somos todos piratas

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Entertainment & Humor


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Page 1: Somos todos piratas

Nomomomo/ÉPOCA

NUNCA TANTOS COPIARAM tanto em tão poucotempo. O filme que acabou de ser lançado. A úl-tima versão do simulador de vôo. A música no topodas paradas. Toques para o celular. Tudo isso po-de ser obtido imediatamente e de graça na internet.

Na rede, copiar é tão natural quanto respirar. Nenhuma geração na His-tória teve, como a nossa, a possibilidade de conhecer e de usufruir tan-tas obras culturais. Hoje, pelo menos 2,5 milhões de brasileiros trocam pe-la internet arquivos de música, vídeo, programas de computador e jo-gos. Essa turma conectada inclui, para todos os efeitos, qualquer um queuse computador ativamente. Copiar é tão fácil que nem sabemos quan-do estamos infringindo alguma lei. A verdade, caso alguém ainda tenhaalguma dúvida a respeito, é bastante singela. Somos todos criminosos. So-mos todos piratas. Todos? Bem, talvez nem todos. Mas você conhece al-guém que – de verdade – nunca tenha feito uma cópia ilegal de músi-cas, filmes ou programas de computador? ä

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CCOOMMPPOORRTTAAMMEENNTTOO

SOMOS TODOSPIRATASPelas regras de direitos

autorais em vigor, quase todointernauta é um fora-da-lei.Afinal, o que está errado?

RAFAEL PEREIRA

Dulla/ÉPOCA

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Page 2: Somos todos piratas

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S2,5

MILHÕESDE BRASILEIROSTROCAM MÚSICA

E VÍDEO PELAINTERNET

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Page 3: Somos todos piratas

A evolução dos tocadores portáteis de música, do walkman ao iPod, transformou os discos e fitas cassete em meros bytes de informação

Ficou mais fácil copiar

Julho de 1979TPS-L2 walkman

A Sony lança o primeirotocador portátil de fitas

cassete da História

Novembro de 1984D-50 Discman

Cinco anos depois de lançar owalkman, a Sony mantém a

vanguarda e lança o primeirotocador portátil de CDs

Agosto de 1997MPMan F10

A empresa Eiger Labs lança nomercado americano o primeiro

tocador de MP3 portátil.É o pai do iPod

Setembro de 1999SM-200C

A empresa Pine lança o primeirotocador de CD portátil que

toca MP3 gravados em CD, masnão faz sucesso

Infográficos: Nilson Cardoso

ÉPOCA 6 DE MARÇO, 2006

Pela lei, cada internauta que faz uma cópianão-autorizada pode ser punido. Nos EstadosUnidos, mais de 10 mil já foram processadosdesde 2003. As multas chegaram a US$ 30 milpara cada um. Na Inglaterra, pela primeira veza indústria fonográfica, usando rastreadores defluxo de dados, acionou judicialmente 90 cida-dãos britânicos. Eles foram condenados em abrildo ano passado a pagar multas equivalentes aR$ 15 mil. Em novembro do ano passado, aFederação Internacional da Indústria Fonográfica(IFPI, em inglês) processou 2.100 cidadãos, de 16países, como Alemanha, China e Argentina. Asações são movidas por advogados em cada umdos países envolvidos. Nenhum processo inter-nacional atingiu usuários brasileiros. Ainda. Masé difícil imaginar que a repressão dê cabo de umaprática tão difundida. Para que todos os 2,5milhões de brasileiros que usam tecnologias quepermitem cópias ilegais fossem detidos, seriam

necessárias 350 penitenciárias com a capacidadedo Carandiru. Se, como ocorreu na Inglaterra,cada um recebesse multas equivalentes a R$ 15mil, o governo arrecadaria R$ 37,5 bilhões, valorequivalente ao lucro líquido somado dos cincomaiores bancos brasileiros nos últimos 11 anos,ou 2,2% do PIB.

