sorrilha, marcos - alberto flores galindo

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MARCOS SORRILHA PINHEIRO UTOPIA ANDINA E SOCIALISMO NA HISTORIOGRAFIA DE ALBERTO FLORES GALINDO (1970-1990). FRANCA 2009

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Doutorado. Marcos Sorrilha Pinheiro sobre Alberto Flores Galindo.

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MARCOS SORRILHA PINHEIRO

UTOPIA ANDINA E SOCIALISMO NA HISTORIOGRAFIA DE ALBERTO FLORES GALINDO (1970-1990).

FRANCA

2009

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MARCOS SORRILHA PINHEIRO

UTOPIA ANDINA E SOCIALISMO NA HISTORIOGRAFIA DE ALBERTO FLORES GALINDO (1970-1990).

Tese apresentada à Faculdade de História, Direito e Serviço Social, Universidade Estadual Paulista, “Júlio de Mesquita Filho”, como pré-requisito para obtenção de Título de Doutor em História, Área de Concentração: História e Cultura Política.

Orientador: Prof. Dr. Alberto Aggio

FRANCA

2009

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MARCOS SORRILHA PINHEIRO

UTOPIA ANDINA E SOCIALISMO NA HISTORIOGRAFIA DE ALBERTO FLORES GALINDO (1970-1990).

Tese apresentada à Faculdade de História, Direito e Serviço Social, Universidade Estadual Paulista, “Júlio de Mesquita Filho”, como pré-requisito para obtenção de Título de Doutor em História.

Presidente:__________________________________________________________________ Prof. Dr. Alberto Aggio

Examinador 1:_______________________________________________________________

Profa. Dra. Ana Raquel Marques da Cunha Martins Portugal Examinador 2:_______________________________________________________________

Profa. Dra. Tânia da Costa Garcia Examinador 3:_______________________________________________________________

Profa. Dra. Gabriela Pellegrino Soares Examinador 4:_______________________________________________________________

Profa. Dra. Cláudia Wasserman

Franca,_____de_______________ de 2009.

 

 

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Para meu “abuelito” Antônio Sorrilha Gasques 

 

 

 

 

 

 

 

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AGRADECIMENTOS

  Talvez, tão difícil quanto escrever a Tese seja elaborar os agradecimentos, uma vez que é incontável o número de pessoas que me ajudaram ao longo deste trabalho oferecendo desde pequenas informações até grandes reflexões, sem contar o suporte emocional e o afeto dedicados a mim. Justamente por isso, seria inviável encontrar espaço aqui para mencionar o nome de todos, pois, certamente alguns valiosos ficariam de fora. Neste sentido, gostaria de agradecer à todos meus amigos por meio da menção aos quatro “camaradas” fantásticos que estiveram presentes em etapas fundamentais de minha vida: André, Gabriel, Mauro e Rodrigo. Representando meus familiares, agradeço à meus pais, irmãos e cunhados: Alberto, Sonia, Rosana (Lina), Otávio, Rodrigo (Digão) e Lidiane. Por todo amor, cumplicidade e confiança que dedicaram a mim. Aproveito para agradecer meus afilhados, Saulo e Marina, por despertarem um sentimento que eu ainda não conhecia. Seria impossível não fazer uma menção especial à dois queridos e estimados amigos peruanos, fundamentais para minha estadia, trabalho de pesquisa e investigação em Lima: Marlene Polo Miranda e Hugo Vallenas. ¡Qué buenos amigos! Agradeço também a Cecília Rivera pelo respeito e preciosas informações. À minha esposa e companheira Cláudia, agradeço pelo amor, afeto e carinho, mas também pela paciência, leitura do meu trabalho e críticas. Ao meu orientador Prof. Dr. Alberto Aggio, responsável por todos os méritos que essa pesquisa possa ter, agradeço pela paciência na orientação e correção do trabalho, bem como por seu companheirismo presente desde minha graduação.  

 

 

 

 

 

 

 

 

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“Quando você for convidado pra subir no adro Da fundação casa de Jorge Amado

Pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos Dando porrada na nuca de malandros pretos

De ladrões mulatos e outros quase brancos Tratados como pretos

Só pra mostrar aos outros quase pretos (E são quase todos pretos)

Como é que pretos, pobres e mulatos E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados”.

Haiti - Caetano Veloso e Gilberto Gil

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PINHEIRO, Marcos Sorrilha. Utopia Andina e socialismo na historiografia de Alberto Flores Galindo (1970-1990). 226f. Tese de Doutorado – Faculdade de História, Direito e Serviço Social, Universidade Estadual “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2009.

RESUMO

Alberto Flores Galindo (1949 – 1990) é reconhecidamente um dos principais intelectuais da história contemporânea do Peru. Escritor de curta carreira, soube marcar sua geração com uma escrita envolvente e polêmica, retrato de suas posições contundentes e interpretações críticas da realidade peruana. Autor de cerca de nove livros, seu trabalho mais conhecido e divulgado, Buscando un Inca. Identidad y utopia en los Andes de 1986, tornou-se em muito pouco tempo um “best-seller” no Peru, fato aparentemente inexplicável para um livro de conteúdo acadêmico. Historiador de matriz marxista, sua trajetória política sempre esteve declaradamente vinculada aos movimentos políticos de esquerda, porém sem uma adesão partidária declarada. Este estudo de Alberto Flores Galindo coloca em destaque o papel do intelectual no esforço de compreender, traduzir e explicar seu tempo. Neste sentido, como resultado desse exercício, destacou-se o papel do andino, especificamente, da cultura andina e da tradição Inca remanescente nesta. Um dos produtos dessa tradição foi a formulação daquilo que Flores Galindo concebeu por utopia andina. A utopia andina se configura como uma realidade alternativa que constrói uma imagem superestimada do império Inca. No pensamento de Flores Galindo ela aparece como forma de articular as tradições andinas ao socialismo peruano. De outra maneira, nos aparece como uma forma de articular os principais temas estudados e trabalhados pelo autor ao longo de sua breve, porém intensa trajetória intelectual. Palavras-chave: Alberto Flores Galindo. Historiografia. Socialismo. Cultura Política. Peru

Século XX.

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PINHEIRO, Marcos Sorrilha. Utopia Andina e socialismo na historiografia de Alberto Flores Galindo (1970-1990). 226f. Tese de Doutorado – Faculdade de História, Direito e Serviço Social, Universidade Estadual “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2009.

ABSTRACT

Alberto Flores Galindo (1949 - 1990) is admittedly one of the most important intellectuals of contemporary Peruvian history. Writer with a short career, knew to mark his generation with an involving and controversial writing that shows picture his influential position and critical interpretations of the Peruvian reality. Author of about nine books, his workmanship more known and divulged, Buscando un Inca. Identidad y utopía en los Andes of 1986, become in little space of time in a “bestseller” in Peru. Intellectual of marxist matrix, his trajectory politics was always declared tied with the politics movements of left, however without a declared party adhesion. This study of Alberto Flores Galindo places in prominence the paper of the intellectual in the effort to understand, to translate and to explain its time. As resulted of this exercise, appears the paper of the Andean was distinguished, specifically, of the Andean culture and the tradition remaining Inca in this. One of the products of this tradition was the formularization of what Flores Galindo conceived as Andean utopia. The Andean utopia configures as an alternative to the reality that constructs an overestimated image of the Empire Inca. In the thought of Flores Galindo it appears as a form to articulate the Andean traditions with the Peruvian socialism. In another way, it appears as a form to articulate the main subjects studied and worked by the author throughout its brief one, however intense intellectual trajectory.  Key Words: Alberto Flores Galindo. Historiography. Socialism. Political Culture. Peru

Twenty Century.

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PINHEIRO, Marcos Sorrilha. Utopia Andina e socialismo na historiografia de Alberto Flores Galindo (1970-1990). 226f. Tese de Doutorado – Faculdade de História, Direito e Serviço Social, Universidade Estadual “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2009.

RESUMÉN

Alberto Flores Galindo (1949 – 1990) es reconocidamente uno de los principales intelectuales de la historia contemporánea del Perú. Escritor de corta trayectoria, supo marcar su generación con una escrita envolvente y polémica, lo que demuestra sus posiciones contundentes e interpretaciones críticas da realidad peruana. Autor de cerca de nueve libros, su trabajo más conocido y divulgado, Buscando un Inca. Identidad y utopía en los Andes de 1986, en poco tiempo, se convirtió en un “best-seller” en el Perú, hecho aparentemente incomprensible para un libro de contenido académico. Historiador de raíces marxista, su trayectoria política siempre estuvo vinculada a los movimientos políticos de izquierda, pero sin haber una adhesión partidaria declarada. Este trabajo sobre Alberto Flores Galindo pone en evidencia el papel del intelectual en su esfuerzo para comprender, traducir y explicar su tiempo. En este sentido, como resultado de este ejercicio, se destacó el papel del andino, más claramente, de la cultura andina y de la tradición Inca todavía existente. Uno de los productos de esa tradición fue la formulación de lo que Flores Galindo llamó de utopía andina. La utopía andina se presenta como una realidad alternativa que cría una imagen agrandada del Imperio Inca. En el pensamiento de Flores Galindo ella aparece como un manera de articular las tradiciones andinas a lo socialismo peruano. De otra manera, puede ser vista como una manera de articular los principales temas estudiados y trabajados por nuestro autor a lo largo de su breve, pero intensa trayectoria intelectual. Palavras-chave: Alberto Flores Galindo. Historiografia. Socialismo. Cultura Política. Perú

Siglo XX.

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ........................................................................................................ 11

1 EM BUSCA DE ALBERTO FLORES GLAINDO: VIDA, OBRA E CONTEXTO HISTÓRICO .................................................................................................................. 20

1.1 As transformações da sociedade peruana nas décadas de 1950 e 1960 ................ 21

1.2 O Regime Militar de Juan Velasco Alvarado e a década de 1970 ........................ 39

1.3 Senderismo, Esquerda Unida, liberalismo e utopia nos anos 1980 ....................... 58

2 ESQUERDA E HISTORIOGRAFIA NO PERU (1960-1980) ............................... 79

2.1 A Nueva Izquierda peruana ................................................................................... 80

2.2 A Nueva Historia peruana ..................................................................................... 92

2.3 O Mariateguismo no Peru .................................................................................... 103

2.4 Alberto Flores Galindo: Historiografia e Política ................................................ 113

3 BUSCANDO UN INCA: A OBRA EM PERSPECTIVA ...................................... 123

3.1 O que é a utopia andina? ...................................................................................... 128

3.2 Buscando un Inca: a utopia andina na história do Peru ....................................... 135

3.3 Utopia andina versus utopia socialista ................................................................. 146

3.4 Buscando un Inca lido por seus contemporâneos ................................................ 154

4 LA AGONÍA DE FLORES GALINDO .................................................................... 166

4.1 O Oitavo Ensaio ................................................................................................... 171

4.2 El Perú hirviente de estos días ............................................................................. 185

4.3 A utopia limenha .................................................................................................. 196

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 210

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................... 215

ANEXOS ...................................................................................................................... 223

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APRESENTAÇÃO

O envolvimento de intelectuais com a política no Peru tornou-se uma das

características marcantes de sua história no desenrolar do século XX1. A idéia de uma história

inconclusa e de uma nação não realizada, arraigada no imaginário político peruano, fortaleceu

entre a intelectualidade a necessidade de se conceber uma teoria explicativa para o Peru.

Desde o início do século XX, intelectuais como José de la Riva Agüero, anunciaram o

imperativo de se conceber a pátria como uma criação histórica. Pensar a nação, antes de ser

um exercício político deveria ser um desafio intelectual.

De certa maneira, esta perspectiva se difundiu ao longo da história intelectual

peruana aproximando os chamados “homens de cultura” das decisões da política nacional. Na

década de 1920, a vanguarda intelectual apresentou uma série de nomes, como Luis Alberto

Sánchez, Jorge Basadre, José Carlos Mariátegui, entre outros, que encontraram na política

uma maneira de dar vazão às suas interpretações sobre a formação e o destino da nação. Esta

geração – sob o reflexo da crise do liberalismo e da primeira guerra mundial, bem como do

impacto da Revolução Russa e do êxito da Revolução Mexicana – almejou a possibilidade de

se apresentar um novo sentido para o Peru, considerando a manifestação das massas no

cenário político e pensando seus problemas dentro de uma dimensão continental. O aprismo

acabou por se converter na representação cabal deste momento, encarnando em seu próprio

nome (Aliança Popular Revolucionária Americana) todas as influências de seu tempo.

Assim como a geração de 1920, os destinos do continente na década de 1960

trariam para o Peru novos referenciais para a construção de uma alternativa política para a

nação. O ciclo de guerrilhas latino-americanas apresentou a possibilidade de se converter o

socialismo em uma realidade imediata. O socialismo “a la vuelta de la esquina” motivou

jovens a pensar a pátria por meio de uma perspectiva revolucionária de esquerda. Esta análise

levou em conta alguns elementos típicos da realidade nacional, como a figura do indígena e a

presença andina nas cidades da costa peruana, entendidos enquanto reflexo das migrações

iniciadas na década passada.

                                                            1 Reconhecemos o amplo debate em torno do estudo, da caracterização e definição do conceito de intelectuais. No entanto, utilizaremos a definição apresentada por Norberto Bobbio que estabelece como intelectuais “os sujeitos a quem se atribui de fato ou de direito a tarefa específica de elaborar e transmitir conhecimentos, teorias, doutrinas, ideologias, concepções do mundo ou simples opiniões, que acabam por construir as idéias ou os sistemas de idéias de uma determinada sociedade”. BOBBIO, N. Os intelectuais e o poder. Dúvidas e opções dos homens de cultura na sociedade contemporânea. São Paulo: Editora Unesp, 1997, p. 110.

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Essas preocupações, mais uma vez, não se restringiram à esfera política e

foram amplamente consideradas por intelectuais e acadêmicos das mais diversas disciplinas

das ciências sociais peruanas. A sociologia e, principalmente, a historiografia começaram a

pensar a sociedade e a nação por meio de uma perspectiva marxista, que levava em conta em

suas análises a história como o resultado dos conflitos de classe, mas também a influência da

cultura andina. Suas interpretações da realidade peruana extravasaram os muros das

universidades e deram corpo a um movimento de cunho político-intelectual, engajado nos

movimentos sociais e operários: o classismo.

Neste mesmo momento, teve início no Peru um Regime Militar que, diferente

do que se constatou em outras localidades do continente, possuiu uma concepção progressista

de Estado, incorporando às suas propostas algumas reivindicações próprias da esquerda

revolucionária da década de 1960. A Reforma Agrária, o anti-imperialismo e a estatização de

vários setores da economia, foram alguns dos temas levados a cabo pelo Governo

Revolucionário das Forças Armadas (GRFA) liderado pelo General Juan Velasco Alvarado.

Mais de uma década depois de se promover a maior reforma agrária da história

do Peru, os problemas advindos do campo e das incessantes migrações para costa,

continuavam sem solução. Na realidade, o problema havia se agravado, pois a Reforma

Agrária impulsionou a distribuição de terras na serra, porém sem estimular a modernização de

sua produção. O resultado foi uma crise de abastecimento que prejudicou a economia peruana.

De outra maneira, mesmo sendo bastante ampla, a Reforma Agrária atendeu somente à 1/4 da

população andina, conduzindo o restante desta massa à condição de miséria e à inevitável

migração à capital e outros grandes centros urbanos.

Com isso, o Peru entrou na década de 1980 repetindo a imagem de um país

fracassado, tantas outras vezes citada como explicação para a sua incompletude nacional.

Nação e Estado apareciam como entidades aparentemente fictícias em um país fragmentado e

condenado à derrota. Tratava-se da mesma imagem de um “país a deriva” como havia

diagnosticado Simon Bolívar ainda no início do século XIX. Agora com um agravante: a

guerra civil provocada pelo avanço do Sendero Luminoso sobre a serra e a costa. Mais do que

um exercício político, pensar a nação peruana na década de 1980 deveria se constituir como

um desafio intelectual capaz de encontrar novos feixes interpretativos e formular outras

teorias explicativas.

A este desafio dedicou-se Alberto Flores Galindo, personagem central de nossa

pesquisa, que desenvolveu um papel de destaque na política peruana daquela década. Ainda

que não tenha se vinculado efetivamente a um partido político, atuou junto a comunidades e

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instituições de classe, realizando cursos de formação política. Além disso, viu em sua

produção historiográfica e publicística uma forma de participar do debate político em prol da

construção de um projeto socialista, que fosse capaz de se apresentar como alternativa para a

formação de um sentido nacional ao Peru. Por isso, o trabalho de intervenção intelectual de

Flores Galindo não se restringiu somente a sua atuação política junto aos movimentos de

classe, mas envolveu também a elaboração e a divulgação de textos que exprimiam idéias e

concepções sobre a realidade de seu contexto.

Neste sentido, o que buscamos de essencial neste trabalho é a apresentação e a

análise histórica do pensamento político de Alberto Flores Galindo. Não se trata da confecção

de uma biografia, mas sim do exame de suas principais idéias e formulações conceituais,

relacionando-as à sua trajetória intelectual, o que nos permitirá vincular o seu comportamento

político ao seu pensamento. Neste sentido, ainda que julguemos importante, não nos ateremos

a interpretação semântica ou etimológica das palavras e seus sentidos lingüísticos presentes

em seus escritos. Deter-nos-emos na análise das idéias produzidas por Flores Galindo como

forma de estabelecer um sentido para a sua atuação política, bem como uma interpretação da

realidade na qual estava inserido.

Por conta disso, não consideramos indicada uma abordagem que se detenha

exclusivamente sobre sua obra, seja os livros ou quaisquer outros escritos. É preciso

compreendê-la para além das páginas escritas, como parte integrante de um debate intelectual

com o qual dialogava, respondendo as idéias presentes em seu contexto intelectual e abrindo

espaço para novas discussões junto ao seu público específico. Da mesma forma, devemos

enxergá-las como a concretização de interpretações resultantes de sua inquietude intelectual

frente às incertezas sociais e políticas.

Esta abordagem sobre a produção das idéias políticas exige que estabeleçamos

uma contextualização intelectual do nosso autor. Esta metodologia segue as indicações feitas

por Quentin Skinner a respeito do estudo dos intelectuais em seu contexto. Para Skinner, a

análise dos intelectuais, levando em conta o seu ambiente de produção, torna possível “ver

não apenas os argumentos que eles apresentavam, mas também as questões que formulavam e

tentavam responder, e em que medida aceitavam e endossavam, ou contestavam e repeliam,

ou às vezes até ignoravam (de forma polêmica), as idéias e convenções então predominantes

no debate político”2.

                                                            2 SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo: Cia das Letras, 1996, p. 13.

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Trata-se de uma metodologia que nos possibilita estudar os intelectuais,

procurando “definir o que seus autores estavam fazendo quando o escreveram”3. Quando

Skinner apresenta a utilização da contextualização como forma de compreender o que os

autores estavam fazendo no momento da confecção de seus escritos é preciso ter em mente

que, como bem advertiu John G. A. Pocock , “em inglês coloquial, [...] é o mesmo que

perguntar ‘o que ele pretendia’, ou seja, o que ‘estava tramando’, ou o que pretendia obter”4.

Em outras palavras, é uma forma de se perguntar, “quais eram, em suma, as (por vezes

ocultas) estratégias intencionais por trás de suas ações?”5.

Por isso, no caso específico de Flores Galindo, para “averiguar o que o autor

pretendia”, “o que estava tramando” e as “estratégias intencionais por trás de sua ação”, é

preciso possuir uma noção mais ampla do ambiente intelectual, das idéias, dos conflitos, dos

medos e anseios que estavam presentes no debate e que extrapolam os limites de suas páginas

escritas. Assim, poderemos avaliar a formulação de cada idéia contida em sua obra, bem

como, detectarmos em que medida ele se apropriou de intenções alheias, tal qual uma

expropriação das idéias de outrem para dar vazão às suas argumentações. “Sob esse aspecto,

um autor é tanto o expropriador, tomando a linguagem de outros e usando-a para seus

próprios fins, quanto o inovador que atua sobre a linguagem de maneira a induzir

momentâneas ou duradouras mudanças na forma como ela é usada”6.

Neste sentido, podemos afirmar que especialmente a obra de Flores Galindo

suscitou debates e polêmicas em torno de idéias e conceitos que, por meio da divergência, o

permitiram se aproximar, responder e rechaçar outros interpretes de sua época. Trata-se de

uma interpretação do próprio autor a respeito de seu exercício intelectual resumido na

seguinte frase: “divergir é um meio de se aproximar”7.

Se o contexto intelectual nos permite averiguar com quem e com quais idéias

nosso autor dialogava, o contexto histórico nos possibilita avaliar a relação de Flores Galindo

com os eventos e características histórico-culturais de sua sociedade. Não se trata, porém, de

colocar apenas o contexto em função do autor, mas também o autor em função do contexto,

uma vez que não nos interessa apenas verificar as influências do tempo sobre nosso autor,

mas também as significações produzidas e a interpretação realizada por ele diante dos

referenciais simbólicos que compunham a sua cultura política. Em nossa concepção, a                                                             3 Ibidem. 4 POCOCK, John G. A. Linguagens do ideário político. São Paulo: Edusp, 2003, p. 30. 5 Ibidem. 6 Ibid. 29. 7 FLORES GALINDO, Alberto. Reencontremos La Dimensión Utopica. In: _________. Obras completas. Tomo VI. Lima: SUR, 2007, p. 390.

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abordagem de ambos contextos possibilita, mais do que nos aproximar e delimitar o espaço de

referências teóricas do autor, apreendermos elementos próprios de sua cultura política8.

A adição do conceito de cultura política à abordagem contextualista nos

permite, assim, compreender o pensamento de Flores Galindo dentro do debate político

intelectual no qual se inseriu, mas também, delimitar e estabelecer os referenciais simbólicos

presentes nos ideários, práticas e estratégias políticas de sua sociedade e de seu tempo. Em

nossa concepção, a cultura política possui um sentido coletivo que estabelece, para um

determinado grupo, valores e normas políticas socialmente partilhadas. No entanto, a cultura

política também está relacionada com a capacidade individual de se atribuir significados

particulares aos símbolos políticos que a compõe. Como nos apresenta Serge Berstein, a

cultura política “é no conjunto um fenômeno individual, interiorizado pelo homem, e um

fenômeno coletivo, partilhado por grupos numerosos”9.

Neste sentido, se selecionarmos e expandirmos a dimensão cultural presente no

conceito de cultura política, podemos compreendê-lo como forma de situar as redes de

significados políticos estabelecidos por uma sociedade em torno dos padrões de

comportamento que norteiam e delimitam o fazer-se de sua vida política10. Ainda segundo

Berstein, “a cultura política, como a própria cultura, se inscreve no quadro de normas e dos

valores que determinam a representação que uma sociedade faz de si mesma, do seu passado,

do seu futuro”11.

A partir dessa concepção metodológica, passou a ser possível estabelecer

vinculações entre o pensamento político de Flores Galindo e os referenciais simbólicos

presentes em sua cultura política bem como delimitar as intenções do autor na elaboração de

suas idéias diante de um determinado debate político. Desta maneira, o elemento andino, a

                                                            8 A definição de cultura política foi dada por Gabriel Almond da seguinte forma: cultura política pode ser entendida “como um feixe de orientações políticas de uma comunidade nacional ou subnacional; em segundo lugar, tem componentes cognitivos, afetivos e valorativos que incluem tanto os conhecimentos e crenças sobre a realidade política quanto os sentimentos políticos e os compromissos com valores políticos; em terceiro lugar, o conteúdo da cultura política é o resultado da socialização primária, da educação, da exposição aos midia e das experiências adultas em relação às ações governamentais, sociais e econômicas; e, em quarto lugar, a cultura política afeta a atuação governamental e a estrutura política, condicionando-as, ainda que não as determinando, porque sua relação causal flui em ambas direções”. In: ALMOND, G. A Discipline Divided. Schools and Sects in Political Science. Londres: Sage, 1990, p. 144. apud LLERA, Francisco J. “Enfoques en el estudio de la cultura política”. In: CASTILLO, P. & CRESPO, I. (org.). Cultura Política - enfoques teóricos y análisis empíricos. Valencia: Tirant lo Blanch, 1997, p. 59. 9 BERNSTEIN, S. A Cultura Política. In: RIOUX, J. P. SIRINELLE, J. F. Por uma História Cultural. Lisboa: Estampa, 1998, p. 359-360. 10 O conceito de rede de significados para o entendimento da cultura é amplamente discutido pelas ciências sociais e demonstram, até mesmo, algumas reinterpretações do legado teórico deixado por Max Weber para a sociologia. Entre os vários autores que contribuem para essa discussão, destacamos: GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978. 11 BERNSTEIN, S. A Cultura Política... Op. Cit. nota 9, p. 352-353.

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apropriação do passado incaico pelos ideários políticos, o mariateguismo e o socialismo

peruano da década de 1970 e 1980 são elementos recorrentes na cultura política peruana, mas

que, no pensamento de Flores Galindo, ganharam novas interpretações e re-significações,

podendo ser entendidos enquanto novas idéias ou expropriações intelectuais desenvolvidas ao

longo de um debate político.

Em nossa visão, a grande contribuição da cultura política para esta abordagem

é justamente a sua capacidade de não se apresentar como “uma chave universal que abre todas

as portas, mas um fenômeno de múltiplos parâmetros, que não leva à uma explicação unívoca,

mas permite adaptar-se à complexidade dos comportamentos humanos”12. Trata-se de uma

forma de apreender o universo cultural que compõe as referências políticas dos autores que,

em cada caso se busca investigar em um determinado contexto histórico, e estabelecer a

relação deles com o mesmo.

A análise do pensamento de Flores Galindo, por meio de sua obra e sua

trajetória intelectual, foi organizada em quatro capítulos. No primeiro, como forma de

contemplar nossa metodologia, expomos uma contextualização da história do Peru entre as

décadas de 1940 e 1980. O período esta referido à vida de nosso autor, mas também expressa

o início de um processo de migração que mudaria definitivamente a vida social peruana. É

bem verdade que as migrações iniciadas no final da década de 1940 não foram as primeiras a

ocorrer no país. Ainda na década de 1920, os primeiros grandes contingentes de migrantes

chegaram a Lima, como reflexo das reformas modernizadoras empreendidas pelo governo de

Leguía. No entanto, as migrações da década de 1950 são muito mais impactantes por conta de

alguns elementos densamente destacados pelo antropólogo Carlos Franco:

Em primeiro lugar, pela origem social e até espacial dos migrantes. Eles não pertenciam às elites senhoriais que circundavam as principais capitais e províncias serranas e costeiras que enviaram seus filhos à Lima entre a primeira e segunda década do século. Tampouco pertenciam às classes médias urbanas de comerciantes, profissionais e empregados dessas mesmas capitais e províncias que, entre os anos 30 e 40, incentivaram seus filhos a se dirigirem até a capital. Os migrantes dos anos 50 em diante vieram, em sua vasta maioria, das comunidades camponesas e das famílias de servos, peões, e yanaconas das fazendas situadas nas províncias mais pobres, nos vales inter-andinos e nos pisos ecológicos mais altos nos Andes. [...] Em segundo lugar, diferentemente das migrações anteriores, a que se inicia nos anos 50 não teve como resultado a concentração- exclusiva em Lima, mas se irradia não somente para as principais capitais da costa como também da serra e, na última década, à selva. [...] Uma terceira diferença - e a mais notável – é o contingente extraordinariamente massivo que se dirigiu do campo e dos Andes até Lima e às sedes urbanas do país. Esta migração envolveu literalmente milhões de peruanos no decorrer de duas ou três décadas.

                                                            12 Ibid. p. 350.

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Não foi, portanto, um processo episódico, intermitente e minoritário como os anteriores, mas massivo, contínuo e global. Não é sem sentido que se recorra à atemorizada imagem citadina da “invasão” para dar conta de sua magnitude13.

Por isso, é tão importante a compreensão do contexto histórico do Peru a partir

desta data, uma vez que as alterações econômicas, sociais e políticas daí resultantes

influenciaram não apenas a mudança de sua estrutura socioeconômica, mas também inseriu

novos temas, objetos e análises para as ciências sociais bem como norteou a formulação de

propostas políticas que visavam responder à elas. Com essas discussões intelectuais e com

esses projetos políticos que nosso autor irá dialogar ao longo de sua trajetória.

Neste capítulo, além das transformações em marcha no Peru, apresentamos, de

maneira intercalada, alguns acontecimentos pertinentes à vida e à produção intelectual de

Flores Galindo. Por isso, entendemos que este capítulo não é apenas a apresentação do objeto.

Ao contrário, sem ele seria impossível a compreensão satisfatória de algumas de nossas

principais hipóteses que serão desenvolvidas ao longo dos demais capítulos. Ainda que seja o

capítulo mais extenso é também aquele que se constitui como o alicerce de nossas e

proposições analíticas.

No segundo capítulo aprofundamos nossa análise sobre o contexto intelectual

de nosso autor. Se em um primeiro momento, o contexto histórico nos permite captar as

principais referências culturais que permearam sua vida, aqui construímos um quadro das

principais idéias, projetos e conceitos que compunham o debate político intelectual da

esquerda peruana entre as décadas de 1970 e 1980. Dessa forma, reunimos os principais

referenciais, influências e interlocutores com os quais Flores Galindo estabeleceu diálogos,

por meio do endosso, da contestação ou do distanciamento.

Aqui tratamos do surgimento e consolidação da nova esquerda peruana no

cenário político das décadas de 1960 a 1980. O surgimento da nova esquerda representou

renovação na maneira de se pensar tanto os sentidos do socialismo como os caminhos para se

chegar ao poder no Peru, podendo-se dividi-la em três momentos específicos: sua fase

guerrilheira (1956-1968); sua fase classista (1968-1978) e sua fase democrática (1978-1989).

Nossas análises também se destinam à compreensão da renovação

historiográfica da década de 1970, promovida pela chamada Nova História Peruana, da qual

Flores Galindo foi protagonista de relevo. Trata-se de um movimento que trouxe novos

parâmetros, métodos e perspectivas para o modo de se fazer e se compreender o trabalho                                                             13 FRANCO, Carlos. Exploraciones en “otra modernidad”: de la migración a la plebe urbana. In: URBANO, Henrique (comp). Modernidad en los Andes. Lima: Centro Bartolomé de las Casas, 1991, p. 193-194.

Page 18: SORRILHA, Marcos - Alberto Flores Galindo

18

 

historiográfico. De outra maneira, entendeu como necessária a vinculação da História aos

movimentos sociais e políticos de sua época.

Dentro das novas discussões promovidas tanto pela nova esquerda como pela

nova história, um tema se converteu em foco central: o mariateguismo. José Carlos

Mariátegui, importante socialista da década de 1920, foi resignificado, reconstruído e

restaurado por todas as correntes políticas peruanas de esquerda bem como pela própria

historiografia da década de 1970.

A partir do terceiro capítulo, passamos à análise mais detida do pensamento

político de Flores Galindo, dando destaque exclusivo ao seu principal livro Buscando Un

Inca: identidad y utopia en los andes, de 1986. O destaque ocorre devido à interpretação de

que esta publicação representou um verdadeiro balanço da trajetória intelectual do nosso

autor. É nela também que sua principal e mais polêmica formulação teórica, a utopia andina, é

publica e sistematicamente apresentada. Sem a compreensão do que é a utopia andina, não é

possível articularmos uma compreensão satisfatória do pensamento político de Flores

Galindo.

Por conta disso, este capítulo procura explicar detidamente a utopia andina bem

como sua exposição feita por Flores Galindo ao longo deste livro. Não se trata de discutir,

neste momento, a validade do conceito, mas sim a importância e o significado que ele possui

no pensamento de nosso autor. De certa maneira, Buscando un Inca, mais do que uma obra

historiográfica, foi também a elaboração de um projeto político para o Peru. Contudo, por

conta da abrangência e das discussões que o livro levantou durante a década de 1980,

dedicamos uma atenção especial a algumas análises feitas por seus contemporâneos,

estabelecendo um quadro da recepção deste trabalho por alguns intelectuais que compunham

o cenário político-acadêmico daquele momento.

Se nos dois primeiros capítulos o contexto é construído em prol da edificação

de um pensamento - basicamente delimitado no terceiro capítulo -, no quarto capítulo é este

pensamento que se volta para a compreensão do contexto histórico. Nele continuamos

aprofundando algumas discussões em torno da utopia andina e da sua importância para o

debate intelectual da época. Porém nos dedicamos a estabelecer as conexões entre essa

proposição e o exercício intelectual de Flores Galindo para compreender sua realidade e as

desventuras de sua sociedade, em especial, o espaço limenho.

Nossa hipótese é que o projeto político elaborado por Flores Galindo, visando a

configuração de uma nova identidade nacional para o Peru, foi motivado primordialmente por

sua interpretação do cenário limenho da década de 1980, que sofria as conseqüências do

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19

 

processo de migração, o agravamento da crise econômica e as ações violentas do Sendero

Luminoso. Trata-se da imagem de uma cidade cindida entre criollos e andinos, com a qual

Flores Galindo não compactuou.

Definida a metodologia de abordagem de nosso objeto, apresentaremos

algumas informações pertinentes sobre nossas fontes de pesquisa. Nossa documentação,

constitui-se, basicamente, dos seis tomos que reúnem as Obras Completas de Alberto Flores

Galindo, organizados entre 1993 e 2007, pela Casa SUR Editora. Nessas obras completas é

possível encontrar todos os livros do autor, além dos comentários dos editores sobre

alterações, supressões e inserções de conteúdos realizados de uma edição para outra, o que

nos possibilita interpretar as razões de cada modificação. Juntamente com os livros,

encontramos todos os textos, resenhas e artigos publicados em revistas, jornais e periódicos,

com as referências, datas e locais de publicação originais. Encontramos também as

apresentações feitas pelo autor de obras e antologias por ele organizadas durante sua trajetória

acadêmica. No entanto, as citações extraídas dos livros La Agonía de Mariátegui,

Aristocracia y Plebe, Dos ensayos sobre José María Arguedas e Tiempos de Plagas, possuem

aqui a referência dos trabalhos originais, uma vez que foram as primeiras fontes com as quais

tivemos contato.

Evidente que nossa análise da obra de Alberto Flores Galindo deteve-se em

alguns títulos que julgamos mais importantes na sua trajetória de produção, e que atendiam ao

recorte temático estabelecido. Entre eles, os cinco livros do autor, Los Mineros de la Cerro de

Pasco (1974), La Agonía de Mariátegui (1980), Aristocracia y Plebe (1984), Buscando un

Inca (1986) e Tiempos de Plagas (1988). Além disso, nos pareceu bastante oportuno recorrer

a outros artigos, ensaios e textos que compreendem a sua produção publicística, dando uma

atenção especial a um último trabalho publicado postumamente, o folhetim Dos Ensayos

Sobre José Maria Arguedas (1992).

Enfim, o que se apresenta a seguir é uma contribuição à compreensão de um

pensamento intelectual que soube marcar o seu espaço no debate político peruano da década

de 1980, formulando perspectivas renovadoras sobre a construção de uma nova imagem

nacional para o Peru.

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CAPÍTULO 1

EM BUSCA DE ALBERTO FLORES GALINDO: VIDA, OBRA E CONTEXTO HISTÓRICO

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1.1 – As transformações da sociedade peruana nas décadas de 1950 e 1960

O final da segunda guerra mundial produziu no Ocidente o surgimento de uma

onda política em torno da democracia como forma de repulsa aos regimes totalitários que se

impuseram sobre a Europa durante as décadas de 1930 e 1940. Os ventos democráticos não

demoraram a chegar à América Latina. No Brasil, por exemplo, o ano de 1945 marcou o final

do Estado Novo e a recondução da vida política à democracia pelas mãos do presidente

Getúlio Vargas. No Peru, o mesmo ano ficou marcado pela chegada de José Luis Bustamente

y Rivero à presidência da República. Para este país, tal eleição representou o final de mais de

vinte e cinco anos de ditaduras militar e civil protagonizadas por quatro presidentes diferentes

(Augusto B. Leguía, Luis Miguel Sánchez Cerro, Óscar R. Benavides e Manuel Prado)14 e

marcadas por golpes e contragolpes, que garantiram a manutenção das políticas econômicas

de valorização do setor agro-exportador como fonte de geração de riquezas e

desenvolvimento da economia.

Bustamente y Rivero se apresentou como um político independente de partido

e chegou à presidência apoiado por setores urbanos da sociedade e por partidos de cunho

reformistas e progressistas que se organizaram em uma frente partidária, a FDN (Frente

Democrático Nacional). No pleito eleitoral, além de eleger o presidente, a FDN conseguiu

preencher a maioria dos postos do congresso peruano. Entre os partidos da aliança, o mais

importante e que conseguiu o maior êxito eleitoral foi, sem dúvida, o Partido Aprista Peruano

(PAP). Dos cento e oito deputados eleitos pela frente, 55%, ou seja 74 pertenciam ao PAP.

O apoio da APRA15 (Alianza Popular Revolucionária Americana),

fundamental para a eleição do presidente civil, ocorreu mediante um acordo entre o partido,

Bustamente e a oligarquia. Em troca de sua participação na eleição para o legislativo e a sua

recondução à legalidade, a APRA comporia a FDN e garantiria a adesão de seu eleitorado à

Bustamente. De outra maneira, comprometer-se-ia a não realizar ações radicais na economia e

na política, o que ia contra os interesses oligárquicos.

Tal acordo pode ser confirmado na carta de Augusto Gildemeister, fazendeiro

da agroindústria açucareira, enviada ao economista Pedro Beltrán. Neste documento,

14 O general Augusto Leguía estabeleceu uma ditadura que durou de 1919 a 1930. Em 1931, o General Sanchéz Cerro foi eleito democraticamente para o cargo maior da nação. No entanto, o regime democrático não durou um ano e, em 1932, Sánchez Cerro instaurou uma nova ditadura. Com o seu assassinato por um militante aprista, em 1933, assumiu a presidência Óscar Benavides. Em 1939, Benavides foi substituído pelo banqueiro e civil Manuel Prado. 15 O Partido Aprista Peruano surgiu primeiramente como uma frente partidária de atuação continental. Sua fundação ocorreu no México em 1924 por Victor Raúl Haya de La Torre sob o nome de APRA.

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Gildemeister afirmava que a APRA dizia a seus trabalhadores que “tudo seguiria como

estava, sem nenhuma divisão de terras nem de outras propriedades ou dinheiro, a não ser a

criação de novas riquezas para todo o Peru através delas”16.

A aceitação do acordo por parte dos apristas foi uma das demonstrações da

existência de uma mudança nas orientações políticas do partido. Durante seu período de

ilegalidade política, que ocorreu a partir do governo de Sánchez Cerro, o Partido Aprista

revisou sua condição de frente revolucionária. Da mesma forma, reavaliou sua posição frente

ao imperialismo norte-americano, uma das bandeiras de sua luta inicial17.

Como é sabido, os primeiros anos da atuação política aprista foram marcados

pelo radicalismo. Apesar de se constituir como um partido político desde o ano de 1931 e

concorrer à presidência naquele mesmo ano, em 1932, alguns membros ligados aos setores

mais radicais do partido deflagraram um levante armado contra o governo de Sánchez Cerro

na cidade de Trujillo. Conhecida pelos apristas como a Batalha de Trujillo, o movimento foi

contido por meio da força do exército nacional, resultando na morte de vários líderes apristas

e na reinstalação de um regime de exceção. Por conta dessas ações, desde a época de sua

formação, a APRA apresentou-se como uma força de oposição aos interesses da oligarquia

exportadora.

Dessa forma, apesar da aprovação tácita da oligarquia, o apoio dos apristas ao

presidente Bustamente não foi bem visto pelos setores agrícolas e pelas forças armadas

peruanas. Qualquer medida que conduzisse à perda da hegemonia agro-exportadora poderia

colocar em risco o seu mandato. A intenção de Bustamente era conduzir reformas sociais,

democratizar o país e, como parte do acordo, reintegrar a APRA ao sistema político a ponto

de garantir a sua vitória nas próximas eleições. Não demorou muito para suas aspirações se

converterem em desilusões.

Os primeiros anos de Bustamente foram marcados por problemas de ordem

econômica e social. Durante a segunda guerra mundial, o déficit de exportação e a inflação

haviam crescido de maneira exorbitante, o que causou, entre outras conseqüências, perdas

salariais para a classe trabalhadora18. Esta, por sua vez, livre da repressão militar, organizou

greves reivindicando melhores salários. O irônico é que os trabalhadores e os movimentos

16 Citado por PORTOCARRERO, Gonzalo. De Bustamante a Odría: el fracaso del Frente Democrático Nacional, 1945-1950. Lima: Mosca Azul, 1983, p. 88. 17 Ver: FERREIRA, Oliveiros. Nossa América, Indoamérica - Livraria Pioneira Editora - Editora da USP, São Paulo, 1971. 18 Entre 1940 e 1945 o índice de custo de vida aumentou em 70%, e entre agosto e dezembro de 1947 a inflação aumentou em 55%, Cf. CONTRERAS, Carlos; CUETO, Marcos. Historia del Perú contemporáneo. 4. ed. Lima: IEP, 2007, p. 291.

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sindicais estavam sob o comando do aprismo, base de apoio do governo19. Como forma de

atender ao seu eleitorado, a APRA encaminhava propostas de melhorias salariais ao

congresso, as quais eram aprovadas por sua própria maioria parlamentar. As propostas eram

vetadas pelo presidente e, em seguida, o veto era derrubado pelos parlamentares apristas.

Esta ação aprista era também uma forma de pressionar o presidente

Bustamante. Apesar da aliança eleitoral, o partido não aceitava o fato de que o ministério

montado por ele não possuísse nenhum nome do partido entre seus membros. Ao colocar o

Congresso contra o Executivo, a APRA provocou o engessamento das ações e planos de

Bustamante, impedindo a aprovação de leis de austeridade governamental que previam o

aumento de impostos e a redução de gastos públicos.

Assim, não demorou muito para Bustamente ceder às pressões apristas. Seis

meses depois de sua posse, três ministérios foram entregues ao partido, formando aquilo que

se convencionou chamar de “gabinete aprista”. A partir de então, o gabinete aprista passou a

monopolizar as ações governamentais e implantar seu próprio plano de governo.

No entanto, essas ações estavam longe de representar uma guinada ao

reformismo social que se esperava da APRA. Impedido de tomar medidas de cunho social e

implantar estratégias para a expansão dos setores industriais, por conta do acordo

supramencionado, a opção da APRA para alavancar a economia e garantir a melhoria de vida

dos setores médios da sociedade foi o crescimento da máquina estatal e o seu aparelhamento.

Dessa forma, o aumento dos benefícios dos trabalhadores, dos salários

públicos e do número de funcionários públicos foram algumas medidas tomadas pelo

gabinete. Tais ações foram possíveis por conta da leve recuperação e estabilização econômica,

alcançada pelo restabelecimento do saldo positivo da balança comercial e gerada pelo

aumento da exportação de manufaturas para suprir a escassez mundial do pós-guerra. O

crescimento do aparelho estatal também pôde ser visto com a abertura de novos sistemas

hospitalares, o aumento da rede pública de saúde e a universalização da educação pública até

o secundário.

Contudo, como afirmamos, tais reformas estavam longe de serem aquelas

esperadas pela APRA e almejadas pela ala mais radical do partido. Para esses, era necessário

empregar um rompimento com a oligarquia agro-exportadora, segundo eles, eternos parceiros

19 A expansão do sindicalismo entre 1945 e 1947 foi marcante. Pela influência do APRA no governo de Bustamente cerca de 264 sindicatos foram reconhecidos oficialmente. Cf. KLAREN, Peter. Nación y Sociedad en La Historia del Perú. Lima: IEP, 2005, p. 356.

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24

do capital estrangeiro, e implantar medidas capazes de suprir as novas demandas da sociedade

peruana que se construía após a guerra.

Além dos ventos democráticos, a segunda guerra mundial também trouxe

inúmeras inovações no campo da saúde, como a popularização de remédios antibióticos. Isso

fez com que, a partir do período do pós-guerra, o Peru, como em outras localidades do

mundo, apresentasse uma queda acentuada de sua taxa de mortalidade infantil. A introdução

de remédios como a penicilina, a sulfa e a cortisona, bem como a expansão da rede pública de

saúde possibilitaram um crescimento populacional jamais visto anteriormente. Entre 1940 e

1971, a mortalidade infantil caiu de 27 para 11 por mil, enquanto a natalidade oscilou de 45

para 42 por mil, o que deu espaço à uma explosão demográfica que se evidenciaria a partir da

década de 1950.

A falta de ações mais progressistas fez com que a reivindicação da ala radical

do partido aprista fosse recrudescendo com o passar dos anos. O partido aprista caminhava

para um cisma em sua militância que tentou ser contornada pelo líder do partido Haya de La

Torre por meio de jogos de cena. Entre os anos de 1946 e 1948, ao mesmo tempo em que

incitava o radicalismo contra a moderação do governo, Haya participava dos acordos do

gabinete aprista com a oligarquia.

Entretanto, em outubro de 1948, essa dualidade aprista foi levada às últimas

conseqüências. A ala radical do partido aprista, cansada de esperar por mudanças, com o

apoio de setores da Marinha Peruana, organizou um movimento de revolta contra o governo

de Bustmanete no porto de Callao, ao norte de Lima. Esse levante representou um duro golpe

ao governo de Bustamente e à democracia. Em represália aos apristas, Bustamente colocou o

partido novamente na ilegalidade, cassando os seus direitos políticos e emitindo um mandato

de prisão a Haya de La Torre20. No entanto, essas medidas não foram suficientes para

convencer os militares que a ordem poderia ser garantida por meio da democracia.

Duas semanas depois, o general Manuel A. Odría marchou desde Arequipa, no

sul andino, em direção à capital, onde depôs o governo de Bustamente e implantou nova

ditadura, que duraria até o ano de 1956. Foi o conhecido “ochenio” de Odría, que trataremos

mais adiante.

Em 28 de maio de 1949, também em Callao, no distrito de Bellavista, nasceu

Alberto Flores Galindo Segura. Filho do advogado Carlos Alberto Galindo del Pozo e Esther

20 Para não ser preso, Haya passou anos residindo na embaixada da Colômbia à espera de sua extradição. Por conta disso, o político ficou conhecido nesses anos como “Senhor Embaixada”. Cf. GARCIA SALVATECCI, Hugo. Luis Alberto Sánchez: La vida del siglo. Caracas: Biblioteca Ayacucho, 1997.

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Segura, Flores Galindo teve uma infância típica da classe média limenha, que viu os seus

rendimentos comprometidos pela alta inflação e o aumento do custo de vida na década de

1940. Sua infância e juventude tiveram como palco principal a cidade de Lima em constante

transformação, mais precisamente os distritos de Breña, para onde mudaram os seus pais, e

Bellavista, onde iam passar os finais de semana com o restante da família.

Breña não diferia muito dos outros bairros de classe média baixa que havia no

Peru. Sua localização mais à periferia da cidade permitiu acompanhar de maneira mais

aproximada o surgimento de novos bairros a partir dessa época em Lima, os chamados

pueblos jovenes. O grande destaque do bairro de Breña era, sem dúvida, a tradicional escola

de orientação católica: o Colégio La Salle. O Colégio La Salle foi onde Flores Galindo teve

sua formação educacional inicial e onde completou o ensino primário e secundário entre 1956

e 1965.

La Salle possuía uma característica que despertou o interesse de alguns

escritores contemporâneos como Mario Vargas Llosa. Apesar de seu tradicionalismo católico

e das formalidades religiosas, sua localização no distrito de Breña garantia a heterogeneidade

do público e do alunado que vinham de setores médios e populares da sociedade. Conforme

escreveu Eduardo Cáceres, Em alguns dos prólogos de Los Cachorros de Mario Vargas Llosa e na obra de José Miguel Oviedo sobre o novelista se ressalta o contraste entre o bairro de Breña e o Colégio La Salle. Contraste que por sua vez facilitava uma certa heterogeneidade social em seu interior. Atravessado por correntes contraditórias, o franquismo – aberto ou esboçado – de alguns dos religiosos, um certo progressismo social cristão de outros, podiam ser tomados como um bom exemplo dos processos que atravessaram e redefiniram as classes médias, e sobretudo aos jovens, desde o início da década de sessenta21.

Foi também no Colégio La Salle que Flores Galindo despertou seu interesse

pela história e pela historiografia. Uma das características desse colégio era a boa biblioteca,

que tinha títulos para além daqueles com conteúdos específicos do ensino básico. A

aproximação dos livros, tanto na biblioteca da escola quanto na biblioteca de sua casa, e a

admiração pela história ficaram marcadas especialmente pela leitura da obra sobre Simón

Bolívar de Germán Arciniegas e outros autores como Valcárcel, Vargas Ugarte e Jorge

Basadre.

21 CARCERES, Eduardo. Introducción. FLORES GALINDO, Alberto. Obras Completas. Tomo I. Lima: SUR, 1993, p. XIII. A citação de Vargas Llosa é essa: “La Salle, ainda que seja um colégio para crianças descentes, está no coração de Breña, onde povoam os zambos e os trabalhadores” In: VARGAS LLOSA, Mário. Los Cachorros. Barcelona: Lumen, 1974, p 12.

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Como deixa transparecer Eduardo Cáceres em sua descrição das peculiaridades

do Colégio La Salle, a sociedade peruana, e principalmente a sociedade limenha dos anos

cinqüenta e sessenta, entrou em um processo de alteração de sua configuração étnica e

cultural que marcaria decisivamente sua composição social até os dias de hoje. Essas

mudanças começaram a ficar mais claras a partir do governo de Odría.

A chegada de Odría à presidência representou a recolocação das oligarquias no

direcionamento das políticas sociais e econômicas do país. O modelo agro-exportador e o

liberalismo estatal foram retomados com maior força do que nos anos de Bustamente. A não

intervenção do Estado na economia seria uma das características dos planos econômicos que

apostaram firmemente no velho modelo de exportação e balança positiva. Assim, a

estabilidade econômica foi garantida pelo crescimento das exportações de manufaturas e

commodities que vinham aquecidas pela reconstrução da Europa pós-guerra e da Guerra da

Coréia (1950-1953)22.

Um dos principais produtos exportados para a Europa naquele período foi a

farinha de peixe (harina de pescado). Este produto, que é um concentrado sólido de anchova e

utilizado primordialmente como fertilizante, foi vendido para a Europa como alimento de

animais de granja. O sucesso de sua produção fez com que a farinha de peixe se apresentasse

como um novo produto a se somar às tradicionais exportações de algodão, cobre e açúcar.

Porém, diferentemente dos outros produtos, a farinha de peixe não era produzida no campo,

mas sim no litoral, onde se concentram duas das principais cidades peruanas: Trujillo, ao

norte, e Lima, ao sul.

Não demorou muito para que a farinha de peixe se convertesse em um dos

principais produtos da economia peruana. Movida pelo impulso de sua exportação, entre 1955

e 1969, a indústria pesqueira saltou de 4,7% na participação do PIB para 25,6%, enquanto a

produção agropecuária caiu de 47,1% para 16,3%.

Outra característica dos oito anos de Odría foi o forte investimento em

Educação e Saúde. Como parte dos planos anunciados em seu lema de governo, “Saúde,

Educação e Trabalho”, o governo Odría apostou na expansão do sistema de saúde e na

abertura de escolas em todos os níveis. Entre 1948 e 1966, o número de alunos da rede 22 O apoio peruano à atuação norte-americana na guerra coreana permitiu também uma maior aproximação dos Estados Unidos com o Peru. Durante os oito anos de Odría, vários acordos comerciais e alianças político-militares foram formalizados entre esses dois países. Um dos exemplos dessa aproximação em relação aos acordos comerciais foi a criação da Southern Peru Cooper Corporation, que investiu mais de US$ 200 milhões na região de Tacna. Além disso, mais do que uma estabilidade econômica, não é arriscado dizer que, neste período, a economia peruana viveu momentos de prosperidade o que levou a alguns sociólogos a chamarem os primeiros anos da década de 1950 de “anos felizes” Cf. ADRIANZÉN, Alberto (Ed.). Pensamiento político peruano: 1930 – 1968. Lima: Desco – Centro de Estudios y Promoción del Desarrollo, 1990, p. 15.

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pública da escola primária saltou de 990.458 para 2.208.299 e, no secundário, de 60.661 para

368.56523. Já os recursos destinados para a educação chegaram a somar os impressionantes

26,4% do orçamento nacional, um dos maiores da América Latina.

Esses números, além de demonstrar a maior preocupação do governo com a

educação, também representam um indício daquela que é a maior característica da década de

1950 no Peru: a explosão demográfica. Ao analisarmos os dados apresentados anteriormente,

podemos concluir que o aumento no número de alunos não apenas ocorreu por conta da

expansão da rede educacional, mas, sobretudo, pelo próprio crescimento populacional que o

Peru apresentou no período.

A partir da década de 1940, o Peru passou a crescer em um ritmo cada vez

mais acelerado, saltando de uma população de 6.5 milhões de pessoas em 1940 para 9 milhões

em 1961, e 13 milhões em 197224. A expansão do sistema de saúde e a implantação de novos

medicamentos alopáticos, como já mencionamos, combateram diretamente a mortalidade

infantil e garantiram um aumento na taxa de crescimento populacional.

No entanto, o crescimento econômico do país não acompanhou a explosão

demográfica. Além disso, a modernização dos processos de produção do campo e a

manutenção de uma política voltada para os setores mais tradicionais da agricultura peruana

prejudicavam a inserção da nova população à dinâmica do trabalho rural. De uma forma quase

que inevitável, o preço da mão-de-obra no campo despencou e as possibilidades de emprego

diminuíram, o que teve como reflexo imediato a aceleração do processo de êxodo rural. Os

camponeses, em busca de melhores empregos e melhores condições de vida, partiram para as

cidades. Entre elas, o principal centro de atração foi Lima25.

Mas outras cidades, especialmente aquelas do litoral cuja indústria pesqueira

encontrava-se em franco crescimento, também atraíram os camponeses que buscavam

trabalho e riqueza. A cidade de Chimbote foi um exemplo muito claro deste acontecimento.

Como alertou Franklin Pease, O exemplo urbano mais sério, em termos de crescimento, é a cidade de Chimbote, ao norte de Lima, que registrou um explosivo incremento estreitamente vinculado ao acelerado desenvolvimento da pesca e da indústria pesqueira (especialmente a elaboração da farinha de peixe), pois esta favoreceu

23 Entre 1940 e 1961 o analfabetismo caiu de 58% para 27%. 24 Cf. CONTRERAS, Carlos & CUETO, Marcos. Historia del Perú... Op. Cit. nota 18, p. 302. 25 Lima foi o destino mais certo para as migrações. Porém, elas foram um fenômeno nacional. À partir da década de 1950 registrou-se o crescimento de quase todas as principais cidades do Peru e não somente Lima. Alguns exemplos de crescimento urbano entre as décadas de 1940 e 1990: Cuzco, de 486.592 para 1.028.763 hab.; Arequipa, de 263.077 para 916.806 hab.; Puno, de 548.371 para 1.079.849 hab.; Lima, de 828.298 para 6.386.308 hab.

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uma forte migração durante o tempo de seu florescimento [...]; Chimbote cresceu de 4.000 habitantes em 1940 para 253.000 em 198526.

Pelas cifras apresentadas por Pease, podemos afirmar que Chimbote

praticamente renasceu neste período, sendo uma cidade completamente diferente daquela

pequena vila que existia antes da chegada dos migrantes. Esta característica de Chimbote

chamou a atenção do romancista e antropólogo José Maria Arguedas. Ao analisarmos

algumas cartas escritas pelo autor quando vivia em Chimbote, podemos encontrar várias

menções à nova organização social que se erguia naquela cidade, como demonstra este trecho

presente na carta endereçada a John Murra: “como o mito de Chimbote segue se difundindo,

mito como centro de enriquecimento do serrano (muitos passaram a levar uma vida de

desperdício), a avalanche de serranos continua e existe gente que vive na mais pavorosa

miséria”27.

No caso de Lima, o crescimento não se deu em menor ordem. De 1950 até

1962, Lima dobrou de tamanho, passando de 1 para 2 milhões de habitantes. Neste mesmo

ano, a população das zonas urbanas já representava 39% da população nacional. O mundo

camponês começava a dissolver-se e a lógica do emprego e da sobrevivência os empurrava

em direção à capital. O Peru, país que se acreditava dividido em dois mundos bem distintos, a

costa (a cidade, representação do moderno ou da civilização) e a serra (representação do

atraso ou da tradição), começava a apagar suas barreiras geográficas e imaginárias.

Para Gabriela Pellegrino Soares, os anos 1950 foram marcados por importantes transformações na organização social peruana, das quais os movimentos camponeses desencadeados na zona rural andina e a chegada maciça de migrantes a Lima foram a mais forte expressão. O rápido crescimento das “barriadas” (as favelas peruanas) nos arredores da capital assustou as elites limenhas, acostumadas a ignorar e a desprezar o “Peru indígena”, até então quase escondido pelas cordilheiras andinas. Por muito tempo alardearam suas restrições aos ditos “invasores”, mas a irreversibilidade da situação obrigou-as a assumirem uma atitude mais conseqüente diante do problema28.

A chegada dos camponeses a Lima na década de 1950 foi um fenômeno que

havia sido anunciado desde meados da década de 1940. As barriadas, a qual se refere

Gabriela Pellegrino, possuem a sua origem ainda no ano de 1946, com a invasão ao Cerro Sán

26 PEASE, Franklin. G. Y. Breve Historia Contemporánea del Perú. México: Fondo de Cultura Económica, 1995, p. 204-205. 27 Carta de José Maria Arguedas para John Murra de 10 de fevereiro de 1967 reproduzida em: FLORES GALINDO, Alberto. Buscando Un Inca: identidad y utopía en los Andes. In: __________. Obras Completas. Tomo III. Lima: SUR, 1995, p. 348. 28 SOARES, Gabriela Pellegrino. Projetos Políticos de Modernização e Reforma no Peru: 1950-1975. São Paulo: Annablume/FAPESP, 2000, p. 29.

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Cosme29. Na oportunidade, cerca de cem famílias apareceram da noite para o dia instaladas

em barracos e casas improvisadas naquela localidade. Durante o governo de Odría, o número

de barriadas estendeu-se para 30, o equivalente a cerca de 200 mil novos migrantes na

cidade de Lima.

A chegada do migrante não representou apenas a expansão geográfica e

demográfica da zona urbana da capital, mas também a inserção de novos elementos culturais

em sua sociedade. Ainda segundo Soares, “tais foram nessa época o ritmo e amplitude das

imigrações à capital – cidade cuja identidade, apesar dos vários surtos modernizadores, ainda

estava muito presa aos padrões tradicionais imperantes no tempo da colônia – que esta teria o

seu perfil rapidamente transformado”30.

A transformação pela qual passariam o país e a cidade, a partir de então, foi

tamanha que o cientista político peruano Alberto Adrianzén, chegou a afirmar que o ano de

“1950, para muitos peruanos, é um ano quase mágico. [...] chave para a história posterior do

país”31.

A transformação de Lima não era evidente apenas no crescimento desordenado

da cidade e no número cada vez mais volumoso de pessoas “nas filas, nas vilas, favelas”. O

fenômeno das barriadas da década de 1950 produziu também alterações perceptíveis nas

manifestações culturais. As músicas andinas ganharam espaço no cotidiano da vida limenha,

nos rádios e nos teatros. Como escreveram Carlos Contreras e Marcos Cueto, Precisamente o rádio, junto com o já mencionado fenômeno da migração à capital, deram espaço a aparição nos anos cinqüenta das figuras da canção vernácula. O “Jilguero de Huascarán”, o “Zorzal Andino”, o “Picaflor de los Andes”, junto com “Flor Pucarina” e muitas outras cantoras, seguiram como símbolos populares em escala nacional. Além de transmitir sua música pelo rádio, enchiam os coliseus das cidades (um tipo de teatro popular) e campos esportivos nos finais de semana32.

Com as barriadas, não demorou florescer um comércio informal e a abertura

de lojas e tendas voltadas para suprir às demandas dessa nova parcela da população. Nas

praças localizadas nas redondezas do centro antigo de Lima o comércio popular oferecia

calçados, roupas, comidas, utensílios domésticos, LPs de 45 rotações com música

“folclórica”, entre outros produtos que até então não se encontravam em Lima. Evidente que a

política econômica voltada para a agricultura de exportação e de grandes latifúndios não 29 Desde então o surgimento repentino de novas barriadas não deixou de ser constante. No entanto, o caso mais impactante foi o surgimento do distrito de Comas em 1958. Em menos de 48 horas cerca de 10.000 novas pessoas ocuparam o lugar. 30 SOARES, Gabriela Pellegrino. Projetos Políticos... Op. Cit. nota 28, p.17. 31 ADRIANZÉN, Alberto (Ed.). Pensamiento político peruano… Op. Cit. nota 22, p. 15 32 CONTRERAS, Carlos & CUETO, Marcos. Historia del Perú... Op. Cit. nota 18, p. 306.

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30

conseguiu gerar, na cidade, empregos suficientes para a nova parte da população que chegava,

o que gerou o subemprego e o emprego informal na capital peruana.

Se deixarmos um pouco de lado os fatos políticos e sociais, bem como os

dados econômicos e demográficos e olharmos para a literatura peruana daquela época,

encontraremos algumas obras que ajudam a compreender este momento de transformação

então vivido pela sociedade peruana. De certa maneira, a formação de uma nova organização

social do Peru também se refletiu na literatura e nas artes, como nos mostram as obras de José

Maria Arguedas e Mario Vargas Llosa, por exemplo. Em 1958, apareceu o livro mais

importante de José Maria Arguedas. Intitulada Los Ríos Profundos a obra introduziu, ao

grande público, elementos próprios do imaginário sulista dos Andes peruanos, valorizando

personagens próprios desta localidade, além de apresentar um panorama dos hábitos, dos

costumes, das tradições e dos mitos particulares deste universo.

Em contraposição à valorização e incorporação dos elementos culturais

advindos do mundo andino à narrativa de alguns novelistas, surgiram os livros do escritor

arequipenho Mario Vargas Llosa. Em obras como La Ciudad y los Perros, de 1962, e La

Casa Verde, de 1966, o autor procurou apresentar o que era pensado na cidade, nas classes e

setores médios urbanos marginalizados, para além do mundo do migrante, que também se

viam mergulhados em valores hipócritas da tradição religiosa e militar da “antiga Lima”. De

certa forma, os romances de Arguedas e Vargas Llosa nos permitem compreender a história

dos encontros culturais e a diversidade produzida no Peru, especialmente em Lima, a partir

dos anos 1950.

Para além da literatura, o processo de modernização e crescimento vivenciados

em Lima também foi rapidamente interpretado pelas ciências sociais. No início da década de

1960, autores como Aníbal Quijano, Julio Cotler, Heraclio Bonilla, Fraçois Bourricaud, entre

outros, passaram a dedicar suas atenções aos fenômenos populares que ocorriam em Lima.

Em nossa concepção, a melhor representação do pensamento dessas linhas interpretativas foi

o termo criado por Aníbal Quijano em sua tese de doutorado de 1965 intitulada La

emergencia del grupo cholo y sus implicaciones en la sociedad peruana33.

Segundo o sociólogo peruano, a década de 1950 marcou o início de um

processo de cholificación da capital com a migração serra-costa. Tal processo representava a

incorporação da população indígena à realidade nacional e a formação de novos estereótipos

sociais, que quebravam as antigas noções de índio, branco e mestiço. O cholo seria “o antigo

33 Um ano antes da tese de Quijano, em 1964, Sebastián Salazar Bondy havia lançado um livro com o título Lima La Horrible.

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31

indígena que graças a sua educação e esforço pessoal, havia ascendido socialmente e

realizado uma integração, pelo menos parcial, à sociedade urbana”34. Em outras palavras,

cholo é a pessoa de procedência indígena que migrou para a cidade. É uma pessoa que vive

nos meios urbanos, mas que possui em seu universo cultural tanto elementos oriundos das

tradições andinas de seus antepassados quanto os elementos da modernidade incorporados via

cultura urbana.

Conforme esclareceu o próprio Aníbal Quijano em seu artigo El “movimiento

indígena” y las cuestiones pendientes en América Latina, publicado recentemente: “a

desindianização da identidade e da auto-identificação de uma parte maior da população

‘índia’, sua ida para as cidades, as atividades vinculadas ao salário e ao mercado, mesmo no

mundo rural, [...] foi denominado de ‘cholificación’”35. Assim, não apenas a cidade cedia espaços às novas culturas, às novas tradições

e costumes, mas, também, o migrante ia adaptando-se às exigências e necessidades da vida

urbana que se mesclavam aos traços característicos de sua origem.

À medida que Lima crescia e o Peru tomava novas feições em sua organização

demográfica, a urgência de mudança nas políticas econômicas e sociais também aumentava.

A escolha pelo investimento em educação, como forma de gerar a formação de uma nova

classe média e inserir mais pessoas à dinâmica da vida na cidade, assumida por Odría, apesar

de importante, não se mostrou efetiva para solucionar os problemas trazidos pela explosão

demográfica.

Além disso, havia a necessidade de se realizar um plano mais agressivo de

reforma agrária que conseguisse inverter a marcha das massas para a serra e garantir o acesso

ao trabalho às pessoas que ficaram no campo, mas que ainda estavam sem emprego ou viviam

na exploração feitas pelos gamonales36 nos latifúndios. Porém, essas reformas não vieram na

34 CONTRERAS, Carlos & CUETO, Marcos. Historia del Perú... Op. Cit. nota 18, p. 306. 35 QUIJANO, Anibal. El “movimiento indígena” y las cuestiones pendientes en América Latina. In: http://www.democraciasur.com/regional/QuijanoMovIndigenaAL.htm Acesso em: 27 jun. 2008. Este mesmo artigo foi também publicado em português na Revista POLÍTICA EXTERNA, vol. 12, No. 4, março-abril-maio 2004, p. 77-97, Instituto de Estudos Internacionais, USP, São Paulo, Brasil. 36 O Gamonalismo (ou caciquismo) é representado pelo monopólio de um mestiço ou grupo de mestiços sobre uma determinada população indígena. Os indígenas, por conta de sua desarticulação política, não possuem e não se constituem como representantes legais em esferas econômicas e políticas, não exercendo cargos administrativos ou de posse latifundiária. Por conta disso, se vinculam à essas lideranças (gamonales) que passam a responder como seus representantes. O gamonal, por sua vez, passa a exercer um papel de dominação política e econômica sobre essa população, porém, camuflada por laços de relações afetivas interpessoais e, até mesmo, parentais. Por conta disso, o grupo indígena não possui consciência de seu estado de dominação. Em contrapartida, o gamonal recebe o apoio das elites rurais uma vez que é responsável por estabelecer certa ordem sobre seus domínios regionais, podendo ocupar cargos de senadores, prefeitos, administradores ou donos de

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32

gestão do sucessor de Odría, Manuel Prado, o banqueiro que venceu a corrida presidencial de

195637 e deu continuidade ao modelo econômico instaurado por Odría, que privilegiava a

produção agrícola latifundiária e de commodities. A tendência liberal da economia acentuou-

se ainda mais com a indicação do nome de Pedro Beltrán para o Ministério da Fazenda, em

1958. Beltrán é considerado um dos introdutores do neoliberalismo no Peru e havia conduzido

as linhas econômicas do Banco Central Peruano durante a ditadura de Odría.

Com a falta de políticas mais específicas para as demandas do campo, as

manifestações camponesas começaram a ganhar um espaço na realidade política peruana. A

migração serra-costa foi um dos resultados da explosão demográfica, assim como as

manifestações de grupos de camponeses e trabalhadores rurais a partir da metade dos anos

1950. É importante observarmos que, ao mesmo tempo em que a explosão demográfica

causou o fenômeno do crescimento das cidades e da migração, também provocou o

levantamento de rebeliões e manifestações camponesas na serra. Segundo Peter Klaren, em termos macroeconômicos e sociológicos, a crescente diferenciação social e as desigualdades que caracterizavam a população camponesa da serra à medida que o capitalismo e o mercado interno avançavam em sua acostumada forma diversa e nada uniforme, prepararam o cenário para o incremento do descontentamento rural e a mobilização camponesa que repentinamente explodiu no final da década de 1950, alcançando o seu clímax a meados de 196038

Quem percebeu o aquecimento dos movimentos sociais do campo de maneira

bastante clara foram os militares. Ao longo da década de 1950 houve uma renovação no

quadro de dirigentes das Forças Armadas peruanas. Desde o início da década, essa mudança

havia sido desenhada pela criação do CAEM (Centro de Altos Estudios Militares). Inspirado

no War College de Washington, o objetivo desse centro era formar a intelectualidade militar,

com uma forte tendência a se pensar e discutir o tema da segurança e da soberania nacional.

Com o desenvolver da década de 1950 e início da década de 1960, os militares

do CAEM começaram a perceber que os movimentos populares, tanto do campo como os da

cidade, representavam um problema tão grande para a segurança do país, quanto os problemas

fronteiriços que marcaram as principais guerras do Peru republicano.

Esta preocupação ficou evidente nas eleições de 1962. Esta eleição teve como

principais candidatos o ex-presidente Manuel Odría pela UNO (Unión Nacional Odriísta), o

engenheiro Fernando Belaúde Terry da AP (Ación Popular) e Haya de La Torre. fazenda, entre outros. Cf. COTLER, Julio. La mecánica de la dominación interna y del cambio social en la sociedad rural. In: MATOS MAR, José (org.). Perú Problema: cinco ensayos. Lima: IEP, 1983, p. 184-186. 37 Esta foi a primeira eleição a contar com o voto feminino no Peru. 38 KLAREN, Peter. Nación y Sociedad… Op. Cit. nota 19, p. 379.

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33

Ironicamente, para este pleito, o candidato da oligarquia era Haya de La Torre. Desde o

incidente de 1948, Haya havia compreendido que não conseguiria chegar ao poder enquanto

não tivesse o apoio da oligarquia. Dessa forma, a sua guinada à direita, que começou com a

adesão à FDN em 1945, acentuou-se com o passar dos anos.

Durante o próprio governo de Manuel Prado, Haya já havia acenado para uma

possível aliança com os setores conservadores da sociedade peruana, quando acertou a

colaboração do congresso na transição de Odría a Prado. Esse acordo ficou conhecido como o

período da convivência. Segundo Gonzalo Portocarrero, analisando essa nova etapa do

aprismo, “[...] são claras as mudanças de ênfase: o anticomunismo é mais forte, o anti-

imperialismo mais matizado e o protagonismo do Estado na economia fica praticamente

eliminado”39.

Essa guinada à direita e o apoio da oligarquia à candidatura de Haya eram os

elementos que faltavam para a cisão final entre os grupos mais moderados e os grupos mais

radicais do partido. Em 1959, a ala radical do partido, liderada por Luis de La Puenta Uceda,

rompeu com a APRA histórica e fundou a APRA Rebelde, nome que perduraria até o ano de

1962, quando, em sua Assembléia Nacional do partido, passou a adotar o nome de

Movimiento de Izquierda Revolucionário, MIR, em alusão ao MIR venezuelano40.

