sophia de mello breyner andersen - poemas escolhidos

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SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN

"Poemas escolhidos"

DIA DO MAR (1947)

ESPERA

Dei-te a solido do dia inteiro. Na praia deserta, brincando com a areia, No silncio que apenas quebrava a mar cheia A gritar o seu eterno insulto, Longamente esperei que o teu vulto Rompesse o nevoeiro.

MAR SONORO

Mar sonoro, mar sem fundo, mar sem fim, A tua beleza aumenta quando estamos ss E to fundo intimamente a tua voz Segue o mais secreto bailar do meu sonho, Que momentos h em que eu suponho Seres um milagre criado s para mim.

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AS ROSAS Quando noite desfolho e trinco as rosas como se prendesse entre os meus dentes Todo o luar das noites transparentes, Todo o fulgor das tardes luminosas, O vento bailador das Primaveras, A doura amarga dos poentes, E a exaltao de todas as esperas.

PROMESSA s tu a Primavera que eu esperava, A vida multiplicada e brilhante, Em que pleno e perfeito cada instante.

ALEXANDRE DA MACEDNIA A perfeio, a eternidade, a plenitude Escorriam da sagrada juventude Dos teus membros. A luz bailava em roda dos teus passos E a ardente palidez da tua divindade Ergueu-se na pureza dos espaos. Estreitamente os teus dedos Para l das vagas nsias, incertezas e segredos Prendiam os dedos da sorte. E o destino que em ns caos e luto, Era em ti verdade e harmonia Caminho puro e absoluto.

OS DEUSES Nasceram, como um fruto, da paisagem. A brisa dos jardins, a luz do mar, O branco das espumas e o luar Extasiados esto na sua imagem.

ENDYMION Por ti lutavam deuses desumanos. E eu vi-te numa praia abandonado luz, e pelos ventos destroado, E os teus membros rolaram nos oceanos.

NAVIO NAUFRAGADO Vinha dum mundo Sonoro, ntido e denso. E agora o mar o guarda no seu fundo Silencioso e suspenso. um esqueleto branco o capito, Branco como as areias, Tem duas conchas na mo Tem algas em vez de veias E uma medusa em vez de corao. E em seu redor as grutas de mil cores Tomam formas incertas quase ausentes E a cor das guas toma a cor das flores E os animais so mudos, transparentes. E os corpos espalhados nas areias Tremem passagem das sereias, As sereias leves de cabelos roxos Que tm olhos vagos e ausentes E verdes como os olhos dos videntes.

KASSANDRA Homens, barcos, batalhas e poentes No sei quem, no sei onde delirava. E o futuro vermelho transbordava Atravs das pupilas transparentes. dia de oiro sobre as Os rostos tinham almas E as aves estrangeiras As minhas mos abertas coisas quentes, que mudavam, trespassavam e presentes.

Houve instantes de fora e de verdade Era o cantar de um deus que me embalava Enchendo o cu de sol e de saudade. Mas no deteve a lei que me levava, Perdida sem saber se caminhava

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Entre os deuses ou entre a humanidade.

DIONYSOS Entre as rvores escuras e caladas O cu vermelho arde, E nascido da secreta cor da tarde Dionysos passa na poeira das estradas. A abundncia dos frutos de Setembro Habita a sua face e cada membro Tem essa perfeio vermelha e plena, Essa glria ardente e serena Que distinguia os deuses dos mortais.

RECONHECI-TE Reconheci-te logo - destruda Sem te poder olhar porque tu eras O prprio corao da minha vida E eu esperei-te em todas as esperas. Conheci-te e vivi-te em cada deus E do teu peso em mim que eu fui triste Sempre. Tu depois s me destruste Com os teus passos mais reais que os meus.

NOITE Noite de folha em folha murmurada, Branca de mil silncios, negra de astros, Com desertos de sombra e luar, dana Imperceptvel em gestos quietos.

AS IMAGENS TRANSBORDAM As imagens transbordam fugitivas E estamos nus em frente s coisas vivas Que presena jamais pode cumprir O impulso que h em ns, interminvel, De tudo ser e em cada flor florir?

GESTO Eu em tudo Te vi amanhecer Mas nenhuma presena Te cumpriu, S me ficou o gesto que subiu s mais longnquas fontes do meu ser.

EURYDICE A noite o seu manto que ela arrasta Sobre a triste poeira do meu ser Quando escuto cantar do seu morrer Em que o meu corao todo se gasta. Voam no firmamento os seus cabelos Nas suas mos a voz do mar ecoa Usa as estrelas como uma coroa E atravessa sorrindo os pesadelos. Veio com ar de algum que no existe Falava-me de tudo quanto morre E devagar no ar quebrou-se triste De ser apario gua que escorre.

MONTANHA Vi pases de pedras e de rios Onde nuvens escuras como aranhas Roem o perfil roxo das montanhas Entre poentes cor-de-rosa e frios Transbordante passei entre as imagens Excessivas das terras e dos cus Mergulhando no corpo desse deus Que se oferece, como um beijo, nas paisagens.

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PRA MINHA IMPERFEIO Pra minha imperfeio est suspenso Em cada flor da terra um tdio imenso. Todo o milagre, toda a maravilha Torna mais funda a minha solido. E todo o esplendor pra mim vo, Pois no sou perfeio nem maravilha. As flores, as manhs, o vento, o mar No podem embalar a minha vida. Imperfeita no posso comungar Na perfeio aos deuses oferecida.

DEVAGAR NO JARDIM Devagar no jardim a noite poisa E o bailado dos seus passos Liberta a minha alma dos seus laos, Como se de novo fosse criada cada coisa.

CORAL (1950)

EU CHAMEI-TE Eu chamei-te para ser a torre Que viste um dia branca ao p do mar, Chamei-te para me perder nos teus caminhos. Chamei-te para sonhar o que sonhaste. Chamei-te para no ser eu: Pedi-te que apagasses A torre que eu fui, os meus caminhos, os sonhos que sonhei

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GRFICO

ICurva dos espaos, curva das baas, Vida que no vida com os gestos inteis Quem me consolar do meu corpo sepultado? II Ela est dentro de mim na claridade Que o sol poisa no cimo das montanhas Por ela sei que vencerei a noite E todo o peso morto dos meus membros. III Mostrai-me as anmonas, as medusas e os corais Do fundo do mar. Eu nasci h um instante. IV A mulher branca que a noite traz no ventre Veio tona das guas e morreu. V Chego praia e vejo que sou eu O dia branco.

TERROR DE TE AMAR Terror de Mal de te Onde tudo Onde tudo te amar num stio to frgil como o mundo. amar neste lugar de imperfeio nos quebra e emudece nos mente e nos separa.

ASSASSINATO DE SIMONETTA VESPUCCI Homens No perfil agudo dos quartos Nos ngulos mortais da sombra com a luz. V como as espadas nascem evidentes Sem que ningum as erguesse de repente. V como os gestos se esculpem Em geometrias exactas do destino. V como os homens se tornam animais E como os animais se tornam anjos E um s irrompe e faz um lrio de si mesmo. V como pairam longamente os olhos Cheios de liquidez, cheios de mgoa Duma mulher nos seus cabelos estrangulada. E todo o quarto jaz abandonado Cheio de horror e cheio de desordem. E as portas ficam abertas, Abertas para os caminhos Por onde os homens fogem, No silncio agudo dos espaos, Nos ngulos mortais da sombra com a luz.

