sócrates - coleção os pensadores

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Os Pensadore s

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Dados de Catalogao na Publicao (CIP) Internacional (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) P77d 4.ed. Plato, 428 ou 7-348 ou 7 A.C. Defesa de Scrates / Plato. Ditos e feitos memorveis de Scrates ; Apologia de Scrates / Xenofonte. As nuvens / Aristfanes ; seleo de textos de Jos Amrico Motta Pessanha ; tradues de Jaime Bruna, Libero Rangel de Andrade, Gilda Maria Reale Strazynski. 4. ed. So Paulo : Nova Cultural, 1987.

(Os pensadores) Inclui vida e obra de Scrates. Bibliografia. 1. Comdia grega 2. Filosofia antiga 3. Scrates, 4707-399 I. Xenofonte, apr. 430-apr. 355 A.C. II. Aristfanes, apr. 448-apr. 385 A.C. III. Pessanha, Jos Amrico Motta, 1932 - IV. Bruna, Jaime, 1910 - V. Andrade, Libero Rangel de, VI. Strazynski, Gilda Maria Reale. VII. Ttulo: Defesa de Scrates. VIII. Ttulo: Ditos e feitos memorveis de Scrates. IX. Ttulo: Apologia de Scrates. X. Ttulo: As nuvens. XI. SrieCDD-180 -183.2 87.0685 -882.01 ndices para catlogo sistemtico: 1. Comdia : Literatura grega antiga 882.01 2. Filosofia socrtica 183.2 3. Filsofos gregos antigos 180 4. Grcia antiga : Filosofia 180

CONTRACAPANESTE VOLUMEPLATO DEFESA DE SCRATES Relato da defesa de Scrates perante a Assemblia ateniense que acabaria por conden-lo morte. Scrates mostra o sentido de sua misso filosfica, rebate acusaes, comenta o veredicto dos juzes manifestando sempre a perfeita serenidade de quem permanece fiel prpria conscincia.

XENOFONTE DITOS E FEITOS MEMORVEIS DE SCRATES APOLOGIA DE SCRATES Xenofonte traa o perfil do mestre e transcreve o que colhera de seus ensinamentos. Se o Scrates visto por Xenofonte no possui a mesma profundidade filosfica daquele que mostrado por Plato, sua grandeza humana igual e igualmente enaltecida.

ARISTFANES AS NUVENS O grande comedigrafo faz de Scrates uma de suas personagens, apresentandoo como mais um pensador que busca explicaes para os fenmenos cosmolgicos. Alguns historiadores vem nessa personagem a caricatura do Scrates jovem, anterior fase do magistrio filosfico que influenciar Plato, Antstenes, Xenofonte e outros pensadores.

ORELHASOs Pensadores SCRATES "Morrer uma destas duas coisas: ou o morto igual a nada, e no sente nenhuma sensao de coisa nenhuma; ou, ento, como se costuma dizer, trata-se duma mudana, uma emigrao da alma, do lugar deste mundo para outro lugar. Se no h nenhuma sensao, se como um sono em que o adormecido nada v nem sonha, que maravilhosa vantagem seria a morte!" (Scrates) Defesa de Scrates, Plato. "Se imaginais que, matando homens, evitareis que algum vos repreenda a m vida, estais enganados; essa no uma forma de libertao, nem inteiramente eficaz, nem honrosa; esta outra, sim, a mais honrosa e mais fcil: em vez de tapar a boca dos outros, preparar-se para ser o melhor possvel. Com este vaticnio, despeo-me de vs que me condenastes." (Scrates) Defesa de Scrates, Plato. "Admira-me hajam crido os atenienses alimentasse Scrates opinies extravagantes sobre os deuses, ele que jamais coisa alguma disse nem praticou de mpio, ele cujas palavras e aes sempre foram tais que quem falasse e se