A forma mais comum e convencional de enca-rar a pirataria digital é acreditar na lei como está.Nesse caso, devemos mesmo pagar altas multase ir todos para os novos presídios, construídos espe-cialmente para abrigar piratas. Evidentemente, arealidade tem se encarregado de mostrar que essalei é inaplicável. Pergunte a, entre tantos outros,João Eduardo Ávila, de 13 anos. Ele nasceu em1992, ano em que a internet saiu das universi-dades no Brasil. Eduardo é filho de uma era emque músicas, filmes e livros perderam a forma físicae se transformaram em bits, viajando livrementeà velocidade da luz. Com computador no quarto

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O eMule, sitemais popularpara troca de

música evídeo, tem 1,2 milhãode usuários

no Brasil

RETORNOFINANCEIRO

Vendas de DVDs emtodo o mundo ajudama indústria de cinema

americana a faturarUS$ 25 bilhões e

produzir filmesrevolucionários, como

a trilogia Matrix

Fotos: The New York Times; Maurilo Clareto/ÉPOCA; Paul Sakuma/AP

CCOOMMPPOORRTTAAMMEENNTTOO

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Page 4: Somos todos piratas

FONTE: A Diary Study of Task Switching and Interruptions/Microsoft

Outubro de 2001iPod

Steve Jobs, presidente da Apple, lança o iPod

usando o slogan “1000 músicas no seu bolso”

Outubro de 2005iPod com vídeoO aparelho agora também reproduz vídeos numa tela

colorida

desde os 5 anos, descobriu o rock baixando gra-tuitamente as músicas de suas bandas favoritas.“Nem me lembro da última vez que fui à loja com-prar um CD. Com certeza, foi há mais de um ano”,diz. No início, ele baixava apenas uma ou duascanções por vez. Agora, baixa discografias intei-ras, filmes recém-estreados, softwares e tudoquanto é joguinho de última geração. Ele deve serpreso? Ou será que há algum problema com umalei incapaz de lidar com a velocidade da evoluçãotecnológica e com a naturalidade com que a novageração encara esse fenômeno? Não haveria outraforma de lidar com a pirataria?

Ninguém em sã consciência pode pregar o des-respeito à lei. O direito à propriedade intelectualgarante a remuneração dos criadores de bens cul-turais e a geração de riqueza e empregos. A pri-meira lei de proteção ao direito do autor foi criadaem 1791, na França, justamente para evitar o finaltrágico de gênios como Wolfgang Amadeus ä

ÉPOCA 6 DE MARÇO, 2006 67

CATALISADOR O iPod banalizou troca de arquivos de música e vídeo

VERSÃO Mondini traduziu o eMule para o português

EP407p064_073 03.03.06 17:27 Page 67

Page 5: Somos todos piratas

Por que a lei antipirataria não pega no Brasil

Dá cadeia?

1. Existem três maneiras de enqua-drar legalmente você ou seu filhomenor de idade se baixarem músi-ca na internet

Direito – A Constituição Federal e aLei dos Direitos Autorais definem oque é ilegal e proíbem a distribuiçãode obras ou fonogramas por fraude

Pena – O Código Penal prevê de trêsmeses a um ano de cadeia e multapara quem violar os direitos do autor

2. Por que, mesmo sendo crime noBrasil, você não será punido por isso?

Não há provas – Ainda não existe nopaís tecnologia suficiente para ras-trear o fluxo de dados e provar queum usuário doméstico armazenamúsica ilegal

Não há prioridade – As empresas quetêm prejuízo com a pirataria e a Polí-cia Federal preferem concentrar seusesforços em quem copia e vende CDsfalsos em larga escala

3. Quando o Brasil vai começar a pren-der usuários em suas casas, como sefaz nos EUA e na Europa?

Em breve – A Associação Protetora dosDireitos Intelectuais Fonográficos (Apdif),ligada às grandes gravadoras do país,está se preparando tecnicamente pararastrear usuários que fazem downloadilegal de músicas