SIBILAS Sibilas no interior dos antros hirtos Totalmente sem amor e cegas, Alimentando o vazio como um fogo Enquanto a sombra dissolve a noite e o dia Na mesma luz de horror desencarnada. Trazer para fora o monstruoso orvalho Das noites interiores, o suor Das foras amarradas a si mesmas Quando as palavras batem contra os muros Em grandes voos cegos de aves presas E agudamente o horror de ter as asas Soa como um relgio no vazio.

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LONGE E NTIDOS Longe e ntidos caminham os caminhos Duma aventura perdida. Prxima a brisa Abre-se no ar. o azul e o verde e o fresco duma idade Morta mas que regressa Com os seus claros cavalos de cristal Que se vo esbarrar no horizonte.

MOS Cncavas de ter Longas de desejo Frescas de abandono Consumidas de espanto Inquietas de tocar e no prender

ROSTO NU Rosto nu na luz directa. Rosto suspenso, despido e permevel, Osmose lenta. Boca entreaberta como se bebesse, Cabea atenta. Rosto Rosto Rosto Rosto desfeito, sem recusa onde nada se defende, que se d na angstia do pedido, que as vozes atravessam.

Rosto derivando lentamente, Pressentimento que os laranjais segredam, Rosto abandonado e transparente Que as negras noites de amor em si recebem Longos raios de frio correm sobre o mar Em silncio ergueram-se as paisagens E eu toco a solido como uma pedra.

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Rosto perdido Que amargos ventos de secura em si sepultam E que as ondas do mar purssimas lamentam.

FINAL Mas na janela o ngulo intacto duma espera Resolve em si o dia liso.

POEMAS DE UM LIVRO DESTRUDO (INDITOS)

NO PROCURES VERDADE No procures verdade no que sabes Nem destino procures nos teus gestos Tudo quanto acontece solitrio Fora de saber fora das leis Dentro de um ritmo cego inumervel Onde nunca foi dito nenhum nome.

A MEMRIA LONGNQUA A memria longnqua de uma ptria Eterna mas perdida e no sabemos Se passado ou futuro onde a perdemos.

EURYDICE Este o trao que trao em redor do teu corpo amado e [perdido Para que cercada sejas minha Este o canto do amor em que te falo

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Para que escutando sejas minha Este o poema engano do teu rosto No qual eu busco a abolio da morte. 1946

NO TEMPO DIVIDIDO

POEMA DE AMOR DE ANTNIO E DE CLEPATRA Pelas tuas mos medi o mundo E na balana pura dos teus ombros Pesei o ouro do Sol e a palidez da Lua.

PURO ESPRITO Puro esprito de xtase e de vento Que no silncio da plancie danas Eu no quero tocar teu corpo de gua Nem quero possuir-te nem cantar-te Pesa-me j de mais a minha mgoa Sem que seja preciso procurar-te.

EURYDICE Eurydice perdida que no cheiro E nas vozes do mar procura Orpheu: Ausncia que povoa terra e cu E cobre de silncio o mundo inteiro.

Assim bebi manhs de nevoeiro E deixei de estar viva e de ser eu Em procura de um rosto que era o meu O meu rosto secreto e verdadeiro. Porm nem nas mars, nem na miragem Eu te encontrei. Erguia-se somente O rosto liso e puro da paisagem. E devagar tornei-me transparente Como morta nascida tua imagem E no mundo perdida estrilmente.

MAR NOVO

ROSTO Onde os outros puseram a mentira Ficou o testemunho do teu rosto Puro e verdadeiro como a morte Ficou o teu rosto que ningum conhece O teu desejo sempre anoitecido Ficou o ritmo exacto da m sorte E o jardim proibido.

MARINHEIRO REAL Vem do mar azul o marinheiro Vem tranquilo ritmado inteiro Perfeito como um deus, Alheio s ruas.

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BIOGRAFIA Tive amigos que morriam, outros que partiam Outros quebravam o seu rosto contra o tempo Odiei o que era fcil Procurei-me na luz, no ar, no vento.

POEMA INSPIRADO NOS PAINIS QUE JLIO RESENDE DESENHOU PARA O MONUMENTO QUE DEVIA SER CONSTRUDO EM SAGRES I Nenhuma ausncia em ti cais da partida. Movimento ritual, surdo rumor de bzios, Alegria de ir ver o xtase do mar Com suas ondas-ces, seus cavalos, Suas crinas de vento, seus colares de espuma, Seus gritos, seus perigos, seus abismos de fogo. Nenhuma ausncia em ti cais de partida. Impetuosas velas, plenitude do tempo, Euforia desdobrando os seus gestos na hora gloriosa Do Lusada que parte para o universo puro Sem nenhum peso morto, sem nenhum obscuro Prenncio de traio sob os seus passos. REGRESSO II Quem cantar vosso regresso morto Que lgrimas, que grito ho-de dizer A desiluso e o peso em vosso corpo. Portugal to cansado de morrer Ininterruptamente e devagar Enquanto o vento vivo vem do mar Quem so os vencedores desta agonia? Quem so os senhores sombrios desta noite Onde agoniza morre e se desvia A antiga linha clara e criadora Do nosso rosto voltado para o dia?

LUAR Toma-me noite em teus jardins suspensos Em teus ptios de luar e de silncio Em teus adros de vento e de vazio. Noite Bagdad debruada no teu rio

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Pas dos brilhos e do esquecimento Com teu rumor de cedros e teu lento Crculo azul do tempo.

BRISA Que mo branca na brisa se despede? Que palavra de amor A noite de Maio em si recebe e perde? Desenha-te o luar como uma esttua Que no tempo no fica Quem poder deter O instante que no pra de morrer?

NA CIDADE DA REALIDADE ENCONTRADA E AMADA Na cidade da realidade encontrada e amada Caminhei com a brisa pelas ruas Havia muros brancos e janelas pintadas As madres-silvas floriam e brilhavam Os limoeiros de folhas polidas Caiu uma folha de nespereira sobre o tanque E o tempo veio ao meu encontro confundindo Os meus gestos e os teus nos seus Eram mil e mil noites uma aps outra surgindo E o meu rosto flutuava entre a manh e a tarde E as esquinas ergueram as suas sombras azuis Ao longo de um silncio de rabe E do Abril dos campos veio um perfume inteiro de searas E quando abri a porta as estrelas surgiram Na cidade da realidade encontrada e amada O sol d lentamente a volta s praas e aos quartos Para varrer o cho e preparar a noite Que redonda azul e atenta E a porta da cidade feita de dois barcos Oh, quem dir o verde o azul e o fresco O hlito da gua e o perfume do vento V-se a manh criar uma por uma cada coisa. V-se quebrar a onda da noite transparente.

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LIVRO SEXTO

REINO Reino de medusas e gua lisa Reino de silncio luz e pedra Habitao das formas espantosas Coluna de sal e crculo de luz Medida da balana misteriosa.

BARCOS Um por um para o mar passam os barcos Passam em frente de promontrios e terraos Cortando as guas lisas como um cho E todos os deuses so de novo nomeados Para alm das runas dos seus templos

A CONQUISTA DE CACELA As praas fortes foram conquistadas Por seu poder e foram sitiadas As cidades do mar pela riqueza Porm Cacela Foi desejada s pela beleza.