Enquanto o Partido Aprista caminhava para a direita e para a adesão a

doutrinas mais liberais de economia, a APRA Rebelde caminhava para a esquerda mais

extrema aderindo ao “marxismo-leninismo”. Além disso, possuía forte vinculação a Cuba, à

teoria do foquismo e às táticas guerrilheiras advindas da Revolução Cubana. O próprio nome

APRA Rebelde fazia referência direta ao Exército Rebelde cubano.

Desse modo, a APRA caminhou enfraquecida para as eleições de 1962, sem

possuir mais o protagonismo oposicionista e das idéias progressistas que foram marcas de sua

atuação durante os primeiros trinta anos do partido. De certa forma, a quebra da hegemonia da

oligarquia e os descaminhos da APRA e da esquerda tradicional (Partido Comunista) durante

39 PORTOCARRERO, Gonzalo. El APRA y El Congreso Económico Nacional. In: ADRIANZÉN, Alberto. (Ed.). Pensamiento político peruano. Lima: Desco – Centro de Estudios y Promoción del Desarrollo, 1987, p. 128. Ainda segundo Gonzalo Portocarrero, essa guinada do aprismo à direita pode ser percebida no livro de Haya de la Torre intitulado Treinta años de aprismo, em comemoração aos trinta anos do partido completados em 1961. 40 Cf. BÉJAR, Hector. Los orígenes de la nueva izquierda en el Perú: la izquierda guerrillera (período 1956-1962). In: ADRIANZÉN, Alberto. (Ed.). Pensamiento político peruano… Op. Cit. nota 22, p. 367. No início da década de 1960 destaca-se ainda o surgimento de outros três movimentos de esquerda revolucionários que tiveram relevância: a VR (Vanguardia Revolucionaria - 1965), ELN (Ejército de Liberación Nacional - 1962) e o FIR (Frente de Izquierda Revolucionaria - 1960). Veremos mais sobre eles no próximo capítulo.

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34

a década de 1950, abriram espaço para novos líderes e partidos políticos que apareciam como

representantes dos interesses de setores urbanos e da classe média.

Assim, naquele momento, o progressismo já aparecia dividido e difundido na

política e na sociedade peruana. O Movimiento Social Progresista (MSP), a AP e a

Democracia Cristiana (DC) ganharam espaço na virada da década de 1950 para 1960. Aliás,

neste período, a Igreja Católica começou a desempenhar um trabalho de apoio

social/assistencialista junto às barriadas, o que possibilitou a formação de quadros mais

voltados para o discurso socialista, configurando-se em bases para a formação da Teologia da

Libertação da década de 197041.

Como era de se esperar, a temática do andino, da reforma agrária e a migração

serra-campo foram centrais nos debates políticos. Assim como nas propostas de cunho mais

progressista, Fernando Belaúnde, também foi mais agressivo do que Haya no

desenvolvimento de projetos que envolvessem o andino. Vale lembrar que a sua principal

proposta de governo era a construção de uma rodovia que atravessaria o Peru de norte a sul,

permitindo uma maior integração entre costa, serra e selva. O projeto foi batizado de

Carretera Marginal de la Selva.

Para Belaúnde esse era um passo primordial para se estabelecer novos

caminhos para o fluxo migratório e rediscutir a problemática da posse de terras. Nas idéias do

então candidato, “com a colonização viária, o fluxo migratório dos camponeses andinos para

as cidades poderia ser canalizado para a região recém-incorporada, ajudando a resolver o

problema da concentração demográfica em algumas regiões da ‘sierra’ e em Lima, bem como

as tensões sociais que dela decorriam”42.Além desse plano de colonização viária, outra

temática relacionada à questão do andino que apareceu no discurso de Belaúnde era a da

herança do Império Inca para a constituição de uma sociedade mais justa e solidária. Segundo

ele, a redistribuição de produtos e a reciprocidade, bases da organização socioeconômica

incaica, seriam ótimos referenciais a serem incorporados pelo Peru contemporâneo. Já em

1959, isso aparecia claro em seu livro intitulado La conquista del Perú por los Peruanos.

Resultado de uma viagem ao “Peru profundo” após a derrota para Manuel Prado nas eleições

de 1956, o livro procurava propor, entre outras coisas, a construção de um novo sentido de

41 Gabriela Pellegrino Soares afirma que “é interessante perceber a ligação entre o reformismo da Democracia Cristã com a Igreja Católica peruana, que a partir dos anos 1950 passou por uma profunda reorientação ideológica, no sentido de assumir uma postura favorável da estrutura social. Tratou-se de uma mudança significativa nas suas concepções tradicionalmente conservadoras, vinculadas, desde os tempos da colônia, aos centros do poder político e às camadas de maior prestígio social”. SOARES, Gabriela Pellegrino. Projetos Políticos... Op. Cit. nota 28, p. 44. 42 SOARES, Gabriela Pellegrino. Projetos Políticos... Op. Cit. nota 28, p. 79.

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35

“peruanidade”. Esta “peruanidade” compreenderia a adesão de elementos da tradição e da

cultura andina para a formação de uma nova identidade para o peruano. Como afirma

Gabriela Pellegrino Soares, A proposta de “peruanidade” em Belaúnde Terry se traduziu em um projeto que buscava fundir a secular tradição hispânica e sobretudo a indígena com os progressos da modernidade. Tratava-se de recuperar “experiências e tradições milenárias” que, no passado, através da “ação popular”, permitiram a construção do Império Inca43

Essa preocupação maior de Belaúnde com a temática do indígena fez com que

ele acabasse por se converter no candidato que mais possuía a simpatia dos militares/CAEM

que, desde o início da década passada, entendiam a necessidade de se empreender reformas no

campo para evitar possíveis levantes indígenas que abalariam a ordem nacional. No entanto,

não foi ele quem saiu vitorioso nas eleições de 10 de junho de 1962. Por uma margem de

0,85% Haya de la Torre saiu vitorioso. Ele obteve 32,98% dos votos, enquanto Belaúnde teve

32,13% e Odría 28,44%.

Apesar de Haya não ter atingido os 33,33% dos votos que garantiriam a sua

vitória no primeiro turno, conforme previa a Constituição, o fato de o partido aprista ter feito

40% das cadeiras do Congresso fez com que os outros dois candidatos abrissem mão do

segundo turno e iniciassem negociações com a APRA para a composição de governo.

Prontamente, os apristas recusaram a participação de Belaúnde na construção do novo

governo, mas, no dia 17 de julho, chegaram a um acordo com o ex-presidente Odría.

O rechaço a Belaúnde e a união com Odría marcavam a continuidade das

políticas dos governos anteriores, o que era visto pelos militares como danoso ao país e à

soberania nacional. Desta forma, no dia seguinte ao acordo, as forças armadas declararam

anuladas as eleições, depuseram Manuel Prado, dez dias antes do término de seu governo, e

apresentaram uma junta militar conduzida pelo General Ricardo Pérez de Godoy, que dirigiria

as novas eleições no ano seguinte.

As forças armadas estavam convencidas de que a “super-convivência”,

resultante do acordo entre Haya e Odría, não traria as reformas sociais que o Peru tanto

precisava para garantir a ordem e evitar os possíveis levantes populares no campo e na cidade.

Este temor dos militares ficou ainda mais efetivo quando, na região de La Convención,

próximo à Cuzco, explodiu um levante camponês liderado por um jovem universitário: Hugo

Blanco.

43 Ibid. 72-73.

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36

A explosão demográfica e o aparecimento do andino no cenário político

somado aos novos direcionamentos da esquerda mundial, como a crise do comunismo

soviético, o movimento camponês na China e a Revolução Cubana, fizeram com que boa

parte da esquerda rompesse com o caminho democrático adotado pelo Partido Comunista

desde a década de 1940. Assim, a esquerda peruana estabeleceu novas orientações para a sua

atuação política e mobilização camponesa. A guerrilha e a via armada começaram a fazer

parte do vocabulário político destes movimentos. Surgia a partir de então: a nova esquerda44.

Hugo Blanco foi o primeiro a converter esses ideais em ação. Blanco era um

jovem de origem urbana e com formação universitária. Convertido rapidamente em herói pela

juventude da classe média das cidades e pelos movimentos de esquerda ligados à

universidade, outros jovens seguiriam seus passos aderindo ao movimento camponês,

largando as universidades e a vida na cidade rumo à serra. Na realidade, os movimentos

camponeses é que passariam a ser organizados e liderados pelos jovens oriundos das cidades,

e não o contrário45.

Mesmo com a rebelião de La Convención contida pela Junta Militar e a prisão

de Hugo Blanco, foi necessário, por parte dos governantes, estabelecer um plano, ainda que

muito tímido, de reforma agrária na região próxima a Cuzco. A intenção era prevenir outros

levantes que pudessem vir à esteira daquele.

Nas eleições de 1963, a vontade dos militares prevaleceu e o vencedor do

pleito eleitoral foi Fernado Belaúnde Terry. Contudo, o Partido Aprista, mais uma vez,

conseguiu a maioria no Congresso. As primeiras medidas de Belaúnde na presidência foram a

viabilização de seu projeto de construção da Carretera Marginal de La Selva e a proposta de

uma ampla reforma agrária para a solução dos problemas políticos trazidos pela zona rural.

Aliás, os problemas políticos oriundos da terra e da serra somente aumentaram a partir de sua

posse. Logo que chegou ao poder, ocorreu uma nova onda de tomada de terras no campo. Os

camponeses que acompanharam as eleições e que aderiram às promessas do presidente de

fazer da reforma agrária sua principal meta de governo sentiram-se motivados a ocupar os

44 A quebra da hegemonia da oligarquia no campo político e os descaminhos da APRA e do PC não abriram apenas espaço para o surgimento de novos partidos conservadores e progressistas, mas também para os movimentos da esquerda que atingiriam, na década de 1970, o número de 53 organizações políticas, como veremos no próximo capítulo. 45 O ensino superior, também como resultado da explosão demográfica e migração serra-costa, passou por uma franca expansão entre as décadas de 1950 e 1970, o que possibilitou uma maior democratização no acesso à universidade, abrindo espaço para uma maior participação dos setores da classe média no ensino superior. O número de alunos nas universidades públicas e privadas saltou de 3.370 alunos em 1940 para 30.247 alunos em 1960, logo 181.671 alunos em 1975 e, ao final da década de 1970, 257.220 alunos.

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37

latifúndios e protagonizar “a conquista do Peru, pelos peruanos”. Como descreveu Peter

Klaren Depois de tudo, será que o presidente não havia feito campanha na serra prometendo-a? De modo que enquanto o novo mandatário assumiu seu cargo, muitos camponeses assumiram automaticamente que tinham direito a “ocupar” as terras em disputa. [...] marchavam sobre as terras disputadas das fazendas em grupos que variavam de um punhado a vários milhares, e colocavam bandeiras peruanas para indicar que estavam retomando campos que eram seus por direito. O uso das bandeiras serviu para conseguir respaldo e dava uma aura de legitimidade e nacionalismo às invasões46.

No entanto, a proposta de uma reforma agrária ampla morreu no Congresso nos

braços da oposição. Sua discussão no poder legislativo estendeu-se por anos e a APRA e a

UNO reduziram a abrangência da Lei, que passou a possuir mais de 240 artigos, tornando-a

inaplicável. A reforma agrária foi apenas um dos muitos boicotes que a aliança APRA/UNO

proporcionou ao governo de Belaúnde, tornando o poder executivo refém do congresso.

Por parte dos apristas havia a clara intenção de minar o possível sucesso do

governo Belaúnde e abrir caminho para a eleição de Haya de La Torre em 1969. A tática,

porém, exagerou na dose, de modo que o governo de Belaúnde não caiu apenas no descrédito

popular, mas também na desconfiança dos militares47.

Os desentendimentos com a APRA não foram as únicas dificuldades

enfrentadas por Fernando Belaúnde nos quase cinco anos em que esteve no governo. Em

1965, outro movimento guerrilheiro explodiu na serra peruana. Dessa vez o levante foi

organizado pelo grupo do ex-aprista Luis de La Puente Uceda, o MIR. A atuação do

movimento guerrilheiro ocorreu na região de Cuzco e na Serra Central. O movimento teve a

participação importante de Gillermo Lobatón, um intelectual peruano que havia acabado de

chegar da França. Desde 1962, o MIR estava preparando sua “revolução”, com treinamentos

de jovens quadros, muitos deles universitários, que partiam do Peru em direção a Cuba sob o

auspício e o financiamento do governo cubano.

A atuação do MIR teve um caráter mais radical com um nítido propósito de

derrubada da ordem e tomada do poder, o que a tornou sua ação mais agressiva e violenta do

que aquela protagonizada por Hugo Blanco em 1962. Seu resultado direto foi o aumento dos

temores por parte da sociedade e uma maior agitação política. Em 1966, o movimento foi

contido pelo governo. Beláunde autorizou a participação irrestrita dos militares para conter o

46 KLAREN, Peter. Nación y Sociedad... Op. Cit. nota 19, p. 396. 47 No final do governo de Belaúnde, ao perceber que o presidente não teria fôlego para chegar ao final de seu mandato, a APRA mudou de tática e passou a apoiar o executivo, tendo participação, até mesmo, nos ministérios. Em vão.

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38

movimento. Se na rebelião de 1962 a via de ação optou pela conciliação com Hugo Blanco e

movimento camponês, sendo negociada a prisão de seu líder, nesta ocorreram cerca de 300

mortes, entre elas a dos principais líderes do movimento, incluindo de La Puente e Lobatón.

A agitação popular e política peruana, das cidades em expansão e do campo em

convulsão constituíam o contexto que cercava Flores Galindo quando este chegou à

universidade no ano de 1966. O gosto pela história, que foi despertado ainda no Colégio La

Salle, fez com que ele optasse pelo curso de História na Pontifícia Universidade Católica do

Peru (PUCP).

A universidade católica localizava-se no centro histórico de Lima. Como

escreveu Eduardo Cáceres, “ao ingressar em 1966 na Faculdade de Letras da Universidade

Católica, então localizada na Praça França, em pleno centro de Lima, começou a ser

testemunha e protagonista de vários processos. O mais imediato: a paulatina radicalização de

sua geração nos anos finais da tragicomédia dos homens da revolução”48.

Assim, como a maioria dos jovens universitários daquele período, engajados

em movimentos políticos, não demorou para Flores Galindo aderir ao MIR. Ainda que essa

passagem pelo partido tenha sido rápida, a sua vontade de atuar junto a movimentos populares

não se reduziu à experiência partidária na universidade. Durante os quatro anos de formação

acadêmica ele ainda participaria da FRES (Frente de Estudiantes Socialistas) e,

posteriormente, da VR (Vanguardia Revolucionaria).

Em 1967, a situação do Governo Belaúnde iria se complicar ainda mais. Um

período de longa seca na costa e o agravamento do déficit da balança comercial levaram a

uma crise econômica que impossibilitou qualquer plano de investimento em políticas sociais

para o campo, como a construção da rodovia marginal da selva. Ao final de seu governo, a

Carretera já estava praticamente abandonada.

Como uma tentativa de sair da crise, Belaúnde renovou o contrato com a IPC

(International Petroleum Company), a empresa petrolífera do Peru que era controlada por um

grupo norte-americano, na tentativa de aumentar os valores pagos pela concessão de extração

de petróleo. No entanto, esse acordo que pretendia salvar o seu governo foi o golpe certeiro

que levou o seu mandato a nocaute. Conforme publicou a imprensa tão logo o acordo foi

firmado entre o governo e a empresa petrolífera, a página onze do contrato havia

misteriosamente desaparecido. Tratava-se justamente da página na qual estavam firmados os

48 CÁCERES, Eduardo. Introducción... Op. Cit. nota 21, p. XIV. O trecho em itálico faz referência ao título da tese de Pedro Lizarzaburru sobre os anos finais do primeiro belaundismo.

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39

valores a serem pagos pela empresa para a extração de petróleo em subsolo peruano. O

acontecimento ficou conhecido como o “escândalo da página onze”.

Acusando o governo de corrupto, no dia 03 de outubro de 1968 os militares

depuseram Belaúnde e assumiram o poder. Chegou ao poder o GRFA (Gobierno

Revolucionário de las Fuerzas Armadas), composto prioritariamente por militares oriundos

do CAEM, liderado pelo General Juan Velasco Alvarado.

1.2 O Regime Militar de Juan Velasco Alvarado e a década de 1970

O golpe militar de 1968 foi o ápice do processo de transformações ocorridas na

sociedade peruana desde meados da década de 1940. Como vimos, ao longo dessas duas

décadas, as ciências sociais peruanas realizaram interpretações e análises dos acontecimentos

políticos e sociais que se desenvolviam de maneira cada vez mais nítida. Um claro exemplo

disso foi a criação do Instituto de Estudios Peruanos, o IEP, em Lima no ano de 1964.

A primeira obra publicada pelo instituto foi justamente no ano de 1968 e trouxe

o sugestivo título de Perú Problema. Na realidade, este livro era uma reunião de ensaios

escritos por cinco dos principais intelectuais da época: José Matos Mar, Augusto Salazar

Bondy, Jorge Bravo Bresani e Julio Cotler. Como anunciou José Matos Mar na apresentação

da primeira edição da obra: Os estudos que comporão Perú Problema refletirão o pensamento que, sobre o Peru e seu posicionamento no mundo atual, possuem diversos especialistas no campo das ciências sociais, tanto nacionais como estrangeiros. [...] Ali, ao mesmo tempo em que se questionam teorias ou interpretações de toda origem, se analisam conceitos e purificam termos, se tenta despertar inquietações, sobretudo nas novas gerações, e abrir novas perspectivas que permitam ajuizar de uma forma mais cabal a situação atual do Peru49.

Assim, o conjunto de ensaios apresentados pelo IEP procuraria compreender os

problemas atuais internos do Peru e, ao mesmo tempo, definir o seu posicionamento no

mundo. Essa afirmação, presente no texto de Matos Mar, revela a percepção do autor de que

os problemas do Peru possuíam uma ordem interna, mas também se inseriam no contexto de

acontecimentos externos ao país, mais claramente: a Revolução Cubana que trouxe para toda

a América Latina a opção da guerrilha para a revolução socialista; a Revolução Cultural da

China, um país que, assim como o Peru, tinha uma importante participação camponesa; e a

Guerra do Vietnã, que já se estendia há quatro anos e mostrava a resistência de um país

camponês ao poderio militar norte-americano. 49 MATOS MAR, José (org.). Perú Problema: cinco ensayos. Lima: IEP, 1983, p. 13. A primeira edição de Perú Problema é de junho de 1968, antes do golpe de Velasco, mas posterior ao maio francês de 1968.

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Quatro meses depois da publicação de Perú Problema, veio o golpe militar que

coroou a interpretação dos autores de que algo de problemático se desenvolvia na sociedade

peruana. Assim como as ciências sociais, os movimentos políticos também haviam detectado

a alteração da estrutura social peruana e apresentado projetos políticos para reestruturá-la. Se

a via democrática para esta mudança não havia alcançado êxito com Belaúnde, restou, no

entendimento das Forças Armadas, o caminho ditatorial. A ditadura instaurada pelo GRFA

pode ser dividida em dois períodos: os anos de 1968 a 1975 sob o comando de Velasco

Alvarado, e os anos de 1975 a 1980 sob o comando de Francisco Moralez-Bermudez.

Os anos de Velasco Alvarado representam o período mais pujante do governo

militar, no qual o nacionalismo e o anti-oligarquismo nortearam as ações governamentais. São

os anos das nacionalizações das empresas estrangeiras, inclusive a IPC, e da implantação da

reforma agrária. Já os anos de Moralez-Bermudez representaram o momento de

enfraquecimento do governo, com o início de uma forte crise econômica (que se estenderia

até meados dos anos 1990) e da reorganização popular em torno da democracia com a

Assembléia Constituinte de 1978.

A chegada de Velasco Alvarado ao poder representou a retomada do modelo

nacional-desenvolvimentista. Se, entre 1948 e 1968, o liberalismo econômico foi a marca de

Pedro Beltrán à frente da economia peruana, no período da ditadura, ao contrário, a

participação decisiva do Estado passou a ser expressiva nos processo produtivos. Com pouco

menos de uma semana de governo, no dia nove de outubro, essa guinada da política

econômica foi confirmada com a estatização da petrolífera IPC. Este dia passou a ser

comemorado pelo governo militar como “o dia da dignidade nacional”. Esta atitude também

demonstrou outra característica do novo regime político, o autoritarismo. Dias depois da

estatização da IPC o governo criou a sua primeira empresa pública, a também petrolífera

PETROPERÚ.

A ação instantânea sobre as companhias de petróleo não foi por acaso.

Existiam motivações econômicas e políticas que levaram Velasco a estabelecer tais medidas:

1) a IPC havia sido o motivo da queda de Belaúnde e da instauração do regime; atacá-la era

uma forma de dar uma resposta à população que havia ficado indignada com o “escândalo da

página onze”; 2) seria com os royalties do petróleo que Velasco financiaria suas principais

ações nacionalistas.

Para implantar as medidas nacionalistas de desenvolvimento econômico e

resolver o problema da reforma agrária, o GRFA apresentou o seu plano de governo,

intitulado “O Plano Inca”. Para os militares, o Plano Inca, denominado assim por referenciar-

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41

se no passado peruano glorioso e aproximar-se do mundo andino, apresentava uma

característica muito clara do GRFA: o seu caráter revolucionário. Ainda que não concorde

com a existência de um caráter efetivamente revolucionário naquele governo, Julio Cotler

escreveu, em 1985, que desde que, em 1968, se instalou o governo das Forças Armadas do Peru, este insistiu, até pouco tempo, em fazer valer a sua natureza revolucionária. O comando político militar declarou, reiteradamente, que sua exuberante legislação tinha por objetivo erradicar “as estruturas tradicionais”, fundamento do atraso generalizado do país – o subdesenvolvimento – e a subordinação aos centros imperiais – a dependência50.

A demonstração de insubordinação aos “centros imperiais” continuou com as

seguidas estatizações das indústrias de mineração norte-americana que atuavam no Peru desde

o início do século, como, por exemplo, a Cerro de Pasco Corporation e a Marcona Mining

Corporation51. As empresas ligadas à indústria pesqueira que cresceram substancialmente

durante as duas últimas décadas também foram expropriadas, dando lugar à empresa pública

PESCA-PERÚ. Já para os setores de mineração, siderurgia e indústria foram criadas

respectivamente as empresas CENTROMÍN, SIDERPERÚ e MORAVECO. Com a

nacionalização das multinacionais e a criação de aproximadamente 150 empresas públicas, o

Estado passou a empregar cerca de 670.000 pessoas, mais do que o dobro das 300.000

pessoas que ocupavam cargos públicos no início da década de 1970. Como bem resumiram

Carlos Contreras e Marcos Cueto, toda a atividade de exportação, os setores de acumulação da economia e os que representavam serviços básicos considerados “estratégicos” para o desenvolvimento e segurança nacional (entenda-se isso em termos militares) passaram para as mãos do Estado [...]52.

A maioria das empresas estatizadas possuía como principais investidores

grupos norte-americanos. Assim, além de demonstrar o seu caráter nacionalista, as

expropriações também deixaram transparecer outra característica do GRFA: o anti-

americanismo. Durante os anos de governo liderado pelos militares, o Peru tomou uma série

de medidas políticas, econômicas e militares contra os Estados Unidos. Uma dessas medidas

foi o estabelecimento de um limite territorial de 200 milhas marítimas em relação à costa

peruana para qualquer barco norte-americano que pretendesse pescar no Oceano Pacífico.

50 COTLER, Julio. Democracia e integración nacional en el Perú. In: LOWENTHAL, A & McCLINTOCK, C. El Gobierno Militar: una experiencia peruana 1968-1980. Lima: IEP, 1985, p. 23. 51 Entre as principais empresas mineradoras privadas, somente a Southern Peru Copper, criada durante o governo Odría, não foi estatizada. 52 CONTRERAS, Carlos & CUETO, marcos. Historia del Perú... Op. Cit. nota 18, p. 333.

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Essa medida foi vigorosamente cumprida pela Marinha Peruana, que prendeu vários barcos de

pesca norte-americanos53.

Em contrapartida, o GRFA estreitou as relações com os países de economia

socialista. Durante o governo de Velasco, Lima foi sede de uma grande Assembléia que

contou apenas com a participação dos chamados países “não alinhados”. Sobre esses novos

relacionamentos, Peter Klaren esclarece que o governo de Velasco diversificou suas relações internacionais efetuando pactos comerciais e de assistência (econômica e militar) com a União Soviética e os países da Europa Oriental, assim como o Japão e as nações da Europa Ocidental. Ademais, estabeleceu relações com a China (antes da visita do Presidente Nixon) e se negou a alinhar-se com os Estados Unidos em seu bloqueio a Cuba54.

A ação nacionalizante da economia, a aproximação dos países socialistas e o

anti-americanismo fizeram com que muitos membros da esquerda vissem no governo militar

um caminho para o estabelecimento de um socialismo de Estado. Além disso, apesar da

censura, perseguição política e repreensão autoritária comuns a todos os regimes de exceção,

os movimentos de esquerda não encontraram maiores resistências para a sua atuação política

nas universidades e junto às camadas populares urbanas55. Isso se confirmou com o

crescimento das organizações políticas de esquerda que conseguiram excelente votação nas

eleições da Assembléia Constituinte de 1978, como veremos mais adiante. O próprio Partido

Comunista Peruano (PCP) estreitou laços com o governo de Velasco e constituiu-se como

uma espécie de “partido do governo”56.

Da mesma forma, alguns intelectuais ligados a movimentos de esquerda dos

mais diversos tipos também aderiram ao GRFA. Héctor Bejár, sociólogo e importante líder

guerrilheiro da década de 1960, e o sociólogo Carlos Delgado, de afinidade aprista, foram

exemplos disso. Em sua grande maioria, os membros das guerrilhas do início da década de

1960 se alinharam ao GRFA, deixando a oposição esquerdista nas mãos da geração pós-68.

Esta opção dos “antigos guerrilheiros” ficou bastante clara no livro de Bejár, de 1973, 53 Alguns militares acharam essa medida arriscada, uma vez que os estados Unidos haviam se configurado como o principal parceiro militar do Peru ao longo de sua história republicana , além de ser o seu principal fornecedor de armamentos. 54 KLAREN, Peter. Nación y Sociedad... Op. Cit. nota 19, p. 417. 55 Não queremos dizer que o regime militar representou um espaço marcado pela liberdade de expressão, ao contrário, houve perseguições, principalmente a apristas, como Haya de La Torre e Luis Alberto Sánchez, e a AP, como Fernando Belaúnde. Porém, há uma nítida diferença de orientação política e estratégia de coerção entre o regime peruano e aqueles instaurados no Chile, no Brasil e na Argentina no mesmo período, por exemplo. Um exemplo claro disso foi o exílio de Darcy Ribeiro para o Peru durante o governo Velasquista. Darcy Ribeiro, perseguido pela ditadura no Brasil, chegou até mesmo a ocupar um cargo no GRFA. 56 Boa parte da esquerda peruana não aderiu ao governo de Velasco e, também, não o enxergou como um caminho para a revolução, entre ela a geração de 1968 de Flores Galindo.

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intitulado Las Guerrillas de 1965, ao afirmar que grande parte das propostas de lutas iniciadas

pelas guerrilhas de 1965 (MIR) estavam sendo colocadas em marcha pelo governo de

Velasco, “quando a IPC, um tipo de símbolo da prepotência estrangeira foi nacionalizada [...]

quando a Reforma agrária avança despejando o campo de latifundiários e criando novas

empresas associativas conduzidas por milhares de camponeses”57.

A reforma agrária mencionada por Bejár foi outro ponto marcante do GRFA.

Diferentemente das propostas encaminhadas pela junta militar de 1962 e pelo governo de

Belaúnde, durante o governo militar os resultados da Reforma Agrária foram expressivos.

Podemos dizer que entre 1969 e 1979 foram cerca de 8.328.322 hectares de terras doadas e

aproximadamente 9.065.772 hectares expropriados. Por conta da reforma, um número

próximo a 370 mil famílias, ou cerca de 2.000.000 de pessoas foram beneficiadas com a

doação de terras. Isso representou um quarto da população camponesa.

No entanto, uma das maiores críticas que se fez à reforma agrária realizada

pela GRFA foi o critério de escolha das famílias beneficiadas. Tratavam-se de famílias que já

se encontravam em condições melhores de vida e trabalho e que, de maneira direta ou

indireta, já trabalhavam com as terras recebidas. Dessa forma, os outros três quartos da

população que não tinham acesso à terra viram a chance de consegui-la escapar pelas mãos.

Essa população empobreceu ainda mais e provocou maiores fluxos de migração, além disso,

acabaram representando um ótimo público para os novos movimentos revolucionários

camponeses do final da década de 1970: como o MRTA (Movimiento Revolucionario Tupac

Amaru) e o Sendero Luminoso.

Para a parcela da população camponesa que recebeu as terras do governo, o

benefício não representou a solução de seus problemas econômicos. A falta de um espírito

empresarial, o crescimento da corrupção nas cooperativas e o controle dos preços da produção

por parte do governo fizeram com que suas dívidas crescessem mais do que a sua

produtividade.

Todavia, inegavelmente, a reforma agrária conseguiu estabelecer uma nova

feição para o campo e para as grandes propriedades da serra peruana. Talvez, o único objetivo

alcançado pelos militares entre as propostas apresentadas em seu início foi a desarticulação

política e econômica da oligarquia peruana. Porém, o problema da terra persistiu.

Como forma de celebrar a reforma agrária, o GRFA transformou o dia 24 de

junho, dia do índio, em dia do camponês. Aliás, o tema do andino foi outra preocupação do

57 BEJAR, Hector. As guerrillas de 1965: balances y perspectivas. Lima: Peisa, 1973, s/p.

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governo de Velasco. Não apenas o andino da serra, o camponês, mas, sobretudo, o andino

migrante que se encontrava na cidade. Os elementos vinculados com a temática andina

passaram a ser incorporados às estratégias do governo de criar um caráter nacional à sua

atuação. A esse respeito, Gabriela Pellegrino Soares escreveu que o passado indígena e sobretudo Inca ocupou um lugar central nessa construção, inspirando o próprio nome do plano de governo militar. Como Belaúnde Terry, os militares colocavam os Incas como precursores dos princípios comunitários e estatizantes que fundamentavam seu projeto, e o constante recurso a esse universo simbólico se expressou no GRFA através da oficialização do quéchua, da organização dos festivais Inkarrí e da exaltação de personagens históricos como Tupac Amaru. Mais uma vez o passado peruano era tomado como fonte de legitimação de um projeto político reformador58.

De outra maneira, os telejornais diários, tanto no rádio quanto na televisão,

foram obrigados a noticiar parte de sua programação no idioma quéchua. Além disso, o

quéchua foi incorporado como idioma oficial do Peru e obrigatório no ensino fundamental

junto com o castelhano. Essas ações visavam contemplar um sentido de unidade entre aqueles

que vinham do campo e os membros originários da comunidade urbana.

Outra maneira de contemplar os problemas do migrante e resolver o problema

do emprego nas cidades, principalmente em Lima, foi a adoção de uma nova legislação

trabalhista que previa uma “cooperativização” das empresas privadas. Conforme nos explica,

mais uma vez, Gabriela Pellegrino, em 1970 foi aprovada a “Ley Geral de Industrias” estabelecendo o papel de dirigente do Estado no desenvolvimento fabril e o seu controle sobre a indústria básica. O setor público conviveria com os setores privados e cooperativo, este último fruto da obrigatoriedade imposta pelo governo militar de que os trabalhadores tivessem 50% de participação nas ações, lucros e na direção das empresas. [...] A participação econômica e administrativa dos trabalhadores nas empresas seria organizada pela “comunidade industrial”, entidade criada com a função de promover a gradual transferência das ações (cerca de 15% por ano até alcançar 50% de seu capital)59.

Outra forma de atuar junto à população urbana encontrada pelo governo de

Velasco foi a criação do SINAMOS (Sistema Nacional de Apoyo a la Movilización Social)60.

A intenção do governo com a criação do SINAMOS era estimular a participação popular nas

tarefas exigidas para o desenvolvimento econômico. Na realidade, o governo estava

preocupado com a aceleração do crescimento da cidade de Lima e de suas barriadas. No 58 SOARES, Gabriela Pellegrino. Projetos Político... Op. Cit. nota 28, p. 125-126. A retomada do passado Inca como forma de legitimar projetos políticos contemporâneos ao longo da história do Peru compõe aquilo que Flores Galindo chamou de utopia andina e será intensamente explorado nos capítulos 3 e 4. 59 Ibid. 118-119. 60 Peter Klaren em obra outras vezes mencionadas aqui aponta para a existência de um duplo sentido na sigla SINAMOS. Além daquele oficial, também significaria SIN AMOS (sem amos ou sem patrões).

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início da década de 1970, cerca de quatro quintos da população das barriadas não havia

nascido em Lima. Essa preocupação resultou no próprio rebatismo das barriadas, que

passaram a serem chamadas de pueblos jóvenes, como tentativa de desprender-se do caráter

pejorativo que acompanhava o antigo termo.

De outra maneira, o SINAMOS era uma forma de suprir a ausência de um

partido político oficial do governo e a ausência de uma dinâmica partidária de participação

política. O SINAMOS propunha-se a realizar uma articulação política que fosse capaz de

vincular as camadas populares aos ideais do governo e a transformá-la em espécie de

militante da “causa revolucionária” velasquista. No entanto, diferentemente de suas

expectativas, a atuação do SINAMOS em muitos pueblos jóvenes representou um verdadeiro

fracasso. Apesar de rapidamente se converter na organização mais poderosa do governo

revolucionário, contando com uma estrutura burocrática enorme, o SINAMOS concorria com

as organizações católicas vinculadas à Teologia da Libertação e aos partidos de esquerda que

faziam trabalhos de conscientização política nas camadas populares, o chamado classismo.

A Teologia da Libertação, em particular, tem a sua origem remontada aos anos

1960, com a formação de comunidades eclesiais de base em setores do campo e nas barriadas

de Lima e com a celebração do Concílio Vaticano II, pelos papas João XXIII e Paulo VI, que

reafirmou o compromisso católico com a justiça social. No entanto, ela apareceu formalmente

organizada e proposta apenas na década de 1970, quando foi lançado o livro Teologia da

Libertação de Gustavo Gutierrez.

Gutierrez era um padre peruano que foi assessor da conferência do Conselho

Episcopal Latino Americano celebrado em Medellín em 1968. O livro, lançado três anos mais

tarde, foi significativo, pois ao enfatizar “que a missão de princípio da Igreja latino-americana

era a justiça social para com os pobres, veio a ser um tipo de declaração de independência da

Igreja com respeito a sua dependência histórica da Europa”61.

Não demorou para o grupo ligado à Teologia da Libertação apresentar-se como

uma área da Igreja que se opôs ao governo de Velasco, até mesmo publicando artigos em

jornais denunciando as ações do governo junto às barriadas. Com o controle da liberdade de

imprensa que veio nos anos seguintes, esses artigos sumiram da imprensa convencional.

O controle da liberdade de imprensa teve uma característica peculiar no

governo de Velasco. Além de cercear artigos e matérias jornalísticas, o governo militar

61 KLAREN, Peter. Nación y Sociedad… Op. Cit. nota 19, p. 427.

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estatizou as empresas jornalísticas e as redistribuiu para diferentes organizações da sociedade.

Assim, El Comércio, o mais antigo e ilustre dos diários, propriedade da família Miró Quesada, corresponderia aos camponeses. La Prensa, às comunidades de trabalhadores urbanos; Correo, ao setor educativo, etc. Toda a imprensa ficou submetida à revisão de um Escritório Nacional de Informações, que na prática atuava como em todas as partes: censurava o que não convinha ao regime. Para os mais avalentoados defensores do governo militar: havia sido “cortada a língua da burguesia”62.

A atuação do governo militar, de amplo caráter reformista como vimos até

agora, mexeu diretamente com os setores políticos e intelectuais da sociedade peruana. No

ambiente universitário as ações dos militares, em geral, não foram bem recebidas, tanto por

parte dos professores quanto por parte dos alunos. Para Eduardo Cáceres, o Governo de

Velasco Alvarado, sobretudo, assim como as demais transformações políticas e culturais

produzidas em âmbito global no final da década de 1960, foram fundamentais para a definição

do posicionamento político da geração de intelectuais que se formava nas universidades

naquela época, entre eles Alberto Flores Galindo. Em seus anos como universitário, o exercício da crítica começou a tomar forma: literatura, atitudes de vida e leituras. A época comovia: a guerra do Vietnã era a maior prova de que o Che seguia vivo; a revolução cultural chinesa proclamava o assalto ao céu, o maio francês a erupção da imaginação nos terrenos da política. Porém, foi frente ao velasquismo que a geração definiu a sua identidade: revolução socialista ou caricatura de revolução (obras completas)63.

Dessa forma, para a juventude universitária daquela época, Velasco se

constituía como uma “caricatura de revolução”. A verdadeira revolução estaria na

mobilização dos setores populares, junto às comunidades andinas e/ou setores da periferia

urbana, composta por 80% de migrantes andinos, como dissemos anteriormente, sindicatos,

grêmios e associação de bairros. De outra maneira, durante o governo de Velasco Alvarado,

muitos jovens universitários viram a construção de alguns alicerces que proporcionariam esta

verdadeira revolução. Além disso, o GRFA havia colocado em pauta vários temas ligados à

revolução, como a questão da reforma agrária e a expropriação do capital estrangeiro. Para

eles, o socialismo era uma questão de tempo, uma vez que estava a la vuelta de la esquina.

Assim, muitos jovens universitários, oriundos principalmente da Universidade

de Sán Marcos e da PUCP, partiram em direção ao campo como uma forma de se

“desaburguesar”, buscando um socialismo “mais puro” próximo aos movimentos camponeses.

62 CONTRERAS, Carlos e CUETO, Marcos. Historia del Perú… Op. Cit. nota 18, p. 339. 63 CÁCERES, Eduardo. Introducción... Op. Cit. nota 21, p. XIV.

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Oriundos da classe média ou da classe alta do país comemoravam a reforma agrária, mesmo

que essa atingisse os patrimônios de sua família. Maruja Martínez, importante membro da

geração de 1968 e amiga pessoal de Alberto Flores Galindo, narrou o seu sentimento frente à

reforma agrária em um livro de memórias intitulado Entre el amor y La Furia, Crónicas y

Testemonios: Ao chegar da universidade, encontrei minha mãe furiosa. A Reforma Agrária afetou Ichahuanca, nos disse. Não os bastou Challhua. Agora também Ichahuanca. Quase nunca vi minha mãe assim, impotente, com lágrimas de raiva em seus olhos. Dizem que porque tem mais de três mil hectares. (Meu irmão) Mingo e eu não dissemos uma só palavra. Apenas entramos no meu quarto, fechamos a porta e saltamos abraçados. Por fim! Agora nos sentimos mais livres, mais legítimos. Ainda que os famosos sítios fossem apenas recordações de infância, era uma carga muito pesada para nós que queríamos ser revolucionários64.

Assim, uma das características dessa geração foi unir a atividade intelectual à

causa da revolução. Na historiografia, por exemplo, o movimento da Nueva Historia Peruana

da década de 1970 teve fortes vínculos com os movimentos e partidos políticos de esquerda,

como veremos no próximo capítulo.

Em Flores Galindo isso aparece muito claro. Ainda em sua época como

estudante, tanto suas atividades junto ao MIR quanto na FRES o aproximaram dos sindicatos

pesqueiros do porto de Callao. De uma forma ou de outra, a aproximação aos sindicatos

renderam algumas interpretações a respeito da classe operária que comporiam o seu primeiro

livro.

Por conta disso, podemos dizer que o marxismo teórico e prático foi

apresentado a Flores Galindo em sua época como universitário. As primeiras leituras sobre

marxismo e autores marxistas, sobretudo aqueles que Perry Anderson chamou de quinta

geração65 de marxistas, ocorreram ainda na universidade. Claro que este período se constituiu,

portanto, como um momento de reformulação de idéias e reavaliação de concepções pessoais

de vida. O catolicismo cultivado em sua formação escolar básica e sua aproximação ao social

cristianismo deram espaço a uma visão mais crítica da sociedade e a uma atuação política

mais radical, o que demonstrou a sua adesão ao MIR.

Além disso, nessa quebra da visão existencialista cristã, predominante também

na Faculdade de Letras e Humanidades da PUCP, apareceu para Flores Galindo, de maneira

64 MARTÍNEZ, Maruja. Entre El Amor y La Furia, Crónicas y testimonios. Lima: SUR, 1997, p. 114. Maruja Martínez faleceu em 2000. Figura emblemática da geração de 1968, organizou os cinco primeiros volumes das Obras Completas de Alberto Flores Galindo e trabalhou na organização de seus textos póstumos. 65 De acordo com Perry Anderson em sua obra Considerações sobre o Marxismo Ocidental, os autores da quinta geração marxista seriam: Lukács, Coletti, Korsch, Althusser, Gramsci e Sartre.

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bastante forte, a influência do existencialismo de Jean-Paul Sartre. Para os autores e amigos

Eduardo Cáceres e Alberto Adriánzen, a influência de Sartre em sua concepção de vida e

atuação intelectual apareceu repetidas vezes em sua trajetória, até mesmo em sua carta de

despedida, Reencontremos La Dimensión Utópica de 1989. Para Cecília Rivera, antropóloga e

esposa do autor, a declaração de Flores Galindo sobre seu ateísmo possuía também relações

com sua adesão ao pensamento de Sartre66.

Quanto à atuação intelectual de Flores Galindo na época da universidade,

devemos destacar os seus anos de participação no Seminário de História do Instituto Riva

Agüero. Esses anos junto ao instituto permitiram que ele desenvolvesse um rigor profissional

e um trabalho de manuseamento de fontes documentais e arquivos históricos que apareceriam

ao longo de sua trajetória como historiador. Além disso, essa experiência acumulada

possibilitou seu ingresso como investigador no Arquivo Nacional e no Museu Nacional de

História no ano de 1969.

No ano seguinte, Flores Galindo juntou-se ao professor Heraclio Bonilla como

assistente no curso de História Social e História Econômica. Esta aproximação permitiu a

Flores Galindo participar da pesquisa realizada pelo IEP sobre El Minero en Los Andes. Desta

experiência surgiu o tema de sua tese de conclusão de curso. Como escreveu Eduardo

Cáceres, “a tese foi, pois, fruto de um duplo encontro: com Heraclio Bonilla e com o

proletariado mineiro”67.

O resultado desse trabalho foi apresentado em forma de monografia de

conclusão do bacharelado em 1971. A tese de Flores Galindo intitulada Los Mineros de Cerro

de Pasco, 1900-1930: un intento de caracterización social inseriu-se em uma discussão que

se fez bastante pertinente ao Peru daquele momento: o conceito de classe social. Discutia-se,

por exemplo, o caráter de classe do governo de Velasco e a existência de uma classe proletária

que fosse capaz de produzir uma revolução socialista.

No entanto, o trabalho de Flores Galindo junto aos sindicatos e aos

levantamentos do IEP apontavam para uma conclusão de que na prática a teoria era muito

mais complexa. A idéia de uma classe homogênea e de uma consciência de classe

propriamente proletária, que então se sugeria, não resistia à análise empírica. Após um grande

levantamento bibliográfico, arquivístico, estatístico e testemunhal que sustentam sua tese,

66 Esta consideração nos foi feita em entrevista realizada no dia 06 de julho de 2007 em seu escritório na Universidade Católica em Lima. 67 CÁCERES, Eduardo. Introducción... Op. Cit. nota 21, p. XVII.

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Flores Galindo se viu aproximado de uma interpretação feita por José Carlos Mariátegui68

sobre os mineiros ainda na década de 1920: “Os indígenas das minas, em boa parte,

continuam sendo camponeses, de modo que o aderente que os une, é um elemento da classe

camponesa”69.

De outra maneira, esta concepção menos monolítica de classe social

demonstrava, já no início da década de 1970, os ecos da história social inglesa que, a partir da

segunda metade do século 20, começou a revisar a aplicabilidade dos conceitos marxistas para

a história. Como nos aponta Carlos Aguirre, esta obra de Flores Galindo introduziu no Peru uma problemática que resultava tributária dos trabalhos do historiador inglês Edward Palmer Thompson, mas que também se nutria de outras fontes teóricas como Antonio Gramsci e Raymond Willians. [...] Implícita em sua perspectiva teórica estava também uma idéia que Thompson mesmo se encarregaria de enfatizar: classe é basicamente uma categoria relacional que se desenvolve necessariamente em relação a (e geralmente em conflito com) outros grupos sociais70.

Apesar das diferentes análises que os três autores mencionados fazem da

relação das classes com a cultura Flores Galindo, assim como eles, procurou compreender a

classe social como resultado da relação indissociável das condições econômicas com a

mentalidade e a cultura que agregam os homens. Assim, o conceito de classe estava mais além

do que as condições econômicas de posse ou não dos meios materiais de produção, como

propunha a literatura tradicional ou o comunismo ortodoxo.

Por isso, é possível lermos em sua tese a seguinte afirmação: Essas perguntas nos levam à análise das massas mineiras desde dentro. Não interessa, para isso, o que dizem de seus feitos os mineiros, que depois de tudo podem ser afirmações inspiradas, sugeridas ou inclusive feitas pelos mesmos comunistas. Interessa o que realmente fazem essas massas, a maneira específica como elas experimentam e vivem suas ações. Em outras palavras: o sentido que conferem aos seus atos71.

A tese analisada na banca de defesa por Heraclio Bonilla, Raul Zamalloa e

Franklin Pease, mereceu uma atenção destacada e, por isso, foi indicada para a publicação,

68 José Carlos Mariátegui foi um importante intelectual peruano socialista. Nasceu em Moquegua em 1894 e morreu em Lima em 1930. Entre suas várias obras, destaca-se Los Siete Ensayos de interpretación de la Realidad Peruana de 1927. 69 MARIÁTEGUI, José Carlos. Mariátegui Total. Tomo I. Lima: Empresa Editora Amauta, 1994, p. 194. Desde a época de universitário houve uma aproximação muito clara de Alberto Flores Galindo ao pensamento de Mariátegui. No capítulo 4 sustentaremos que houve da parte do primeiro uma tentativa de dar continuidade ao pensamento do segundo e, até mesmo, superá-lo. 70 AGUIRRE, Carlos. Aristocracia y Plebe. In: LÓPEZ JIMÉNEZ, Sinesio (dir). Homenaje a Alberto Flores Galindo: otro mundo es posible. Libros & Artes. Lima: Biblioteca Nacional del Perú, 2005, p. 27. 71 FLORES GALINDO, Alberto. Los Mineros de Cerro de Pasco: 1900-1930. In: FLORES GALINDO, Alberto. Obras Completas. Tomo I. Lima: SUR, 1993, p. 107-108.

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fato que se concretizou em 1974, quando a Universidade Católica transformou-a em livro. A

admiração de Heraclio Bonilla pelo trabalho defendido fez com que este incentivasse seu

aluno a continuar seus estudos na École Pratique des Hautes Études.

Por conta disso, Flores Galindo deixou o cargo de Chefe de Práticas do curso

de Ciências Sociais na PUCP e partiu para a realização dos estudos de doutoramento em

História na França. Tão logo chegou à Paris recebeu do Centre National de Recherche

Scientifique uma bolsa para realizar pesquisas no Arquivo de Indias de Sevilha, na Biblioteca

Nacional e no Arquivo Nacional de Madri.

Durante os seus dois anos na França, Flores Galindo se aproximou das

discussões historiográficas que se desenvolviam intensamente naquele momento. A década de

1970 para a historiografia mundial representou um momento de reflexão e de busca por novos

referenciais para o fazer história. Como reflexo da quebra de paradigmas caracterizados pelo

maio francês de 1968, a História - assim como todas as ciências sociais (para não dizer a

própria ciência) - sofreu reformulações em suas concepções.

De uma maneira geral, o conceito de cultura passou a permear as discussões

gerais das ciências sociais, tanto no pós-estruturalismo, quanto no pós-modernismo e nos

chamados Estudos Culturais. Os debates em torno do conceito de cultura ganharam destaque

no cenário acadêmico a partir de então, principalmente diante do que De Certeau chamou de

uma crise epistemológica, cujos fundamentos universalistas da “razão” e da “verdade”

apresentaram-se insuficientes para explicar a dinâmica e a complexidade das sociedades72.

A partir daí, a historiografia buscou um suporte e um diálogo maior com o

conceito de cultura. A História, para essa geração, também chamada de Nova História,

caracterizar-se-ia pelo culturalismo e por seu caráter etnográfico. Seria a história uma

antropologia histórica, ou ainda uma etno-história. De outra maneira, como afirma François

Dosse, pode-se ver também, nessa influência da etnologia no discurso histórico dos anos 70, a resposta ao maio de 1968, a vontade de exorcizar o risco, o acontecimento-ruptura que pode estar na origem dos descarrilamentos, mas também a recuperação dos temas de contestação da sociedade de consumo, que todos interrogam na mentalidade concreta de seu passado73.

Além disso, a fuga das grandes estruturas explicativas da história, da história

total, das grandes narrativas que se apresentavam presente na segunda geração dos Annales,

72 Cf. DE CERTEAU, Michel. A cultura no plural. 3. ed. Campinas: Papirus, 2003. 73 DOSSE, François. A história em Migalhas: do Annales à nova História. São Paulo/Campinas: Ensaio/Unicamp, 1992, p. 169.

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possibilitou o surgimento de novos objetos para história, muito mais vinculados ao particular

e ao cotidiano das sociedades e da cultura do que à sociedade e à cultura em si. É inegável a

influência dessas discussões e incertezas científico-historiográficas, que povoaram as

universidades francesas, no pensamento de Flores Galindo. Um bom exemplo dessa

preocupação historiográfica francesa que se refletiu em Flores Galindo foram as duas

antologias de textos organizadas e publicadas por ele, já em Lima, em 1975 com o título de La

historia como ciencia social.

Além disso, é irrefutável também a influência de seus professores da época em

suas obras. Entre eles, podemos destacar os renomados historiadores Fernand Braudel e os

marxistas Pierre Vilar e, principalmente, Ruggiero Romano74. Existem traços de uma longa

história, por exemplo, em sua obra Buscando Un Inca: identidad y utopia en los andes, de

1986, que trabalha com um recorte temporal de mais de quatro séculos em busca de

permanências na sociedade peruana.

Por conta disso, na apresentação feita no tomo I da antologia anteriormente

mencionada, Flores Galindo apresentou a seguinte crítica à tentativa de se estabelecer uma

nova história: [...] os críticos, em seus trabalhos de investigação, fizeram muitas vezes um simples deslocamento de conteúdos em favor de outros fenômenos sociais [...]. Tudo está bem, mas na estruturação interna dos textos na lógica da investigação, a metodologia continua sendo a mesma: descrição no lugar de análise [...]. A diferença fundamental deve estar dada pelo método e raciocínio75.

A estadia na França proporcionou também o seu encontro com outros

estudantes peruanos que estavam em Paris, como foi o caso de Manuel Burga. Além de

tornar-se um grande amigo, Burga seria também o parceiro de Flores Galindo em algumas

obras importantes como Apogeo y Crisis de La República Aristocratica, de 1979. Os

questionamentos trazidos pelas novas influências historiográficas em conjunto com a sua

militância política o levaram a conceber novos problemas para a história do Peru. Em Flores

Galindo, a reflexão e a necessidade de se estudar a história do Peru sempre estiveram

vinculadas a preocupações relativas ao presente do país. Assim, da necessidade de se realizar

74 Ruggiero Romano, autor de trabalhos sobre a história da América colonial, foi orientador de Flores Galindo em sua tese de doutorado. A partir de então, desenvolveu uma estreita amizade com Flores Galindo que resultou em visitas ao Peru para a participação em eventos científicos. Após a morte de seu orientando, Ruggiero Romano escreveu alguns textos em sua homenagem. 75 FLORES GALINDO, Alberto. Presentación al Tomo I de La Historia como Ciencia Social. In: FLORES GALINDO, Alberto. Obras Completas. Tomo IV. Lima: SUR, 1996, p. 342-343.

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a revolução no Peru, tema recorrente naquela época, nasceu a sua idéia de estudar, no

doutorado, o movimento revolucionário liderado por Tupac Amaru II.

Flores Galindo retornou ao Peru no final de 1973. No mesmo ano foi

contratado para ser professor na escola de Psicologia da Universidade Ricardo Palma. No

entanto, no ano seguinte foi chamado para trabalhar no departamento de Ciências Sociais da

Universidade Católica. O vínculo antigo com a universidade falou mais alto e a sua dedicação

à instituição permaneceu até o ano de sua morte.

A partir daí a carreira intelectual de Flores Galindo ganhou um novo

direcionamento. As suas participações em congressos, organização de revistas, publicação de

artigos, aparições em jornais tiveram um aumento considerável. Não apenas a sua

participação aumentou, como também o seu destaque. Já por esses anos, Flores Galindo

passou a ser reconhecido por seus interlocutores e companheiros de universidade como um

dos mais promissores historiadores de sua geração.

Este prestígio era algo que podia ser comprovado em seus artigos científicos,

resenhas e publicações em jornais. Dono de uma escrita envolvente que despertou o interesse

de literatos como Antonio Melis76, seu ritmo de produção também era algo que chamava

muito a atenção. Flores Galindo escrevia diversos artigos sobre temas diferentes e os

publicava ao mesmo tempo em diversas fontes de circulação77.

Os textos do autor não escapavam da polêmica, da crítica e da provocação a

outros autores. Nas apresentações do primeiro e segundo tomos da antologia La Historia

como Ciencia Social, é possível ler duras frases suas criticando a postura intelectual e política

dos historiadores peruanos que se propunham a estabelecer novas diretrizes para a história e

para a política em seu país. A crítica não se dirigia somente às gerações anteriores, mas antes,

e, sobretudo, aos seus interlocutores coetâneos. Mencionando a utilização de Gramsci para a

revisão dos métodos da história e atuação política, o autor atacava: E para compreender o político encontramos em Antonio Gramsci uma diversidade de conceitos (bloco histórico, hegemonia, consenso, ditadura, intelectuais, ideologia, etc.) que não somente valeria a pena senão que é imprescindível pensá-los a partir de nossa própria história, para entender nossa história política e para entender ou reorganizar esses mesmos conceitos. [...] Depois de tudo, o importante para um marxista não é Ler Gramsci e saber o que diz (o que não passa de uma atitude passiva) senão colocá-lo em prática;

76 Para Antonio Melis, “quando Flores Galindo empreende seu trabalho de investigador, se encontra não somente diante de modelos metodológicos, mas também frente a modelos estilísticos”. MELIS, Antonio. Apuntes sobre El Estilo. In: LÓPEZ JIMÉNEZ, Sinesio (dir). Homenaje a Alberto Flores Galindo: otro mundo es posible. Libros & Artes. Lima: Biblioteca Nacional del Perú, 2005, p. 12. 77 Entre livros, folhetos, artigos, ensaios, cartas e organização de apresentação de antologias de textos foram mais de 283 títulos produzidos.

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colocá-lo em prática em sua atividade política ou na realização de uma pesquisa, tão erudita ou profunda como seja necessária. Porém, no Peru, até agora temos muitos leitores e poucos “praticantes” da teoria gramsciana78.

Com essa frase o autor reafirma uma necessidade de sua geração: vincular

trabalho intelectual à ação política, ou seja, estabelecer a atuação orgânica do intelectual.

O tom polêmico79, uma das características marcantes de sua trajetória político-

intelectual, não se restringia somente aos artigos, apresentações de antologia, revistas e

folhetins, sendo recorrente em sua prática política, na atuação junto ao movimento operário e

camponês, nos cursos de formação política e nos seminários acadêmicos que ministrou. Aliás,

a opção pela atuação junto a grupos de formação política apartidários seria uma constante em

sua vida a partir de 1978, tanto na Pastoral Andina de Cuzco quanto na Casa SUR, como

veremos mais adiante.

Sobre o incremento na atuação político-intelectual de Flores Galindo, Eduardo

Cáceres escreve: “a produção intelectual de Alberto Flores Galindo a partir de 1975 não

apenas é impressionante por seu volume e a amplitude de temas e enfoques. O é, sobretudo,

por sua persistência: nela se respira não somente o ambiente do passado que se investiga e

reconstrói, também o ambiente do Perú hirviente de estos dias”80.

E o Peru fervilhante daqueles dias começava a entrar em nova fase de

mudanças justamente no ano de 1975. Depois de oito anos sob o comando de Velasco

Alvarado, o GRFA passava a ser dirigido por Francisco Morales-Beremúdez. Velasco passou

por um sério problema de saúde que o levou a amputar uma das pernas no ano anterior. A

falta de um sucessor preparado para assumir fez surgir uma discussão dentro das forças

armadas a respeito do caráter personalista que o regime militar peruano havia tomado.

Para solucionar esse problema, alguns militares como Rodríguez Figueroa e

Jorge Fernández Maldonado defendiam um aprofundamento do processo e uma guinada

radical à esquerda. Em contrapartida, outro grupo do Governo defendia a idéia de que os

militares deveriam “bater em retirada” para o quartel. Com a posse de Morales-Bermúdez,

prevaleceu esta segunda opção.

A situação do regime complicou-se ainda mais no ano de 1976, quando uma

profunda crise econômica atingiu o país. Por conta de pressões dos Estados Unidos e do

78 FLORES GALINDO, Alberto. Presentación al Tomo I... Op. Cit. nota 75, p. 343. 79 Em sua Carta Despedida Reencontremos La Dimensión Utopica, Flores Galindo escreveu que sempre concebeu na polêmica um movimento dialético de aproximação. Como afirmou: “discrepar es otra manera de aproximarnos” In: FLORES GALINDO, Alberto. Reencontremos La Dimensión... Op. Cit. nota 7, p. 390. 80 CÁCERES, Eduardo. Introducción... Op. Cit. nota 20, p. XX. O trecho em itálico é uma referência a uma frase de José Maria Arguedas retirada da obra Zorro de Arriba y Zorro de Abajo.

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Fundo Monetário Internacional (FMI), Morales-Bermúdez, que havia sido ministro da

Fazenda de Fernando Belaúnde e Velasco Alvarado, resolveu adotar um caminho de

tendências liberais, reduzindo o papel do Estado na economia e incrementando a economia de

mercado. Nesta época, as empresas públicas, que no seu início se mostraram mais rentáveis

do que as próprias empresas privadas das quais haviam surgido, tornaram-se modelos de

ineficiência e corrupção. Por isso essas medidas foram necessárias, uma vez que buscavam

tornar as empresas mais rentáveis e demonstravam uma maior austeridade pública, uma

maneira de atrair, assim, maiores investidores externos.

Assim, a retirada do Estado do papel de protagonista representou o

desmoronamento do castelo de cartas montado nos oito anos de Velasco. Morales chegou a

pedir aos trabalhadores que realizassem sacrifícios para compensar a falta dos subsídios e

financiamentos do Estado. Além disso, em 1976 anunciou um “pacote austeridade” com o

objetivo de tornar a economia peruana mais confiável. O pacote resultou em fracasso.

A nova tendência mais liberal também pôde ser vista na política. Depois de

anos de perseguição, os militares realizaram uma conciliação histórica com o partido Aprista,

transformando Haya de la Torre na principal figura da redemocratização do país. Aliás, a

abertura política dos militares à sociedade civil foi uma das características desse segundo

período do GRFA, não tão mais revolucionário assim. Alguns civis, por exemplo, assumiram

a pasta do Ministério da Economia e Finanças, como Luis Barúa Castañeda e Javier Silva

Ruete.

A crise econômica aprofundava-se e com ela o clamor pela volta da

democracia. Dessa maneira, em fevereiro de 1977, o governo anunciou o Plano Túpac Amaru

que, em conjunto com medidas conservadoras de economia, previa a convocação de uma

Assembléia Constituinte. Chegavam para as eleições alguns partidos tradicionais, como a

APRA, a AP e o PPC (Partido Popular Cristão), acompanhados de cerca de 20 partidos

políticos de orientação esquerdista radical que compunham uma parte da Nova Esquerda. A

APRA e o PPC abriram logo negociações com o GRFA para determinar as datas e os termos

das eleições. A AP e a nova esquerda ficaram de fora de qualquer negociação com os

militares.

No ano de 1978, a crise econômica atingiu novos números desastrosos.

Segundo Peter Klaren, Para 1977 e novamente em 1978, o PNB havia caído ao campo negativo, sentindo-se o seu impacto com maior força nas classes populares. O desemprego oficial subiu de 4.2 por cento em 1973, antes da recessão internacional induzida pelo embargo petrolífero, a 7 em 1978, e o subemprego

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chegou aos cinqüenta por cento. Ao mesmo tempo, segundo Mauceri [...] entre 1973 e 1979 os salários reais caíram à metade e o custo de vida quadruplicou81.

Os protestos e as greves aumentavam nas praças e a violência voltava às ruas, o

que acabou se refletindo nas eleições de junho para a formação da Constituinte . A

insatisfação com os caminhos da política preparou uma surpresa para o pleito eleitoral. A

APRA atingiu 35% dos votos. A AP recusou-se a participar das eleições, estratégia de

Belaúnde que lhe traria bons frutos futuramente. O maior beneficiado da abstenção da AP foi

o PPC, que conseguiu atingir 24% do eleitorado. Já os partidos da nova esquerda,

aproximadamente 20 partidos realinhados em seis novos, atingiram a excelente marca de

36%82.

A maioria das cadeiras conquistadas pelo partido aprista garantiu a presidência

da assembléia constituinte a Haya de La Torre, fato que já tinha sido negociado com as

lideranças militares antes mesmo da realização das eleições. No entanto, a maioria do

eleitorado alinhado com as propostas dos partidos que compunham a nova esquerda a

credenciou como uma força para as eleições de 1980.

Neste sentindo, é importante lembrar que os anos de 1976 e 1979 foram

marcados pela intensificação da produção acadêmico-política de Flores Galindo. Da parte

acadêmica podemos destacar a participação em congressos e o desenvolvimento de projetos

financiados por instituições privadas como a Fundação Ford. Na parte da política, destaca-se a

reafirmação de sua opção pelo caminho não partidário de atuação. Depois de curtas passagens

pelo MIR e pela VR, decidiu ser militante do socialismo. Sua atuação política passou a se

concentrar em cursos e assembléias de formação política junto a sindicatos e comunidades de

base católicas83 e artigos publicados em revistas como Vaca Sagrada, Allpanchis Phuturinga

vinculada à (Pastoral Andina de Cuzco), Diário Marka, Caballo Rojo e Amauta. O número de

aparições de seus artigos em revistas e jornais de grande saída editorial acompanham o

amadurecimento de sua trajetória intelectual. Assim, os antigos folhetos mimeografados e a

publicação em revistas de artigo científico, vão ganhando, paulatinamente, a companhia de

suas publicações dirigidas ao grande público.

81 KLAREN, Peter. Nación y Sociedad... Op. Cit. nota 19, p. 439. 82 Entre os partidos da Nova Esquerda, destaque para Hugo Blanco, o mais votado entre eles, que atraiu os votos do Partido Comunista Peruano e contava com o Principal Sindicato, a CGTP (Central Geral dos Trabalhadores do Peru); a UDP (União Democrática Popular) que trouxe os votos da VR; e Javier Diez Canseco do PUM (Partido Mariateguista Unificado). Em pouco menos de 20 anos , de 1961 à 1978, a esquerda passou de 3,2% das intenções do eleitorado para 36%. 83 A convite da Pastoral Andina de Cuzco, coordenou a revista Allpanchis Phuturinga, além de uma série de cursos de formação política entre 1978 e 1983.

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Em uma dessas publicações, a eleição de 1978 recebeu também uma atenção

especial de Flores Galindo. Sobre o avanço da esquerda, neste mesmo ano, escreveu na

Revista Amauta: “Nas duas greves nacionais, a esquerda havia mostrado sua presença nos

sindicatos. O 18 de junho mostrou que também pode congregar uma importante força

eleitoral. [...] No lapso de quinze anos, a esquerda passou de um minúsculo 6% aos 30%”.

Mais adiante, referindo-se a Hugo Blanco - que se converteu em personagem principal da

nova esquerda - e seus eleitores esclarece: Homens assim podem participar de revoltas, não necessariamente de revoluções. O calor tem que converter em força consciente, e de esse passo da espontaneidade à consciência, do sentimento à organização, depende que a esquerda possa manter e aumentar seu caudal eleitoral ou melhor dito, que a esquerda se converta em uma real alternativa para as massas, que passe a formar parte integrante e indissociável da história deste país. [...] A esquerda atuou em um cenário para o qual não estava preparada, o cenário eleitoral; o fez superando muitos obstáculos, o principal dos quais foi sua própria fragmentação, porém não obstante isso, os dividendos que obteve não poderiam ser melhores84.

Dessa maneira, em 1979, a potencialidade de uma vitória da esquerda unida

nas eleições, que seriam realizadas em 1980, levou Flores Galindo a organizar um trabalho de

intervenção intelectual que procurava discutir as orientações e os caminhos para a esquerda

peruana, independente do resultado das eleições de abril de 1980. Na realidade, essa

necessidade já havia sido detectada um ano antes, ainda em 1978, quando ele participou em

um Congresso de Sociologia em Ayacucho.

Naquela oportunidade, Flores Galindo percebeu que o que unia os intelectuais

e os políticos de esquerda em seu país, era o mesmo elemento que era capaz de representar

suas diferenças quase que inconciliáveis: o mariateguismo. Assim como nas ciências sociais,

Mariátegui era uma referência presente em todos os partidos da nova esquerda.

No entanto, para Flores Galindo, apesar de Mariátegui aparecer como um

símbolo muito forte daquelas organizações políticas, isto não representava uma uniformidade,

pois todos os partidos possuíam uma leitura diversa a respeito do socialista. De certa forma,

Mariátegui era uma espécie de megafone para se difundir ideologias próprias de cada partido.

Essa percepção dos múltiplos Mariáteguis foi novamente comprovada em um Colóquio

intitulado Mariátegui y la revolución Latinoamericana, organizado pela Universidade de

84 FLORES GALINDO, Alberto. El voto por Blanco. In: ________. Obras Completas. Tomo V. Lima: SUR, 1997, p. 91-92. Publicado originalmente em: Revista Amauta, nº 179, 30 de junho1978, p. 7.

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Sinaloa no México em abril de 1980. De lá voltou com a seguinte sentença: “de tal maneira,

foram aparecendo quase tantos ‘Mariáteguis’ quanto intérpretes de seu pensamento”85.

Na concepção do autor, Mariátegui era sim um caminho para o socialismo no

Peru; mas qual Mariátegui? Por conta disso, naquele momento no qual a esquerda aparecia

como uma opção real, em que era preciso criar um projeto coletivo para transformá-la de

“espontaneidade em consciência”, Flores Galindo retomou os dilemas enfrentados por José

Carlos Mariátegui no final da década de 1920, na tentativa de criar um socialismo tipicamente

peruano.

Esta foi a temática de seu livro La Agonía de Mariátegui: La polémica con La

Komintern86 escrito em seis meses e lançado em novembro de 1980. Seria La Agonía de

Mariátegui uma forma de se refletir sobre a atuação da esquerda peruana, de se estabelecer

um único discurso para a atuação política, de se encontrar em Mariátegui um método para se

estabelecer um projeto coletivo para o socialismo. Pensar o martiateguismo como “tarefa

coletiva”, como aparece em um dos títulos de capítulo. Isso fica evidente quando o autor

afirma, na apresentação de seu livro que, “A morte [de Mariátegui] interrompe um debate que

recém iniciava. [...] No inacabado e no polêmico existe também sua atração contemporânea e

seu desafio para o desenvolvimento de um marxismo peruano”87.

Nesse sentido, era preciso retomar o debate iniciado por Mariátegui. Não se

tratava de construir uma nova imagem do socialista, mas sim, aceitar o desafio deixado em

aberto por ele: fazer um socialismo “sin calco ni cópia”.

De qualquer maneira, entre os resultados da Constituinte de 1978 e a eleição de

1980, ocorreram alguns fatos relevantes que merecem nossa atenção. Em 1979, durante o

período de organização da Assembléia Constituinte, Haya de La Torre, virtual futuro

presidente da República, faleceu. Vítima de um câncer, Haya não pôde completar aquilo que

perseguiu por mais de cinqüenta anos. Tinha tudo para ser a sua chegada ao poder. Dessa vez

85 FLORES GALINDO, Alberto. Usos y abusos de Mariátegui. In: ________. Obras Completas. Tomo V. Lima: SUR, 1997, p. 137. Publicado originalmente em: Revista Amauta, nº 253, 30 de Abril de 1980, p. 8. 86 Além da obra de 1980, essa preocupação é recorrente nos textos e artigos de Flores Galindo desde 1978. Dos aproximadamente 22 artigos produzidos em diferentes revistas entre 1978 e 1980, 10 possuíram Mariátegui como título e os outros 12, com uma ou outra exceção, abrem seu texto fazendo referência a Mariátegui. A apresentação da Revista Allpanchis nº 13 de 1980 é um exemplo disso. O texto inicia-se assim: “Região e regionalismo foi um tema discutido com intensidade no Peru durante a década de 1920. José Carlos Mariátegui dedicou um ensaio ao tema para buscar delimitar as raízes e o impacto dos fenômenos regionais”. A adesão a Mariátegui como um método de análise do Peru, presente desde a sua tese de conclusão de curso, fazia-se agora muito mais notável. 87 FLORES GALINDO, Alberto. La agonía de Mariátegui. La polémica con la Komitern. Lima: DESCO, 1980, p. 114.

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não existia mais a oligarquia e os militares o apoiavam. Em seu lugar, conduziu a assembléia

constituinte o segundo principal nome do APRA: Luis Alberto Sánchez88.

A morte de Haya de La Torre deixou as eleições com as possibilidades em

aberto. No lugar de Haya de La Torre concorreu Armando Villanueva. Fernando Belaúnde

Terry representou a AP e Luis Bedoya Reyes o PPC. Já a nova esquerda, seguindo com suas

diferenças inconciliáveis, não chegou a um nome comum e concorreu com cinco chapas

diferentes, com destaque para Hugo Blanco.

O resultado das eleições de abril de 1980, a primeira a contar com o voto de

analfabetos89, não deixou de ser desconcertante. Apesar do prestígio do aprismo, a morte de

Haya e o sectarismo representado por Villanueva garantiram apenas 28% dos votos. Com a

volta da AP ao pleito eleitoral, os votos para o PPC caíram para 11%. A nova esquerda ficou

com apenas 14% dos votos. Já Fernando Belaúnde da AP arrebatou 45% do eleitorado.