portasse do mesmo modo seria reputado o mais pio dos humanos." Ditos e Feitos Memorveis de Scrates, Xenofonte. PRXIMOS VOLUMES DESTA COLEO: NIETZSCHE - I O Nascimento da Tragdia no Esprito da Msica Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extra-Moral Humano, Demasiado Humano Aurora A Gaia Cincia Assim Falou Zaratustra GALILEU/NEWTON O Ensaiador: texto em que Galileu defende suas investigaes astronmicas e seu mtodo cientfico. Princpios Matemticos: exposio dos conceitos fundamentais da Fsica elaborados por Newton ptica: Newton expe suas investigaes sobre a luz. O Peso e o Equilbrio dos Fluidos: Newton contesta as teorias de Descartes sobre o corpo e o movimentoMARX - I Para a Crtica da Economia Poltica: primeira exposio sistemtica do corpo terico que seria desenvolvido em O Capital. Manuscritos EconmicoFilosficos: anotaes de Marx, onde ele desenvolve a noo de homem alienado e a de comunismo como superao da alienao. Teses Contra Feuerbach: onze pequenas teses que culminam com a exigncia de transformao do mundo.

PLATODEFESA DE SCRATES

XENOFONTEDITOS E FEITOS MEMORVEIS DE SCRATES

APOLOGIA DE SCRATES

ARISTOFANESAS NUVENSSeleo de textos de Jos Amrico Motta Pessanha Tradues de Jaime Bruna, Libero Rangel de Andrade, Gilda Maria Reale Strazynski NOVA CULTURAL 1987

SCRATES VIDA E OBRA Consultoria: Jos Amrico Motta Pessanha

A democracia ateniense assegurava aos cidados o exerccio da funo legislativa: integrantes da Ekklesia (assemblia popular), podiam e deviam participar da elaborao das leis que regiam a vida e os destinos da cidade. Mas o regime democrtico impunha tambm aos cidados a obrigao de defender, como juzes, as leis que eles mesmos votavam, pois, na condio de membros das cortes populares, assumiam o compromisso atravs do juramento helistico de fazer acatar aquelas leis e de decidir, de acordo com elas, o que seria justo e o que seria injusto, o que seria bom ou mau para a cidade-Estado e seu povo. No ano 399 a.C, o tribunal dos heliastas, constitudo por cidados provenientes das dez tribos que compunham a populao de Atenas e escolhidos por meio da tiragem de sorte, reuniu-se com 500 ou 501 membros. Difcil tarefa aguardava esses juzes: julgar Scrates, conhecida mas controvertida figura. Cidado admirado e enaltecido por alguns particularmente pelos jovens , era, entretanto, criticado e combatido por outros, que nele viam uma ameaa para as tradies da polis e um elemento pernicioso juventude. Indiscutvel era seu destemor, de que j dera provas em tempos de guerra, como notria sua independncia pessoal, manifestada no apenas em seu modo peculiar e inconvencional de viver, mas tambm em circunstncias especiais como quando se negou conivncia com srdida trama poltica urdida pelos Trinta Tiranos que durante algum tempo haviam dominado Atenas. Mas o que sobretudo o caracterizava era a atividade a que vinha se dedicando h anos e que justamente suscitava o deleite e a admirao dos jovens, enquanto noutros despertava ressentimentos: conversar. Despreocupado com os bens materiais cujo acmulo era o objetivo da maioria , usufruindo os prazeres sem se atormentar em viver sua cata, mas tambm sem deles fugir em exageros ascetas, Scrates dedicava-se ao que considerava, desde certo momento de sua vida, sua misso a misso que lhe teria sido confiada pelo deus de Delfos e que o tornara um "vagabundo loquaz": dialogar com as pessoas. Mas dialogar de modo a faz-las tentar justificar os conhecimentos, as virtudes ou as

habilidades que lhes eram atribudos. Com esse objetivo inicial, levava o interlocutor a emitir opinies referentes sua prpria especialidade, para em seguida interrogar a respeito do sentido das palavras empregadas. O resultado das questes habilmente formuladas por Scrates que alegava que "apenas sabia que nada sabia" era, com freqncia, tornar patente a fragilidade das opinies de seus interlocutores, a inconsistncia de seus argumentos, a obscuridade de seus conceitos. Colocados prova, muitos supostos talentos e muitas reputaes de sapincia revelavam-se infundados e muitas idias vigentes e consagradas pela tradio manifestavam seu carter preconceituoso e sua condio de meros hbitos mentais ou simples construes verbais sem base racional. Evidenciava-se a ignorncia da prpria ignorncia: situao que, no sendo ultrapassada, prenderia a alma num estril engano e, o que era mais trgico ainda, deix-la-ia distante de si mesma, apartada de sua prpria realidade. Para alguns os que aceitavam submeter-se fase construtiva da dialogao socrtica , aquele reconhecimento da ignorncia do justo significado das palavras representava a oportunidade de um verdadeiro renascimento: o renascer na conscincia de si mesmo, condio preliminar para a tomada de posse da prpria alma. Para outros, porm, era o esboroar do prestgio em plena praa pblica. Ou ento era a instaurao de questes e dvidas ali onde h sculos perdurava a cega certeza dos preconceitos e das crendices: no campo dos valores morais e religiosos, que orientavam a conduta dos indivduos mas tambm serviam de alicerces s instituies polticas.

