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    Psicologia USP, 2004, 15(3), 213-231 213

    SOLARIS: CONHECIMENTOEAUTOCONHECIMENTO

    Rafael Raffaelli1

    Universidade Federal de Santa Catarina

    O propsito do presente ensaio interpretar o filme Solaris, de AndreiTarkovski, e a novela homnima, de Stanislaw Lem, enfatizando as

    conexes entre conhecimento e autoconhecimento. So empregados,

    como chaves de leitura, alguns dos conceitos da psicologia analtica deC. G. Jung, tais como: processo de individuao, si-mesmo e

    personalidade-mana.

    Descritores: Conhecimento. Autoconhecimento. Literatura. Cinema.

    indstria cultural, ao homogeneizar sua produo, dificulta ao apreci-ador da arte agora reduzido a consumidor cultural usufruir e

    compreender as mensagens implcitas nas manifestaes artsticas, justa-mente pela dificuldade de acesso s cifras que permitem a transposio dosentido figurado ao prprio.

    Atualmente, a atrofia da imaginao e da espontaneidade do consumidor culturalno precisa ser reduzida a mecanismos psicolgicos. Os prprios produtos e entreeles, em primeiro lugar, o mais caracterstico, o filme sonoro paralisam essas ca-pacidades em virtude de sua prpria constituio objetiva. (Adorno & Horkheimer,1944/1985, p. 119)

    1 Doutor em Psicologia Clnica pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo.Professor Titular do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de SantaCatarina - UFSC. Endereo para correspondncia : Rua Aracu, 351, Pantanal, Flo-rianpolis, SC. CEP 88040-310. Tel/Fax: (48) 233-3247. Endereo eletrnico:[email protected]

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    Mas nem todos os filmes so construdos a partir dos chaves holly-woodianos, tratando temticas rasas atravs de roteiros repetitivos, fazendoda pretensa objetividade sua razo de ser. Para as pelculas que no se pau-tam pela homogeneizao cultural os denominados filmes de arte a

    anlise flmica e literria possui evidente expresso cultural, buscando inter-pretar obras artsticas que exerceram e continuam a exercer notvel influn-cia na construo do imaginrio social.

    Esse o caso do filme Solaris, do cineasta russo Andrei Tarkovski,baseado na novela homnima, do escritor polons Stanislaw Lem, publicadaoriginalmente em 1961. O filme estreou em 13 de maio de 1972 no Festivalde Cannes, no qual foi agraciado com o Prmio Especial do Jri

    2. Em 2002,

    foi realizada, nos Estados Unidos, uma outra verso, dirigida por Steven

    Soderbergh, que reacendeu o interesse pelo texto de Lem.A anlise proposta neste ensaio ser baseada na narrativa apresentada

    por Lem e pontuada por observaes que remetem s imagens da pelcula deTarkovski. A comparao das duas obras nos permite compreender como aadaptao cinematogrfica de uma histria pode acrescer e no diminuir o

    2 Ficha tcnica do filme Solaris (Soliaris) direo: Andrei Tarkovski; roteiro: An-

    drei Tarkovski, Fridrich Gorenchtein; fotografia: Vadim Yusov; msica: EduardArtemev (e o Preldio coral em f menor de Johann Sebastian Bach); cenografia:Michail Romadin; intrpretes: Donatas Banionis (Kris Kelvin), Natalia Bondarchuk(Hari), Yuri Yarvet (Snout)/Anatoli Yarvet (Snout), Anatoli Solonitsyn (Sartorius),Vladislav Dvorjecki (Burton), Sos Sarkisian (Gibarian), Nicolai Grinko (pai deKelvin); produo: Mosfilm; durao (edio original): 165 minutos; lanamento:1972 (Tarkovski, 1998, p. 294). Dadas as incongruncias referentes denominaodos personagens na traduo brasileira da obra de Lem em relao verso cinema-togrfica, optamos por grafar os nomes dos personagens tal como constam na fichatcnica do filme, citada acima. As comparaes feitas, poca de seu lanamento,entre Solaris e 2001: Uma odissia no espao, de Stanley Kubrick baseado na

    novela de Arthur Clarke , como se o filme russo fosse uma espcie de respostahumanista viso tecnolgica exacerbada do filme americano, opondo soft sci-fi(que enfatiza temticas humanas em situaes aliengenas) e hard sci-fi (que privi-legia as temticas tecnolgicas), no so totalmente fora de propsito, desde quecom isso no se pretenda desqualificar a obra de Kubrick, cujo final, inclusive, um retorno perspectiva soft.

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    contedo da trama original, preservando e ampliando, ao mesmo tempo, oescopo da narrativa. Uma obra fala outra: essa dialtica entre a imagem e aletra exemplar. Se a obra de arte no transcende suas prprias origens, elapermanece presa aos esquematismos e se converte num smile sem valor:

    definitivamente, no esse o caso do filme de Tarkovski.Sem se ater aos aspectos literrios da obra de Lem nem aos aspectos

    estticos do filme, o objetivo deste ensaio explorar as implicaes psicol-gicas presentes na narrativa, interpretadas luz das concepes de Carl Gus-tav Jung. O eixo terico reside na inter-relao entre episteme (conhecimen-to) e processo de individuao (autoconhecimento), com nfase na questodo arqutipo do si-mesmo, tal como concebido na perspectiva junguiana.Trs questes so trabalhadas: a) Quais as referncias histricas e filosficas

    presentes na narrativa? b) Como os personagens e as situaes narradas po-dem ser interpretados a partir das formulaes tericas junguianas? e c) Co-mo se conectam nessa interpretao o conhecimento e o autoconhecimento?