O resultado foi desconcertante porque, de certa forma, retornou ao poder

aquele que foi retirado à força pelo militares doze anos antes. Como se os doze anos tivessem

sido apagados. Belaúnde adotou uma postura paternal e conciliadora, valendo-se do estigma

de ter sido uma vítima do militarismo para vencer.

1.3 – Senderismo, Esquerda Unida, liberalismo e utopia nos anos 1980

Os 12 anos que separaram Belaúde de seu último dia de governo ao primeiro

de seu segundo mandato proporcionaram o surgimento de um novo Peru, mas com velhos

problemas. Os oito anos de governo Velasco Alvarado apenas mascararam os problemas do

campo e da cidade. Com a crise do petróleo de meados de 1970, o Estado viu-se obrigado a

retirar os subsídios que mantinham certa estabilidade econômica. A partir de 1975, portanto,

os problemas relacionados à explosão demográfica voltaram à tona. Porém, com alguns

agravantes.

Em 1980, a população peruana já era predominantemente urbana, 57% contra

os 39% da década de 1960. A maioria dos peruanos era jovem e a relação homem/mulher era

equilibrada. Durante a década de 1970, a aceleração do crescimento populacional peruano não

diminuiu o ritmo. Foram cerca de 4 milhões de novos habitantes por década, desde 1950.

Lima não fugiu à regra e manteve a média aproximada de 1,3 milhões de novos limenhos por

década. Dessa forma, o Peru, que contava com uma população de 13.538.208 de pessoas no 88 Sobre maiores informações sobre a trajetória política e intelectual de Luis Alberto Sánchez, ver: PINHEIRO, Marcos Sorrilha. Um Continente Possível: o latino-americanismo no pensamento de Luis Alberto Sánchez. Dissertação de Mestrado. Franca: Unesp, 2004. 89 Em 1980 o número de analfabetos no Peru era de 20%.

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início da década de 1970, chegou ao número de 17.005.210 no início dos anos 1980. Já Lima

saiu dos 3.472.564 para 4.745.877 de pessoas no mesmo período.

O primeiro indício de que os problemas da explosão demográfica (a migração

serra-costa e a posse de terras no campo) não haviam sido resolvidos pela atuação militar veio

ainda durante as eleições presidenciais. Durante as votações no pequeno povoado de Chuschi,

localizado ao norte de Ayacucho na região Sul dos Andes, um grupo armado invadiu um

colégio eleitoral e ateou fogo nas urnas de votação. Meses depois, os limenhos seriam

surpreendidos ao acordarem com um macabro espetáculo de cães mortos pendurados em

postes de energia com os seguintes dizeres: morte aos revisionistas. Tratavam-se das

primeiras ações do Sendero Luminoso.

O Sendero Luminoso era um partido político de extrema esquerda que surgiu

na região sul dos Andes peruanos, mais precisamente na cidade de Ayacucho. Esta cidade era

conhecida pela Universidade Nacional de Sán Cristóbal de Huamanga, fundada em 1677. No

passado, Ayacucho havia sido um importante ponto administrativo espanhol reunindo a

presença de comerciantes e fazendeiros que movimentavam substancialmente a economia

local. Na década de 1960, a reabertura da universidade, fechada desde a Guerra do Pacífico no

final do século XIX, representou o surgimento de uma verdadeira indústria: a indústria da

Educação90. Diferente dos tempos coloniais, a única fonte de riqueza da cidade era a

universidade.

A reabertura da universidade se deu no contexto do boom universitário das

décadas de 1950 e 1970. O seu público era composto por membros da classe média, bem

como por pessoas oriundas da região e com um passado rural de pobreza. Entre os professores

contratados pela Universidade de Huamanga chegou, em 1962, para lecionar filosofia um

professor especialista em Kant, Abimael Guzmán.

Nesta época, Guzmán já era um marxista convicto e se utilizava da

universidade para recrutar alunos para o comunismo. Dois anos mais tarde, filiou-se ao PC

Bandera Roja. Neste mesmo ano, financiado pelo governo Chinês, foi conhecer a China que

vivia ainda o clima da Revolução Cultural. Ao regressar em 1967, ano em que o último foco

guerrilheiro do MIR foi contido, teceu duras críticas aos movimentos de cunho foquistas e à

Revolução Cubana, que, segundo ele, representava um grupo militar formado por pequenos

burgueses.

90 Dos 70 mil habitantes da cidade, 10 mil eram estudantes.

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60

Em 1968, foi expulso do Bandera Roja por discordar de idéias levantadas

sobre um possível apoio ao governo de Velasco Alvarado. Dezoito meses depois, fundou o

Partido Comunista del Perú en el Sendero Luminoso de José Carlos Mariátegui91, ou

simplesmente Sendero Luminoso, optando pela via armada de revolução. Durante a década de

1970, Abimael Guzmán trabalhou na formação de seu partido.

Na universidade recrutou alunos para a ação junto aos camponeses. A sua

habilidade para convencer jovens a participar do Sendero Luminoso lhe rendeu o apelido de

Dr. Xampu, uma vez que, segundo diziam, lavava as cabeças e os cérebros de seus alunos. No

entanto, a partir de 1975, com a crise econômica e com o empobrecimento dos camponeses

excluídos pela reforma agrária, o seu movimento ganhou ainda mais corpo. Nem o descenso

de Mao Tsé-Tung e o revisionismo de Deng Xiao Ping, abalaram sua convicção no maoísmo.

Para seus militantes, o Sendero era a quarta espada do comunismo internacional formada por

Marx, Lênin, Mao e, agora, Abimael.

Na realidade, tratava-se de um maoísmo concebido a partir das especificidades

peruanas. Seria o senderismo, ou o pensamento de Gonzalo, codinome adotado por Abimael

Guzmán, uma evolução das outras três linhas de pensamento marxista. Segundo Carlos Iván

Degregori, “de alguma maneira, o ‘pensamento Gonzalo’ é, pois, com efeito, uma das

possíveis evoluções do marxismo-leninismo e do maoísmo: seu endurecimento ideológico

absoluto e sua conversão ao fundamentalismo”92. Dessa forma, caberia a ele adaptar para o

Peru as estratégias adotadas por Mao na China, um país que, assim como o Peru, era

predominantemente formado por camponeses. Da mesma forma que na China, dominar-se-ia

primeiro as pequenas cidades, para depois atacar os grandes centros. Como explica Peter

Klaren, Sendero buscava “liberar” gradualmente territórios e povoados do controle tênue e cada vez mais ineficaz do estado peruano. Com o tempo esta estratégia prepararia o caminho para a repetição da estratégia de Mao de cercar e eventualmente conquistar as cidades mais importantes, e até mesmo o Estado93.

Justamente por isso, as primeiras ações do Sendero em Lima serviram apenas

como aviso ao Estado de que uma mudança vinda do campo estava em marcha. Entre 1980 e

91 Em tradução livre: Partido Comunista do Peru no Caminho Iluminado de José Carlos Mariátegui. Mariátegui foi uma referência tanto para o governo de Velasco Alvarado, de cunho reformista, quanto para o Sendero Luminoso de orientação radical. De uma ponta a outra da esquerda peruana, o socialista da década de 1920 foi tido como referência. Essa ampla difusão fez com que o mariateguismo se convertesse em um elemento essencial da cultura política da esquerda peruana, como veremos no capítulo 2. 92 DEGREGORI, Carlos Iván. Ayacucho 1969-1979: El surgimiento del Sendero Luminoso. Lima: IEP, 1990, p. 203. 93 KLAREN, Peter. Nación y Sociedad... Op. Cit. nota 19, p. 449.

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61

1984, as ações do Sendero Luminoso restringiram-se à região serrana. Os ataques mais fortes

à Lima só ocorreriam em meados da década de 1980, no final do governo de Belaúnde e

início da gestão Alan García.

O outro indício de que as reformas velasquistas haviam falhado foram os

números do desemprego e do sub-emprego em Lima. A ineficiência do Estado e o excesso de

burocracia criado pelo modelo nacional-desenvolvimentista jogaram mais de 50% dos

trabalhadores limenhos para a economia informal. Boa parte dessa parcela era formada por

mestiços e indígenas que sofreram com o final da política de subsídios do Estado.

Esses eram alguns desafios que marcariam a segunda passagem de Belaúnde

pela presidência da República. A primeira medida de Belaúnde no poder foi de cunho

político: restituiu os jornais aos antigos donos e garantiu a liberdade de imprensa. Em seguida,

convocou eleições municipais. Para conter a crise econômica e tentar superar o dilema do

desemprego, retomou tendências liberais de economia e estabeleceu novas leis de mineração e

de extração de petróleo, atraindo novos recursos estrangeiros. Contudo, essas medidas eram

demasiado insuficientes para reverter o estado de calamidade social e absorver a economia

informal que tomava conta da cidade de Lima.

Apesar de possuir maioria no Congresso, graças a uma aliança entre AP/PPC,

as tentativas de retirar o país da crise esbarraram em outros fatores como a agonizante dívida externa, a descapitalização e a crise da produção agrária, o peso das instituições e a burocracia pública, a falta de instituições civis no Estado, e a aparição, ao começo subestimada pelo governo, das ações terroristas do Sendero Luminoso (SL) e o Movimento Revolucionário Túpac Amaru (MRTA), que apareceram à luz pública em 1980 e 1984 respectivamente94.

A crise da produção agrária era algo que vinha se arrastando desde o segundo

período do regime militar. Mesmo com a Reforma Agrária que teoricamente deveria garantir

o aumento da produção de alimentos, a produção alimentícia não conseguiu acompanhar o

crescimento populacional. O clima de convulsão social tomou definitivamente as ruas, os

campos e as interpretações das ciências sociais sobre o quadro social, político e econômico do

país.

Uma das obras que melhor definiu os quatro primeiros anos de Belaúnde,

marcado por convulsões na cidade e no campo, foi, sem dúvida, Desborde Popular y Crisis

del Estado: el nuevo rostro del Perú en la Década de 1980, de José Matos Mar. O próprio

94 CONTRERAS, Carlos; CUETO, Marcos. História del Perú... Op. Cit. nota 18, p. 349-350.

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62

título já sugere a condição da sociedade peruana daquela década. Conforme escreveu o

próprio autor As transformações sofridas pelo Peru desde a década de 1950, repercutiram recentemente de forma poderosa sobre o balanço e o equilíbrio das relações entre o mundo da oficialidade e o das maiorias, abrindo vias a um novo estilo de revolução. [...] O Peru contemporâneo já não se apresenta como um arquipélago territorial de enclaves urbanos da oficialidade, mais ou menos isolados em um imenso hinterland de marginalidade rural. Lima já não é exclusivamente a capital reduto do criollo e o mestiço monopolizando o poder e a identidade95.

Esse excerto deixa bastante transparente a interpretação do autor no que tange à

existência de um novo Peru que extrapolou a imagem oficial que se fazia dele. O novo Peru

não era mais a dualidade entre a serra tradicional e a costa moderna. A nova Lima não era

mais o espaço da aristocracia, mas sim o lugar da convergência peruana, de um Peru real

formado pelos constantes anos de migração, pelo andino que vivia na cidade, mas que não

conseguia se incorporar formalmente a ela.

Na mesma época, existiram outras tantas obras que discutiram o tema, como,

por exemplo, as reedições e os novos livros de Anibal Quijano, que voltaram a trabalhar a

questão da figura do cholo na sociedade peruana, como Dominación y cultura. Lo cholo y el

conflicto cultural en el Perú, de 1980.

Quanto a Flores Galindo, além de Agoína de Mariátegui, que apareceu em

1980, em 1979, foi lançado o livro Apogeo y Crisis de La República Aristocrática:

oligarquia, aprismo y comunismo en el Perú, 1885-1932, escrito em conjunto com Manuel

Burga. Em 1984, publicou o livro Aristocracia y Plebe: Lima 1760-1830 (estructura de clase

y sociedad colonial). Essas duas obras se inserem no contexto de convulsões sociais pelo qual

passava o Peru no final da década de 1970 e início de 1980 e, de certa forma, foram

construídas como uma maneira de refletir sobre o presente. Essa perspectiva é confirmada

pelos próprios autores na apresentação da obra Apogeo y Crisis:

A leitura do passado não pode ser alheia aos conflitos e tensões do presente. [...] o aprismo disciplinado e em aparência ainda monolítica, frente à esquerda que em meio a uma grande heterogeneidade reconhece uma comum inspiração nas concepções de Mariátegui. Parece tratar-se de um prolongamento da polêmica que em 1928 confrontou a Victor Raúl Haya de La Torre e José Carlos Mariátegui96.

95 MATOS MAR, José. Desborde Popular y Crisis del Estado: el nuevo rostro del Perú en La década de 1980. Lima: Concytec, 1988, p. 102-103. 96 BURGA, Manuel & FLORES GALINDO, Alberto. Apogeo y Crisis de La República Aristocrática. In: FLORES GALINDO, Alberto. Obras Completas. Tomo II. Lima: SUR, 1994, p. 17. Lembremos que na data de

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63

Este livro rapidamente chegou a três edições e tornou-se uma referência para os

estudos da história e da política no Peru em toda a América Latina. Nele, os autores

apresentavam o cenário da virada do século XIX para o século XX, o qual possibilitou a

formação das primeiras ondas camponesas na década de 1920. Tais ondas inspiraram o

surgimento de movimentos indigenistas na sociedade e na intelectualidade peruana e limenha.

Dessas concepções sobre o papel do indígena nos processos políticos peruanos resultou o

cisma na juventude política peruana, representada por Haya e Mariátegui.

Além disso, os autores discutem o final dos onze anos de Leguía, que procurou

empreender reformas modernizadoras no Peru e que resultou na alteração do cenário

camponês. De certa maneira, na ótica dos autores, Leguía, ao empregar um projeto de

modernização do Peru teria atacado o poder oligárquico e provocado uma série de

transformações no campo que, em proporções bem menores, se assemelhavam as

transformações vindas na década de 1950, como as migrações. Por isso, abordam a chegada

das primeiras levas de camponeses à cidade na década de 1920, que teriam representado o

primeiro contato mais efetivo entre Serra e Costa e apresentado aos intelectuais de Lima a

figura do andino.

Para Flores Galindo e Manuel Burga, essas eram discussões que ainda estavam

abertas no final da década de 1970, uma vez que os problemas da terra e do campo

nitidamente não estavam resolvidos naquele momento. Além disso, foi uma forma de refletir

sobre o embate, entre a APRA e a Nova Esquerda, que estava previsto para as eleições de

1980. Assim como no passado, o aprismo representaria o conservadorismo e a Nova

Esquerda, que se dizia herdeira dos ideais do mariateguismo, por sua vez, representaria

Mariátegui e, conseqüentemente, os ideais socialistas.

Para Eduardo Cáceres, a leitura da obra Apogeo y Crisis tem muito a dizer

sobre o tempo presente. Como afirma o autor, Se cada texto tem uma história íntima e outra social, corresponde a Manuel Burga detalhar a primeira em relação a este livro. Enquanto a sua história social basta recordar que foi escrito no contexto de uma crise acompanhada de convulsão social e política que a muitos recordava os anos trinta97.

confecção desta obra, Haya ainda era vivo e o embate eleitoral entre APRA e a nova esquerda estava prestes a acontecer. 97 CARCERES, Eduardo. Introducción... Op. Cit. nota 21, p. XXIII. A referencia que Cáceres faz a Burga, diz respeito à uma passagem de um de seus livros onde ele narra os momentos que cercaram a preparação de Apogeo y Crisis: o encontro entre as linhas de pesquisas dos dois autores e algumas aflições que compartilhavam sobre o Peru contemporâneo e que, de certa forma, serviram de motivação para a confecção do livro. Ver: BURGA, Manuel. La Historia y los historiadores en el Perú. Lima: UNMSM, 2005, p. 117.

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Já a obra Aristocracia y Plebe, de 1984, foi o resultado da publicação de sua

tese de doutorado defendida em 1982 na École Pratique des Hautes Études. O tema inicial da

pesquisa, como mencionado anteriormente, seriam as rebeliões lideradas por Túpac Amaru II.

No entanto, ao longo dos anos foi alterado. Das pesquisas sobre Túpac Amaru II iniciadas

naquela época apareceram alguns ensaios e algumas exposições orais em congressos, entre

1974 e 1976, organizadas, posteriormente em um livreto em 1976. Em seu lugar figurou uma

pesquisa a respeito da cidade de Lima no período de independência.

Se Apogeo y Crisis reflete o problema da terra, da modernização que interfere

na vida no campo, Aristocracia y Plebe procurava compreender Lima e os vários estratos

sociais que a compunham na passagem dos séculos XVIII e XIX, no desmonte da sociedade

colonial e início da República. Porém, da mesma forma que em Apogeo y Crisis, a reflexão se

faz pertinente tanto no passado quanto no presente, melhor dizendo, colocando a história em

prol de compreender os problemas do presente. Por isso, concordamos mais uma vez com

Cáceres, quando este afirma A desmontagem que ali se faz da Lima colonial bem poderia inspirar um trabalho sobre a Lima contemporânea. [...] É muito difícil ler o último capítulo deste livro sobre Lima a inícios do século XIX sem pensar no Peru contemporâneo. Descontento visível, classe dominante em decadência, heterogeneidade e fissuras na plebe urbana98.

É interessante notarmos, por exemplo, que o assunto que abre a primeira

página do livro é justamente o do crescimento urbano de Lima em meados do século XVIII.

Para entender a formação, a organização e a articulação social dessa cidade, Flores Galindo

procurou analisá-la por meio de suas classes e grupos sociais, o que, segundo ele, “nos levará

dos meios urbanos à paisagem agrária e em ocasiões teremos que nos distanciarmos dos

limites regionais, para seguir certas trajetórias coletivas ou individuais”99. Mais uma vez,

assim como em seu primeiro livro, a noção de classe social possui aspectos de coletividade,

mas também valoriza as individualidades. Não diferente daquele primeiro trabalho, o autor

recorre a E. P. Thompson para apresentar a sua compreensão de classe social como uma

realidade temporal “definida pelos homens ao viver sua própria história”.

Dessa forma, a cidade de Lima construída em Aristocracia y Plebe é carregada

de violências físicas e simbólicas, bem como de ódios declarados entre os elementos étnicos

heterogêneos de sua sociedade. Parece um país sem alternativa, sem chances de encontrar um

98 Ibid. XXV. 99 FLORES GALINDO, Alberto. Aristocracia y Plebe. Lima, 1760 – 1830. Lima: Mosca Azul Editores, 1984, p. 17.

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elemento identitário comum. Onde encontrar um caminho para superar esse quadro? Talvez

tenha sido esta a questão que fez Flores Galindo debruçar-se sobre o tema que marcaria as

suas principais obras a partir de então: a Utopia Andina. Falaremos disso mais adiante nos

capítulos três e quatro.

Voltando ao século XX, aquela Lima convulsionada da década de 1980, do

governo Belaúnde, caminhava para o agravamento de seus problemas socioeconômicos. No

ano de 1983, o aparecimento do “Fenômeno El Niño” provocou um período de seca que

ocasionou danos irreparáveis para a produção agrícola e para a infra-estrutura de irrigação.

Além disso, a ausência dos latifundiários deixou a sociedade rural sem referenciais de

liderança capazes de reativar a produção.

Por conta disso, o cenário do início da década de 1980 foi extremamente

favorável para que os partidos políticos de esquerda ganhassem mais força entre os

movimentos populares, tanto nos bairros de periferia quanto nos sindicatos e grêmios de

migrantes. Isso ficou bastante claro nas eleições municipais de 1983. Tanto a APRA quanto a

nova esquerda conseguiram resultados formidáveis.

A APRA já estava sob a liderança de Alan Garcia Perez, que tinha sido

secretário pessoal de Haya de La Torre e apareceu no cenário nacional durante os últimos

anos de vida do líder histórico. O jovem político trazia ao partido um discurso mais

reformista, diferente daquilo que se apresentou no final da década de 1970. Além disso, a

tradicional influência do aprismo junto aos sindicatos rapidamente permitiu a recuperação

ocorrida em relação à votação obtida nas eleições presidenciais anteriores.

A Esquerda Unida, por sua vez, reavaliando os erros cometidos na mesma

eleição, resolveu se unir para concorrer aos pleitos municipais. Formou-se, assim, a IU

(Izquierda Unida), uma frente que aglomerava todos os partidos da esquerda que aderiram ao

processo democrático eleitoral. O nome em torno de quem a esquerda se uniu foi o do

advogado Alfonso Barrantes Língan. Assim como o partido aprista, a estratégia da IU foi a

atuação junto aos pueblos jóvenes e aos sindicatos, organizando greves e manifestações contra

a perda do poder de compra e os altos números do desemprego.

O desprestígio de Fernando Belaúnde e a grave crise econômica aliadas ao

trabalho de conscientização política dos partidos de oposição não poderia resultar em outros

números para as eleições municipais de 1983. A APRA e a IU somaram juntas 63% dos votos

do país, enquanto a AP/PPC atingiu somente 32%. Além disso, a IU conseguiu, pela primeira

vez na história do Peru, eleger um prefeito socialista para a cidade de Lima: Alfonso

Barrantes.

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A chegada de Barrantes ao poder também foi objeto de um dos artigos de

Flores Galindo publicado em 15 de janeiro de 1984 (¿De dónde salieron? IU: entre la

multitud y la incertidumbre). Na realidade, durante todo o processo eleitoral e após o

resultado das urnas, Flores Galindo publicou artigos (Democracia: ¿plural o singular? de

janeiro 1984) discutindo a necessidade e os desafios da esquerda: mais do que aderir à

democracia liberal, refletir em torno da formação de uma nova democracia. Tratava-se, pois,

de se propor não apenas um novo socialismo tipicamente peruano, como vimos anteriormente,

mas também uma democracia legitimamente peruana que se oporia àquela liberal.

Além disso, seu acompanhamento às eleições se deu por meio de artigos que

criticavam a atuação da IU (El futuro de la izquierda de 10/04/1983 e El mariateguismo como

desafío de 18/04/1983) e a sua incapacidade de elaborar estratégias de campanha criativas que

fossem além de um simples carnê de auxílio e adesão à campanha de Barrantes.

Justamente por isso, quando as urnas apontaram para a vitória do socialista em

Lima, Flores Galindo foi surpreendido, como ele mesmo declarou: Estive entre os surpreendidos pela vitória da IU e como poucas vezes me alegrou me equivocar, ainda que esse equívoco me tenha custado um chifa. Porém, em meio ao entusiasmo faz falta a reflexão. Até agora ninguém se perguntou seriamente de onde saíram os votos, o que esperam e o que reclamarão esses votantes. Olhando para o futuro, faz falta se perguntar para onde vamos. Críticos ou não, estamos no mesmo barco100.

Assim, Flores Galindo assumia a sua adesão à IU, ainda que de maneira crítica

e sem se filiar a nenhum dos partidos que a formava. Porém, requeria que suas vitórias e suas

conquistas não deixassem de lado a necessidade de se pensar um socialismo como um projeto

coletivo e uma nova democracia para o Peru. Na realidade, continuava a sua opção pelo

socialismo que, bem ou mal, permanecia representado pela IU.

Se esse resultado das eleições de 1983 já parecia um golpe profundo para

Belaúnde, os que viriam a partir de 1984 abalaram ainda mais a credibilidade de seu governo.

É a partir dessa data que os movimentos guerrilheiros do campo intensificaram a sua ação na

cidade de Lima. Além do Sendero Luminoso, outro grupo de extrema-esquerda armada

ganhou espaço no cenário nacional, o MRTA. De certa forma, Sendero e MRTA

apresentaram-se como adversários políticos entre si.

100 FLORES GALINDO, Alberto. ¿De dónde salieron? IU: entre la multitud y la incertidumbre. In: _________. Obras Completas. Tomo VI. Lima: Sur, 2007, p. 78. Publicado originalmente em: El Caballo Rojo, n. 192, Lima, 15 de janeiro de 1984, p.4-5. Chifa é um restaurante tipicamente limenho que mistura a culinária chinesa e criolla.

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O crescimento desses dois grupos esteve diretamente relacionado com o

agravamento da crise e da informalidade no Peru. Por conta da falta de rentabilidade de suas

terras, os pequenos produtores rurais viram na plantação da folha de coca uma alternativa para

superar a miséria. Dessa forma, entre 1980 e 1986 o número de terras utilizadas para o cultivo

da coca saltou de 10.000 hectares para 195.000. No entanto, esta produção, muitas vezes,

acabava sendo saqueada ou desvalorizada pelos compradores, em sua grande maioria,

traficantes ligados ao tráfico internacional de drogas.

Como forma de proteger esses pequenos produtores, tanto o Sendero quanto o

MRTA se apresentaram como grupos de apoio aos fazendeiros. Em troca da proteção de suas

propriedades tinham a liberdade de cobrar “impostos” dos traficantes. Apenas mediante o

pagamento desse imposto os compradores tinham autorização para negociar com os

produtores. Por conta disso, os dois movimentos conseguiram arrecadar muito dinheiro.

Como nos alerta Peter Klaren, Em certo momento se estimou que os guerrilheiros captavam mais de $ 30 milhões ao ano devido a esses “impostos”. Esse dinheiro permitiu ao Sendero incrementar substancialmente o seu exército guerrilheiro a um estimado de cinco a sete mil combatentes e melhorar seu potencial militar com armamento mais sofisticado. Os militantes senderistas recebiam salários entre $250 e $500 ao mês, muito acima do que a média do pagamento mensal dos professores das escolas do país101.

Na cidade a opção pelo senderismo não era diferente. Muitos membros da

população das barriadas passaram a trabalhar como informantes do Sendero para a

elaboração de planos de ataques terroristas a bomba e assassinatos e seqüestros políticos. Boa

parte da população das barriadas era absorvida pela cidade nos serviços domésticos. Assim,

os funcionários contratados para executar as funções típicas do lar passavam ao alto comando

do Sendero a rotina de trabalho de seus patrões, muitas vezes, políticos e empresários de

renome.

Dessa forma, quanto mais se agravava a crise econômica no Peru, mais

militantes o Sendero e o MRTA conseguiam recrutar. Quanto mais militantes, maior a crise

ficava. Os ataques dos grupos terroristas cresceram paulatinamente ao longo dos primeiros

anos da década. De 1980 a 1985 subiram de 219 para um total de 2.050.

Por essa razão, já em 1983, Fernando Belaúnde convocou as forças armadas

para combater as forças guerrilheiras. No entanto, desde os primeiros movimentos no campo,

o exército deparou-se com aquilo que seria o seu principal desafio: identificar quem era civil e

101 KLAREN, Peter. Nación y Sociedad... Op. Cit. nota 19, p. 466.

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quem era senderista. Como vimos anteriormente, muitos senderistas estavam lá pelo salário e

não pela causa. Por conta disso, não havia muita diferença física e de vestimentas entre civis e

guerrilheiros, o que aumentou sumariamente o número de baixas. Entre 1983 e 1984, as

mortes de civis saltaram de 2.282 para 4.551.

O aumento das mortes no campo, a chegada dos ataques guerrilheiros à capital

e o aumento da crise econômica peruana tiraram qualquer possibilidade da AP de conseguir

sucesso nas eleições de 1985, polarizando a disputa entre a APRA e a IU. A chance concreta

de atingir o poder ressaltou as diferenças partidárias dentro da IU e os interesses individuais,

mais uma vez, se sobressaíram aos coletivos. Além disso, Alan Garcia, candidato do partido

aprista, percebeu que, por conta da informalidade exacerbada, a força do eleitorado de

oposição em Lima não se encontrava mais entre os trabalhadores dos sindicatos, principal

centro de atuação da IU, mas sim entre os informais. O número de informais já havia chegado

à casa dos 750.000 somente na capital.

Nas urnas, a leitura bem feita do eleitorado e a estratégia de Garcia de renovar

o aprismo, de afirmar que governaria para o povo peruano e não para uma classe em

específico, e sua vontade de fazer alianças para o “bem” do Peru em detrimento de antigas

rivalidades apristas funcionaram. Com 47% dos votos, Garcia venceu a Alfonso Barrantes da

IU (22% dos votos) e Luis Bedoya Reyes do PPC (12% dos votos). O apelo aos informais

converteu-se em 40% dos votos oriundos das barriadas.

A chegada da APRA ao poder, o fortalecimento da IU e o aumento da atuação

dos movimentos guerrilheiros provocaram um fato muito intrigante no Peru, que foi muito

bem observado por Nelson Manrique: “em nosso país coexistem hoje num mesmo espaço a

guerrilha mais forte da América do Sul, a esquerda legal de maior presença política – a

esquerda unida – e o partido reformista historicamente mais importante do continente no

poder: o APRA”102.

A IU era uma das principais opositoras aos movimentos da esquerda

revolucionária. Ao contrário do movimento separatista ETA no país Basco, onde os ataques

terroristas são justificados pela ala legalista, no Peru, cada ataque do Sendero ou do MRTA

insuflava ainda mais a IU contra os movimentos e convertia-se em apoio ao avanço das forças

armadas.

Os desafios herdados pela APRA dos cinco anos de Belaúnde foram os mais

complexos. Como superar um quadro onde os salários públicos haviam despencado de US$

102 Citado por Eduardo Cáceres em seu artigo No hay tal lugar: Utopia, ucronía e historia In: Márgenes. Ano XIV, n. 17, Lima: SUR, 2000, p. 12.

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230,00 para US$ 97,00 mensais, onde a renda per capita havia caído de US$1.232,00 para

US$ 1.055,00 e a formalidade dos trabalhadores atingia somente a 35% da população? Como

superar a crise vinda do campo com os grupos terroristas? Os caminhos adotados por Alan

Garcia foram a heterodoxia econômica e o recrudescimento militar.

Desse modo, Alan Garcia retomou uma política de maior participação do

Estado, voltando a conceder incentivos às camadas mais pobres, mas também aos

empresários. O principal público a ser atingido pelas reformas seria aquele vinculado à: 1 –

informalidade; 2 - os jovens; e 3 - aos membros das barriadas. Era o que ele chamava de

trapézio andino. Em contrapartida, acreditava que contaria com o apoio da elite industrial para

a realização das reformas, uma vez que esta temia a chegada das esquerdas (institucional – IU

– e revolucionária – Sendero MRTA) ao poder.

Para conter a inflação e promover a produção, o governo investiu em medidas

antiinflacionárias, com controle de preços e interferiu diretamente no câmbio, além de cortar

impostos dos setores produtivos e liberar empréstimos e subsídios para as indústrias buscando

atingir o aumento das exportações. Para conseguir recursos, diminuiu o valor pago com a

dívida e aproximou-se de setores externos para conseguir empréstimos. Além disso, houve

uma nova valorização da moeda que deixou de chamar Sol e passou a chamar Inti, que

significa sol em quéchua103.

A política econômica surtiu efeito e rapidamente a economia respondeu

positivamente. Conforme aponta Peter Klaren, As políticas heterodoxas de García tiveram êxito durante a primeira metade de seu governo. A renda per capita subiu de 1.1 % em 1985 a 7.3 % e 5.1 % em 1986 e 1987 respectivamente, elevando a demanda interna e estimulando a produção. O crescimento real saltou de 1.5 por cento em 1985 para 8.5 e 7 % em 1986 e 1987, respectivamente. O crescimento proveio fundamentalmente dos setores manufatureiros (19 por cento em 1986), construção (30 por cento) e agrícola, porém as exportações tradicionais continuaram estancadas104.

O crescimento no campo ocorreu por conta da maior demanda vinda da cidade,

e o crescimento, maior desde o governo de Odría em 1950, beneficiou os produtores mais

integrados ao mercado e os membros do chamado trapézio andino. Já a inflação, em um ano,

caiu de 163% a 64%.

103 Mais uma alusão ao mundo andino e à figura do povo Inca que povoa não apenas o imaginário popular, mas se converte elemento fundamental na cultura política do Peru. Se nos movimentos guerrilheiros de 1960 a figura do Taki Onqoy esteve presente; se no primeiro governo de Belaúnde a carretera marginal fazia alusão à expansão viária do Império Inca, se no governo Velasco foi instituído o plano Inca, o plano Túpac Amaru e as festas Inkarri; se no Sendero a noção de Pachacuti, palavra que designa transformação no mundo incaico, alimentava a revolução; no Governo de Garcia o Inti, deus sol dos Incas, pretendia iluminar a economia peruana. 104 KLAREN, Peter. Nación y Sociedad... Op. Cit. nota 19, p. 469.

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Apesar dos números favoráveis, dois aspectos do plano de García minaram o

avanço de suas ações. O não crescimento da exportação, como se apostou, gerou uma queda

na arrecadação estatal. Da mesma forma, a redução do pagamento da dívida fez com que os

bancos norte-americanos não realizassem mais empréstimos ao governo e o FMI considerasse

o país fora do rol de futuros beneficiários. Em meados de 1987, os números começaram a

inverter e as rédeas da economia escapavam das mãos do Estado. Para evitar isso, García

acreditou que deveria tomá-las em suas mãos aumentando o protagonismo do Estado. Assim,

em 27 de julho de 1987, Garcia anunciou a estatização de 20% do capital dos bancos privados

do país, o que representou o controle total do Estado sobre o sistema, uma vez que os outros

80% já haviam sido estatizados pelo governo de Velasco.

“Por isso neste instante proponho ao congresso sua nacionalização e sua

estatização”. Com essas palavras, García pensou que salvaria o seu governo. Enquanto a

maioria aprista do Congresso exaltava o presidente aos gritos de “Peru, Peru, Peru”, pela

atitude “nacionalista” tomada, milhares de pessoas foram às ruas para protestar contra o

governo respondendo, em alto em bom som, aos protestos de “Democracia e Liberdade!” e

“Alan! Escuta! Assim não se governa!”.

Ao contrário do que esperava, com esse discurso, García, na realidade,

provocou o rompimento do acordo entre o governo e os setores empresariais da economia.

Com medo de uma virada à esquerda e de uma estatização de todos os setores da economia,

os empresários retiraram os seus investimentos do Peru em busca de refúgios seguros para o

seu dinheiro no exterior. Em menos de uma semana, os bancos registraram uma retirada de

cerca de US$ 5 milhões e a produção industrial estagnou.

Diante disso, os setores liberais da sociedade e a burguesia nacional realizaram

manifestações populares contra o governo aprista, muitas delas conduzidas e lideradas por

Mario Vargas Llosa. Importante escritor peruano, Vargas Llosa convocou a população a

enfrentar e protestar contra a estatização dos bancos e uma possível submissão dos outros

poderes ao executivo. Alguns discursos chegaram a atingir um público de oitenta mil pessoas

em praça pública. Fundou-se, assim, o movimento Libertad, que seria conduzido pelo escritor.

O envolvimento do escritor com a política era algo que já vinha sendo

desenhado desde o início da década de 1980. Em janeiro de 1983, um grupo composto por

sete repórteres e um guia camponês que fazia uma reportagem na cidade de Uchuracay, na

região de Ayacucho, em busca de compreender a formação do Sendero Luminoso, foi atacado

e morto a tiros por nativos daquela região. Pelo menos essa era a versão oficial do governo.

Para investigar o que “realmente havia acontecido”, foi nomeada uma comissão de

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71

intelectuais e políticos liderada por Mario Vargas Llosa. No final do inquérito a “comissão

reconheceu que os sinchis tinham cometido alguns equívocos”105.

Para Rodrigo Montoya, os camponeses haviam sido instruídos e municiados

pelos próprios militares a atacar e combater os guerrilheiros senderistas e, por isso, aliado à

falta de preparo, atacaram o grupo de repórteres. Como se constatou depois, o exército

empregou métodos anti-subversivos para vencer o Sendero, que previa, dentre outras coisas, a

infiltração de camponeses no movimento guerrilheiro para desmantelá-lo por dentro.

Após esse aparecimento junto à comissão de direitos humanos que averiguou o

que ocorreu em Uchuracay, Vargas Llosa lançou um livro chamado La Historia de Mayta, em

1984. A obra conta o relato da vida de um trotskista limenho chamado Alejandro Mayta e do

jovem militar Vallejo, que organizaram e participaram de alguns levantes camponeses na

década de 1960. Assim, reforçado pela dinâmica da narrativa que integra passado e presente

em um mesmo parágrafo, o autor busca refletir sobre a trajetória de Mayta em clara alusão a

aquilo que ocorria na década de 1980, demonstrando sua total reprovação ao movimento

senderista.

Dessa maneira, a formação do movimento Libertad foi apenas mais um passo

de Vargas Llosa no mundo da política, fato que culminaria com a sua candidatura à

presidência da república em 1990. De outra maneira, o movimento Libertad apenas

representou mais um avanço dos setores liberais da sociedade contra o governo de Garcia e a

favor da implantação de um neo-liberalismo no país. É importante destacarmos que, ainda em

1986, o economista Hernando de Soto havia lançado o livro El Otro Sendero: La revolución

invisible en el Tercer Mundo. Em clara alusão ao Sendero Luminoso, El Otro Sendero

apontava outro caminho - daí o título - a ser seguido pelo Peru. Seria este o caminho do

neoliberalismo.

Assim como o livro de José Matos Mar, que falava da existência de um país

legal e um país real, em alusão às massas excluídas atiradas à informalidade, o de de Soto

também apresenta tal quadro. No entanto, sociologicamente a sua abordagem foge à linha

marxista de análise da realidade, como ocorre com Matos Mar. Neste caso, o economista, para

além da análise, aponta críticas, mas também caminhos para a construção de um novo Peru.

Seu principal alvo é o Estado, o modelo estatizante predominante na história recente do país e

o excesso de burocracia. Para ele, era preciso implantar um regime com um modelo de estado

105 MONTOYA, Rodrigo. Esquerda Unidade e Sendero Luminosos: potencialidades e limites. In: AMAYO, Enrique. Sendero Luminoso. São Paulo: Vértice, 1988, p. 28.

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72

menor, um estado neoliberal e incentivar a individualidade e o empreendedorismo nos

membros da sociedade informal.

Assim, passados alguns meses da tentativa de expropriação dos bancos

privados por García, Mario Vargas Llosa se uniu a Hernando de Soto, à AP e ao PPC para

formar uma frente de direita capaz de realizar oposição ao governo aprista: a FREDEMO

(Frente Democratico). Ironicamente, a direita, após uma atuação pífia nas eleições de 1985,

ressurgia das cinzas graças à ação equivocada do governo aprista106.

Enquanto a pressão a Alan García que vinha da direita ganhava as ruas pedindo

mais democracia e mais liberdade de mercado, o outro grupo de pressão vinha exatamente na

corrente oposta. Desde 1987, o Sendero Luminoso havia ampliado os seus espaços de atuação

e o seu poderio bélico. Em uma verdadeira batalha nos Andes, o Sendero derrotou o MRTA e

assumiu controles plenos sobre as plantações de coca, principalmente na zona de Huallaga,

em San Martín, principal produtora de coca do Peru. Os ataques a Lima chegariam a um

número de 8.572 até o início da década de 1990. O número de mortos chegaria a 17.000 no

final da década, porém, segundo os números do governo, se estima que nessa época já

passavam dos 60.000.

No início de 1988, os números do governo Alan Gacía converteram-se na pior

tragédia que o Peru Republicano presenciaria. A taxa de inflação anual do Peru saiu de 360%

no primeiro trimestre para 7.000% no segundo, chegando a 7.649% no início da década de

1990. Já o déficit da balança comercial atingiu a marca de US$ 521 milhões, devido à

elevação das importações e à estagnação da produção. Os números no plano econômico e a

calamidade social vividas na última década pelo país agravaram-se ainda mais com a pior

epidemia de cólera desde o século XIX ocorrida no ano de 1991. O fato, apesar de estar fora

do nosso recorte temporal, apenas ressalta a degradação vivida pela sociedade peruana ao

longo da década de 1980. Quanto à população, o padrão de aproximadamente 4 milhões de

novos habitantes para o país e 1,5 para a capital se manteve. Em 1993, o Peru atingiu o

número de 22.048.356 habitantes contra os 17.005.210 de 1981 e Lima, no mesmo período,

foi de 4.745.877 para 6.386.308 de habitantes.

Assim como o aprismo e o governo Alan García, as forças da IU também se

esvaíram. Com o crescimento do Sendero, os setores mais radicais da IU decidiram apoiar o

106 O economista e Diretor da Escuela Profisional de Economia S.M.P, Carlos Adrianzén, em entrevista concedida ao programa Prensa Libre, do canal América Tv de Lima, em 27/07/2007, afirmou que a estatização dos bancos foi apenas o estopim de uma série de medidas econômicas equivocadas do governo de Alan García. Para ele, independentemente da estatização, as condições para uma crise da mesma proporção já estavam postas. Para ver a entrevista, acesse: http://www.youtube.com/watch?v=dbvUdeVR4jI

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73

movimento senderista, entrando em conflito direto com a ala mais moderada da aliança, anti-

senderista.

Para Alberto Flores Galindo, o momento crítico que se estendia desde o final

da ditadura militar clamava por ação. Desde a apresentação de sua tese, em 1982, o principal

tema ao qual ele dedicou os seus estudos foi o da Utopia Andina. Diante de uma Lima

desagregada, multifacetada e heterogênea, era necessário encontrar um caminho que

possibilitasse a união e a superação da realidade de convulsão social. Diante de um Peru

segregado pela guerra civil, era preciso encontrar um elemento agregador.

O caminho a ser adotado ainda era o mesmo que motivou as suas primeiras

atuações junto ao sindicato pesqueiro de Callao: o socialismo. O desafio era tornar o

socialismo um projeto possível para o Peru. O socialismo precisaria constituir-se como uma

“idéia” coletiva. Mais uma vez, Flores Galindo colocou a História em prol do presente, para

compreendê-lo e propor a superação de seus problemas.

Assim, ao olhar para a história, Flores Galindo interpretou que em vários

momentos, desde as primeiras décadas após o desmonte do Império Inca, existiram projetos

políticos de grupos ou de indivíduos que buscaram restaurá-lo. Esses projetos, de uma forma

ou de outra, representavam a busca por um mundo perfeito, um mundo sem injustiças, um

mundo utópico. Todavia, diferentemente da utopia de Thomas More, que representa uma ilha

fora do tempo e do espaço, esta utopia possuía um lugar claro na história, no “umbigo”107 dos

Andes, tratava-se do Império dos Incas.

Dessa forma, analisaria o autor, a utopia andina se converteu em substrato para

transformar a insatisfação diante de uma realidade de exploração ou de uma dominação

política em projetos coletivos de revolução ou levante popular. Esses projetos de poder,

muitas vezes, possuíam contradições fundamentais entre si, representando diversos grupos

políticos, grupos étnicos ou classes sociais, sendo projetos antagônicos, mas com um mesmo

ideal, superar as diversidades impostas pela realidade. De tal maneira, a utopia andina era, na

verdade, “um conjunto de utopias”, uma vez que se recriavam de acordo com seu contexto

histórico e atendendo às demandas e reivindicações sociais de cada época e cada grupo. Por

isso, Flores Galindo esclareceria que “evitar-se-iam alguns maus entendidos se

considerássemos que, em um sentido estrito, não existe uma utopia andina. É imprescindível

107 Cuzco ou Qosqo, capital do império Inca, significa umbigo do mundo, o centro dos quatro cantos do mundo, dos quatro suyos que compunham o império (antisuyo, collasuyo, contisuyo e chinchaysuyo).

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usar o plural. A utopia andina foi variando segundo as épocas, os lugares e os grupos

sociais”108.

Nesse sentido, a crença em um regresso do império incaico seria um dos

elementos principais que teria motivado grupos de diferentes tendências em diversos

momentos a se levantarem contra uma ordem estabelecida e a acreditarem em uma utopia: o

regresso do Tahuantinsuyo. E, da mesma forma, levaram seus líderes a se proclamarem como

o Inca restaurador. Estariam esses grupos, constantemente, “buscando um Inca”.

Com essas palavras Flores Galindo deu o título à sua obra mais polêmica,

contestada e mais reconhecida. Buscando un Inca: identidad y utopia en los andes109, de

1986, apresentava com fontes diversas e um amplo estudo historiográfico a trajetória da

utopia andina e o seu lugar na tradição política e cultural peruana. Nesta obra, a utopia andina

podia ser compreendida como um elemento de permanência na história peruana e, por isso,

estava presente até os dias de hoje, como uma forma de se manter a esperança no

restabelecimento de “tempos melhores” para o Peru, tendo o passado como referência maior.

De tal maneira, assim como nos momentos vividos pelos protagonistas da

história da utopia andina no passado, o Peru vivia um momento de crise e de necessidade de

superação de uma realidade adversa. Sonhar em transpor esse cenário era uma forma de se

empreender uma espécie de utopia andina, porém, que, ao contrário de outros momentos,

buscasse o socialismo e não o império Inca110. Essa era a proposta clara do livro. Utilizar-se

da imaginação, do mito, do utópico para se propor uma simbiose entre socialismo e tradição

peruana, como uma forma de se construir um projeto de futuro ao país.

Se em Aristocracia y Plebe o cenário é de desagregação e desesperança, em

Buscando un Inca o cenário é de aglutinação e otimismo. Ainda que a crítica à sociedade

peruana, à violência e ao autoritarismo esteja muito presente na obra, o tom de expectativa

sobressai. O autor havia encontrado um caminho para superar os problemas por ele mesmo

apresentados em sua obra anterior. Como escreveu Gonzalo Portocarrero, O espectro dos Incas podia ser a força que reparará uma sociedade tão carregada de ódios, tão sem alternativas como é o Peru. A utopia foi uma criação esperançosa dos vencidos, mas também foi retomada por outros grupos sociais. [...] Esta é a distância que media entre seus dois grandes livros: Aristocracia y plebe, terminado em 1982 e Buscando un Inca, cuja versão

108 FLORES GALINDO, Alberto. La Utopía Andina: esperanza y proyecto. In: _________. Tiempos de Plaga. Lima: Caballo Rojo, 1988, p. 249. 109 FLORES GALINDO, Alberto. Buscando un Inca: identidad y utopía en los andes. La habana: Casa de las Américas, 1986. Em 1987 o livro ganhou o prêmio Casa de las Américas, fato que o fez passar de contestado a aplaudido. 110 Dedicaremos os capítulos 3 e 4 para explicar melhor a relação entre a utopia andina e o socialismo.

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definitiva é de 1988. Enquanto que a idéia de “sociedade sem alternativa” domina o primeiro texto, o mesmo ocorre com a idéia de um mito unificador com o segundo. E é a partir de 1983, ano em que se intensifica a violência política, que Alberto Flores Galindo inicia à busca daquilo que poderia dar uma consistência à fragmentada sociedade peruana111.

O livro causou tanta polêmica quanto foi difundido. Em pouco tempo ganhou

novas versões ampliadas e revisadas até chegar a um texto final em 1988. Uma das

preocupações do autor durante as revisões era a de se defender de algumas acusações que

apontavam a utopia andina como uma apologia ao senderismo. Para Flores Galindo isso não

poderia ser compreendido. Em sua concepção, seria o socialismo nutrido da utopia andina, um

pensamento de oposição ao senderismo.

De outra maneira isso ficaria claro também fora da obra. Durante os anos que

se seguiram após 1986, o autor publicou uma série de artigos contra o Sendero Luminoso,

denunciando os abusos do governo e das forças armadas, bem como acusando o racismo

presente na sociedade limenha. Para ele, o racismo foi uma das características da sociedade

limenha que foi ressaltada pela guerra civil, de modo que, a seu ver, havia muita diferença na

reação das pessoas quando os números apontavam a morte de mais um camponês e quando

um limenho era brutalmente assassinado. Os trabalhos de Flores Galindo neste período o

aproximaram da Anistia Internacional e ele passou a ser um dos ativistas em prol da defesa

dos direitos humanos.

Enquanto alternativa ao senderismo, Buscando un Inca afirmava que era

necessário transformar o socialismo em um projeto coletivo que provocasse uma revolução de

baixo para cima, por meio da conscientização das massas, e não da imposição de idéias por

meio da força de um grupo sobre os demais. Não se tratava de repetir o caudilhismo e o

messianismo recorrentes nos outros momentos de manifestação da utopia andina.

Uma das formas de se disseminar essa idéia era a conscientização da classe

camponesa e da classe trabalhadora, mediante a difusão da literatura e a discussão política.

Esta prerrogativa, que está implícita na obra, foi algo que motivou a formação do selo

editorial e centro de produção intelectual, a Casa SUR, Casa de Estudios del Socialismo112,

em 1986. A SUR apresentou-se como um ambiente para a discussão intelectual de temas

relacionados ao socialismo e à formação política. Em sua sede eventualmente, eram

realizados ciclos de discussão e palestras (também chamados de Universidad Libre) sobre 111 PORTOCARRERO, Gonzalo. La Hazaña de Alberto Alberto Flores Galindo. In: LÓPEZ JIMÉNEZ, Sinesio (dir). Homenaje a Alberto Flores Galindo: otro mundo es posible. Libros & Artes. Lima: Biblioteca Nacional del Perú, 2005, p. 21. 112 SUR foi fundada conjuntamente com Manuel Burga, Inés García, Peter Elmore, Gustavo Buntix, Gonzalo Portocarrero, Maruja Martínez, entre outros.

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socialismo e movimentos populares que contavam com a participação de sindicalistas e

líderes de movimentos sociais.

Entretanto, a maior realização da SUR foi, sem dúvida, a criação da Revista

Márgenes, em 1987. Para muitos, a revista era uma tentativa de Flores Galindo de restaurar

um espaço de divulgação de artes, política e cultura, tal qual foi a Amauta, organizada por

Mariátegui na década de 1920113. De uma forma ou de outra, guardada as devidas proporções,

a revista possuía o mesmo ecletismo que caracteriza a Amauta, uma vez que contava com a

participação de autores com diversas vertentes intelectuais e políticas e também a exposição

de trabalhos artísticos. É possível encontrar edições com artigos que apresentam discrepâncias

sobre o guevarismo, o mariateguismo, a historiografia ou sobre a própria utopia andina assim

como gravuras e desenhos que compõem o escopo de seus números.

Da mesma maneira, como aparece na trajetória de Flores Galindo, o tom

polêmico também é uma constante marca da revista. Logo em sua primeira edição, em 1987,

ela trouxe um artigo impactante de Flores Galindo sobre sua geração, intitulado Generación

del 68: ilusión y realidad. Movido pelo avanço do Neoliberalismo e do Senderismo e pelo

fracasso da IU e da Teologia da Libertação, Flores Galindo fez duras críticas ao comodismo e

à falta de ação e idéias que impregnava a sua geração naquele período, como podemos ver

nesse trecho: A esquerda institucionalizou o discurso político, mas também a reflexão intelectual e a investigação. Assumiu a roupagem dos centros e institutos, foi reconhecida pelos escritórios públicos, seguiu um itinerário paralelo ao da Teologia da Libertação, ao passo que esse discurso deixou de ser crítica negativa, para converter-se num conjunto impreciso, às vezes até desconexo, de afirmações que eram, sobretudo, concessões e afastamentos diante da realidade114.

Para ele, diante da dura realidade do Peru contemporâneo, a direita já tinha um

projeto (El otro Sendero) e um líder (Vargas Llosa) a ser seguido. Em contrapartida, a

esquerda dividia-se entre o legalismo e o radicalismo. Um radicalismo odioso (Sendero) e um

legalismo amorfo (IU). Assim, Vargas Llosa terminou se reconciliando com a direita. Sua visão das coisas adquire uma dimensão coletiva, quando se converteu no redator principal do relatório de Uchurucay. [...] Porém, para nosso tema, Uchuracay tem outra importância. Mostrou que essa imagem – admitida e propalada, entre nós, por Carlos Malpica e Julio Cotler – segundo a qual esquerda e intelectuais eram

113 Cf. BURGA, Manuel. La Historia y los historiadores en el Perú. Lima: UNMSM, 2005. 114 FLORES GALINDO, Alberto. Generación del 68: ilusión y realidad. In: Márgenes: encuentro y debate, ano I, n. 1, Lima, 1986, p. 115.

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termos sinônimos, não resulta tão certa. A direita havia encontrado um líder ideológico em Vargas Llosa115.

“E a esquerda?”, pergunta o autor. “[...] foi incapaz de uma resposta. Se pedia

um contra-relatório. Nunca o fez”116, responde.

Assim, em busca de respostas para um socialismo capaz de se apresentar como

aglutinador, como alternativa ao senderismo, à burocrática IU e ao neoliberalismo, Flores

Galindo voltou suas investigações para a figura de José Maria Arguedas. Segundo Cecília

Rivera, tratava-se de um sonho antigo de Flores Galindo: o estudo de Arguedas como forma

de compreender o Peru conflituoso. Nas reedições de Buscando un Inca, após 1987, Arguedas

já aparecia incorporado ao texto. Em alguns momentos ele é apresentado pelo autor como um

exemplo da ambivalência presente na sociedade peruana, como a ambigüidade da nova

esquerda entre o reformismo e o radicalismo. A alma de Arguedas é como a utopia andina,

conflituosa, afirmava ele.

Logo, seguindo o seu estilo de escrever vários artigos e depois reuni-los em um

livro117, começaram a aparecer os primeiros artigos sobre Arguedas. Na realidade dois:

Arguedas y la Utopia Andina e los Últimos Años de Arguedas: intelectuales, sociedad e

identidad em el Perú.

O livro não veio. Esta empreitada não passou desses dois artigos e algumas

intervenções orais em mesas de discussão. Em 03 de fevereiro de 1989, durante um banho,

Flores Galindo sentiu a consciência sumir. Foi apenas recobrá-la no hospital. Tratava-se de

um câncer no lado esquerdo do cérebro. Ninguém soube dizer desde quando este se

desenvolvia, apesar do próprio Flores Galindo confessar a Gonzalo Portocarrero que nos

últimos três meses antes do ocorrido vinha encontrando dificuldade para encontrar palavras

durante a escrita e trocando as palavras no meio das frases.

Tão logo descobriu a enfermidade, recorreu aos amigos para juntar dinheiro e

tratar o câncer nos Estados Unidos. Apesar de todos os esforços financeiros e terapêuticos, no

final do ano foi desacreditado pelos médicos, que lhe deram mais alguns poucos meses de

vida. Por conta desse diagnóstico, em 14 de dezembro escreveu uma carta aos amigos

intitulada Reencontremos la dimensión utópica. Nesta carta, atacou o sistema público de

saúde, a burocracia pública, o senderismo e a ação dos militares na guerra civil. Disse da

115 Ibid. p.120. 116 Ibidem. 117 Dos livros de Flores Galindo somente Los mineros de Cerro de Pasco, La Agonía de Mariátegui, Apogeo y Crisis e Aristocracia y Plebe, são escritos em uma única empreitada. Os demais são compilações de vários outros artigos em um único livro, até mesmo Buscando un Inca. Alguns autores, como Hugo Vallenas, vêem nisso outra tentativa de aproximação do autor à Mariátegui.

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importância dos amigos e do espaço necessário à formação de novos jovens na política e

mencionou a Arguedas pela última vez. O trecho selecionado foi retirado de Zorro de Arriba

y Zorro de Abajo. Quase como uma metáfora à carta apresentada, tratava-se da última e

incompleta obra de Arguedas, que dizia: “Tudo isso é para ganhar dinheiro. E quando já não

houver a imprescindibilidade urgente de ganhar dinheiro?”. O trecho era para refletir sobre o

marxismo e as ciências sociais, mas poderia muito bem ser empregado a este momento de sua

vida.

No dia 26 de Março de 1990 faleceu. Nas eleições presidenciais daquele ano, a

IU já não existia mais, o Sendero continuava queimando urnas de votação, Vargas Llosa não

saiu vitorioso, o APRA não se reelegeu e o, até então, inexpressivo Alberto Fujimori venceu

as eleições. O país sem resposta continuava a procurá-la no inusitado. A chegada de Alberto

Fujimori produziu no Peru o surgimento de uma onda política em torno do autoritarismo

como forma de repulsa aos movimentos guerrilheiros que se impuseram sobre o Peru durante

a década de 1980. Os ventos autoritários não demoraram a chegar a Lima.

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CAPÍTULO 2

ESQUERDA E HISTORIOGRAFIA NO PERU (1960-1980)

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2.1 A Nueva Izquierda peruana

A história da esquerda peruana, entre 1930 e 1946, pode ser resumida à história

do Partido Comunista. Fundado em 1928, por José Carlos Mariátegui sob o nome de Partido

Socialista Peruano, recebeu a designação de Comunista em 1930, assumindo, enfim, sua total

adesão à Internacional Comunista. A mudança do nome ocorreu um mês após a morte de seu

fundador e foi conduzida por seu então secretário geral Eudócio Ravines.

A “bolchevização” do discurso da esquerda internacional e o culto à

personalidade de Stalin garantiram a idéia de que era necessário congregar em um único

partido as forças que promoveriam uma ação revolucionária no Peru. A partir de então, o PCP

colocou em prática a estratégia de classe contra classe, expulsando do seu quadro de filiados

os intelectuais e a pequena burguesia. Para Eudócio Ravines, o caminho para a revolução viria

pelo embate entre proletários e burgueses. Por isso, até meados da década de 1940, o PCP

atuou principalmente junto aos trabalhadores, adotando como estratégia a organização de

greves e paralisações com objetivos insurrecionais. Ocorre que a fragilidade da classe operária

peruana no início do século XX, dada a baixa industrialização do país, fez com que o PCP, de

longe, não fosse o partido das massas no Peru. Esta função acabou sendo exercida pela

APRA.

Desde o início de sua existência, a APRA se apresentou como uma alternativa

ao comunismo para a revolução, uma maneira própria de se compreender o marxismo no

Peru. Além disso, a figura emblemática de seu fundador, Haya de La Torre, se constituiu

como uma liderança a ser seguida desde os movimentos estudantis da Reforma Universitária

peruana de 1919. Por conta disso, a presença avassaladora da APRA sobre as “multidões”,

contribuiu para que o PCP acabasse por se isolar dentro da própria sociedade.

No entanto, com a onda democrática produzida pelos anos finais da guerra

mundial, tanto a APRA quanto o PCP passaram a adotar uma linha mais conciliadora no

debate político, que privilegiavam as vias democráticas e o consenso. Isso ficou claro com a

expulsão de Eudócio Ravines da direção do PCP em 1944 e a retomada da figura de

Mariátegui como fundador e guia do partido. Já em 1943, apareceram as primeiras tentativas

de reforçar o protagonismo de Mariátegui a frente do PCP. Jorge del Prado, então secretário

nacional de organização do Partido Comunista do Peru, escreveu um artigo no qual ressaltava

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a importância de Mariátegui como introdutor do marxismo no Peru, salientando que ele era

adepto do pensamento marxista-leninista adotado pelo partido118.

Essa mudança de rumo do PCP provocaria sua primeira cisão. Em agosto de

1946, surgiu o Partido Obrero Revolucionario (POR) de orientação trotskista119. Ainda que

possuísse uma atuação tímida e de muito pouca relevância no cenário político daqueles anos,

o POR representou o fim da hegemonia do PCP e o surgimento de um debate em torno da

atuação da esquerda no país. Este debate se tornaria cada vez mais áspero na década seguinte.

O triunfo da Revolução Chinesa em 1949, a morte de Stalin em 1953, a

discussão e questionamento do stalinismo propostos pelo comunista polonês Wladislaw

Gomulka, em 1956, colocaram em cheque a hegemonia russa e abriram espaços para a

reflexão do socialismo para além da via soviética. Desta forma, o socialismo deixou de ser

uma experiência unicamente russa para se tornar um sistema global, que inseria novas

realidades oriundas de outras partes do globo. Um exemplo claro disso, para a América

Latina, foi o êxito da Revolução Cubana em janeiro de 1959.

A chegada de Fidel Castro ao poder trouxe novos ingredientes ao debate em

torno dos caminhos para a revolução, como a estratégia de guerrilha, e retomou outras

discussões que estavam postas de lado pelo stalinismo, como a participação dos intelectuais e

da pequena burguesia no processo revolucionário. Assim, uma vez que a revolução como um

objetivo imediato, a utilização da via armada para a tomada do poder, a possibilidade de

contribuição de setores da pequena burguesia e a importância do camponês no processo de

tomada do poder se tornaram perspectivas possíveis entre os cubanos, passaram a ser

questionadas e absorvidas também pela esquerda peruana no final da década de 1950 e início

dos 1960.

Enquanto essas transformações ocorriam no cenário político internacional, o

Peru daquelas décadas também passava por mudanças em sua estrutura social e em sua

organização política. O período de Odría representou um incremento na industrialização, na

expansão do Estado e do setor educacional, o que levou ao surgimento de novas camadas na

classe média ligadas aos setores profissionais e ao desenvolvimento da burguesia local. Por

outro lado, a explosão demográfica, as migrações e as revoltas camponesas demonstravam

que a velha dualidade peruana (costa e serra), começava desmoronar.

118 Cf. SOBREVILLA, David. El marxismo de Mariátegui y su aplicación a los 7 ensayos. Lima: Fondo de Desarrollo Editorial/Universidad de Lima, 2005, p. 48. 119 Em meados da década de 1950 o POR se dividiria em dois partidos dando origem ao POR(T), que se afirmaria como legítimo representante do trotskismo e dos ideais da revolução permanente no Peru.

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Tais alterações teriam conseqüências diretas para a esquerda nacional,

representadas pelo surgimento de novos organismos políticos, mas também para todos os

partidos peruanos tradicionais. A APRA, por exemplo, sofreria com a reivindicação de seus

setores mais radicais que criticavam o discurso conciliador de Haya e o alinhamento às

políticas democráticas norte-americanas. Além da APRA, os que partidos que representavam

a oligarquia, bem como o setor militar, sofreram com o mesmo problema na manutenção e

formação de seus quadros. Os militares já viviam novos questionamentos ideológicos em seus

quartéis por meio do CAEM (Centro de Altos Estudios Militares) e a oligarquia, por sua vez,

não conseguia mais atingir a legitimidade democrática, tendo que lançar mão de constantes

regimes de exceção, como foi com Sánchez Cerro e Odría. Até mesmo a intelectualidade que

apoiava os setores oligárquicos tinha optado por abandonar as discussões políticas, preferindo

o exílio, a vida diplomática ou a carreira universitária, como discutiremos mais adiante.

Este espaço deixado pelos partidos tradicionais foi rapidamente preenchido por

movimentos progressistas nas cidades, como a Acción Popular de Fernando Belaúnde, a

Democracia Cristiana dos setores católicos e o Movimiento Social Progresista que souberam

representar os setores emergentes da sociedade urbana e, ao mesmo tempo, dedicar sua

atenção as questões agrárias. Na serra, a lacuna foi ocupada pelos novos organismos políticos

de esquerda que surgiram a partir de meados da década de 1950, entre eles o APRA

Rebelde/MIR (dissidentes da APRA), a Vanguardia Revolucionaria (dissidentes da AP) e o

Ejército de Liberación Nacional (dissidentes do PCP). Todos, sem exceção, aderiram à via

armada. Surgia então, naquele momento, a nueva izquierda peruana.

O sociólogo peruano Héctor Bejár, em seu artigo Los Orígenes de la nueva

izquierda en el Perú: la izquierda guerrillera (período 1956-1967), defende a idéia de que o

surgimento da nova esquerda está diretamente relacionada às questões apresentadas

anteriormente. Para o autor, a data de 1956 marcou oficialmente o início da nova esquerda,

por conta de ser o ano da reabertura política e da retomada da legalidade partidária, bem como

do retorno de exilados e presos políticos à vida pública. No entanto, o desenvolvimento e a

formação de um perfil claro da nova esquerda, bem como de suas orientações políticas

somente podem ser compreendidos se levarmos em consideração quatro pontos fundamentais

que, até mesmo extrapolam este ano. Seriam eles: “as transformações sociais, particularmente

o movimento camponês, a revolução cubana; e no terreno político, a crise da APRA e do

Partido Comunista”120.

120 BEJÁR, Héctor. Los Orígenes de la nueva izquierda en el Perú: la izquierda guerrillera (período 1956-1967). In: ADRIANZÉN, Alberto. Pensamiento político peruano… Op. Cit. nota 22, p. 354.

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83

Segundo sua análise, a crise dos partidos tradicionais, as transformações sociais

e os rumos da esquerda internacional teriam motivado o surgimento de novos organismos e

lideranças de esquerda no país. No entanto, entre estes destaques, a Revolução Cubana e o

caráter continental das guerrilhas latino-americanas possuem maior ênfase em sua análise.

Para Bejár, que também participou ativamente das guerrilhas da década de 1960, a guerrilha

cubana trouxe à esquerda um modelo de atuação a ser seguido que possibilitava uma ruptura

com as “velhas estratégias” de atuação partidária da esquerda tradicional, a negação das vias

democráticas e parlamentares para a revolução e a inserção peruana nos movimentos

guerrilheiros latino-americanos. Esta opção, fez com que, durante a década de 1960, guerrilha

e nova esquerda fossem sinônimos.

Assim como Bejár, o também sociólogo Jorge Nieto Montesinos, em seu artigo

com o sugestivo título ¿Vieja o nueva izquierda?, concebe a importância das alterações

apontadas para o surgimento da nova esquerda. No entanto, ao contrário de Bejár, Nieto

enfatiza mais as transformações internas ocorridas no Peru. Segundo suas palavras,

existe um lento surgimento de novos sujeitos sociais. Se produz, ademais, uma crise do bloco oligárquico no poder, surgem camadas médias em conflito com a ordem oligárquica e se desenvolvem poderosas mobilizações camponesas. Guillermo Rochabrún, em um artigo publicado na revista Los caminos del laberinto, demonstrou bem como culturalmente desde de distintas perspectivas foi-se firmando do final dos anos 40 ao começo dos 50 o desenvolvimento de um novo processo de convergência intelectual. Este processo não se deu apenas com os intelectuais das universidades, que se converteu em centro de resistência, mas também nos núcleos de intelectuais ligados à APRA e ao PC e, em alguns casos, fora de ambos121.

Seguindo sua análise, podemos dizer que tanto as transformações sociais e a

crise dos partidos tradicionais, quanto a participação da intelectualidade nos movimentos

políticos daquela época, foram fundamentais para a formação de novas opções políticas, o que

resultou no aparecimento do social-progressismo e da nova esquerda.

Para Nieto, entre todas as correntes surgidas naquele momento, o social-

progressismo foi aquela que teve propostas mais criativas para os dilemas da sociedade

peruana, diferentemente do que se pode observar na nova esquerda. Conforme escreve Nieto,

A nova esquerda já surgiu em defasagem com esse país que começava a aparecer. Em primeiro lugar, tanto na APRA como no PC as opções surgem reclamando uma volta aos princípios primitivos de suas respectivas organizações. A nova esquerda, a chamada nova esquerda, nasce querendo ser a velha esquerda122.

121 NIETO MONTESINOS, Jorge. ¿Vieja o Nueva Izquierda?. In: ADRIANZÉN, Alberto. Pensamiento político peruano… Op. Cit. nota 22, p. 382. 122 Ibid. p. 383.

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A adesão ao marxismo-leninismo, a retomada de velhos ícones da década de

1930, como Mariátegui e o aprismo radical de El antiinperialismo y el Apra123 de Haya de la

Torre, e a opção armada para a revolução, somente fizeram com que a esquerda reproduzisse

velhos questionamentos. De outra maneira, a sua opção pela via guerrilheira, se apresentou

como cópia e não como criação, reduzindo as peculiaridades dos problemas peruanos às

sínteses internacionais. Segue o autor, Neste contexto, a nova esquerda se comportou segundo o velho mecanismo refletido no pensamento revolucionário. Simplificava a revolução triunfante, se imitava e se esperava que a revolução surgisse segundo uma percepção fixada nas retinas da nova esquerda124.

Para as questões nacionais, como a reforma agrária e a incorporação de

reivindicações camponesas às ações políticas, Nieto defende que essas já eram idéias

propostas pelo social-progressismo e, portanto, mais uma vez, não eram novidades. Tais

interpretações levam o autor a afirmar que aquilo que se chamou de nova esquerda não existiu

como realidade efetiva.

De qualquer maneira, nova ou não, a esquerda conseguiu produzir agitações

políticas, marcando sua atuação por meio da guerrilha no campo e dando origem àquilo que

chamaremos de primeira fase da nova esquerda. Esta fase duraria até 1968, ano em que

ocorreu o golpe militar de Velasco Alvarado.

Na primeira fase, temos destacadamente a atuação de jovens

intelectuais/universitários que abandonaram as cidades e partiram para o campo em busca de

organizar movimentos camponeses na luta por terras e o enfrentamento com os gamonales,

como ocorreu com Hugo Blanco, em 1962, na região de La Convención, próxima à Cuzco.

Mais tarde, esta atuação incorporaria táticas de guerrilha e, em alguns casos, desfrutaria do

apoio e financiamento de Cuba no treinamento de militantes na própria ilha, como ocorria

com os quadros do MIR.

Para Peter Kláren, a vinculação entre o público universitário e a atuação das

guerrilhas pode ser assim observada:

Quando a população estudantil veio a tona na década de 1960 e as frustrações dos universitários cresceram, o êxito repentino e inesperado da Revolução Cubana, assim como a fragmentação do comunismo internacional, captaram rapidamente sua atenção e sua imaginação. [...] Em

123 El Antiimperialismo y el Apra é uma obra de Víctor Raúl Haya de la Torre publicada em Santiago, Chile, pela editora Ercilla em 1936. Nela aparecem os principais objetivos do aprismo e a sua estratégia de atuação política que serviria de guia para os militantes até meados da década de 1940. 124 NIETO MONTESINOS, Jorge. ¿Vieja o Nueva Izquierda?... Op. Cit. nota 121, p. 385.

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85

1965, De la Puente e o MIR estabeleceram seu quartel general na planície de Mesa Pelada, na cordilheira oriental dos Andes, perto de Cuzco e não longe de La Convención, unindo-se a eles outros chefes guerrilheiros para planejar a operação conjunta de outros grupos, o Ejército de Liberación Nacional (ELN), fundado por Héctor Bejár e com o vínculos com o PCP, e Túpac Amaru, uma facção do MIR liderado por Guillermo Lobatón. Dois anos antes, o ELN havia enviado um pequeno grupo de jovens intelectuais que retornavam de Cuba para que ajudassem a Hugo Blanco em La Convención125.

Peter Klarén apresenta de maneira clara a vinculação entre as seguidas

guerrilhas do período de 1963 a 1965. Também evidencia o foto de que os dirigentes desses

movimentos rebeldes e guerrilheiros, como Luis de la Puente Uceda, Guillermo Lobatón,

Héctor Bejár e Hugo Blanco, pertenciam aos setores universitários peruanos. Como vimos em

Jorge Nieto, os universitários representaram um núcleo de resistência, uma vez que se viam

como intérpretes das reivindicações camponesas à luz do marxismo acadêmico126.