O julgamentoDiante do tribunal popular, Scrates acusado pelo poeta Meleto, pelo rico curtidor de peles, influente orador e poltico Anitos, e por Lio, personagem de pouca importncia. A acusao era grave: no reconhecer os deuses do Estado, introduzir novas divindades e corromper a juventude. O relato do julgamento feito por Plato (428-348 a.C.) a Apologia de Scrates,

geralmente tido como bastante fiel aos fatos e apresenta-se dividido em trs partes. Na primeira, Scrates examina e refuta as acusaes que pairam sobre ele, retraando sua prpria vida e procurando mostrar o verdadeiro significado de sua "misso". E proclama aos cidados que deveriam julg-lo: "No tenho outra ocupao seno a de vos persuadir a todos, tanto velhos como novos, de que cuideis menos de vossos corpos e de vossos bens do que da perfeio de vossas almas, e a vos dizer que a virtude no provm da riqueza, mas sim que a virtude que traz a riqueza ou qualquer outra coisa til aos homens, quer na vida pblica quer na vida privada. Se, dizendo isso, eu estou a corromper a juventude, tanto pior; mas, se algum afirmar que digo outra coisa, mente". Noutro momento de sua defesa, Scrates dialoga com um de seus acusadores, Meleto, deixando-o embaraado quanto ao significado da acusao que lhe imputava "corromper a juventude". Demonstra que estava sendo acusado por Meleto de algo que o prprio Meleto no sabia bem explicar o que era, j que no conseguia definir com clareza o que era bom e o que era mau para os jovens. Em nenhum momento de sua defesa segundo o relato platnico Scrates apela para a bajulao ou tenta captar a misericrdia daqueles que o julgavam. Sua linguagem serena linguagem de quem fala em nome da prpria conscincia e no reconhece em si mesmo nenhuma culpa. Chega a justificar o tom de sua autodefesa: "Parece-me no ser justo rogar ao juiz e fazer-se absolver por meio de splicas; preciso esclarec-lo e convenc-lo". Embora a demonstrao pblica da inconsistncia dos argumentos de seus acusadores e embora a tranqila e reiterada declarao de inocncia e talvez justamente por mais essas manifestaes de altaneira independncia de esprito , Scrates foi condenado. Mesmo para uma democracia como a ateniense, ele era uma ameaa e um escndalo: a encarnao, para a mentalidade vulgar, do "escndalo filosfico" que, ali mesmo em Atenas, acarretara a perseguio de Anaxgoras de Clazmena, que se viu obrigado a fugir.

Como era de praxe, aps o veredicto da condenao, Scrates foi convidado a fixar sua pena. Meleto havia pedido para o acusado a pena de morte. Mas seria fcil para Scrates salvar-se: bastava propor outra penalidade, por exemplo pagar uma multa, como chegaram a lhe sugerir os amigos. Afinal, fora difcil obter um veredicto de culpabilidade: havia sido condenado por uma margem de apenas sessenta votos. Qualquer pena moderada que ele mesmo propusesse seria certamente acatada com alvio por aquela assemblia constrangida por condenar um cidado que, apesar de suas excentricidades e de suas atitudes muitas vezes irreverentes e incmodas, apresentava aspectos de indiscutvel valor. Afinal, era aquele o Scrates que no se havia deixado corromper pelos tiranos, inimigos da democracia, e que lutara bravamente na guerra por sua cidade e por seu povo. Bastava que declarasse estar disposto a pagar algumas moedas e todos sairiam dali satisfeitos consigo mesmos, por terem cumprido o "dever" de punir um cidado suspeito de atividades nocivas cidade, e mais contentes ainda por se sentirem magnnimos, ao permitirem que continuasse vivendo. Mas Scrates no faz concesses. Propor-se a cumprir qualquer pena, mesmo pagar uma multa, por menor que fosse, seria aceitar a culpa de que no o acusava a prpria conscincia. Na segunda parte da Apologia, Plato descreve o momento em que, novamente diante de seus juzes, Scrates estabelece a pena que julgava merecer. Nem exlio, nem multa. "Ora, o homem (Meleto) prope a sentena de morte. Bem; e eu, que pena vos hei de propor em troca, Atenienses? A que mereo, no claro? Qual ser? Que sentena corporal ou pecuniria mereo, eu que entendi de no levar uma vida quieta? Eu que, negligenciando o de que cuida toda gente riquezas, negcios, postos militares, tribunas e funes pblicas, conchavos e lutas que ocorrem na poltica, coisas em que me considero de fato por demais pundonoroso para me imiscuir sem me perder , no me dediquei quilo a que, se me dedicasse, haveria de ser completamente intil para vs e para mim? Eu que me entreguei procura de cada um de vs em particular, a fim