    Embora o filme seja muito fiel novela, uma diferena notada deimediato: as seqncias iniciais rodadas em uma cena campestre idlica,durante o vero, numa datcha no interior da Rssia. Essas seqncias mos-tram o protagonista o psiclogo Kris Kelvin observando o movimentodos animais e o fluir da gua de um riacho. Uma casa feita de madeira

    construda segundo o modelo da casa de um ancestral rene os familiaresdo protagonista, com destaque para as cenas com o pai. Em uma dessas ce-nas, Kelvin aparece queimando antigos papis, entre eles a foto de uma mu-lher, que saberemos depois ser Hari, sua finada esposa que se suicidara. Afamlia visitada por Burton, um piloto aposentado, que apresenta a fita deseu depoimento a uma comisso cientfica a respeito das vises que teve aosobrevoar o planeta Solaris. A novela, por sua vez, inicia-se com a chegadado protagonista estao orbital e sem referncia alguma sua famlia de

    origem; o relato de Burton s surge no sexto captulo, inserido num docu-mento denominado O Pequeno Apcrifo. As ltimas cenas do filme conectadas ao incio atravs da mesma locao tambm so um acrscimode Tarkovski trama, culminando na antolgica tomada final em zoom-out.

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    A trama da obra gira em torno aos estranhos fenmenos que aconte-cem na estao espacial Solaris. Kelvin enviado estao para averiguaresses fenmenos e avaliar a convenincia do seu abandono. J na estao,fica sabendo que um dos trs cientistas-tripulantes se suicidou (seu amigo

    Gibarian); os outros dois (Snout e Sartorius) agem de modo suspeito. A cau-sa dessa situao so as criaturas-psi corporificaes de memrias ou dese-jos que surgem inopinadamente aos tripulantes durante o sono. Logo apssua chegada, Kelvin entra em contato com a materializao de Hari, sua ex-mulher que se suicidara na Terra.

    O centro da narrativa o oceano, um ser ininteligvel que teima na suasolido, com o qual se procura obter contato a geraes, sem sucesso. Ooceano recobre inteiramente o planeta Solaris e acima dele orbita a estao

    espacial homnima habitada por alguns cientistas ligados Solarstica,isto , ao ramo da Cincia dedicado unicamente ao estudo de Solaris. O oce-ano considerado uma forma primitiva de evoluo para os bilogos, maspara os fsicos, ele visto como uma estrutura orgnica complexa, capaz deexercer influncia sobre a rbita do planeta.

    Ao contrrio dos organismos terrestres, ele no levara centenas de milhes de anospara adaptar-se ao meio ambiente culminando nos primeiros representantes deuma espcie dotada de razo , mas dominara-o imediatamente. (Lem, 1961/1987,

    pp. 20-21)

    Podemos pensar no oceano como uma metfora do inconsciente ou,numa formulao mais precisa, como o si-mesmo, o centro da psique nateoria junguiana, aquela indescritvel totalidade (ou inteireza) do homemque no pode ser visualizada, mas que indispensvel como conceito intui-tivo (Jung, 1985, p. 148). A sua evoluo lembra a espontaneidade do sur-gimento dos arqutipos, que se apresentam sob um carter numinoso, quepoderamos definir como espiritual, para no dizer mgico (Jung, 1982,

    p. 142).Sob a superfcie do oceano nada pode ser observado, embora a funo

    inconsciente continue atuando sem que o ego perceba. O ego fica restrito

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    viso da superfcie, captando certos sinais como nos sonhos ou nos sinto-mas sem que possa decifr-los.

    Lem (1961/1987, p. 24) relembra a clebre formulao do fisiologistaalemo Du Bois-Reymond, exposta em 1880 ignoramus et ignorabimus(desconhecemos e continuaremos a desconhecer) , sobre os sete enigmasdo mundo: 1. a origem da matria e da energia; 2. a origem do movimento;3. a origem da vida; 4. a finalidade da natureza; 5. a origem da sensibilidadee da conscincia; 6. a origem do pensamento racional e da linguagem; e 7. olivre-arbtrio ( Abbagnano, 1982, p. 315). Essa formulao, que enfatizava aincognoscibilidade irredutvel da origem dos fenmenos, exerceu notvelinfluncia sobre o pensamento cientfico do sculo XIX, inclusive, sobre aviso de Freud e Jung acerca dos limites da cincia, em geral, e da psicanli-

    se, em particular. Embora Lem no explicite dessa forma em seu texto, po-demos inferir pelo sentido geral da obra que um oitavo enigma poderia seraventado: o contato com uma inteligncia ou civilizao extraterrestre.

    O texto da novela sublinha o dilema de uma cincia (Solarstica), queno pode aceitar a existncia de fenmenos que superem a sua capacidade decompreenso numa determinada poca e, dessa forma, o excesso tratadocomo mito. A resposta racional ao desconhecido a especializao do saber.Assim, reconhecida a diversidade do mundo e sua infinita complexidade, resta

    dividir o conhecimento em reas praticamente estanques tentando cada qualsua verdade particular e carente de sntese , nas quais os enigmas tornam-seproblemas cientficos, sem que com isso sejam solucionados.