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CAMINHO DA MANHA Vais pela estrada que de terra amarela e quase sem nenhuma sombra. As cigarras cantaro o silncio de bronze. tua direita ir primeiro um muro caiado que desenha a curva da estrada. Depois encontrars as figueiras transparentes e enroladas; mas os seus ramos no do nenhuma sombra. E assim irs sempre em frente com a pesada mo do Sol pousada nos teus ombros, mas conduzida por uma luz levssima e fresca. At chegares s muralhas antigas da cidade que esto em runas Passa debaixo a porta e vai pelas pequenas ruas estreitas, direitas e brancas, at encontrares em frente do mar uma grande praa quadrada e clara que tem no centro uma esttua. Segue entre as casas e o mar at ao mercado que fica depois de uma alta parede amarela. A deves parar e olhar um instante para o largo pois ali o visvel se v at ao fim. E olha bem o branco, o puro branco, o branco da cal onde a luz cai a direito. Tambm ali, entre a cidade e gua no encontrars nenhuma sombra; abriga-te por isso no sopro corrido e fresco do mar. Entra no mercado e vira tua direita e ao terceiro homem que encontrares em frente da terceira banca de pedra compra peixes. Os peixes so azuis e brilhantes escuros com malhas pretas. E o homem h-de pedir-te que vejas como as suas guelras so encarnadas e que vejas bem como o seu azul profundo e como eles cheiram, realmente, realmente a mar. Depois vers peixes pretos e vermelhos e cor-derosa e cor de prata. E vers os polvos cor de pedra e as conchas, os bzios e as espadas do mar. E a luz se tornar lquida e o prprio mar salgado e um caranguejo ir correndo sobre uma mesa de pedra. tua direita ento vers uma escada: sobe depressa mas sem tocar no velho cego que desce devagar. E ao cimo da escada est uma mulher de meia-idade com rugas finas e leves na cara. E tem ao pescoo uma medalha de ouro com o retrato do filho que morreu. Pede-lhe que te d um ramo de louro, um ramo de oregos, um ramo de salsa e um ramo de hortel. Mais adiante compra figos pretos: mas os figos no so pretos mas azuis e dentro so cor-de-rosa e de todos eles corre uma lgrima de mel. Depois vai de vendedor em vendedor e enche os teus cestos de frutos, hortalias, ervas, orvalhos e limes. Depois desce a escada, sai do mercado e caminha para o centro da cidade. Agora a vers que ao longo da parede nasceu uma serpente de sombra azul, estreita e comprida. Caminha rente s casas. Num dos teus ombros pousar a mo da sombra, no outro a mo do Sol. Caminha at encontrares uma igreja alta e quadrada. L dentro ficars ajoelhada na penumbra olhando o

branco das paredes e o brilho azul dos azulejos. A escutars o silncio. A se levantar como um canto o teu amor pelas coisas visveis que a tua orao em frente do grande Deus invisvel.

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AS GRUTAS O esplendor poisava solene sobre o mar. E entre as duas pedras erguidas numa relao to justa que talvez ali o lugar da Balana onde o equilbrio do homem com as coisas medido quase me cega a perfeio como um sol olhando de frente. Mas logo as guas verdes em sua transparncia me diluem e eu mergulho tocando o silncio azul dos peixes. Porm a beleza no s solene mas tambm inumervel. De forma em forma vejo o mundo nascer e ser criado. Um grande rascasso vermelho passa em frente de mim que nunca antes o imaginara. Limpa, a luz recorta promontrios e rochedos. tudo igual a um sonho extremamente lcido e acordado. Sem dvida um novo mundo nos pede novas palavras,porm to grande o silncio e to clara a transparncia que eu muda encosto a minha cara na superfcie das guas lisas como um cho. As margens atravessam os meus olhos e caminham para alm de mim. Talvez eu v ficando igual almadilha da qual os pescadores dizem ser apenas gua. Estaro as coisas deslumbradas de ser elas? Quem me trouxe finalmente a este lugar? Ressoa a vaga no interior da gruta roca e a mar retirando deixou redondo e dourado o quarto de areia e pedra. No centro da manh, no centro do crculo do ar e do mar, no alto da coluna est poisada a rola branca do mar. Desertas surgem as pequenas praias. Um fio invisvel de deslumbramento espanto me guia de gruta em gruta. Eis o mar e a luz vistos por dentro. Terror de penetrar na habitao secreta de beleza, terror de ver o que nem em sonhos eu ousara ver, terror de olhar de frente as imagens mais interiores a mim do que o meu prprio pensamento. Deslizam os meus ombros cercados de gua e plantas roxas. Atravesso gargantas de pedra e a arquitectura do labirinto paira roda sobre o verde. Colunas de sombra e luz suportam cu e terra. As anmonas rodeiam a grande sala de gua onde os meus dedos tocam a areia rosada do fundo. E abro bem os olhos no silncio liquido e verde onde rpidos, rpidos fogem de mim os peixes. Arcos e rosceas suportam e desenham a claridade dos espaos matutinos. Os palcios do rei do mar escorrem luz e gua. Esta manh igual ao principio do mundo e aqui eu venho ver o que jamais se viu. O meu olhar tornou-se liso como um vidro. Sirvo para que as coisas se vejam. E eis que entro na gruta mais interior e mais cavada. Sombrias e azuis so guas e paredes. Eu quereria poisar como uma rosa sobre o mar o meu amor neste silncio. Quereria que o contivesse para sempre o crculo de espanto e de medusas. Aqui um lquido sol fosforescente

e verde irrompe dos abismos e surge em suas portas. Mas j no mar exterior a luz rodeia a Balana. A linha das guas lisa e limpa como um vidro. O azul recorta os promontrios aureolados de glria matinal. Tudo est vestido de solenidade e de nudez. Ali eu queria chorar de gratido com a cara encostada contra as pedras.

DESPEDIDA Na estao na tarde o fumo O rumor o vaivm as faces Annimas Criam no interior do amor um outro cais As lgrimas O fogo da minha alma as queima antes que brotem.

MEIO DA VIDA Porque as manhs so rpidas e o seu sol quebrado Porque o meio-dia Em seu despido fulgor rodeia a terra A casa compe uma por uma as suas sombras A casa prepara a tarde Frutos e canes se multiplicam Nua e aguda A doura da vida

INSCRIO Quando eu morrer voltarei para buscar Os instantes que no vivi junto do mar.

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CARTA AOS AMIGOS MORTOS Eis que morrestes agora j no bate O vosso corao cujo bater Dava ritmo e esperana ao meu viver Agora estais perdidos para mim O olhar no atravessa esta distncia Nem irei procurar-vos pois no sou Orpheu tendo escolhido para mim Estar presente aqui onde estou viva. Eu vos desejo a paz nesse caminho Fora do mundo que respiro e vejo. Porm aqui eu escolhi viver Nada me resta seno olhar de frente Neste pas de dor e de incerteza. Aqui eu escolhi permanecer Onde a viso dura e mais difcil Aqui me resta apenas fazer frente Ao rosto sujo de dio e de injustia A lucidez me serve para ver A cidade a cair muro por muro E as faces a morrerem uma a uma E a morte que me corta ela me ensina Que o sinal do homem no uma coluna. E eu vos peo por este amor cortado Que vos lembreis de mim l onde o amor J no pode morrer nem ser quebrado. Que o vosso corao que j no bate O tempo denso de sangue e de saudade Mas vive a perfeio da claridade Se compadea de mim e de meu pranto Se compadea de mim e de meu canto.