ÉPOCA 6 DE MARÇO, 2006

Mozart, que morria como indigente naquele ano,depois de compor 600 obras. Hoje, graças às leis queprotegem a propriedade intelectual, Hollywoodfatura US$ 25 bilhões, e a vigorosa indústria cul-tural brasileira emprega 63 mil pessoas. São essasas maiores vítimas da pirataria digital. Estima-seque as cópias ilegais custem US$ 50 bilhões nomundo todo e quase US$ 1 bilhão no Brasil. Em1999, o disco As Quatro Estações, de Sandy &Junior, vendeu 2,5 milhões de cópias. Quatro anosdepois, a venda de CDs piratas nos camelôs e oMP3 derrubaram a tiragem do CD Identidadepara apenas 400 mil. “Para manter a mesma estru-tura de empregados e equipamentos, tivemos defazer muito mais shows que antes e de investirem outros mercados, como o licenciamento deprodutos com o nosso nome”, afirma Junior. “Masvai chegar um ponto em que ninguém mais vaiter como viver de música. Os ídolos vão viver dopassado.” Aos 21 anos, Junior é um dos 43 milhõesde aficionados do iPod, o tocador de faixas musi-cais da Apple, mas afirma que nunca fez down-load ilegal de música pela internet.

Junior é uma exceção. Incontáveis sistemas detroca e compartilhamento de arquivos têm feito afesta entre jovens e adolescentes. Hoje, o maispopular é o eMule, usado por 1,2 milhão de bra-sileiros. Trata-se de um software de código aberto– sem nenhum dono, portanto, para ser proces-sado –, com atualizações constantes realizadaspor colaboradores anônimos. Um deles é o estu-

dante paulista Rafael Mondini, de 21 anos, res-ponsável pela versão brasileira. De sua casa, emSão Paulo, ele entrou em contato com os respon-sáveis pelo projeto nos Estados Unidos e ajudouo eMule a falar português. “Existia uma traduçãoem português de Portugal, mas era muitocapenga. Quando descobri que o programa eracomunitário, resolvi ajudar”, diz Mondini.

Para o desembargador André Fontes, quecomanda uma turma no Tribunal Regional Federalresponsável por julgar questões de direito auto-ral, a lei não pode punir o usuário doméstico portrocar arquivos na internet. “Se fosse eu julgandoum caso desses, nunca condenaria quem baixaarquivos para uso próprio, sem intenção de obterlucro com a obra alheia”, afirma. André Fontesvive a questão de perto. Tem um filho de 15 anos,Augusto, fanático por música e dono de um MP3-player. Fontes prefere não investigar o compu-tador do filho para saber se ele está fazendo down-load ilegal. “O que faço é conversar com ele. Elesabe que fazer isso é antiético”, diz. Mas a fron-teira ética é tão tênue que desconcerta os própriosartistas. A roqueira Pitty afirma que baixa músi-cas, mas de uma maneira que considera saudá-vel. “Só faço download gratuito do que nãoconheço, para não comprar gato por lebre. Mas,se gosto, vou lá e compro”, afirma. “Acho quequem tem condições tem de comprar o disco,senão a gente deixa de existir. Mas não possocobrar isso de quem não tem grana.” ä

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Mais de10 mil

internautasjá foram

processadosnos EUA

desde 2003

ARTISTASJunior afirma que só

baixa músicascompradas para seu

iPod. Já Pitty diz que fazdownload gratuito, mas

que compra depois segostar do som

Fotos: Frederic Jean/ÉPOCA; Daniel Novaes/Diário de SP

CCOOMMPPOORRTTAAMMEENNTTOO

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Page 6: Somos todos piratas

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A INDÚSTRIAEstúdios das

gravadoras (acima) eo filme King Kong,vítimas dos piratas

PROMOÇÃO Empresas de softwarelidam com a pirataria há décadas

COMBATE AO CRIMETratores destroem milhares de CDs piratasapreendidos (à esq.). A PF faz açõesrepressivas em pontos-de-venda, como o StandCenter, em São Paulo (acima). Mas os esforçosnão conseguem impedir o comércio dos camelôs (no alto)