    Os supostos especialistas formavam uma legio, e cada um tinha sua prpria teoria.(...) Como esperam vocs comunicar-se com o oceano, se nem mesmo conseguementender-se uns com os outros? O escrnio tinha muito contedo, na verdade.(Lem, 1961/1987, p. 24)

    A falta de um sentido de comunho com o cosmos, a incapacidadehumana de se ver como parte integrante da Natureza, impossibilita a com-preenso de que aquilo que procuramos fora, no mundo exterior isto , noplaneta Solaris , um reflexo do Homem. O si-mesmo, representao lti-ma do ser, tanto fonte da humanidade como do mundo, pois ultrapassa as

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    fronteiras do psquico: A individuao no exclui o mundo; pelo contrrio,o engloba (Jung, 1982, p. 162).

    O oceano seria, assim, a representao do arqutipo central3, de tudo

    de misterioso e enigmtico que encontramos nas entranhas de nosso prprioser e no mundo, sobre o qual nada de positivo pode ser dito.

    Muitas vezes, temos a impresso de que a psique pessoal galopa em torno desseponto central como um animal assustado, ao mesmo tempo, fascinado e temeroso;embora fuja constantemente, cada vez mais se aproxima do centro. No quero darensejos a mal-entendidos, nem quero que pensem que sei algo a respeito da nature-za do centro , pois este simplesmente incognoscvel. (Jung, 1994, p. 231)

    Devido a isso, todo o conhecimento que a cincia produz sobre Sola-

    ris, isto , sobre o centro da psique, essencialmente um saber por excluso:A soma total dos fatos conhecidos era estritamente negativa (Lem,1961/1987, p. 25).

    E a compreenso do si-mesmo ocorre pelo simbolismo que ele elicia,transformando determinadas manifestaes culturais e certos objetos ouimagens (formas) deles derivadas em representaes da totalidade.

    No devemos confundir as representaes arquetpicas , que nos so transmitidaspelo inconsciente, com o arqutipo em si. Essas representaes so estruturas am-

    plamente variadas que nos remetem para uma forma bsica irrepresentvel que secaracteriza por certos elementos formais e determinados significados fundamen-tais. (...) A verdadeira natureza do arqutipo incapaz de tornar-se consciente, quer

    3 Jung faz questo de separar a sua viso de uma perspectiva exclusivamente filosfica,como se depreende do seguinte trecho: A expresso si-mesmo s permite um enun-ciado antinmico. O si-mesmo , per definitionen a expresso de uma realidademais ampla do que a personalidade consciente. Essa ltima no tem, por conseguinte,condies de emitir um julgamento que abranja o si-mesmo, ou seja, qualquer julga-mento e qualquer afirmao a esse respeito so incompletos e, por isso, devem ser

    completados (no eliminados) por uma negao condicional. Assim, quando digo: osi-mesmo existe, devo completar: e existe como se no existisse. Para ser maiscompleto, poderia tambm inverter o sentido da proposio e dizer: o si-mesmo e-xiste e no existe ao mesmo tempo, como se existisse. (...) No se trata somente deum conceito filosfico, como , por exemplo, o da coisa em si de Kant, mas de umconceito da psicologia experimental (experiencial). (Jung, 1983, p. 266)

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    dizer, transcendente, razo pela qual eu a chamo de psicide. (...) Aquilo que en-tendemos por arqutipos , em si, irrepresentvel, mas produz efeitos que tornampossveis certas visualizaes, isto , as representaes arquetpicas. (Jung, 1982,pp. 150-151)

    O oceano o centro da personalidade tomado ora como um sbio,que despreza o contato, ora como um autista, incapaz de se comunicar (Lem,1961/1987, p. 26). H aqueles que encaram o Homem como uma tabularasa. H aqueles que negam o inconsciente. H aqueles que crem que dontimo do Homem s brote a violncia e o sexo. Inversamente, h tambmaqueles que, endeusando e mitificando o si-mesmo, buscam estabelecer ocontato com o centro da personalidade atravs do misticismo, dos regimesalimentares, dos exerccios fsicos, da submisso a um guru ou a uma seita

    tudo isto porque no se consegue mais conviver consigo mesmo e porquefalta f em que algo de til possa brotar de nossa prpria alma (Jung, 1994,p. 109). Tanto o realismo como o misticismo falham em procurar nos meca-nismos e processos exteriores a chave para o conhecimento do si-mesmo.

    As categorias de espao, tempo e causalidade no se aplicam ao ocea-no, que existiria eternamente igual a si-mesmo, do mesmo modo que o in-consciente, que existe de forma transespacial e transtemporal, corres-pondendo quilo que se qualifica simbolicamente como eternidade (Jung,

    1982, p. 367). Mas a dvida fundamental da Solarstica era saber se o oce-ano era consciente e se era possvel comunicar-se com ele. Poder-se-ia falarem pensamento em relao s atividades do oceano? Lem descreve essasatividades como sendo uma autometamorfose ontolgica, contudo, uma montanha somente uma imensa pedra? um planeta uma enorme mon-tanha? (Lem, 1961/1987, p. 26).