O HOSPITAL E A PRAIA E eu caminhei no hospital Onde o branco desolado e sujo Onde o branco a cor que fica onde no h cor E onde a luz cinza E eu caminhei nas praias e nos campos O azul do mar e o roxo da distncia Enrolei-os em redor do meu pescoo Caminhei na praia quase livre como um deus No perguntei por ti pedra meu Senhor Nem me lembrei de ti bebendo o vento O vento era vento e a pedra pedra E isso inteiramente me bastava E nos espaos da manh marinha Quase livre como um deus eu caminhava E todo o dia vivi como uma cega Porm no hospital eu vi o rosto Que no pinheiral nem rochedo E vi a luz como cinza na parede E vi a dor absurda e desmedida

PTRIA Por um pas de pedra e vento duro Por um pas de luz perfeita e clara Pelo negro da terra e pelo branco do muro Pelos rostos de silncio e de pacincia Que a misria longamente desenhou Rente aos ossos com toda a exactido Dum longo relatrio irrecusvel E pelos rostos iguais ao sol e ao vento E pela limpidez das to amadas Palavras sempre ditas com paixo Pela cor e pelo peso das palavras Pelo concreto silncio limpo das palavras Donde se erguem as coisas nomeadas Pela nudez das palavras deslumbradas

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Pedra rio vento casa Pranto dia canto alento Espao raiz e gua minha ptria e meu centro Me di a lua me solua o mar E o exlio se inscreve em pleno tempo

A VESTE DOS FARISEUS Era um Cristo sem poder Sem espada e sem riqueza Seus amigos o negavam Antes do galo cantar A polcia o perseguia Guiada por Fariseus O poder lavou as mos Daquele sangue inocente Crucificai-o depressa Lhe pedia toda a gente Guiada por Fariseus Foi cuspido e foi julgado No centro da cidade Insultos o perseguiram E morreu desfigurado O templo rasgou seus vus E Pilatos seus vestidos A treva caiu dos cus Sobre a terra em pleno dia Nem uma ndoa se via Na veste dos Fariseus.

CANTAR To longo caminho Quanto passo andado E todas as portas Encontrou fechadas To longo o caminho Como vai sozinho Sua sombra errante Desenha as paredes Sob o sol a pino Sob as luas verdes A gua do exlio brilhante e fria Por estradas brancas Ou por negras ruas Quanto passo andado Por amor da terra Pas ocupado Onde o medo impera Num quarto fechado As portas se fecham Os olhos se fecham Fecham-se janelas As bocas se calam Os gestos se escondem Quando ele pergunta Ningum lhe responde S insultos colhe Solido vindima O rosto lhe viram E no querem v-lo Seu longo combate Encontra silncio Silncio daqueles Que em sombra tornados Em monstros se tornam Naquela cidade To poucos os homens

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GEOGRAFIA (1967)

A LUZ E A CASA Em redor da luz Com sombras e brancos A casa se procura Minhas mos quase tocam O brando respirar Da sua ateno pura

DE UM AMOR MORTO De um amor morto fica Um pesado tempo quotidiano Onde os gestos se esbarram Ao longo do ano De um amor morto no fica Nenhuma memria O passado se rende O presente o devora E os navios do tempo Agudos e lentos O levam embora Pois um amor morto no deixa Em ns seu retrato De infinita demora apenas um facto Que a eternidade ignora

A FLAUTA No canto do quarto a sombra tocou sua pequena flauta Foi ento que me lembrei de cisternas e medusas

E do brilho mortal da praia nua Estava o anel da noite solenemente posto no meu dedo E a navegao do silncio continuou sua viagem [antiqussima

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SIGNO Meu signo o da morte porm trago Uma balana interior uma aliana Da solido com as coisas exteriores

MANUEL BANDEIRA Este poeta est Do outro lado do mar Mas reconheo a sua voz h muitos anos E digo ao silncio os seus versos devagar Relembrando O antigo jovem tempo tempo quando Pelos sombrios corredores da casa antiga Nas solenes penumbras do silncio Eu recitava "As trs mulheres do sabonete Arax" E a minha av se espantava Manuel Bandeira era o maior espantava da minha av Quando em manhs intactas e perdidas No quarto em manhs intactas e perdidas Saudade Eu lia A cano do "Trem de ferro" E o "Poema do beco" Tempo antigo lembrana demorada Quando deixei uma tesoura esquecida nos ramos da [cerejeira Quando Me sentava nos bancos pintados de fresco E no junho inquieto e transparente As trs mulheres do sabonete Arax Me acompanhavam To visveis Que um elctrico amarelo as decepava. Estes poemas caminharam comigo como a brisa Nos passeados campos da minha juventude Estes poemas poisaram a sua mo sobre o meu ombro E foram parte do tempo respirado

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EPIDAURO O cardo floresce na claridade do dia. Na doura do dia se abre o figo. Eis o pas do exterior onde cada coisa trazida luz trazida liberdade da luz trazida ao espanto da luz Eis-me vestida de sol e de silncio. Gritei para destruir o Minotauro e o palcio. Gritei para destruir a sombra azul do Minotauro. Porque ele insacivel. Ele come dia aps dia os anos da nossa vida. Bebe o sacrifcio sangrento dos nossos dias. Come o sabor do nosso po a nossa alegria do mar. Pode ser que tome a forma de um polvo como nos vasos de Knossos. Ento dir que o abismo do mar e a multiplicidade do real. Ento dir que duplo. Que pode tornar-se pedra com a pedra alga com a alga. Que pode dobrar-se que pode desdobrar-se. Que os seus braos rodeiam. Que circular. Mas de sbito vers que um homem que traz em si mesmo a violncia do touro. S poders ser liberta aqui na manh d'Epidauro. Onde o ar toca o teu rosto para te reconhecer e a doura da luz te parece imortal. A tua voz subir sozinha as escadas de pedra plida. E ao teu encontro regressar a teoria ordenada das slabas portadoras limpas da serenidade.