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Page 7: Somos todos piratas

Os caminhos da música digitalAQUI É PAGO

Desvantagem

Vantagem

Maior site brasileiro de venda demúsicas e toques de celular. Vendeuma média de mil músicas por diaem todo o país

Único site brasileiro que tem acordocom várias gravadoras, inclusivegrandes, como EMI e Warner

Ainda não fechou acordo com asprincipais multinacionais: Sony/BMGe Universal. Só fornece músicas emformato WMA, da Microsoft

É pouco provável que jovens como JoãoEduardo, Rafael, Augusto ou a própria Pitty com-prassem todas as músicas e os arquivos que obtêmde graça na internet. Só isso é o bastante para vercom um grão de ceticismo as estimativas de per-das da indústria para a pirataria, pois, normal-mente, ela considera que cada um que copia umCD ou software pagaria pelo produto. Quandotanta gente, em princípio ordeira, desobedece àsleis estabelecidas de propriedade intelectual e dedireito autoral, algo está errado em um sentidomais amplo. A troca livre de bens digitais repre-senta, em sua dimensão global, uma ruptura nomodo de produção cultural convencional. O sis-tema de direitos, que financiou a indústria, artis-tas e inventores durante séculos, está em xeque.

“Os donos das grandes empresas de entreteni-mento estão agindo deliberadamente, principal-mente no Congresso americano, para inibir a cria-tividade dessas crianças. Antes, só eles ganha-vam. Mas hoje estamos vencendo em muitas fren-tes”, disse a ÉPOCA John Perry Barlow, fundadorda Electronic Frontier Foundation. “Eles estão

ÉPOCA 6 DE MARÇO, 200670

Oprofessor de Direito Lawrence Lessig, da Uni-versidade de Stanford (EUA), co-fundador do

Creative Commons, acredita que as leis de direi-to autoral precisam ser atualizadas.

ÉPOCA – Leis de copyright existem em to-da parte, mas a grande maioria das pessoas nãoas cumpre. Somos todos piratas?

Lawrence Lessig – Pela lei, sim. O intriganteé saber por que as pessoas, em países demo-cráticos, não se mobilizam para mudar as leisde modo que elas deixem de ser piratas. As pes-soas já reconhecem o valor da distribuição maislivre do trabalho criativo e do conhecimento. Eisso não significa que devemos abrir mão docopyright. Significa que devemos fazer com queas leis se adaptem ao século XXI. O copyrighté necessário à sobrevivência da indústria cul-tural, por exemplo. Mas ele precisa ser atualiza-do para que possa ser mais efetivo nesse papel.

ÉPOCA – Quando você copia um bem digi-tal, está compartilhando ou roubando?

Lessig – Se você copia com permissão, estácompartilhando. Se você não tem permissão, po-de estar violando os direitos do detentor do copy-right. Roubar, porém, não é um termo que se apli-ca a bens digitais. Mas eu acho errado que aspessoas “compartilhem” trabalhos se essa nãofor a vontade do titular do direito autoral.

ÉPOCA – Qual é a principal diferença entreo usuário doméstico, que copia algo para usopessoal, e o grande comerciante, que vende ma-terial copiado em grande escala?

Lessig – Eles são completamente diferentes.O grande comerciante está errado. O usuáriodoméstico pode estar. n

RICARDO AMORIM

Para professor de Stanford, roubar não é umtermo aplicável aos bens digitais

As leis têm de se adaptar

CCOOMMPPOORRTTAAMMEENNTTOO

ENTREVISTA

Estima-seque as

cópias ilegaiscustem US$

50 bilhões nomundo e

quase US$ 1bilhão no

Brasil

VOZ DA LEIO desembargador

Fontes diz queprefere nãoinvestigar o

computador dofilho, fanático

por MP3

Fotos: Patti Sapone/AP; Marcos Serra Lima/ÉPOCA

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Page 8: Somos todos piratas

Principais lugares em que se baixa música na internet, legal ou ilegal

Maior sistema de venda demúsicas do mundo. Tem mé-dia de 3 milhões de down-loads diários