    Primeiramente, pensou-se em estabelecer contato atravs de uma curi-osa propriedade do oceano, sua propenso imitao de objetos, expressa

    nas formaes mimides (Lem, 1961/1987, p. 111), que poderia ser en-tendida como uma tendncia repetio inconsciente.

    Essa caracterstica do oceano sua suposta gratuidade somada com-plexidade de configurao um smile do processo inconsciente, no qual

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    as imagens so copiadas e reelaboradas gerando figuras de pesadelo, apa-rentemente destitudas de sentido.

    Com o fracasso da anlise dos mimides, a nica indicao de con-tato eram os estranhos fenmenos que ocorriam com os tripulantes, suarevelia, e que ameaavam levar a estao orbital ao colapso. A Solarsticachega a um impasse aps anos de pesquisa infrutfera e necessita do concur-so de um psiclogo (Kelvin) para discriminar o delrio da realidade, a aluci-nao da percepo verdadeira, socialmente estabelecida, e avaliar a conve-nincia da continuidade dos trabalhos de pesquisa na estao. Mas eletambm se confronta com seus prprios complexos, minando a persona ra-cionalista do psiclogo que analisa os delrios alheios.

    O filme enfatiza a incapacidade do relato exato da percepo, comono deslocamento temporal do depoimento do piloto comisso cientfica do meio para o incio da narrativa , que visa a salientar esse aspecto. Per-cepes que no se conformam com a normalidade so consideradas aluci-naes. As imagens conscientes so a expresso cognitiva do indivduo ouda coletividade que a produz e sua ruptura abre uma fenda, atravs da qualpode se expressar o smbolo, acercando-se do inconsciente. O descompassoentre a percepo do piloto (Burton) e a racionalidade fria de Kelvin colocaos limites da ao do prprio personagem. O psiclogo sabe distinguir o que

    realidade e o que alucinao? Em qual sentido?No entanto, esse psiclogo, que se pretende racional, colocado em

    meio s suas prprias angstias, sendo confrontado com a cpia feita deneutrinos (criatura-psi) de Hari. Culpa reprimida surge como imagemirreprimvel. Um tormento de conscincia em que s a aceitao da limita-o da racionalidade absolutista permite a Kelvin reconsiderar sua prpriaexistncia e sua relao com o Outro.

    Pois nenhum conhecimento real advm sem que seja acompanhado de

    um autoconhecimento correspondente. Olhar para o oceano como um objetoa ser analisado no o torna capaz de penetrar nas entranhas da criao deseus prprios pensamentos desconexos, visto que, debaixo do feixe aparen-temente monoltico da conscincia vgil, residem idias divergentes, contra-

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    ditrias, angustiadas, esperando pacientemente a hora do sono, para pode-rem ser representadas em imagens onricas.

    O oceano presenteia o psiclogo com a conscincia de sua prpria e-laborao psquica oriunda das esferas desejantes dos complexos que,agindo no mago de seu inconsciente, gera os fantasmas presentes na suasombra. E essa purgao, finalmente, abre o caminho para a espiritualidade:s vezes, a conscincia se acha na proximidade dos processos instintivos, ecai sob sua influncia; outras vezes, ela se aproxima do outro extremo ondeo esprito predomina (Jung, 1982, p. 144).

    Quando Kelvin visitado por suas memrias culposas, sua primeirareao encarar o fato da perspectiva do ego. Estarei ficando louco? apergunta que se faz. E, aparentemente, a nica soluo estabelecer parme-tros de realidade, de realidade controlada, realidade cientfica. Mas ele d-seconta da impossibilidade de controlar seus prprios pensamentos.

    Mesmo enquanto sonhamos, quando estamos em perfeita sade, conversamos comestranhos, fazemos-lhes perguntas e ouvimos suas respostas. Alm disso, emboranossos interlocutores sejam, na realidade, criaes de nossa prpria atividade ps-quica, desenvolvidas por um processo pseudo-independente, no sabemos que pa-lavras sairo de seus lbios at que falem conosco. E, no entanto, essas palavrasso formuladas por uma parte separada da nossa prpria mente; por conseguinte,devemos estar conscientes delas no exato momento em que as arquitetamos a fim

    de coloc-las na boca de seres imaginrios. (Lem, 1961/1987, p. 49)

    O que sonho, o que realidade? Kelvin mergulha nessa dvida exis-tencial, quando sua percepo j no d conta de separ-los.

    Entretanto, o processo de autoconhecimento ou de individuao sevolui quando se aceita a incapacidade do ego de controlar o todo da perso-nalidade, superando os limites do inconsciente pessoal: O si-mesmo, emsua totalidade, se situa alm dos limites pessoais (Jung, 1982, p. 28).

    Desse modo, o ego deve superar os complexos presentes em seu in-consciente pessoal ou sombra e estabelecer um contato com as imagens ar-quetpicas atravs de sua anima ou animus. O contato com o si-mesmo

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    guiado pelas personalidades-mana4

    ou iniciticas: o heri, a sacerdotisa, ovelho sbio, a feiticeira, entre outras representaes. Essas personalidades-mana que estabelecem o eixo egosi-mesmo, quer dizer, a abertura consci-ente para o centro da personalidade. As criaturas-psi refletem, inicialmente,

    os complexos do inconsciente pessoal dos astronautas em Solaris, mas jcontm, in nuce, o princpio da transmutao psquica, pois podem meta-morfosear-se em personalidades-mana, possibilitando o contato entre o egoe o si-mesmo. Nessa perspectiva, Hari representa, primeiramente, a culpareprimida na sombra e, depois, assume o papel de anima positiva ou carterde transformao positivo para a personalidade de Kelvin.

