a su izquierda y se caracterizan como la antinorma, por intentar romper con la tradicin y con el

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    orden estabelecido por el padre. As que las relaciones de poder que se establecen en esos discursos tambin es de nuestro inters.

    Palabras Clave: Discurso. Poder. Trasgresin.

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