O fracasso dos movimentos guerrilheiros de 1965, com o MIR e o ELN, e a

morte de Che Guevara, em 1967, representaram um duro golpe para a guerrilha enquanto

estratégia de tomada de poder no Peru. Além disso, o golpe de 03 de outubro de 1968

deflagrado pelo General Velasco Alvarado, levou a nova esquerda a reavaliar a sua posição

revolucionária. De certa forma, o governo militar assumiu como bandeira algumas

reivindicações que eram próprias da esquerda na década de 1960, como: a reforma agrária e o

fim do latifúndio; a distribuição de terras entre as comunidades coletivistas andinas; e o anti-

imperialismo, representado pela estatização das principais companhias norte-americanas.

Assim, a oligarquia e o capital estrangeiro, velhos inimigos da esquerda, passavam a ser

combatidos também por outro rival histórico dos movimentos esquerdistas: o Estado.

Tais medidas adotadas pelo Estado fizeram com que boa parte dos

guerrilheiros da década de 1960 se aliasse a Velasco e apoiasse as políticas estatais

defendendo o real caráter revolucionário do Gobierno Revolucionario de las Fuerzas

Armadas. Héctor Bejár, um dos membros da esquerda guerrilheira, ao aderir aos projetos de

Velasco, compreendeu que o regime militar colocou em marcha um verdadeiro processo

revolucionário no Peru, possibilitando que a esquerda ganhasse um protagonismo até então

desconhecido. Por conta disso, apoiar Velasco representava uma maneira de continuar

trabalhando em prol da revolução no Peru. Essas idéias aparecem em seu livro Las guerrillas

de 1965 e também no artigo mencionado anteriormente.

125 KLÁREN, Peter. Nación y Sociedad… Op. Cit. nota 19, p. 400-401. 126 De certa forma a origem universitária seria uma característica da nova esquerda em todos os seus períodos. O próprio Sendero Luminoso, que se desenvolveu ao longo da década de 1970 e apareceu com força na década de 1980, era liderado por Abimael Guzmán, um professor universitário de filosofia.

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Para Jorge Nieto, porém, a chegada de Velasco não marcou apenas a adesão da

esquerda guerrilheira ao Estado, mas também, o início de um rompimento geracional que

resultou na reformulação e revitalização da atuação militante da nova esquerda. Como sugere

o autor, o fim das guerrilhas, não representaria, portanto, o fim da nova esquerda, mas uma

revisão de suas práticas e o início de uma nova fase.

Na realidade, a nova geração, auto-proclamada de a geração de 1968127 em

clara alusão a Velasco, ao se afastar das estratégias de guerrilha utilizadas na década de 1960,

conseguiu apresentar saídas, como o classismo, para a encruzilhada imposta pelo GRFA que,

ao assumir para si “o conjunto de bandeiras e transformações que haviam sido pedidas pela

esquerda durante décadas passadas, provoca o esgotamento do pensamento de esquerda do

país”128.

Este balanço geracional teria começado ainda na década de 1960. Um exemplo

disso seria o folheto organizado por Ricardo Letts, líder estudantil nos anos das guerrilhas e

um dos importantes membros da nova geração emergente, intitulado Perú: Revolución,

insurrección y guerrillas de 1966. Neste documento, ao fazer um balaço autocrítico das

experiências passadas, Letts realiza uma crítica ao que ele considerava as teorias foquistas da luta guerrilheira; em segundo lugar, desenvolve uma minuciosa análise da operação militar que havia atacado o que apareciam como pontos fracos da estratégia guerrilheira do MIR; e, finalmente, critica o conjunto de ações guerrilheiras dessa época para valorizar o animo revolucionário das massas129.

A partir de então, a nova geração de jovens universitários e intelectuais

oriundos da universidade, passaria a defender que o verdadeiro caminho para a revolução não

estava no apoio ao Estado, como advertiu Bejár, mas na formação de uma consciência de

classe entre as massas de trabalhadores e camponeses. Como escreveu Eduardo Cárceres130, o

governo militar foi interpretado por esses jovens como reformista, capaz de produzir tão

somente uma caricatura de revolução e, por conta disso, era necessário uma atuação que se

desenvolvesse independentemente dessas políticas estatais. Tinha início, dessa maneira, a

segunda fase da nova esquerda que perduraria até o final da década de 1970 e a convocação

da assembléia constituinte.

127 Além do GRFA, esta geração também se chamou de 1968 por conta da influência do maio francês e a importância dada à juventude naquele “movimento político-cultural”. 128 NIETO MONTESINOS, Jorge. ¿Vieja o Nueva Izquierda?... Op. Cit. nota 121, p. 388. 129 Ibid. p, 387-388 130 Cf. CARCERES, Eduardo. Introducción… Op. Cit. nota 21.

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Para Nieto, o texto que melhor representa a reorganização estratégica da nova

esquerda foi o artigo de Edmundo Murrugarra, Las Tareas Actuales del Proletariado y la

Izquierda Marxista-Leninista (A Propósito de la Aparición del Frente de Apoyo y Solidaridad

Obrero-Campesino-Intelectual), publicado na revista Crítica marxista-leninista n. 04 em

1972. Entre as diversas críticas apresentadas à ação da esquerda, Murrugarra, propõe quatro

novas orientações: a) a ordem de ir às massas, e em particular a de impulsionar o desenvolvimento do classismo nos associações operários; b) produzir o que ele chama de inversão teórica e desenvolver então pesquisas sociais a partir do marxismo-leninismo; c) a necessidade de aproveitar os espaços abertos pelo processo velasquista e desenvolver a luta de massas, mostrando as limitações desse processo; e d) a necessidade de afirmar, nesse desmascaramento, a ideologia marxista-leninista131.

Ainda que considere a formulação de novas estratégias de atuação política,

Nieto observa que, no campo ideológico, existiram poucas alterações, uma vez que a nova

geração aderiu “fielmente” ao marxismo-leninismo.

De qualquer maneira, seguindo essas orientações, a nova geração passaria a

atuar principalmente junto às barriadas, aos clubes de migrantes, aos movimentos sindicais e

as comunidades de bairros naquilo que se denominou classismo. Sendo assim, diferentemente

da primeira fase da nova esquerda, que possuiu o campo como seu palco primordial, a geração

de 1968 atuou principalmente nas cidades, com destaque para Lima. Desta forma, com o

objetivo de desmascarar o processo velasquista, atacou o ponto fraco do GRFA que era a sua

incapacidade de mobilização político-partidária junto às camadas populares, desenvolvida

então pelo SINAMOS.

Como alternativa ao SINAMOS, realizou um trabalho de conscientização das

massas de trabalhadores e migrantes, visando produzir uma consciência de classe e organizar

o movimento operário na cidade de Lima. Aos jovens de então, caberia desempenhar uma

dupla função, elaborar novas interpretações da realidade social peruana nos bancos das

universidades e praticá-las junto aos trabalhadores em busca da preparação de novas

lideranças políticas que fossem oriundas do próprio movimento trabalhador ou camponês.

Outra característica desse período foi a aproximação de setores católicos à

nova esquerda como resultado de novos questionamentos sobre o papel da Igreja na promoção

de justiça social trazidos pela Teologia da Libertação. Por conta disso, a atuação de

131 NIETO MONTESINOS, Jorge. ¿Vieja o Nueva Izquierda?... Op. Cit. nota 121, p. 390.

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intelectuais e instituições católicas, como a Pastoral do Andino, junto à nova esquerda,

também contribuiu para uma aproximação dos intelectuais aos setores populares.

O resultado desses trabalhos ficou evidente com as greves nacionais, os

comícios públicos em bairros operários, as barricadas camponesas interrompendo estradas, as

mobilizações estudantis, as marchas de mineiros, entre outras ações que surgiam da

colaboração entre estudantes e trabalhadores e serviram como pressão para o governo militar

elaborar novas políticas salariais e rever as legislações trabalhistas deste período. Carlos

Contreras e Marcos Cueto, afirmam que “o radicalismo nas formas de luta e o desprezo pela

“legalidade” e pela “democracia parlamentar” caracterizou o movimento [...]. A via da

mobilização popular, a insurreição armada, e o não às eleições seriam a maneira de tomar o

poder”132. Assim se expressou o classismo.

Maruja Martínez, historiadora e militante da geração de 1968, avalia que, para

os intelectuais o classismo, configurou-se como “a ‘ida ao povo’ do final da década de 60 e

início da de 70 [... e] acompanhou a reconstituição da CGTP e de muitas de suas federações, a

expulsão da APRA do sindicato dos bancários, a construção de agremiações sindicais,

camponesas, de bairro e juvenis, etc”133. Estas conquistas serviram para que, finalmente, a

esquerda se aproximasse das “multidões”.

Neste sentido, a atuação da nova esquerda por meio do classismo produziu um

novo público para os partidos de esquerda e ampliou o seu campo de influência. No entanto,

paradoxalmente, o trabalho que visava a conscientização das classes para a revolução armada,

teve como conseqüência o fortalecimento da opção democrática para o poder.

Em meio à euforia da adesão trabalhadora à nova esquerda, resultante das

greves, do trabalho nas barriadas, das marchas camponesas e da intensificação da crise

econômica, um setor considerável da nova esquerda optou por participar das eleições para a

formação da Assembléia constituinte de 1978. De certa maneira, o resultado das urnas,

animou os indecisos a aderir à via democrática. Naquela eleição, como vimos no capítulo

anterior, a nova esquerda, representada por várias alianças pluripartidárias, conseguiu atingir

36% dos votos, com destaque para a ARI (Alianza Revolucionaria de Izquierda), liderada por

Hugo Blanco.

Esta opção, apesar de não marcar o fim do radicalismo na nova esquerda, já

que organizações como o MRTA e o Sendero Luminoso, mantiveram-se adeptos da

132 CONTRERAS, Carlos & CUETO, Marcos. Historia del Perú... Op. Cit. Nota 18, p. 343. 133 MARTÍNEZ, Maruja. Una vez más, sobre la generación del 68. In: Márgenes: encuentros y debates . Ano IV, n. 7. Lima: SUR, 1991, p. 119.

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insurreição armada, intensificando suas ações na década seguinte, representou o início da

terceira etapa da nova esquerda, marcada pela opção democrática de atuação política. A

grande votação recebida por Hugo Blanco na Constituinte de 1978 demonstrava que a

esquerda saia de um espaço de marginalidade para atingir seu maior protagonismo na política

democrática peruana.

No entanto, os resultados não foram os mesmo nas eleições presidenciais de

1980 e a nova esquerda, dividida ainda em três alianças, perdeu as eleições para Fernando

Belaúnde Terry. Ao invés de provocar o desanimo perante à democracia, o resultado

promoveu a união entre todos os partidos da nova esquerda em um único movimento: a

Izquierda Unida. De certa maneira, a terceira fase da nova esquerda e a formação da IU

marcaram o encontro das duas gerações que protagonizaram os movimentos esquerdistas das

décadas de 1960 e 1970: os guerrilheiros e os classistas. Apareceram lado a lado líderes como

Blanco e Javier Diez Canseco, figuras emblemáticas dos movimentos estudantis da década de

1970. A união entre as duas gerações demonstrou que a esquerda da década de 1960 não

possuia apenas sutis relações com a esquerda democrática da década de 1980, como defendeu

Bejár. Ao nosso ver, os movimentos esquerdistas das décadas de 60 e 80 configuram-se como

etapas diferentes de uma mesma “nova esquerda”.

Logo em sua primeira disputa, a IU conseguiria eleger Alfonso Barrantes para

o importante cargo de prefeito de Lima. No entanto, foi o seu único êxito eleitoral. Em

contrapartida, longe das cidades, a ala radical da nova esquerda ampliou a sua influência

sobre as regiões serranas do sul peruano. Ao longo da década avançaram sobre o campo,

cooptaram camponeses e chegaram às cidades por meio da adesão de andinos nas barriadas.

A atuação na zona urbana ficaria marcada por ataques violentos aos prédios públicos e às

organizações governamentais. Posteriormente, os ataques se estenderiam aos bairros de classe

média alta, como Miraflores e San Isidro e aos seus moradores.

Ao longo da década de 1980, enquanto a esquerda legalista foi perdendo

vitalidade e não conseguiu produzir respostas diante da crise que assolava o Peru, a esquerda

armada ganhou adeptos e simpatizantes nos movimentos sociais e, até mesmo, em uma

pequena parte da esquerda legalista. Por outro lado, a maior parte dos movimentos

democráticos de esquerda passou, cada vez mais, a repudiar as ações senderistas, que já

naquele momento eram rotuladas de terroristas.

De certa maneira, a oposição acirrada ao Sendero e a falta de opções para um

país sem rumo desfigurou a esquerda democrática, realçando suas diferenças pluripartidárias e

abrindo espaço para o avanço da direita. Antes mesmo das eleições de 1990, que elegeriam

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Alberto Fujimori, a IU não existia mais. Enquanto isso, a esquerda armada continuava

avançando sobre o campo e atacava constantemente a capital federal.

Em síntese, a trajetória que elaboramos da nova esquerda peruana procurou

dividi-la em três etapas distintas, marcadas essencialmente pela guerrilha da década de 1960;

pelo classismo dos anos 1970; e pela dualidade radicalismo/democracia da década de 1980.

No entanto, isso não quer dizer que, no decorrer dessas três décadas a esquerda unida possuiu

um pensamento homogêneo. A existência de uma hegemonia com relação a determinada

prática de atuação política, como foi a guerrilha ou o classismo, não representou a ausência de

contradições ideológicas e práticas dentro da nova esquerda. Ao contrário, as diversas

influências do pensamento comunista no plano interno e as várias leituras sobre a realidade

peruana dentro da própria esquerda deram origem à um número incontável de partidos e

organizações políticas.

Ao longo de sua história, a nova esquerda sofreu inúmeras cisões entre os

movimentos que a compuseram. Desde o final da década de 1950 até meados da década de

1980, a crise da esquerda tradicional, os reflexos das revoluções chinesa e cubana e o debate

entre as vias democráticas, classista e guerrilheira para a revolução, levariam a dissidências

constantes entre os partidos e movimentos políticos que a compunham.

Entre todos, o PCP foi o partido com o maior número de ramificações. Em

1978, por exemplo, existiam seis diferentes partidos comunistas originados do PCP, seriam

eles: o PCP-ER (Estrella Roja), o PCP-SL (Sendero Luminoso), o PCP-PR (Patria Roja), o

PCP-ML (Marxista Leninista), o PCP-BR (Bandera Roja) e o PCP-U (Partido Comunista

Peruano de la Unión). Somado a esses, não podemos nos esquecer do ELN citado

anteriormente. Apesar de todos terem em comum suas fortes críticas ao PC de Moscou, não

conseguiram se unir ao redor de um só líder ou uma única linha ideológica. Por conta disso,

essas agremiações possuíram as mais diversas orientações do pensamento comunista daquele

momento, como o maoísmo, o guevarismo e o foquismo, o trotskismo e o stalinismo134.

Além das dissidências do PCP, outros movimentos políticos (de atuação

radical, partidária ou classista) ligados à causa revolucionária de orientação chinesa, trotskista

ou soviética, surgiram naquele período, como o Partido Proletário del Peru, o Partido

Comunista Revolucionário del Perú, o Partido Socialista Revolucionário del Perú, entre

tantos. Assim, em 1973, a nova esquerda estava composta por 53 partidos como ressaltou o

134 Cf. KLÁREN, Peter. Nación y Sociedad… Op. Cit. nota 19.

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historiador Nelson Manrique135. Mas, seguramente, atingiu a soma de mais de 60 até o final

da década de 1970.

Talvez, o pluripartidarismo que marcou a história da nova esquerda tenha sido

um dos responsáveis pelo seu avanço junto às camadas populares, uma vez que abrangia

diferentes públicos, de acordo com sua orientação política e ideológica. De qualquer maneira,

foi nesse momento em que a esquerda conseguiu apresentar ao grande público o socialismo e

o marxismo como um caminho para o Peru, convertendo-se em um dos elementos primordiais

para a compreensão da política peruana a partir da década de 1970.

Ainda que no campo ideológico não tenha apresentado muitas novidades, como

afirmou Jorge Nieto, a nova esquerda soube construir um espaço de atuação junto às classes

trabalhadoras e camponesas que lhe permitiu obter um destaque jamais alcançado pela

esquerda tradicional entre 1930 e 1960. De acordo com o comentário do cientista político

Alberto Adrianzén, ao artigo de Nieto, “[...] a Nova Esquerda será nova na busca por novos

espaços e também, em menor medida, de práticas sociais, porém velha no plano ideológico e

com no que se refere ao pensamento político”136.

Por outro lado, essa falta de criatividade no campo ideológico não representou

a ausência do pensamento crítico da esquerda seja na adesão às ideologias externas ou na

retomadas de orientações do comunismo e do aprismo primitivos. Queremos dizer que, a

filiação ao foquismo, ao maoísmo, ao trotskismo, ao marxismo-leninismo, e outros tantos

ismos, não significou a negação das características próprias da realidade peruana e a busca de

uma estratégia de construção de um socialismo nitidamente peruano. Como veremos adiante,

a retomada de Mariátegui, comum a todos os membros da nova esquerda, é um claro intento

de se pensar tais influências por meio de um viés peruano.

De qualquer maneira, é preciso que façamos uma reflexão em torno da

apropriação que intelectuais e movimentos políticos fazem de ideologias externas. Esse

movimento não se constitui como uma simples tradução ou cópia. A importação de idéias

ocorre, pois, de alguma maneira, tais teorias fazem sentido para uma determinada localidade.

Esta é uma problemática levantada por Gerardo Leibner ao analisar a

influência de correntes européias no pensamento de Mariátegui, com a qual concordamos.

135 MANRIQUE, Nelson. Cambiar El Mundo, Cambiar La Vida. In: LÓPEZ JIMÉNEZ, Sinesio (dir). Homenaje a Alberto Flores Galindo: otro mundo es posible. Libros & Artes. Lima: Biblioteca Nacional del Perú, 2005, p. 9. 136 ADRIANZÉN, Alberto. Introducción: continuidades y rupturas en el pensamiento político. In: _____________. Pensamiento político peruano: 1930 – 1968… Op. Cit. nota 22, p. 26-27. Este artigo de Adrianzén é, na realidade, o texto de abertura do livro que congrega os outros textos de Nieto e Bejár também comentados por nós anteriormente.

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Segundo Leibner, “as idéias criadas em outra sociedade e em outras circunstâncias não

influenciam simplesmente o pensador, mas é ele quem as escolhe na medida em que elas

respondem a certas necessidades de sua reflexão”137.

Olhando dessa maneira, podemos compreender, por exemplo, a reinterpretação

do maoísmo para o Peru como uma forma de se estabelecer relações entre a força do

camponês no movimento chinês e o papel que este poderia possuir para uma revolução no

Peru. O mesmo ocorre com a teoria da Revolução Permanente de Trotsky e sua interpretação

de que, em países de capitalismo tardio, a burguesia nasce em conflito com o próprio

camponês não elegendo a aristocracia rural como sua única inimiga como ocorreu em outros

países detentores de uma burguesia histórica. A interpretação do Peru como um país pré-

capitalista e, até mesmo, feudal era uma realidade no pensamento político daquela época que

o aproximava às teorias trotskistas.

Até mesmo a produção acadêmica produzida neste momento de aglutinação

universitária e militância partidária, nos permite afirmar a existência de uma preocupação em

se compreender elementos peculiares da realidade social peruana. Ainda que tivessem o

marxismo como principal método analítico, conseguiram enxergar em personagens

tipicamente peruanos, como o andino, os verdadeiros agentes da revolução. Um exemplo

claro disso foi a historiografia que surgiu junto com o classismo e a geração de 1968: a Nueva

Historia peruana.

2.2 A Nueva Historia peruana

Na década de 1970, a historiografia peruana passou por uma série de

transformações que alterariam não apenas os objetos e os métodos da história, mas a própria

função do historiador. De certa maneira, este não foi um fenômeno localizado. Os anos 1970,

por si só, representam a crise epistemológica das ciências como um todo. Na historiografia

européia, por exemplo, representou o início da terceira geração dos Annales.

O diferencial no caso peruano foi que as mudanças de paradigmas para a

pesquisa historiográfica vieram acompanhadas pelos direcionamentos da nova esquerda após

a chegada de Velasco Alvarado ao poder. A perspectiva do classismo de combinar a atuação

intelectual com a militância política assumida pela geração de 1968 fez com que as pesquisas

em história fossem direcionadas para a compreensão dos problemas sociais contemporâneos.

137 LEIBNER, Gerardo. El Mito del Socialismo Indígena en Mariátegui. Lima: PUCP, 1999, p. 12.

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93

Ao mesmo tempo, as necessidades apresentadas pelos militares de romper com

o modelo agro-exportador, iniciar um novo ciclo de modernização do país e transformar as

estruturas do desenvolvimento econômico peruano colocaram na pauta das discussões

políticas e acadêmicas temas como a reforma agrária, a revolução socialista, o papel do

andino e do camponês.

Neste sentido, motivados por sua atuação política junto às barriadas, às

mobilizações no campo e aos sindicatos, jovens historiadores passaram a elaborar estudos que

permitissem a inclusão desses temas na reconstrução de uma imagem do passado nacional.

Como não poderia deixar de ser, pensavam a história por meio de uma perspectiva marxista.

Segundo Paulo Drinot, em seu artigo Historiografia Peruana: onde estamos, como chegamos

e para onde vamos? sobre a historiografia peruana das últimas décadas, ,  

Eles não eram todos marxistas, mas todos, como apontou Pablo Macera, escreviam através de uma perspectiva marxista. Mais, eles se viam como membros de um movimento distinto, de uma vanguarda política e intelectual. Eles dividiam um mesmo objetivo: desafiar as correntes historiográficas tradicionais e contribuir para uma mudança radical da sociedade peruana. [...] Isto também é um produto de um contexto tão carregado ideologicamente e politicamente como era o final dos anos 70 e 80, onde ser professor de história e militante era considerado natural e necessário138.

Neste sentido, a renovação promovida na história não deveria passar apenas

pela questão do método, mas também pela própria concepção do trabalho do intelectual e a

sua necessidade de se engajar em questões políticas. Esta perspectiva é reforçada quando

lemos alguns comentários feitos por Manuel Burga a respeito de sua geração no livro La

Historia y los historiadores en el Perú. Segundo o autor:

Éramos todos emotiva ou coativamente marxistas, e o grande objetivo era converter a atitude sentimental em atitudes intelectuais, traduzir os encontros, os discursos, os slogans, os gritos durante as marchas, em investigações, reflexão intelectual, narrativa, poesia, história, sociologia, arqueologia e antropologia139.

Para se empreender estes novos estudos, romperam com o modelo

historiográfico vigente no país que concebia a história como a narrativa dos grandes feitos e

dos grandes líderes e se posicionaram como artífices de uma Nueva Historia Peruana. Em um

momento de esperança e confiança no futuro, era preciso se desligar da “história tradicional”

e de sua perspectiva pessimista à respeito da história nacional. Como aponta Miguel Glave,

138 DRINOT, Paulo. Historiografia Peruana: onde estamos, como chegamos e para onde vamos? In: WASSERMAN, Cláudia. Anos 90 Revista do Programa de Pós-Graduação em História, Porto Alegre: UFG, 2003, p. 66. 139 BURGA, Manuel. La Historia y… Op. Cit. nota 113, p. 109.

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94

a crítica como um todo feita ao que grossamente se denominava “história tradicional”, associada aos feitos militares e diplomáticos, aos personagens ideologizados, aos feitos isolados, ao descritivo, veio apoiada na transformação dos temas e métodos que apontavam para a construção de um novo discurso de tipo científico e objetivo.

Para os historiadores dessa nova geração, a historiografia tradicional havia

implantado uma tradição “ucrônica” na construção do discurso histórico. O primeiro a

observar esta peculiaridade foi Jorge Basadre em seu artigo Ucronías, ainda na década de

1930140. O termo ucronia possui sua origem na obra Uchronie. L’utopie dans l’histoire

(Ucronia, a utopia da história) do historiador francês Charles de Rougard Renouvier, de

1876. Neste trabalho, Rougard, sob forte influência comtiana, imaginou uma história da

Europa “se” não houvesse existido o cristianismo.

A ucronia, portanto, resulta do esforço de se realizar uma leitura do passado

levando em conta fatos que não se consolidaram. Uma história daquilo que não é, mas poderia

ser141. No caso da historiografia peruana, tal tradição resulta na leitura do passado diante das

possibilidades perdidas.

Ao reconstruir acontecimentos repletos de eventos potencialmente realizáveis,

mas que não se concretizaram, os historiadores peruanos acabaram por converter o passado

em um fardo de frustrações. A história do “e se”, criou para o país uma leitura negativa de sua

formação e fixou na memória coletiva um sentimento de desilusão. Diante desta imagem do

passado, a sociedade contemporânea não poderia ter outra realidade senão um presente de

fraquezas e derrotas.

Durante as décadas de 1970 e 1980, o sentimento não poderia ser outro senão o

da necessidade de se desvincular dessa tradição e produzir no Peru uma verdadeira nova

história. Magdalena Chocano, colocou essa problemática em seu artigo Ucronía y frustración

en la conciencia histórica peruana, de 1987, quando argumentou No processo da historiografia peruana, a retórica da ucronia derivou em formas que tendem a contemplar o curso da história peruana como um produto de determinadas “ausências” ao invés de uma dialética de efetivas “existências”. [...] Gostaria que ao seguir as raízes dessa atitude, assentadas no não-ser, não-poder, como essência de nossa história, fosse possível começar a nos afastarmos dela, instalando em contrapartida a possibilidade de um discurso histórico como expressão autêntica e crítica daquilo que, efetivamente, somos142.

140 BASADRE, Jorge. Ucronías. In: ________. Meditaciones sobre el discurso histórico en el Perú. Huascarán, 1947. 141 Cf. CÁCERES, Eduardo. “No hay tal lugar”… Op. Cit. nota 102, p. 24. 142 CHOCANO, Magdalena. Ucronía y frustración en la conciencia histórica del Perú. In: Márgenes. Ano I, n. 2. Lima: SUR, 1986, p. 46.

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95

Ao “seguir as raízes dessa atitude”, Chocano encontrou um ponto de partida

nos trabalhos de José de la Riva Agüero. Para a autora, a geração de Riva Agüero, a chamada

geração dos novecentos, era profundamente marcada pelos acontecimentos históricos

ocorridos durante a Guerra do Pacífico (1879-1883). O desastre do conflito armado e a

acachapante derrota diante dos chilenos provocaram um fenômeno de culpa nas elites

peruanas. Frente a este dilema, Riva Agüero, enquanto intelectual orgânico da aristocracia

responsável pela derrota, buscou na história do país uma maneira de negar a culpa. Assim,

Para evitar os perigos que a noção de “culpa” implicava, Riva Agüero forjou uma explicação da história peruana baseada na idéia das “oportunidades desperdiçadas”, das “felizes oportunidades desaproveitadas”. Porém, através deste recurso instaurava a sensação do inacabado, do não cumprido no núcleo do pensamento histórico143.

Chocano defende que, por meio das interpretações elaboradas por Riva

Agüero, a derrota para o Chile deixou de ser culpa da aristocracia e se converteu em

conseqüência de condições históricas não realizadas, que culminaram na formação de uma

aristocracia desorganizada. “Se” isso não tivesse ocorrido, o resultado da guerra seria outro.

É importante ressaltarmos que Riva Agüero é o autor que marca o início da

historiografia moderna no Peru. A publicação de seu livro em 1910 com o título La história

en el Perú, representa o primeiro intento de se produzir uma síntese interpretativa da história

nacional. Neste sentido, a historiografia moderna no Peru já nasceu com o estigma da ucronia.

A historiografia inaugurada por Riva Agüero ganhou espaço ao longo das

décadas e se estabeleceu como discurso historiográfico hegemônico no Peru. Outra

importante corrente da década de 1920, o indigenismo de Luis Valcárcel, Emílio Romero e

Julio Tello, não soube construir o mesmo espaço e permaneceu praticada por poucos. De certa

maneira, a proximidade da historiografia tradicional com a elite política peruana, transformou

suas interpretações historiográficas em uma espécie de “história oficial” do país.

Enquanto história oficial, essa corrente reconhecida pelos historiadores

peruanos da Nova História como tradicional, produziu uma auto-imagem do Peru que se

assemelhou muito mais ao reflexo de sua elite, levando em consideração os traços de sua

herança espanhola e sua tradição criolla, ao mesmo tempo em que relegou à margem a figura

do andino e do indígena. Nesta interpretação, o símbolo da identidade peruana era Garcilaso

de la Vega, ressaltado em suas características espanholas e em sua erudição e educação

criolla. A mestiçagem, neste caso, apareceu como uma ode ao sucesso da empresa espanhola

143 Ibid. p. 48.

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96

na América. Justamente por isso, a história tradicional também seria designada como corrente

historiográfica hispanista.

A perspectiva inaugurada por Riva Agüero teve continuidade tanto em

membros da geração posterior à sua, como Jorge Basadre, Raúl Porras e a geração do

centenário, quanto em seus seguidores e discípulos, destacadamente Guillermo Lohmann e

José Augustín de la Puente.

Ainda que Basadre não se apresente como discípulo de Riva Agüero e, em

contraposição às elites oligárquicas, se afirme enquanto um intelectual ligado à classe média e

aos setores urbanos, características de sua geração, sua forma de pensar os caminhos da nação

passavam inevitavelmente pela perspectiva ucrônica da história “tradicional”. Segundo

Chocano, “Jorge Basadre prosseguirá o rumo traçado por Riva Agüero, enriquecendo a visão

original com novos elementos e reflexões”144, reafirmando que “a história do Peru no século

XIX é uma história de oportunidades perdidas, de possibilidades não aproveitadas”145.

Já Lohmann e Augustín de la Puente representam uma continuidade mais fiel

ao pensamento de Riva Agüero: tanto no “não-ser” da história, quanto na concepção de

existência de uma identidade construída por meio da permanência da tradição espanhola. Os

trabalhos de Lohmann, por exemplo, se dedicaram ao estudo dos espanhóis no Peru.

No entanto, da mesma maneira que as correntes políticas entraram em crise a

partir da década de 1950, o mesmo ocorreu com a historiografia. A perda da legitimidade da

oligarquia e as transformações sociais apresentadas pelos levantes camponeses e as

migrações, tiraram de cena os intelectuais representantes da história oficial. A história

enquanto exercício de construção da nação e de legitimação de um discurso oficial cedeu

espaço aos historiadores profissionais, vindos das universidades.

O período de Odría, o investimento em educação, a expansão do ensino

superior e os altos salários docentes fizeram da universidade um excelente refúgio para o

historiador. Como recorda Burga, “na época do reitorado de Don Efraín Moroet Best, anos 60,

um jovem assistente da Universidade de Huamanga ganhava mais que um juiz da Corte

Superior de Ayacucho e mais que um empregado bancário”146.

A ausência do historiador no campo político nas décadas de 1950 e 1960

permitiu que a geração da Nova História não encontrasse resistência em sua atividade

historiográfica/militante. De certa maneira, o surgimento da Nova História não apenas

144 Ibid. p. 49-50. 145 BASADRE, Jorge. Ucronias. Op. Cit. nota 140, p. 138-139. 146 BURGA, Manuel. La Historia y… Op. Cit. nota 113, p, 110.

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97

representaria a reconciliação do historiador com a política, como também a retomada da

história enquanto um exercício de criação de uma consciência histórica nacional. Ainda que

esta consciência nacional não passasse mais pela construção de uma visão geral e ampla do

país, dando-se mais atenção à história de elementos particulares e tradições locais, os

historiadores da nova geração partiam em busca das “verdadeiras” heranças nacionais147.

Como sugere Drinot,

o propósito desta nova história não era basicamente contribuir para a discussão historiográfica peruana, mas sim mudar a consciência histórica nacional: eles pretendiam reescrever a história peruana de uma maneira que pudesse revelar o sistema de dominação oligárquico desde a Conquista que havia escravizado os peruanos, e reclamar tradições de resistência que indicavam o potencial revolucionário das classes subalternas148.

A primeira obra a marcar o início das produções dessa chamada Nova História

foi o ensaio, La independencia en el Perú, escrito por Heraclio Bonilla e a historiadora norte-

americana Karen Spaldin, de 1971. O ano é emblemático pois marcou a comemoração dos

150 anos de proclamação de independência do Peru. No entanto, o artigo de Bonilla e Spaldin

somente veio a ressaltar que nada havia a se comemorar. Entre as várias críticas que o texto

faz à independência do país, destacam-se o ataque à elite criolla e à ausência da nação,

apresentando uma emancipação sem heróis nacionais, como o resultado de falência do sistema

colonial, ou, um constructo importado por Bolívar e San Martín.

Parecia urgente a necessidade de identificar novos heróis nacionais, novos

sujeitos responsáveis pela verdadeira imagem do Peru. Homens e mulheres que estavam à

margem da história oficial. Reclamar tradições de resistência que indicavam o potencial

revolucionário das classes subalternas. Dar voz aos vencidos e iniciar uma história de los de

abajo149.

Dentro dessa concepção, aparece, pois, a temática do andino e do camponês

como objetos centrais, e não mais coadjuvante da história do Peru. Mais do que isso, passou-

se a valorizar a pluralidade cultural do mundo andino, as várias tradições e os vários grupos

147 Apesar de existirem obras como as de Pablo Macera Visión Histórica del Perú (1978) e História del Perú (1980) de Mejía Baca, a maioria das produções priorizam uma visão mais fragmentada do país, valorizando as peculiaridades regionais em seus estudos. No lugar da história unitária, da história tradicional e da história dual dos indigenistas, surge a visão de um país plural. 148 DRINOT, Paulo. Historiografia Peruana ... Op. Cit. nota 138, p. 58. 149 Além de novos objetos e novas abordagens, a Nova História peruana trouxe também novas fontes. Pablo Macera analisaria as pinturas populares (ver Pintores Populares Andino de 1979); Nelson Manrique e Henrique Urbano recorreriam à relatos orais (ver respectivamente Campesinado Nación: las guerrillas en la guerra com Chile de 1981 e Inkarri antes y después de los antropólogos de 1986); Franklin Pease estudaria os mitos (ver El Díos Creador Andino de 1973); Manuel Burga se aproximaria das festas (ver Nacimiento de la utopia de 1986), entre outros.

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étnicos que o compõe em detrimento da antiga visão globalizante do mundo andino. O

reconhecimento de que o Peru era um país plural era uma das maneiras de se estabelecer uma

identidade nacional que comportasse essa diversidade, ao invés de se buscar uma nação única.

Para desenvolver essa concepção da história e da cultura peruana, os autores

recorreram à utilização de métodos próprios da antropologia e da psicologia, incorporando-os

à rotina da pesquisa historiográfica. Eram necessárias novas ferramentas para compreender a

pluralidade do pensamento e dos símbolos culturais produzidos pelos novos atores históricos

descobertos. Contudo, não apenas a antropologia e a psicologia se apresentaram como

referência importante para esses historiadores. Na realidade, “os arquitetos desta nova história

traziam como influência um eclético ‘mix’ de perspectivas teóricas estrangeiras, incluindo a

nova História Social inglesa, o Marxismo Althusseriano, os Annales franceses (de onde

retiraram o conceito de “nova história”) e a teoria da dependência”150.

A teoria da dependência, por exemplo, serviu como base para a crítica ao

modelo agro-exportador adotado pelo Peru ao longo de sua história republicana. Segundo os

teóricos peruanos da teoria da dependência o modelo agro-exportador implantado no Peru

impossibilitou o surgimento de uma burguesia forte no país, capaz de produzir um conflito

entre as classes, relegando o país à dependência do capital externo, mais especificamente dos

EUA.

A influência dos Annales sobre a Nova História peruana não se deu somente

por parte das referências historiográficas da terceira geração. É bem verdade que a perspectiva

apresentada por autores como Carlos Ginzburg de conceder voz aos vencidos e trabalhar com

a perspectiva da “micro-história” atendia aos novos direcionamentos do trabalho

historiográfico dos peruanos. O estudo das “mentalidades”, sugerido por Le Goff, foi outra

perspectiva que despertou a atenção dos trabalhos acadêmicos de então. No entanto, muitos

dos historiadores da Nova História peruana haviam sido alunos e orientandos de Ruggiero

Romano, Pierre Vilar e Fernand Braudel, sendo inegável a influência da chamada segunda

geração dos Annales e da perspectiva da “longa duração” sobre suas obras.

A História Social inglesa, por sua vez, permitiu empregar um viés cultural aos

estudos sem perder de vista a dimensão marxista de suas pesquisas. Os trabalhos sobre a

classe trabalhadora inglesa de E. P. Thompson se tornaram uma referência inevitável, bem

como os estudos de Eric Hobsbawn sobre o marxismo.

150 DRINOT, Paulo. Historiografia Peruana... Op. Cit. nota 138, p. 57.

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99

Na realidade, esta necessidade de contar com novos métodos de pesquisa para

realizar suas investigações não representou o abandono da concepção marxista de sociedade e

de história. Ao contrário, em muitos trabalhos é possível relacionar o estudo de antigas

sociedades peruanas como uma forma de se identificar permanências capazes de contribuir

para a implantação do comunismo no Peru. Foi assim que as sociedades andinas e sua

organização social elementar (ayllu), a reciprocidade andina (ayni), a redistribuição de

alimentos (arquipélagos incas) e tantos outros elementos do passado pré-colombiano, foram

utilizados como forma de unir a tradição andina ao socialismo. Justamente por isso, e também

como forma de negação à história tradicional, ocorreu uma retomada de trabalhos indigenistas

da década de 1920, bem como suas obras ganharam novas edições.

Outra influência para Nova História peruana que merece destaque é a presença

de muitos peruanistas, principalmente americanos e franceses, entre seus pesquisadores. A

estadia desses investigadores estrangeiros no Peru contribuiu para um intercâmbio de idéias e

de novos métodos de pesquisa, sobretudo nos campos da arqueologia e da antropologia. Sem

eles seria impossível imaginar os avanços dos estudos das civilizações pré-colombianas que

contaram com a contribuição indispensável de autores como John Murra151.

O interessante é que este contato com diversos tipos de referenciais vindos da

antropologia, da arqueologia e da psicologia, resultou no surgimento de um marxismo

heterodoxo, que superou os conceitos tradicionais de luta de classe, estrutura e superestrutura,

entre outros. Em seu lugar aparece a preferência por autores e conceitos considerados

marxistas heterodoxos. É um período de assimilação de obras de referências de George

Lucacks e Antonio Gramsci.

Da mesma forma que a geração de 1968 buscou, por meio do classismo, novos

locais de atuação política junto aos sindicatos, comunidades eclesiásticas, clubes de

migrantes, grêmios de trabalhadores e associações de bairros, a Nova História também

encontrou outros canais de produção e publicação de trabalhos para além da universidade.

Neste momento, surgiriam inúmeros centros e institutos de pesquisas que serviam de suporte

e assistência aos novos historiadores, disponibilizando desde um espaço físico para montarem

um escritório até financiamento para suas pesquisas. Além disso, organizavam e editavam os

livros com os resultados das pesquisas e os lançavam com o seu próprio selo editorial. Entre

os institutos podemos destacar alguns como o Seminário de História Rural Andina, o Curso

de Estudos Rurais do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Católica, o

151 Poderíamos citar outros peruanistas do período: Peter Elmore, Peter Kláren, Steve Stern, N. Wachtel, Florencia Mallon, Karen Spaldin, Rowe, Zuidema, entre outros.

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Seminário Permanente de Investigação Agrária, o Instituto de Apoio Agrário, o DESCO e o

Instituto Francês de Estudos Andinos. Tais ambientes institucionais se somariam à outros

espaços que já contribuíam para a análise crítica da sociedade peruana como o IEP152, que

existia desde 1964.

Manuel Burga, lembra-nos que Muitos evitamos a mediocridade do ambiente da universidade nacional com as bolsas, os projetos de investigação e as organizações não governamentais. O Instituto de Estudos Peruanos (IEP) e DESCO, com seus defeitos e perigos, aparecem como os paradigmas desses centros de salvaguarda e as vezes de domesticação para muitos intelectuais. [...] Eles, a pesar de tudo, são os lugares de encontro de gente muito variada que provém dos dois tipos de universidades [privada e pública], de classes sociais diferentes153.

Como podemos perceber na auto-análise produzida por Burga, o refúgio nesses

institutos representou, também, uma fuga dos meios institucionais do Estado, o que demonstra

o não alinhamento dessa geração ao velasquismo e a sua opção em trabalhar contra ele.

De qualquer forma não podemos dizer que todos os trabalhos produzidos pela

Nova História tenham seguido uma mesma linha de pesquisa. O leque variado de referenciais

impossibilitava que todos os autores se dedicassem a um mesmo campo de estudo. Por conta

disso, podemos dividir as pesquisas produzidas pela Nova História em duas linhas principais:

história econômica e história social. Mais do que simples linhas de investigação, essa divisão

também colaborou com a formação de perfis distintos de pesquisadores.

A história econômica se vinculou mais às discussões da teoria da dependência

e adotou uma posição menos politizada. Geralmente vinculados ao IEP, conseguiam bolsas

oriundas dos Estados Unidos para desenvolver seus estudos de forma independente ao Estado.

Já a história social crescia juntamente com o movimento estudantil da nova esquerda

recorrendo ao apoio dos centros de pesquisas não governamentais e às comunidades

vinculadas à Igreja (como a pastoral andina) para publicar seus trabalhos. De certa maneira, a

proximidade ao objeto de pesquisa realçou essa característica combativa.

Quanto aos membros da Nova História, é importante que façamos também um

esclarecimento. A Nova História não foi formada somente por membros da chamada geração

de 1968, ainda que eles sejam predominantes. Muito de seus professores, por compartilharem

das mesmas preocupações e empregarem novas perspectivas de pesquisa são inseridos nessa

152 Mais sobre o IEP, consultar: MARTÍNEZ SANCHEZ, J. El Instituto de Estudios Peruanos: de la ambición teórica de los años 60 al estupor táctico ante el fujimorismo. In: Anuario de Estudios Americanos. LVIII: I, 2001, p. 311-340. 153 BURGA, Manuel. La Historia y… Op. Cit. nota 113, p. 111 e 112.

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101

corrente, como é o caso de Heraclio Bonilla e Franklin Pease, mas principalmente de Pablo

Macera que, reconhecidamente fez parte da geração dos 1950.

Da mesma maneira, nem todos eram historiadores, muitos antropólogos e

sociólogos se juntaram aos historiadores, o que reflete a interdisciplinaridade dessa corrente,

mas também o compartilhamento da interpretação de que os problemas nacionais

encontravam respostas no passado. Entre os sociólogos destacamos Anibal Quijano e Júlio

Cotler.

Quanto à origem social, primordialmente eram provenientes de classes médias

baixas e, apesar de todos viverem em Lima, tinham uma mesma ascendência e uma

proveniência provinciana. Burga154 comenta que a historiografia peruana apresentou um

descenso social ao longo de sua trajetória, partindo da aristocracia, com Riva Aguero,

passando pelas classes médias altas do meio urbano, como Basadre, os profissionais liberais,

como Macera, e chegando aos grupos sociais mais baixos, de pele mais escura e origem

camponesa, como a sua geração155. A história da composição social e étnica da historiografia

peruana se confunde com a história nacional e os movimentos sociais descritos no primeiro

capítulo. De certa maneira, o surgimento da Nova História não seria possível sem que

houvesse ocorrido o fenômeno da “cholifação”, como observou Quijano. Como se os autores

se confundissem com seus objetos.

Estes objetos de estudos, los de abajo, foram a maior contribuição da Nova

História para as ciências sociais peruanas. No entanto, a idéia de construir um discurso que

superasse a visão tradicional do “não-ser” não produziu efeitos sólidos. Por isso estamos de

pleno acordo com Drinot, quando escreve: “mesmo que almejasse subverter a ordem

historiográfica tradicional, até meados dos anos 80, a Nueva Historia compartilhava com sua

nêmesis a mesma visão “crônica” da história do Peru: de acordo com esta perspectiva, a

história do país era um grande rosário de fracassos”156.

Podemos dizer que a leitura produzida por meio da teoria da dependência, por

exemplo, somente serviu para constatar a não existência de uma burguesia forte no Peru. A

Revolução inacabada de Tupac Amaru II, a morte de Atahualpa, o falecimento precoce de

Mariátegui, o avanço do capitalismo sobre os Andes homogeneizando costumes em

154 Cf. Ibid., p. 108-109. 155 Apenas para darmos alguns rostos à Nova História Peruana: Alberto Flores Galindo, Nelson Manrique, Magdalena Chocano, Wilfredo Kapsoli, Piedad Pareja, Carmen Rosa Balbi, Rodrigo Montoya, Gonzalo Portocarrero, Henrique Urbano, entre outros. 156 DRINOT, Paulo. Historiografia Peruana... Op. Cit. nota 138, p. 60.

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102

detrimento das tradições locais, entre outros, são alguns temas que reforçam a imagem de um

país sem saída.

Talvez por isso que o artigo de Magdalena Chocano, ainda em 1987, portanto,

dezesseis anos após o ensaio de Bonilla e Spaldin, continuava a proclamar a necessidade de se

construir um discurso historiográfico como expressão autêntica e crítica daquilo que,

efetivamente, somos. Trata-se do mesmo ano em que Flores Galindo publicou sua obra mais

polêmica, Buscando un Inca, na qual afirmava a necessidade de se utilizar da imaginação

como forma de propor uma sociedade alternativa157. Uma forma de propor a utopia como

razão da história. No lugar da ucronia oferecia a utopia, ou melhor, no lugar do “não é, mas

poderia ser”, oferece o não é, “mas pode ser”.

De qualquer forma, é inegável que a Nova História Peruana conseguiu

construir o seu espaço de atuação acadêmica e política durante as décadas de 1970 e 1980, se

convertendo numa perspectiva hegemônica na produção historiográfica do Peru. A

preocupação com os assuntos cotidianos, o exercício de colocar a história em favor do

presente, a busca pela explicação dos fenômenos sociais pelos quais atravessam o Peru

naquele período aproximou a historiografia do público comum, produzindo autores que se

converteram em ícones da opinião pública nacional.

Dessa maneira, muito mais do que reclusos ao ambiente acadêmico, os

historiadores da Nova História peruana buscaram transformar suas interpretações da realidade

e da história peruana em atitude política. Empregaram, nesse sentido, de maneira bastante

clara os ensinamentos de José Carlos Mariátegui, que dizia: “a faculdade de pensar a história

e a faculdade de fazê-la e criá-la, se identificam”158.

Muito mais do que uma influência para a Nova História, Mariátegui foi um

modelo de intelectual. A sua preocupação com a história nacional e com a necessidade de se

estabelecer um socialismo que respeitasse as tradições locais iam ao encontro do pensamento

daqueles jovens historiadores. Assim, como na nova esquerda e até mesmo

conseqüentemente, o mariateguismo também foi um fenômeno presente na Nova História.

2.3 O Mariateguismo no Peru

Entre as referências teóricas e práticas que contribuíram para que a nova

esquerda e a Nova História rompessem com esquemas tradicionais e buscassem novas 157 O título de sua carta de despedida, Reencontremos a dimensão utópica, escrita em dezembro de 1989 reafirma tal perspectiva de renovar os projetos políticos e, conseqüentemente, o discurso historiográfico. 158 MARIATEGUI, José Carlos. Mariátegui Total... Op. Cit. nota 68, p. 324.

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103

maneira de se pensar e agir tanto na história quanto na política, José Carlos Mariátegui é a

principal. Em um momento de crise de paradigmas e de decadência da esquerda tradicional, o

marxismo singular de Mariátegui se apresentou como uma maneira de se forjar um marxismo

legitimamente peruano. E, qual era o marxismo singular de José Carlos Mariátegui?

Aqui encontramos um problema. As leituras realizadas sobre o pensamento de

Mariátegui produziram um número inesgotável de interpretações do que haveria sido o

marxismo do autor. As interpretações de Mariátegui, que aqui chamaremos de mariateguismo,

não são um fenômeno homogêneo. Ao lermos as obras que procuram dar conta de decifrar o

pensamento do socialista, podemos encontrá-lo relacionado às mais diversas filiações

literárias, políticas e ideológicas: romântico, revolucionário, reformista, populista, indigenista,

modernista, entre outros. Como observa Alberto Aggio, temos “em relação a suas idéias, um

conjunto de interpretações, às vezes desencontradas e até mesmo antagônicas, que se

confrontam num verdadeiro campo de batalha cujo resultado, na maioria das vezes, tem sido o

de despedaçar o seu pensamento”159. 

Ao invés de possibilitarem o esclarecimento do pensamento de Mariátegui,

tais obras produzem incertezas e contradições ao ponto de não podermos afirmar, enfim, o

que foi realmente pensado por ele. Por outro lado, algumas dessas interpretações foram

assumidas por partidos e movimentos políticos como as “verdadeiras” heranças deixadas por

Mariátegui, não admitindo críticas ou a revisão de seu pensamento. Podemos dizer que

Mariátegui, a partir da década de 1960, foi se transformado em uma espécie de mito e, por

conta disso, sua abordagem é extremamente delicada, uma vez que ao discutirmos aspectos de

sua obra podemos atacar certas paixões consolidadas que não seriam discutidas

academicamente, mas a partir de dogmas prévios.

Ao mesmo tempo em que se produz essa multiplicação de correntes

explicativas e ideológicas, e talvez por decorrência disso, podemos verificar a popularização

de Mariátegui enquanto personagem histórico. Mariátegui é sem dúvida um fenômeno que

transpassa a cultura política peruana e compõe seguramente o arcabouço de referências da

cultura peruana como um todo. Nas ruas, nos taxis, nas bancas de jornais, nos cafés, nas

livrarias especializadas e não especializadas, Mariátegui é uma figura facilmente identificada

tanto pelo cidadão comum ou pelo intelectual especializado no assunto160.

159 AGGIO, A. O pensamento político de Mariátegui. In: Política Democrática. Revista de Política e Cultura. Nº 12, ano V, Brasília: Fundação Astrojildo Pereira, 2005, p. 108. 160 Apenas a título de curiosidade, mas não tão desimportante: Em Lima, existe uma livraria localizada na Avenida Larco que se chama Contra Cultura. Em seu letreiro estão postos, lado a lado, as figuras de Batman, John Lennon, Merlin Monroe e José Carlos Mariátegui (ver anexo 1).

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104

Não temos dúvida de que a explicação para este fenômeno se encontra

localizada na década de 1970, como reflexo do “revival mariateguiano no Peru [...]”161,

observado pelo argentino José Aricó. Esta percepção se reforça ao olharmos para a história de

Mariátegui e do mariategismo. Após a sua morte em 1930, suas obras e idéias caíram em

certo esquecimento: o Partido Comunista Peruano deu início a uma campanha de

desmariateguização de suas diretrizes; a Internacional Comunista o acusou de populista; e

uma série de ataques, relacionando a sua condição física à estrutura de seu pensamento, partiu

de seus antigos adversários políticos, os apristas. Portanto, somente após a metade da década

de 1960 foi que a figura de Mariátegui atingiu um prestígio que nem mesmo em vida possuiu.

Mas quem foi Mariátegui?

José Carlos Mariátegui162 foi um escritor que muito precocemente apareceu

como um crítico literário e colunista em algumas revistas de destaque da sociedade limenha,

como La Prensa, El Tiempo e La Razón. Em companhia de Abraham Valdelomar, com quem

dialogava abertamente em seus artigos, despontou como uma figura protagonista no cenário

literário da belle époque limenha, escrevendo sobre o cotidiano da vida aristocrática peruana:

o teatro, o café, o turfe, os passeios no parque, entre outros. Nesta época assinava suas colunas

com o pseudônimo de Juan Croniqueur.

A partir de 1918, como reflexo da Revolução Russa, os temas de seus artigos

começaram a ganhar um tom mais crítico e radical. Ao mesmo tempo, as manifestações

juvenis produzidas em Lima por conta da Reforma Universitária de 1919 e das greves de

trabalhadores o aproximaram dos movimentos operários e da nova geração de intelectuais e

políticos, como Víctor Raúl Haya de La Torre.

Esses também foram os anos em que começaram a se fazer presentes vários

movimentos camponeses, como reflexo das políticas modernizadores de Leguía, resultando

em uma série de invasões de terras na serra peruana. Tais notícias chegavam a Lima como

ecos distantes, mas o suficiente para produzir a inquietação dos jovens limenhos. Entre os

nomes dos rebeldes, destacou-se a figura de Rumi Maqui, a quem Mariátegui dedicou alguns

artigos.

Em 1921, sua participação junto a movimentos sociais resultaria em seu

afastamento momentâneo da vida pública. Após um acordo com o governo, Mariátegui foi

deportado para a Itália, perambulando durante dois anos por vários países da Europa. Lá 161 ARICÓ, José. Mariátegui y los orígenes del marxismo latinoamericano. México: Ediciones Pasado y Presente, 1978, p. XI. 162 Não se quer aqui esgotar a imensa discussão que existe em torno do pensamento de José Carlos Mariátegui, mas apenas apresentar os temas necessários e pertinentes à nossa reflexão.

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105

conheceu vários pensadores e intelectuais que viviam o fervilhamento das idéias comunistas.

O sindicalismo anarquista e as greves operárias noticiadas diariamente pela imprensa

compunham também suas referências cotidianas. Durante esses anos entrou em contato com

obras de autores marxistas e não marxistas que despertaram sua simpatia (Labriola, Kautsky,

Piero Gobetti, Benedetto Croce e Bergson) e se seu rechaço (Henri de Man, Max Eastman e

Emile Vandervelde)163. Foi também um momento de aprofundar algumas leituras iniciadas

ainda em Lima, como Georges Sorel, Lenin e Sigmund Freud.

Paradoxalmente, a viagem à Europa produziu um reencontro com seu país164.

O distanciamento iniciou uma reflexão sobre a necessidade de se pensar o Peru por meio de

suas peculiaridades. Por conta disso, ao regressar para o Peru, assumindo-se um marxista

convicto e confesso, preocupou-se em se aproximar da problemática do indígena na sociedade

peruana. Como escreveu Gerardo Leibner, Após o seu retorno da Europa em 1923, Mariátegui iniciou um esforço consciente e sistemático para acessar a numerosas fontes de informações escritas e orais sobre a realidade andina. Lendo literatura indigenista, artigos sobre a “questão do índio”, estudos históricos, sociais e econômicos e, ao mesmo tempo, entrando em relação epistolar com indigenistas provincianos e alentando sua colaboração em Amauta, Mariátegui procurou superar suas limitações de mestiço costeiro165.

De certa maneira, é neste momento em que entra em contato com a literatura

indigenista de Luis Valcárcel, por quem desenvolveu respeito e admiração. É importante

ressaltarmos que os autores peruanos terão uma importância tão grande quanto às leituras

européias na formação de seu pensamento. Este encontro de referenciais representa um traço

de suas obras que mesclam, de maneira espontânea, o nacional e o cosmopolita. Assim, a

temática do indígena não aparece descolada de interpretações sobre o capitalismo

imperialista, a indústria, os operários e a educação.

O resultado mais evidente desse esforço de interpretação do indígena pode ser

acompanhado em seus artigos publicados na sua revista Amauta166, mas, sobretudo, em sua

principal obra, Sete Ensaios de Interpretação da Realidade Peruana, publicado em 1928.

163 Cf. PARIS, Robert. La formación ideológica de José Carlos Mariátegui. México: Ediciones Pasado y Presente, 1981. 164 Cf. MORSE, R. O Espelho de Próspero. Cultura e idéias nas Américas. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 165 LEIBNER, Gerardo. El Mito... Op. Cit. nota 137, p. 136. 166 A revista Amauta representou um verdadeiro espaço de produção cultural durante a década de 1920. Além de artigos políticos, trazia críticas literárias, obras de arte, poemas, traduções, entre outros. Apesar de dirigida e organizada por um socialista, trazia textos das mais diversas filiações políticas e artística, como o idealismo, o indigenismo e o aprismo. De qualquer maneira, representou um intento de aproximação de intelectuais à crítica política, combinando vanguarda política com vanguarda artística.

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106

Neste livro, o tema da terra e do indígena ganhou um papel de destaque. O problema da

concentração de terras e do gamonalismo (latifundiários) são apresentados como os principais

responsáveis pela desigualdade no Peru.

Outra importante característica do livro está em seu estilo. Ainda que debata

temas e problemáticas conceituais e teóricas, o texto recorre à narrativa ensaística, o que não

confere a obra um tom acadêmico, mas, ao mesmo tempo favorece a exposição de idéias

próprias e ressalta o seu pensamento crítico. O ensaísmo foi uma marca de Mariátegui

observada negativamente pelos comunistas da época, uma vez que, segundo eles, o ensaio era

um tipo de escrita próprio de autores pequeno-burgueses.

Nesse sentido, a opção pelo ensaio já demonstrava que o marxismo de

Mariátegui não se prendia aos padrões do comunismo oficial. Esta percepção fica ainda mais

evidente quando nos aproximamos dos textos do autor. Na introdução aos Sete ensaios, por

exemplo, Mariátegui adverte ao leitor que o método utilizado por ele será o mesmo que

utilizou Nietzsche: “Meu trabalho desenvolve-se segundo a vontade de Nietzsche, que não

amava o autor devotado à produção intencional, deliberada de um livro, mas aquele cujos

pensamentos formavam um livro espontânea e inadvertidamente”167. A recorrência a autores

não marxistas será outra peculiaridade de suas obras.

Ainda sobre os Sete ensaios, além de anunciar uma coletânea de textos

ensaísticos, o título do livro releva que ali poderá se encontrar interpretações da realidade

peruana. Para o comunismo oficial, a realidade peruana não era diferente da brasileira ou da

chilena, uma vez se tratavam de países semi-coloniais, dependentes do capital imperialista e,

por isso, deveriam respeitar um mesmo plano de ação continental168. No entanto, não era isso

que propunha Mariátegui em sua obra, uma vez que buscava compreender peculiaridades da

sociedade peruana, como seu passado Inca e suas tradições andinas.

O atrito com as concepções do marxismo oficial se multiplica ao longo de

outras obras. Em Defensa del Marxismo (1934)169, por exemplo, é possível encontrar mais

referências à Sigmund Freud do que ao próprio Marx e, ao mesmo tempo, a designação de

Sorel como o melhor discípulo de Marx. A eleição desses referenciais para a obra o levaria a

comentar com um amigo que o seu texto produzia considerações “desfavoráveis ao

marxismo”170. Evidentemente que ao marxismo oficial. Esses são em si elementos que, por si

167 MARIATEGUI, José Carlos. Mariátegui Total... Op. Cit. Nota 68, p. 6. 168 Cf. ARICÓ, José. Mariátegui... Op. Cit. nota 161. 169 Defensa del Marxismo foi publicado pela primeira vez em 1934 em Santiago do Chile. Porém, era o resultado de uma coletânea de artigos produzidos nas revistas limenhas Variedades e Mundial entre 1928 e 1929. 170 Carta escrita a Samuel Glusberg em 10 de março de 1929.

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107

só, já o caracterizam como um autor marxista muito peculiar, fato que o levou a ser

comparado com outros tantos nomes do marxismo heterodoxo como Antonio Gramsci e

George Lukacs.

Concomitante à confecção de suas obras, a vida de Mariátegui foi marcada

também por sua atuação junto aos sindicatos e centrais de trabalhadores para o ordenamento

da Central General de Trabajadores del Perú e por sua luta na formação do Partido Socialista

Peruano. Junto com trabalhadores e outros intelectuais, fundou o partido em 1928. No

entanto, após dois anos, em 1930, faleceu vítima de complicações de sua frágil saúde que

vinha piorando desde meados da década de 1920.

Entre 1914 e 1930, datas que marcam a distância entre o seu primeiro e último

artigo, Mariátegui produziu uma série quase que incontável de textos, artigos, cartas e livros.

Tinha como característica a produção de artigos para jornais e revistas e, após muito discorrer

sobre um tema, organizá-los em pequenos livros. Em seus textos, apresentou a necessidade de

se produzir um marxismo puramente peruano e um caminho para o socialismo que respeitasse

as tradições nacionais. Morreu sem estabelecer um projeto para tanto.

Podemos dizer que a morte de Mariátegui sem produzir um modelo acabado de

teoria socialista, deu margem ao início da história do mariateguismo. Como observa José

Aricó, em seu livro Mariátegui y los origines del marxismo latino americano de, 1978,

“apenas morto Mariátegui é que se desata entre os intelectuais e militantes políticos peruanos

uma aguda polêmica em torno da definição ideológica e política de suas idéias”171.

A primeira atitude tomada pela Internacional Comunista, por exemplo, foi a de

sepultar o pensamento de Mariátegui junto com o seu autor. Seguindo determinações da

esquerda soviética, Eudócio Ravines, substituto de Mariátegui como dirigente do Partido

Socialista Peruano, alterou o nome do partido. Concomitante a isso, teve início um processo

de combate ao “mariateguismo” e ao “amautismo”172. Era preciso afastar a heterodoxia e a

presença da intelectualidade e da pequena burguesia, características cultivadas pelo partido na

época de Mariátegui.

Não demoraria para que a intelectualidade do Partido Comunista produzisse

seus ataques ao peruano. Passado alguns anos de sua morte, em 1941, apareceu um artigo do 171 ARICÓ, José. Mariátegui... Op. Cit. nota 161, p. XXIII 172 No caso do aprismo, a primeira atitude foi de ataque a figura de Mariátegui como um intelectual contraditório, conforme aparece no artigo de Manuel Seoane Contraluces de Mariátegui de 1930. À partir de 1934, com o artigo Reflexiones sobre José Carlos Mariátegui de Carlos Manuel Cox, o aprismo iniciou uma aproximação a Mariátegui afirmando as afinidades entre ele e Víctor Raúl Haya de la Torre. Em 1957, o também aprista Eugenio Chang-Rodriguez, seguindo a estratégia de Cox, publicou um livro intitulado La literatura política de González Prada, Mariátegui y Haya de la Torre na qual defende que, Mariátegui, na realidade, nunca fora um marxista. Cf. SOBREVILLA, David. El marxismo de Mariátegui… Op. Cit. nota 118, p. 40-41.

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russo Mirochevski, importante personalidade comunista, intitulado El populismo en el

Perú173. Como sugere o título, Mariátegui é alçado à condição de populista, o que, “nas

décadas de 1930 e 1940 [...] depois de trotskista era, sem dúvida, a acusação mais infame”174,

como alertou Aricó.

Ocorre que, dois anos mais tarde, como reflexo do re-ordenamento da política

peruana e do posicionamento russo durante a segunda guerra mundial, a interpretação da

estratégia de classe contra classe começou a perder força dentro do Partido Comunista

Peruano, o que culminou com a expulsão de Ravines, em 1944. Por conta disso, a figura de

Mariátegui voltou a ser relacionada às origens do partido. Assim, em 1943, Jorge del Prado,

Secretário Nacional de Organização do PCP publicaria um texto intitulado Mariátegui,

marxista-leninista fundador del Partido Comunista Peruano: primer divulgador y aplicador

del marxismo en el Perú175. Porém, ao contrário daquele Mariátegui que se combatia após a

sua morte, este Mariátegui “ressuscitado” por del Prado era um convicto defensor do

marxismo-leninismo, seguidor fiel do stalinismo e militante da causa bolchevique. Como

continuidade desta retomada, no ano seguinte, sob a tutela do PCP, seria publicada a segunda

versão dos Sete ensaios, dezesseis anos após sua aparição. Este seria apenas o primeiro

capítulo do retorno ao pensamento de Mariátegui, um processo que ainda hoje não atingiu seu

fim.

À partir de meados da década de 1950 e principalmente na década de 1960, a

crise do comunismo tradicional provocada pelo embate chino-soviético e a revolução cubana

produziram uma interpretação de que era possível constituir um caminho próprio para o

socialismo em cada localidade. Pensar um socialismo/marxismo próprio para o Peru

significava retomar os embates travados por Haya e Mariátegui (1927) e Mariátegui e a

Internacional Comunista (1928), ainda na década de 1920. 

Por conta disso, para os novos partidos que surgiram daquele momento de

fragmentação da esquerda tradicional, Mariátegui representava uma figura muito

emblemática. Ao mesmo tempo em que se caracterizava como o intento de se produzir um

comunismo tipicamente peruano, simbolizava o rechaço ao comunismo soviético e ao

173 Ver: MIROSHEVSKI, V. M. El “Populismo” en el Perú. Papel de Mariátegui en la historia del pensamiento social latino-americano. In: ARICÓ, José. Mariátegui... Op. Cit. nota 161, p. 55-70. Deve-se atentar para o fato que o vocábulo “populista” aqui não tem o mesmo significado que se tronou generalizado nas ciências sociais latino-americanas e sim, o significado de uma aproximação ao que se entendia comparativamente ao populismo russo. 174 ARICÓ, José. Mariátegui... Op. Cit. nota 161, p. XXXVI. 175 Ver: DEL PRADO, Jorge. Mariátegui, marxista-leninista, fundador del Partido Comunista Peruano. In: ARICÓ, José. Mariátegui... Op. Cit. nota 161, p. 71-92.

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aprismo. Mariátegui passava a ser, portanto, a representação de um caminho para a revolução

independente da URSS (PCP) ou da APRA.

O fenômeno do mariateguismo atingiria o seu auge, sem dúvida na década de

1970, com a produção do revival mencionado por Aricó. Na realidade, o posicionamento da

nova esquerda como tributária do pensamento de Mariátegui se replicou em todos os seus

partidos e, à medida que avançou a década de 1970 e as cisões partidárias se ampliaram,

outros Mariáteguis surgiram. Como no alcorão ou na bíblia, cada trecho da obra de

Mariátegui passou a ser interpretado de uma maneira a dar sentido e legitimidade à ação de

cada partido político176.

Uma forma de percebermos o aumento do interesse pelo pensamento de

Marátegui, na década de 1970, é por meio do acompanhamento do número de publicações de

sua principal obra. A primeira edição dos Sete Ensaios é de 1928. A segunda apareceu

somente em 1944. Entre 1928 e 1959 foram apenas seis edições desta obra. Já em 1963, foram

produzidas três novas edições apenas neste ano. No entanto, das 60 edições publicadas entre

1928 e 1994, metade foi produzida entre de 1968 e 1980. Só em 1969, por exemplo, sairiam

quatro novas publicações. Esta retomada de Mariátegui também seria acompanhada pela

elaboração de trabalhos sobre sua obra por autores não peruanos, como o italiano Antonio

Melis, o argentino José Aricó e o francês Robert Paris, além da publicação do Sete ensaios na

Itália, México, Brasil e Estados Unidos.

De certa forma, a chegada de Velasco Alvarado ao poder, também contribuiu

para a intensificação desse processo. O GRFA era composto por oficiais formados no CAEM

ao longo das décadas de 1950 e 1960 que, além de possuírem proximidade com algumas

linhas do pensamento marxista, também eram anti-apristas. Assim, o reconhecimento da

importância de Mariátegui como um dos principais intelectuais peruanos também reforçava o

seu repúdio ao líder histórico da APRA (Victor Raúl Haya de la Torre).

Evidentemente que o Mariátegui de Velasco não poderia ser o mesmo daquele

defendido pelo classismo e da geração intelectual de 1968. Por conta de sua atuação junto às

centrais trabalhistas, esta característica do socialista seria também ressaltada. A idéia de que o

partido seria o resultado de um amadurecimento da classe operária, por exemplo, era

176 Apenas alguns exemplos: O Sendero Luminoso de 1980 recebeu este nome em referência a José Carlos Mariátegui. No início da década de 1980 Javier Diez Canseco fundou o PUM Partido Mariateguista Unificado. Em 1967 a editora oficial do partido Pátria Roja realizou a organização de um livro com uma série de textos de Mariátegui. O Sutep, sindicato dos profissionais da educação, utiliza, até os dias de hoje, a imagem do rosto de Mariátegui em suas bandeiras. Os informativos oficiais da Esquerda unida, partido que conglomerou todos os partidos de esquerda da nova esquerda, menos o MRTA e o Sendero Luminoso, traziam como emblema da aliança uma imagem estilizada de Mariátegui (ver anexo 2).

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110

reforçada por um trecho de um artigo de Mariátegui sobre o primeiro de Maio177, de 1924, no

qual dizia que os partidos políticos no Peru eram muito jovens para se configurar como força

política. A própria revitalização da CGTP na década de 1970, também representa essa

intenção.

Assim, a atuação de Mariátegui junto às massas, como organizador dos

movimentos de trabalhadores e sindicatos, professor das universidades populares González

Prada, editor de revistas voltadas para o operariado, como Labor, reforçava nesses atores a

perspectiva de que o classismo era um caminho mariateguista de promoção da revolução.

Ainda para a geração de 1968, em sua vertente acadêmica mais radical, a Nova

História, Mariátegui também se concretizou como um referencial. O socialismo mariateguista

passou a ser analisado historiograficamente para que, a partir daí, pudesse alimentar a

construção de uma nova imagem histórica do país. Como nos lembra Paulo Drinot, os

membros da Nova História peruana “encontraram no trabalho de José Carlos Mariátegui, uma

teoria explicativa nacional e original para a história e sociedade peruana”178.

De outra maneira, Mariátegui representava a opção por um tipo de intelectual

que congregava a elaboração teórica com a militância revolucionária. Ainda como reflexo

desta conjugação de militância com a atuação de historiadores/professores, Mariátegui passou

a freqüentar livros escolares e atingiu as salas de aulas, contribuindo para a sua popularização.

Assim como para o classismo, Mariátegui foi referência para justificar as mais

diversas práticas e estratégias políticas, inclusive a via armada senderista. Ainda que

reconstruído à imagem e semelhança de cada partido que o adotava, Mariátegui foi o

“patriarca” de todos os movimentos da nova esquerda no Peru. Justamente por isso, quando a

esquerda se uniu em torno de um único bloco para a disputa de eleições, na década de 1980,

seu símbolo não poderia ser outro senão o autor dos Sete ensaios. Paradoxalmente, Mariátegui

era um traço que os aproximava e, ao mesmo tempo, os separava.

As múltiplas imagens de Mariátegui foram recentemente retratadas pelo autor

peruano David Sobrevilla em seu livro El marxismo de Mariátegui y su aplicación a los 7

ensayos, de 2005. Este livro ainda que tenha como objetivo central a análise do marxismo de

Mariátegui nos Sete ensaios, apresenta um capítulo exclusivo cujo intuito é mapear os

diversos autores, obras e correntes que reinterpretaram o pensamento mariateguiano179.

177 MARIÁTEGUI, José Carlos. El primero de mayo y el frente único. In: El Obrero Textíl, vol. V, No. 59, Lima, 1924. 178 DRINOT, Paulo. Historiografia Peruana... Op. Cit. Nota 138, p. 57. 179 O capítulo intitulado El estado de la cuestión está localizado na primeira seção da primeira parte entre as páginas 31 e 85.

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Este mapeamento nos permite mensurar o quanto o pensamento do socialista

serviu aos mais variados gostos, desde 1943 até o início do século XXI. No entanto, o

exercício de Sobrevilla se torna inovador à medida que o autor classifica e divide as diversas

interpretações de Mariátegui em três blocos dispostos da seguinte maneira: Mariátegui

enquanto um não marxista; Mariátegui enquanto um marxista ortodoxo; e Mariátegui

enquanto um marxista heterodoxo.