de proporcionar-lhe o que declaro o maior dos benefcios, tentando persuadir cada um de vs a cuidar menos do que seu do que de si prprio, para vir a ser quanto melhor e mais sensato, menos dos interesses do povo que do prprio povo, adotado o mesmo princpio nos demais cuidados? Que sentena mereo por ser assim? Algo de bom, Atenienses, se h de ser a sentena verdadeiramente proporcionada ao mrito; no s, mas algo de bom adequado a minha pessoa. O que adequado a um benfeitor pobre, que precisa de lazeres para vos viver exortando? Nada to adequado a tal homem, Atenienses, como ser sustentado no Pritaneu; muito mais do que a um de vs que haja vencido, nas Olimpadas, uma corrida de cavalos, de bigas ou quadrigas. Esse vos d a impresso da felicidade; eu, a felicidade; ele no carece de sustento, eu careo. Se, pois, cumpre que sentenciem com justia e em proporo ao mrito, eu proponho o sustento no Pritaneu." Scrates no deixava sada para seus juzes. Ou a pena de morte, pedida por Meleto, ou ser alimentado no Pritaneu, enquanto fosse vivo, como heri ou benemrito da cidade. Impossvel voltar atrs, desfazer a condenao, inocentar o acusado. Entre a morte e as impossveis recompensas, os juzes ficaram sem alternativa real. Para no abrir mo de sua prpria conscincia, Scrates optara pela morte. Que ento morresse.

O que significa morrer?A terceira parte da Apologia pretende ser a transcrio das ltimas palavras endereadas por Scrates aos que haviam acabado de conden-lo a morrer bebendo cicuta. Em sua alocuo, a mesma serenidade, o mesmo tom altaneiro; "No foi por falta de discursos que fui condenado, mas por falta de audcia e porque no quis que ouvsseis o que para vs teria sido mais agradvel, Scrates lamentando-se, gemendo, fazendo e dizendo uma poro de coisas que considero indignas de mim, coisas que estais habituados a escutar de outros acusados". Sustenta-o uma certeza: mais difcil que evitar a morte "evitar o mal, porque ele corre mais depressa que a morte". Quanto a