CREPSCULO DOS DEUSES Um sorriso de espanto brotou das ilhas do Egeu E Homero fez florir o roxo sobre o mar O Kouros avanou um passo exactamente A palidez de Atena cintilou no dia Ento a claridade dos deuses venceu os monstros nos [frontes de todos os templos E para o fundo do seu imprio recuaram os Persas Celebrmos a vitria: a treva Foi exposta e sacrificada em grandes ptios brancos O grito rouco do coro purificou a cidade

Mas eis que se apagaram Os antigos deuses sol interior das coisas Eis que se abriu o vazio que nos separa das coisas Somos alucinados pela ausncia bebidos pela ausncia E aos mensageiros de Juliano a Sibila respondeu: Ide dizer ao rei que o belo palcio jaz por terra [quebrado Febo j no tem cabana nem loureiro proftico nem fonte [melodiosa A gua que fala calou-se

DUAL (1972)

A PEQUENA PRAA A minha vida tinha tomado a forma da pequena praa Naquele Outono em que a tua morte se organizava [meticulosamente Eu agarrava-me praa porque tu amavas A humanidade humilde e nostlgica das pequenas lojas Onde os caixeiros dobram e desdobram fitas e fazendas Eu procurava tornar-me tu porque tu ias morrer E a vida toda deixava ali de ser a minha Eu procurava sorrir como tu sorrias Ao vendedor de jornais ao vendedor de tabaco E mulher sem pernas que rezasse por ti Eu acendia velas em todos os altares Das igrejas que ficam no canto da praa Pois mal abri os olhos e vi foi para ler A vocao do eterno escrita no teu rosto Eu convocava as ruas os lugares as gentes Que foram as testemunhas do teu rosto Para que eles te chamassem para que eles desfizessem O tecido que a morte entrelaava em ti

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ERAS BELA Eras bela como a pintura de Mantegna Onde cada coisa mostra a ntida ateno Do olhar soletrando a eternidade Eras bela como a pintura de Mantegna Decifrando a escrita da Ressurreio

EM NOME Em nome da tua ausncia Construi com loucura uma grande casa branca e ao longo das paredes te chorei

DELPHICA I (FRISO ARCAICO) Saudo-vos, filhas dos corcis de ps de tempestade.

Simnides de KeosPatas dos corcis da tempestade To concisas to duras e to finas Puro rigor de espigas arquitrave Medida amor e fria se combinam Delphos, Maio de 1970 DELPHICA III(ANTINOOS) Noite diurna At mais funda limpidez do instinto Sob teus cabelos em anel sombria vinha Corpo terrestre e solene como o azul mais aceso da [montanha O quase imvel fogo dos teus beios Pesa como um fruto pleno no rumor de brisa da rvore Porta aberta para toda a natureza atravs de ti que os meus rios caminham como veias Novilho de testa curta no secreto silncio do bosque Sobre os teus ombros poisa terrvel o meio-dia Do divino celebrado terrestre

DELPHICA IV Desde a orla do mar Onde tudo comeou intacto no primeiro dia de mim Desde a orla do mar Onde vi na areia as pegadas triangulares das gaivotas Enquanto o cu cego de luz bebia o ngulo do seu voo Onde amei com xtase a cor o peso e a forma necessria [das conchas Onde vi desabar ininterruptamente a arquitectura das [ondas E nadei de olhos abertos na transparncia das guas Para reconhecer a anmona a rocha o bzio a medusa Para fundar no sal e na pedra o eixo recto Da construo possvel Desde a sombra do bosque Onde se ergueu o espanto e o no-nome da primeira noite E onde aceitei em meu ser o eco e a dana da conscincia [mltipla Desde a sombra do bosque desde a orla do mar Caminhei para Delphos Porque acreditei que o mundo era sagrado E tinha um centro Que duas guias definem no bronze de um voo imvel e [pesado Porm quando cheguei o palcio jazia disperso e [destrudo As guias tinham-se ocultado no lugar da sombra mais [antiga A lngua torceu-se na boca de Sibila A gua que primeiro eu escutei j no se ouvia S Antinoos mostrou o seu corpo assombrado Seu nocturno meio-diaDELPHOS, MAIO DE 1970

H MUITO H muito que deixei aquela praia De grandes areias e grandes vagas Mas sou eu ainda quem na brisa respira E por mim que espera cintilando a mar vasa

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OS DIAS DE VERO Os dias de Vero vastos como um reino Cintilantes de areia e mar lisa Os quartos apuram seu fresco de penumbra Irmo do lrio e da concha nosso corpo Tempo de repouso e festa O instante completo como um fruto Irmo do universo nosso corpo O destino torna-se prximo e legvel Enquanto no terrao fitamos o alto enigma familiar dos [astros Que em sua imvel mobilidade nos conduzem Como se em tudo aflorasse eternidade Justa a forma do nosso corpo

EIS AQUI Em Creta Onde o Minotauro reina Banhei-me no mar H uma rpida dana que se dana em frente de um toiro Na antiqussima juventude do dia Nenhuma droga me embriagou me escondeu me protegeu S bebi retsina tendo derramado na terra a parte que [pertence aos deuses De Creta Enfeitei-me de flores e mastiguei o amargo vivo das [ervas Para inteiramente acordada comungar a terra De Creta Beijei o cho como Ulisses Caminhei na luz nua Devastada era eu prpria como a cidade em runa Que ningum reconstruiu Mas no sol dos meus ptios vazios A fria reina intacta E penetra comigo no interior do mar Porque perteno raa daqueles que mergulham de olhos [abertos E reconhecem o abismo pedra a pedra anmona a anmona [flor a flor E o mar de Creta por dentro todo azul Oferenda incrvel de primordial alegria Onde o sombrio Minotauro navega

Pinturas ondas colunas e plancies Em Creta Inteiramente acordada atravessei e o dia E caminhei no interior dos palcios veementes e [vermelhos Palcios sucessivos e roucos Onde se ergue o respirar de sussurrada treva E nos fitam pupilas semi azuis de penumbra e terror Imanentes ao dia Caminhei no palcio dual de combate e confronto Onde o Prncipe dos lrios ergue os seus gestos matinais Nenhuma droga me embriagou me escondeu me protegeu O Dionysios que dana comigo na vaga no se vende em [nenhum mercado negro Mas cresce como flor daqueles cujo ser Sem cessar se busca e se perde se desune e se rene E este a dana do ser Em Creta Os muros de tijolo da cidade minoica So feitos de barro amassado com algas E quando me virei para trs da minha sombra Vi que era azul o sol que tocava meu ombro Em Creta onde o Minotauro reina atravessei a vaga De olhos abertos inteiramente acordada Sem drogas e sem filtro S vinho bebido em frente da solenidade das coisas Porque perteno raa daqueles que percorrem o [labirinto Sem jamais perderem o fio de linha da palavra Outubro 1970

LAMENTAO DE ADRIANO SOBRE A MORTE DE ANTINOO No escreverei mais o meu nome em letras gregas sobre a [cera das tabuinhas Porque ests morto E contigo morreu o meu projecto de viver a condio [divina

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O POETA TRGICO No principio era o labirinto O secreto palcio do terror calado Ele trouxe para o exterior o medo Disse-o na lisura dos ptios no quadrado De sol de nudez e de confronto Exps o medo como um toiro debelado

RETRATO DE UMA PRINCESA DESCONHECIDA Para que ela tivesse um pescoo to fino Para que os seus pulsos tivessem um quebrar de caule Para que os seus olhos fossem to frontais e limpos Para que a sua espinha fosse to direita E ela usasse a cabea to erguida Com uma to simples claridade sobre a testa Foram necessrias sucessivas geraes de escravos De corpo dobrado e grossas mos pacientes Servindo sucessivas geraes de prncipes Ainda um pouco toscos e grosseiros vidos cruis e fraudulentos Foi um imenso desperdiar de gente Para que ela fosse aquela perfeio Solitria exilada sem destino

CAMES E A TENA Irs Seja Este Pas Pas ao pao. Irs pedir que a tena paga na data combinada pas te mata lentamente que tu chamaste e no responde que tu nomeias e no nasce