Tem o maior acervo do plane-ta, com mais de 2 milhões demúsicas digitais. É a loja ofi-cial do iPod

Brasileiros só podem comprarse tiverem um cartão de cré-dito americano, com ende-reço nos EUA

Depois de revolucionar omundo da pirataria na in-ternet, o Napster foi enqua-drado pela indústria

Em vez de vender suas mú-sicas uma por uma, cobrauma assinatura mensal deUS$ 9,95

Tem metade do acervo doiTunes. Só vende cançõesem formato WMA, incom-patível com o iPod

AQUI É GRÁTIS

É o programa de troca gra-tuita de arquivos pela in-ternet mais usado e bemavaliado do mundo

Seu sistema divide os ar-quivos em partes para odownload. É bom para ar-quivos pesados

O sistema de prioridadesconfuso faz com que al-guns downloads demorema começar

Foi o primeiro programa aigualar o sucesso do Naps-ter, depois que ele passoua cobrar por músicas

Sua busca é simples e osdownloads começam qua-se de forma instantânea

É um dos programas quemais escondem vírus den-tro de músicas dos artis-tas mais famosos

É o programa mais usa-do dos que utilizam a tec-nologia BitTorrent, quefragmenta os arquivos

É rápido. Por isso, funcio-na bem para baixar CDse filmes inteiros ou dis-cografias completas

Como é um programa degrande escala, é quaseimpossível conseguir pe-gar músicas no varejo

vendo que vão perder a briga. Estão desespera-dos. São um bando de velhos contra crianças,pequenos gênios criativos.” Barlow sabe do queestá falando. Antes de se tornar um dos maio-res pregadores das liberdades digitais, ele foiletrista da banda de rock Grateful Dead – e per-mitia aos fãs a gravação de seus shows ao vivo.

A troca on-line de arquivos é desafiadora jus-tamente porque melindra nossas noções maisbásicas do que é certo ou errado. Pirataria éroubo? Sem dúvida. Mas é um tipo singular deroubo. A noção lógica do ato de roubar é tomaralgo de alguém. Com a cópia de um arquivo,quem assiste a um filme ou ouve uma músicapirata não precisou tomá-los de ninguém. A pira-taria é um roubo cuja vítima – o criador da obra– não está presente ao ato. Os arquivos digitaissão aquilo que os economistas chamam de bem“não-rival”. Podem ser usados por muitas pes-soas ao mesmo tempo, sem que uma prejudiquea outra. Da mesma forma que a teoria da rela-tividade, de Einstein, é reproduzida nas esco-las pelos professores de Física, todos podem ouvir

a mesma música, ver o mesmo filme ou usar omesmíssimo programa de computador.

Diante de um inimigo tão insidioso, em vez debuscar o bandido que mora em cada um dos 700bilhões de internautas no mundo, a indústria cul-tural provavelmente terá de se reinventar. Ela jáfez isso antes. “A crescente e perigosa invasão dessanova tecnologia ameaça a vitalidade econômicade toda uma indústria e a sua nova segurança nofuturo”, disse Jack Valenti, ex-diretor da associaçãoda indústria do cinema americano, a MPAA. A frasefoi proferida em 1982. Naquela ocasião, o medoera que o advento do videocassete fosse tirar aspessoas do cinema e levar a indústria cinemato-gráfica à falência. Nada disso aconteceu, e as cópiasdos filmes em fitas e hoje em DVD se tornaramuma fonte de receitas maior que as bilheterias.