esta, apenas pode ser uma destas duas coisas: "Ou aquele que morre reduzido ao nada e no tem mais qualquer conscincia, ou ento, conforme ao que se diz, a morte uma mudana, uma transmigrao da alma do lugar onde nos encontramos para outro lugar. Se a morte a extino de todo sentimento e assemelha-se a um desses sonos nos quais nada se v, mesmo em sonho, ento morrer um ganho maravilhoso. (...) Por outro lado, se a morte como uma passagem daqui para outro lugar, e se verdade, como se diz, que todos os mortos a se renem, pode-se, senhores juzes, imaginar maior bem?" Apoiado nessas hipteses as nicas existentes a respeito de um fato que no permite certezas racionais , o setuagenrio Scrates despede-se, tranqilo, de seus concidados: "Mas eis a hora de partirmos, eu para a morte, vs para a vida. Quem de ns segue o melhor rumo, ningum o sabe, exceto o deus". A execuo da pena teve de ser adiada por trinta dias. Como acontecia todos os anos, um navio oficial havia sido enviado ao santurio de Delos para comemorar a vitria de Teseu, o heri mitolgico ateniense, sobre o Minotauro, o terrvel monstro que habitava o labirinto de Creta e se alimentava de carne humana. Enquanto o navio no regressasse de sua misso sagrada, nenhum condenado podia ser executado. No dilogo Fdon, Plato descreve as conversaes que, durante os dias de espera na priso, Scrates mantivera com seus discpulos e amigos. Um problema se propunha a todos como urgente e atormentador: a morte, a morte que para Scrates se tornava cada dia mais prxima. E, do mesmo modo que nas outras circunstncias de sua atividade filosfica, Scrates ocupava-se apenas de questes que eram propostas imediata e vivamente sua conscincia e de seus interlocutores assim, naqueles dias em que se aguardava o retorno do navio que partira para Delos, somente tinha sentido meditar e dialogar sobre um problema: o do significado da prpria morte. Scrates ento debate com os amigos diversos argumentos que poderiam levar admisso da imortalidade da alma, uma das nicas solues que j apontara na parte final da Apologia, quando se despedira de seus juzes.

Sobre a outra a morte representar o nada, como longa noite de sono sem sonhos nada havia a dizer, como nada havia a temer. Restava explorar a nica possibilidade na qual o pensamento podia transitar, tecendo argumentos e conjeturas. Mas o barco est prestes a retornar de Delos. Na vspera de sua chegada, um dos amigos avisa a Scrates: "Amanh ters de morrer". O mestre no se perturba: "Em boa hora, se assim o desejarem os deuses, assim seja". Suplicam-lhe que aceite a fuga que os amigos haviam preparado. Scrates recusa. E explica: a nica coisa que importa viver honestamente, sem cometer injustias, nem mesmo em retribuio a uma injustia recebida. Ningum, nem os amigos, consegue convenc-lo a abdicar de sua conscincia. Entra a mulher de Scrates, Xantipa, trazendo os filhos pra a despedida. Scrates permanece sereno. Finalmente chega o carcereiro com a cicuta. Imperturbvel, Scrates toma o vaso que lhe oferecido, de um s gole bebendo todo o veneno. Os amigos soluam. Mas ele ainda os anima: "No, amigos, tudo deve terminar com palavras de bom augrio: permanecei, pois, serenos e fortes". Ao sentir os primeiros efeitos da cicuta, Scrates se deita. Aquele que sempre indagara sobre o significado das palavras e dos valores que regiam a conduta humana e investigara o sentido dos costumes e das leis que governavam a cidade buscava a conscincia nas aes e nas afirmativas, mas no pretendia se subtrair s normas estabelecidas e s exigncias dos preceitos e das instituies sociais e polticas. Porque no trara sua conscincia, preferira a morte a declarar-se culpado. Mas porque respeitava a lei no quisera fugir da priso. Suas ltimas palavras teriam sido ainda um testemunho dessa dupla fidelidade: a si mesmo e aos compromissos assumidos. Dirige-se a um dos amigos presentes, lembrando-lhe que deviam um sacrifcio ao deus Asclpio. E morre.

O homem e a lenda

"A vida de um grande homem, particularmente quando ele pertence a uma poca remota", escreve o historiador A. E. Taylor, "jamais pode ser o mero registro de fatos indiscutveis. Mesmo quando tais fatos so abundantes, a verdadeira tarefa do bigrafo consiste em interpret-los; deve penetrar, alm dos simples eventos, no propsito e no carter que eles revelam, o que s consegue fazer mediante um esforo de imaginao construtiva. No caso das duas figuras histricas que exerceram a mais profunda influncia na vida da humanidade, Jesus e Scrates, fatos indiscutveis so extraordinariamente raros; talvez haja apenas uma afirmativa a respeito de cada um deles que no possa ser negada sem que se perca o direito a ser contado entre os sensatos. certo que Jesus 'sofreu sob Pncio Pilatos', e no menos certo que Scrates foi levado a morrer em Atenas, sob acusao de impiedade, no 'ano de Laques' (399 a.C). Qualquer considerao sobre ambos que v alm dessas afirmativas constitui inevitavelmente uma construo pessoal." O prprio Scrates nada deixou a respeito de suas atividades e de seu pensamento. Como Jesus, ele nada escreveu e as principais informaes que se tem sobre sua vida e sobre seu ensinamento provm de textos de discpulos, que podem ter retratado o mestre com os excessos ditados pela admirao e pelo afeto. Alm disso, h discrepncias entre esses diferentes perfis o que gera um problema srio para os historiadores da filosofia. Por outro lado, Scrates aparece caricaturado em algumas comdias de Aristfanes (c.448-385 a.C), seu contemporneo, que o utiliza, em parte, como prottipo dos filsofos que especulavam sobre os fenmenos celestes ou que, com artifcios retricos, "faziam passar por boa uma causa m". Na Apologia de Scrates, escrita por Plato, o prprio Scrates, durante seu julgamento, levado a rebater esse seu retrato feito "por um certo poeta cmico", Aristfanes. Mas o fato que o Scrates de que se tem notcia atravs dos textos antigos surge como um rosto diversamente refletido por diferentes espelhos. Quais os que o deformam, exagerando-Ihe ou modificando-lhe os traos? Onde a face verdadeira?