O primeiro bloco resulta no mínimo curioso, uma vez que apresenta alguns

autores que, ao analisarem o pensamento de Mariátegui, chegaram à conclusão de que o

“marxista convicto e confesso”, não era marxista. Entre essas interpretações o autor destaca os

“Mariáteguis”: populista, contraditório, aprista, filósofo da ação, espiritualista e anti-marxista.

O segundo bloco é formado por autores que identificaram em Mariátegui uma

filiação à “doutrina oficial soviética tal como foi anunciada por Stalin em seu texto de 1938

‘Sobre o materialismo dialético e o materialismo histórico’, no Breve curso da história do PC

da União Soviética”180. Neste momento, Sobrevilla analisa as obras de Jorge del Prado,

Moisés Arroyo Posadas, Raimundo Prado Redondez, Narciso Bassols Batalla e Harry E.

Vanden.

Aqui destacamos as análises feitas pelo autor às obras de Jorge del Prado, que

não é apenas o iniciador dessa corrente mariateguista ortodoxa, como também, se considera

um revisor dessa leitura. Para del Prado, em um primeiro momento (1943), Mariátegui se

aproximaria de Lenin e Stalin. Posteriormente, na década de 1980 (1984), o mesmo autor o

distancia de Stalin, mas o aproxima de Marx e Lenin. Nesta virada de posição, não deixaria de

sobrar espaço para atacar aqueles por ele considerados como tergiversadores do pensamento

mariateguista (Luis Alberto Sánchez, Eugenio Chang-Rodríguez e Hugo García Salvatecci) e

os revisionistas (José Aricó e Alberto Flores Galindo).

O terceiro bloco de autores é composto por obras que identificam Mariátegui

como representante de “[...] correntes do marxismo que não seguem a filosofia oficial

soviética, ou seja, a doutrina do materialismo dialético. Neste caso se fala também de

neomarxismo”181. Essas interpretações apresentam o pensamento de Mariátegui como: um

marxismo aberto (Augusto Salazar Bondy), um outro marxismo (Antonio Melis), um

marxismo soreliano (Robert Paris), um marxismo como um método de interpretação (Diego

Meseguer), um marxismo indoamericano e um marxismo como busca de uma racionalidade

alternativa (Aníbal Quijano); e mais: um marxista lukacsiano (José Ignácio López Soria), um

180 SOBREVILLA, David. El marxismo de Mariátegui… Op. Cit. nota 118, p. 46-47. 181 Ibid. p. 55.

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marxismo romântico (Michel Lowy), um marxismo herético (Raúl Fronet-Betancourt) e um

marxismo como versão latino-americana da filosofia da práxis de Antonio Labriola (Jorge

Oshiro).

Devido à abrangência de autores e obras selecionadas para este bloco, nos

surpreende a ausência de José Aricó e Alberto Flores Galindo. No caso do argentino, a

surpresa é ainda maior, pois, ao longo de todo o capítulo, alguns dos textos citados, bem como

algumas de suas idéias centrais, fazem referência direta à obra de Aricó.

Ao final deste capítulo, Sobrevilla, realiza suas próprias considerações sobre

Mariátegui e demonstra a sua filiação à heterodoxia, aproximando-se das interpretações de

Melis e Meseguer, uma vez que “ambas partem de um sólido trabalho textual, sem

preconceitos e sem interesses, que busca reconstruir o pensamento de Mariátegui a partir do

que escreveu. Nos dois casos rastreiam as influências operantes sobre o Amauta, porém

reconhecendo que ele as assume de forma criadora”182.

De certa forma, o trabalho de José Aricó anteriormente mencionado, já havia

alertado para a existência dessa multiplicidade de interpretações do pensamento de

Mariátegui. No livro, o autor apresenta uma coletânea de artigos confeccionados, em diversas

épocas, por diferentes interpretes de várias filiações ideológicas sobre o peruano. Entre as

interpretações se destacam aquelas que viram Mariátegui como um aprista, um populista, um

soreliano e um marxista-leninista.

A intenção de Aricó com a organização do livro era confrontar as diversas

visões e realizar uma aproximação à leitura dos textos originais de Mariátegui. Como

anunciou,

Admitindo como um suposto irrecusável a “criticidade” do marxismo, nossa recopilação se propôs incluir um conjunto de textos cujas controvertidas posições remeteram ao caráter crítico do marxismo de Mariátegui. Sua leitura cuidadosa nos ajuda a compreender as falácias que conduzem as tentativas de definir o pensamento de Mariátegui em termos de “adoção” ou encontro com determinadas correntes ideológicas. Se resultam falidas as tentativas de convertê-lo em um marxista-leninista (e, por que não, stalinista?) cabal; aparecem como arbitrárias as qualificações de “aprista de esquerda”, “populista”ou “soreliano” [...]183.

O diferencial da obra de Aricó está no fato de ter sido publicada ainda em

1978, portanto, no auge da explosão do mariateguismo. Apresenta-se, por isso, como um dos

primeiros intentos de racionalizar historicamente o personagem e questionar os dogmatismos

182 Ibid. p. 84. 183 ARICÓ, José. Mariátegui... Op. Cit. nota 161, p. XIII-XIV.

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que o cercavam e, ao mesmo tempo, anunciá-lo como algo realmente novo e não somente

uma cópia ou tradução de outras ideologias.

Além de marcar seu espaço destacado perante as obras que se dedicam a

estudar Mariátegui, podemos dizer que o trabalho de Aricó serviu como uma das guias e

inspiração para Alberto Flores Galindo iniciar sua investigação a respeito do revisionismo do

socialista peruano. A partir de então, Flores Galindo não apenas seria um tributário de

Mariátegui, como um de seus principais intérpretes. É sobre o mariateguismo em Flores

Galindo e outros temas correlatos que trataremos a seguir.

2.4 Alberto Flores Galindo: historiografia e política

A trajetória intelectual de Alberto Flores Galindo está repleta de elementos

próprios da esquerda e da historiografia da década de 1970 no Peru. Mariateguismo,

marxismo heterodoxo, a busca pela construção de um novo discurso historiográfico,

classismo, o impacto do velasquismo, enfim, são dimensões observáveis em seus escritos e

também em sua biografia.

Assim como outros membros de sua geração, Flores Galindo procurou vincular

seu trabalho acadêmico com a atuação política. Suas investigações ocorriam com o objetivo

de estabelecer interpretações à respeito da realidade peruana contemporânea e oferecer

caminhos para os dilemas da política em seu país. Por conta disso, a sua produção literária e

atuação intelectual não se restringiram aos ambientes universitários e se propagaram por

institutos de pesquisas, instituições de classe e revistas não acadêmicas. Durante dez anos, por

exemplo, manteve junto com Manuel Burga, “um escritório, duas escrivaninhas e [...] uma

máquina de escrever” no Instituto de Apoyo Agrário184. Além disso, obteve bolsas de estudos

de variadas instituições de fomento, como a Social Research Council, a Fomciencias e a

Unesco.

Por outro lado, esta superação do mundo acadêmico se converteu em uma

aproximação das entidades de classe. A militância junto ao sindicato pesqueiro ainda na

década de 1960 e suas constantes visitas ao sindicato mineiro185, para a realização de

pesquisas durante sua graduação, demonstravam que esta seria uma atividade recorrente entre

184 BURGA, Manuel. La Historia y… Op. Cit. nota 113, p. 113. 185 Seu trabalho de conclusão de curso na graduação teve como um dos materiais de pesquisa, o arquivo do sindicado de mineiros em Cerro de Pasco.

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as décadas de 1970 e 1980. Como os demais membros de sua geração, Flores Galindo

entendeu o classismo como a afirmação e defesa dos interesses de uma classe social, sua reivindicação aberta em uma luta levada até o final, sem as concessões do velho sindicalismo aprista e a corrupção da política criolla. O classismo se expressou nas passeatas e nas greves, em marchas como a que fizeram os mineiros do centro em 1971, em tomadas de fábricas levadas às ultimas conseqüências como a que protagonizaram os trabalhadores da Cromotex (1979). No contexto do governo reformista e sob o amparo da situação econômica relativamente próspera, alcançou muitas reivindicações que o aprismo não havia conseguido no passado, porém, junto a ele, fundou uma identidade trabalhadora e terminou produzindo ao lado da geração de intelectuais, núcleos trabalhadores pensantes186.

Entre todos os organismos de classe e centrais de trabalhadores em que

participou, destaca-se sua proximidade à Pastoral Andina onde ofereceu uma série de cursos

para trabalhadores e camponeses, entre 1978 e 1982. Em abril de 1982, especificamente, os

cursos possuíam como temática a história do Peru. Um ano depois, foi convidado a realizar

cursos de formação para a pastoral em Cuzco. Esta afinidade com a Pastoral Andina também

ficou representada por sua participação como coordenador da revista Allpanchis Phuturinga,

durante os anos de 1978 e 1982.

A combinação de trabalho de formação com produção periodística se repetiria

alguns anos depois com a fundação da Casa SUR, em 1986. Esta instituição buscou promover

o encontro de intelectuais com trabalhadores para a discussão de questões referentes à política

peruana. Os debates ocorriam tanto por meio de sua revista, Márgenes, como pelos cursos de

formação da Universidad Libre. Como definiu o próprio Flores Galindo, na SUR persistimos em querer navegar contra a corrente dominante em certos meios intelectuais e seguir apostando nas saídas e alternativas coletivas, fazer algo que reclamava Edward Thompson: queremos ser um desses “lugares onde ninguém trabalhe para que lhe concedam títulos ou cátedras, mas sim para a transformação da sociedade, onde as críticas e a autocrítica sejam duras, mas onde haja também ajuda mútua e intercambio de conhecimentos teóricos e práticos; lugares que prefigurem, de certo modo, a sociedade do futuro”187.

Essas preocupações fizeram de sua atividade de formação política, mas

principalmente, sua de produção publicística188 uma forma de se relacionar com o público

geral e interferir na realidade social peruana. Por conta disso, ao longo de sua carreira, Flores

Galindo produziu uma quantidade considerável de textos de cunho não acadêmicos. O poeta 186 FLORES GALINDO, Alberto. Generación del 68… Op. Cit. nota 114, p. 105. 187 FLORES GALINDO, Alberto. Tiempo de Plagas. Lima: Caballo Rojo, 1988, p. 35. 188 Tratamos as intervenções intelectuais de Flores Galindo em jornais e revistas voltadas para o grande público, como sua produção publicística querendo demonstrar a sua deliberada intenção de intervir como um intelectual público.

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Antonio Cisneros, na apresentação da obra Tiempo de Plagas, que reúne artigos não

acadêmicos de Flores Galindo, observou que Flores Galindo, diferentemente dos demais cientistas sociais, é um homem de escritura. [...] Nosso autor, claro está, dista muito de ser um ilustre desconhecido. [...] Imprescindível nas saudosas (para mim ao menos) El Caballo Rojo e 30 Días. Ajuda fiel, ainda que distante, nos semanários El Búho e Sí. Além de colaborador em revistas de pesos pesados e artífice de Márgenes, publicação de SUR. Flores Galindo é, apesar de sua auréola acadêmica, um publicista cabal189.

Seu publicismo cabal190 buscava realizar a reflexão histórica de temas

pertinentes à sociedade em que vivia e, em contrapartida, demonstrava a necessidade do

intelectual marcar um posicionamento perante determinados acontecimentos e, ao mesmo

tempo, esclarecer a opinião pública. Um trabalho de intervenção intelectual, manifestando

opiniões e abrindo espaço para as discussões.

Por meio da publicação em jornais e revistas, Flores Galindo pôde comentar os

caminhos da política peruana entre os anos de 1976 a 1990. Acompanhou a grande votação de

Blanco na constituinte de 1978191; questionou a virada da esquerda à democracia e o modelo

de democracia adotado no Peru192; propôs o mariateguismo como uma tarefa coletiva193;

ainda sobre Mariátegui, dedicaria uma série de textos alertando para as suas “múltiplas

personalidades”194 e defendendo-o como um caminho para o socialismo peruano195; Analisou

a vinda do Papa João Paulo II e as vinculações entre socialismo e religião no Peru196;

Comemorou a vitória de Barrantes197; Atacou a crise econômica do governo Alan García198;

Condenou o Senderismo199; Apresentou a utopia andina200; Além de discutir muitos outros

temas em tantos outros artigos.

189 CISNEROS, Antonio. Tito Flores, Periodista. In: FLORES GALINDO, Alberto. Tiempo de Plagas… Op. Cit. nota 187, p. 9-10. 190 Flores Galindo publicou nas revistas Humanidades, Debates en Sociologia, Vaca Sagrada, Allpanchis, La Revista, Treinta Días, Revista Andina, Cultura Popular, Márgenes, El Búho, Los Caminos del Laberinto, Amauta, Los Zorros de Abajo, Sí, La Jornada (suplemento laboral do jornal La Prensa) e Caballo Rojo (suplemento dominical do Diário Marka). Em algumas dessas revistas, Flores Galindo foi editor e membro do conselho editorial. 191 El Voto por Blanco, publicado em Amauta (1978). 192 Democracia: ¿plural o singular? Publicado em 30 Días (1984). 193 El mariateguismo como tarea colectiva. En torno a la agonía de Mariátegui, publicado em Marka (1981). 194 Usos y abusos de Mariátegui, publicado em Amauta (1980). 195 Defensa de Mariátegui. Respuesta a J. J. Vega, publicado em Amauta (1978) e El marxismo peruano de Mariátegui, publicado em Amauta (1978). 196 Antes y después del Papa, publicado em Zorro de Abajo (1985). 197 IU: entre la multidud y la incertidumbre, publicado em Caballo Rojo (1984). 198 Vivir en el Perú, publicado em Amauta (1986). 199 La guerra silenciosa, publicado em Violencia y Campesinado (1986). 200 Utopia Andina y Socialismo, publicado em Cultura Popular (1981).

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116

Seus artigos, muitas vezes recebiam críticas e eram respondidos abertamente

na imprensa local. Outras vezes, davam continuidade a algumas polêmicas abertas por outros

interlocutores. Sua posição apartidária lhe deu certa liberdade para confrontar adversários das

mais variadas filiações, fazendo dele um personagem crítico e de muitas polêmicas. Em sua

carta de despedida, assumiu essa sua predisposição à polêmica argumentando que “divergir

sempre foi uma maneira de se aproximar”201. Acreditamos, portanto, que, juntamente com a

participação em debates e fóruns de discussões promovidos por entidades de classes,

universidades e instituições de pesquisa, os artigos serviram como um canal de expressão e

atuação política.

Sua inclinação ao publicismo mencionado não representou, no entanto, o

abandono do trabalho acadêmico e de sua produção historiográfica202. Ao contrário, os artigos

em revistas de opinião tinham como característica a reflexão historicista de problemas

contemporâneos, como uma maneira de colocar o passado em função dos problemas do

presente. Esta interpretação de seu trabalho periodístico deriva de sua concepção em torno da

“mais precisa e elementar função do historiador: responder à necessidade de memória e da

lembrança de uma coletividade”203.

Para Flores Galindo, o “passado” está para a sociedade, da mesma maneira que

a memória está para um indivíduo. Conforme afirmou, “assim como os indivíduos requerem

da memória, as coletividades não podem existir sem recordações”204. Esta relação implica em

dizer que, da mesma maneira que as lembranças representam o conjunto de acontecimentos

pessoais que formam uma personalidade, uma identidade pessoal, as recordações conduzem à

formação da memória de uma coletividade.

Esta relação com as recordações não deveriam servir somente para dizer quem

somos, ou o que uma sociedade é. Na realidade, devem servir para confrontá-la com seus

medos que, apesar de se manifestarem no tempo atual, foram construídos como resultado de

decepções, fracassos e fraquezas ocorridas ao longo do tempo passado. Em uma passagem

interessante de Buscando un Inca, Flores Galindo adverte que “uma das funções da história é

nos enfrentarmos com nós mesmos, remontando-nos até quando se forem estruturando

201 Cf. Reencontremos la Dimensión Utópica, publicado em Márgenes (1991). Ver: FLORES GALINDO, Flores. Reencontremos la dimensión… Op. Cit. nota 7. 202 Outra forma de negar esta idéia está na observação de que, quase todos os seus artigos eram, depois, organizados em livros ou serviam como idéias centrais para obras futuras. O contrário também ocorria, algumas de suas obras continuavam sendo discutidas por meio de artigos posteriores. 203 FLORES GALINDO, Alberto. Para una historia inteligente. In: _________. Obras Completas. Tomo VI. Lima: SUR, 2007, p. 39. Publicado originalmente em: Caballo Rojo, n. 157, 1983, p. 15. 204 FLORES GALINDO, Alberto. La Historia como recuerdo. In: _________. Obras Completas. Tomo VI. Lima: SUR, 2007, p. 47. Publicado originalmente em: Caballo Rojo, n. 177, 1983, p. 10.

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117

concepções e valorações que depois queremos esconder. Neste sentido existe uma semelhança

entre o que faz um psicólogo e a função de um historiador”205. Assim como um psicólogo

auxilia na construção de uma personalidade e ajuda um paciente a superar seus traumas, o

historiador contribui para a formação da memória de uma coletividade que seja capaz de

produzir as condições necessárias para a superação de seus traumas. A história, portanto, para

o autor, atinge um papel de libertação do passado e não de aprisionamento frente a ele.

Não se trata de utilizar a história para justificar os erros atuais de uma

sociedade condenando-a a repeti-los constantemente, mas uma forma de construir saídas para

que não voltem a ocorrer. Mais precisamente, “a tentação de sujeitar ao passado os combates

de hoje é quase inevitável. No entanto, não parece ser o caminho mais adequado para entender

e libertar-se do peso da história anterior: para exorcizar os fantasmas”206. Entender o passado

em função do presente é algo diferente de justificar o presente em função do passado, ou,

sujeitar ao passado os combates de hoje.

É assim que Flores Galindo utiliza a história na formulação de seus artigos

sobre a realidade cotidiana, mas também em suas obras historiográficas. Em seus livros sobre

a década de 1920 (Apogeo y Crisis), sobre a Lima colonial (Aristocracia y Plebe) ou sobre a

vida de Mariátegui (La Agonia de Mariátegui), os estudos nasciam como forma de esclarecer

questões da ordem do dia no Peru contemporâneo, como a crise da oligarquia e os

movimentos camponeses, a falta de unidade das classes subalternas e a necessidade de se criar

um socialismo peruano, respectivamente. Por isso em suas obras é comum encontrarmos

advertências como essas que aparecem em Apogeo e Crisis: “A leitura do passado não pode

ser alheia aos conflitos e tensões do presente”.

De certa maneira, esta concepção de história possui inúmeras relações com o

momento pelo qual passava a historiografia peruana, mas também com a própria trajetória

pessoal de Flores Galindo. Durante a graduação, se aproximou dos sociólogos do IEP e, ao

retornar da França assumiu o cargo de professor de Sociologia do Departamento de Ciências

Sociais da PUCP. Talvez, essa proximidade explique a utilização da história, efetivamente,

como uma ciência social, dotada de um poder de intervenção própria da sociologia. Um

indício disso está na publicação de duas compilações organizadas pelo autor: La Historia

como Ciencia Social.

205 FLORES GALINDO, Alberto. Buscano un Inca… Op. Cit. nota 27, p 235. 206 FLORES GALINDO, Alberto. Un Viejo Debate: El Poder (La polémica Haya-Mariátegui). In: FLORES GALINDO, Alberto. Tiempos de Plagas. Op. Cit. nota 186, p. 57. Publicado originalmente em: Socialismo y Participación, n. 20.

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118

Da mesma forma que ocorreu com sua geração, assumiu um método de

pesquisa que o possibilitou mesclar a visão marxista de história às novas perspectivas

historiográficas como a etnohistória e a psicanálise207. Em sua concepção, apenas assim seria

possível superar as limitações da interpretação marxista ortodoxa, que resumia a história ao

conflito de classe e às relações econômicas entre estrutura e superestrutura, e estabelecer uma

visão capaz de abarcar as diferenças culturais e sociais presentes na sociedade peruana.

Eduardo Cárceres, observando a abordagem historiográfica de Flores Galindo, afirma que,

apesar de sua filiação marxista, o historiador percebe que a compreensão de seu objeto está

muito além do mundo material. Por conta disso, “teve que explorar novos cenários, em

particular o da subjetividade – individual e social – nutrida da vivência do presente e,

sobretudo, das tradições expressadas como mitos, sonhos, relatos, etc”208.

Assim como havia feito Mariátegui ao reler o marxismo no Peru, para o

marxismo historiográfico ter validade era preciso adotar a mesma heterodoxia presente no

autor dos Sete Ensaios. Segundo essa interpretação, a história da luta de classes no Peru não

era feita apenas de burgueses e proletários. O elemento indígena, a figura do andino, como já

havia apontado o socialista, era fundamental no processo de superação da exploração

capitalista. Segundo este raciocínio, os indígenas não poderiam ser compreendidos como um

todo homogêneo. Era necessária uma aproximação antropológica e psicológica ao mundo

andino, à incompreensão histórica do mestiço, para se realizar uma leitura das diversas

referências culturais e mentais que os compunham.

Por conta disso, desde a primeira obra de Flores Galindo, Los Mineros de La

Cerro de Pasco, existe uma superação da visão monolítica de classe e uma aproximação à

obra de Mariátegui, na qual os operários peruanos são, antes de qualquer coisa, indígenas em

sua essência. Aliás, Mariátegui, desde então, configurou-se em referencial principal da obra

de Alberto Flores Galindo, não apenas em sua leitura sobre a história peruana, mas,

principalmente, na busca pela compreensão de um socialismo próprio para o Peru. A presença

de Mariátegui é constante em toda obra de Flores Galindo, sendo o seu principal referencial

207 A aproximação à psicanálise também é influenciadas pela relação que Mariátegui faz entre Freud e Marx no livro Defensa del Marxismo. Em Buscando un Inca, existe um capítulo exclusivo onde o autor aplica métodos da psicanálise para analisar os sonhos de um determinado personagem histórico. Além disso, em outros artigos como, Uchuray: el psicoanalisis como metafora (1983), Apresentação do livro de Psicoanalisis y ciências sociales de Gonzalo Portocarrero (1986) e La Imágen y el espejo: historiografia peruana (1910-1986) (1986), o autor ressalta a contribuição que a psicanálise poderia oferecer à história., como uma forma de superar a dimensão objetiva dos problemas e se aproximar dos medos e esperanças das pessoas, para além da estrutura ou conjuntura econômica. 208 CÁCERES, Eduardo. “No hay tal lugar”… Op. Cit. nota 102, p. 18.

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119

teórico. Mais do que isso, em Flores Galindo o pensamento de Mariátegui ganhou novas

interpretações, como veremos mais adiante.

Além de Mariátegui, entre os referenciais historiográficos do autor

encontramos a História Social Inglesa, a Teoria da Dependência209, o Gramscismo e a Nova

História francesa. Algumas perspectivas próprias da segunda geração dos Annales, como a

história total, aparecem em sua obra. Esta característica representa a influência sofrida em

razão do período que passou na França e pelas orientações de Ruggiero Romano.

A importância de Romano para a formação de uma nova perspectiva

metodológica em Flores Galindo pode ser maior do que a influência da maneira como o

italiano concebia a história e seus diversos tempos. Em um artigo dedicado ao “mestre”,

Flores Galindo ressaltava que Romano “convencido que não existe um modelo historiográfico

válido sempre em todo lugar, aconselhava seus alunos latino-americanos – na mesma rota de

Arguedas ou Mariátegui – aventurar-se a construir seus próprios modelos.”210

Neste sentido, Para Flores Galindo estabelecer uma nova história não era

simplesmente abandonar velhos métodos, mas sim criar novas perspectivas para a sua

utilização. Assim, a própria concepção de uma história total em sua prática historiográfica

ganhou aspectos psicológicos e antropológicos que a desprenderam das tradicionais análises

estruturais da sociedade. Conforme apresentou o autor: Faz falta precisar as relações existentes entre estruturas e acontecimentos. Tudo transcorre dentro das estruturas. Porém sobre elas atuam a ação dos homens e suas consciências. De que maneira os acontecimentos afetam as estruturas? Responder a esta pergunta é empreender o estudo de uma conjuntura, melhor dizendo, estudar como uma cadeia de acontecimentos se entrelaçam e se explicam no interior das tensões de uma estrutura; unir na análise a curta duração (os dias e os meses da agitada vida política), com a longa duração (os anos e os séculos de uma estrutura social)211.

A obra Aristocracia y Plebe é um claro exemplo desse intento. Em um

determinado momento do livro o autor questiona a falsa imagem do mundo colonial que uma

análise estrutural poderia passar. Afirma, “persiste a tendência de imaginar a estrutura social

da colônia como integrada por personagens imóveis. Porém, como todos os estereótipos, este

tampouco resiste à menor indagação”212. Contra isso, o autor busca em biografias de escravos,

209 O texto Arequipa y el Sur Andino: ensayo de historia regional siglos XVIII-XX de 1977 é feito segundo a perspectiva da Teoria da Dependência para analisar o desenvolvimento do capitalismo nesta região do Peru. 210 FLORES GALINDO, Alberto. Ruggiero Romano, el viajero. In: __________. Obras Completas. Tomo VI. Lima: SUR, 2007, p. 42. Publicado originalmente em: Caballo Rojo, n. 167, 1983, p. 13. 211 FLORES GALINDO, Alberto. Presentación al Tomo II de La Historia como Ciencia Social. In: __________. Obras Completas. Tomo IV. Lima: SUR, p. 437-438. 212 FLORES GALINDO, Alberto. Aristocracia y Plebe... Op. Cit. nota 99, p. 137.

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bandoleiros, padeiros, fazendeiros, comerciantes, entre outros, uma forma de se constituir o

cotidiano colonial. Em meio às cifras, estatísticas e levantamentos demográficos, aparecem os

rostros de la plebe213. Assim, apenas como um exemplo, a violência entre classes não apenas

responde a um mecanismo de coerção, mas se configura como um reflexo dos medos e

inseguranças de uma aristocracia frágil perante seus inúmeros escravos.

A preocupação em se construir uma forma de produzir história que fugisse dos

parâmetros tradicionais é algo que chama a atenção em suas obras. Ao longo de suas

narrativas, aparecem sempre reflexões sobre o trabalho do historiador e seus métodos. Da

mesma forma, afirma a necessidade de inovar e de se aproximar da realidade cotidiana, de

unir o documento analisado à prática cotidiana. Conforme escreveu em um artigo de 1983, os documentos não falam por si só, tudo isto depende em muito dessa habilidade para interrogá-los, que não se aprende nos melhores manuais, nem nas universidades, mas sim na prática cotidiana: habituando-se à outras grafias, à palavras que já não usamos e à chaves que não são nossas214.

Nesse ponto, Flores Galindo foi um grande crítico de sua geração. Da mesma

maneira que Magdalena Chocano, o autor acreditava que a Nova História não havia

conseguido se libertar das tradições impostas pela historiografia tradicional. Ainda que tivesse

produzidos novos atores históricos e encontrado novos objetos de estudo, a Nova Historia

acabou por repetir a narrativa ucrônica da história tradicional. Conforme escreveu em seu

artigo La imagen y el espejo: la historiografia peruana, de 1988, renovação temática não era necessariamente sinônimo de renovação conceitual. Ainda que resulte paradoxo, essa nova visão continuava sendo tributária, em muitos aspectos, de Riva Aguero. Com efeito, a ele poderia remontar-se essa obsessiva preocupação pela nação, o lamentar, uma vez mais as ocasiões perdidas ou a carência de uma classe dirigente215.

De certa maneira, esta era uma preocupação do autor que já aparecia na década

de 1970 quando a Nova História peruana começou a produzir seus primeiros trabalhos e se

afirmar como discurso historiográfico hegemônico. Em 1976, criticando a história

quantitativa e a demografia histórica, atacou: a história terminou por transbordar os cursos tradicionais. Porém isso levou simplesmente a uma nova forma de empirismo, muito similar ao da história tradicional. No lugar de reunir feitos individuais, a obsessão foi a maior

213 Título do Capítulo V da obra. 214 FLORES GALINDO, Alberto. El historiador y los archivos en el Perú. In: __________. Obras Completas. Tomo VI. Lima: SUR, 2007, p. 140. Publicado originalmente em: Mundo Archivistico, n. 25, 1985. 215 FLORES GALINDO, Alberto. La imagen y el espejo: la historiografia peruana. In: __________. Obras Completas. Tomo VI. Lima: SUR, 2007, p. 298. O texto foi originalmente publicado em: Márgenes encuentro y debate, ano II, n. 4, 1988, p. 55-83.

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quantidade de preços de quadros estatísticos ou descobrir um novo tema virgem para a investigação216.

Podemos dizer que, frente a esses dilemas, a obra de Flores Galindo apresenta

alguns avanços. Na questão do método, como vimos anteriormente, a sua proximidade com a

psicanálise e a valorização de uma história para além das estruturas representam uma tentativa

de escapar de uma narrativa desproblematizada. Outro ponto é a concepção de história

enquanto construção de uma imagem coletiva capaz de produzir mecanismos para a superação

de problemas do presente que se configura como algo oposto ao que pensava a tradição

ucrônica. Representa a substituição de uma história fatalista, por uma história de esperança.

Esta visão da história como esperança aparece clara quando o autor propõe o

tema da utopia andina. De certa maneira, pensar a história como um desafio de se criar uma

imagem coletiva de uma sociedade para o futuro é uma forma de se cortar as raízes do

inacabado que propunha a história tradicional. Ao colocar a utopia no lugar da ucronia, Flores

Galindo destacava uma visão de história que privilegia o que está por vir e não o que não

pôde vir.

De fato, essas são propostas de Flores Galindo que se opõe diametralmente à

história tradicional e, por outro lado, convida a Nova História a produzir efetivamente uma

nova tradição historiográfica. Esta interpretação da obra de Flores Galindo levou Paulo Drinot

a afirmar que Buscando un Inca “conclamou por uma história diferente, que traria à tona de

que modo os vários problemas do país, ‘han sido vividos por los protagonistas, sus ideas y

sentimientos, sus esperanzas para de esta manera devolver La palabra a quienes foran

condenados al silencio’”217.

No entanto, concretamente, podemos dizer que a utopia como combustível da

história não possibilitou a Flores Galindo construir uma imagem efetiva sobre o Peru e

tampouco construir um projeto político para o futuro. Ainda que tentasse, Flores Galindo

incorreu em velhas práticas de seus coetâneos e, até mesmo, demonstrou não conseguir se

livrar da tradição ucronica da história tradicional.

Tanto em Aristocracia y Plebe, quanto em Buscando un Inca, o autor recorreu

ao irrealizado para conduzir suas idéias. No primeiro livro, o pessimismo, conforme observou

Gonzalo Portocarrero218, dá o tom da obra. A pergunta que finaliza a obra é: Por que não

216 FLORES GALINDO, Alberto. Presentación a La Historia… Op. Cit. nota 74, p. 436-437. 217 DRINOT. Paulo. Historiografia Peruana... Op. Cit. nota 138, p. 61. Não traduzimos o trecho em espanhol, pois é assim que aparece no artigo de Paulo Drinot. 218 Cf. PORTOCARRERO, Gonzalo. La Hazaña de Alberto… Op. Cit. nota 111, p. 21.

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houve espaço para a revolução? Como resposta, ao longo do livro, surge uma classe

dominante fraca e uma classe subalterna sem coesão. Um país sem alternativas.

Já no capítulo IV do referido livro, aparece a seguinte pergunta: e se tivesse

triunfado a revolução de Tupac Amaru II? A partir daí, o autor imagina como seria a

sociedade peruana resultante desse processo incompleto: uma dinastia incaica. Mesmo que

essa idéia se perca no decorrer da obra, demonstra um tributo pago a Riva Aguero.

Ainda que a ucronia apareça como um recurso neste momento da obra, não

podemos dizer que ela dita as interpretações do autor à respeito da utopia andina. Buscando

un Inca possui mais avanços interpretativos diante da história tradicional do que retomadas.

Além disso, é um exemplo claro de um historiador preocupado em transformar historiografia

em discurso político. Por outro lado, é também uma forma de se captar o pensamento de

Flores Galindo em sua totalidade. Como uma síntese à sua trajetória intelectual, Buscando un

Inca traz todos os elementos observáveis em Flores Galindo, desde sua escrita em forma de

artigos periodísticos organizados até a seleção dos temas que versam sobre personagens e

objetos recorrentes em outros livros. É este, essencialmente, o tema central do nosso próximo

capítulo.

 

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CAPÍTULO 3

BUSCANDO UN INCA: A OBRA EM PERSPECTIVA

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Buscando un Inca é reconhecidamente a principal obra de Alberto Flores

Galindo. Não é consenso de que esta seja a sua melhor obra. Para o historiador peruano

Carlos Iván Degregori, por exemplo, o melhor livro de Flores Galindo é La agonía de

Mariátegui219. No entanto, é unânime a afirmação de que este é o seu livro de maior

destaque220. Tal constatação ocorre por vários fatores que o compõem e o cercam. Além de

sua ampla tiragem, da extensa difusão entre os setores intelectuais e acadêmicos e da

polêmica gerada em torno de suas proposições, outros dois motivos fazem dele o trabalho

mais importante de Flores Galindo. O primeiro motivo está relacionado ao momento

econômico e político que o Peru atravessava na década de 1980, em especial em 1986, quando

ocorreu a primeira edição do livro. Trataremos disso mais adiante. O segundo motivo dirige-

se às características historiográficas e intelectuais sobre as quais o livro foi estruturado. A isto

nos dedicaremos de imediato.

Ao realizarmos a leitura de Buscando un Inca é possível ter uma visão geral da

trajetória intelectual e da produção acadêmica de Flores Galindo. Para vários historiadores e

intelectuais, como Hugo Vallenas, Gonzalo Portocarrero, Ricardo Portocarrero, Eduardo

Cárceres, Cecília Rivera, entre outros, o livro Buscando un Inca apresenta-se, ainda que sem

possuir essa intenção, como um grande balanço e resumo da trajetória intelectual de Flores

Galindo. Não apenas nos temas, mas também no estilo literário e na metodologia

historiográfica. Neste livro, aparece claramente a incorporação de métodos externos à

historiografia peruana, como a psicanálise e a etnografia.

Outro ponto relativo ao trabalho historiográfico está na reflexão que faz sobre o

papel da História e do historiador. Como abordamos no capítulo anterior, a reflexão sobre o

papel da História e do historiador se faz constante ao longo da escrita e da elaboração de seus

trabalhos e, neste livro, não é diferente. Como já mencionamos, para Flores Galindo, a

história deveria ser compreendida como uma ciência social em todos os sentidos,

principalmente em seu poder de intervenção. Em Buscando un Inca, isso fica ainda mais

evidente.

Em uma das reedições da obra, Flores Galindo inseriu um novo capítulo que

possuía o claro objetivo de dialogar com as forças da política peruana221. Nesse novo capítulo,

o autor rejeita o caminho construído pelo Sendero Luminoso, apontando a necessidade de se

219 Cf. DEGREGORI, Carlos Iván. Otro Mundo es Posible. In: LÓPEZ JIMÉNEZ, Sinesio (dir). Homenaje a Alberto Flores Galindo: otro mundo es posible. Libros & Artes. Lima: Biblioteca Nacional del Perú, 2005 220 O livro figura como um dos 50 melhores livros peruanos segundo: ALVOJIN, Cristóbal; HERNANDEZ, Max; SAGASTI, Francisco. Los 50 Libros que Todo Peruano Culto Debe Leer. Lima: Caretas/PUCP, 2000. 221 Capítulo 12 Epílogo: Sueños y pesadillas de sua última edição, disposta em suas Obras Completas tomo III.

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estabelecer um socialismo que se apresentasse como um elemento a ser germinado dentro da

cultura política peruana, como a expressão de uma reivindicação popular ou um desafio

coletivo, e não uma imposição vinda de um setor minoritário da sociedade, como queria

aquele grupo revolucionário.

Se a compreensão da História e do ofício do historiador, bem como a

metodologia utilizada para a realização da obra apresentam-se como um balanço de sua

trajetória, o mesmo ocorre com os temas por ele trabalhados. Neste ponto é possível até

mesmo dizer que ele realiza uma espécie de “compilação” de suas pesquisas anteriores. Por

conta disso, nota-se, ao longo da obra, as seguintes temáticas: a existência de elementos

indígenas na classe operária, fato amplamente estudado em sua época de graduação; os

estudos sobre o Peru colonial e a revolta de Túpac Amaru II, objetos iniciais de seu

doutorado; José Carlos Mariátegui e a geração de 1920222, presentes em Apogeo y Crisis, La

Agonía de Mariátegui e tantos outros momentos; a Lima colonial e pós-independente223, tão

densamente apresentada em seu trabalho de doutorado Aristocracia y Plebe; por fim José

Maria Arguedas224, objeto de leituras desde a década de 1970 e último tema de pesquisa.

Esta recorrência de temas possui ainda outra explicação. Buscando un Inca,

antes de ser um livro propriamente dito, é uma organização de artigos publicados com o

passar dos anos em diversos periódicos. Segundo Manuel Burga, a hipótese de existência de

projetos utópicos nos Andes começou a ser discutida, especialmente por ele e Flores Galindo

ainda no final da década de 1970225. Em 1976, por exemplo, Flores Galindo publicou um

artigo intitulado La Nación como utopia: Tupac Amaru 1780226. O tema voltaria à tona em

1978 com a organização do número 12 da revista Allpanchis.

Entre esta data e o ano de publicação da obra apareceram mais de uma dezena

de artigos que desenvolviam claramente a hipótese da utopia andina. O primeiro, Utopía 222 Desatacamos que Mariátegui entra no livro não apenas como um personagem da narrativa. Mais do que isso, suas idéias passam a nortear as ambições da obra. Conforme abordaremos no capítulo 4, em nossa concepção, a obra Buscando un Inca representou a tentativa de Flores Galindo de dar continuidade ao pensamento de Mariátegui e, de certa maneira, resolver uma demanda levantada pelo socialista ainda na década de 1930: converter o socialismo em uma fé; mesclar o socialismo com as tradições peruanas. 223 No caso de Lima, aparece um capítulo exclusivo sobre ela. O interessante é que a abordagem sobre a capital peruana ocorre quando o autor trabalha a questão do racismo no Peru, o que ele definiu como a anti-utopia. Outros temas já presentes na obra Aristocracia y Plebe também são retomados. 224 Já Arguedas aparece em vários momentos da obra, mas, além disso, é utilizado pelo autor para abrir algumas perguntas sobre o Peru contemporâneo, como a existência de um pensamento mestiço que, por falta de um espaço identitário na sociedade, se apossou de “sonhos e pesadelos” dos demais estratos sociais etnicamente definidos, índios e criollos. As perguntas ficaram em aberto na obra e pareciam que seriam perseguidas pelo autor em seus próximos trabalhos, mas isso já é conjectura nossa. 225 Cf. BURGA, Manuel. La Historia y… Op. Cit. nota 113. 226 O artigo foi publicado pela primeira vez no formato de mimeógrafo na PUCP. No entanto, em fevereiro de 1977, apareceria na Revista Debates en Sociologia, Departamiento de Ciencias Sociales de la Universidad Católica, ano I, n. 1, p. 139-153.

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Andina y Socialismo227, data de 1981. No ano seguinte, viria um esboço muito semelhante à

idéia que sustenta o livro em torno de um mapeamento da utopia andina ao longo de cinco

séculos (XVI-XX). Trata-se do artigo La utopia andina. Ideologia y luchas campesina en los

Andes. Siglos XVI-XX escrito em conjunto com Manuel Burga228.

Neste mesmo período, apareceram outras três obras de Flores Galindo: Apogeo

y Crisis (1979), La Agonía de Mariátegui (1980) e Aristocracia y Plebe (1984). Enquanto

lançava esses livros, “paralelamente a idéia da utopia andina seguia sua marcha”229. Devido a

isso, percebemos que as questões levantadas em suas outras publicações são as mesmas que

motivaram a pesquisa em torno da utopia andina e a publicação do livro. Por isso, Buscando

un Inca, além de ser uma síntese da trajetória de Flores Galindo por conta de seus métodos,

temas, estilo e concepção de história, também o é à medida que se configura como a

organização de textos publicados em sete anos de inserção periodístico.

Como já afirmamos, entre 1981 e 1986, vários dos capítulos que compõem este

livro apareceram em forma de livretos ou artigos em revistas especializadas. A idéia era

produzir, a partir deles, um livro único com Manuel Burga sobre este tema. Entretanto, a

parceria não passou da intenção, uma vez que Burga queria dar um tom mais acadêmico à

obra, enquanto Flores Galindo pretendia estabelecer um texto mais politizado230.

Assim, em 1986, Flores Galindo organizou esses artigos em forma de um livro

para participar do Prêmio Continental Casa de las Américas, em Havana231. O resultado não

poderia ter sido mais positivo: o trabalho obteve o prêmio de melhor livro. Devido a isso, foi

publicado neste mesmo ano pela própria Casa de las Américas e Flores Galindo foi convidado

a visitar Cuba. Esta foi a primeira de seis edições. Em 1987, o livro foi publicado pelo

Instituto de Apoyo Agrário, em Lima. Em 1988, o instituto, em conjunto com o Editorial

Horizonte, lançou a terceira edição. Em 1991, a terceira edição foi traduzida para o italiano e

227 Publicado em Cultura Popular, n. 2, Lima, setembro de 1981, p. 28-35. 228 Publicado em maio de 1982 pela PUCP, Série: Materiales de Enseñanza, Sub-série: Sociologia com o título ¿Qué és la Utopía Andina? em formato mimeografado. 229 BURGA, Manuel. La Historia y… Op. Cit. nota 113, p. 117. 230 Em 1987 Manuel Burga publicou um livro que foi o resultado desta pesquisa iniciada em conjunto com Flores Galindo, intitulado Nacimiento de una utopía: muerte y resurrección de los Incas. 231 Dos sete capítulos que compõe a obra original de 1986, seis já haviam sido publicados. Assim temos: o primeiro capítulo intitulado Europa y el país de los Incas: la utopía andina, havia sido publicado, em 1986, em forma de livro com o mesmo título; o capítulo 2 de título La Revolución Tupamarista y los pueblos andinos foi publicado na revista Allpanchis n. 17 de 1981; o capítulo 3 nomeado Los sueños de Gabriel Aguilar foi publicado na revista Debates en Sociologia, n. 11 em 1986; o capítulo 4 chamado Soldados y montoneros foi publicado na revista Caballo Rojo, n. 167 em 1983; o capítulo 5 intitulado El Horizonte Utópico foi publicado no livro organizado por J. P. Deler e Y. Saint-Geours Estados y naciones en los Andes. Hacia uma historia comparativa: Bolívia-Colombia-Ecuador- Perú de 1986; o capítulo 6 chamado El Perú hirviente de estos dias... não havia sido publicado anteriormente; o epílogo La Guerra Silenciosa, foi publicado em Violencia y Campesinado elaborado conjuntamente com Nelson Manrique em 1986.

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publicada pelo Grupo Editoriale Fiorentino. O mesmo ocorreu com a versão mexicana de

1993, publicada pelo Consejo Nacional para La Cultura y las Artes y Editorial Grijalbo. A

sexta edição saiu em 1994, novamente pelo Editorial Horizonte. No mesmo ano, esta última

versão foi apresentada no tomo III parte I das Obras Completas de Alberto Flores Galindo,

publicada pelo Editorial SUR.

É interessante notar que as diferentes publicações não foram apenas revisões

ou correções às edições anteriores. Entre uma e outra publicação houve a inserção de novos

capítulos, inseridos como forma de responder às críticas, ou ainda, pela necessidade de se

completar idéias deixadas em aberto pelo autor. Por esta razão, dos doze capítulos que

compõem a edição de 1988, cinco não estavam no original de 1986. Além disso, os outros

capítulos tiveram inserções de parágrafos completos e a supressão de outros, além da edição

de mapas e figuras. Por isso, consideramos que, concretamente, o projeto de Buscando un

Inca, iniciado em 1981 a partir da publicação do artigo La Revolución Tupamarista y los

Pueblos Andinos (capítulo 2 da edição de 1986 e quarto capítulo de 1988) na Revista

Allpanchis nº 17 e 18, apenas teve fim em 1988.

Ao longo desses anos, a utopia andina não foi um objeto exclusivo de

discussão de Flores Galindo. Outros autores, como Rodrigo Montoya, Nelson Manrique e

Manuel Burga passaram a estudá-la e analisar suas possibilidades. Evidente que tantos outros,

como Carlos Ivan Degregori, Fernando Iwasaki, Maria Isabel Remy, Henrique Urbano, Mario

Vargas Llosa, trataram de analisá-la criticamente. De qualquer forma, a utopia andina passou

a ser o centro de um debate intelectual, mais do que um trabalho isolado e particular e, por

isso é também um importante instrumento para averiguarmos os caminhos da intelectualidade

e da política peruana da década de 1980.

A partir dessa perspectiva, portanto, Buscando un Inca não pode ser descolado

do contexto histórico peruano da década de 1980. Além de seu caráter historiográfico - muito

destacável por sinal - esta obra deve ser compreendida como um exercício intelectual no

sentido de se estabelecer as possibilidades para a formulação e a implantação de um

socialismo peruano. Nesse sentido, ela apresenta-se como crítica e autônoma frente às idéias

presentes na esquerda legal (IU) e no Sendero Luminoso, bem como ao liberalismo

econômico implantado pelo segundo governo Fernando Belaúnde.

Isso não quer dizer que compreendemos a obra como um programa político: ela

não é. Nesse sentido, entendemos que ela não aponta caminhos para a atuação política que

possibilitassem a transformação da utopia andina em um novo socialismo. Ao contrário,

Buscando un Inca configura-se, mais como um diagnóstico, uma leitura da história política

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peruana que constata a urgência de se estabelecer caminhos para a implantação de um

socialismo, em oposição ao que era apresentado pelo Sendero e pela esquerda legalista. A

utopia andina construída por Flores Galindo apresenta-se como um meio de transformar o

socialismo em um projeto coletivo do povo peruano. Porém, as medidas necessárias para

torná-la efetiva não são claras. 3.1 O que é a utopia andina?

Buscando un Inca realiza uma retomada histórica em torno daquilo que o autor

chamou de utopia andina. Em certo sentido, este é o tema central do livro: demonstrar como a

utopia andina se manifestou nos últimos cinco séculos da história andina. Mas, o que seria

precisamente a utopia andina? Segundo Alberto Flores Galindo, ao longo da história política

peruana, era possível perceber vários momentos em que projetos políticos foram elaborados e

compartilhados em torno de uma idéia: restaurar o Império Inca.

Esta restauração apareceu de maneira diversa e, por isso, poderia tanto

representar a retomada cabal daquilo que foi interrompido pela chegada dos espanhóis quanto

uma espécie de releitura, uma readaptação do passado andino, tendo o Império Inca como

uma referência. Tais projetos seriam a manifestação política de uma interpretação positiva do

passado incaico, que também possuíam suas vertentes culturais: festas, danças, datas

comemorativas e rituais que celebravam os mitos, em referência a esse passado “glorioso” do

Peru.

Em outras palavras, poderíamos dizer que a utopia andina é uma construção

mitificada em torno do mundo incaico, como um modelo perfeito de sociedade que se

consolidou no imaginário da sociedade peruana, possuindo suas representações no campo

político, mas também na cultura e na arte232. Conforme nos explica Sinésio López a

utopia andina consiste, segundo Flores Galindo, no conjunto de mitos, lendas, crenças, sonhos, festividades e formas religiosas que, apelando ao passado e ao retorno do Império incaico, orienta, dá sentido e impulsiona a ação coletiva do mundo andino derrotado pela conquista, oprimido e explorado pela Colônia e a República233.

É importante ressaltar que, para Flores Galindo, essa visão “romanceada” do

passado Inca não representa o que ele realmente foi. A imagem difundida é, na realidade, de

232 Enquanto o trabalho de Flores Galindo enfatiza a utopia andina como inspiração de movimentos políticos, a obra de Manuel Burga valoriza as festas e manifestações culturais. 233 LOPEZ JIMENEZ, Sinesio. El Historiador de los Vencidos. In: ___________. Homenaje a Alberto Flores Galindo: otro mundo es posible. Libros & Artes. Lima: Biblioteca Nacional del Perú, 2005, p. 2.

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129

uma sociedade idealizada e, portanto, muito diferente do que foi, de fato, o Império Inca.

Neste sentido, o que se procura restaurar é aquilo que se imaginou sobre a sociedade Inca e

que foi coletivamente compartilhado ao longo dos anos. Conforme explicitaria o autor, Uma história de milênios foi identificada com a de um Império, e um mundo em que existiam desigualdades e imposição, se converteu em uma sociedade homogênea e justa, sem fome e sem desigualdade. Os Incas deixaram de ser uma dinastia para se transformarem singularmente em um país que pertencia a seus verdadeiros e antigos donos234.

Para Flores Galindo a utopia andina não poderia ser outra coisa, senão uma

criação colonial, uma vez que se baseia em uma imagem concebida a posteriori sobre algo

que se arruinou com o início da colonização. Além disso, é possível identificar referências

próprias da cultura cristã européia figurando como elementos da utopia andina, atestando que

ela havia se forjado não somente sobre heranças pré-colombianas, mas também sobre

influências européias coloniais. Assim, na concepção de Flores Galindo, a utopia andina tinha

sua origem no século XVI com a chegada dos primeiros europeus aos territórios andinos. Do

encontro das tradições européias – o milenarismo, a utopia e o paraíso – com os elementos da

cultura andina – a visão dual do mundo e a simbologia do Império Inca – fincou raízes e se

desenvolveu da utopia andina.

É importante salientar que a incorporação de novos elementos europeus à

cultura andina não seria reflexo apenas de um processo decorrente do encontro de

civilizações. Deu-se, também, como forma de se estabelecer progressivamente uma

explicação perante a tragédia da conquista, justificando o fracasso dos deuses andinos e a

falência dos mitos incaicos diante dos inimigos. Neste ponto, Flores Galindo entende que a

catástrofe da conquista somente pôde ser interpretada pelos nativos quando incorporaram a

concepção de tempo linear européia, substituindo a visão de história cíclica indígena235. A

partir de então, passam a assimilar outras características do pensamento europeu, projetando

uma esperança de salvação no futuro.

De acordo com o comentário de Nelson Manrique:

234 FLORES GALINDO, Alberto. ¿És posible la utopia?. In: ___________. Obras Completas. Tomo VI. Lima: SUR, 2007, p. 194. Publicado originalmente em: El Caballo Rojo, segunda época, n. 1, 1986, p. 4-5. 235 Esta interpretação sobre o pensamento andino e a influência do pensamento ocidental apresentada por Flores Galindo, também presente na obra de Burga, era compartilhada por outros autores como Henrique Urbano. Em um artigo de 1991, escreveria o autor em concordância com Flores Galindo: [...] quando chegaram aos Andes, os próprios espanhóis nutriam projetos utópicos. Por outro lado, ao emprestar ao discurso mítico andino a dimensão futura que lhe faltava, o tempo andino se libertou de suas amarras e olhou para as idades futuras com novos olhos. No meio dessa brutal transformação mental, o discurso utópico emergiu nos Andes com suas próprias asas e deu mostras de originalidade. Cf. URBANO, Henrique. Historia y etnohistoria andinas. In: Revista Andina. Ano 9, n. 1, Cuzco, julho de 1991, p. 152-153.

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Ainda que a conquista apresentasse características que pudessem equipará-la à noção andina de um pachacuti [...] suas conseqüências não se adequaram àquilo que o esquema mítico de interpretação da realidade sugeria. O tempo cíclico era insuficiente. Era necessário ascender a um tempo linear, histórico. Isto foi possível graças à incorporação de novas categorias trazidas pelos conquistadores e, particularmente, àquelas que promoveram o cristianismo ao universo mental dos vencidos236.

A concepção de história linear permitiu pensar a organização do tempo com

um começo e um fim, diferentemente da perspectiva de eterno retorno presente na visão

cíclica. Em conseqüência disso, antigos mitos ganharam novos significados, abrindo espaço

para a produção de novos mitos interpretativos da realidade. O conceito de pachacuti237

(reversão do mundo), por exemplo, adquiriu os contornos do apocalipse cristão e, por sua vez,

o retorno do Inca assumiu aspectos semelhantes à volta de Cristo. Dessa maneira, tornou-se

possível rechaçar o presente de exploração imposto pela ordem colonial e projetar para o

futuro a salvação: o retorno do Inka-Rey.

Esta explicação se converteu em uma esperança compartilhada no mundo

andino, que passou a ser representada em festas como o Taki Onqoi, em manifestações

populares, como as encenações públicas sobre a prisão de Atahualpa, ou em mitos

multiplicados pelo imaginário social, como o Inkarri. A utopia andina transformou-se na

esperança de uma sociedade melhor. Uma sociedade como tantas outras produzidas pelo

pensamento utópico, mas que, ao contrário das demais, tinha um lugar definitivo na história: o

passado Inca. Neste sentido, Flores Galindo avança uma interpretação: A utopia andina foi uma resposta ao problema da identidade construído nos Andes após a derrota de Cajamarca e ao cataclisma da invasão européia. Os mitos não funcionaram. Necessitava-se entender a história. Este problema foi vivido pelos índios e camponeses que protagonizaram as rebeliões nativistas, mas também, da sua maneira, foi vivido pelos setores da população que foram rechaçados por espanhóis e índios: os mestiços, os verdadeiros filhos da conquista, produto dessa orgia coletiva que foram as marchas das hostes peruleras238.

A citação de Flores Galindo permite-nos outra reflexão sobre o conceito de

utopia andina. Como sugere a citação acima, trata-se de uma esperança compartilhada não

236 MANRIQUE, Nelson. Historia y utopía en los Andes. In Márgenes. Ano IV, n. 8, Lima, 1991, p. 24-25. 237 O termo pachacuti ou pachacutec, mais precisamente, significa uma revolução cósmica que marca a passagem de uma era mitológica para uma nova, o que provoca uma inversão violenta da realidade. Trata-se também do nome do “Inca civilizador” Pachacutec Yupanqui. Segundo alguns autores, Pachacutec teria recebido este nome devido as grandes transformações que empreendeu na estrutura do Império Inca. Com o auxílio de seu filho, expandiu os domínios Incas, antes reduzidos à região de Cuzco, para uma vasta área que vai do centro do atual Equador ao norte do atual Chile. Além disso, alterou a ordem hierárquica dos deuses, estabeleceu um novo templo do sol (Qoricancha) e mudou o calendário religioso em função de novas huacas. Enfim, promoveu um verdadeiro pachacuti. Cf. FAVRE, Henri. A Civilização Inca. 2ª edição. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990. 238 FLORES GALINDO, Alberto. Buscando un Inca...Op. Cit. nota 27, p. 372-373.

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apenas pelos descendentes de indígenas, como também pelos mestiços. Aliás, conforme

veremos mais adiante, nesta trajetória de cinco séculos desenvolvida pela utopia andina, os

mestiços serão aqueles que encontrarão nela um sentido para a sua identidade, perdida entre

brancos e índios. Esta inclusão do mestiço se deu por conta da própria concepção de “andino”

utilizada pelo autor. Conforme anunciou Flores Galindo, o termo andino

Tem mais de uma utilidade, porque permite, por exemplo, desprender-se da conotação racista que implicava a palavra índio, evoca a idéia de uma civilização, não se limita aos camponeses como também inclui os setores urbanos e mestiços, incorpora o cenário costa e serra, transcende os limites nacionais e ajuda a encontrar os vínculos entre a história peruana e as da Bolívia e do Equador239.

A utilização desta concepção de andino supera a barreira étnica do passado pré-

colonial e ainda abre espaço para pensarmos a utopia andina para além dos limites fronteiriços

peruanos. O que a converteria em um fenômeno observável também em outros países como o

Equador e a Bolívia. Da mesma forma, ultrapassaria os próprios limites geográficos impostos

pelos Andes e “incorpora o cenário serra e costa”, bem como a selva.

Ao longo da história andina, esta esperança de uma sociedade melhor,

personificada no Império Inca, se disseminaria por todo o Peru, seguindo os fluxos

migratórios e a “invasão” andina aos grandes centros. Mesmo assumindo novas formas e

ganhando outras interpretações, para Flores Galindo, a utopia andina resistiu ao tempo,

ressurgindo de diversas maneiras durante a história peruana. Por conta disso, estaria viva na

sociedade peruana até os tempos atuais240. Como um espólio da utopia andina, teríamos

presente no imaginário social um preceito de que o Império Inca foi uma sociedade onde

imperou a justiça e a harmonia social. Na década de 1980, por exemplo, uma pesquisa

liderada por Gonzalo Portocarrero nas escolas peruanas constatou que, entre as crianças, 68%

tinham uma visão do Império Inca como algo que fora justo, harmônico e feliz, contra 32% de

outras que o viam como tirano e infeliz241. Nesse sentido, a imagem que os peruanos

possuíam do Império Inca era o oposto daquilo que se via nas ruas peruanas da década de

1980. Uma observação semelhante a essa foi feita pelo próprio Flores Galindo:

239 Ibid. p. 16. 240 Aqui reside outra diferença em comparação ao trabalho de Manuel Burga. Para Burga a utopia andina perduraria somente até o século XVIII, com a Revolução de Túpac Amaru II, perdendo gradativamente a sua força a partir daí. 241 Segundo um levantamento dirigido por Gonzalo Portocarrero em 1985, 26% das crianças em idade escolar viam o Império Inca como algo justo, 14,43% o tinham como feliz, 27,05% o consideravam um lugar harmônico. Em contrapartida, 14,81% diziam ser este tirano e 17,87% infeliz. Cf: FLORES GALINDO, Alberto. Buscando un Inca... Op. Cit. Nota 27, p. 23.

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Os Incas habitam a cultura popular. A margem do que escrevem os autores de apostilas escolares, professores e alunos, no Peru, estão convencidos de que o Império Incaico foi uma sociedade equitativa, onde não existiu fome, nem injustiça e que constitui, portanto, um paradigma para o mundo atual242.

De qualquer maneira, tanto no passado quanto no presente, a realidade de medo

e pobreza levaria a se almejar uma terra onde não existiu a fome, a desigualdade e a tirania.

Algo semelhante ao que fez Thomas Morus, em 1516, ao imaginar uma terra diferente

daquela Inglaterra onde habitava Henrique VIII e propor, como modelo de sociedade perfeita,

a ilha Utopia. Porém, ao contrário da ilha narrada por Rafael Hitlodeu, na obra de Morus, esta

terra, presente na memória coletiva andina, não era um terreno fora do tempo e sem espaço,

Eu-Topos (sem lugar). Tratava-se de um lugar muito bem localizado na história: o Império

construído pela sociedade Inca entre os séculos 13 e 15.

Como aponta o nosso autor, A idéia de um regresso do Inca não apareceu de maneira espontânea na cultura andina. Não se tratou de uma resposta mecânica à dominação colonial. Na memória, previamente, se reconstruiu o passado andino e o transformou para convertê-lo em uma alternativa ao presente. Esta é uma característica que diferencia a utopia andina. A cidade não fica fora da história ou remonta ao início dos tempos. Ao contrário, é um acontecimento histórico. Existiu. Tem um nome: Tahuantinsuyo. Uns governantes: os Incas. Uma capital: Cusco. O conteúdo que guarda essa construção foi transformado para imaginar um mundo sem fome, sem exploração, e onde os homens andinos voltam a governar243.

O que faz desta esperança uma utopia e não uma expectativa de retorno do

Império Inca propriamente dito, está no fato de que a imagem construída dos Incas na

memória coletiva é algo bem diferente daquilo que historicamente existiu. Reside aí o caráter

utópico da proposta de Flores Galindo. Se fosse a retomada daquilo que efetivamente existiu

seria um saudosismo andino. Porém, como se trata de construir algo que somente existe

enquanto mundo idealizado tem-se então a utopia andina.

Para que isto fique claro, é necessário compreendermos o que Flores

Galindo concebeu por utopia. Da mesma forma que o termo andino possuiu, por parte do

autor, uma delimitação conceitual, o mesmo ocorreu com o termo utopia. E aqui encontramos

referência a obra de Bronislaw Baczko Lumiéres de l’utopie, de 1978. Em Buscando un Inca,

Flores Galindo se apropriou da concepção elaborada por Baczko de que “não há nada mais

242 FLORES GALINDO, Alberto. Buscando un Inca… Op. Cit. nota 27, p. 22. 243 Ibid. p. 46.

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sério do que inventar uma representação da sociedade, especialmente uma representação da

melhor sociedade possível, isto é, a comunidade da felicidade realizada”244.

Assim como Backzo, Flores Galindo entendeu que o processo de elaboração de

uma utopia ocorre no sentido de “instalar a razão no imaginário”245. Isto quer dizer, que ao

contrário da visão comum de utopia enquanto um projeto impossível, ela, na realidade, se

apresenta como uma forma de racionalizar um desejo, até então inconsciente, de se propor

uma realidade diferente daquela em que se vive. O capítulo de Baczko sobre utopia

apresentado na enciclopédia Einaudi faz uma leitura bastante crítica da obra de Thomas

Morus, procurando não analisá-la como um delírio do autor, ou como uma simples

idealização de algo improvável, mas compreendê-la como um “discurso” construído para

desaprovar a sua realidade, marcada pelos desmandos e tirania de um rei com traços

absolutistas.

É esta a perspectiva de utopia adotada por Flores Galindo. Para ele, a esperança

por um mundo tão justo como aquele vivido imaginariamente pelos Incas é o resultado da

racionalização de um sentimento de inconformidade com a realidade dada. Enquanto utopia, a

experiência andina não apenas possuiu um lugar na memória coletiva, como se converteu em

projetos políticos que ambicionaram concretamente a tomada do poder e a “inversão” da

ordem do mundo, um pachacuti.

Ainda seguindo as indicações da Baczko sobre a utopia, Flores Galindo

afirmou que existem momentos nos quais as utopias se apresentam de forma mais consistente

e possuem maior destaque na história, não sendo um fenômeno linear e sim episódico.

Desenvolvendo essa interpretação, Flores Galindo argumentou que: “Baczko sustenta que as

utopias não tiveram uma história linear e ininterrupta. Existem períodos em que o gênero se

propaga e que ele as denomina como ‘épocas quentes’”246.

Deste modo, a manifestação de utopias não é algo que possui uma linearidade

própria de períodos e contextos históricos/sociais específicos. Morrem e renascem, porém,

não necessariamente com um sentido de continuidade. Como qualquer outra utopia, com a

andina não foi diferente.

244 BACZKO, Bronislaw. Utopia. In: ROMANO, Ruggiero (dir). Enciclopédia Einaudi. Volume 5. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1985, p. 344. A referência que Flores Galindo faz a este autor é de uma obra de 1978 publicada pela Payot em Paris. No entanto, é interessante notarmos que o capítulo sobre Utopia desenvolvido na enciclopédia Einaudi é de autoria de Baczko. Por sua vez, a Enciclopedia Einaudi foi organizada por Ruggiero Romano que, entre 1974 e 1982, foi orientador do doutorado de Flores Galindo na França. Não descartamos, portanto, uma relação entre essas informações. 245 BACZKO, Bronislaw. Lumiéres de l’utopie. Paris: Payot, 1978. apud: FLORES GALINDO, Alberto. Buscando un Inca...Op. Cit. nota 27, p. 27. 246 FLORES GALINDO, Alberto. Buscando un Inca… Op. Cit. nota 27, p. 28.

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Justamente, por conta dessa concepção de utopia, Flores Galindo concebeu

que, ao longo da história peruana, várias visões idealizadas e mitificadas da sociedade incaica

foram construídas, atendendo às demandas e aos grupos específicos de cada época. Nesse

sentido, sustentou a idéia de que existiram não uma, mas várias utopias andinas. Conforme

alertou, “então é preciso falar das utopias andinas... no plural, da mesma forma que devemos

falar de homens andinos. O plural permite abandonar as abstrações e aproximar-nos

efetivamente da realidade”247.

Enquanto projeto político, a utopia andina representou uma forma de converter

essa imagem construída em objetivo a ser alcançado pela sociedade. Justamente por isso,

durante a história peruana, se converteu em um ideal compartilhado coletivamente entre os

indivíduos que viveram em prol de subverter a realidade social, econômica e política. Com os

olhos nesta perspectiva, em Buscando un Inca, Flores Galindo se propôs construir um

inventário da história das utopias andinas no Peru, assinalando suas épocas quentes e

estabelecendo suas diferenças e semelhanças. Para isso, apresentou os personagens, os grupos

sociais aos quais pertenciam, os contextos históricos e as realidades sociais que compunham

cada uma das utopias criadas.

Ao fazer isso, Flores Galindo construiu uma ordem e trouxe coesão a episódios

da história peruana, até então, não relacionados. Mais do que rebeliões andinas, alguns

episódios da história peruana passaram a ser vistos como a encarnação da utopia andina. Esta

atitude do autor foi muito bem analisada por Eduardo Cáceres. Segundo o historiador

peruano, por meio desta empreitada, Flores Galindo não apenas encontrou um objeto de

estudo, como o descobriu, ou melhor, o inventou. Explica Cáceres:

As palavras “inventou”, “descobriu” soam como uma arbitrariedade, porém “inventar” significa também “ver por diante”. Não se inventam arbitrariedades, se inventam coisas que estão de alguma forma, quase presentes e que alguém traz à luz. [...] Inventou a utopia, quer dizer, uniu um conjunto de fatos, de discursos e práticas, que a princípio não estavam alinhavados entre si com essa coerência, os trouxe à luz, os deu a coerência de um discurso com uma determinada capacidade explicativa e motivadora248.

Esta observação de Cáceres nos permite avaliar uma segunda perspectiva

presente nesta obra de Flores Galindo. Não se trata apenas de mapear a trajetória da utopia

andina; mais do que isso, trata-se de encontrar um elemento capaz de servir como sustento

para a revolução no Peru. Uma esperança capaz de motivar pessoas a se unirem em torno de

uma nova sociedade. Ainda conforme Cáceres, “Flores Galindo inventou a utopia andina,

247 Ibid. p. 16. 248 CÁCERES, Eduardo. “No hay tal lugar”… Op. Cit. nota 102, p. 18-19.

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inventou um discurso que permitia construir, apesar de tudo, uma subjetividade capaz de

promover uma revolução em um país onde o mais provável é que não ocorra revolução

alguma”249.

Enquanto “uma alternativa ao presente”, a utopia andina seria capaz de trazer

sustento para uma nova etapa do país. Enquanto uma memória coletiva constituída ao longo

de séculos, teria produzido manifestações culturais que se converteram em tradições andinas.

Produziu também uma série de projetos políticos que se nutriram dessas tradições e se

levantaram em busca de um Inca. Agora nos resta apresentar o itinerário da utopia andina tal

qual foi inventada Flores Galindo. 3.2 Buscando un Inca: a utopia andina na história do Peru

A história da utopia andina começa antes mesmo da descoberta e conquista do

Peru pelos espanhóis no século XVI. As raízes da utopia andina remontam aos séculos XIV e

XV. Naquele momento, segundo sustenta o autor, o pensamento utópico pairava por toda a

Europa como resposta à realidade imposta pela fome, disseminação de doenças e pela

desestruturação dos regimes políticos então evidenciados. Aliás, como a própria Utopia de

Tomas Morus e outras tantas “utopias” verificáveis, a utopia andina era filha deste contexto

histórico e social europeu. Como argumenta Flores Galindo, a popularidade da utopia não deriva diretamente de Morus e seus seguidores. Antes deles, esse estilo de encarar a realidade existia, poderíamos dizer, em “estado prático”. [...] Na Inglaterra ou França se tratava de evocar os supostos tempos de Adão e Eva, quando todos trabalhavam e não existiam senhores. Na Polônia e outros países ao leste do Elba, esse mundo não estava tão fora do tempo senão que coexistia com o presente, localizado para depois das montanhas, mais além do horizonte. Em outros lugares, como na Itália renascentista que nos descreve Carlo Ginzburg [...] o país da Cocanha250.

A criação de mundos alternativos como esses correspondeu à junção de vários

mitos, lendas e tradições de cada sociedade, potencializadas por condições econômicas e

sociais precárias. Vale lembrar que a Europa daquele momento enfrentava aquilo que se

convencionou chamar de crise do século XIV, marcada pela escassez de alimentos, levantes

camponeses contra a alteração dos regimes de cultivo de terras, a proliferação de doenças

como a peste negra e o decréscimo populacional. Assim, não foi difícil para que imagens de

lugares e mundos perfeitos ganhassem espaço e força na imaginação popular de vários locais.

249 Ibid. p. 18. 250 FLORES GALINDO, Alberto. Buscando un Inca... Op. Cit. nota 27, p. 27.

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Da mesma maneira, não demorou que profecias apocalípticas sobre o fim do

mundo ganhassem também um maior vulto. Uma dessas profecias que deixou a tradição oral e

se transformou em corpo literário foi o milenarismo. O milenarismo foi convertido em

sistema profético e transcrito, pela primeira vez, por Joaquín de Fiore, um monge da Calábria.

Para Flores Galindo, é impossível compreender o surgimento da utopia andina sem se levar

em conta o milenarismo. Segundo ele, esse “sistema teria exercido a maior influência na

Europa até a aparição do marxismo”251 e, como tal, também possuiu várias vertentes.

No mundo ibérico, o milenarismo em sua vertente messiânica imperou em um

momento em que a Espanha passava por conflitos sociais marcantes, como a expulsão dos

mouros e judeus, a inquisição e a Guerra de Reconquista. De outra forma, absorvia os

impactos causados pelo descobrimento e conquista do continente americano. Para os ideais

milenaristas, este fato não poderia possuir outra interpretação. Levar a palavra de Cristo a este

novo mundo e aos novos povos era uma forma de se completar um ciclo e a própria profecia

anunciada dos finais dos tempos. Para muitos dos primeiros conquistadores, a América

representou não apenas o mote das esperanças milenaristas, mas o próprio local de realização.

Em contrapartida, para outros tantos “conquistadores”, o Novo Mundo foi visto como o

Paraíso terreno, ou, em último caso, como a chance de fuga de uma realidade de opressão para

tantos judeus e mouros da Espanha inquisitória.

Como já dissemos, para Flores Galindo, as condições sociais, mentais,

econômicas e políticas da Europa do descobrimento são imprescindíveis para se compreender

o nascimento da utopia andina. Para nosso autor era preciso estabelecer quais foram os

referenciais simbólicos e qual era a mentalidade dos europeus que vieram colonizar o novo

continente. Entre os vários elementos que compunham o arcabouço de referenciais europeus,

o autor destacou dois: o milenarismo e a utopia.