Agora, começa a haver reações mais criativasda indústria. Três anos depois que a Justiça fechouo Napster, o primeiro sistema de troca de arqui-vos na internet, a resposta da indústria fonográ-fica foi o iTunes, loja virtual de músicas e vídeosda Apple. No final de fevereiro, registrou 1 bilhãode obras vendidas. A tática é simples: se o pro-blema é a cópia gratuita de música virtual, entãoé melhor vendê-la. A loja iTunes terminou o anopassado com vendas de 3 milhões de músicas pordia, por apenas alguns centavos de dólar cadafaixa. Registrou um crescimento de 241% nonúmero de usuários em relação a 2004, alcan-çando 20 milhões de cadastrados em 21 países.Outras 335 lojas de música virtual entraram nomercado. A venda de músicas eletrônicas já res-ponde por 6% do faturamento total no ramo fono-gráfico. Graças a isso, o ano de 2005 ficará na His-tória como aquele em que, pela primeira vezdepois do advento da internet, se vendeu mais doque se pirateou em dois importantes países con-sumidores de músicas: Alemanha e Inglaterra.Para que isso fosse possível, evidentemente aindústria foi obrigada a rever seus preços para ä

ÉPOCA 6 DE MARÇO, 2006 71

O site devenda legaliTunes temmilhões deusuários

cadastradosem 21 países

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ÉPOCA 6 DE MARÇO, 2006

nativo de remuneração de autores chamadoCreative Commons. Substituiu a máxima “Todosos direitos reservados” por “Alguns direitos reser-vados”. No Creative Commons, o autor escolheos limites de reprodução de sua obra. Quem pro-duz uma música, por exemplo, pode oferecer odownload gratuito da obra para os ouvintescomuns, mas exigir o pagamento de direitos parauso comercial em filmes, celulares ou games.Quem escreve um livro pode autorizar cópiasxerográficas para estudantes ou downloads nainternet, mas exigir o pagamento por exempla-res impressos pela editora. Trata-se de uma adap-tação da lei atual, de modo a aproximá-la da rea-lidade e torná-la aplicável. Hoje, essa flexibili-dade vem sendo usada com sucesso principal-mente por artistas iniciantes, que aproveitam ainternet para divulgar seu trabalho e, assim, serdescobertos. A maior inspiração para o CreativeCommons foi o sistema operacional Linux, umaalternativa aos softwares comerciais desenvolvidapela colaboração de milhares de voluntários e dis-tribuída livremente pela internet. Outro fenômenoregido pelas licenças do Creative Commons é aWikipédia, hoje a maior enciclopédia do mundo,também desenvolvida livremente por legiões decolaboradores on-line. Já há 1,5 milhão de músi-cas, filmes, livros e programas eletrônicos regidospelas regras do Creative Commons.

O ministro da Cultura, Gilberto Gil, é um entu-siasta desse novo sistema. Foi o primeiro artista

baixo. Embora tal medida represente um risco,a história do videocassete mostra que não neces-sariamente haverá queda no faturamento total.

A discussão apresenta ainda um paradoxomais importante. O conhecimento, a cultura eos bens culturais não surgem por geraçãoespontânea. São resultado da soma de milha-res de experiências, idéias e de muita, muitacópia e reinvenção de idéias dos outros. No pri-meiro capítulo de seu livro Free Culture, o advo-gado Lawrence Lessig, professor de Direito daUniversidade Stanford, nos Estados Unidos, eum dos maiores especialistas do mundo emDireito Digital, relata como o próprio WaltDisney reciclou idéias de outros. O primeirofilme com o camundongo Mickey, SteamboatWillie, de 1928, foi inspirado no musicalSteamboat Bill, Jr. O primeiro longa de anima-ção, Branca de Neve, é uma livre adaptação doclássico dos irmãos Grimm. Em ambos os casos,Disney não teve de se preocupar com direitosautorais. O que ele conseguiria fazer hoje?“Disney e a sua empresa extraíram criatividadeda cultura já existente, misturaram com o seutalento extraordinário e a devolveram à socie-dade”, diz Lessig. “Nosso foco deve ser comogarantir a remuneração dos artistas, mas pro-tegendo o espaço de inovação e de criatividadeque a internet fornece.”