    Para Neumann (1996), a relao materna o reflexo do selfdo indiv-duo, pois a separao do beb da me comparvel diferenciao entre o

    ego e o si-mesmo. Graas a esse postulado, a imagem arquetpica da GrandeMe central para o processo de individuao. Num dos sonhos de Kel-vin, no filme, surge a imagem de sua me, contrapondo-se de sua jovemmulher. Isso se explicaria pela sua incapacidade de separar essas imagens,em razo do conhecimento superficial de sua prpria personalidade: Quan-to mais inconsciente o homem, mais a figura de anima permanece fundidaou conectada figura mana da me ou da velha (Neumann, 1996, p. 258).

    Kelvin toma contato com seu lado negro e torna-se mais humano, ao

    se perceber falvel e fragilizado. Tarkovski faz o seguinte comentrio sobre aevoluo do personagem:

    Kelvin, que a princpio parecia ser um personagem limitado e medocre, revela-sepossudo por tabus profundamente humanos, que o tornam organicamente inca-

    4 Para os nativos da Melansia, mana significa o dom da transcendncia que se

    concentra em determinados objetos, pessoas ou imagens, os quais adquirem quali-dades iniciticas, isto , de guias para a realidade mgico-espiritual (Neumann,

    1996, p. 258). Veja-se ainda: Como acontece para as outras figuraes arquetpicas,que, enquanto tais, se verificam na poro imaginativo-representativa do processode individuao, a personalidade mana deve, segundo Jung, ser reconhecida peloEu como personalidade parcial em relao totalidade psquica, para que justamen-te o Eu, enquanto parte da psique, possa entrar em relao dialgica com ela. (Pieri,2002, p. 382).

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    paz de desobedecer voz da sua prpria conscincia e de se esquivar ao pesadofardo da responsabilidade pela sua vida e pela dos outros. (Tarkovski, 1998, pp.249-250)

    No texto de Lem, esse psiclogo juiz da normalidade finalmenteconfrontado com seus dilemas e sua ignorncia no dilogo com Snout, ofsico.

    [Snout] Que um homem normal? Um homem que jamais cometeu um ato in-fame? Talvez. Mas ser que ele nunca teve pensamentos descontrolados? Talvezno tenha tido. Mas talvez alguma coisa, um fantasma, tenha se levantado dentrodele, h dez ou trinta anos, algo que ele reprimiu e depois esqueceu, que ele noteme, j que sabe que jamais permitir que isso se desenvolva e o leve a algumaao. E agora, de repente, em plena luz do dia, ele se depara com essa coisa... Essepensamento, corporificado, preso a ele, indestrutvel... (...) E voc se considera um

    psiclogo, Kelvin! Quem no teve, em algum momento de sua vida, um devaneiolouco, uma obsesso? Imagine... Imagine um fetichista que se apaixone por, diga-mos, uma pea de roupa suja, e que ameace e implore e enfrente qualquer risco afim de obter o amado pedao de trapo (...) Um homem que ao mesmo tempo sentevergonha do objeto de seu desejo e o ama acima de tudo, um homem que est dis-posto a sacrificar a prpria vida pelo seu amor (...). Portanto, da mesma forma, e-xistem coisas, situaes, que ningum ousa exteriorizar, mas que a mente produzpor acidente em um momento de aberrao, de loucura, chame como quiser. No es-tgio seguinte, a idia transforma-se em carne e sangue. Isso tudo. (Lem,1961/1987, p. 72)

    Kelvin , assim, obrigado a reconhecer os sintomas a que est sujeitocomo resultado da atuao de seus complexos e os limites da racionalidadena psicologia, cujo objeto exorbita os dois aspectos que nos so transmiti-dos atravs da percepo sensorial e do pensamento (Jung, 1982, p. 30).

    E toda a pesquisa, toda explorao tambm pesquisa e explorao doprprio self. Para onde quer que vamos ao mais longnquo rinco do espa-o estamos sempre em confronto com nossos fantasmas, que viajamconosco, espelhando aquilo que no queremos ver: No temos necessidade

    de outros mundos. Precisamos de espelhos (Lem, 1961/1987, p. 72).O Homem busca a fonte da luz, a episteme, mas onde existe luz, exis-

    tir tambm a sombra: A luz e a sombra formam uma unidade paradoxal nosi-mesmo emprico (Jung, 1982, p. 39). Assim, os cientistas de Solaris co-

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    meam a tomar conscincia de que seus mtodos intrusivos de investigaoapresentam efeitos inesperados.

    Estou falando sobre o que todos queremos: contato com uma outra civilizao.