Para a elucidao da "questo socrtica" deve-se, de sada, lembrar que o perodo em que viveu Scrates a Atenas da poca de Pricles no foi marcado pelo desenvolvimento da prosa literria. Foi, ao contrrio, uma fase caracterizada pela criao de grandes obras teatrais, particularmente tragdias. Isso justifica, de certo modo, o fato de no se ter nenhuma aluso de um contemporneo a respeito do que Scrates teria feito ou dito at quase a idade de cinqenta anos. Tinha aproximadamente 47 anos quando alguns poetas cmicos Aristfanes, Amipsias e depois Eupolis o tomaram para personagem de suas composies burlescas. Dessas, apenas a caricatura de Aristfanes conservou-se, tornando-se o nico depoimento sobre Scrates surgido antes de sua morte. Depois desta, eclodiu uma rica produo literria que tomava Scrates para personagem central. Seus discpulos fazem-lhe a defesa pstuma e apresentam-no como modelo da sabedoria e das virtudes humanas: Plato torna-o a figura principal da maioria de seus Dilogos, Xenofonte exalta-o principalmente nas Memorveis, Esquines, em diversas obras (que se perderam), falou do mestre de quem fora amigo constante. Mas todos eles descrevem um Scrates de mais de 45 anos. E, possivelmente, um dos motivos da divergncia entre os depoimentos que oferecem e o de Aristfanes reside neste fato: eles falavam do Scrates maduro, o mestre que se considerava imbudo da misso assumida em face de decisiva declarao do orculo de Delfos de despertar os homens para o conhecimento de si mesmos. J Aristfanes, particularmente nAs Nuvens, teria feito uma caricatura do Scrates mais jovem, personagem j famosa em Atenas antes mesmo de desempenhar a atividade missionria de que se julgou incumbido mais tarde. Visto em pocas to diferentes, Scrates poderia ter permitido retratos to diversos: o mestre modelar, segundo discpulos, e a personagem apresentada por Aristfanes, cmica mas perigosa, pois, na medida em que investigaria os fenmenos celestes como os filsofos da Jnia , lanava o descrdito sobre as tradies religiosas que fundamentavam as instituis polticas, e, enquanto apresentaria "como boa uma causa m"

semelhana de certos sofistas, professores de retrica , daria aos jovens um perigoso exemplo de relativismo, capaz de abalar a aceitao dos valores tradicionais, ticos, polticos e religiosos. Defensor desses valores, Aristfanes teria centralizado no ateniense Scrates a crtica s idias trazidas de outras terras por pensadores que haviam acorrido a Atenas atrados pelo apogeu cultural e poltico da cidade, como Anaxgoras de Clazmena (c.500-428 a.C.) e Protgoras de Abdera (c.490-421 a.C). O prprio Plato, no Fdon, faz Scrates confessar o entusiasmo inicial que lhe despertou a obra de Anaxgoras; e indiscutivelmente, pelo menos na aparncia, a dialogao socrtica tinha, por outro lado, muito da surpreendente e embaraosa habilidade retrica dos sofistas o que mostra que, embora se apresentando (na verso platnica) como adversrio daqueles mestres de eloqncia e argumentao, Scrates absorvera-lhes, se no as teses relativistas, pelo menos a arma de combate. O depoimento de Aristfanes sobre Scrates possui assim para muitos historiadores certo fundamento, sobretudo em relao ao Scrates que ainda no havia sido tocado pela palavra do orculo. Mesmo porque o efeito de comicidade a que visava Aristfanes no teria nenhum resultado se a caricatura traada no apresentasse, aos olhos do pblico, alguma semelhana com o modelo real.