Em outra perspectiva, Flores Galindo argumenta que, tão necessário quanto

fazer isso era também compreender o sistema cultural e psicológico do mundo dos indígenas

quando foram descobertos. Afinal, foi do encontro dessas duas culturas que nasceu a utopia

andina. Nesse sentido, o mundo andino se diferia completamente do mundo europeu em sua

organização social, temporal e espacial252. Ao inverso do pensamento ocidental, a cosmologia

andina compreendia um mundo formado pela dualidade e pela complementaridade. No lugar 251 Ibid. p. 28. 252 Há vários elementos da cultura andina pré-hispânica que são trabalhados pelo autor. Além da dualidade da sociedade, da organização social e a noção de pachacuti, aparecem também: a visão mitológica do mundo, a religiosidade andina, bem como as profecias andinas foram vinculadas aos espanhóis. Além disso, a relação com os fenômenos da natureza como os terremotos. Segundo o autor, em vários momentos da história andina, Jesus foi assimilado ao deus Pachacamac: senhor dos terremotos.

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da visão do uno que sedimenta a tradição judaico-cristã (um deus, um rei, uma verdade, ou

bem ou mal, etc.), por exemplo, a tradição andina compreendia que a realidade era composta

por elementos duais que se completam (o sol e a lua, o bem e o mal, a noite e o dia, entre

outros.) 253.

Além disso, era preciso compreender como foi assimilada e explicada a derrota

e a conquista de seus povos pelos espanhóis. Como já indicamos, trata-se da adoção de uma

visão linear de história em detrimento da concepção cíclica anteriormente empregada. Antes,

o final de cada ciclo cósmico dava início a uma nova etapa marcada pela inversão da ordem

estabelecida, chamada de pachacuti. Apenas por meio da perspectiva do encontro dessas duas

culturas e desses dois referenciais simbólicos será possível compreender a criação da utopia

andina. Ao inserir elementos provenientes do milenarismo, como o messianismo, e da utopia,

como a racionalização da sociedade perfeita, empregando-os em prol da construção de uma

imagem de seu passado e de uma expectativa de futuro é que foi possível surgir a utopia

andina.

Por conta disso, Flores Galindo concluía que a visão positiva do Império Inca

tal qual se produziu a partir da utopia andina não foi algo que se configurou como

continuidade da interpretação que os povos andinos possuíam do Tahuantinsuyo antes da

chegada dos espanhóis254. Pelo contrário, para muitos povos indígenas da época do

descobrimento, a visão que se possuía dos Incas era de um povo despótico e dominador: Em 1560, a lembrança dos Incas estava associada ainda com as guerras, a submissão forçada dos yanaconas para trabalhar terras da aristocracia cusquenha, o traslado massivo de populações sob o sistema de mitmaes. Os camponeses do rio Pampas foram, precisamente, vítimas desta última modalidade de separação. É por isto que alguns grupos étnicos, como os huanca, da serra central, viram nos espanhóis os possíveis libertadores da

253 Esta dualidade se verificava não apenas na organização administrativa que dividia a comunidade em duas partes (Hanán e Hurín), como também nas figuras divinas que possuíam em si tanto o bem quanto o mal. No caso da divisão administrativa, Hanán representa a parte de cima da “administração”; é a parte mais forte e responsável pela organização política e religiosa. Hurín designa a parte de baixo; é mais fraca, porém é responsável pela organização militar. Cf. ROSTWOROWSKI, Maria. História del Tahuantinsuyu. Lima: Instituto de Estudios. Peruanos, 1999. 254 Estudos mais recentes discordam desta leitura feita por Flores Galindo e apontam para a existência de uma auto-imagem construída e divulgada pelo próprio Império Inca como algo positivo ainda durante a sua vigência. A análise das crônicas de Guamán Poma de Ayala (Nueva Coronica y Buen Gobierno), confeccionadas no início do século XVII e desaparecidas até o início do século XX, dão bons indícios da existência dessa auto-imagem positiva. Guamán, mesmo tendo pertencido a um grupo étnico dominado anteriormente pelos Incas e também influenciado pela moral cristã, uma vez que era auxiliar do extirpador Cristóbal de Albornóz chega a descrever, em muitas de suas mais de mil páginas de crônicas, o tempo dos Incas como a idade do bem e o dos espanhóis como a idade do mal. Rodrigo Montoya, por sua vez, defende que esta visão propagada por Guamán Poma, é, na realidade, indício de que a utopia andina se propagou por outros setores da sociedade com as quais Guamán Poma teve contato, sendo ele tão somente quem a transcreveu. Ver: MONTOYA, Rodrigo. La utopía andina. In: In Márgenes. Ano IV, n. 8, Lima, 1991, p. 35-73.

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opressão cusquenha. Em pouco tempo se desiludiram, porém as atrocidades da conquista não fizeram esquecer facilmente as incaicas255.

Nesse sentido, conforme sustenta nosso autor, a utopia andina não existia antes

da chegada dos espanhóis. A imagem amplamente difundida do Império Inca como justo e

bom é uma criação pós-descoberta e pós-conquista, uma vez que, apesar de fazer alusão ao

passado andino, em sua formulação estava repleta de referências a elementos típicos da

cultura européia. Como nos alertou Flores Galindo em sua obra, a utopia andina é uma criação coletiva elaborada a partir do século XVI. Seria um absurdo imaginá-la como uma prolongação do pensamento pré-hispânico. Para entendê-la pode ser útil o conceito de disjunção. Provém da análise iconográfica e se utiliza, para assinalar que na situação de domínio de uma cultura sobre a outra, os vencidos se apropriam das formas que introduzem os vencedores, porém lhes dão um conceito próprio, com o qual terminam elaborando um produto diferente256.

Desta forma, as primeiras representações populares da utopia andina

apareceram somente no século XVI e posteriormente a isso. O mito do Inkarri257 foi um bom

exemplo. Segundo esse mito, a cabeça do último governante da resistência Inca em

Vilcabamba, Túpac Amaru I, decapitado após sua prisão, um dia reencontraria o seu corpo e,

tendo se recomposto, restabeleceria o Império que a ele havia pertencido. Ainda que profetize

o retorno do Inca, é impossível não pensar o Inkarri sem levar em conta a crença na

ressurreição cristã e no restabelecimento da ordem e da justiça para os oprimidos. Como bem

lembrou Flores Galindo, o “Inkarri, implica na noção cristã de ressurreição dos corpos, esse

aspecto do apocalipse que o pensamento andino assimilou muito cedo”258.

Se, desde o século XVI, uma idéia em torno do regresso do Inca povoou a

mente dos andinos, a primeira rebelião que tentaria converter isso em realidade somente

ocorreu no século XVIII, sob o comando de Juan Santos Atahualpa259. Juan Santos é uma

figura misteriosa na historiografia peruana. Poucos sabem a sua procedência. Suspeita-se que

teria nascido em Cusco e crescido em Piro. No entanto, a partir de 1742, comandou uma

rebelião que durou vários anos e resistiu à cinco expedições espanholas, de modo que jamais

foi vencida. Por conta disso, o seu desfecho é tão ou mais misterioso do que o seu nascimento.

255 FLORES GALINDO, Alberto. Buscando un Inca... Op. Cit. nota 27, p.43. 256 Ibid. p. 67-68 257 Em concordância com esta afirmação de Flores Galindo, Franklin Pease afirma que o mito de Inkarri somente apareceu no século XVII e não antes disso. PEASE, Franklin. El Dios Creador Andino. Lima: Mosca Azul Editores, 1973. 258 FLORES GALINDO, Alberto. Buscando un Inca... Op. Cit. nota 27, p. 46. 259 Na primeira versão da obra o destaque dado a Juan Santos Atahualpa limitou-se a algumas referências à sua rebelião no primeiro capítulo. Mas, na versão de 1988, recebeu um capítulo somente sobre ele.

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O espaço da rebelião foi a selva central, mas ela não se limitou a captar adeptos

somente dessa região. Alguns serranos partiram para a selva procurando seguir aquele que se

apresentava como o Inca restaurador. Na narrativa da história de Juan Santos Atahualpa,

Flores Galindo destacou o fato de que seus seguidores eram, em geral, viajantes e migrantes

como ele. Além disso, eram geralmente mestiços e índios estabelecidos em cidades, os

chamados cholos260.

Muitos mitos foram criados em torno da figura de Juan Santos Atahualpa. Um

deles é de que tinha o poder de fazer a terra tremer. É interessante ressaltar que, em 1746,

houve um dos maiores terremotos na cidade de Lima, cuja duração atingiu cerca de 4 minutos.

Diziam na época, que este era um presente de Juan Santos aos espanhóis da capital. Em sua

análise sobre o levante organizado por Juan Santos, Flores Galindo observou a existência de

várias referências andinas do mundo pré-hispano, mas também outras tantas próprias da

tradição cristã e, por isso, representou essa perspectiva de fusão cultural presente na utopia

andina. O próprio nome do seu líder era um exemplo disso. Santos derivava do Espírito Santo

e Atahualpa do imperador Inca capturado por Pizarro.

O segundo levante popular de inspiração utópica que mereceu uma análise

mais aprofundada por Flores Galindo foi aquele organizado Túpac Amaru II, em 1780. Trata-

se de mais um exemplo no qual a utopia andina se converteu em programa político. Para

Flores Galindo, a rebelião liderada por Túpac Amaru II, a partir da região de Tinta, poderia

ser compreendida como uma revolução, pois era um projeto de superação da ordem

estabelecida. Segundo o autor, diferentemente do que apontaram muitos historiadores, não se

tratava apenas de uma resposta ao sistema colonial. Havia a perspectiva de se construir uma

nova sociedade, inspirada nos ideais criados sobre o passado Inca. De uma aspiração

coletivamente compartilhada, a utopia andina convertia-se, portanto, em ideal revolucionário

coletivamente compartilhado.

Um dos indícios disso reside no fato de Túpac Amaru II se apresentar como um

herdeiro do trono Inca. Vale lembrar que sua primeira ação, antes de dar início à “revolução”,

foi a de comprovar a sua hereditariedade Inca junto aos registros de batismo. Por conta disso,

mudou o seu nome de José Gabriel Condorcanqui para Túpac Amaru II, fazendo referência

àquele que tinha sido o último líder Inca a resistir à colonização espanhola. 260 De certa forma, esta é uma característica da utopia andina (possuir adeptos mestiços) que o autor não aprofunda no início de sua narração histórica. A princípio aparece de maneira subentendida, mas, no final do livro, quando sua narrativa chega à metade do século XX em diante, se torna explícita. Neste sentido, a utopia andina esteve relacionada especialmente com os grupos sem um espaço social bem definido, como o criollo durante a colônia; e na época independente com o indígena migrante, o cholo. Já o mestiço, se relaciona com a utopia andina em ambos os momentos.

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Para Flores Galindo, as reformas políticas e econômicas implantadas pela

coroa espanhola no final do século XVIII são importantes para compreendermos a

“Revolução Tupamarista”, uma vez que Túpac Amaru II era um comerciante com posses de

terra e, por isso, foi atingido pelos novos direcionamentos das políticas bourbonicas. Porém,

segundo ele, essas não são as únicas explicações para compreender o levante. Para Flores

Galindo, a questão econômica por si só não consegue explicar os levantes populares. É

preciso compreender também as aspirações políticas e ideológicas que conduzem tais ações. A história dos movimentos sociais elaborou, no passado, equivalências tão simples como epidemias = rebeliões, escassez = rebeliões ou crise de subsistência = rebeliões; as quais poderia acrescentar no caso andino, segundo a leitura que fazemos do livro de Golte, repartos = rebeliões; quer dizer, respostas, quase reflexos ante a exploração, o que se convencionou chamar de “teoria espasmódica dos movimentos sociais”. [...] É indiscutível que Jürgen Golte adverte para a importância dos fatores não econômicos nas revoltas do século XVIII, porém, porém sua obsessiva vontade por apresentar da maneira mais clara e incontrovertida sua tese e a inevitável eleição de um tema em detrimento de outros o levam a esquecer as mudanças na cultura e na mentalidade coletiva que precederam o levantamento, sem os quais não entenderíamos a tomada de consciência dos “indianos” [...]261.

Mais adiante, nosso autor conclui que: A revolução tupamarista, se houvesse triunfado, teria implicado em uma transformação radical da sociedade colonial. [...] As massas almejavam a volta desse Tahuantinsuyo que a imaginação popular havia recriado com traços de uma sociedade igualitária, um mundo homogêneo composto somente por runas (camponeses andinos) onde não existiriam nem grandes comerciantes, nem autoridades coloniais, nem fazendas, nem minas, e quem era até então miserável voltaria a decidir seus destinos: a imagem clássica das revoluções populares como inversão da realidade, la tortilla que se voltea, el mundo al revés. 262

Claramente, Flores Galindo se desprende da historiografia tradicional ao

defender que o levante de Tupac Amaru não foi uma simples reação às novas diretrizes

econômicas, mas respondia também aos anseios de uma parcela da sociedade, desejosa de

estabelecer uma nova organização político administrativa ao Peru, impondo a reversão da

ordem vigente. Seria esta mais uma manifestação da noção de pachacuti andino. A partir de

então, as classes dominantes seriam aquelas pertencentes aos descendentes da nobreza Inca e

a capital passaria a ser Cuzco. A presença de um projeto que previa a quebra da ordem, trazia

ao movimento de Túpac Amaru II um caráter revolucionário, mais do que a referência a uma

simples rebelião.

261 FLORES GALINDO, Alberto. Buscando un Inca... Op. Cit. nota 27, p. 116. O autor contestado por Flores Galindo, Jürgen Golte, era o autor da obra Repartos y Rebeliones. 262 Ibid. p. 117.

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Municiado por seus anos de pesquisa sobre a revolução tupamarista, ainda na

época que esteve na França, Flores Galindo se põe a analisar esta característica específica do

movimento de 1780. O autor percebeu que a “reversão do mundo” proposta pelos

revolucionários possuía, na realidade duas vertentes: uma difundida por suas lideranças

(menos radical e que assimilava referências da administração criolla assim como contava com

a participação de mestiços e brancos para a construção dessa nova sociedade); e outra

compartilhada por seus combatentes (mais “jacobina” e que pregava o extermínio de brancos

criollos). Desta maneira, Na revolução tupamarista conviviam duas forças que terminaram encontradas. O projeto nacional da aristocracia indígena e o projeto de classe (ou etnia) que emergia com a prática dos rebeldes. Ao princípio todos pareciam aceitar o “plano político” de Túpac Amaru. As divergências apareceram com a evolução dos acontecimentos, à medida que a violência se desdobrava. Então se evidenciou que enquanto os líderes projetavam uma revolução para romper com o colonialismo e modernizar o país, ampliando as possibilidades para o tráfico mercantil, os camponeses entenderam que eram convocados ao pachacuti: muitos sinais o vinham anunciando263.

Ainda que estes tenham sido vertentes inconciliáveis dentro do projeto,

configurando-se como um dos motivos de seu fracasso, tanto a corrente menos radical quanto

a “jacobina”, se mostravam tributárias da utopia andina. Por conta disso, ainda que se

reivindique a Túpac Amaru II o papel de prócere da independência peruana, a tradição oral o

conservou apenas como um dos defensores dos interesses andinos264.

O terceiro personagem a compor o mapeamento da utopia andina realizado por

Flores Galindo é Gabriel Aguilar, um criollo de classe média procedente de Huánuco265.

Assim como Juan Santos e Tupac Amaro II, este também possuía intenções de fazer renascer

o Império Inca diante da colônia espanhola. Porém, diferentemente dos outros personagens,

suas aspirações não se converteram em rebeliões. Na realidade, não passaram de reuniões

secretas com um grupo de pouco mais de vinte pessoas, das mais diversas origens sociais,

entre eles dois padres. Após serem denunciados por conspiração contra a Coroa, todos foram

julgados, sendo Aguilar e Juan Manuel Ubalde, condenados à execução em praça pública.

Três anos depois da proclamação da República no Peru, ambos foram convertidos a heróis da

263 Ibid. 137. 264 Cf. Ibid. 138. 265 Existem outros personagens e movimentos sociais que exemplificam a utopia andina na obra Buscando un Inca. No entanto, somente comentamos aqueles que se constituem como personagens centrais e que possuem capítulos próprios. Vale destacar que Garcilaso de la Vega tem um papel de destaque no primeiro capítulo. Segundo sustenta o autor, a difusão de sua obra, que realiza uma leitura positiva do Império Inca, foi fundamental para a inserção de novos elementos à utopia andina. Garcilaso, ao mesmo tempo em que se apresenta como representante da utopia andina é um de seus propagadores.

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independência e é assim que aparecem rememorados pelos livros escolares de história da

década de 1980. No entanto, de republicanos nada tinham. Ao contrário, queriam restaurar a

monarquia incaica.

Dos três personagens estudados por Flores Galindo, até aqui, este foi o que

mais combinou elementos andinos pré-hispanos à cultura européia, principalmente o

catolicismo. As referências aos mitos indígenas são tão freqüentes quanto às imagens do

cristianismo católico em seu pensamento, ou melhor, sonhos. Em Gabriel Aguilar, a

metodologia de abordagem do sujeito histórico empregada por Flores Galindo foi diferente. A

fonte do historiador foram os sonhos de Aguilar relatados em interrogatórios enquanto esteve

preso. Para comprovar a existência da utopia andina na memória coletiva e sua influência

sobre o mundo subjetivo dos indivíduos, Flores Galindo recorreu à análise do inconsciente

deste personagem, mais precisamente ao relato de seus 15 sonhos, comparando as metáforas e

as alegorias presentes em seus sonhos com as obras de arte, afrescos e quadros do mesmo

período vivido por Gabriel Aguilar266.

Os sonhos de Aguilar trazem tanto metáforas cristãs que remontam à sua

infância, ao seu batismo, à sua crisma e à sua educação, bem como reproduzem antigos mitos

e lendas andinas como aquela da morte do condor atacado por duas águias na praça central de

Cuzco, antes da chegada dos espanhóis. Aguilar e seus sonhos seriam um indício de que a

utopia andina se propaga tanto na memória coletiva quanto no inconsciente popular andino.

Continuando em seu roteiro histórico em busca da utopia andina, Flores

Galindo entra no período de independência do Peru e analisa como a utopia andina esteve

presente tanto nas guerras de independência, quanto na formação da identidade nacional do

início da República. É importante ressaltar que a ordem cronológica de sua abordagem

progressiva é sempre mantida, nunca trabalhando um momento histórico posterior ao que o

antecede. Neste momento, Flores Galindo realiza uma breve análise de poucas páginas a

respeito dos soldados e montoneros que participaram das batalhas pela independência do

Peru, opondo realistas e patriotas. De qualquer maneira, sua reflexão é norteada pela seguinte

questão: enquanto membros das camadas mais baixas da sociedade, o que os levaram a lutar?

Era o desejo de defender o passado e suas tradições incaicas.

266 Em nossa concepção a tentativa é interessante, mas o resultado beira muito à subjetividade. Reconhecemos que este é um exemplo claro da heterogeneidade dos métodos historiográficos empregados por Flores Galindo, conforme mencionados no capítulo anterior. As análises marxistas da sociedade não se reduzem ao economicismo, mas também aderem à psico-história. O grande problema é que, neste caso, suas considerações sobre os sonhos de Gabriel Aguilar produzem muitas interpretações com pouco rigor metodológico.

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Os patriotas perceberam que o culto ao passado pré-colombiano era uma das

características dos combatentes andinos. Não demoraria para se estabelecer como discurso

que a guerra contra os espanhóis também era uma guerra contra o inimigo dos Incas. Mais

uma vez, a utopia andina aparece com o sentido de restauração do Tahuantinsuyo e negação

da realidade colonial.

Com o fim das guerras, a formação de um sentido para a nação mais uma vez

se aproximaria do passado incaico, tanto nos discursos de Bolívar, quanto nas representações

artísticas criadas para a celebração da vitória. Porém, entre o discurso e a prática, a república

dos criollos não aprofunda tal relação, da mesma forma que o nosso autor não aprofunda suas

análises e deixa poucas reflexões em torno da utilização do passado incaico para a construção

de uma identidade nacional independente267.

De qualquer maneira, a falta de aproximação entre o mundo criollo e o mundo

andino resultaria em uma sociedade dual: costa e serra. Para descrever a sociedade pós-

colonial que se erguia com o fim dos movimentos de independência, Flores Galindo realizou

uma descrição da Lima do século XIX. Por meio dela, apresentou aquilo que ele chamou de

anti-utopia: o racismo. Em suas próprias palavras: “as páginas que seguem tratam da vertente

oposta à utopia andina: o racismo, essa maneira peculiar de olhar aos ‘outros’ que, além de se

constituir como um discurso sobre a sociedade, integra a trama da vida cotidiana”268.

A independência mudou o centro econômico peruano da serra para a capital, da

mesma forma que possibilitou o crescimento da cidade e a formação de uma pequena elite

burguesa. Lima, por sua vez, cresceu de costas para os Andes e converteu o andino em uma

espécie de sub-cidadão. Como anuncia o nosso autor, “[...] o racismo no Peru tomou como

paradigma a relação entre senhores e índios existentes nas fazendas andinas. Essas relações se

reproduziram no âmbito doméstico. Chegavam à cidade. Lima foi o centro de irradiação da

ideologia racista”269.

É muito interessante a montagem desse antagonismo por Flores Galindo, no

qual o racismo é a oposição da utopia andina. Se um representa a segregação, o outro

representa a coletividade, a miscigenação, o sincretismo, a união de várias referências

culturais. Enquanto um representa o elitismo classista, étnico, senhorial, o outro é a esperança

do excluído, do marginalizado, do explorado. 267 Essas relações, por sua vez, são muito bem exploradas por François-Xavier Guerra em seu artigo Memórias em transformação. Ver: GUERRA, François-Xavier. Memórias em transformação. Revista Eletrônica da ANPHLAC, n. 3, 2003. Tradução e adaptação de Jaime de Almeida. Disponível em: <http://www.anphlac.hpg.ig.com.br/revista3.htm>. Acesso em: 10 out. 2004. 268 FLORES GALINDO, Alberto. Buscando un Inca... Op. Cit. nota 27, p. 233. 269 Ibid. p. 257.

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Nesse sentido, é impossível não pensarmos nas relações existentes entre aquela

Lima do século XIX e a realidade da Lima da década de 1980, onde o mestiço já representava

a maioria da população e o andino, apesar de não ser uma realidade nada distante, ainda era

visto como um sub-cidadão. Outra vez aqui o exercício intelectual feito pelo autor. A

utilização da história para compreender o tempo presente, uma das características de seu

trabalho intelectual, é mais uma vez destacada na obra Buscando un Inca. Aliás, o parágrafo

que abre o capítulo no qual se trabalha Lima e o racismo, anuncia a missão da história de

exercer para a sociedade o mesmo papel que a psicologia faz com o indivíduo e o confronto

com seus medos. Portanto, compreender a segregação existente em Lima era uma forma de se

pensar a utopia andina.

Retomando a linha do tempo perseguida em Buscando un Inca, finalmente

chegamos ao século XX. A atenção especial se volta para as décadas de 1920, 1960 e 1980.

Na década de 1920, o surgimento do indigenismo no pensamento político e acadêmico

peruano é amplamente explorado. Por conta disso, Flores Galindo faz uma apresentação das

principais idéias de historiadores como José de la Riva Aguero e Jorge Basadre. Ele aponta a

existência de uma transformação entre a concepção de andino construído por esses dois

autores. Enquanto a relação do primeiro com os Andes é representada por seu distanciamento,

convertendo a cordilheira numa paisagem longínqua para o limenho para o segundo os Andes

é referência de descoberta e curiosidade, necessário a se investigar270.

Deste mesmo período, retoma-se a famosa polêmica indigenista entre José

Carlos Mariátegui e Victor Raul Haya de La Torre. A abordagem sobre o tema procurou

mostrar como os jovens intelectuais de Lima, do início do século XX, a chamada vanguarda

intelectual, acabaram por reproduzir idéias mitificadas do andino e seu passado pré-colonial.

Ao mesmo tempo, destaca como as análises políticas sobre o Peru, começaram a pensar os

problemas do país por meio dos problemas do indígena e da relação de desigualdades

estabelecida pela má distribuição de terra.

Em José Carlos Mariátegui, subsistiria a idéia de que nenhuma revolução no

Peru poderia ser feita sem dar ao indígena o mesmo papel que foi dado ao proletário na

Europa. Outra aproximação de Mariátegui à temática indígena veio de seu vínculo com

autores indigenistas (Luis Varcácel) e de trabalhos sobre a sociedade Inca para compreender,

entre outras coisas, a existência de um comunismo primitivo em sua organização social. A

270 Em 1978, Jorge Basadre inseriu uma frase em seu livro Perú problema y posibilidades de 1931 que reflete bem o sentimento de sua época: “o fenômeno mais importante na cultura peruana do século XX foi o crescimento da tomada de consciência acerca do índio entre os artistas, os homens de ciência e os políticos”.

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temática do indígena, ainda que de maneira menos teórica, também aparecia em Haya de La

Torre. O aprista passaria a identificar o seu partido como a representação do

indoamericanismo e incorporaria em seus discursos alguns símbolos andinos. Flores Galindo

nos dá alguns exemplos: O condor de Chavín será o símbolo do partido; desde 1930 nas manifestações apristas se empregará uma suposta bandeira do Tahuantinsuyo, feita com base em todas as cores do arco-íris; depois, durante os anos de clandestinidade, Haya utilizará o codinome de Pachacútec e seu refúgio recebe o nome de Incahausi271.

As diferenças entre os dois personagens são bem ressaltadas. Flores Galindo

não deixa de analisar como a utopia andina exerceu certa influência nas leituras que

Mariategui e Haya de la Torre fizeram sobre o passado andino e seu aspecto positivo,

deixando que isso transparecesse em seus ideários políticos. Aliás, para Flores Galindo, o

pensamento de “[...] grande parte da cultura peruana dos anos 20 – foi tributário da utopia

andina”272. Trata-se do que nosso autor chamou de horizonte utópico, como se a imagem dos

Andes ao fundo do horizonte produzisse um sentimento de esperança nos jovens intelectuais

de então. De certa forma, foi nesta década em que as reformas de Leguía produziram as

primeiras aproximações entre esses personagens e a figura do andino que migrava para a

capital. Além disso, as notícias sobre as rebeliões andinas comandadas por Rumi Maqui

chegavam a Lima alimentando um sentimento de esperança de que a partir dos Andes poderia

vir a mudança que tanto almejavam.

Seguindo o que já tínhamos indicado, tanto Haya de la Torre quanto

Mariátegui eram influenciados por aquele horizonte utópico. No caso de Haya, o

personalismo de sua atuação política, enrobustecida pela referência ao passado andino em

seus discursos, fez com que ele se apropriasse do caráter messiânico da utopia andina,

apresentando-se como o Inca restaurador. Já em Mariátegui, a utopia andina se traduz na

intenção de converter o socialismo em uma idéia compartilhada coletivamente, tal como

ocorreu com a própria utopia andina ao longo dos tempos ao se converter em memória

coletiva. Para Flores Galindo, “em Mariátegui, ao contrário [de Haya], o marxismo entendido

como o mito de nosso tempo equivalia a uma aposta pela revolução como um ato coletivo,

como criação das massas, como uma tradução de seus impulsos e paixões”273. Nesse sentido,

no caso de Mariátegui, o Incaico “peruanizaria” o socialismo, convertendo o antigo em novo,

271 FLORES GALINDO, Alberto. Buscando un Inca... Op. Cit. nota 27, p. 305. 272 Ibid. p. 296. 273 Ibid. p. 306.

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como uma forma de transformar os elementos típicos da sociedade andina, do passado

incaico, em base de sustentação para a revolução socialista274.

É importante notarmos que o aparecimento de Marátegui na narrativa

elaborada por Flores Galindo, dá à obra um novo caráter. Como afirmamos anteriormente,

Mariátegui não é apenas mais um personagem que comprova a existência da utopia andina

neste mapeamento criado por Flores Galindo. Quando descreve Mariátegui e sua relação com

a utopia andina, Flores Galindo passa a imprimir em sua narrativa a necessidade de se buscar

um socialismo, tal qual aquele reivindicado pelo autor dos Sete ensaios.

Neste ponto, Buscando un Inca não irá continuar apenas o mapeamento da

utopia andina, mas também servirá como uma forma do autor expor o seu desejo de se

promover no Peru um socialismo que mescle tradição com marxismo, como uma forma de se

completar a obra inacabada de Mariátegui. Por isso, deveria ser um marxismo construído

como uma “fé”, como uma “paixão coletiva”, um “discurso utópico”, como um “mito”, um

“exercício coletivo” que faça das tradições andinas, plasmadas de mitologia e religiosidade275,

o suporte para a revolução.

Justamente por este aspecto, nos últimos dois capítulos do livro, merecem a

atenção personagens que se empenharam nesse desafio de promover uma fusão entre

pensamento andino e marxismo, entre eles Arguedas e Hugo Blanco. Também aparecerão os

modelos de esquerda vigente no país, a Esquerda Unida e o Sendero Luminoso, que serão

rechaçados por não serem capazes de converter o socialismo no “mito de nosso tempo”.

3.3 Utopia andina versus utopia socialista

Em sua análise sobre a década de 1960, Flores Galindo dedicou atenção

especial a dois personagens que teriam incorporado elementos da utopia andina em suas

trajetórias políticas e intelectuais: José Maria Arguedas, um acadêmico-literário, e Hugo

Blanco, jovem universitário que comandou um levante na região de La Convención, nas

proximidades de Cuzco. Na realidade, a importância de Arguedas para o significado do

capítulo é maior, o que se nota, por seu próprio título que deriva de uma frase do romancista -

el Peru hirviente de estos dias.

274 Esta perspectiva apontada por Flores Galindo pode ser vista em Mariátegui quando o autor afirma: “o passado Incaico entrou em nova história, reivindicado não pelos tradicionalistas, mas pelos revolucionários. [...] A revolução reivindica nossa mais antiga tradição”. Ver: MARIATEGUI, José Carlos. Mariátegui Total... Op. Cit. nota 68, p. 121. 275 Esta leitura da obra de Mariátegui foi melhor trabalhada por Flores Galindo em seu livro La Agonía de Mariátgui, como veremos em nosso próximo capítulo.

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Não foi a primeira vez que Arguedas apareceu na obra Buscando un Inca.

Durante o primeiro capítulo e outros trechos do livro, há referências à obra deste autor. Flores

Galindo via Arguedas não apenas como alguém influenciado pela utopia andina, mas como

sua representação mais clara. Para ele, e é muito importante que façamos esta observação, a

alma de Arguedas era a representação da ambigüidade da utopia andina, conciliadora e bélica.

Pelo argumento de Flores Galindo se olhássemos para a obra de Arguedas, veríamos que esta

trazia os dois feixes de orientação da utopia andina que dialeticamente a constituem. Ao

mesmo tempo em que era conciliadora, por buscar criar um elemento capaz de trazer coesão

social e criar um mito identitário a todos, era também violenta, uma vez que se levantava

radicalmente contra as desigualdades presentes na sociedade.

Esta alma dicotômica de Arguedas era captada na análise de suas obras (tanto

os romances quanto os trabalhos antropológicos) e de sua vida276. Como afirmou Flores

Galindo, é difícil separar o Arguedas etnólogo do Arguedas novelista, e ambos do personagem real. Três vertentes: a ficção, a interpretação social e a autobiografia que se mesclam desde Agua, se alimentam mutuamente, as vezes parecem se contrapor para no final se fundirem por completo naquilo que será o produto mais original de nossa literatura atual277.

Enquanto análise biográfica, Flores Galindo ressalta um aspecto da vida de

Arguedas: sua condição de mestiço. Tal condição se refletiria ambiguamente em sua produção

intelectual. Na tentativa de construir uma identidade inexistente (identidade mestiça),

Aguedas buscou respostas na tradição andina, conforme verifica-se em seus romances,

enquanto nos trabalhos antropológicos pensou encontrá-la na fusão de raças no Peru.

Em seus romances, encontramos um mundo marcado pelo dualismo

inconciliável de mistis278 e índios, bem como o constante conflito e tensão entre essas duas

faces do Peru. Carregados de referenciais mitológicos e que ressaltam o lado bom do indígena

contra a maldade dos mistis, os romances representariam o anseio do autor em buscar na

cultura andina a sua identidade “destinada à ausência”. No entanto, ser indígena não era uma

questão de opção. Como lembra Flores Galindo, “ocorre que [Arguedas] não é um índio. Se-

lo não é um problema de vontade ou de opção. Em um mundo rígido que evoca as castas, se

276 Apesar de anunciada, esta dicotomia de Arguedas não é muito explorada na obra Buscando un Inca. Além disso, tratava-se do objeto de estudo que o autor desenvolvia quando morreu. Para além da obra, restaram outros dois ensaios onde o autor apresenta este tema. Veremos em nosso próximo capítulo. 277 FLORES GALINDO, Alberto. Buscando un Inca... Op. Cit. nota 27, p. 315. 278 Mistis é uma expressão que faz referência à autoridades provincianas, podendo ser utilizado como sinônimo de gamonales.

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nasce índio ou misti.[...] o mundo dividido entre mistis e índios não deixava lugar aos

mestiços; são os grandes ausentes”279.

Neste ponto, seus romances refletem toda “raiva acumulada” do mestiço e, por

isso, estão repletas de pessimismo em relação aos resultados dos confrontos entre os dois

“países” que existiam no Peru, anunciando a inevitabilidade do fim da cultura andina perante

o avanço do mundo ocidental. Diferentemente desta expectativa, a obra etnológica de

Arguedas traça outra visão da realidade. Enquanto antropólogo, Arguedas viu no mestiço a

pluralidade da rica cultura dos Andes, misturada aos novos referenciais adquiridos na costa. O

mestiço é definido como a personificação do “encontro” Andes e costa, que ocorreu no Peru

ao longo do século XX. Como ficará patente em seus estudos sobre a serra central da região

de Huamanga: “o mestiço parece ser o anúncio de um país onde, devido a sucessivas

aproximações, irão fundir o mundo andino e o mundo ocidental”280.

Seu último e inconcluso trabalho etnológico, realizado na cidade de Chimbote,

conhecida pela explosão demográfica e fluxos migratórios serra-costa, também apresentava

esta leitura. Para Arguedas, estava ali o verdadeiro Peru, resultado da mistura e do encontro:

“quase exatamente como Lima; tem em torno de 40 barriadas: 70% da população é de origem

andina; a massa de migrantes serranos é proporcionalmente maior que a de Lima e não tem a

tradicional aristocracia criolla; esta massa que vive ainda separada da costeira, se aproxima

dela por canais menos dolorosos de transitar do que em Lima”281.

Enquanto Arguedas era o andino que chegou à cidade, se educou e se

converteu em professor universitário, Hugo Blanco, o outro personagem destacado por Flores

Galindo, é o oposto: universitário que deixa a cidade para lutar junto aos camponeses na serra.

Hugo Blanco despertava a atenção de Flores Galindo, pois, segundo o autor, foi com ele que

ocorreu o primeiro contato prático entre a utopia andina e o marxismo. Da mesma forma, a

rebelião liderada por Blanco na região de Cuzco representou a união da idealização dos Andes

como espaço de restauração do Peru glorioso às táticas de guerrilhas e à formação sindical

advinda do socialismo urbano, dos jovens universitários de classe média, da “camada mestiça

educada”.

Para Flores Galindo, a democratização do ensino universitário no Peru durante

as décadas de 1960 e 1970, permitiu que jovens de origem indígena e andina tivessem acesso

às reivindicações próprias da modernidade e possuíssem uma inserção econômica no mundo 279 FLORES GALINDO, Alberto. Buscando un Inca... Op. Cit. nota 27, p. 318. 280 Ibidem. 281 Carta de José Maria Arguedas a John Murra, reproduzida in: FLORES GALINDO, Alberto. Buscando un Inca... Op. Cit. nota 27, p. 347.

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moderno, mas continuassem sem uma clara inserção cultural nele. Queremos dizer que, a

participação no mercado de trabalho e a ascensão econômica não foram acompanhadas pelo

fim do racismo ou do preconceito contra o andino. Isto se enfatizaria ainda mais com o

Sendero Luminoso.

A recorrência à Hugo Blanco na obra, também serve para que se descreva as

transformações vividas pela esquerda da década de 1960, as constantes cisões entre os

partidos, os resultados das campanhas guerrilheiras do MIR e se avalie a importância que o

elemento indígena passou a ocupar no discurso político da época. Toda esta reflexão, o

conduz ao cenário da década de 1980 e à existência do paradoxo esquerdista resultante das

duas décadas anteriores. De um lado, a conciliadora Esquerda Unida e, de outro, a violência

do Sendero Luminoso. Mais uma vez, a dualidade da utopia andina se manifesta.

Ainda que a Esquerda Unida e o Sendero possuam um papel mais central, as

análises de Flores Galindo, neste momento, também se debruçam sobre o segundo mandato

de Fernando Belaúnde e as ações antiterroristas do exército tanto sob o comando da AP

quanto no tempo do aprismo de Alan Garcia. No que diz respeito ao combate dos levantes

camponeses, Flores Galindo destaca o número de mortos, chamando a atenção para o viés

racista que a guerra civil adquirira, bem como alertando sobre a necessidade de se respeitar os

direitos humanos282. Essas análises aparecem, principalmente, no décimo primeiro capítulo,

intitulado La Guerra Silenciosa283.

Nesta altura da narrativa de Buscando un Inca, o trabalho historiográfico de

Flores Galindo adquire tom de sociologismo. A abordagem do tempo presente dirige as

considerações do autor sobre os dois direcionamentos da esquerda e, ao mesmo tempo,

permeia suas interpretações de conjecturas e incertezas. No caso do Sendero, as informações

oficiais ainda eram muito escassas e nenhuma fonte, a não ser o exército, produziu dados

sobre os conflitos nos Andes.

Em 1988, a Esquerda Unida já apresentava sinais de enfraquecimento e

esfacelamento. Talvez por isso, suas análises não se aprofundem sobre ela. No entanto, Flores

Galindo não deixa de lamentar que o caminho escolhido pela Esquerda Unida tenha sido fruto

de uma sedução pelas vias oferecidas por setores burgueses da sociedade, como a participação

nas eleições e a aceitação da democracia liberal. Segundo ele, a Esquerda Unida teria deixado

de lado a sua raiz fundada nos movimentos de greve e de pressão institucional e aderido a 282 Por conta de sua defesa aos direitos humanos e o ataque contra a utilização de torturas em interrogatórios, durante a guerra civil, Flores Galindo se aproximou da anistia internacional. 283 Este capítulo possui uma versão em português publicada em forma de artigo. FLORES GALINDO, Alberto. A guerra silenciosa. In: AMAYO, Enrique (org). Sendero Luminoso. São Paulo: Vértice, 1988, p. 103-122.

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uma democracia corrompida pelo processo político partidário. Desta maneira, sua atuação não

ocorria no sentido de se produzir uma nova sociedade, prerrogativa do socialismo, mas sim

perpetuar os modos operacionais do mundo burguês.

O caminho oposto a este foi tomado pelo Sendero Luminoso. Ao contrário da

Esquerda Unida, o Sendero representava o rechaço à modernidade, priorizando a ação

violenta e o aumento dos ataques. Aquele movimento iniciado com a explosão de dinamites

em prédios públicos, em 1980, como forma de se “destruir” a ordem imposta, converteu-se

em raiva, violência e assassinatos no final dessa mesma década. Assim, para Flores Galindo, a

iniciativa senderista que tinha alimentado as esperanças de alteração sócio-política no Peru,

transformou-se rapidamente em uma ameaça à sociedade. Não é por menos que o epílogo

escrito para a última edição do livro tenha o sugestivo nome de Sonhos e Pesadelos.

De acordo com o nosso autor, o radicalismo cedeu lugar à violência e à raiva.

O Sendero Luminoso deixou de interpretar o sentido moderno de revolução e acabou por

incorporar um elemento andino de revolta, o pachacuti, enquanto inversão da ordem. Para o

Sendero, não se tratava de destruir a ordem, mas sim invertê-la. Para Flores Galindo, a utopia

andina representar-se-ia no Sendero Luminoso como uma forma de se estabelecer um novo

pachacuti no Peru. É esta percepção de revolução que, segundo Flores Galindo, torna a

atuação senderista um equívoco. “A revolução – como pachacuti ou o apocalipse – implica

pranto, dor, sofrimento e morte: o velho deve ser destruído para que apareça o novo. À

medida que prosseguiram os acontecimentos, o terror foi perfilando-se como um instrumento

na luta do Sendero”284.

Mais uma vez, o Sendero encarnaria esta característica da utopia andina de

transformar a esperança por uma sociedade mais justa em expressão da cólera sufocada do

mestiço. Flores Galindo, tomando as palavras de Rodrigo Montoya, explicava que o

Sendero Luminoso havia tocado em um aspecto da realidade peruana: o ressentimento das maiorias desapreciadas pela cor de sua pele, seu manejo pobre do castelhano, sua maneira de vestir, sua pobreza: “encarna a raiva contra a sua velha e secular opressão”. Porém, mais do que uma impressão dos mesmos camponeses, parece resumir a cólera postergada e muitas vezes calada dos mestiços285.

Para Flores Galindo, o mesmo fenômeno que moveu jovens estudantes para o

campo durante a atuação de Hugo Blanco, foi o que contribuiu para uma participação ainda

maior de jovens universitários no Sendero Luminoso. Mas, nesse momento com um

284 FLORES GALINDO, Alberto. Buscando un Inca... Op. Cit. nota 27, p. 346. 285 Ibid. p. 342.

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agravante: a situação econômica do país nunca estivera tão ruim. Se, naquela época, a

instrução universitária fez com que o jovem alcançasse uma inserção econômica no mundo

moderno, mas continuasse sem uma inserção cultural, agora nem mesmo a inserção

econômica era possível.

No Peru, enquanto se acrescentou uma desigual distribuição de renda, a educação se democratizou, possibilitando o acesso a colégios e universidades de filhos de camponeses, pequenos comerciantes, artesãos, que integram o segmento majoritário deste país composto por jovens de procedência andina: contingentes de novos mestiços que se inserem em uma história mais antiga, remontada até os tempos iniciais da conquista que desde então, como sugeriu Pablo Macera falando de Garcilaso, foi sedimentando frustrações. É demasiado evidente a semelhança entre os jovens mestiços de agora e os do século XVI; em ambos os casos aparecem “desprovidos de tudo”, obrigados a vagância e a depredação, condenados a converterem-se em homens de vidas destruídas, os mesmos que na década de 1560 protagonizaram algumas rebeliões sem esperança286.

Neste trecho, mais uma vez, Flores Galindo utilizou a História como

instrumento favorável à compreensão do presente. Sua intenção era demonstrar que, assim

como os primeiros mestiços da colônia, por falta de uma identidade própria, buscaram nos

referencias andinos uma resposta à exploração colonial, agora, os novos mestiços, resultantes

da explosão demográfica e do fluxo migratório, também procuram nos Andes uma nova

resposta à exploração capitalista. Não podemos nos esquecer que o Sendero Luminoso

começou sua atuação em Ayacucho, importante cidade universitária do sul andino.

Era, portanto, para esta fatia da sociedade que deveria se encontrar uma

resposta. E a resposta estava na própria utopia andina. De diferentes maneiras, a utopia andina

foi quase sempre uma alternativa para a criação da identidade entre os mestiços. Por isso, a

partir dela algo de novo poderia ser configurado. A utopia andina fazia parte da história do

próprio mestiço. Segundo Flores Galindo, Filhos naturais, pessoas ilegítimas. À sua condição étnica somaram uma difícil inserção no mercado de trabalho: vagos, desocupados, marginais. O estereótipo os identificou como gente truculenta, disposta a qualquer revolta. No século XVI eram uma minoria. No século XVIII serão mais de 20% da população. No século XX, no último censo (1940) no qual utilizaram categorias raciais, os mestiços aparecem confundidos com os brancos, sendo ambas categorias mais de 53% da população nacional. É de se supor que já eram mais numerosos que os índios e que conformavam, portanto, a vertente principal da população peruana. Urbanização e migrações significaram no Peru incremento da mestiçagem. Processo de cholificação, como diriam Quijano e Varallanos. [...] Para as gentes sem esperança, a utopia andina é o questionamento dessa história que os condenou a marginalização287.

286 Ibid. p. 343. 287 Ibid. p. 372-373.

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No entanto, não seria a utopia andina propriamente dita que deveria ser o

caminho a se seguir em busca de uma nova realidade no Peru. Para Flores Galindo, não

existia outra saída para o país que não fosse o socialismo. Mesmo em um momento no qual o

socialismo se apresentava agonizante no mundo, o autor continuou “nadando contra a

corrente” e apostando nele para a edificação de uma sociedade mais justa. Para ele, ainda era

necessário compreender a proposta de elaborar um socialismo tal qual foi reivindicado por

Mariátegui, como um projeto coletivo de matriz peruana: nutrindo-se da tradição andina para

ser novo e se apresentar como uma fé.

No entanto, nutrir-se da tradição andina não significava continuá-la. Aqui

reside o ponto chave da obra Buscando un Inca. Não é Flores Galindo quem está buscando

um Inca. O título da obra não representa o desejo do autor. Na realidade, tudo o que o autor

busca é o oposto: romper com a utopia andina. Em sua interpretação, buscar um Inca significa

prolongar o messianismo, reduzir os caminhos da política ao personalismo de um político

salvador, de um Inca. Prorrogar a utopia andina resulta no confronto entre o mundo andino e o

mundo ocidental, na negação da modernidade. Aceitar a utopia andina é continuar se valendo

da raiva do mestiço para buscar novos pachacutis.

Esta intenção que já está patente na obra fica mais clara quando Flores Galindo

escreve, fique claro, então, que não estamos propondo a necessidade de prolongar a utopia andina. A história deve servir para libertar-nos do passado e não para permanecer — como diria Aníbal Quijano — trancados nessas jaulas de “longa duração” que são as idéias. As criações do imaginário coletivo são instrumentos sobre os quais os homens nunca deveriam perder o controle. Dominados por fantasmas, é impossível enfrentar a qualquer futuro. O desafio consiste em criar novas idéias e novos mitos. Porém, é evidente que não se trata de deixar tudo de lado e prescindir do passado288.

Nesse sentido, insistimos, ao contrário do que possa sugerir o título da obra,

não é o autor quem está buscando um Inca. O livro demonstra como, ao longo da história

peruana, vários grupos de diferentes origens e tendências sociais, econômicas e políticas

buscaram no referencial incaico um projeto de mundo alternativo à realidade posta, ou seja,

buscaram um Inca capaz de construir um presente tão glorioso quanto o passado. Para nosso

autor, esta utopia representava uma característica própria da cultura peruana: transformar a

religiosidade, o mito, em aspiração coletiva. Era disso que deveria se nutrir o socialismo:

288 Ibid. p. 374.

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dessa capacidade enraizada na tradição andina de transformar utopias em revolução289. Como

lembrou Flores Galindo, [...] aqui a política não é uma atividade profana. Como tantas outra coisas neste país, está também condicionada pelo fator religioso. [...] as utopias podem convocar paixões capazes de arrastar ou conduzir as multidões para além do imediato, até mesmo tomar o céu por assalto ou tomar o fogo dos deuses290.

Este socialismo não era uma volta para o passado incaico e nem tampouco a

revolução se confundia com um pachacuti. Não era uma forma de se inverter simplesmente a

ordem posta, mas sim criar uma nova. Não se tratava de se converter os explorados em

exploradores, mas sim acabar com a exploração. A utopia andina era uma forma de dar ao

socialismo um aspecto de fé coletiva.

Em Buscando un Inca, Flores Galindo utilizou-se da história da utopia andina

para demonstrar como os mitos funcionavam na memória coletiva do andino e como

convertia-se uma esperança coletiva em projetos de mudança. A vontade compartilhada por

mudança era o que colocava homens e mulheres a frente de batalhas, como os combatentes da

revolução tupamarista de 1780. A mudança partia, portanto, de dentro para a fora, como uma

vontade interna e não uma imposição. Enquanto reflexo do mundo mental andino, iniciava-se

como uma decisão íntima e se convertia em um esforço coletivo, encontrando respaldo nos

demais membros da sociedade com quem era compartilhada.

Se, por um lado, a sua herança utópica produzia tal efeito, sua herança

milenarista a transformava em projeto autoritário, com caráter messiânico representado e

identificado pela liderança confundida sempre com o novo Inca, o Inkarri (Inka-Rei). A

imagem do Inca derivava de sua outra herança, o mundo andino.

Para a formação da utopia socialista291, se recorreria à força que a utopia é

capaz de dar ao discurso político em função da potência de mobilização dos mitos,

amalgamados por elementos próprios da tradição andina como a reciprocidade e algumas

técnicas de cultivos perpetuados pelas comunidades serranas. Assim, ao contrário da utopia

andina, não deveria se apresentar como uma proposta que nega e rompe com a modernidade,

mas sim buscar nela elementos positivos, como o próprio socialismo e repudiar outros

negativos, como o capitalismo. Mesclar tradição com o moderno em busca de um socialismo 289 Peter Elmore, mais tarde esclareceria “‘utopia andina’ - essa visão cuja biografia e itinerário traça Flores Galindo, com brilho e com brio, em Buscando un Inca — não é o nome peruano da utopia socialista, porém o desejo do historiador é que a primeira alimente e cause a segunda”. In: ELMORE, Peter. Alberto Flores Galindo: El camino de los Andes. Desco/Revista Quehacer, n. 156, 2005, s/p. 290 FLORES GALINDO, Alberto. Buscando un Inca… Op. Cit. nota 27, p. 375. 291 Este termo, utopia socialista, não é uma criação do autor. Trata-se de uma referência nossa àquilo que ele procurou compreender como o resultado da união entre a utopia andina e o socialismo.

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sin calco ni cópia, como requeria Mariátegui. De acordo com nosso autor, “Um projeto

socialista utiliza alicerce, coluna e tijolos da antiga sociedade, junto com armações novas. O

verdadeiro problema é saber combinar o mais velho com o que ainda nem sequer existe.

Somente assim o socialismo será uma palavra inédita no Peru”292.

Também enquanto utopia deveria “instalar a razão no imaginário”. Não apenas

se valer da emoção, da paixão, mas também empregar a ciência e a racionalidade, dando ao

mito a organização e o planejamento necessários para se converter em um projeto. Como

anuncia a última frase do livro: “porém é certo que somente as paixões não bastam: quando se

trata de modificar radicalmente as coisas se pede alternativas e projetos, planos e

programas”293.

Essas são as considerações encontradas no décimo segundo capítulo da obra de

Flores Galindo. No entanto, a maneira de tornar efetiva a instauração desta utopia socialista

não é desenvolvida no texto. Não existe um décimo terceiro capítulo que apresente um

modelo a ser seguido. Flores Galindo deixou exposto apenas a esperança e as prerrogativas

básicas dessa nova contrução utópica. 3.4 Buscando un Inca lido por seus contemporâneos

A primeira publicação de Buscando un Inca causou um grande impacto no

mundo acadêmico e nas discussões políticas da época. A obra teve edições rapidamente

esgotadas e extrapolou o ambiente universitário. Foi amplamente discutida e questionada por

pesquisadores e políticos, principalmente após ganhar o prêmio continental Casa de las

Américas, em 1986. Nelson Manrique, avaliando esta “recepção pouco usual em se tratando

de um texto de história”, acredita que, Uma primeira explicação deste fenômeno deve se encontrar seguramente na politização do debate, que incorpora questões da mais candente atualidade, como são a busca de explicações na história passada para a violência política que atualmente assola a sociedade peruana [...], ou as críticas às concepções que sustentam o projeto político da esquerda peruana294.

Justamente por isso, esta discussão em torno de sua obra já era algo esperado

pelo autor, que reconhecia a potencialidade de seu livro ser lido como um discurso político

em um momento de confrontos ideológicos. Como alertamos anteriormente, Buscando un

Inca não é tão somente um livro de história, mas o anúncio de uma concepção política que

292 FLORES GALINDO, Alberto. Buscando un Inca... Op. Cit. nota 27, p. 374. 293 Ibid. p. 377. 294 MANRIQUE, Nelson. Historia y utopía… Op. Cit. Nota 236, p. 21.

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defendia uma idéia sobre como deveria ser o socialismo no Peru. O autor não esperava que a

leitura de seu livro levasse alguns de seus leitores a identificá-lo como suporte ideológico do

Sendero Luminoso. José Tamayo, por exemplo, em seu livro Regionalización: mito o realidad

y e identidad nacional, de 1988, declarou suas suspeitas de que havia muito senderismo na

utopia andina de Flores Galindo295.

Este mal entendido fez com que Flores Galindo inserisse um novo capítulo no

livro (o epílogo Sueños y Pesadillas), ressaltando seu repúdio aos projetos que ao longo da

história peruana buscaram colocar em prática a utopia andina, entre eles o Sendero. Conforme

suas palavras: Este epílogo foi elaborado para evitar alguns mal entendidos. Escrever sobre a utopia andina não significa considerar que ela é necessariamente válida ou querer postular-la como alternativa para o presente. Foi um projeto que tiveram alguns personagens deste livro, pelos quais o autor não oculta a sua simpatia (queriam mudar as coisas), ainda que sem compartilhar com seus projetos. Então a tese deste livro não é que sigamos buscando um Inca. Necessitamos uma utopia que se sustentando no passado esteja aberta ao futuro, para dessa maneira repensar o socialismo no Peru.

Para Rodrigo Montoya, esta resposta não precisava ser dada. Segundo o

sociólogo peruano, em seu artigo La utopía andina, de 1991, desde a primeira edição de

Buscando un Inca o anti-senderismo já estava claro. No entanto, Montoya aponta algumas

razões para que o mal entendido tenha se propagado: Da leitura das duas edições anteriores não se verifica a tese de seguir buscando un Inca. De onde surge o mal entendido? A pergunta é difícil de responder e me atrevo a indicar uma pista possível. A fragmentação étnica e o conflito de segmentos na sociedade peruana é uma das características que atravessa toda a estrutura social do país. Nós, os intelectuais que trabalhamos no e sobre o país também estamos divididos por nossas origens étnicas e sociais. Para a direita do país, os intelectuais que vinculam o estudo do mundo andino à política e ao futuro do Peru, são perigosos porque aparecem como potenciais aliados do Sendero Luminoso.

Neste sentido, em uma sociedade marcada pela guerra civil que se

caracterizava como um conflito entre Andes e Costa, entre Tradição e Modernidade, qualquer

trabalho acadêmico ou proposta política que se dedicasse a estabelecer o passado andino

como um modelo de sociedade para o país, rapidamente era confundido com o senderismo.

Antes mesmo de Montoya, Flores Galindo já havia emitido uma opinião semelhante. Em um

texto publicado em 1989, intitulado El rescate de la tradición, a advertência já era clara:

295 Ver: TAMAYO, José. Regionalización: mito o realidad y e identidad nacional. Lima: Centro de Estudios País, 1988.

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A lógica do terror ou das zonas de emergência é transportada ao mundo universitário. Se um autor não demonstra que ao menos escreve a partir do poder, raciocinando como se fosse um membro das forças armadas ou um sociólogo incorporado à polícia, se torna suspeito296.

Outras leituras compreenderam que o tratamento dado ao mundo andino e a

necessidade de valorizar suas tradições e sua organização social possibilitavam classificar a

obra como indigenista ou neoindigenitsa. Segundo Carlos Iván Degregori297, existia uma

tentativa romântica de se agarrar no passado como fuga da realidade imposta pelo presente.

Degregori pensava de maneira oposta a Flores Galindo, defendendo uma relação menos

contínua entre o andino e os Andes, quando estes migravam para a costa. Para ele, a migração

pós-1950 teria forjado uma transformação nas referências mentais do andino, substituindo o

mundo tradicional por uma modernidade popular. “O velho mito do Inkarri vai sendo

sucedido de maneira crescente por outro: o mito do progresso”298.

Além da acusação de senderista e neoindigenista, outras tantas críticas foram

emitidas sobre a obra de Flores Galindo. Uma das primeiras foi a resenha do livro realizada

por Erica Mayer, em 1987, na revista Hisla: Revista Latinoamericana de Historia Económica

y Social299. A autora critica alguns pontos da obra, como a concepção à respeito do caráter

positivo do Império Inca. Segundo ela, seria “divertido” pensar que os Incas tiveram

efetivamente uma utopia andina. Outro ponto questionado foi a utilização de pesquisas com

escolares oriundos de Lima como fonte para averiguar a aprovação do Império Inca. Para ela,

a observância positiva seria um resultado óbvio, uma vez que ninguém desqualifica seus

antecessores. De outra maneira, acredita que a utilização deste questionário, limitado às

escolas de Lima, demonstrava o regionalismo de Flores Galindo.

Algumas críticas partiram do meio historiográfico, especialmente de

investigadores bastante próximos a Flores Galindo. No entanto, o questionamento não se

direcionou apenas à forma empregada ou às intenções da obra, mas também aos conceitos,

objetos e fontes de estudos utilizados por Flores Galindo. Entre essas leituras, destacamos

duas realizadas por Nelson Manrique e Henrique Urbano.

296 FLORES GALINDO, Alberto. El rescate de la tradición. In: ______________. Obras Completas. Tomo VI. Lima: SUR, 2007, p. 337. Publicado originalmente em: ARROYO, Carlos. Encuentros. Historia y movimientos sociales en el Perú. Lima: Ediciones MemoriAngosta, 1989, p. 9-21. 297 Ver: DEGREGORI, Carlos Iván. Carnaval por la vida. In: Quehacer, n. 55, 1988, Desco, p. 101. 298 BLONDET, Cecília; DEGREGORI, Carlos Iván; LYNCH, Nicolás. Conquistadores de un nuevo mundo. Lima: IEP, 1986, p. 290. 299 MAYER, Érica. In: HISLA: Revista Latinoamericana de Historia Económica y Social, Lima, n.9, 1987, p. 97.

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Nelson Manrique em seu artigo História y utopía en los Andes300, de 1988,

aponta algumas divergências sobre aspectos espaciais e temporais da utopia andina. Segundo

Manrique, Flores Galindo confere a utopia andina um caráter pan-andino, observável,

portanto, em outros países como o Equador ou a Bolívia. Para sustentar a existência de sua

hipótese, recorre a alguns elementos do imaginário popular como o mito do Inkarri. No

entanto, o mito ao qual se refere Flores Galindo é próprio de uma única região do Peru, o sul

dos Andes. Se recorrêssemos a outros testemunhos sobre o Inkarri em outras localidades,

veríamos que o mito nem sempre se constrói como referência ao retorno do Inca e nem

tampouco faz alusão à vinda de tempos melhores. Argumenta Manrique: As provas que Flores Galindo apresenta para sustentar o caráter pan-andino do fenômeno, no entanto, não parecem suficientes. [...]. Seguindo o caminho das versões recolhidas por Arguedas, o retorno do Inka-rey, a cuja cabeça, cortada na Praça de Armas de Cuzco, se vai brotando um novo corpo por debaixo da terra, pode se confundir com a imagem da igreja como um corpo místico cuja cabeça é Cristo. [...] Esta versão do Inkarri, elaborada em um povoado cuzquenho, tem profundos contrastes com outras versões, próprias de outros territórios, que não tem essa dimensão messiânica301.

Para comprovar sua crítica, Manrique apresenta uma versão do mito elaborado

na comunidade de Fuerabamba. Nesta lenda, Inkarri foi um personagem integrante de uma

humanidade anterior aos Incas que, nos tempos recentes, passou a viver por debaixo do solo.

O dia de seu retorno à terra seria também o dia do fim do mundo. Sustenta o autor que outras

diversas versões poderiam ser identificadas em várias localidades, por toda extensão dos

Andes, onde a palavra Inca não quer dizer ordenador (como se apresenta em quéchua), mas

sim ilegítimo. Trata-se de povos que foram subjugados pelos Incas por mais de um século.

Além da crítica à dimensão espacial da utopia andina, Manrique diverge quanto

ao seu período de duração. Neste ponto, se aproxima da obra de Manuel Burga,

compreendendo que a utopia andina não seria verificada no século XX, tendo o seu auge no

final do século XVIII, com o levante tupamarista. Mais precisamente: “cremos que Manuel

Burga tem razão quando afirma que no início da década de 20 a utopia andina chegou às

fronteiras de sua existência”302. Porém, nem tudo é crítica na análise de Manrique, apesar de

destacar o primeiro capítulo de Buscando un Inca como o melhor de todos, ressalta a

importância dos estudos sobre Gabriel Aguilar enquanto tentativa de aproximação entre

história e psicanálise, ainda que este exercício “não diga muito sobre a persistência da utopia

300 Este artigo já foi anteriormente utilizado por nós, porém em sua versão de 1991 publicada em Márgenes. A versão original foi publicada na revista Debates en Sociologia, n. 12-14, na cidade de Lima pela PUCP em 1988. 301 MANRIQUE, Nelson. Historia y utopia en los andes… Op. Cit. Nota 236, p. 25-26. 302 Ibid. p. 29.

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andina”303. De toda forma, sabemos que Manrique foi um dos autores que, apostando na

validade do conceito, também o empregou em seus estudos.

Assim como Nelson Manrique, a crítica de Henrique Urbano se aproxima e se

afasta das propostas de Flores Galindo. Urbano guarda ainda uma relação mais efetiva com a

história deste livro. O artigo produzido por Flores Galindo e Burga, em 1982, intitulado La

utopia andina. Ideologia y luchas campesinas en los Andes. Siglos XVI-XX, foi comentado

por Urbano em um colóquio organizado por ele na Universidade de Quebec (Canadá) e,

posteriormente, publicado na revista Allpanchis n. 20.

Ainda que Urbano compartilhasse a interpretação de que a chegada dos

espanhóis havia introduzido uma nova perspectiva histórica no pensamento andino,

possibilitando o surgimento de utopias, discordava de alguns aspectos bastante polêmicos,

como o próprio conceito de utopia andina empregado por Flores Galindo. Em seu artigo

Modernidad en los Andes: un tema y un debate, de 1990, demonstrou seu repúdio a um tipo

de utopia anti-moderna e conservadora. Explica: “refiro-me à mal chamada ‘utopia andina’.

Esta expressão designa fatos passados através dos quais se desenterram mentalidades,

movimentos sociais e até coisas esotéricas como ‘inconscientes coletivos andinos’”304.

O autor ainda ressalta a falta de critério de Flores Galindo na escolha de seus

objetos de análise305, bem como a apresentação de definições conflitantes do próprio conceito

de utopia andina ao longo de sua obra. Tais considerações o levam a sentenciar que Buscando

un Inca não é, propriamente falando, um livro de história. Não apenas pela ausência de uma investigação adequada dos temas tratados e pela repetição indiscriminada de todos os clichês que a história peruana se orgulha em repetir, mas também pela forma de raciocínio utilizada. Atreveria-me a dizer que aqui estamos diante de um tipo de filosofia da história, característico de autores que utilizam fatos passados como argumentos para enfrentar o presente e o futuro de nossa sociedade306.

As críticas ainda continuariam em outro artigo intitulado Historia y

etnohistorias andinas, de 1991. Desta vez, em um tom mais brando, Urbano adverte que os

autores (Flores Galindo e Burga) confundiram a utopia andina “em grande parte com a idéia

303 Ibidem. 304 URNBANO, Henrique. Modernidad en los Andes: un tema y un debate. In: URBANO, Henrique (comp). Modernidad en los Andes. Lima: Centro Bartolomé de las Casas, 1991, p. XXVIII. No final do artigo o autor menciona sua data de confecção: julho de 1990. 305 Entre os objetos de análise de Flores Galindo, Urbano questiona o caráter realmente messiânico do Taki Onqoi. Para o autor, os relatos subversivos do movimento produzidos pelo extirpador Cristóbal de Albornóz, não são confiáveis e “ao que tudo indica parece melhor indicar que se trata de uma negociata de eclesiásticos do sul dos Andes”. Ibidem. 306 Ibidem.

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de resistência dos índios aos espanhóis. Porém “resistir” não é pensar uma sociedade em

termos utópicos. E, se por hipótese, os Andes negassem ao Ocidente o espaço que este

ocupou, tampouco seria isso razão de falar de utopia andina”307.

A leitura da obra de Flores Galindo também foi realizada por setores políticos

da direita nacional que também emitiram seus posicionamentos. Aqui destacamos duas obras

que julgamos mais importantes: La Utopía Arcaica: José Maria Arguedas y las ficciones del

indigenismo (1996) e Nación Peruana: entelequia o utopía. Trayectoria de una falacia

(1988). A primeira, por conta de seu autor, Mario Vargas Llosa, o escritor mais renomado da

história da literatura peruana. A segunda, por conta da crítica historiográfica e política

extremamente aguda realizada por Fernando Iwasaki.

É certo que os comentários feitos por Vargas Llosa à obra de Flores Galindo

ocorreram cinco anos após sua morte e, por isso, já não foram confeccionadas no momento

em que o debate levantado pelo livro ainda se desenvolvia. No entanto, o fato de ser

“resenhado” por um dos autores de maior prestígio internacional do Peru, demonstra o quanto

o livro teve ressonância e se destacou perante as discussões intelectuais do país.

Em sua obra Utopia Arcaica, Vargas Llosa se dedica a analisar aspectos da

obra de Arguedas que se constituem como leituras idealizadas da serra peruana, bem como de

seus habitantes. Avalia, portanto, a valorização do mundo rural e arcaico peruano contra o

mundo moderno que norteiam os romances arguedianos. O décimo oitavo capítulo, intitulado

Una crítica marxista de la utopia andina, é destinado a analisar o livro Buscando un Inca de

Flores Galindo, em clara relação com a obra de Arguedas. Antes das críticas, apresentaremos

os elogios.

Para Vargas Llosa, o livro de Flores Galindo “é uma ambiciosa busca por

determinar a influência do mito e da fantasia histórica na história verdadeira e existem em

suas páginas importantes descobertas”308. Por conta disso, constitui-se como um marco na

história do indigenismo309 e, ao mesmo tempo, “um balanço e liquidação da utopia indigenista

que encontrou no autor de Rios Profundos [Arguedas] seu maior expoente literário no

Peru”310.

Na continuação, o novelista peruano elogia sobremaneira o primeiro capítulo

da obra de Flores Galindo e ressalta a importante colaboração do autor para a desmistificação 307 URBANO, Henrique. Historia y etnohistoria andinas... Op. Cit. nota 235, p. 152. 308 VARGAS LLOSA, Mario. La Utopía Arcaica: José Maria Arguedas y las ficciones del indigenismo. México: Fondo de Cultura Económica, 1996, p. 291. 309 Como podemos notar, assim como Degregori, Vargas Llosa também classifica Flores Galindo como indigenista. 310 VARGAS LLOSA, Mario. La Utopía Arcaica… Op. Cit. Nota 308, p. 289.

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160

de uma imagem unitária dos povos andinos, uma vez que “adverte o arbitrário de se

apresentar como uma harmoniosa sociedade homogênea o mosaico de cultura e povos – uns

dominantes e outros dominados – que era o Tahuantinsuyo à chegada dos espanhóis”311.

Existem ainda outros pontos positivos destacados por Vargas Llosa, como o

tipo de marxismo reconhecido em Flores Galindo que lembraria autores heterodoxos europeus

como Ginzburg e Foucault, bem como as interpretações lúcidas e justas de um intelectual

comprometido em emitir uma opinião sobre a realidade sem deixar que suas filiações

políticas, ainda que presentes, falassem mais alto. No entanto, as críticas também existem e se

dirigem ao formato e às idéias.

Na parte formal, o romancista acredita que a análise dos sonhos de Gabriel

Aguilar deixa a desejar, uma vez que não traz muitas contribuições para a tese central e reduz

o problema do personagem aos traumas de infância. Da mesma forma, avalia que o capítulo

referente à década de 1980, possui análises muito superficiais e se vale de um tom jornalístico

com recaídas ao propagandismo partidário.

Quanto às idéias, Vargas Llosa imagina impossível reconhecer no Sendero

elementos da utopia andina, “pois entre o messianismo maoísta e o gênero de sociedade que

propunham Abimael Guzmán e seus seguidores, o ideal de restabelecimento do incario media

a distância que existe entre a China e o Peru”312. De outra maneira, enfatizaria o escritor

peruano, que - por conta do momento em que é escrito (entre o fracasso das reformas agrárias

junto às comunidades coletivistas do governo Velasco e a queda do muro de Berlin) -

Buscando un Inca é tão tributário de uma ficção ideológica quanto aqueles projetos que

atacou, ainda que sem se propor a isso. Isso quer dizer que, Flores Galindo não conseguiu

perceber que muitas de suas apostas para o futuro, entre elas, o socialismo e as comunidades

coletivistas andinas, não mais se apresentavam como respostas concretas para o mundo atual

e, portanto, se apoiou em respostas que não condiziam com a realidade.

A segunda obra produzida por um intelectual liberal, Fernando Iwasaki, por

sua vez, não apenas questionaria aspectos historiográficos de Flores Galindo, como atacaria

duramente o projeto político que poderia resultar dela. Ela é escrita no calor dos

acontecimentos da década de 1980, quando a esquerda legal claudicava em suas incertezas, a

esquerda radical avançava e a direita reorganizava suas forças com movimentos importantes,

como Libertad e FREDEMO. Trata-se do momento em que os intelectuais de várias matrizes,

em seu exercício de pensar a nação, buscavam saídas para a crise. Neste sentido, a nação

311 Ibid. p. 292. 312 Ibid. p. 290-291.

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desejada por Iwasaki se opunha vertebralmente àquela que poderia brotar a partir da obra de

Flores Galindo, a saber, a nação como uma utopia forjada no marxismo de Mariátegui, como

uma utopia imperativa.

As observações de Buscando un Inca aparecem no último capítulo e tomam as

últimas vinte páginas do livro. A sentença contrária às idéias de Flores Galindo, praticamente,

encerra o livro. O interessante é que este trecho se inicia com uma série de elogios ao

historiador e à sua obra. Para Fernando Iwasaki, Buscando un Inca, depois dos Sete ensaios

de Mariátegui, se constituiu num dos livros mais importantes da história marxista peruana e

Flores Galindo é tratado como o intelectual de esquerda mais importante do século XX.

Segundo o autor, graças ao conceito de utopia andina, “Flores Galindo conseguiu dar

continuidade legítima ao pensamento de Mariátegui e chegar onde o Amauta não pôde:

formalizar um marxismo autenticamente peruano que não fosse ‘ni calco ni copia, sino uma

creación heroica’”313. Por conta de tal feito, o trabalho de Flores Galindo superaria a obra de

Mariátegui e o diferenciaria daqueles autores que rotulou, pejorativamente, de “modernos

sociólogos”.

A partir de então, as análises de Iwasaki tomam um caminho interessante e

fazem excelentes relações entre as diversas obras de Flores Galindo, demonstrando como

Buscando un Inca é, na verdade, a concretização de um projeto maior, iniciado ainda no livro

Apogeo y crisis e desenvolvido em La Agonía de Mariátegui, cujo objetivo era solucionar

questões deixadas em aberto pelo autor dos Sete Ensaios. Neste sentido, mais do que um livro

de história, Buscando un Inca é um discurso político.