Em tua perdio se conjuraram Calnias desamor inveja ardente E sempre os inimigos sobejaram A quem ousou seu ser inteiramente E aqueles que invocaste no te viram Porque estavam curvados e dobrados Pela pacincia cuja mo de cinza Tinha apagado os olhos no seu rosto Irs ao pao irs pacientemente Pois no te pedem canto mas pacincia Este pas te mata lentamente

NOME DAS COISAS (1977)

CCLADES (evocando Fernando Pessoa) A claridade frontal do lugar impe-me a tua presena O teu nome emerge como se aqui O negativo que foste de ti se revelasse Viveste no avesso Viajante incessante do inverso Isento de ti prprio Vivo de ti prprio Em Lisboa cenrio da vida E eras o inquilino de um quarto alugado por cima de [uma leitaria O empregado competente de uma casa comercial O frequentador irnico delicado e corts dos cafs [da Baixa O visionrio discreto dos cafs virados para o Tejo (Onde ainda no mrmore das mesas Buscamos o rastro frio das tuas mos O imperceptvel dedilhar das tuas mos) Esquartejado pelas frias do no-vivido margem de ti dos outros e da vida Mantiveste em dia os teus cadernos todos Com meticulosa exactido desenhaste os mapas Das mltiplas navegaes da tua ausncia Aquilo que no foi nem fostes ficou dito Como ilha surgida a barlavento Com prumos sondas astrolbios bssolas Procedeste ao levantamento do desterro Nasceste depois E algum gastara em si toda a verdade O caminho da ndia j fora descoberto Dos deuses s restava O incerto perpassar No murmrio e no cheiro das paisagens E tinhas muitos rostos Para que no sendo ningum dissesses tudo Viajavas no avesso no inverso do adverso

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Porm obstinada eu invoco dividido O instante que te unisse E celebro a tua chegada s ilhas onde jamais vieste Estes so os arquiplagos que derivam ao longo do [teu rosto Estes so o rpidos golfinhos da tua alegria Que os deuses no te deram nem quiseste Este o pas onde a carne das esttuas como choupos [estremece Atravessada pelo respirar leve da luz Aqui brilha o azul-respirao das coisas Nas praias onde h um espelho voltado para o mar Aqui o enigma que me interroga desde sempre mais nu e veemente e por isso te invoco: Porque foram quebrados os teus gestos Quem te cercou de muros e de abismos Quem derramou no cho os teus segredos Invoco-te como se chegasses neste barco E poisasses os teus ps nas ilhas E sua excessiva proximidade te invadisse Como um rosto amado debruado sobre ti No estio deste lugar chamo por ti Que hibernaste a prpria vida como o animal na [estao adversa Que te quiseste distante como quem ante o quadro pra [melhor ver recua E quiseste a distncia que sofreste Chamo por ti reno os destroos as runas os [pedaos Porque o mundo estalou como pedreira E no cho rolam capitis e braos Colunas divididas estilhaos E da nfora resta o espalhamento de cacos Perante os quais os deuses se tornam estrangeiros Porm aqui as deusas cor de trigo Erguem a longa harpa dos seus dedos E encantam o sol azul onde te invoco Onde invoco a palavra impessoal da tua ausncia Pudesse o instante da festa romper o teu luto vivo de ti mesmo E que ser e estar coincidissem No um da boda Como se o teu navio te esperasse em Thasos Como se Penlope Nos seus quartos altos Entre seus cabelos te fiasse 1972

GUERRA OU LISBOA 72 Partiu vivo jovem forte Voltou bem grave e calado Com morte no passaporte Sua morte nos jornais Surgiu em letra pequena preciso que o pas Tenha a conscincia serena

SUA BELEZA Sua beleza total Tem a ntida esquadria de um Mantegna Porm como Picasso derrepente Desloca o visual Seu torso lembra o respirar da vela Seu corpo solar e frontal Sua beleza fora de ser bela Promete mais do que prazer Promete um mundo mais inteiro e mais real Como ptria do ser

25 DE ABRIL Esta a madrugada que eu esperava O dia inicial inteiro e limpo Onde emergimos da noite e do silncio E livres habitamos a substncia do tempo 25 de Abril de 1974

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NESTA HORA Nesta hora limpa da verdade preciso dizer a verdade toda Mesmo aquela que impopular neste dia em que se [invoca o povo Pois preciso que o povo regresse do seu longo [exlio E lhe seja proposta uma verdade inteira e no meia [verdade Meia verdade como habitar meio quarto Ganhar meio salrio Como s ter direito A metade da vida O demagogo diz da verdade a metade E o resto joga com habilidade Porque pensa que o povo s pensa metade Porque pensa que o povo no percebe nem sabe A verdade no uma especialidade Para especializados clrigos letrados No basta gritar povo preciso expor Partir do olhar da mo e da razo Partir da limpidez do elementar Como quem parte do sol do mar do ar Como quem parte da terra onde os homens esto Para construir o canto do terrestre Sob o olhar silente de ateno Para construir a festa do terrestre Na nudez de alegria que nos veste 20 de Maio de 1974

BREVE ENCONTRO Este o amor das palavras demoradas Moradas habitadas Nelas mora Em memria e demora O nosso breve encontro com a vida

A PALAVRA Heraclito de Epheso diz: O pior de todos os males seria A morte da palavra Diz o provrbio do Malink: Um homem pode enganar-se em sua parte de alimento Mas no pode Enganar-se na sua parte de palavra

MUSEU Aqui como convm aos mortais Tudo divino E a pintura embriaga mais Que o prprio vinho

POR DELICADEZA Bailarina fui Mas nunca dancei Em frente das grades S trs passos dei To breve o comeo To cedo negado Dancei no avesso Do tempo bailado Danarina fui Mas num bailei Deixe-me ficar Na priso do rei ?Onde o mar aberto E o tempo lavado? Perdi-me to perto Do jardim buscado Bailarina fui Mas nunca bailei Minha vida toda Como cega errei Minha vida atada Nunca a desatei Como Rimbaud disse Tambm eu direi:

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Juventude ociosa Por tudo iludida Por delicadeza Perdi minha vida

OSIS Penetremos no palmar A gua ser clara o leite doce O calor ser leve o linho branco e fresco O silncio estar nu o canto Da flauta ser ntido no liso Da penumbra Lavaremos nossas mos de desencontro e poeira

POEMAS INDITOS

MAR De novo o som o ressoar o mar De novo o embalo do tumulto mais antigo E a inteireza de instante primitivo De novo o canto o murmurar o mar Que se repete intacto e sacral De novo o limpo e nu clamor primordial

MADRUGADA Um leve tremor precede a madrugada Quando mar e cu na mesma cor se azulam E so mais claras as luzes dos barcos pescadores E para alm d'insnias e rumores Nossa vida se v extasiada Agosto, 79. Algarve

NAVEGAES VI Navegavam sem o mapa que faziam (Atrs deixando concluios e conversas Intrigas surdas de bordeis e paos) Os homens sbios tinham concludo Que s podia haver o j sabido: Para a frente era s o inavegvel Sob o clamor de um sol inabitvel Indecifrvel escrita de outros astros No silncio das zonas nebulosas Trmula a bssola tacteava espaos Depois surgiram praias luminosas Baas promontrios enseadas Povos e reinos danas e cidades Por isso aprendemos a De quebrar horizontes E avanar sem mapas Do corpo e do desenho aventura esbarrados procura da verdade Setembro 1979