    Agora o temos! E podemos observar, como se atravs de um microscpio, nossaprpria feira monstruosa, nossa loucura, nossa vergonha! (Lem, 1961/1987, p. 73)

    Mas Kelvin, realista convicto, tenta livrar-se, fisicamente, de seusproblemas, como quem faz uma lobotomia, realizando um divrcio porejeo (Lem, 1961/1987, p. 76), enviando a rplica de sua finada esposanum foguete rumo ao nada. Mas essa cura no durar muito. A tentativade anular o mistrio, de negar a transcendncia do fenmeno, provoca umasupresso do sintoma, mas o preo o recalque dos aspectos mais essenciais

    da personalidade. Mas em Solaris o reprimido sempre retorna.Kelvin , ento, obrigado a reconsiderar o relato de Burton sobre suas

    vises de uma criana gigantesca sobre o oceano, para tentar solucionar osestranhos fenmenos que ocorrem em Solaris. A novela descreve a viso dopiloto e a interpretao de um especialista sobre a mesma, denominando-aOperao Homem (Lem, 1961/1987, pp. 83-87), isto , uma presumvelexperincia realizada pelo oceano para entender ou mesmo manipular ofuncionamento do ser humano.

    O oceano , sem dvida, a origem das criaturas-psi. Mas, frente im-possibilidade de se livrarem dos incmodos visitantes, os cientistas debateminconclusivamente sobre o seu significado, concordando apenas que sosomente projees materializadas por nossos crebros, baseadas em um da-do indivduo (Lem, 1961/1987, pp. 100-101).

    Quanto mais Kelvin mergulha nessas indagaes, mais sua conscin-cia se obnubila, retornando ao estado sonamblico no qual se misturam aalucinao e a realidade. Ele d-se conta, enfim, de sua incapacidade de

    solucionar o enigma, quando escuta a gravao que seu amigo Gibarian ha-via deixado antes de se suicidar.

    Frente impossibilidade de fazer cessarem as aparies de Hari, Kel-vin conforma-se com seu destino e deixa de neg-la. Ao contrrio, passa a

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    am-la, mesmo sabendo que ela provm do oceano, que uma cpia feita deneutrinos, quer dizer, que uma imagem provinda do centro de sua persona-lidade. Hari, contaminada pela dvida, tenta at o suicdio, mas a imagem domensageiro no tem o poder de autodestruir-se. Ganhando estatura humana,

    mesmo no sendo biologicamente humana, filosofa sobre sua composio esua existncia: Ouvi o bastante para compreender que no sou um ser hu-mano, sou apenas um instrumento (Lem, 1961/1987, p. 151).

    Finalmente, numa ltima tentativa, os cientistas resolvem enviar emdireo ao oceano os encefalogramas de cada um deles.

    , nesse momento, que o psiclogo reconhece o dinamismo autnomoda psique e trava contato, ento, com os aspectos ameaadores que o encon-tro com o si-mesmo propicia.

    [Kelvin] Fui possudo por uma abrupta sensao de medo. Meu encefalograma.Uma gravao completa das atividades de meu crebro estava para ser injetada nooceano, sob a forma de radiao. (...) Um encefalograma registra todos os proces-sos mentais, conscientes e inconscientes. (...) Sou responsvel pelo meu inconsci-ente? Ningum mais o , a no ser eu mesmo. (Lem, 1961/1987, p. 151)

    No entanto, superados os complexos, as criaturas-psi deixam de serlembranas malquistas e so reconhecidas como componentes de sua pr-pria personalidade e, assim, perdem razo de ser e desaparecem. Realizada aligao entre o eu e o si-mesmo, cumprida a sua funo de personalidade-mana ou iniciatria, os fantasmas se dissolvem, e o oceano o self podeser reconhecido como o centro da personalidade.

    No filme de Tarkovski num movimento de cmera em zoom-outsurgem nesse momento ilhas na superfcie do oceano, indicando um espaopossvel da conscincia, um locus propcio a toda recordao, onde o perso-nagem pode voltar ao tempo idlico de um passado morto. Numa dessasilhas, Kelvin reencontra a datcha do incio do filme, a casa ancestral quetem razes no inconsciente coletivo, pois fora projetada segundo o modeloda casa de seu bisav. Agora inverno, sua vida completa o ciclo. Seu pai,abandonado por ele na Terra, est dentro da casa e a chuva o molha. Simbo-licamente, a unio da vida a Grande Me com a imago paterna, mani-

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    festao da totalidade. O psiclogo que negava o passado, conscientiza-se dainverso do momento e ajoelha-se para pedir o perdo do pai. Mas, ao recu-perar o seu passado, ele o percebe ilusrio, pois tudo isso ocorre numa con-densao circunstancial do oceano uma nesga de conscincia que se dife-

    renciou do inconsciente primordial.A mensagem final do oceano a da impermanncia de toda represen-

    tao, de toda materialidade representada, colocando em seu lugar a consci-ncia da mortalidade e da dissoluo.

    No entendimento do diretor russo, a obra possui um claro significado:

    Solaris tratava de pessoas perdidas no Cosmo e obrigadas, querendo ou no, a ad-quirir e dominar mais uma poro de conhecimento. A nsia infinita do homem porconhecimento, que lhe foi dada gratuitamente, uma fonte de grande tenso, poistraz consigo ansiedade constante, sofrimento, pesar e desiluso, j que a verdadeltima nunca pode ser conhecida. (Tarkovski, 1998, p. 239)

    O conhecimento de que se trata no o conhecimento tcnico e diri-gido a controlar o mundo externo, mas o autoconhecimento que propiciauma expanso da conscincia.