Porém, o que parece elogio é, na realidade, o início de suas críticas. Ao dar

legitimidade a Flores Galindo como verdadeiro herdeiro de Mariátegui, o autor afirma que a

utopia andina é a consolidação da “peremptória necessidade do mito que reclamava

Maiátegui. [...] o mito de nosso tempo e uma verdade revelada. [...] um marxismo apaixonado

e revolucionário graças à mística religiosa da utopia”314. A evolução de um tipo de marxismo

que se apresentava como uma utopia imperativa já nos tempos de Mariátegui.

Esta utopia imperativa mariateguista, evoluída em utopia andina, tinha como

característica a imposição da idéia e não a sua construção consensual. Apresentava-se como

um projeto salvacionista antidemocrático, autoritário e classista, uma vez que defendia os

interesses dos andinos e, portanto, era capaz de provocar uma cisão ainda maior na sociedade

313 IWASAKI, Feranando. Nación Peruana: entelequia o utopía. Trayectoria de una falácia. 2 ed. Lima: CRESE, 1989, p. 177. 314 Ibid. p. 185-186.

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peruana. Não demorou muito para o autor sentenciar que, ainda que se demonstre o contrário,

Flores Galindo não consegue ocultar a sua simpatia pelo senderismo.

Desta forma, a aproximação de Flores Galindo à Mariátegui, não é uma

maneira de elogiar, mas sim de desaprovar qualquer projeto político que tenha como

prerrogativa a utopia imperativa e que possa surgir como continuação à obra Buscando un

Inca. Afirma o autor no parágrafo que encerra o livro: Nosso país enfrenta nesses dias o risco de ceder aos fascínios da utopia imperativa. Dado que o argumento da nação como enteléquia não resiste mais à passagem do tempo e ao peso das análises, atualmente pretende nos impor a imagem onírica da nação como utopia. No entanto, a utopia andina nos escamoteia o tempo e o espaço de uma realização possível e frustra a promessa da vida peruana que queria Basadre. O Peru necessita de um projeto que não recorra à violência, que não discrimine aos peruanos por sua cor de pele ou pela procedência de sua cultura e que não nos negue a modernidade e o progresso. Por essas razões a utopia andina não pode ser o “pensamento guia”, e se acaso à nação peruana não sobre outro caminho que não seja a utopia, recordemos com Belaunde que é possível uma utopía indicativa315.

Além das críticas ao projeto político, o livro faz algumas considerações à

metodologia historiográfica e, principalmente à escolha das fontes, bem como suas análises. O

autor questiona, por exemplo, as rebeliões escolhidas por Flores Galindo para demonstrar a

existência de uma utopia andina. Questiona-se: Por que esses movimentos sociais e não outros? Por que não inserir a insurreição indígena de Huancané (1866), a de Huánuco (1895), a de Huanta (1896) ou o célebre levante de Atusparia em Huaraz (1885)? Talvez porque nenhum deles reivindicasse expressamente o retorno ao passado. Ainda neste caso recordemos que o povoado de Huanta se rebelou, em 1826, em defesa dos direitos da Coroa da Espanha; porém não é este o passado que interessa a Flores Galindo316.

E ataca: “de qualquer maneira pensamos que a utopia andina pode ser também

uma forma de manipulação ideológica por parte de certos grupos de poder”317. Mais do que

uma criação coletiva, no entender de Iwasaki, a utopia andina atendia às necessidades de

grupos políticos de se aproximar da massa indígena, na organização de uma revolução. Neste

caso, teria sido utilizada, até mesmo, por tropas realistas na época da independência, quando

se planejou a coroação de um descendente de Inca como opção à República.

315 Ibid. p. 195. O Belaunde que o autor se refere é o intelectual da década de 1930: Víctor Andrés Belaunde. Ao longo da obra Iwasaki afirma que, assim como Mariátegui, Belaunde havia se colocado a pensar a nação enquanto uma utopia, porém, no seu caso, seria uma utopia indicativa que aponta o caminho e não o empoe. Belaunde se torna o contraponto a Mariátegui, da mesma forma que Iwasaki é o contraponto de Flores Galindo. 316 Ibid. p. 186-187. 317 Ibid. p. 187.

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163

Outras críticas também aparecem com relação aos sonhos de Gabriel Aguilar

em analogia a uma possível relação entre a proposta da utopia andina e o inconsciente onírico

de Flores Galindo. Porém, mais do que as discordâncias historiográficas, o que se destaca é,

sem dúvida, o repúdio à proposta de se constituir no Peru uma nação baseada no que o autor

chamou de utopia imperativa mariateguista.

Neste ponto é muito interessante notarmos que as duas críticas vindas da direita

liberal relacionam a obra de Flores Galindo como tributária de duas figuras polêmicas do

socialismo peruano, Mariátegui e Arguedas, pois, como veremos adiante, para Flores Galindo

ambos eram vistos como chaves para a construção de uma utopia socialista peruana.

Quase todas as críticas apresentadas aqui obtiveram respostas de Flores

Galindo, com exceção àquelas feitas por Urbano e Vargas Llosa pela razão óbvia imposta pela

morte do autor. No texto já citado, El Rescate de la Tradición, nosso autor organiza um

verdadeiro contra-ataque a seus opositores318, a começar pela resenha de Mayer, recebida com

muita revolta por parte Flores Galindo. Além de qualificar a análise como patética e ridícula,

o autor se defende da acusação de que em seu livro havia sugerido que os Incas tiveram uma

efetiva utopia andina. “Trata-se de uma criação, de uma invenção coletiva”319, insiste.

Quanto às acusações de senderista, avalia que “quem leu mais do que a capa do

meu livro poderia ter-se dado conta de que a tese central não era precisamente continuar

Buscando un Inca”320. Além disso, reforça a idéia de que a sociedade estava impregnada pelo

terror da guerra civil e, por isso, qualquer movimento pró-andes era o suficiente para ser

acusado de senderismo. O mesmo serve para a idéia de que era um indigenista, uma vez que

resulta “paradoxal acusar aos supostos ‘neo-indigenistas’ como pessoas empenhadas em

esquecer o presente, uma vez que precisamente alguns deles se empenharam em escrever

sobre a realidade mais imediata”321.

Quanto às divergências com Carlos Iván Degregori, Flores Galindo se defende

apostando na complexidade da cultura andina e na força das mais de 5 mil comunidades de

migrantes que se constituem como verdadeiros laços entre a costa e a serra, permitindo ao

andino compartilhar elementos próprios de sua cultura regional com outros de mesma origem.

De outra forma, as vinculações parentais entre os migrantes não se dissolviam no ato da

mudança e a afetividade entre aqueles que ficaram e aqueles que partiram ainda se 318 Quanto ao texto de Nelson Manrique, faz uma breve referência como quem demonstra saber que existe a crítica, mas não se põe à analisá-la. Assim aparece: “Nelson Manrique discutiu o âmbito espacial e temporal da utopía andina”, p. 336. 319 FLORES GALINDO, Alberto. El Rescate de la Tradición… Op. Cit. Nota 296, p. 336. 320 Ibidem. 321 Ibid. p. 339.

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constituíam em pontes de aproximação: “as conexões com essa terra que fica para trás se

mantém através do parentesco, das instituições regionais e o regresso periódico à

comunidade”322.

Por fim, suas críticas à Iwasaki foram tão duras quanto àquelas recebidas. Ao

se referir à obra, utilizou-se de seu título para sentenciá-la: “o livro de Fernando Iwasaki

Nación Peruana: entelequia o utopía, termina sendo a realização cabal de seu subtítulo,

Trayectoria de una falacia”323. Nesse sentido, Nación Peruana era uma falácia já que seus

argumentos não se sustentavam e pretendiam tão somente destilar a sua repulsa ao

comunismo, negando-o enquanto um caminho para a construção da nação. Em oposição ao

comunismo, se apresenta como um elogio ao mundo liberal e urbano. Por isso Flores Galindo

ressalta que a obra se constitui como um desprezo ao andino e um elogio à modernidade,

sendo sinônimo somente de capitalismo e de ocidentalização, “um eco desses empresários que

querem tomar o poder”324. Todos os argumentos de sua análise derivam de seu anti-

comunismo.

Assim como Iwasaki, Flores Galindo destaca pontos positivos no autor e

ressalta o seu apego pela História, seu trabalho para além do mundo de arquivos e da

universidade. Como afirmou: “não é um historiador qualquer”325. Escreve com entusiasmo e

convicção, bem como possui um tom apaixonado que faz parecer plausível suas afirmações.

Porém, sua repulsa à esquerda, como forma de marcar posição em um mundo cindido pela

guerra civil, o faz ver “marxistas por todos os lados. Suspeita de todos os seus professores da

Universidade Católica”326. De qualquer maneira, Flores Galindo acabou por avaliar que este

novo discurso historiográfico representado por Iwasaki, a cada dia ganhava espaço nas

universidades, nos jornais e nos institutos, aproveitando-se do fracasso da esquerda no

universo legal.

Rescate de la tradición veio em 1989, pouco tempo antes de sua morte.

Demonstrava que o debate levantado por Buscando un Inca ainda estava em aberto e que a

obra foi capaz de movimentar as discussões em torno dos caminhos políticos para o Peru, em

um cenário marcado por tantas incertezas. Da mesma forma, deixou claro que o papel de

Flores Galindo nesta polêmica era discutir o presente e não o passado. Eram os problemas da

322 Ibid. p. 340. 323 Ibid. p. 343. 324 Ibid. p. 346. 325 Observamos, mais uma vez, a idéia destacada no segundo capítulo de que para Flores Galindo o trabalho do historiador não se limita a arquivos e deve se estender à prática social, somente isso o torna algo diferente de um “historiador qualquer”. 326 FLORES GALINDO, Alberto. El Rescate de la Tradición… Op. Cit. Nota 296, p. 345.

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atualidade que moviam seu pensamento, ainda que isso representasse realizar alguns acertos

de conta com o passado, como retomar a obra inacabada de Mariátegui e reavaliar as tradições

andinas e a sua validade para o presente. Além disso, a década de 1980 trazia consigo o

colapso de uma sociedade informal resultante de mais de trinta anos de migração,

desemprego, a violência, o racismo e fragmentação cultural. Todos esses problemas estão

presentes em sua principal obra, mas também o motivaram a colocar seu pensamento em

busca de soluções para além dela. O debate aberto pela utopia andina como forma de se

conceber uma utopia socialista para o Peru que fosse capaz de se apresentar como alternativa

à realidade existente foi, em toda a sua dimensão, la Agonía de Flores Galindo.

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CAPÍTULO 4

LA AGONÍA DE FLORES GALINDO

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O título de nosso quarto e último capítulo faz uma proposital alusão ao livro de

Flores Galindo, La Agonía de Mariátegui, de 1980. Porém, não é apenas do título que nos

apropriaremos, uma vez que faremos uma referência direta à própria semântica da palavra

“agonia” utilizada pelo autor. Usualmente recorre-se a ela para indicar dor, sofrimento,

decadência ou proximidade da morte. Aqui não será assim, pois, como fez Flores Galindo

com Mariátegui, a utilizaremos para indicar luta e busca pela vida.

No livro em questão, ao contrário do que poderia sugerir o seu título, Flores

Galindo não narrou os últimos anos de Mariátegui para demonstrar o seu sofrimento e a sua

aflição frente à morte iminente. Nele não aparece um Mariátegui agonizante, mas sim um

homem idealista que lutou pela formação de seu partido, manteve o debate com a

Internacional Comunista, sendo capaz de firmar-se enquanto força aglutinadora em prol do

projeto coletivo representado pelo socialismo. Mas sim, como frisou Carlos Ivan Dedregori,

“o Mariátegui da criação heróica, do pão e da beleza, enfrentando os comissários do

stalinismo por se mostrar aberto às correntes da cena contemporânea, sem sectarismos e

hipocrisia”327. Este é o significado de agonia adotado por Flores Galindo para descrever as

últimas ações de Mariátegui.

Flores Galindo explica que o sentido da palavra agonia utilizado tinha sua

origem no livro do espanhol Miguel de Unamuno, intitulado La Agonía del Cristianismo.

Este, por sua vez, foi um livro muito apreciado por Mariátegui e, por isso, recebeu um

comentário em sua revista Amauta. Nele Mariátegui encontrou certa identificação entre o

cristianismo unamuniano e o socialismo que tanto almejava construir: livre de dogmas e

fomentador de heresias. Em Unamuno, agonia representa luta pela vida, a necessidade de lutar

para se manter vivo, renovado.

Ao conceber agonia dessa maneira, Flores Galindo explica que a polêmica é

inerente a ela. Neste sentido, da luta pelo revigoramento das forças, dos conceitos, da vida,

surgem inevitavelmente os debates e os conflitos de idéias e ideais. Não um conflito de

classes, mas um conflito que visa o intercâmbio de idéias, para dialogar e discutir. Em suas

palavras, “agonia é sinônimo de conflito interior: correntes encontradas que geram uma tensão

íntima, como ilustra Mariátegui recorrendo ao exemplo das duas almas contemporâneas, a

revolução e a decadência, coexistindo ambas nos mesmos indivíduos de maneira ‘agonal’”328.

Tendo isto como referência, consideramos que os últimos anos de Flores

Galindo também foram dias de agonia. Não por sua luta contra o câncer, mas por ele acreditar

327 DEGREGORI, Carlos Ivan. Outro mundo es... Op. Cit. nota 219, p. 3. 328 FLORES GALINDO, Alberto. La Agonía de Mariátegui... Op. Cit. nota 87, p. 13.

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que havia encontrado uma maneira de unir socialismo com a tradição peruana. No final de sua

vida, Flores Galindo descobriu uma maneira de superar os obstáculos para a criação de um

socialismo peruano, que tinham sido levantados por Mariátegui, ainda na década de 1920:

transformar o marxismo em uma fé coletiva e conseguir unir a tradição andina ao socialismo.

Buscando un Inca representava assim a sua tentativa de renovar e recriar um socialismo tal

qual Mariátegui havia reivindicado e não havia alcançado. Uma forma de dar ao autor dos

Sete Ensaios o seu oitavo ensaio: um mito socialista coletivamente peruano.

Como vimos no primeiro capítulo, a década de 1980, especialmente entre 1986

e 1988, foi marcada pelo pior momento da maior crise econômica da história republicana do

Peru. É este também o período no qual o comunismo mundial já demonstrava sinais de

fraqueza e de inevitável falência. Já a nova esquerda peruana, vivia o confronto entre sua ala

democrática (IU) - desgastada e inoperante por conta dos resultados das eleições presidenciais

de 1985 - e o Sendero Luminoso - cada vez mais violento e segregador. Enquanto fusão de

socialismo com as tradições utópicas peruanas, a utopia socialista seria um caminho

alternativo para superar esta realidade de confronto, crises e pobrezas. Uma forma de trazer

novos ânimos à uma corrente ideológica desgastada por tantas derrotas.

Nesse sentido, Buscando un Inca deu um novo significado à trajetória de

Flores Galindo. Após a primeira edição do livro em 1986, por sua iniciativa, fundou-se a Casa

e Editora SUR, assim como a Revista Márgenes, que, para muitos autores, pretendia ser uma

espécie de nova Amauta329, e as Universidades Libres. Como já mencionamos, neste mesmo

ano, Flores Galindo escreveu seu artigo sobre a geração de 1968, no qual avaliou a

inoperância de sua geração, a falta de projetos concretos, a mitificação do socialismo e o

fracasso da opção democrática da Esquerda Unida. Crítico, Flores Galindo acreditava que a

sua geração havia perdido o idealismo e vendido seus sonhos em nome de uma democracia

liberal e de empregos que lhe garantissem um futuro tranqüilo. Terminaram realizando as linhas finais de Los Cachorros: “Eram homens feitos e direitos, todos já tínhamos mulher, carros, filhos que estudavam no Champagnat, La Inmaculada ou no Santa Maria, e estavam construindo uma casinha de veraneio em Áncon, Santa Rosa ou nas praias do sul. Começávamos a engordar e a ter cabelo branco, barriguinhas, corpos moles, usar óculos para ler, a sentir mal-estar depois de comer e beber, bem como já apareciam em suas peles algumas pequenas pregas, certas ruguinhas”330.

329 CONTRERAS, Carlos; CUETO, Marcos. Historia del Perú… Op. Cit. nota 18, p. 342 e BURGA, Manuel. La Historia y… Op. Cit. nota 113, p. 112. 330 FLORES GALINDO, Alberto. Generación del 68... Op. Cit. nota 114, p. 111.

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A utopia socialista seria uma forma de revigorar essa geração. Para tanto, era

necessário reencontrar a dimensão utópica. É importante enfatizar que a perspectiva agônica,

tão recorrente no seu último ano de vida, estava vinculada à busca por novos rumos para o

socialismo no Peru. Conforme afirmou em sua carta de despedida aos amigos, era preciso

encontrar uma nova “receita”: Depois dos fracassos do stalinismo é um desafio para a criatividade. Estávamos demasiadamente acostumados a ler e repetir. Porém, caso se pretenda ter um futuro, agora mais do que nunca, é preciso se desprender do temor à criatividade. Reencontremos a dimensão utópica. [...] O socialismo no Peru é um difícil encontro entre o passado e o futuro. Este é um país antigo. Redescobrir as tradições mais distantes, porém para encontrá-las é preciso pensar à partir do futuro. Não repetir-las. Ao contrário. Encontrar novos caminhos. Perder o temor ao futuro. Renovar o estilo de pensar e atuar. O que resulta talvez impossível sem uma ruptura com esses esquerdistas excessivamente ansiosos de poder, apenas interessados no que realmente acontece331.

Os anos que se sucederam o livro Buscando un Inca foram dedicados à

tentativa de tornar concreta e real essa interpretação autêntica do socialismo. Foram anos

dedicados a estabelecer um viés interpretativo que permitisse unir a utopia andina ao

socialismo, o passado ao futuro. Para isso, era preciso compreender e construir uma

identidade peruana, buscando desvendar os segredos dessa tradição andina que havia invadido

Lima. A utopia andina, ou melhor, as referências sócio-culturais da região andina não estavam

limitadas aos Andes. Como vimos no terceiro capítulo, a utopia dizia respeito ao criollo, aos

camponeses e seus filhos. As migrações haviam expandido as referências do mundo andino

para todo o Peru.

Na década de 1980, os camponeses e seus filhos mestiços, já eram a maioria da

população de Lima e de todo o país. A tradição andina havia invadido a capital e incorporado

elementos da urbanização e da ocidentalização. De acordo com José Matos Mar, como

resultado da migração, Lima vivia tempos de um transbordamento popular que deu traços ao

novo rosto da sociedade peruana332. Nessa perspectiva, o mesmo deveria ocorrer com a utopia

andina. Ela deveria encontrar-se com essa tradição ocidental representada pelo marxismo.

Diante disso, ocorreria uma espécie de cholificação da utopia andina, fazendo com que ela

incorporasse elementos da modernidade, como o próprio socialismo.

Para Flores Galindo, quem melhor encarnou esta nova alma peruana, suas

raivas, seus temores, seus sonhos, bem como suas contradições e tradições foi José Maria

331 FLORES GALINDO, Alberto. Reencontremos la dimensión… Op. Cit. nota 7, p. 385. 332 MATOS MAR, José. Desborde Popular y Crisis del Estado: el nuevo rostro del Perú en la Década de 1980… Op. Cit. Nota 95.

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Arguedas. Existiria uma aproximação entre a obra de Arguedas e a história do Peru. Era

possível acompanhar a história peruana do século XX por meio de sua biografia e obra. Por

isso, não nos estranha que a vida de Arguedas construída por Flores Galindo apresente a

trajetória de um mestiço pobre que nasceu nos Andes e migrou ainda jovem para Lima.

Neste sentido, podemos entender que o desenvolvimento de uma utopia

socialista também era motivado pelo impacto negativo dos problemas existentes na cidade de

Lima. Problemas estes advindos especialmente dos processos de migração serra-costa.

Resolver o problema do racismo, da segregação racial e cultural que sempre representaram

Lima na história peruana era, também, apresentar ao Peru um caminho para o estabelecimento

de uma identidade nacional. Uma identidade que não era apenas ocidental, nem tampouco

inca ou indígena. Algo novo. Algo que superasse a dicotomia Serra (atraso-tradição) e Costa

(moderno-cosmopolita) tão proclamada pelas ciências sociais peruanas ao longo do século

XX. Uma identidade que admitisse a pluralidade cultural e que superasse as barreiras

impostas pela herança colonialista presente em Lima. Uma identidade para o futuro.

Devemos nos lembrar que, para Flores Galindo, a história deveria ser utilizada

para entender e intervir no presente. Ao longo de sua atuação política, sua intervenção teve

como palco e público “a urbanização, as barriadas e os novos contingentes operários”333. Sua

geração era formada por jovens intelectuais da classe média limenha que, entre 1970 e 1980,

acompanharam todo o impacto da chegada de cerca de 3 milhões de novos habitantes a Lima.

Migrantes que, vindos dos Andes, foram em sua maioria abrigados nas barriadas. Por isso, a

utopia socialista tem por inspiração os conflitos agrários advindos da serra, como o próprio

Sendero Luminoso, mas, sobretudo, os embates causados pela resistência de Lima em aceitar

a presença dos andinos. Segundo Flores Galindo, era junto a este público marginal,

encarcerado nas favelas, que deveria se construir a utopia socialista.

Algo semelhante foi observado por Marco Matos ao comentar um texto de

Flores Galindo chamado Lima, de 1983, publicado em El Caballo Rojo: “Flores Galindo disse

que desde 1947 predominaram os mestiços nas maiores cidades do país (que crescem à custa

do campo), os quais, todavia, permanecem ignorados. É nesse setor onde se deve buscar a

resposta sobre se é possível ou não a utopia”334.

De outra forma, a investigação sobre a utopia andina e o socialismo nos

permitem não apenas trabalhar o conceito de utopia socialista elaborado por Flores Galindo,

333 FLORES GALINDO, Alberto. Generación del 68... Op. Cit. nota 114, p. 102. 334 MARTOS, Marco. La Utopía Andina en Debate. In: LÓPEZ JIMÉNEZ, Sinesio (dir). Homenaje a Alberto Flores Galindo: otro mundo es posible. Libros & Artes. Lima: Biblioteca Nacional del Perú, 2005, p. 8.

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171

como também, articular vários outros conceitos e contextos que aparecem em sua obra. Como

balanço de sua carreira, Buscando un Inca investiga o significado e o alcance da utopia

andina, transformando-a no elemento primordial do pensamento político de Alberto Flores

Galindo, como se fosse uma resposta à sua agonia intelectual.

4.1 O Oitavo Ensaio

Após a derrota nas eleições presidenciais de 1980, a nova esquerda decidiu

reunir suas forças em uma frente única: a Izquierda Unida. A IU se apresentou, portanto,

como a união de todos os principais partidos da chamada nova esquerda, menos o MRTA e o

Sendero Luminoso que seguiram com a opção mais radical de atingir o poder pela via armada.

Como vimos em nosso segundo capítulo, a IU utilizava em seus panfletos eleitorais e nos

folhetins informativos uma estampa com a figura de José Carlos Mariátegui. Além da vontade

de se atingir o poder, esta imagem era o único traço que os inúmeros partidos tinham em

comum. No entanto, esta comunhão era muito mais simbólica do que ideológica, uma vez que

a interpretação em torno do socialismo de Mariátegui era, como vimos, um ponto de

discordância entre eles.

Ao longo do capítulo dois, pudemos constatar que a figura de Mariátegui era

um símbolo forte não apenas entre os grupos da esquerda legalista, mas também entre os

grupos armados. Como demonstrou o movimento do Sendero Luminoso, o qual reivindicava

para si o posto de herdeiro de Mariátegui, afirmando ser o único “caminho iluminado” por

José Carlos Mariátegui a ser seguido. Como vimos anteriormente, o mariateguismo foi uma

característica marcante de toda a nova esquerda da década de 1970.

Frente a este quadro de múltiplos referenciais mariateguistas, Flores Galindo

entendia que era preciso encontrar e definir um Mariátegui que fosse comum a todos os

partidos, permitindo a unificação real dos interesses da esquerda em prol de um projeto

político coletivo. Para ele, era preciso valorizar o Mariátegui nascido de sua interpretação

historiográfica, abandonando o mártir que havia sido diversamente difundido. Por conta disso,

Flores Galindo propunha que a narrativa utilizada para construir Mariátegui fosse substituída.

No lugar da lenda que remontava o mito, era preciso utilizar a História para reconstituir o

personagem. Como escreveu em um artigo, Socialismo y problema nacional, de abril de 1980, existe uma imagem mitificada de José Carlos Mariátegui que o apresenta como o marxista ortodoxo por excelência, o guia da revolução socialista, o caminho iluminado, o Amauta [...]. A veneração bíblica substitui a discussão. Desta maneira, e para o seu pesar, Mariátegui acaba por se converter em um obstáculo para o desenvolvimento do marxismo no Peru. [...] Se faz necessária a tarefa pouco grata de desmistificar a Mariátegui. O caminho consiste em

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172

trazê-lo novamente para a história, restituí-lo àquilo que ele realmente foi, um homem de seu tempo, e pensá-lo, segundo uma bela reflexão de Sartre, que dizia: “como todo homem é feito de todos os homens e que vale como todos e quaisquer uns deles”. Em outras palavras, trata-se de intervir em algumas perspectivas que estudam a Mariátegui como se ele tivesse existido sozinho, desligando-o de seu contexto ou enfrentando-o com outros solitários335.

No entanto, alguns meses depois de alertar sobre a maneira ideal de se

aproximar do pensamento e da biografia de Mariátegui, Flores Galindo tomou para si esta

“tarefa pouco grata” publicando, em novembro de 1980, La Agonía de Mariátegui. O objetivo

de Flores Galindo, como ele mesmo anunciou, era realizar uma abordagem historiográfica

sobre o autor que o livrasse de toda a mitificação que o cercava. Contextualizá-lo, verificando

os seus interlocutores e suas referências.

É interessante observarmos que o trabalho de Flores Galindo se apoiou na

leitura de autores não peruanos, que acabavam de publicar seus trabalhos sobre Mariátegui.

Entre eles, estavam Antonio Melis, Robert Paris e José Aricó. Outra característica desses

escritores é o fato de todos conceberem Mariátegui como um marxista heterodoxo. Além

disso, é importante ressaltarmos que, dos três autores mencionados, Aricó foi aquele com

quem Flores Galindo mais compartilhou idéias. A primeira grande concordância entre eles

surgiu da interpretação do marxismo de Mariátegui, que não poderia ser visto como uma

simples mescla de referenciais: era preciso entendê-lo como reflexo da “profunda

originalidade de seu pensamento, criador e heterodoxo”336.

A aproximação entre Flores Galindo e as formulações elaboradas pelo

argentino não ocorreu apenas pela leitura do livro de Aricó, Mariátegui y los orígenes del

marxismo latinoamericano, de 1978. Após o lançamento deste trabalho, Aricó esteve no Peru

discutindo o socialismo latino-americano em algumas universidades peruanas. A passagem do

“militante comunista expulso do partido por exercer o seu direito de pensar”, foi assim

narrada por Flores Galindo: Aricó esteve em Lima dando um ciclo de conferências, discutindo e conversando sobre a história do socialismo na América Latina. Sabendo imprimir uma especial paixão por suas idéias, nos propôs uma imagem pouco convencional de Mariátegui, segundo a qual o seu valor como marxista radica no fato de estar pouco ajustado com o “dogma”, na profunda originalidade de sua obra que o distingue dos outros marxistas latino-americanos para localizar-lo ao lado dos grandes inovadores do pensamento de Marx337.

335 FLORES GALINDO, Alberto. Socialismo y Problema Nacional en el Perú. In: _________. Tiempo de Plagas. Op. Cit. nota 187, p. 46. O artigo foi publicado originalmente em: Nueva Sociedad, n. 47 de abril de 1980. 336 Ibid. p. 47. 337 FLORES GALINDO, Alberto. El Marxismo peruano de Mariátegui. In: _________. Obras Completas. Tomo V. Lima: SUR, 1997, p. 99. O artigo foi publicado originalmente em: Amauta, n. 196, em 31 de outubro de 1978.

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173

Deste encontro com Aricó, Flores Galindo assimilaria uma resposta dada pelo

argentino quando questionado: “Como se explica o fenômeno Mariátegui?”

Para Aricó, a resposta deve ser buscada entre outras razões em Mariátegui, além de seu conhecimento do marxismo, conhecia a cultura de sua época – Sorel, Coletti, Freud – e havia se conectado com a produção intelectual peruana como Valcárcel, Sabogal e outros. [...] Esses foram os grandes andaimes sobre os quais se sustentou a leitura original do marxismo; desta perspectiva interrogou aos textos de Marx e Lenin. O elemento que o vinculou a essas fontes, aparentemente tão diversas, foi a idéia do “mito”: uma concepção segundo a qual, a validade das idéias aparecia relacionada com a sua força para se encarnar nas massas338.

É importante destacarmos esta atenção que Flores Galindo concede ao “mito”

no pensamento de Mariátegui, pois ele será fundamental para a compreensão das propostas de

um socialismo mariateguista em Flores Galindo.

A partir dessas observações, podemos dizer que La Agonía de Mariátegui se

dedicou a realizar uma investigação historiográfica dos últimos quatro anos da vida do

escritor socialista339, porém, sem se esquecer de etapas anteriores de sua história, como sua

passagem pela Europa e a sua atuação como jornalista. O foco principal dado aos últimos

anos de Mariátegui não é por acaso, já que foi neste período que Mariátegui se dedicou à

fundação e estruturação do Partido Socialista Peruano, travando polêmicas e discussões com o

aprismo e a Internacional Comunista.

Neste trabalho, interessava a Flores Galindo descobrir quais eram os elementos

fundamentais que compunham o pensamento de Mariátegui para, a partir deles, elaborar uma

proposta de socialismo que realmente atendesse as necessidades do Peru. Por conta disso, era

importante levantar as intenções de Mariátegui e o debate teórico e político que circundava a

fundação do partido. De certa maneira, assim como o seu pensamento, a formação do partido

socialista também se converteu em algo inacabado. Foi justamente a descontinuidade do

projeto, o que permitiu, posteriormente, reapropriações tão díspares de sua obra. Daí a

necessidade de estudar as discussões travadas entre Mariátegui e os membros da Komintern

em torno da definição de um partido socialista no Peru e as semelhanças e diferenças deste

com o modelo internacionalista soviético.

Contudo, com o desenrolar da leitura do livro percebemos que a importância

do partido vai se diluindo frente aos outros trabalhos de militância e produção intelectual

realizados por Mariátegui, convertendo-se em apenas mais um elemento de um amplo

338 Ibid. p. 99-100. 339 O recorte especificamente estabelecido por Flores Galindo é: 05/06/1927 a 16/04/1930.

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174

processo de construção do socialismo peruano. Juntamente com o partido, a formação do

socialismo era compreendida como uma tarefa coletiva que contava com a participação de

vários setores da sociedade da época. Segundo interpretava Flores Galindo, a proposta inicial

de Mariátegui era a de formar uma “consciência de classe”, aglutinando a militância por meio

de vários projetos, como as revistas Amauta e Labor, o trabalho junto aos sindicatos de

trabalhadores e a organização do CGTP340. Neste sentido, o partido seria o resultado final

deste longo processo de amadurecimento do socialismo entre os trabalhadores, camponeses e

intelectuais. O partido era necessário e imprescindível para introduzir no Peru essa espécie de planta européia que era o socialismo, porém o partido não era exatamente o início desta tarefa, senão quase a sua estação final. É neste percurso que se inscreve o projeto de Amauta e todo o trabalho publicista desenvolvido por Mariátegui. Também em suas conferências nas Universidades Populares González Prada e suas conversas com os jovens dirigentes operários, como Larrea, Portocarrero ou o ferroviário Avelino Navarro. O partido exigia o desenvolvimento da “consciência de classe”341.

No entanto, como sabemos, isso não ocorreu. O partido, que deveria ser o final

do processo, veio em 1928, conjuntamente com esses demais projetos. Por que isso ocorreu?

Para Flores Galindo, a resposta estava na polêmica indigenista de 1927, desenvolvida entre o

autor dos Sete ensaios e o líder do histórico do aprismo, Victor Raúl Haya de la Torre. Como

resultado direto desta polêmica, Haya de la Torre propôs a criação de um partido que reunisse

as forças revolucionárias peruanas, o PNL (Partido Nacionalista Libertador). Como resposta a

esta atitude do aprista, Mariátegui abortou algumas etapas de seu plano inicial e fundou o

Partido Socialista Peruano um ano depois. A polêmica não foi uma questão meramente intelectual: antes de tudo se tratou de uma disputa política e a questão do poder esteve em pauta durante todo momento da discussão. Com efeito, para responder a Haya não era suficiente propor uma alternativa diferente; tinha que desenvolver na prática: a refutação do Partido Nacional Libertador exigia o estabelecimento do Partido Socialista342.

Da mesma forma, a necessidade de tornar o PSP um adversário forte ao

aprismo levaria Mariátegui a se aproximar da Internacional Comunista. Porém, esta

aproximação não seria harmoniosa, uma vez que havia uma grande distância entre as idéias de

Mariátegui e as propostas de homogeneização da ação revolucionária para a América Latina

340 Aqui uma divergência entre Aricó e Flores Galindo. Enquanto o argentino via o sindicato como um elemento mais importante para Mariátegui, o peruano entendia que ele era apenas uma parte de um projeto maior que desembocaria com a formação do partido. 341 FLORES GALINDO, Alberto. La Agonía de Mariátegui... Op. Cit. nota 87, p. 75-76. 342 Ibid. p. 84-85.

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175

pretendidas pela Internacional. As divergências entre o socialismo almejado por Mariátegui e

aquele proposto pela Komintern são muito bem demonstradas por Flores Galindo quando

descreve a participação dos líderes do PSP (Julio Portocarrero e Hugo Pesce) na Primeira

Conferência Comunista Latino-Americana, realizada em Buenos Aires, em 1929.

Esta leitura da trajetória de Mariátegui que concebeu a construção do

socialismo como resultado de uma tarefa coletiva e do trabalho de conscientização de classe é

um dos pontos chaves para entendermos as conclusões de Flores Galindo sobre um socialismo

para o Peru. Além disso, outro elemento de suma importância é sua constatação de que, para

Mariátegui, o socialismo como um desafio coletivo, somente se tornaria efetivo quando se

convertesse em uma fé, em um mito. Em La Agonía de Mariátegui este é um ponto de

extrema relevância: “o socialismo como a religião, o mito de nossos tempos”.

A importância do mito para o socialismo reside na possibilidade de se romper

com uma visão impositiva de revolução, fazendo dela o resultado de uma vontade coletiva.

Assim como a fé era capaz de mover multidões por uma crença, o socialismo enquanto um

mito, também seria capaz de movimentar a massa em busca da revolução. Reproduzindo um

trecho do próprio Mariátegui, argumentou Flores Galindo: “A Revolução mais que uma idéia,

é um sentimento. Mais que um conceito, é uma paixão”343.

Para Flores Galindo, a relação entre fé e socialismo, entre mito e revolução, foi

uma constante na vida de Mariátegui. Para construir um suporte teórico de interpretação do

marxismo, Mariátegui se aproximaria dos autores surrealistas e de Freud. Da mesma forma, se

apoiaria no pensamento de George Sorel, mesmo antes de sua viagem à Europa.

Ao analisar toda sua biografia e produção literária, Flores Galindo destacou

que desde seus tempos como jornalista, Mariátegui já demonstrava sua admiração pela força

que a religião tinha para mover multidões. Em suas crônicas, apresentou seu fascínio pelas

procissões, pela paixão que submetiam as pessoas à esforços sobre-humanos para,

unicamente, demonstrar sua devoção a um santo ou a Cristo. Porém, não se tratava de uma

submissão imperativa, ela ocorria de maneira espontânea, por opção e não por obrigação.

Analisando uma crônica de Mariátegui sobre a procissão do Senhor dos Milagres, Flores

Galindo fez as seguintes considerações: Juan Croniqueur [Mariátegui] se comove com o caráter coletivo do sentimento e da firmeza que pode ter essa tradição para unir um conjunto de vontades. As liteiras de Cristo são pesadas. Para carregá-las ao longo de todo o percurso existe uma irmandade ou uma confraria, composta em sua maioria por gente

343 MARÁTEGUI, José Carlos. La escena contemporánea. Apud: FLORES GALINDO, Alberto. La Agonía de Mariátegui... Op. Cit. nota 87, p. 54.

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dos bairros populares da cidade e etnicamente negra ou morena, que, vestidos com seus típicos hábitos roxos, ditam o calor característico da procissão. Estes homens, ainda que sejam fortes terminam cada turno exaustos, porém existe de certa maneira um mito que os robustecem [...]344.

Quando Mariátegui voltou da Europa, a interpretação da importância da fé e da

religião enquanto elemento aglutinador continuou presente. Por conta disso, dedicou uma

atenção especial a ela nos Sete Ensaios, com um capítulo exclusivo para a discussão da

religião no país. Mariátegui pensava que o socialismo no Peru não poderia se constituir de

maneira “profana”, mas como uma espécie de religião. Esta interpretação levou o socialista a

aprofundar suas leituras sobre Sorel e a se interessar por sua concepção de “mitos

revolucionários”.

Um socialismo que se apresentasse como um mito coletivamente

compartilhado também era uma forma de se aproximar das mais antigas tradições peruanas,

não apenas do catolicismo, mas também do mundo andino. Os Andes eram repletos de mitos

formadores e de esperanças messiânicas, bem como de sociedades coletivistas e regras de

reciprocidades forjadas na continuidade de um “comunismo agrário”345. Por conta disso, a

cultura andina teria muito a oferecer ao socialismo peruano. Sua noção de coletivismo e

comunismo agrário, bem como a sua interpretação mitológica da realidade poderiam servir de

base para o “novo socialismo”. Segundo Flores Galindo, era justamente por isso que,

“qualquer possibilidade exitosa do marxismo no Peru passava por sua confluência com a

cultura andina”346.

A contribuição do mundo andino não viria somente de suas tradições

“produtivas” e de sua “razão”, mas também do próprio contingente revolucionário. De acordo

com Flores Galindo, Mariátegui não apenas entendia que a revolução no Peru não tinha a

classe operária como principal protagonista, como acreditava que existiam nela elementos

próprios do mundo camponês e indígena. Seguindo este raciocínio, o socialismo peruano

deveria obedecer às necessidades próprias de sua localidade, incorporando o elemento

indígena ao processo revolucionário. Na realidade, mais do que isso, o caminho para o

socialismo no Peru poderia seguir uma história diferente daquela construída na Europa, onde

o comunismo se apresentava como uma etapa posterior ao capitalismo. 344 FLORES GALINDO, Alberto. La Agonía de Mariátegui. La polémica con la Komintern. In: FLORES GALINDO, Alberto. Obras Completas. Tomo II. Lima: SUR, 1994, p. 544. 345 Para Flores Galindo a noção de comunismo agrário em Mariátegui resultava de sua aproximação à autores indigenistas e aos primeiros trabalhos à respeito da sociedade inca que então surgiam. Flores Galindo não deixa de criticar esta interpretação apontando-a como o ponto fraco do pensamento de Mariátegui. No entanto, ressalta o seu pioneirismo na discussão. Cf. FLORES GALINDO, Alberto. La Agonía de Mariátegui... Op. Cit. nota 87, p. 52. 346 FLORES GALINDO, Alberto. La Agonía de Mariátegui... Op. Cit. nota 87, p. 49.

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177

Diante de suas necessidades próprias, o Peru poderia seguir uma evolução

histórica distinta daquela ocorrida no continente europeu e, por isso, a estratégia de superação

do atraso vivido pelo país não seria por meio da implantação do capitalismo, mas sim pelo

próprio desenvolvimento do socialismo. Os indígenas não precisariam se converter em

proletários para alcançar o comunismo, já que seriam eles mesmos, em conjunto com o

proletariado nascente e os intelectuais, os artífices da revolução peruana.

Porém, essa concepção de “evolução histórica própria” não teria feito de

Mariátegui um autor indigenista que apregoou o regresso romântico do passado, nem

tampouco um personagem que negou veementemente o mundo ocidental. Afirma nosso autor, [...] a crítica ao Ocidente não derivará em uma negação absoluta, porque Mariátegui acabou por distinguir entre a cultura ocidental e o capitalismo. A decadência, o ocaso e o fim obedeciam a um sistema econômico e não às conquistas de uma cultura. Ocidente não teria que seguir necessariamente o caminho do capitalismo347.

Assim, de acordo com a interpretação de Mariátegui feita por Flores Galindo,

nenhum socialismo no Peru poderia ser construído sem se levar em conta a tradição indígena

e andina do país. Porém, isto não quer dizer que o socialismo devesse reivindicar uma volta

ao passado, ser uma leitura romântica da sociedade como fez Varcácel e outros indigenistas.

Na realidade, a tradição deveria ser renovada por novas necessidades e objetivos futuros,

mesclada com elementos próprios do mundo ocidental. Algo semelhante à esta síntese feita

por Flores Galindo sobre a apropriação da tradição em Mariátegui, pode ser encontrada na

própria obra do Amauta, quando afirma que a tradição: “ao contrário do que desejam os

tradicionalistas, é viva e móvel. Criam-na os que a negam para renová-la e enriquecê-la.

Matam-na os que a querem morta, fixa, prolongação de um passado num presente sem força,

para incorporar a ela seu espírito e para meter nela o seu sangue”348.

Para Flores Galindo, o grande diferencial de Mariátegui foi mesclar

criativamente referências típicas de escritores modernistas às discussões próprias do

indigenismo peruano e do socialismo heterodoxo europeu, realizando, sem maiores

dificuldades, uma aproximação entre Nietzsche, Freud, Marx, Sorel e Varcárcel. Ao mesmo

tempo em que se apresentou como um intelectual preocupado em compreender o socialismo

como uma tarefa coletiva, resultante da fusão do pensamento ocidental e das tradições

andinas.

347 Ibid. p. 43. 348 MARIATEGUI, José Carlos. Mariátegui Total... Op. Cit. nota 68, p. 324.

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Neste sentido, o socialismo segundo os preceitos de Mariátegui, ao mesmo

tempo em que promoveria o encontro e renovaria a cultura andina não poderia ser imposto,

como a vontade de um grupo sobre o outro. O socialismo deveria ser uma tarefa coletiva, algo

que fosse acolhido pelas massas como uma espécie de crença. Um projeto revolucionário não

deveria ser pautado na sobreposição de uma elite sobre outra. Como escreveu Flores Galindo,

recorrendo a Mariátegui a validade do marxismo somente pode ser testemunhada pelas massas porque, de certa forma, o critério de verdade por excelência é a capacidade para mobilizar as multidões. O marxismo é uma fé, sem se confundir evidentemente “... a fé fictícia, intelectual, pragmática dos que encontram seu equilíbrio nos dogmas e na ordem antiga, com aquela fé apaixonada, arriscada, heróica dos que combatem perigosamente pela vitória de uma ordem nova”349.

Portanto, segundo a interpretação de Mariátegui feita por Flores Galindo, o

socialismo deveria ser construído de baixo para cima, conscientizando as massas, educando os

povos, transformando-o em uma esperança. Tal qual a força da fé, que conduz os homens ao

deslocamento massivo nas procissões, assim deveria ser o socialismo350. Entretanto, alerta

nosso autor, o socialismo não poderia se colocar como uma religião, fundamentada no dogma,

mas como uma paixão coletiva que promovesse a crença de que algo próprio de sua história e

tradição poderiam se converter em um novo futuro possível. Transformar o velho em novo

conforme pleiteou Mariátegui. Como explica posteriormente Flores Galindo, o socialismo não só requer idéias; também – e quem sabe antes – paixões coletivas. Nenhum projeto socialista pode prescindir da história de um país. O êxito do marxismo para impulsionar revoluções vitoriosas está radicado em sua capacidade de aliar-se com as tradições nacionais. Mariátegui entendeu assim e por isso pensou no encontro entre socialismo e indigenismo351.

Nesse sentido, para Flores Galindo, nenhum projeto resultaria de uma leitura

de Mariátegui se não seguisse essas duas orientações: o socialismo como fruto do encontro

entre ocidente e mundo andino, e como uma fé, uma paixão coletiva, uma idéia amplamente

compartilhada. No entanto, há um grande problema com o qual nosso autor se depara:

Mariátegui morreu sem desenvolver uma estratégia de ação para a implementação do

socialismo no Peru. Mariátegui não produziu um livro que apresentasse um programa de ação 349 FLORES GALINDO, Alberto. La Agonia de Mariátegui... Op. Cit. nota 87, p. 14. 350 Em 1984, na revista 30Dias/Socialismo, em sua edição de número 5, Flores Galindo escreveu um artigo intitulado Marxismo y Religión: para situar Mariátegui. Trata-se de uma resenha sobre o livro Eugenio Chang-Rodriguez, Poética e Ideologia em José Carlos Mariátegui, publicado em Madri no ano de 1983. Nesta resenha, Flores Galindo destacou: “a atitude religiosa de Mariátegui, herdada de sua juventude, transformada mas não perdida no adulto, o preservou de qualquer tentação dogmática. É uma das chaves em sua trajetória e se articula precisamente com a forma que ele escolheu para expressar suas idéias, suas paixões: o ensaio”. 351 FLORES GALINDO, Alberto. La Utopía Andina: esperanza... Op. Cit. 108, p. 252.

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ou um manual de como colocar em prática esta simbiose socialista. Mariátegui não produziu

um Que Fazer?352.

Por conta disso, a conclusão de Flores Galindo sobre a necessidade de se

construir uma nova visão de Mariátegui, resultou em sua concepção de que o autor dos Sete

ensaios não deveria ser tomado como um modelo, mas sim como um método. A retomada de

Mariátegui não deveria, portanto, ocorrer para descobrir a proposta não anunciada, mas sim,

delimitar quais eram os elementos fundamentais que um projeto socialista deveria ter para se

efetivar um programa de ação. A melhor forma de se continuar a obra de Mariátegui não era

copiando-o, mas, sim, superando-o: O mariateguismo é mais um desafio para a esquerda do que um sólido sustento ideológico [...] porque não ficou como uma teoria – tampouco era o propósito de seu fundador – senão o início de um longo caminho ou como uma atitude que se definia pela tentativa de articular socialismo e nação. [...] Não necessitamos de tantos comentaristas dos Sete Ensaios, como pessoas que os repensem e reescrevam em função de um país que mais de cinqüenta anos depois sofreu transformações decisivas. [...] As anotações anteriores podem parecer irreverentes, porém definitivamente convidam a assumir a mesma atitude que Mariátegui e membros de sua geração tiveram frente a Manuel González Prada: morto em 1918, era a figura intelectual e política mais importante dos novecentos, cujo radicalismo sempre congregou a juventude; de qualquer maneira, jovens como Haya ou Mariátegui, Sánchez ou Basadre não tentaram repetir sua obra, nem se sentiram intimidados por sua sombra, mas sim tentaram ir mais adiante para remontá-la353.

Superar Mariátegui era a melhor forma de ser tributário a sua obra. E

desenvolver estratégias para sua superação era o desafio da esquerda peruana, no início da

década de 1980. Ao invés de se discutir sobre qual Mariátegui seguir ou tomar para si o posto

de herdeiro legítimo do Amauta, os partidos deveriam, a partir dele, elaborar algo novo capaz

de se apresentar como uma tarefa coletiva, como uma paixão mobilizadora nascida da

releitura das tradições andinas.

De certa maneira, Flores Galindo acreditou que na década de 1970 um

movimento havia conseguido realizar essa tarefa. Havia nascido no Peru um grupo católico

capaz de trabalhar a conscientização política dos andinos que viviam nas barriadas e nas

comunidades andinas da Serra. Uma filosofia capaz de transformar política em fé: a Teologia

da Libertação. Como o marxismo proposto por Mariátegui, esta nova ação católica conseguiu

“ser universal (vê-se por suas inúmeras traduções), buscando com muito afã raízes numa

352 Fazemos referência ao livro de Vladimir Lênin que sintetiza o programa de ação bolchevique. 353 FLORES GALINDO, Alberto. La Agonía de Mariátegui. La polémica com la Komintern. In: FLORES GALINDO, Alberto. Obras Completas. Tomo II... Op. Cit. Nota 344, p. 591.

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tradição cultural, na qual o seu autor queria se inserir, dedicando o seu livro a José Maria

Arguedas e tomando como epígrafe uma passagem de Todas Las Sangres”354.

Para Flores Galindo, a Teologia da Libertação se apresentaria como o passo

além de Mariátegui, uma vez que possuía as prerrogativas básicas de um socialismo

mariateguista: uma obra capaz de dar religiosidade ao socialismo peruano sem negar suas

tradições andinas. Teologia da Libertação de Gustavo Gutiérrez seria tão importante que,

conforme ressaltou Flores Galindo, “desde Mariátegui não se havia produzido uma tentativa

similar de se interrogar o mundo ocidental. É uma obra de envergadura e uma amplitude de

horizontes indiscutíveis”355.

De acordo com Flores Galindo, o surgimento da Teologia da Libertação no

Peru foi possível pelo fato de que, ao contrário do que ocorreu com a Europa no século XVIII,

o socialismo peruano não era sinônimo de ateísmo ou anti-clericalismo. Mariátegui era um

exemplo disso, de alguém que defendeu a política como uma atividade não profana. Por isso,

“assim como esta tradição produziu um marxismo diferente do europeu, também abriu as

possibilidades para pensar de uma maneira própria ao cristianismo. Aqui está a razão de ser –

a parte do impacto da pobreza – da teologia da libertação”.

Neste sentido, Flores Galindo imaginou que Gustavo Gutiérrez e a Teologia da

Libertação poderiam ter sido para Roma o mesmo que o socialismo de Mariátegui foi para a

Internacional comunista na década de 1920. Além disso, a sua universalidade (coletividade), o

seu trabalho de formação em comunidades de base, a sua perspectiva religiosa, tudo isso

conferia-lhe uma prática capaz de se converter no mito de nosso tempo.

Entretanto, ao evoluir e ganhar corpo, a Teologia da Libertação acabou

encontrando um inimigo: o mundo privado. Não questionou a sociabilidade das famílias e a

vida cotidiana fiscalizada pelo mundo católico. Não levou as reivindicações para as missas,

para o mundo privado. Restringiu-se ao questionamento dos valores externos e da vida

pública, do inimigo estrangeiro, bem como a crítica ao capitalismo americano. Não discutiu a

religiosidade popular e recuou diante do catolicismo dogmático, sendo que, “curiosamente,

mais do que ninguém, impediu que se prolongasse a reflexão que iniciou Mariátegui”356.

Ainda que o autor deixe claro sua insatisfação com os caminhos tomados pela

Teologia da Libertação na década de 1980, não podemos deixar de estabelecer algumas

reflexões em torno de sua simpatia inicial. Como vimos anteriormente, entre o final da década

354 FLORES GALINDO, Alberto. Generación del 68... Op. Cit. nota 114, p. 109. 355 Ibidem. 356 Ibid. p. 113.

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de 1970 e 1980, Flores Galindo se aproximou da Pastoral Andina trabalhando ativamente em

suas publicações e em seus cursos de formação. Esta aproximação pode ter ocorrido

efetivamente como resultado de sua interpretação do pensamento de Mariátegui em torno do

mito. No entanto, isso não quer dizer que haja aí uma concepção mariateguista de socialismo

e religião. Não podemos concordar com a idéia de que Mariátegui teria visto no catolicismo a

força capaz de nutrir uma religiosidade ao socialismo.

O interessante é que o próprio Flores Galindo tratou de afastar a possibilidade

de uma interpretação da religiosidade elaborada por Mariátegui em associação à Igreja. Ainda

que tenha observado a infância católica de Mariátegui, a ausência de um anticlericalismo em

seu pensamento e o fascínio que possuía pela procissão do Senhor dos Milagres, Flores

Galindo foi taxativo ao afirmar que o termo religião não é necessariamente sinônimo de catolicismo. Ainda não se reparou a influência que sobre Mariátegui teve o pastor presbiteriano John Mackay, a quem encomendou a educação de seus filhos. Entusiasmado pela heresia como elemento indispensável para se renovar o dogma, não olhava com demasiada simpatia para uma instituição hierárquica e autoritária357.

É bem verdade que a Teologia da Libertação se apropriou de terminologias

próprias do socialismo latino-americano, como a idéia de solidariedade, da mesma forma que

possuiu referências claras aos socialistas peruanos, como Arguedas e Mariátegui. No entanto,

ela ainda continuou a defender uma concepção clara de cristianismo, representada pelo

catolicismo e sua hierarquia. A sua própria concepção de justiça social se baseou no texto do

Concílio Vaticano II. Neste sentido, pensar o socialismo tendo o catolicismo como força

mítica é se prender a dogmas que o aproximariam de uma ortodoxia, algo que não se

sustentava em Mariátegui358.

Dessa forma, o que teria feito Flores Galindo se aproximar do catolicismo? Em

nosso entendimento, a aproximação do autor à Pastoral e a Teologia da Libertação, remete-se

a sua própria visão de socialismo. De certa maneira, a concepção de socialismo em Flores

Galindo possui traços do catolicismo à medida que se apresenta como uma esperança pelo fim

do sofrimento dos explorados. Assemelha-se a uma forma de redenção cristã dos pecados,

357 FLORES GALINDO, Alberto. Marxismo y Religión: para situar a Mariátegui. In: ___________. Obras Completas. Tomo VI. Lima: SUR, 2007, p. 101. Originalmente publicado em: 30 Días, ano 1, n. 5, 1984, p. 24-25. 358 Alfonso Ibañez também faz essa observação. Ao comentar La Agonía de Mariátegui, escreveu: “[...] conceber o marxismo como a religião de nosso tempo. Não, claro está, igual a uma igreja com seus dogmas e hierarquias, que o assemelharia ao comunismo oficial e ortodoxo”. In: IBAÑEZ, Alfonso. La Agonía de Mariátegui. In: Márgenes. Ano IV, n. 8, Lima, 1991, p. 148.

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182

como “o fim da ordem e não a sua inversão” ou “o fim da exploração e não do explorador”359.

Daí a sua afinidade com a Teologia da Libertação que, de uma forma ou de outra, ressaltou a

necessidade de se defender o oprimido, vítima do desenvolvimento capitalista.

De outra maneira, fazendo um exercício que Flores Galindo gostava de realizar

com os personagens que analisava, ainda que tenha se declarado ateu, podemos dizer que a

sua aproximação à Teologia da Libertação, representa o reflexo de referenciais psicológicos

impostos por sua formação católica no Colégio La Salle, sua simpatia pela Democracia Cristã

ainda na adolescência360, seu longo vínculo com a Universidade Católica e o trabalho nas

pastorais. Talvez, isso seja por demasiado subjetivo, mas para quem concebeu a história como

forma de se enfrentar o inconsciente, não seria impossível imaginar tais relações.

De qualquer forma, da mesma maneira que a Teologia da Libertação não

conseguiu transpor o dilema deixado por Mariátegui, os partidos da nova esquerda tampouco

o fizeram. Flores Galindo tinha convicção de que o socialismo não poderia ser autoritário,

como propunha o Sendero Luminoso e, também, não poderia ser construído somente pela

democracia burguesa, como almejava a Esquerda Unida. Por isso, ao avançar a década de

1980, este desafio continuava em aberto. Era preciso encontrar outro caminho que

completasse as prerrogativas levantadas por Mariátegui. Como vimos, é desta necessidade que

surge o projeto da utopia andina.

Praticamente, ao final da confecção de La Agonía de Mariátegui, Flores

Galindo passou a dedicar seus estudos à utopia andina. Entre 1980 e 1986, artigos sobre as

sublevações camponesas, ocorridas ao longo da história peruana, apareceram com mais

freqüência. Mais precisamente, em 1981, os primeiros artigos sobre a utopia andina ganharam

forma. É importante lembrarmos que, desde o início, a utopia andina se apresentou como uma

criação sobre um passado inca idealizado, que foi amplamente compartilhada por vários

setores da sociedade, em diferentes momentos históricos. Ao mesmo tempo, apesar de surgir

num contexto pós-hispânico, reunia vários elementos da tradição e da cultura andina em seu

arcabouço de referenciais.

Esta busca por estabelecer um nexo aos movimentos camponeses como prova

de existência de uma utopia, que mobilizou multidões por um ideal, não foi em vão. Na

história da utopia andina, Flores Galindo imaginou ter encontrado o elemento que conseguiria 359 Esta perspectiva também é sugerida por Gonzalo Portocarrero ao afirmar: “a intransigente denúncia da injustiça, a solidariedade com os de abaixo, tinha em Flores Galindo uma profunda raiz cristã”. Ver: PORTOCARRERO, Gonzalo. La Hazaña de Alberto… Op. Cit. nota 111, p. 21. 360 Eduardo Cáceres nos informa que a aproximação de Flores Galindo à política na adolescência ocorreu, primeiramente, com sua simpatia pela DC e, em seguida por sua filiação ao MIR. Ver: CÁCERES, Eduardo. Introducción... Op. Cit. nota 21.

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183

concretizar a reivindicação inacabada de Mariátegui: tornar o socialismo uma paixão coletiva,

uma fé, e, ao mesmo tempo, fundi-lo às tradições andinas. Para ele, a utopia andina era um

elemento capaz de conferir ao socialismo uma vinculação com o passado, sem negar a

modernidade e sua história. Conforme anunciou em seu livro Buscando un Inca: o desafio consiste em imaginar um modelo de desenvolvimento que não implique na postergação do campo e na ruína dos camponeses, ao contrário, permita conservar a pluralidade cultural. Recorrer às técnicas tradicionais, aos conhecimentos astronômicos, ao uso da água... Populismo? Romantismo? Não se trata de transpor as sociedades do passado ao presente. Sem negar as rodovias, os antibióticos e os tratores, trata-se de pensar um modelo de desenvolvimento desde nossas demandas e que não sacrifique inutilmente as gerações. O mito que reivindicava Mariátegui361.

A utopia andina era o elemento que faltava para impulsionar o socialismo

como algo que se abastecesse das tradições andinas peruanas: “O mito que reivindicava

Mariátegui”. Assim, a utopia andina traria as noções que haviam faltado no pensamento de

Mariátegui para resolver a questão de um socialismo genuinamente peruano. Enquanto

superação do pensamento inacabado, a utopia andina apresentada no livro Buscando un Inca,

tentaria se converter no “Oitavo Ensaio” jamais escrito pelo autor dos Sete Ensaios de

Interpretação da Realidade Peruana.

É muito importante que estabeleçamos vínculos efetivos entre La Agonía de

Mariátegui e Buscando un Inca. Como dissemos anteriormente, Buscando un Inca acabou por

representar um balanço de toda trajetória intelectual de Flores Galindo e, por isso, é possível

encontrar relações com todas as suas outras obras. Mas, no caso daquele livro em específico,

existem algumas idéias que fundamentaram o conceito de utopia andina e que já estavam

presentes nele. Por exemplo, a construção de uma linha cronológica que permitisse mapear

momentos em que a busca por um mito indígena, a busca por um Inca, se concretizou: Estas rebeliões formavam parte de um amplo ciclo iniciado desde o século XVI, na resistência nativista da conquista, prolongado posteriormente na revolução de Túpac Amaru: a mesma esperança messiânica recorre durante séculos à história andina, mostrando que ali existe uma tradição viva e diferente do hispanismo fomentado pelos intelectuais conservadores362.

Trata-se praticamente do mesmo roteiro que foi seguido por nosso autor em seu

livro de 1986. Uma utopia que tem início no século XVI, passa por Túpac Amaru e se

apresenta como um elemento vivo até os dias de hoje demonstrando que o rosto do verdadeiro

Peru não é um rosto criollo. Além disso, desde La Agonía de Mariátegui, Flores Galindo

361 FLORES GALINDO, Alberto. Buscando un Inca... Op. Cit. nota 27, p. 373. 362 FLORES GALINDO, Alberto. La Agonía de Mariátegui... Op. Cit. nota 87, p. 47.

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defendia a visão de que o mito que buscava Mariátegui era efetivamente uma “Utopia – com

maiúsculas [...]”363.

De certa forma, Fernando Iwasaki já havia apontado a existência desta

continuidade entre Mariátegui e Flores Galindo, ao afirmar que Buscando un Inca havia

“chegado onde o Amauta não pôde”. Com isso estamos de acordo. Porém discordamos da

idéia de Iwasaki de que o projeto socialista que surgiria da leitura de Buscando un Inca

representaria uma utopia impositiva. Não acreditamos que um socialismo que reivindique a

necessidade de se construir enquanto um mito, empreendido como uma tarefa coletiva, possa

ser rotulado de impositivo.

Da mesma forma, não concordamos com Iwasaki a respeito da interpretação de

que este socialismo seria uma negação à modernidade e um elogio ao mundo arcaico. Está

bem claro em Flores Galindo que o socialismo nasceria de uma fusão entre Ocidente e mundo

andino. Ocorre que, assim como em Mariátegui, para Flores Galindo, Ocidente não é

sinônimo exclusivamente de capitalismo; Ocidente também pode ser projetualmente

socialismo. Da mesma forma que buscar as tradições andinas não é o mesmo que revivê-las,

mas sim dar um novo sentido a elas. Como deixou claro: É evidente que não se trata de imaginar que o passado é sempre charmoso. Só quem não teve o risco de conviver com a febre tifóide pode lamentar a chegada de estradas e a implantação de um posto médico em povoados. Abandonando qualquer simplismo, podemos nos perguntar o que podem dizer para o presente e para o futuro do país as concepções que se resumem na tradição da utopia andina364.    

Frente a essas prerrogativas, quais concepções da tradição erguida pela utopia

andina podem servir para um modelo futuro de país e que se apresente como saída para o

presente? Esta é a pergunta que norteia o socialismo proposto em Buscando un Inca. A

formulação de um projeto capaz de resolver os dilemas deixados em abertos no livro La

Agonía de Mariátegui. Não apenas como uma retomada de Mariátegui, mas como uma

superação. Por isso entendemos que Flores Galindo não se apresentou como mais um

interprete dos Sete ensaios, mas alguém que teria proposto um oitavo ensaio para dar

continuidade à discussão de um socialismo peruano.

Nesse sentido, esses dois livros marcam dois momentos da tentativa de se

construir um socialismo tributário a Mariátegui. No primeiro livro, Flores Galindo encontra

em Mariátegui o método, as prerrogativas necessárias que deveriam possuir um socialismo

363 Ibid. p. 54. 364 FLORES GALINDO, Alberto. Buscando un Inca... Op. Cit. Nota 27, p. 371-372.

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peruano. No segundo, por sua vez, trata de definir as bases para ele, trata de superá-lo,

produzir um oitavo ensaio de interpretação da realidade peruana que demonstrasse uma

possibilidade para se fundir tradição e socialismo. Porém, em seu pensamento não existe uma

terceira etapa, que seria a concretização deste projeto. Tampouco temos subsídios para

afirmar se Flores Galindo daria continuidade ao projeto socialista se tivesse mais tempo de

vida. Apesar disso, é possível afirmar que buscar um socialismo genuinamente peruano foi

um objetivo perseguido por ele. Os estudos sobre José Maria Arguedas nos dão bons indícios

disso.

4.2 El Perú hirviente de estos días365 Logo após encerrar a versão básica de Buscando un Inca, Flores Galindo

iniciou um trabalho de pesquisa sobre a vida de José Maria Arguedas366, importante novelista

peruano que viveu de 1911 a 1969, quando então cometeu suicídio. A investigação em torno

deste personagem possuía uma motivação diferente das demais, uma vez que Flores Galindo

via na trajetória de vida de Arguedas a síntese da história do Peru do século XX. Como

escreveu Cecília Rivera sobre a importância dada por Flores Galindo a Arguedas: “a biografia

de J. M. Arguedas condensava a história social e cultural mais relevante do presente século.

Compreendê-la seria aproximar-se dos homens e mulheres que hoje se debatem em uma nova

encruzilhada”367.

Compreender a história de Arguedas era, portanto, o mesmo que se aproximar

dos peruanos que sofriam com os reflexos da crise econômica da década de 1980, os ataques

do Sendero Luminoso e a falência do modelo progressista de Estado. Em suma, se aproximar

dos milhões de peruanos que viviam no Peru fervilhante daqueles dias. Para Flores Galindo, [...] Arguedas é um desses personagens excepcionais que em sua trajetória lingüística e sua tarefa como escritor condensou as tensões e preocupações de uma sociedade. [...] Arguedas é para o Peru do século XX um escritor similar ao que pode ser Flaubert para a França do s. XIX, Dostoievsky para a Rússia desse mesmo século, ou Musil para a Viena de começo do s. XX. Deve ser considerado com um escritor e, ao mesmo tempo, como um homem, não somente nos termos de sua biografia, senão nos termos da sociedade da qual faz parte 368.

365 Trata-se de uma conhecida frase de Arguedas. Para nós, fica sua relação com nossa hipótese de que Flores Galindo viu em Arguedas uma forma de compreender e solucionar os problemas daquele Peru fervilhante da década de 1980. Como veremos, nosso autor pensava que Arguedas era a chave que faltava para unir o socialismo à utopia andina. 366 Cf. RIVERA, Cecíla. Presentación. In: FLORES GALINDO, Alberto. Dos Ensayos Sobre José Maria Arguedas. Lima: SUR, 1992, p. 4. 367 Ibid. p. 3. 368 FLORES GALINDO, Alberto. Dos Ensayos Sobre José Maria Arguedas. Lima: SUR, 1992, p. 10-11.

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Mas, por que Arguedas seria este personagem capaz de sintetizar a realidade

dos peruanos e a história do século XX peruano? O que, segundo nosso autor, fazia de

Arguedas uma pessoa diferente de tantos outros ícones nacionais que poderiam encarnar a

imagem do Peru?

Por conta de seu falecimento em 1990, as pesquisas desenvolvidas sobre

Arguedas ficaram inconclusas e, conseqüentemente, de suas primeiras apreciações à obra do

romancista não surgiu nenhum livro que claramente demonstrasse suas teorias a este respeito.

No entanto, a partir de 1986, Flores Galindo realizou algumas conferências que adiantavam

alguns pontos de sua pesquisa, bem como suas principais hipóteses. Essas apresentações

foram convertidas em dois ensaios (Arguedas y la Utopía Andina e Los últimos años de

Arguedas: intelectuales, sociedad e identidade en el Perú), publicados postumamente pela

SUR em um livreto intitulado Dos ensayos sobre José María Arguedas. Além disso, algumas

interpretações sobre o romancista já estiveram presentes em Buscando un Inca.

Nesses trabalhos, Flores Galindo nos apresentou alguns dos procedimentos de

análise necessários para a aproximação de seu objeto de estudo. Segundo apontava, Arguedas

deveria ser estudado em sua totalidade e não apenas por seus romances, seus trabalhos

antropológicos ou sua biografia. Todos esses aspectos da vida e produção de Arguedas

ajudavam Flores Galindo a se aproximar, de uma forma ou de outra, da história do Peru.

Porém, somente com a observação conjunta de todos eles poderia ser possível atingir a

totalidade da história do Peru do século XX.

No que diz respeito aos trabalhos literários, Flores Galindo entendia existir em

seus romances três níveis principais de aproximação com a história peruana, que seriam: 1) as

rebeliões camponesas no século XX; 2) as transformações sociais do Peru; e 3) o movimento

de expansão do capitalismo naquele país.

No primeiro nível, Flores Galindo observou uma associação entre as obras de

Arguedas e os levantes camponeses que eclodiram a partir da década de 1960. Segundo esta

comparação, Los Ríos Profundos de 1958, praticamente anunciou o que viria com o Hugo

Blanco em La Convención, em 1962. De outra forma, quase que de maneira concomitante

teriam ocorrido a rebelião de La Convención e a criação do livro Todas las Sangres, que foi

publicada em 1964369. Esta última obra, como não poderia deixar de ser, “termina com a

esperança de uma grande rebelião nos Andes”.

369 Neste período, desenvolveu-se uma intensa correspondência entre Arguedas e Hugo Blanco.

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187

No segundo nível, estaria a relação existente entre o desenvolvimento da

história social peruana no século XX e os temas abordados em algumas de suas principais

novelas. Os livros seriam a representação das transformações demográficas vividas pelo Peru,

ao longo do século XX. Por isso, de sua primeira novela ao último romance concluído, o

cenário deixa o mundo andino em direção à costa: Sua obra muda de cenário desde o pequeno povoado até uma capital de província. O cenário do vilarejo de distrito é Agua, e da capital de província é Yawar Fiesta. Daí a uma capital de departamento, o Abancay de Los Ríos Profundos, para finalmente ter como cenário a todo o Peru em Todas Las Sangres. Nesta última novela o cenário vai da serra a Lima, das classes populares às classes altas370

Tal como ocorreu com o Peru a partir da década de 1950, com a mudança da

configuração geográfica do país representado pela urbanização e o ininterrupto fluxo

migratório, sua obra deixaria o pequeno vilarejo povoado por mistis e indígenas, para chegar à

capital Lima e todos os sangues que a compunham.

O terceiro e último nível se aplica na leitura que sua obra permite realizar sobre

o avanço do capitalismo e o resultante desencantamento do mundo andino, como efeito da

modernização empreendida na serra, ao longo do século XX. Para Flores Galindo, neste

século o capitalismo teria promovido um encontro entre o mundo ocidental e o mundo andino,

cujos reflexos foram similares ao que houve no século XVI. Por conta disso, a necessidade de

uniformização dos povos, típica do capitalismo, provocaria transformações nas diversas

culturas que compõem o universo andino. Isto estaria presente na obra literária de Arguedas,

representada pelo pessimismo em torno do futuro das tradições andinas, fadadas ao

desaparecimento.

Se buscássemos uma leitura do Peru e de sua história por meio dos romances

de Arguedas, chegaríamos à visão de um país cindido, tanto pelo conflito entre mistis e índios,

quanto pelo embate entre Serra e Costa. Um Peru onde a cultura andina estava fadada ao

desaparecimento, provocado pelo capitalismo uniformizador. Contra este diagnóstico,

somente uma revolução, um pachacuti, seria capaz de deter essa tragédia anunciada.

Alguns autores, como Roberto Miró Quesada, entenderam que o suicídio de

Arguedas representou o ápice desta desilusão e, por isso, marcou a sentença produzida pelo

novelista de que, assim como sua vida, o mundo andino chegava ao fim. Em 1969, o ciclo de

levantes andinos iniciado com o começo da década já havia chegado ao fim sem produzir

370 FLORES GALINDO, Alberto. Dos Ensayos... Op. Cit. nota 368, p. 14.

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nenhuma vitória. A inviabilidade de uma rebelião andina era também a impossibilidade de sua

vida seguir.