Para fortalecer a criatividade e garantir a livretroca de idéias, Lessig criou um sistema alter-

A BALADA DO BANDIDODois hackers armam festa de arromba

com dinheiro roubado dos bancos

No dia 24,André e César (nomes fictícios)dizem que vão comprar um camarote nu-

ma badalada festa paulistana. De limusinealugada, afirmam que levarão seus melho-res amigos para o evento, comprarão gar-rafas e mais garrafas de uísque importa-do, combustível para uma noite que preten-dem tornar inesquecível. Eles prometem nãopoupar gastos para se divertir na festa quemarcará a despedida de ambos. Mas An-

dré e César não querem viajar nem se mu-dar. Apenas dizem que abandonarão no diaseguinte o estilo de vida que os fez torrarmais de R$ 200 mil em cinco meses. Foramroupas, tênis, bonés, festas, bebidas e mu-lheres, tudo comprado com o dinheiro prove-niente do roubo de bancos pela internet. Aos18 e 17 anos, respectivamente, André eCésar se dizem membros de uma das di-versas quadrilhas que desviam recursos decontas bancárias no Brasil. É preciso fazeruma distinção entre o crime praticado por es-ses garotos, que roubam dinheiro de ver-dade, e a prática de milhões de internau-

LIVREWalt Disney

não precisou pagardireitos aos irmãos

Grimm para criar suaBranca de Neve

1,5 milhãode músicas,livros, filmese programassão regidospelas regrasflexíveis do

CreativeCommons

CÉSAR Ele começou pichando sites

Fotos: reprodução; Marcos Serra Lima/ÉPOCA; Maurilo Clareto/ÉPOCA; Sidney Lopes/Folha Imagem

CCOOMMPPOORRTTAAMMEENNTTOO

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Page 10: Somos todos piratas

brasileiro a oferecer músicas gratuitamente aopúblico usando as regras do Creative Commons.Gil considera a indústria fonográfica nos mol-des atuais uma barreira para o acesso do públicoà cultura. “Foi a pirataria que, de certa forma,chamou a atenção para a necessidade de umaflexibilização da propriedade intelectual”, afi-mou em novembro do ano passado. De acordocom o advogado Plínio Cabral, autor do livroRevolução Tecnológica e Direito Autoral, tantoas leis quanto a indústria precisam se adaptaràs facilidades de distribuição trazidas pela inter-net. “Se isso não acontece, elas acabam atrapa-lhando o desenvolvimento da sociedade emplena era da informação”, afirma Cabral. Muitagente chama de ‘comunistas” os defensores dastrocas de arquivo na internet, dos softwares livresou do Creative Commons. Para as alas mais con-servadoras da indústria cultural, é uma formafácil de rotular o inimigo. Para a esquerda, orótulo também vem a calhar, pois renova umabandeira esfarrapada. Mas Lessig, Barlow ouGilberto Gil não estão propondo que se acabecom a remuneração pela criação intelectual. Aocontrário. Sua principal intenção é permitir ainovação e construir talvez a única forma de sal-var a própria indústria de software e de entre-tenimento diante do desafio digital. Ou então,o risco é punir quem não precisa ser punido eatrasar o incrível desenvolvimento tecnológicoe cultural em curso no planeta. n

ÉPOCA 6 DE MARÇO, 2006 73

tas, que apenas copiam material protegido.César diz ter começado pichando sites na

internet. André afirma que entrou para o cri-me fazendo compras com cartões de crédi-to alheios. Em salas de bate-papo, dizem teraprendido os truques e conseguiram as fer-ramentas para praticar o phishing, uma dasmais disseminadas modalidades de crimescibernéticos. Funciona assim: para conseguiras senhas das contas, eles enviam milhõesde e-mails em nome dos bancos e solicitamos dados ou instalam um programa que oscaptura. Por incrível que pareça, muita gen-te ainda cai no golpe, principalmente se con-

siderarmos que a estatística é favorável aocriminoso. Por exemplo, se ele dispara 5 mi-lhões de e-mails, basta que 1% dos desti-natários responda para que ele tenha emmãos nada menos que 5 mil senhas de con-tas correntes. “Não sou ladrão. Apenas peçoas senhas e as pessoas me dão”, afirma Cé-sar, sem disfarçar o sarcasmo.