NOSSA SENHORA DA SADE Seu rosto seria a cintilante claridade De uma praia Em sua humana carne brilharia A luz sem mancha do primeiro dia Por isso lhe rogamos que reconstrua e rena Tudo quanto foi destroado e dividido

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HABITAO Muito antes do chal Antes do prdio Antes mesmo da antiga Casa bela e grave Antes de solares palcios e castelos No princpio A casa foi sagrada Isto habitada No s por homens e por vivos Mas tambm pelos mortos e por deuses Isso depois foi saqueado Tudo foi reordenado e dividido Caminhamos no trilho De elaboradas percas Porm a poesia permanece Como se a diviso no tivesse acontecido Permanece mesmo depois de varrido O sussurro de tlias junto casa de infncia 1980

LUS DE CAMES ENSOMBRAMENTO E DESCOBRIMENTO

A poesia , por sua natureza, o contrrio de uma instituio. No entanto, s vezes, acontece que um poeta se torna clebre, e a sua obra e o seu nome passam a ser tratados como instituies. E a Cames aconteceu mesmo no s ter sido transformado em instituio, mas tambm e para vergonha de todos ns ser uma instituio usada e manipulada ao longo dos tempos pelas diversas estratgias do poder. Na sociedade em que estamos, o que real nunca oficial, e a poesia rapidamente empurrada para dentro de casa. E seria grave esquecermos que Cames teve uma aguda e precisa e veemente conscincia da sua condio de poeta maldito. Uma trgica e amarga conscincia da sua solido. De um extremo ao outro da sua obra, ele afirma e grita essa conscincia.Por isso, em frente de qualquer centenrio ou homenagem que lhe sejam dedicados, deveremos recordar um poema que talvez pensando em Cames, talvez pensando em Fernando Pessoa, talvez pensando em si prprio Carlos Queiroz escreveu: Do poeta j morto, o claro nome Ergueram como estandarte E a sua obra desfraldaram. Oh, deixem-no incompreendido Sozinho como na vida, Como na vida esquecido... Sabemos pouco da vida de Cames, e as interpretaes ajudam. Ser melhor entendermos a sua poesia literalmente: O dia em que eu nasci, moura e perea no o queira jamais o tempo dar, No torne mais ao mundo, e, se tornar, eclipse nesse passo o sol padea. A luz lhe falte, o sol lhe escurea mostre o mundo sinais de se acabar, nasam-lhe monstros, sangue chova o ar, a me ao prprio no conhea pouco nos

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As pessoas pasmadas, de ignorantes, as lgrimas no rosto, a cor perdida, cuidem que o mundo j se destruiu. gente temerosa, no te espantes, que este dia deitou ao mundo a vida mais desgraada que se viu! Mas se no aceito que Cames seja tratado como instituio, que seja tratado abstractamente como poeta oficial, porque nele amo e busco o poeta real. E desse poeta real poderemos dizer, parafraseando Fernando Pessoa, que ele foi no portugus mas Portugal Pois Cames assume a Ptria sua e nossa, duplamente. Assume-a como Histria. Carlos de Oliveira disse um dia que Cames a aleluia da lngua portuguesa. Ele no vem apenas, como diria Mallarm, dar um sentido mais puro s palavras da tribo. Cames encontra e constri a objectividade da lngua portuguesa. E cria a ressonncia e o eco, encontra o justo peso das slabas, o espao do silncio, a articulao justa. Ninfa, a mais formosa do Oceano, J que a minha presena no te agrada, Que te custava ter-me neste engano, Ou fosses monte, nuvem, sonho, ou nada? (Os Lusadas, canto V,57)

(...)Cames assume Portugal no plano da Histria. No apenas porque escreve Os Lusadas, mas porque vive to exemplarmente a sua condio de portugus, e nele Portugal se vive. Como Portugal ele simultaneamente realizao e frustrao, encontro e desencontro, ensombramento e descobrimento. Como Portugal, ele volta de frica estropiado, vencedor e vencido, e da ndia regressa deslumbrado e naufragado. Como Portugal, ele conhece a livre respirao dos longos mares e a asfixia entre provincianas intrigas. Como Portugal, de todas as riquezas volta pobre. So muito poucos os documentos que temos sobre a vida de Cames, e os seus bigrafos so discutidos. Mas para alm de factos imaginrios, supostos ou presumveis, a sua obra diz-nos literalmente aquela muito especial amargura portuguesa que, ento como agora, Portugal tece em redor daqueles que o assumem. Em todos os pases, como diria Fernando Pessoa, os deuses vendem o que do. Mas em Portugal vendem mais caro. A amargura que encontramos nos poemas Camonianos no precisa de ser documentada por velhos papis e antigos bigrafos, pois ela continua a ser documentada pela vida quotidiana. No seu livro Novas Andanas do Demnio, Jorge de Sena publicou um conto que tem como tema o final da vida de Cames, e se intitula Super Flumina Babylonis. Este texto uma das mais puras obras-primas da lngua

portuguesa e tambm o pano da Vernica da poesia portuguesa. Pode-se discutir se os factos narrados por alguns bigrafos do poeta, nos quais Jorge de Sena, no seu conto, se inspira, so verdadeiros ou fantasiosos. Mas h neles, como num conto, o tom da verdade, e essa verdade o prprio Cames a documenta: No mais, Musa, no mais, que a Lira tenho Destemperada e a voz enrouquecida, E no do canto, mas de ver que venho Cantar a gente surda e endurecida. O favor com que mais se acende o engenho No no d a ptria, no, que est metida No gosto da cobia e na rudeza Duma austera, apagada e vil tristeza. Devemos meditar na expresso gente surda: nestas duas palavras, Cames identifica aquela muito especial desateno que a sociedade portuguesa dispensa queles que ousam uma atitude de liberdade e de criao. Pois a surdez no dedicada apenas ao poeta, mas igualmente ao msico, ao pintor, ao arquitecto, ao sbio. O poeta mesmo aquele que resiste melhor, pois pode criar quase sem apoio social. por isso que, entre ns, a poesia a mais rica das tradies culturais. Cames resiste e, porque resiste, sofre, v e denuncia essa desateno, essa surdez asfixiante. Ele v e denuncia uma atitude que simultaneamente moral e cultural e que, atravs dos sculos e das variaes polticas, continua. A sua crtica ao seu tempo aplica-se ao nosso: Vede, Ninfas, que engenhos de senhores O vosso Tejo cria valerosos, Que assim sabem prezar, com tais favores, A quem os faz, cantando, gloriosos! Que exemplos a futuros escritores, Para espertar engenhos curiosos, Para porem as cousas em memria Que merecem ter eterna glria! (Os Lusadas, canto VII, 82) E, mais adiante, ele retrata os oportunistas da sua poca, continuam a ser nossos contemporneos. Ele diz-nos que no cantar que

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Nenhum que use de seu poder bastante Para servir a seu desejo feio, E que, por comprazer ao vulgo errante, Se muda em mais figuras que Proteio.