    Alm disso, foi dada uma conscincia ao homem, o que significa que ele atormen-tado quando suas aes infringem a lei moral, e, nesse sentido, at mesmo a consci-

    ncia envolve um elemento de tragdia. Os personagens de Solaris eram atormenta-dos por desiluses, e a sada que lhes oferecemos era demasiado ilusria. Baseava-seem sonhos, na oportunidade de reconhecer as prprias razes aquelas razes que, pa-ra sempre, ligam o homem Terra onde nasceu. (Tarkovski, 1998, p. 239)

    A constituio terrestre do nosso crebro nos prende a um sistema depensamento, de coordenadas representacionais, das quais no podemos nosabster, em razo das consideraes antropocntricas de nosso pensamentoe de todo o conhecimento (Arendt, 1954/2002, pp. 333-341). No entanto,carregamos em nosso ntimo uma parcela desse cosmos atemporal, emborano atentemos a isso em nossa vida cotidiana.

    Mas esse, justamente, o intuito de Tarkovski com sua arte: Creioque tenho o dever de estimular a reflexo sobre o que fundamentalmentehumano e eterno em cada alma individual (Tarkovski, 1998, p. 241).

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    Entretanto, vale notar que a opinio de Lem sobre o final da adaptaorealizada por Tarkovski desfavorvel:

    Eu definitivamente no gostei do Solaris de Tarkovski. Ele e eu diferimos profun-

    damente em nossa percepo do romance. Enquanto eu imaginava que o final dolivro sugeria que Kelvin esperava encontrar algo extraordinrio no universo, Tar-kovski tentou criar a viso de um cosmos desagradvel, seguida pela concluso deque se deveria voltar imediatamente para a Me Terra. Estvamos como um par decavalos arreados, cada um puxando a carroa na direo oposta. (Lem, 2003, p. 3)

    A novela continua avanando em suas consideraes sobre o antro-pomorfismo inerente a todo o conhecimento e sobre a impossibilidade deum contato humano com outros seres ou civilizaes. A leitura do texto deum autor fictcio (Grastom) faz com que Kelvin reflita sobre as limitaes

    cognitivas do Homem:

    [Kelvin] Eu havia lido o panfleto, ditado pela nsia de entender o que estava a-lm da compreenso do gnero humano. (...) Grastom tenta demonstrar que as rea-lizaes mais abstratas da cincia, as teorias mais avanadas e as vitrias da mate-mtica nada representavam alm de um progresso cambaleante de um ou doispassos, desde a nossa compreenso, rude, pr-histrica e antropomrfica do uni-verso nossa volta. Assinala correspondncias com o corpo humano as projeesde nossos sentidos, a estrutura de nossa organizao fsica e as limitaes fisiolgi-cas do homem nas equaes da teoria da relatividade, no teorema dos campos

    magnticos e nas vrias teorias do campo unificado. Grastrom conclui que no h,e nem poderia haver, nenhuma questo acerca do contato entre o gnero humanoe qualquer civilizao no-humana. (Lem, 1961/1987, pp. 164-165)

    Nessa passagem, coloca-se em xeque a possibilidade de contato comseres extraterrestres, dado o antropomorfismo de todo o conhecimento. Omundo no algo alheio a ns, ao contrrio, o nosso mundo, que criamos apartir da nossa conexo cognitiva com o real. Mesmo a Cincia com seusinstrumentos e modelos matemticos nada mais que uma extenso de

    nosso aparato perceptual-cognitivo, de nossa disposio consciente-racional

    5

    .

    5 Quanto questo do antropocentrismo na Cincia, tendo em vista a conquista doespao, temos o seguinte comentrio de Hannah Arendt (1954/2002, p. 341): O as-tronauta, arremessado ao espao sideral e aprisionado em sua cabine atulhada de

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    Nesse sentido, o mundo poderia ser melhor descrito como um potencial(aion ou pleroma) do qual retiramos os nossos significados como ser-no-mundo. Outros seres-no-mundo retiraro um sentido diverso desse po-tencial, desse vir-a-ser, que ser, para ns, no apenas diferente ou mesmo

    inslito, bizarro ou paradoxal , mas verdadeiramente incognoscvel.Mas isso tudo que pode ser dito sobre o oceano? Os cientistas que

    permanecem na estao orbital, livres agora dos fantasmas que os assom-bravam, ainda tentam entender o seu significado ltimo, aduzindo a possib i-lidade de estarem lidando com um ser em desenvolvimento

    6, uma deidade

    imperfeita e infantil:

    [Kelvin] Voc tem idia se j houve algum dia uma crena num deus imperfeito?

    (...) [Snout] O que voc tem em mente um deus em evoluo, que se desenvol-ve no decorrer do tempo, que cresce e continua acumulando poder, enquanto per-manece consciente de sua impotncia. Para o seu deus, a condio divina uma si-tuao sem objetivo algum. E compreendendo isso, ele se desespera. Mas essedeus desesperado no do gnero humano, Kelvin? do homem que voc est fa-lando, e isso uma falcia, no somente do ponto de vista filosfico, mas tambmdo ponto de vista mstico. (...) E talvez Solaris seja o bero de sua criana divina

    instrumentos, na qual qualquer contato fsico efetivo com o meio ambiente signifi-caria morte imediata, poderia muito bem ser tomado como a encarnao simblicado homem de Heisenberg o homem que ter tanto menos possibilidade de depararcom algo que no ele mesmo e objetos artificiais quanto mais ardentemente desejareliminar toda e qualquer considerao antropocntrica de seu encontro com o mun-do no-humano que o rodeia.