Com os dados bancários nas mãos,os ban-kers (como são conhecidos esse tipo de hac-ker) acionam os laranjas, pessoas que rece-bem as transferências em dinheiro em contaspróprias ou de terceiros, e depois sacam aquantia em espécie. Normalmente, os laran-

jas ficam com 50% do total desviado. Outraforma bastante usual de tirar o dinheiro dascontas invadidas é o pagamento de boletosbancários. O invasor paga contas dos laranjase estes lhe repassam uma porcentagem dovalor pago. É assim que André e César dizemter alugado carrões para ir a festas e conse-guem dinheiro para bebedeiras e farras comprostitutas. “Já gastei R$ 10 mil em uma via-gem de final de semana e R$ 3 mil em umaúnica noite, na comemoração do meu aniver-sário. Fomos a uma casa noturna e pagueitudo para meus amigos”, conta André. n

RICARDO AMORIM

O CONSUMO DE MASSA DE AMANHÃPor Gilson Schwartz*

O revolucionário de ontem é o conservador de hoje e, talvez, o reacio-nário de amanhã. Na França, berço das revoluções modernas, o re-

belde 68 virou diretor de empresa. No mundo digital, o “hackerismo” deontem é o consumo de massa de amanhã. Em qualquer indústria, exis-tem ciclos de inovação. Pesquisadores na academia ou empreendedoresem garagens inventam mil soluções geniais, abrem várias garrafas, sol-tam-se gênios no ar. Nos EUA, a garotada voltou a ficar rica antes dos 30.

O “hacker” é um bisbilhoteiro, meio cientista, meio artista experimen-tal. Pode inventar um software revolucionário que, um ou dois anos de-pois, vira negócio e provoca a fúria de Estados: caso dos moleques doGoogle às voltas com o governo Bush e o Estado chinês (aomesmo tempo!). Fora o impacto do MP3 na indústria fonográ-fica. Nosso conforto em casa, no trabalho ou nas férias ga-nha cada vez mais com a disseminação dessas invenções di-gitais incessantes, nem sempre saídas do seu fornecedor ha-bitual de informação no governo, no mercado ou na escola.

No “front” da competição digital imperam duas forças comalto poder de penetração: a mobilidade e a portabilidade.A nova onda na civilização audiovisual é sem fios. No Bra-sil, em menos de cinco anos a telefonia celular bateu onúmero de computadores e alcança uma penetração pró-xima à da TV. Portabilidade e mobilidade são fatores críticosna convergência digital entre os dois principais setores daeconomia das telecomunicações no Brasil: televisão e tele-fonia. Um exemplo do efeito combinado das duas mídiasé o Big Brother Brasil, que numa votação por celular mo-biliza milhões de cidadãos.

Nos países em desenvolvimento, as soluções criativas e co-laborativas para promover a inclusão digital dos mais pobres são uma prio-ridade. Empresas, voluntários, governos e, claro, hackers participam deum esforço mundial contra o paredão digital. O custo dos equipamentos con-tinua caindo enquanto aumentam potência e qualidade. Em Katmandu,Nepal, um professor da Finlândia ajuda uma empresa local a espalhar cone-xão sem fio entre vilarejos. Na África, redes sem fio ampliaram oportuni-dades para empreendedores locais. O resultado é mais informação e cul-tura, remédio contra males da alma, do corpo e do planeta. É tambémuma nova fronteira para criar e abastecer canais de produção, distribuiçãoe consumo de bens e serviços, digitais ou não. n

* Sociólogo e diretor da Cidade do Conhecimento da USP

ABASTECIDOJoão Eduardodescobriu o rockbaixando degraça adiscografiacompleta de suasbandas favoritas

SCHWARTZOnde estão osinovadores

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