A "questo socrtica"Outros depoimentos antigos importantes sobre Scrates so o de Aristteles (384-322 a.C.) discpulo de Plato e os provenientes de bigrafos da fase helenstica, como Digenes Larcio (sculo III d.C). Todavia, a interpretao aristotlica de Scrates que o apresenta como iniciador do trabalho de definio de conceitos (relativos ao campo moral) vista com reservas pelos historiadores, pois Aristteles sempre "aristoteliza" o pensamento de seus antecessores, tornando-os momentos preparatrios de suas prprias concepes filosficas. Por outro lado, as biografias que sobre os pensadores mais antigos da Grcia foram produzidas no perodo

helenstico no apresentam grande exigncia crtica. Numa fase marcada pela sombra da perda de liberdade poltica, o importante para os gregos era descrever a vida daqueles que haviam vivido nos momentos da perdida grandeza poltica, sem se importar tanto com o rigor das informaes e misturando dados histricos com relatos fantasiosos. As fontes mais seguras para a reconstituio da vida e do pensamento de Scrates continuam sendo, assim, os depoimentos de seus contemporneos. Do confronto entre os testemunhos deixados por Plato, Xenofonte e Aristfanes que sobretudo os historiadores tm procurado recompor a verdadeira fisionomia do Scrates-homem e do Scrates-filsofo. Se Aristfanes teria focalizado Scrates na fase anterior a seu magistrio filosfico e se, alm disso, misturou-lhe os traos com os de cosmlogos jnicos e os dos sofistas, ento de Xenofonte e de Plato que devem ser recolhidas as principais informaes referentes ao Scrates que marcou to profundamente no apenas a cultura grega como tambm toda a herana ocidental. Xenofonte, porm, segundo a maioria dos historiadores, esprito bastante simplrio, no teria tido condies para apreender toda a dimenso dos ensinamentos socrticos. Essa seria a razo de, freqentemente, trazer as idias ticas de Scrates para o nvel de simples lugares-comuns, empobrecendo-as e deturpando-as. O contrrio exatamente o que se pode dizer de Plato: ningum mais bem dotado para acompanhar o mestre em todas as suas sutilezas e em todos os seus vos, por mais altos que se alassem. Aqui o perigo oposto: Plato pode ter atribudo a Scrates mais do que ele disse ou quis dizer. E, na medida em que o torna personagem-chave de quase todos os Dilogos que escreveu, no apenas reportou situaes e debates vividos por Scrates, como considerando-se continuador da linha de pensamento inaugurada pelo mestre utilizou-o, a partir de certo momento da evoluo de sua prpria filosofia, como porta-voz de suas doutrinas. A resoluo da "questo socrtica" transforma-se assim, em grande parte, na questo da delimitao

de fronteiras entre o pensamento de Scrates e o de Plato, dentro dos prprios Dilogos platnicos. Confrontando-se o socratismo de Plato com o dos chamados "socrticos menores" (megricos, cnicos, cirenaicos), pode-se, at certo ponto, tentar uma aproximao do Scrates histrico. Este, de qualquer forma, desde a Antigidade, perdeu o carter estrito de indivduo concreto, condenado morte em 399 a.C, para se transformar em ideal humano ou em motivo de escndalo um elemento definitivamente integrante da conscincia tica do Ocidente. Na medida mesma em que s se tem de Scrates reflexos produzidos na conscincia e na obra de discpulos ou de adversrios, j que ele teria escolhido a comunicao direta e viva do dilogo oral, torna-se difcil reconstituir com fidelidade sua vida e seu pensamento. Diante das incertezas inevitveis, alguns historiadores modernos chegaram a levantar a hiptese da inexistncia do Scrates histrico pelo menos com as caractersticas que lhe foram apontadas pelos relatos dos antigos. Scrates, chegou-se a afirmar, seria uma criao literria, a servio do nacionalismo ateniense. Se essa tese no prevalece entre os historiadores, por outro lado inegvel que a recuperao de Scrates como "fato" histrico defronta-se com a dificuldade da escassez de dados indisputveis: a objetividade histrica de Scrates se dilui na teia de depoimentos diversos e s vezes discrepantes. Porm no foi justamente isso o que segundo a Apologia platnica ele quis ser: algum que apontava no para a cincia das coisas e sim para a conscincia do prprio homem? A cincia sobre Scrates a resoluo da "questo socrtica", a reconstituio do Scrates histrico no poderia assim ser socraticamente reformulada? A escassez de dados objetivos indiscutveis a seu respeito no o transforma, fundamentalmente, num apelo conscincia do homem que dele se aproxima como contemporneo ou como estudioso, em qualquer poca, de seu pensamento? Ele, que reiteradamente teria afirmado no possuir cincia alguma, no teria tambm declarado ter aceito a misso de ajudar os homens a se voltarem para o conhecimento de si mesmos, para o desbravamento da