A poesia de amor de Cames escrita dentro de uma tradio de poesia do amor impossvel, que vem quase at aos nossos dias. Na maioria dos seus poemas lricos corre esse longo pranto de amor inacessvel. Num mundo de madrugadas e nvoas, de separaes, de ausncias e de naufrgios, passam os rostos das amadas mortas, distantes, negadas, inatingveis, afogadas no ndico. No entanto, nos poemas lricos no encontramos a mesma amargura radicalmente sombria que encontrmos nos poemas de acusao social. Encontramos dor, sofrimento, mgoa, mas ainda nimbados pelo maravilhamento do encontro. E o rosto das amadas no foi apenas negao e morte, ou engano, ou distncia, mas tambm enlevo, encantamento, amor vivido. Como vemos no soneto que diz a botticelliana beleza de no sei que amada: Ondados fios d'ouro reluzente, que agora da mo bela recolhidos, agora sobre as rosas estendidos, fazeis que sua beleza s'acrescente. Pois a poesia de amor camoniana tambm a expresso de uma intensa vitalidade que, como o prprio poeta diz, em vrias flamas variamente ardia. E em muitas das redondilhas, o poema de amor poema do jogo de amor: Dama d'estranho primor se vos for pesada minha firmeza, olhai, no me deis tristeza, porque a converto em amor. Se cuidais de me matar quando usais de esquivana, irei tomar por vingana amar-vos cada vez mais. e nalguns poemas como a maravilhosa obra-prima que so as Endechas a Brbara, escrava, encontramos aquele misto de abandono e de felicidade que o encontro do aventureiro com a sua prpria vida vida.

Os Lusadas, poema do descobrimento, poema da possibilidade humana, so a anttese do ensombramento. Para alm da asfixia que comea a crescer, para alm do gosto da cobia e da vileza, Cames canta os portugueses que navegaram para a frente, para ver o que havia. Logo no canto I diz: Os portugueses somos do Ocidente Imos buscando as terras do Oriente... Nestes dois versos, o poeta nos identifica: pertencemos cultura do Ocidente, e, dentro da lgica dessa cultura, a nossa tarefa especfica ir para alm das prprias fronteiras, e indagar tudo, ver tudo. Somos a gente do estar duplo. Gente que tem uma ptria mas vai a caminho. Cames celebra o surgir, o aparecer, aquilo a que os Gregos chamaram aletheia. Celebra os homens que buscam a desocultao, o emergir de um fenmeno, a escrita da terra. Celebra sem mentir, em pura verdade, a coragem e a percia do povo a que pertence: uma coragem prtica que ele viu. Canta uma arte de enfrentar o abismo: Alija,disse o mestre rijamente, Alija tudo ao mar, no falte acordo! Vo outros dar bomba, no cessando; bomba, que nos imos alagando! Correm logo os soldados animosos A dar bomba; e, tanto que chegaram, Os balanos que os mares temerosos Deram nau, num bordo os derribaram. Trs marinheiros, duros e forosos, A manear o leme no bastaram: Talhas lhe punham, duma e doutra parte, Sem aproveitar dos homens fora e arte. Os Descobrimentos no so apenas uma obra cultural, mas um acto cultural. Cames sabe, por isso, que traz uma potica nova, que a fonte da sua inspirao no est no mito nem no oculto, nem num outro mundo, mas sim no exposto e no actual e no mundo em que estamos. Nos Lusadas, o lugar do poema o vivido. Os Lusadas so uma epopeia contada por um homem que aventurosamente a viveu. Herdoto diz-nos que Homero e Hesodo foram os educadores da Grcia. Ser Cames um educador dos portugueses? Quando vemos que a maioria dos portugueses mesmo letrados, comem as slabas, evidente que no os podemos considerar discpulos da dico camoniana. A forma como a lngua portuguesa normalmente falada leva-nos a pensar que os leitores de Cames so poucos. Essa lio de falar camoniano nos poetas que a vamos encontrar. Na nitidez de Cesrio Verde ou na subtileza chinesa de Camilo Pessanha:

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Passou o Outono j, j torno o frio... Outono de seu riso magoado... LGIDO inverno! Oblquo o sol, gelado... O sol, e as guas lmpidas do rio. guas claras do rio! gua do rio, Fugindo sob o meu olhar cansado, Para onde me levais meu vo cuidado? Aonde vais, meu corao vazio? Ficai, cabelos dela, flutuando, E debaixo das guas fugidias, Os seus olhos abertos e cismando... Onde ides a correr, melancolias? E, refractadas, longamente ondeando, As suas mos translcidas e frias... Em poemas escritos em diversas pocas, em diversos climas e por diversos poetas, algo de familiar e fundamental, aqui e alm emerge: o tom da voz camoniana que regressa. Como neste poema de Ceclia Meireles: s precria e veloz, felicidade Custas a vir e quando vens no te demoras Foste tu que ensinaste aos homens Que havia tempo E para te medir Se inventaram as horas. Felicidade s coisa estranha e duvidosa Fizeste para sempre a vida ficar triste Pois um dia se v que as horas todas passam E um tempo despovoado e profundo persiste. E tambm em Torga encontramos o silabado silncio camoniano: Chove uma grossa chuva inesperada, Que a tarde no pediu mas agradece. Chove na rua, j de si molhada Duma vida que chuva e no parece. O rigor, a densidade e a inteligncia da arte potica de Cames brilham em Fernando Pessoa: Vossa Vossa Vosso Vosso formosa juventude leda, felicidade pensativa, modo de olhar a quem vos olha, no conhecer-vos.

Tudo quanto vs sois, que vos semelha vida universal que vos esquece D carinho de amor a quem vos ama Por serdes no lembrando Quanta igual mocidade a eterna praia De Cronos, pai injusto da justia, Ondas, quebrou, deixando sua memria Um brando som de espuma. E a nitidez da dico camoniana, o entendimento da exacta possibilidade de cada palavra encontram a sua sequncia na dico sem falha de Joo Cabral de Melo: Est no caixo exposto Como uma mercadoria mostra para vender Quem antes tudo vendia. E a voz de Cames, com seu tumulto rouco, sua paixo e sua veemncia ecoa neste poema de Jorge de Sena: Cendrada luz enegrecendo o dia, to plida nos longes dos telhados! Para escrever mal vejo, e todavia a dor librrima que a mo me guia essa me v, conforta meus cuidados. Ao fim terrvel que me espera extenso, nenhum conforto poderei pedir. Da liberdade o desdobrado leno meu rosto cobrir. Nem sei se penso ou se pensarei quando de mim fugir. Perdem-se as letras. Noite, meu amor, minha vida, eu nunca disse nada. Por ns, por ti, por mim, falou a dor. E a dor evidente liberdade. (As Evidncias XXI)

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Creio profundamente que toda a arte didctica, creio que s a arte didctica. Cames prope-nos palavras ditas slaba por slaba. Prope-nos a contnua acusao do gosto da cobia e da vileza, a contnua acusao da surdez, da asfixia, do opaco. Ensina-nos a no aceitar o ensombramento que nos ri. Ensina-nos uma atitude crtica constante. Ensina-nos a procurar a diversidade do mundo em que estamos. Prope-nos uma imagem exigente de ns prprios que nunca mais nos deixar sossegar. Abril 1980

Nota Texto lido na Universidade de Coimbra, em Abril de 1980, e inserido no Ciclo de Colquios Camonianos.