    6 Kojve (1947/2002, p. 424) comenta a crtica de Hegel cincia newtoniana, quereflete sobre o real, mas situa-se fora dele, sem que se saiba exatamente onde. Re-flexo que pretende oferecer uma percepo do real, a partir de um sujeito cognos-cente, pretensamente autnomo ou independente do objeto do conhecimento; sujei-to que , segundo Hegel, apenas um aspecto artificialmente isolado do realconhecido ou revelado. (...) Pois o Ser real existente como natureza quem produz

    o homem que revela essa natureza (e a si mesmo) ao falar dela. Heisenberg (1996,p. 249) caminha na mesma direo: Todos sabemos que nossa realidade dependeda estrutura de nossa conscincia; s podemos tornar objetiva uma pequena parcelade nosso mundo. Mas, mesmo quando tentamos sondar o campo subjetivo, no po-demos ignorar a ordem central, ou encarar as formas que povoam esse campo comofrutos do acaso ou como artificiais .

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    (...) [Kelvin] E ns teramos sido o brinquedo da criana por um tempo. (Lem,1961/1987, pp. 191-192)

    O final do filme tambm corroboraria essa interpretao, pois, no

    momento em que Kelvin v seu pai dentro da casa sendo molhado pelachuva, isso poderia ser encarado como um engano ou mesmo uma brin-cadeira do oceano. Mas, mesmo pensando nesses termos, a metfora semantm, pois o si-mesmo , a uma s vez, nosso filho e nosso pai, essa di-vindade inacabada a quem prestamos um servio, conscientizando-a.

    Com a conscientizao dos contedos inconscientes, ns, de certo modo, criamos osi-mesmo, e nesse sentido ele tambm nosso filho. Por isso, os alquimistas chama-vam essa substncia incorruptvel, que outra coisa no seno o si-mesmo, de filiusphilosophorum. Mas justamente a presena do si-mesmo, do qual provm os mais

    fortes impulsos para a superao do estgio de inconscincia, que nos leva a esse es-foro. Sob esse ponto de vista, o si-mesmo nosso pai. (Jung, 1983, p. 267)

    Concluindo, tanto o texto de Lem como as imagens de Tarkovski pos-sibilitam uma leitura de feitio junguiano, pois a temtica central trata daslimitaes da cognio e sua inter-relao com o desenvolvimento da perso-nalidade, fazendo referncia ao inefvel da experincia humana e sua di-menso espiritual. Dessa forma, o conceito de si-mesmo enquanto centroda personalidade e abarcando os seus aspectos conscientes e inconscientes

    nos permitiria compreender a metfora do oceano, pois, como vivnciatranscendente e ponto culminante do processo de individuao, ele no podeser adequadamente descrito em palavras e o contato com o ego est obstacu-lizado pelos complexos, tal como o oceano representado na narrativa.

    7

    atravs do autoconhecimento, isto , do desenvolvimento da perso-nalidade no processo de individuao, que esses complexos do inconscientepessoal so dissolvidos, abrindo caminho para o reconhecimento da espiritu-

    7 Edinger (1992) props a noo de si-mesmo como um conceito de desenvolvimen-

    to. Assim, um si-mesmo primrio j estaria ativo desde o incio da vida, contendotodos os potenciais arquetpicos, que, em um meio apropriado, iniciam um processode integrao da totalidade originria, para depois serem reintegrados como objetosinternalizados.

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    alidade humana e da sua insero ltima no cosmos atemporal que subsisteem cada sujeito.

    Sem autoconhecimento, todo saber pode tornar-se deletrio. Nocompreenderemos de fato, algo fora de ns, que no esteja em relao aonosso ser, nossa prpria dimenso ntima. Assim, postulada a impossibili-dade de serem eliminadas as consideraes antropocntricas na Cincia,Solaris s pode ser efetivamente compreendido inserindo-se na vivncia dequem o tenta compreender.

    Raffaelli, R. (2004). SOLARIS: Knowledge and self-knowledge. PsicologiaUSP, 15(3), 213-231.

    Abstract: The aim of this study is to interpret Andrei Tarkovskis movieSolaris and Stanislaw Lems novel, emphasizing the connections betweenknowledge and self-knowledge. To interpret these works, some concepts ofC.G. Jungs Analytical Psychology, as individuation process, self andmana-personality are used.

    Index terms: Awareness. Self-knowledge. Literature. Motion pictures

    (entertainment).

    Raffaelli, R. (2004). SOLARIS: Connaissance et auto-connaissance.Psicologia USP, 15(3), 213-231.

    Rsum: Le but du prsent essai est celui dinterprter le film SolarisdAndr Tarkovski et la nouvelle de Stanislaw Lem, en mettant laccent surles connexions entre connaissance et auto-connaissance. Pour ltude de cesoeuvres, ont t employs quelques concepts de la psychologie analytiquede C.G.Jung, tels que les procs dindividualization, moi-mme et

    personalit-mana.

    Mots cls: Connaissance. Auto-connaissance. Littrature. Cinma.

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    Recebido em 17.02.2004

    Aceito em 10.05.2004