Flores Galindo discordou desta hipótese, já que para ele, este pessimismo

somente era visto nas novelas de Arguedas e não na totalidade de sua produção intelectual. Se

olhássemos para suas obras acadêmicas encontraríamos indícios que refutariam esta idéia.

Assim surge o segundo Arguedas: o antropólogo. Os trabalhos etnológicos tiveram resultados

alentadores sobre as possibilidades de estabilidade da cultura andina mesmo com a expansão

do capitalismo.

Na serra central, Arguedas havia encontrado um Peru diferente, capaz de se

apropriar das técnicas do mundo ocidental para utilizá-las segundo suas próprias

necessidades. No vale de Mantaro, teria se deparado com o modelo por excelência do

encontro entre tradição e modernidade. Foi lá que “encontrou um camponês mestiço que

falava quéchua e espanhol, que se vestia de maneira peculiar e que não falava com um tom

suplicante dos pongos do sul do país”371.

Havia encontrado uma estratégia de permanência das tradições andinas por

meio dos mitos e das lendas transmitidas oralmente ou representadas em festas e teatros. Em

suas pesquisas sobre Chimbote, avaliou o impacto das migrações e do encontro entre serra e

costa para a formação de um novo rosto nacional: o mestiço. Trata-se de um Arguedas

esperançoso. Como observa Flores Galindo, “o Arguedas antropólogo é o homem que

descobriu mitos, que descobriu outras versões do ‘Inkarri’, que fez traduções do quéchua ao

espanhol, por exemplo, dos relatos de Ávila”372.

Se procurássemos em seus trabalhos acadêmicos uma leitura do Peru e de sua

história, nos depararíamos com um país em transformação, ou melhor, em construção.

Veríamos um encontro positivo entre Serra e Costa, personificado na figura do mestiço.

Perspectiva bem diferente da versão exposta por seus romances.

Enquanto em suas novelas, o mestiço era este sujeito perdido entre um mundo

formado por brancos e indígenas, em seus trabalhos etnológicos ele se apresentou como a

esperança de uma identidade futura. Para Flores Galindo, Arguedas, na realidade, são dois

autores em uma só pessoa: “Qualquer um poderia contrapor seus textos sobre o vale de

Mantaro com as páginas de Los Ríos Profundos”373.

371 Ibid. p. 20. 372 Ibid. p. 28. 373 Ibid. p. 20.

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189

Apesar da boa aceitação de suas novelas e de sua atuação como professor

universitário, Arguedas nunca teve uma anuência integral por parte da academia, nem por seu

trabalho científico e tampouco por suas obras literárias. Estas tinham o sucesso de público,

“[...] mas nunca foi um escritor valorizado pela crítica oficial e culta do país”374. Aparece

assim, a terceira faceta de Arguedas a ser considerara: sua biografia.

A vida de Arguedas apresentada por Flores Galindo nos mostra o retrato de um

mestiço, filho de advogado, que percorria as vilas em busca de “causas”, a fim de conseguir

dinheiro para manter a humilde vida que possuíam. Uma criança atormentada pela morte

prematura da mãe e com uma difícil relação com a madrasta. Em sua juventude mudou-se

para Lima onde se envolveu com os movimentos populares, conheceu o socialismo,

Mariátegui e sua revista Amauta. Por conta de sua orientação socialista, foi preso em 1937 e

encarcerado por alguns meses na prisão de El Sexto junto com outros apristas e comunistas.

Nesta época, já havia se formado pela Universidade de San Marcos e publicado seu primeiro

livro Agua, de 1935. Nas décadas seguintes, apareceriam outros livros de igual ou maior

importância como Yawar Fiesta (1941), Los Ríos Profundos (1958), El Sexto (1961) e

finalmente sua obra mais importante, Todas las Sangres (1964). Porém, ao longo de sua vida

produziria outros documentos que também se converteriam em um legado: suas cartas e

diários.

Tratava-se de um andino que chegou jovem à cidade, onde se educou a fim de

inserir-se na sociedade limenha como alguém capaz de dialogar com aquela intelectualidade

oriunda das classes aristocráticas do país. Como ressalta Flores Galindo, Arguedas “quer ser

aceito pelo mundo culto e erudito, ele quer fazer uma novela que tenha tanto êxito quanto

aquelas de boom”375. Porém não foi isso o que ocorreu. A repulsa do mundo acadêmico ficaria

resumida em um evento especial: a mesa redonda promovida pelo IEP para discutir Todas las

Sangres.

Com Todas las Sangres, Arguedas acreditava ter captado a verdadeira imagem

do Peru. Em um trabalho que tem como pano de fundo todo o país, todas as classes e “todos

os sangues”, Arguedas acreditava ter produzido um discurso que abarcava todas as

características da identidade nacional. O problema é que, para seus interlocutores, mesmo

tendo um cenário amplo, a imagem constituída por Arguedas era uma versão da identidade

nacional vista a partir dos Andes: a visão de um indigenista. Por isso, no debate promovido

pelo IEP, ao ser comentado por autores como Aníbal Quijano, François Bourricaud e Henri

374 Ibid. p. 5. 375 Ibid. p. 27.

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Favre, Arguedas viu a sua interpretação ser completamente desconsiderada376. Segundo

afirmavam, a imagem construída por Arguedas correspondia a um Peru que somente existia

em suas memórias do mundo andino da década de 1920 e, por isso, não se enquadravam na

realidade do Peru da década de 1960. O país daquela época já assimilava os impactos

concretos das migrações rotulados, pelas próprias ciências sociais vinculadas ao IEP, como

um processo de cholificação. Como reconhece Flores Galindo, O erro era duplo. O erro do novelista que não refletia a realidade – claro está que um novelista tenha que refletir a realidade. O erro maior era do etnólogo, do antropólogo, que não havia dado conta das transformações que outros etnólogos e antropólogos, como Favre, Bourricaud ou Quijano, sim haviam advertido ao Peru377.

Se o Peru, não era aquele que aparecia em Todas las Sangres, o que era o Peru?

É neste momento em que Arguedas colocou em prática seu último trabalho. Mudou-se para

Chimbote onde realizou entrevistas e observações sobre o imaginário andino, construído

como reflexo das migrações serra-costa. Percebeu que a cidade se convertera em lugar de

encontro entre várias referências serranas diferentes, mas também das mesmas com o mundo

ocidental, resultando em algo realmente novo. Neste ambiente social e empolgado por um

Peru que não conhecia, se pôs a escrever seu último livro Los zorros de arriba y los zorros de

abajo. Por isso, Flores Galindo dizia que “os ‘zorros’ foi primeiro uma investigação

antropológica, uma investigação sobre o fenômeno da migração”378.

Zorros foi uma obra interrompida pelo suicídio de Arguedas e não chegou ao

seu último capítulo. Mais uma vez, tratava-se de uma obra inacabada, o que nos remete a um

breve comentário. Ironicamente, os personagens da história de um socialismo fomentado pela

utopia andina possuem algo em comum: trajetórias inacabadas. Essa semelhança deixa

sempre espaço para livres interpretações, mitificações e apropriações379.

Por conta disso, existem muitas interpretações a respeito do que seriam os

zorros de arriba e os zorros de abajo. A mais comum foi a de que os zorros de arriba eram

os ricos, espanhóis, poderosos e representantes da civilização. Os zorros de abajo eram os

pobres, quéchuas, sem poder e representantes da tradição. Nesta novela, esses dois zorros

(raposas) acabariam por se encontrar e se constituir em um só. Flores Galindo concorda com 376 O resultado das discussões realizadas nesta mesa redonda foram posteriormente publicadas no livro ¿Hemos vivido en vano? Mesa Redonda sobre Todas las Sangres. Lima, IEP, 1985. 377 FLORES GALINDO, Alberto. Dos Ensayos... Op. Cit. nota 368, p. 23. 378 Ibid. p. 24. 379 Na década de 1990, o PUM (Partido Unificado Mariateguista) publicou um livro em cuja capa aparecem em cada ponta Túpac Amaru II, Cesar Vallejo, José Maria Arguedas e Alberto Flores Galindo. Ao centro está Mariátegui. De certa Forma nosso autor pode também se converter em vítima das releituras políticas sobre as idéias inacabadas. Ver anexo 3.

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191

tal interpretação, porém, viu outra explicação para a metáfora. Segundo nosso autor, esses

dois zorros poderiam ser vistos como os dois Arguedas que finalmente se encontravam neste

livro.

Neste sentido, o livro não representaria apenas o encontro dos dois Arguedas,

mas também marcaria o surgimento de um novo homem, resultado da síntese desses dois

personagens, o antropólogo e o romancista, dando um novo sentido à sua biografia. Trata-se,

portanto, do encontro entre Costa/modernidade/ciência com a Serra/tradição/mito. Esta

interpretação, elaborada por Flores Galindo, baseia-se não apenas na análise do título do livro

de Arguedas, mas estende-se ao estilo de escrita utilizado pelo romancista. Diferentemente

das demais obras de Arguedas que se desenvolvem em formato de romance, Zorros era um

misto de trabalho etnográfico, com romance e realidade. No corpo do texto, não se encontra

apenas ficção, mas também trechos de diários e observações antropológicas sobre a cidade de

Chimbote. Para Flores Galindo, Zorros coloca-nos diante de “um novo discurso” que se

“constituirá no produto mais original de nossa atual literatura”: [...] o andino penetrava em uma forma ocidental, o conto ou a novela, transformava uma linguajem anquilosada e terminava fundando uma obra radicalmente original, mistura de ficção, testemunho pessoal e ensaio, condensada magistralmente em Los zorros de arriba y los zorros de abajo. Um novo discurso380.

Zorros personifica não apenas o novo Arguedas, mas como é inevitável pensar

em sua função explicativa da história nacional, é também o novo Peru. Esta nova nação,

somente pôde surgir após a negação do modelo dual que propunham seus romances, mas,

sobretudo, por conta das expectativas que o antropólogo possuía sobre Chimbote: um lugar

onde o resultado do encontro entre serra e costa era algo extremamente novo, diferente do que

ocorria em Lima e as segregações promovidas pelos resquícios do mundo colonial e da

estrutura aristocrática. Como comenta Flores Galindo, uma imensa e gigantesca barriada na qual se podia encontrar gentes de todas as partes do Peru, todos os sotaques possíveis do quéchua, todas as formas de comportamento, todos os hábitos possíveis. Porém, onde estava surgindo algo novo. Algo que já não era a reprodução das categorias e das formas de vida que os migrantes haviam deixado em seus lugares de origem381.

Assim, no lugar da dualidade que marcavam Agua, Rios Profundos e Todas las

Sangres, surgia um país diverso e múltiplo, como Chimbote. Um universo onde, apesar da

existência do capitalismo e das indústrias, o mundo ocidental não uniformizou o indígena,

380 FLORES GALINDO, Alberto. Buscando un Inca… Op. Cit. nota 27, p. 314. 381 FLORES GALINDO, Alberto. Dos Ensayos... Op. Cit. nota 368, p. 26.

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192

mas, permitiu-lhe manifestar a sua pluralidade382. Chimbote não representa somente o

encontro entre o ocidental e o tradicional, como Arguedas já havia notado no vale de Mantaro,

mas também entre a Costa e a Serra, por isso era diferente. Da mesma maneira que Chimbote

rompeu a imagem do país dual, nos romances de Arguedas, o mesmo se verifica em Zorros. O

livro no qual Arguedas se libertaria de suas múltiplas facetas e se converteria em um único

autor que ao invés de ser cindido, seria plural.

Era esta imagem de nação que Flores Galindo apresentou como necessária em

Buscando un Inca. Um país que consegue se livrar dos fantasmas de uma alma dupla e

conflituosa que o atormenta, em busca de uma identidade coletiva para o futuro. Por isso que,

somente com a proposição da utopia socialista, em Buscando un Inca, foi que Flores Galindo

pôde, enfim, se dedicar a estudar Arguedas383. Arguedas somente se torna um personagem

possível de ser estudado a partir do momento em que, para Flores Galindo, a interpretação de

uma nação a se construir convergiu com a idéia de um país plural, existente em Zorros. Assim

como Zorros, a utopia socialista seria o resultado do encontro entre os dois mundos, entre os

dois Arguedas, um mundo mítico (romancista) racionalizado pela ciência (antropólogo).

Zorros - ou o encontro entre os dois Arguedas - se assemelha à idéia final de Buscando un

Inca, que preconizava a necessidade de prover planos e estratégias às paixões. Neste sentido,

assim como Buscando un Inca guarda relações diretas com La Agonía de Mariátegui, o

trabalho sobre Arguedas também o possuía.

O estudo de Flores Galindo sobre José Maria Arguedas pretendia compreender

como aconteceria este encontro inacabado entre os dois Arguedas e, portanto, como seriam

rompidas as barreiras que separavam os dois zorros. No pensamento de Flores Galindo, unir o

Arguedas, que parte da serra para a costa e lá se desencontra consigo mesmo, com o Arguedas

que vem do ocidente, fascinado pelo mundo andino, é a solução para fundir marxismo à

tradição andina ou o socialismo à utopia andina. Descobrir o inacabado em Zorros, seria o

mesmo que transformar a utopia socialista em um projeto de socialismo para o Peru.

Algo muito significativo no texto de Flores Galindo sustenta essa nossa

afirmação. Para ele, em concordância com outro analista da vida de Arguedas, Martin

Lienhard, a continuação de Zorros não seria realizada em forma literária, mas sim de maneira

política. Argumenta nosso autor: “por isso creio que Lienhard tem razão quando diz: ‘A

continuação do zorro não poderia ser literária, mas sim política: o fará o leitor coletivo que 382 Cf. Ibid. p. 43. 383 Segundo Cecília Rivera, durante uma conversa em seu escritório em Lima na PUCP, a idéia de se estudar Arguedas já existia desde meados da década de 1970. No entanto, Flores Galindo somente a desenvolveu uma década mais tarde.

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193

cresce pouco a pouco, ao longo da novela, para converter-se ao final, miticamente, no ator da

história’”384.

Assim como os estilos se confundem, romance e antropologia se mesclam,

Zorros também promove o encontro da história com a literatura e mais do que isso: do leitor

do romance com o ator da história. Não apenas da história narrada, mas da história vivida. O

encontro dos dois zorros saltaria das páginas de Arguedas para se converter em uma resposta

ao mundo real, dada pelo leitor coletivo. Dessa forma, a dualidade abriria espaço ao mundo

plural. Reside em Arguedas o Peru do futuro.

Esta percepção ganha maior força quando questionamos alguns aspectos

importantes da biografia que Flores Galindo construiu de Arguedas e, por conta disso,

devemos nos questionar: quem é o Arguedas apresentado por Flores Galindo? Arguedas foi

um mestiço que saiu da serra em busca de melhores condições de vida na capital. Foi o andino

que na cidade se educou, recebeu instrução, conseguiu uma profissão e se inseriu

economicamente no mundo ocidental, mas sem se identificar culturalmente com ele. Portanto,

Arguedas não difere da descrição do cholo de Anibal Quijano que apresentamos no primeiro

capítulo.

Assim como tantos outros cholos, não recebeu o aval da sociedade limenha, da

tradição do criollo, para se inserir em seu cotidiano. A sua reprovação por parte da academia,

representada pelo episódio do IEP, deixa isso muito evidente. Sem metáforas, isto é o mesmo

que ocorre com aqueles mestiços descritos em Buscando un Inca: um sujeito sem uma

identidade constituída, que, por isso, não possui um espaço social claramente definido e,

como resultado de sua realidade, alimenta uma “raiva secular” por sua condição. Como

resultado dessa falta de “um lugar” definido, assim como tantos outros, voltou seu olhar para

os Andes em busca de encontrar uma identidade para si, uma imagem que o trazia

recordações de um passado mitificado ou de mitologias restauradoras de uma tradição que,

cada dia mais se perdia. Neste movimento, se amargurou e expôs a sua tristeza e raiva em

forma de novelas385.

É importante ressaltarmos que, ainda que esta visão mitológica do mundo

andino se expresse em suas novelas, quem realiza esse movimento de olhar para os Andes é o

indivíduo Arguedas, independente de ser novelista ou antropólogo. Referimo-nos à pessoa

que foi rechaçada pelo meio acadêmico e que havia escolhido desenvolver uma carreira que

384 FLORES GALINDO, Alberto. Dos Ensayos... Op. Cit. nota 368, p. 32. 385 Enquanto os mestiços de Buscando un Inca dão vazão a este sentimento recorrendo à sua memória coletiva, ou seja, pela utopia andina, Arguedas, também em uma dimensão imaginária, a extravasa em seus romances.

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194

não se concretizou completamente. Nesse sentido, o que difere Arguedas de tantos outros

cholos que passaram a compor a sociedade limenha, a partir da década de 1950, é que ele

interpretou e deu vazão a esse conflito “secularmente constituído”. Não apenas os seus

romances e pesquisas são prova disso, mas também seus diários e suas correspondências.

Não podemos nos esquecer de sua carta dirigida a John Murra. Nela, Arguedas

descreve Chimbote como o verdadeiro Peru. Era uma cidade igual Lima, com 40 barriadas,

onde 70% da população tinha origem andina, mas que, diferentemente da capital, não possuía

a tradicional aristocracia criolla, fato que permitia a aproximação de costeiros e andinos por

canais menos doloridos do que em Lima. Talvez ele soubesse melhor do que ninguém quais

são os “canais doloridos que realizam a aproximação entre costeiros e andinos” na capital,

como aparece em sua carta.

Dessa forma, entendemos que Flores Galindo, ao buscar em Arguedas uma

solução para o Peru, não o fez apenas para realizar o encontro dos personagens figurados por

Arguedas: o romancista e o etnólogo. De certa maneira, estudar Arguedas era resolver o

problema de sua identidade pessoal que se confundia com a própria problemática da

identidade nacional.

Porém, ao contrário de Arguedas, que escreveu seu último e inacabado

romance em Chimbote, Buscando un Inca foi produzido em uma máquina de escrever, no

escritório de Flores Galindo no Instituto de Apoyo Agrário, localizado em Lima. Na capital, o

encontro entre os dois países que compunham o Peru não produziu o mesmo efeito verificado

por Arguedas na cidade pesqueira. O conflito entre as duas partes deste país cindido se

agravava ainda mais diante da crise econômica da década de 1980 e encontrava a sua

personificação na capital peruana. Ainda que, as barriadas não parassem de crescer e o

universo andino estivesse presente no cotidiano limenho, estas camadas eram postas cada vez

mais à margem da sociedade formal, das relações trabalhistas e da legalidade do Estado.

Pensar o problema de Lima e as novas demandas trazidas pela migração,

levaram setores da elite a amedrontarem-se diante dos “invasores”, mas também à

desenvolverem projetos políticos que visavam resolver estes conflitos, não por meio de

projetos municipais, mas sim pela elaboração de planos nacionais386. A Carretera Marginal,

do primeiro governo de Fernando Belaúnde, apresentou-se como uma maneira de se inverter o

fluxo de migrações ou, pelo menos, amenizar a chegada das massas de camponeses em Lima.

A Reforma Agrária do General Velasco Alvarado procurava distribuir terras para as

386 Ver: SOARES, Gabriela Pellegrino. Projetos Políticos de Modernização e Reforma no Peru... Op. Cit. nota 28.

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195

comunidades coletivas dos Andes, a fim de gerar emprego para esses povoados indígenas,

sem que fossem atrás de trabalho na capital.

Por outro lado, na década de 1980, as barriadas e os trabalhadores informais

haviam sido decisivos para a eleição de Alan Garcia. No entanto, o agravamento da crise

econômica, o racismo e a falta de emprego empurraram os andinos para à margem da

sociedade, criando a imagem de dois Estados, como escreveu José Matos Mar em Desborde

Popular: o Estado Real (da massa de informais) e o Estado Oficial (das leis e do mundo

formalizado). Era este mesmo embate entre os dois universos (formal/informal) que norteou

De Soto à elaborar o modelo assumido pela direita neoliberal em seu livro El Otro Sendero.

Já o outro Sendero havia chegado à Lima, com toda sua radicalidade, sendo

convertido pelo discurso oficial em um grupo terrorista. As páginas de Historia de Mayta de

Vargas Llosa evidenciam como as bombas e os atentados senderistas já povoavam o

cotidiano dos limenhos e da aristocracia, com seus bares e restaurantes repletos de seguranças,

armados com metralhadoras, em pé diante de suas portas.

Enquanto isso, Alan Garcia apostava no caminho de expansão do Estado

anunciando estatizações e tentando se valer de seu carisma. Para reverter o caos político no

qual havia se colocado, Alain Garcia apelava para o messianismo presente na cultura política

peruana. De outro lado, autorizava o exército a avançar sobre os Andes em busca de focos

senderistas que eram constantemente confundidos com as vilas de civis inocentes, como em

Uchurucay.

Era, portanto, o Peru fevilhante daqueles dias que movia Flores Galindo a

pensar nos problemas levantados por Arguedas como forma de encontrar um nexo coletivo

para o país. O conflito entre tradição andina e ocidente era o que precisava ser superado para

o estabelecimento do socialismo enquanto utopia. A fusão dos zorros. O mestiço sem

identidade, as barriadas andinas em Lima, eram esses os problemas a serem solucionados por

nosso autor, o que faz de Arguedas um objeto perfeito de análise.

Por isso afirmamos que, em Flores Galindo, resolver o problema de identidade

do mestiço, do filho do andino que migrou para Lima, era dar conta de se criar uma identidade

capaz de abarcar a pluralidade da cultura peruana e superar os “canais dolorosos de

socialização existentes em Lima”, tendo em vista unir a aristocracia à plebe, o zorro de

arriba e o zorro de abajo. Uma identidade que se abastece do passado, mas que fosse

construída com perspectivas no futuro. Afinal, como já havia anunciado nosso autor

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196

“dominados por fantasmas é impossível enfrentar qualquer futuro. O desafio consiste em criar

novas idéias e novos mitos”387.

Lima era o obstáculo principal a ser superado, a representação cabal de um país

que insistia em se manter cindido. Superar as barreiras impostas pelas permanências coloniais,

seria o passo principal para se criar uma identidade nacional e dar ao Peru um sentido de

coesão que construísse uma nova auto-imagem de si mesmo, diferente do país uniformemente

dividido entre Serra e Costa. Nesse sentido, mais do que andina, esta utopia socialista se

apresentava como uma utopia a partir Lima, uma utopia limenha.

4.3 A Utopia limenha

No item anterior, ao mencionarmos à necessidade de se unir a aristocracia à

plebe não fizemos de maneira despropositada. Como apresentamos no primeiro capítulo,

Aristocracia y Plebe é o título de um dos trabalhos de Flores Galindo, que se insere no

contexto de convulsão social vivida na década de 1980. A intencionalidade da utilização desse

livro se dá por aquilo que ele trata: uma visão do autor sobre Lima enquanto espaço da

segregação racial, de exploração econômica, racismo e desunião.

Publicado dois anos antes de Buscando un Inca, o livro possui como objeto de

averiguação historiográfica as relações sociais produzidas em Lima entre 1760 e 1830. Nesse

sentido, aborda o período que compreende as últimas décadas do vice-reinado de Lima e os

primeiros anos da capital republicana do Peru. Apesar de seus recortes temáticos, o espaço

geográfico não se limita apenas à capital e, por isso, personagens e grupos sociais localizados

no campo e ao longo da costa também fazem parte da narrativa. Porém, o destaque maior é

dado para a análise das “classes sociais” que compunham a Lima daquele período. Como

apresenta Carlos Aguirre, “Aristocracia y Plebe buscava uma aproximação à complexa

realidade social de Lima, por meio da análise dos grupos que Flores Galindo identificava

como centrais na estrutura de classe desse tempo: a aristocracia colonial e a plebe urbana”388.

A abordagem das classes sociais apresenta os traços típicos das concepções

historiográficas de Flores Galindo, não se limitando a um tratamento marxista tradicional do

conceito de classe e, portanto, não as reconhecendo somente em virtude de sua posse ou não

dos meios de produção. Desta forma, a imagem construída sobre esta plebe está longe de

configurar-se como um bloco único, formado por despossuídos e, por isso, apresenta-se como

387 FLORES GALINDO, Alberto. Buscando un Inca... Op. Cit. nota 27, p. 374. Já utilizamos esta citação no capítulo anterior. 388AGUIRRE, Carlos. Aristocracia y Plebe… Op. Cit. nota 71, p. 27.

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197

uma estrutura heterogênea, composta por diferentes setores sociais e referenciais culturais.

Como afirma Aguirre, sua interpretação sobre essa classe, não seguiu atada ao velho esquema marxista/reducionista segundo o qual as formas de conduta das coletividades humanas derivavam de sua posição estrutural de classe: camponeses e operários, por exemplo, eram estudados como trabalhadores e grevistas, porém, quase nunca como pais de família, vizinhos, amigos ou festeiros389.

Esta concepção de classe utilizada por Flores Galindo, que já aparecia em seu

primeiro livro Los mineros de la Cerro de Pasco, permitiu-lhe compreender esta plebe dentro

de sua heterogeneidade e conflitos internos. Portanto, era formada por diferentes estratos

étnicos, econômicos e culturais da sociedade: negros, brancos, indígenas, mestiços, escravos,

ladrões, padeiros, trabalhadores temporários, camponeses, “vagabundos”, entre outros. Além

da percepção das diferenças, o que fica claro é a desunião da plebe, fato que acabou por

resultar em uma série de enfrentamentos e conflitos corporais e simbólicos internos. Quase

sempre não é o “explorador” o adversário das contendas, mas sim um membro de outro

segmento da “classe explorada”, como demonstrava o claro desacordo entre negros e

indígenas.

Para Flores Galindo, a falta de coesão fez com que os “plebeus” gastassem suas

energias lutando entre si, ao invés de se mobilizarem contra os mecanismos de dominação

estabelecidos pela aristocracia limenha e, por isso, ainda segundo Aguirre, “esta sucessão

interminável de enfrentamentos tornou virtualmente impossível a emergência de um projeto

de coesão que permitisse desafiar o poder da aristocracia colonial” 390.

Assim como a plebe, a aristocracia também não se apresentava como uma

estrutura homogênea e coesa. Ao longo dos últimos anos do vice-reinado do Peru, a elite

mercantil tentou se estabelecer legitimamente como a liderança aristocrática limenha. “É uma

aristocracia numerosa, porém jovem, sem vinculações diretas com o aparato produtivo (se

interessa marginalmente no investimento em manufatura e mineração) e que, por isso mesmo,

possui raízes fracas que a sustentam neste país [...]”391.

Ao mesmo tempo em que se organizava enquanto classe dominante, sofreu

com as constantes crises produtivas provocadas pelo fim da ordem colonial, com as reformas

bourbônicas que interferiram na lógica mercantil e com o início de um intenso ciclo de

revoltas camponesas. Esta fragmentação social e a instabilidade política, não permitiram à

389 Ibidem. 390 Ibid. 27-28. 391 FLORES GALINDO, Alberto. Aristocracia y Plebe… Op. Cit. nota 99, p. 230.

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198

aristocracia limenha se estabelecer legitimamente como classe dominante nem, tampouco,

construir elementos administrativos e sociais que garantissem o seu domínio. Por conta disso,

recorreu constantemente à construção de um discurso racista e à violência como forma de

enaltecer e garantir sua soberania. Ocorre que, o uso da força, enquanto reflexo de sua

insegurança de “classe” fragmentada e vulnerável, se converteu em um instrumento de

prevenção e não de reação aos movimentos sociais. Por isso, “a violência tinha uma função

exemplificadora: não se exercia recatadamente, em lugares reservados, longe dos curiosos. Ao

contrário: o cenário preferido era a praça principal da cidade”392. A praça, mais do que o lugar

de encontro da sociedade colonial em Lima, era o espaço próprio da plebe.

Vale ressaltar que a consciência de sua debilidade e o temor de possíveis

levantes futuros restringiu a aristocracia ao mundo privado e, em oposição, o universo público

acabou sendo dominado pela plebe. Por isso, Lima se assemelhava “[...] à cidade das grades.

Elas separavam com nitidez a aristocracia, cuja vida familiar transcorria com mais freqüência

nos cômodos interiores e salas de jantares, da plebe que invadia as praças e as ruas da cidade

[...]393”.

Para Flores Galindo, o resultado dessa relação de tumulto interno verificado

junto à plebe limenha do século XIX, bem como a ausência de uma elite capaz de atuar de

maneira protagonista, resultou na impossibilidade de uma revolução de independência, tanto

semeada entre os populares, em reação à exploração, quanto como um projeto emancipador

das elites. De outra forma, condenou a cidade a manter esta dicotomia flagrante entre o

mundo da aristocracia e a segregação da plebe. Esta organização aristocrática da cidade de

Lima apenas começaria a cair com o crescimento do processo de migração iniciado em 1946,

data da formação da primeira barriada em Lima, a Cerro Sán Cosme.

No entanto, a cholificação de Lima, o transbordamento popular visto na década

de 1980 e a superação das estruturas aristocráticas ainda não eram suficientes para abolir o

racismo e a segregação social nem, tampouco, criar um sentido de coletividade entre a classe

dominada que vivia nas barriadas da cidade Lima. É questionando esta realidade que Flores

Galindo encerra seu livro. Como se realizasse a seguinte pergunta: se o espaço da revolução

não foi possível àquela época, agora que superamos as estruturas coloniais, por que ela

também não se realiza?

De acordo com o último parágrafo da obra,

392 Ibid. p. 149. 393 Ibid. p. 79.

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199

Em certa maneira, o argumento deste livro poderia resumir-se negativamente. As circunstâncias que explicam por que não teve lugar uma revolução. A imbricação entre situação colonial, exploração econômica e segregação étnica edificaram uma sociedade, ainda que soe paradoxo, tão violenta como estável. Em Lima não se conseguiu romper esse brutal equilíbrio que houvera permitido produzir uma revolução. [...] Desde Lima, por tudo isso, o ocaso da ordem colonial e da independência, na memória coletiva, aparecem como uma oportunidade perdida. Com efeito, desapareceu a aristocracia, porém a plebe – junto com ela os camponeses do interior – persistiram em sua condição. Para utilizar uma imagem do século passado: o mundo seguiu direito e ainda continuamos imaginando como colocá-lo ao revés. Um desafio onde o passado se confunde com o futuro, ainda esperando um desenlace diferente394.

Esta conclusão o acompanhou durante os anos que separam este livro de

Buscando un Inca. Para superar a segregação da “sociedade sem alternativas” de Aristocracia

y Plebe, somente um grande mito agregador: uma paixão coletiva. Algo que fosse capaz de

unir as pessoas, da mesma forma que a utopia andina o fez durante tantos séculos. Como nos

aponta Gonzalo Portocarrero, Flores Galindo “na linha de Mariátegui e Arguedas, identificou

no andino o elemento agregador da nova nacionalidade”395.

Devemos recordar que, para Flores Galindo, andino não é aquele que vive nos

Andes. Andino é aquele de origem andina. É o camponês, mas também o seu filho nascido na

cidade, não é apenas o homem do campo, mas os setores urbanos e mestiços, da costa e da

serra. Nesse sentido, a utopia andina também se aplica à costa. Mais do que uma revolução

para ou vinda dos Andes, é o desejo de uma nova nação que se nutre de elementos andinos

espalhados pelo país. Afinal, os andinos, segundo este conceito, já se configuravam como a

maioria da população e estavam distribuídos por várias cidades da serra e da costa. Em Lima,

nas barriadas, eram cerca de 80% da população.

Apesar de se constituírem como maioria nas barriadas de Lima, os andinos

ainda estavam relegados ao espaço marginal da capital. Não podemos nos esquecer que, em

Buscando un Inca, Flores Galindo afirmou que, ao longo dos tempos, Lima foi, por

excelência, o palco do racismo e da anti-utopia. Dessa forma, construir uma utopia que fosse

capaz de reunir elementos da tradição andina à cultura ocidental era uma maneira de se

encontrar as chaves que abririam as portas de conexão entre esses dois mundos tão

nitidamente separados na capital peruana. Representa, portanto, uma forma de encontrar um

elemento de coesão capaz de reunir aristocracia e plebe, assim como promover a revolução

que, no século XIX, não teve espaço.

Neste ponto, podemos nos questionar: o que separa a Lima dos séculos XVIII e

XIX apresentada em Aristocracia y Plebe e a Lima vivida por nosso autor em seu cotidiano 394 Ibid. p. 236. 395 PORTOCARRERO, Gonzalo. La Hazaña… Op. Cit. nota 111, p. 22.

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da década de 1980? Assim como aquela, a aristocracia se restringia ao mundo privado e ao

mundo das instituições oficiais, enquanto a plebe continuava marginalizada nas barriadas e

dominando o espaço público, o mundo informal. Por outro lado, a aristocracia se via acuada

pelos ataques senderistas e, por isso, recorria à violência como forma de assegurar sua

condição aristocrática e garantir a permanência do status quo. É uma classe dominante que,

assim como aquela do passado, também por conta das constantes crises econômicas, não

conseguia se estabelecer enquanto hegemônica e fazer valer o seu discurso de poder, ou

mesmo o seu projeto de nação.

O mesmo ocorre com relação à plebe que se fragmentava devido aos vários

referenciais culturais vindos de seus lugares de origem, cuja quantidade ultrapassava o

número de cinco mil comunidades indígenas diferentes. Da mesma forma, não aceitam esta

visão de mundo andino proposta pelo Sendero e, por isso, se constituirá em força de apoio ao

exército. Nos Andes, o Sendero terá que enfrentar mistis e comunidades indígenas, além das

forças do Exército Nacional. Tratava-se de uma plebe que, assim como aquela do passado, via

os verdadeiros inimigos nos segmentos de sua estrutura e não na própria aristocracia.

Neste sentido, para Lima, a utopia andina, tal qual se apresentou ao longo dos

séculos, não conseguiria ser aplicada. Enquanto discurso restaurador do Império Inca, não

traria a conformação necessária para uma cidade tão heterogênea. Ser andino, por mais que

pareça uma relação quase que óbvia para quem está de longe, não é o mesmo que ser incaico.

O passado andino não é o passado incaico. Ainda que a sociedade Inca tenha se nutrido de

uma série de elementos de outros povos andinos como os Chavín, Huari e Tiahuanacos, não

houve durante o Império Inca a construção de um ethos andino396. Este é um dos elementos

destacados em Buscando un Inca e que se constituiu, segundo Vargas Llosa, como uma das

maiores contribuições do livro.

Da mesma forma, seria equivocada a compreensão da existência de uma

tipificação do andino como algo inalterado no tempo, como alguém que continuasse a viver

segundo os mesmos referenciais de 500 anos. Por isso, Flores Galindo procurou enfatizar: “a

idéia de um homem andino inalterável no tempo e com uma totalidade harmônica de traços

396 Esta é uma visão do nosso autor. No entanto, sabemos que existe uma séria discussão em torno deste tema que, por várias vezes, chega a resultados e conclusões confusas. O artigo El Mundo Andino: Unidad y Particularismos de Carmen Bernand é um claro exemplo disso. Ainda que a autora diga ser possível estabelecer a existência de um ethos andino num passado imediato à chegada dos espanhóis, se contradiz em suas próprias conclusões. Ver: BERNAND, Carmen. El Mundo Andino: Unidad y Particularismos. In: BERNAND, Carmen (comp). Descubrimiento, Conquista y Colonización de América a Quinientos Años. México: Consejo Nacional para la Cultura y las Artes/Fondo de Cultura Económica, 1994.

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201

comuns expressa, então, a história imaginada ou desejada, porém não a realidade de um

mundo demasiado fragmentado”397.

Assim, a volta ao Império Inca era algo que pretendia restaurar uma identidade

comum aos andinos que nunca existiu, a não ser na própria utopia andina. Os migrantes

andinos em Lima e em outras cidades da costa como Trujillo e Chimbote não eram todos de

origem incaica (quéchua). Tinham como referência os diversos povoados andinos, com

tradições, deuses, costumes e línguas diferentes. Desta forma, ainda que a imagem do Império

Inca como uma sociedade perfeita seja algo amplamente difundido e compartilhado, a idéia

do regresso do Inca não é algo que provoque um contentamento coletivo, afinal o Inca já foi o

dominador e já representou a sobreposição de uma etnia sobre as demais.

Por isso, a utopia andina não deveria se apresentar como o retorno do Inca,

cujo resultado seria, mais uma vez, segregacionista. A sociedade limenha, como a

representação cabal do encontro dos diversos países que constituíam o Peru, após quatro

décadas de constantes migrações, era demasiadamente heterogênea para absorver um ícone

que remetesse a um único povo.

Nesse sentido, ao contrário do que previamente supõe o título de sua obra,

definitivamente o autor não estava buscando um Inca. O autor estava atrás de um elemento

próprio da tradição andina que se apresentasse enquanto uma fé, uma paixão coletiva. Seria

essa paixão coletiva capaz de transformar o socialismo - este sim o elemento agregador - em

uma idéia passível de ser difundida coletivamente entre as massas. Deveria ser, como

Mariátegui propôs, a utilização do velho para se criar o novo. O novo seria o resultado da

junção entre o mundo ocidental e as tradições andinas. Dos Andes viria o sentido utópico; do

Ocidente - alegoricamente Lima -, o socialismo. Como o encontro entre os dois Arguedas, o

romancista (andino e mítico) e o antropólogo (urbano e científico).

A fusão do socialismo à utopia andina era uma forma de criar uma identidade

que respeitasse a heterogeneidade da sociedade limenha e peruana como um todo. Identidade

nutrida por um passado, mas com olhos para o futuro. Esta interpretação era originária da

leitura de uma sociedade não realizada. Uma leitura que concebeu que, mesmo superando as

barreiras coloniais, não foi possível transformar o cholo em cidadão. Por isso é uma utopia a

partir de Lima, uma utopia limenha, uma vez que buscava criar uma identidade capaz de

romper com os “canais doloridos que realizam a aproximação entre costeiros e andinos em

Lima”, como afirmou Arguedas.

397 FLORES GALINDO, Alberto. Buscando un Inca... Op. Cit. nota 27, p. 21.

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202

Porém, por meio dela, tratava-se de pensar os problemas nacionais. Desta

maneira, ela é também uma forma de propor a reflexão sobre como deveria ocorrer a inserção

daquele andino - que ainda não migrou e permanece junto à sua comunidade - ao mundo

ocidental. Uma concepção de mundo que faça a sua integração ao Peru de outra maneira que

não seja por meio da lógica cruel do capitalismo. Essas são prerrogativas do nosso autor,

apresentadas em um artigo intitulado Las sociedades andinas: pasado y futuro, de 1986: [...] deveria se pensar na possibilidade ou em um modelo de desenvolvimento no qual os homens andinos continuem possuindo um papel importante e decisivo nessas sociedades. Isto significa pensar em um modelo de desenvolvimento no qual os camponeses possuam um papel vertebral, onde desenvolvimento não seja necessariamente sinônimo de capitalismo ou modernização. [...] Talvez essas reflexões careçam de um tipo de dimensão utópica para pensar esses problemas, quero dizer, não pensar esses problemas somente para descrevê-los, para ver unicamente qual é a tendência inevitável com a qual temos que nos acomodar, mas sim pensarmos os problemas desde uma ótica mais valorativa. A forma mais adequada de abordar esses temas é efetivamente introduzindo critérios valorativos, perguntando-nos por saídas que sejam radicalmente diferentes. Não nos convertendo necessariamente em seguidores do progresso e da modernização no Peru, sobretudo quando progresso e modernização em uma sociedade como a andina, pelo menos desde o século XVI, foram sinônimos de agressão e deterioração dessas sociedades398.

Este modelo de desenvolvimento, construído por meio de uma dimensão

utópica, resulta naquilo que chamamos de utopia socialista. Esta, por sua vez, se apresentava

como a proposta de uma sociedade que rompesse com a fragmentação e o conflito resultante

do encontro entre costa e serra, personificado em Lima, além de promover a inserção do

camponês que permaneceu nos Andes. Diante da impossibilidade de se encontrar uma herança

comum localizada no passado, restava olhar para o futuro. Esta identidade seria encontrada

como forma de se identificar um futuro comum: o socialismo.

É preciso também considerar que, como no primeiro capítulo, entre 1986 e

1988, o Peru atingiu a marca de mais de 7000% de inflação ao ano. As marchas de

trabalhadores na capital estavam de volta às ruas. O Sendero já chegava à marca de mais de

8.500 ataques somente na cidade de Lima. A direita limenha já possuía um novo líder (Mario

Vargas Llosa) e pretendia construir uma coesão, um único discurso conduzido pela

FREDEMO. Enquanto isso, a Esquerda (des)Unida se enfraquecia e não conseguia apresentar

uma alternativa a um país convulsionado e a uma cidade alvo da raiva que vinha dos Andes.

398 FLORES GALINDO, Alberto. Las sociedades andinas: pasado y futuro. In: FLORES GALINDO, Alberto. Tiempo de Plagas… Op. Cit. Nota 187, p. 177-178. Originalmente publicado em: Estrategias para el desarollo de la sierra. Centro de Estudios Andinos Bartolomé de las Casas, 1986.

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203

Por conta disso, não podemos desvincular a leitura de Buscando un Inca do seu

contexto de produção, principalmente porque o seu autor foi um historiador que reiteradas

vezes anunciou: “a história é uma construção do passado em função das demandas de uma

sociedade”399. Um intelectual que determinou como espaço de atuação de sua geração

intelectual às fábricas e às barriadas de Lima. Um homem da política que viu nos mestiços

ignorados da cidade a parcela a quem perguntar se a utopia era possível400. Um historiador

que estudou intensamente o século XVIII, pois “o interessava, especialmente, compreender o

funcionamento da sociedade limenha”401. Deste modo, é mais do que razoável afirmarmos

que este socialismo fomentado pela utopia andina aparece como uma forma de se propor uma

identidade para uma Lima transfigurada pela presença maciça do migrante402.

Ainda que o migrante, assim claramente identificado, não possua um papel

fundamental em Buscando un Inca, ele foi um dos principais temas de discussão de Flores

Galindo em seus últimos anos de vida. É sobre este tema que irá discutir com Carlos Iván

Degregori e, sobretudo, com Hernando de Soto ao comentar o livro El otro Sendero de 1986.

Em um artigo de 1988, sugestivamente intitulado de Los caballos de los conquistadores,

outra vez, Flores Galindo questionou a visão de Soto à respeito do papel dos informais na

sociedade limenha.

Como abordamos no primeiro capítulo, assim como Desborde Popular de José

Matos Mar, El otro sendero estava preocupado em discutir a questão da falência do modelo

de Estado e a necessidade de se diminuir a informalidade, incorporando-a à dinâmica oficial

do mundo do capital. Para de Soto, o migrante, maioria absoluta entre os trabalhadores

informais, poderia se converter na exemplificação do que se consagrou chamar de self made

man. Uma vez inseridos na lógica do mercado e deixando para trás o seu passado tradicional,

se apresentariam como fomento ao impulso econômico do país. Enquanto migrante,

valorizou-se os esforços individuais que o levaram a abandonar uma realidade de pobreza em

busca de melhores condições de vida, apostando nesta imagem para a construção de um

modelo econômico exitoso.

399 FLORES GALINDO, Alberto. La Utopía Andina: esperanza… Op. Cit. nota 108, p. 253. 400 MARTOS, Marco. La Utopía Andina en Debate. Op. Cit. Nota 334. 401 PORTOCARRERO, Gonzalo. La Hazaña de... Op. Cit. nota 116, p. 20. 402 Gonzalo Portocarrero afirmou que: “para ele [Flores Galindo], a utopia andina tinha que vir dos mesmos camponeses e seus descendentes. Sua transformação em uma retórica vinda do Estado desnaturalizava sua capacidade convocatória. A nação deveria se construir desde baixo. Até o fim de sua vida desenvolveu o tema de quem são os verdadeiros e continuadores da utopia andina. A esquerda legal, o radicalismo do Sendero Luminoso ou esses migrantes que começavam a ser o centro demográfico do Peru?”. PORTOCARRERO, Gonzalo. La Hazaña… Op. Cit. nota 111, p. 22.

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204

Não podemos nos esquecer que, na década de 1980, El otro sendero foi

identificado como a personificação da proposta neoliberal, sobre a qual grupos, como

FREDEMO, alicerçaram o projeto da candidatura de Mario Vargas Llosa à presidência da

República, em 1990. Trata-se de uma visão que projetava um Peru livre da burocracia estatal

e com menos rédeas econômicas, permitindo, assim, o desenvolvimento de um capitalismo

pautado na livre iniciativa e no mundo privado. Um projeto capaz de promover a “civilização”

do andino por meio de sua inserção na lógica do mercado. Algo muito diferente do que era

oferecido pela APRA de Alan García e, também, daquilo que almejava Flores Galindo.

Justamente por isso nosso autor elaborou o artigo que critica o livro de Soto. A

questão central de seu texto é a leitura produzida em El Otro Sendero à respeito dos

informais. Para Flores Galindo, uma análise sobre o trabalho informal em Lima deve superar

os limites estatísticos e econômicos do impacto da migração. Em uma cidade marcada pelo

racismo, palco da anti-utopia, a condição étnica de um migrante deve ser o elemento

primordial de uma análise. Por isso, não se trata tão somente de migrantes, mas, sobretudo,

migrantes mestiços. Os informais não são somente migrantes. São também, como sabe qualquer um que caminhe por Lima, em sua maioria mestiços e devem suportar o menosprezo racial cotidiano e as travas da mobilidade que existem em uma sociedade onde as classes sociais, em especial as dominantes, recorreram a critérios étnicos para distinguir ricos e pobres. [...] Porém esses conflitos são omitidos porque para Hernando de Soto interessa propor justamente um terreno de encontro entre dominantes e dominados: todos são empresários403.

Na leitura de Flores Galindo, o tema dos informais não é somente uma

problemática econômica, mas, antes de tudo, reflexo de uma condição cultural. A dualidade

entre formalidade e informalidade ganha traços dramáticos na década de 1980 não apenas por

conta do agravamento da crise, mas, também, por robustecer o sentimento racista de uma

cidade que, ao longo de sua história, produziu a segregação de grupos sociais. Podemos dizer

que a formalidade era o novo nome da aristocracia, bem como e a informalidade representava

a plebe. Também é a representação da falta de um espaço identitário definido para o mestiço.

Discutir a informalidade de Lima na década de 1980 era, portanto, uma forma de se discutir

por que nela não houve espaço para a utopia andina e, sendo por isso “entre os ignorados da

cidade o lugar para se perguntar se a utopia era possível”.

403 FLORES GALINDO, Alberto. Los caballos de los conquistadores, outra vez. In: _________. Tiempos de Plagas. Op. Cit. nota 187, p. 201-202.

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205

De outra maneira, Flores Galindo defendia que, ainda que gerasse uma cidade

caótica, os movimentos migratórios não possuíam um fluxo tão desordenado como teria

interpretado De Soto. As relações de continuidade entre migrantes e suas comunidades de

origem, produziam a formação de “clubes de convivência” que já articulavam cerca de 50%

da totalidade dos migrantes residentes em Lima. Esta realidade demonstraria que não se

tratavam de homens movidos tão somente pelo esforço individual, mas de maneira contrária,

que apostavam na força de “respostas coletivas” para a solução de seus problemas. Por isso, o

trabalho de Hernando de Soto, poderia ser entendido como “um livro ideológico sim, em que

os dados somente corroboram as idéias elaboradas de antemão”404.

A solução dos problemas de Lima, referentes ao encontro conflituoso entre

Serra e Costa, provocados pelas migrações, são também abordadas em outro artigo intitulado

Lima: crónica de un deterioro de 1985. Neste texto dedicado a comentar o livro Memoria y

utopía de la vieja Lima, de César Pacheco Vélez, e sentenciadas por nosso autor da seguinte

forma: É difícil que em uma cidade como esta, os provincianos e os migrantes se sintam acolhidos e integrados: se vem obrigados a congregarem entre eles, a buscar nas zonas marginais lugares de reunião, para formar instituições que os agrupem, como antes fizeram os negros ou índios em suas confrarias. Obrigados a viver na defensiva, não se sentem necessariamente convocados a preservar uma cidade que não identificam como sua. [...] ao meu modo de ver, Lima não é o resultado da mestiçagem e do encontro harmônico das tradições, porém isso não significa negar que no futuro possam ser um instrumento cabal para que o país se reencontre consigo mesmo405.

Assim como na crítica a De Soto, neste artigo, Flores Galindo aposta na

validade de projetos coletivos como força capaz de gerar coesão. Da mesma forma, recorre

àquela imagem da Lima de Aristocracia y Plebe, onde a plebe se dividia em blocos sem

comunicação. Neste sentido, a superação de qualquer dualidade (mundo informal/mundo

formal, Costa/Serra, criollo/indígena) passa, sem dúvida, por sua reflexão em torno da

realidade observada cotidianamente na cidade de Lima. De certa maneira, ainda que se

preocupasse com um projeto nacional, Flores Galindo fazia tal análise a partir da imagem

conflituosa da cidade de Lima.

404 Ibid. p. 205. 405 FLORES GALINDO, Alberto. Lima: crónica de un deterioro. In: ________. Obras Complestas. Tomo VI. Lima: SUR, 2007, p. 169-171. Originalmente publicado em: Apuntes, n. 17, 1985, p. 126-131. O livro de César Pacheco Vélez era dedicado a estudar as transformações arquitetônicas na cidade de Lima decorrentes das mudanças provocadas pelo aumento populacional. Segundo analisava Pacheco, o centro velho de Lima estava perdendo seus principais prédios e referenciais históricos.

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No mesmo ano de publicação da última versão de Buscando un Inca, Flores

Galindo lançou uma coletânea de textos produzidos na década de 1980 que nos ajudam

compreender melhor a idéia de uma utopia a partir de Lima. Trata-se do livro Tiempo de

Plagas. O nome do livro faz referência aos anos entre 1981 e 1988, quando os artigos foram

escritos, pois representaram eles, segundo o autor, um tempo de pragas.

Na introdução deste livro, Flores Galindo discorreu sobre algumas

características do caos econômico vivido pelo Peru na década de 1980. Refletiu sobre o

pessimismo que havia em torno da crise, mas compreendeu a crise como um momento de

esperança. Retomando o pensamento de Antonio Gramsci, escreveu que a crise é o momento

quando “o velho está morrendo e o novo não pode nascer”. Daí a necessidade de se aproveitar

a crise como algo positivo. Por isso, a sua agonia em torno de se discutir um novo projeto

para o Peru, como uma oportunidade para se gestar o novo que deveria nascer.

Este novo deveria corresponder à nova realidade peruana. Uma realidade que

não era a mesma apresentada pelo discurso oficial do Estado. O Peru real, a Lima das

barriadas, divergia da imagem vendida pelo discurso oficial. Era um Peru, “como sabe

qualquer um que caminhe por Lima”, que se construiu à margem do Estado, que soube

construir novos vínculos produtivos e comerciais à margem da oficialidade. No entanto, por

não ser um Peru oficial, estava relegado à marginalidade e, conseqüentemente, à ilegalidade, à

segregação e ao racismo. Era este o contexto peruano no momento da crise. Uma crise que se

personificava e se amplificava ainda mais na cidade de Lima.

Como alertou Flores Galindo, Trata-se de aspectos de nosso país que constatamos todos os dias nas ruas. Lima é uma cidade que carece de um verdadeiro centro: um símbolo que congregue a todos, um lugar comum de encontro. As pessoas caminham pelas ruas a passos largos e ninguém se preocupa em manter limpa uma cidade que não os pertence. Os provincianos – cerca de 70% dos limenhos – invadem os jardins, as lojas, as praças... As famílias de classe média ou de classe alta se trasladam cada vez mais ao sul e aos areais, até que terminem quase que frente a frente com as barriadas formadas por migrantes mais recentes. Então os ricos optam por alarmes, sofisticados sistemas de segurança eletrônica; rodeiam-se de cachorros e guardiões, compram armas. Segundo o testemunho de um jovem morador de barriada, empregado como vendedor em uma firma, quando ele anda pelas ruas dos bairros residenciais tem a sensação de ser visto com desconfiança e quando ousa tocar a porta de uma casa, é invariavelmente um ladrão em potencial406.

O Peru convulsionado, resultante desses tempos de pragas e da crise econômica

podia ser visto, segundo o próprio autor, todos os dias nas ruas de Lima. A capital peruana

era, portanto, a representação melhor acabada da falta de uma identidade coletiva que ainda

406 FLORES GALINDO, Alberto. Tiempo de Plagas… Op. Cit. nota 187, p. 27.

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estava por se construir. Por sua vez, resolver o problema do conflito étnico de Lima, a

segregação racial e a desagregação das camadas populares, era, em última instância, resolver

o problema identitário do próprio Peru, uma vez que se encontraria uma identidade capaz de

congregar várias referências culturais em uma só. Este não é apenas o desafio de um

intelectual, seria o desafio de toda uma sociedade.

A crise poderia se converter, assim, no momento exato para se interromper o

processo de ocidentalização, diagnosticado por muitos autores das ciências sociais, como o

responsável da condenação da cultura andina ao desaparecimento. Em resposta a esse modelo

fracassado, ao “velho que estava morrendo”, dever-se-ia procurar na própria cultura andina os

referências da nova sociedade a se construir. Um projeto que deveria corresponder aos

interesses das massas ignoradas pelo Estado, da maioria desprestigiada, “confundida com

ladrões nos bairros ricos”.

A utopia andina, convertida em socialismo, representaria a chance de se

consolidar uma sociedade na qual a imagem do Peru se erguiria a partir dessa massa

segregada nas barriadas de Lima, não para torná-los a maioria dominante, mas sim para

acabar com a “marginalidade, exclusões e menosprezo de todos os dias, recobrar a dignidade,

ser tratados como pessoas, olhar e serem olhados como iguais”407.

Este socialismo deveria ser capaz de produzir em Lima o mesmo que o

comunismo realizou em Havana. Ainda que o caminho para a revolução no Peru fosse

diferente daquele tomado por Cuba, “uma vez que todo projeto revolucionário deve atender às

demandas e particularidades de sua sociedade”, os resultados verificados na capital cubana

eram muito alentadores. Em 1985, Flores Galindo fez parte de um grupo de intelectuais

convidados para ir à Havana408. Suas observações sobre Cuba foram retratadas no artigo El

socialismo a la vuelta de la esquina, de 1987. Neste texto, nosso autor descreve suas

impressões sobre a cidade, as discussões com os intelectuais da Casa de las Américas, o

modelo do socialismo implantado na ilha e a vida cotidiana dos havaneses. Porém, o que mais

o impressionou foi a sociabilidade produzida pela falta do capitalismo nas ruas da capital.

Assim nos contou, A capital do “primeiro território livre da América” não parece ficar elegante em comparação com outras cidades do capitalismo. Esta é a impressão que chegando a Havana tiveram alguns amigos europeus:

407 Ibid. p. 33. 408 Esta ida à Cuba e seus impactos no pensamento de Flores Galindo também foi comentado por Nelson Manrique, no artigo Cambiar el Mundo, Cambiar la Vida. Ver: MANRIQUE, Nelson. Cambiar el Mundo, Cambiar la Vida. In: LÓPEZ JIMÉNEZ, Sinesio (dir). Homenaje a Alberto Flores Galindo: otro mundo es posible. Libros & Artes. Lima: Biblioteca Nacional del Perú, 2005, p. 9-11.

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acreditavam confirmar uma desilusão antecipada. [...] MEU CASO foi diferente. Vindo do sul e ainda mais de uma cidade como Lima, o que mais me impressionou foi o fato de poder caminhar por Havana. Não existe esta aglomeração de gente e coisas que nos agoniam tanto no centro de Lima. Tampouco o ruído, a poluição e os engarrafamentos do trânsito409.

Em sua avaliação, Cuba não havia mudado somente o sistema econômico, mas

as próprias referências e valores culturais. Dessa maneira, caminhando por Havana, pôde

observar uma cidade onde as pessoas se tratavam de igual para igual, sem obedecer a

convenções sociais de poder ou à inferioridade cultural ou psicológica, como aquela que

existia em Lima. Da mesma forma que se deparou com a música de Silvio Rodriguez e Pablo

Milánes, os representantes mais populares de “um movimento geracional e massivo, que

abarca os jovens cantores e compositores que se reúnem todo final de semana para beber,

escutar e se fazer escutado, a compor de maneira coletiva”410. Mais uma vez, ao pensar os

impactos que o socialismo poderia produzir para o Peru, o faz tendo Lima como referência.

Tratava-se, portanto, de se encontrar um caminho para o socialismo capaz de

promover uma nova identidade para Lima e o Peru, mudando seu ritmo de vida e seus valores.

Esta proposta de criação de uma nova identidade para a sociedade peruana não está somente

em Buscando un Inca, mas, a partir dele, torna-se cada vez mais constantes em Flores

Galindo. Suas pesquisas sobre Arguedas, empreendidas após a confecção deste livro,

representam sua vontade de unir as duas imagens do Peru e acabar com o tormento

psicológico e social resultante dessa dupla personalidade. Mais do que uma simbiose de dois

homens, esta nova sociedade deveria ser como foi o Zorros de Arriba y los Zorros de Abajo:

um novo discurso. Trata-se de um discurso que represente sua utopia socialista, um

socialismo que “nem sequer existe”.

Tal compreensão o impulsionou a criar novos espaços de debates, fundou uma

revista (Márgenes), criou um selo editorial (SUR), promoveu cursos de formação política

(Universidades Libres). O Peru da crise de 1986 merecia respostas que fossem criadas

coletivamente. As discussões sobre Buscando un Inca, que apresentamos anteriormente,

demonstram como sua obra se posicionou destacadamente em um campo de debate político

que colocava frente a frente várias possibilidades para o país. Debater com todas as vias,

socialistas democráticas (IU), liberais (FREDEMO), progressistas (APRA) ou 409 FLORES GALINDO, Alberto. El socialismo a la vuelta de la esquina. In: _________. Tiempos de Plagas. Op. Cit. Nota 187, p. 216-217. Originalmente publicado em: Sí, n. 34, 1987. Em Tiempos de Plagas que é uma coletânea de textos e artigos organizadas pelo próprio Flores Galindo em 1988, coincidentemente ou não, El socialismo a la vuelta de la esquina se encontra localizado logo após o artigo sobre o livro do de Soto e o modelo de sociedade proposto pela direita neo-liberal. 410 Ibid. p. 218. Grifo nosso.

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revolucionaristas (Sendero) e, ao mesmo tempo, dar corpo e forma à sua proposta, foram as

ações que marcaram os anos de agonia de Alberto Flores Galindo.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Uma imagem positiva do Império Inca que o assemelhava a uma sociedade

justa e feliz, na qual os recursos naturais eram aproveitados de maneira sustentável e não

existia fome, é indiscutivelmente difundida entre peruanos bem como por pessoas de outras

nacionalidades que se interessam pela história dessa “civilização”411. Da mesma forma, não

podemos negar que esta interpretação do mundo incaico não corresponda à sua realidade

histórica e, por isso, trata-se de uma criação que foi difundida e compartilhada ao longo do

tempo.

Contudo, não entendemos que esta leitura superestimada do passado se

configura como uma utopia. Mesmo tendo existido movimentos políticos que buscassem

estabelecer um novo modelo social a partir de referenciais vindos da dinastia Inca, como

ocorreu com Túpac Amaru II, não se tratava de fazê-lo segundo uma leitura utópica da

realidade. A rebelião liderada por este personagem histórico possuía, também, muitos

elementos próprios da sociedade criolla, como a concepção de títulos nobiliários e a noção de

propriedade privada. Neste sentido, a menção ao Império Inca poderia aparecer tão somente

como uma forma de garantir legitimidade ao movimento, mas não, realmente, como sua

retomada.

Por isso, não concordamos que esta imagem criada do passado, verificável até

os dias de hoje, se configure como uma utopia, no sentido utilizado por Flores Galindo de “se

estabelecer uma razão ao imaginário”, tal qual uma forma de projetar uma sociedade ideal a

se atingir no futuro. Ainda que careça de maiores estudos, em nossa interpretação, o Império

Inca idealizado, se aproxima mais de um “mito compensatório”412 da sociedade peruana do

que de uma utopia propriamente dita. Diante de um passado e de um presente, marcados pela

incompletude, por diversas oportunidades perdidas e por uma série de projetos políticos

fracassados, a imagem vitoriosa do Império Inca funcionaria como uma espécie de “consolo”.

Uma maneira de se compensar o presente por meio de um mito que demonstraria o poderio e

a importância que o Peru já possuiu.                                                             411 O livro de Louis Baudin, O Império Socialista dos Incas (1938) exemplifica bem essa visão positiva em torno dos incas, até mesmo entre as ciências sociais. 412 Nossa compreensão de mito compensatório esta fundamentada na concepção apresentada por Núria Tabanera Garcia, professora da Universidade de Valencia. Segundo a autora, existe entre os autores espanhóis da virada do século XIX para o século XX, como Unamuno, uma espécie de mito compensatório em relação à América. Diante de um “presente” incerto para a Espanha, a visão mitificada do Império espanhol fora retomada como forma de compensar as incertezas daquele momento. Ver: TABANERA GARCIA, N. El horizonte americano en el imaginário español, 1898-1930. In: http://www.tau.ac.il/eial/VIII_2/garcia.htm. data de acesso 13/10/2005.

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De qualquer forma, devemos ressaltar que, entender este mito enquanto utopia

é, sem dúvida, uma maneira de torná-lo um objeto passível de se converter em projeto

político. Estabelecer uma razão para este mito significa reivindicar a permanência da

perspectiva “revolucionária” na história peruana e, portanto, pensar como os mitos e a

memória coletiva podem se converter em alternativas ao mundo real. No entanto, ao contrário

do que foi proposto por Flores Galindo, o processo de conversão do mito incaico em utopia

não foi conduzido pelos ícones elencados por ele como representantes da utopia andina. Na

realidade, foi o próprio Flores Galindo o artífice dessa conversão. Segundo Eduardo Cáceres, este caráter fortemente racional das utopias está sistematicamente ausente nos discursos que se amarram em Buscando un Inca. Se revisarmos detalhadamente a chamada Utopia Andina veremos que se trata mais de uma re-elaboração do mito do que uma racionalização do Futuro”413.

Os projetos que supostamente procuravam a restauração do incário só

adquiriram esse objetivo a partir da leitura de Flores Galindo e, de certa maneira, é a sua

perspectiva de história e de nação peruana que a utopia andina atendia. Justamente por pensar

utopicamente a sociedade peruana que Flores Galindo se destacou perante os demais

membros de sua geração. Ao apresentar um discurso utópico para a história, nosso autor

rompeu com uma tradição historiográfica que concebeu o passado nacional como um tempo

de oportunidades perdidas. No lugar desta visão ucrônica de nação e da recorrência ao

passado como forma de justificar as derrotas e incompletudes de um país, Flores Galindo

propôs uma abordagem da história que utilize o passado para apontar saídas ao presente: uma

história em prol do futuro.

Ao promover a compreensão utópica da nação peruana, que no momento

enfrentava sua maior crise econômica e uma guerra civil de extrema violência, Flores Galindo

buscou desenvolver um modelo explicativo inédito no debate historiográfico e político de

então. Por isso, sua utopia socialista apresentava-se como algo que “nem sequer existia”,

sendo uma alternativa diferente daquela democracia praticada pela Esquerda Unida e pela

direita neoliberal, mas também uma revolução oposta à utilizada pelo Sendero Luminoso. O

país sem saídas deveria encontrar suas respostas na imaginação, em uma dimensão utópica,

como forma de romper o ciclo vicioso que impregnava sua história.

Ao mesmo tempo em que buscava estabelecer uma interpretação extremamente

nova da história peruana, Flores Galindo recorria às referências costumeiras da cultura e da

esquerda peruana, como Mariátegui, o catolicismo e o mundo andino. Ainda que os visse sob                                                             413 CÁCERES, Eduardo. “No hay tal lugar”… Op. Cit. Nota 102, p. 23.

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uma nova perspectiva, Flores Galindo se utilizou dos mesmos referenciais teóricos de sua

geração e da cultura política da esquerda peruana das décadas de 1970 e 1980. Neste sentido,

acabou por referendar as bases de sua proposta transformadora, demonstrando o quanto sua

interpretação histórica estava atrelada aos elementos próprios de seu tempo.

Enquanto representante de seu tempo, suas interpretações evidenciaram as

incertezas e as preocupações inerentes à sua realidade. Essas se converteram nas razões de sua

inquietude, motivando o surgimento de um personagem atormentado pela necessidade de

construir uma teoria explicativa realmente nova para sua sociedade. No entanto, ao contrário

do que se poderia pensar, a leitura de um país fragmentado, marcado pela pobreza e violência

extrema não deram vazão a um pensamento negativo sobre o futuro, mas sim a uma

interpretação esperançosa. Como vimos, o contexto histórico e a estagnação econômica da

década de 1980 foram por ele entendidos como um momento de arrefecimento da expansão

capitalista sobre o Peru e, portanto, a oportunidade para se erguer uma nova sociedade.

Esta sociedade não poderia ser aquela idealizada pela FREDEMO, pois

representaria, mais uma vez, a adoção de um modelo ocidentalista para a inserção do andino à

modernidade. Não poderia ser o Sendero, uma vez que marcaria a cisão completa da

sociedade peruana, proliferando a dicotomia serra e costa. As saídas propostas pela Esquerda

Unida, da mesma forma, representavam a continuidade de um modelo burguês de democracia

que, ao longo de mais de um século e meio de história, não conseguiu estender a cidadania a

todo o país, tornando o andino, o cholo, uma espécie de sub-cidadão.

De certa forma, podemos afirmar que Flores Galindo se recusou a aceitar uma

saída para a crise em seu país que fosse, simplesmente, a representação da cópia e da

importação de modelos prontos vindos de fora. Rechaçou o modelo de origem anglo-

americano, que diante da crise do Estado, reivindicava a redução do aparato burocrático da

administração pública e a ampliação da participação do mercado nos destinos da sociedade.

Não podemos nos esquecer que a década de 1980 foi fortemente marcada pelas doutrinas

Reagan e Thatcher que deram início a uma nova concepção do modelo estatal.

Por outro lado, negou as propostas da esquerda legalista, cujos traços a

aproximavam mais à uma social-democracia que via o Estado como mantenedor da proteção e

da projeção social, intervindo sempre que requisitado na dinâmica do trabalho414. Quanto ao

Sendero Luminoso, não entendeu que um comunismo ao modelo chinês fosse o caminho para

                                                            414 Durante a gestão de Alfonso Barrantes (IU) na capital peruana, por exemplo, foi criado um programa de entrega de leite à membros de comunidades carentes.

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uma revolução genuinamente peruana. Isto sem considerarmos que naquela década o modelo

soviético também já mostrava claros indícios de enfraquecimento.

Este era o desafio intelectual de Flores Galindo. Esta era a sua agonia:

apresentar-se como uma alternativa ao debate travado, principalmente, por essas três correntes

políticas. Em sua proposta, o socialismo deveria ser encarado como uma tarefa coletiva a ser

desempenhada por operários, camponeses e intelectuais que conseguissem convertê-lo em um

elemento próprio da cultura peruana. Somente assim, o socialismo poderia se tornar uma

reivindicação encarnada nas massas, abandonando qualquer perspectiva impositiva. Nesta

tarefa coletiva, o trabalho publicista se misturava ao trabalho de base junto às comunidades

andinas e operárias. Esta é outra herança que Flores Galindo trazia de sua geração, o

classismo.

Para ser algo que viesse ao encontro das massas, o socialismo deveria conter

elementos que tivessem relação com a história e tradição peruanas. Desta maneira, mesmo

sendo algo realmente novo, se alimentaria daquilo que já existe, dando coesão e sustento aos

movimentos massivos, como faziam as procissões religiosas ou as manifestações folclóricas.

Talvez por isso, sua recorrência à Mariátegui, ao catolicismo e ao mundo andino, tomando-os

como elementos tradicionais da cultura e da esquerda peruana. Mais do que um referencial

teórico, Mariátegui era um elemento que representava a tradição de busca pelo socialismo

tipicamente peruano tão cara à esquerda peruana. Além disso, Mariátegui personificava a

compreensão do socialismo como um movimento de massa que se constituiria em uma

espécie de fé coletiva.

São esses elementos que fizeram de Flores Galindo um ícone de sua geração,

tornando-o referência para a compreensão da história peruana da década de 1980 e para além

dela. Buscando un Inca, mais do que um dos cinqüenta livros que todo peruano culto deve

ler, apresenta o momento da história nacional peruana no qual construir um socialismo a

partir do Peru era uma forma de buscar alternativas para a realidade de crise e violência

vividas pelo país. Ainda que não seja um programa político, que normatize regras e estabeleça

um cronograma de ação, trata-se de um projeto que estabelece quais os caminhos o Peru deve

seguir para superar a dicotomia serra-costa e assumir a pluralidade que o compõem. Uma

resposta ao modelo homegenizador capitalista que transformava todos os migrantes em

“empresários” e destinava as tradições andinas ao desaparecimento.

De outra forma, o destino das comunidades tradicionais diante do avanço da

modernidade foi outra discussão, iniciada na década de 1980, que Flores Galindo não pôde

acompanhar e que se personificou no estudo do “fenômeno da globalização” pelas ciências

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sociais. Como seria proclamado por antropólogos e sociólogos da década seguinte, a

globalização representaria a aceleração inevitável do processo de ocidentalização do mundo

contemporâneo. A partir de então, aumentaria a atenção sobre as pesquisas que questionavam

a validade do Estado-Nação e toda uma discussão em torno da identidade, da modernidade, da

pós-modernidade, entre outros temas. Da mesma maneira que não pôde observar o desenrolar

desse debate, tampouco pôde ver que, no campo da política nacional, no lugar do novo, do

inédito, o Peru recorreu à mais tradicional saída para seus problemas decorrentes do conflito

social: o autoritarismo. Assim como nos levantes da década de 1960, em 1990 o fujimorismo

apelou à força do Estado para avançar contra o Sendero e impor reformas político-econômicas

ao Peru.

Contudo não nos cabe pensar em como teria sido a história peruana “se” Flores

Galindo não tivesse morrido. Não nos valeremos da ucronia para interpretar o significado de

sua trajetória intelectual e política. Até mesmo porque, a imagem agônica deste intelectual,

que buscou na imaginação uma forma de propor um caminho diferente ao seu país, já bastaria

para se constatar que, na década de 1980, o Peru não havia produzido uma alternativa que

fosse mais viável do que aquela tantas vezes utilizada no passado415. O Peru continuaria

recorrendo ao personalismo, ao messianismo e ao autoritarismo como saídas para seus

conflitos, e, por isso permaneceria buscando um inca.

                                                            415 No século XX, dos 23 governos instaurados no Peru, 13 foram ditaduras, sendo duas civis.

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ANEXOS

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Anexo 1

Figura 1 - Foto Livraria Contra Cultura (Av. José Larco n. 986 – Miraflores – Lima Peru – Jul./2007).

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Anexo 2

Figura 2 - Panfleto Izquierda Unida

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Anexo 3

Figura 3 - Revista do Partido Unificado Mariateguista