prpria subjetividade, tentando a conquista da prpria alma? Pois essa conscincia e essa subjetividade que esto desde logo comprometidas com Scrates, quando se pretende recuperar sua fisionomia autntica. Tentar decifr-lo j decifrar-se um pouco, buscar conhec-lo inevitavelmente uma ocasio para reagir ao desafio de seu enigma. Scrates remete seu decifrador prpria conscincia, oferecendo-lhe uma ocasio para se conhecer a si mesmo.

O homem e o orculoNascido em Atenas em 470 ou 469 a.C, na poca em que findava a guerra entre os gregos e os persas (guerras mdicas) e quando a vitria da Grcia marcaria o incio da fase urea da democracia ateniense, Scrates era filho de um escultor, Sofronisco, e de uma parteira, Fenareta. Teria seguido, durante algum tempo, a profisso paterna e provvel que tivesse recebido a educao dos jovens atenienses de seu tempo, aprendendo msica, ginstica e gramtica. Alm disso beneficiou-se da prpria atmosfera cultural da poca, das mais brilhantes da cultura grega. Era o famoso "sculo de Pricles", idade de ouro da civilizao ateniense. Atravs de sua frota, Atenas domina os mares e chega a criar uma verdadeira talassocracia. Graas proteo de Pricles, artistas como os escultores Fdias e Ictino embelezam a cidade com suas obras magistrais, enquanto pensadores de outras regies do mundo helnico, como Anaxgoras de Clazmena e Protgoras de Abdera, trazem para Atenas os frutos da investigao filosfica e cientfica que, desde o sculo VI a.C., vinha se desenvolvendo nas colnias gregas da sia Menor e nas cidades da magna Grcia (sul da Itlia e Siclia). o momento tambm dos grandes autores trgicos: Esquilo morreu quando Scrates tinha cerca de catorze anos, Sfocles e Eurpides eram aproximadamente mais velhos dez anos que o filho de Fenareta. Centro do mundo grego, "Hlade da Hlade", Atenas , no tempo de Scrates, um ponto de convergncia cultural e um laboratrio de experincias polticas, onde se firmara, pela primeira vez na

histria dos povos, a tentativa de um governo democrtico, exercido diretamente por todos os que usufruam dos direitos de cidadania. Nessa democracia, a funo pblica dos oradores torna-se fundamental e, conseqentemente, a palavra torna-se no apenas um instrumento de ascenso poltica, como tambm um problema a preocupar retricos e pensadores. Preparar o indivduo para a vida pblica, conferir-lhe capacitao ou virtude (aret) poltica, representa, basicamente, adestr-lo na arte da persuaso atravs da palavra. Atendendo a esses requisitos da ao poltica da Atenas democrtica, para a acorrem os sofistas, professores de eloqncia que, bem remunerados, se dispunham a ensinar aos jovens atenienses o uso correto e hbil da palavra. Eles prprios, designando-se "sbios" (sofistas), traziam uma mensagem contrria s pretenses dos tradicionais "amigos da sabedoria" (filsofos). No se preocupavam com tentar desvendar o segredo dos astros ou da origem do universo, como os cosmologistas jnicos, voltando seu interesse para o plano humano, dos valores morais e polticos. Negando a possibilidade de se desvendar a natureza (physis) das coisas, fundamentam todo o conhecimento na conveno (nomos), a partir das impresses sensveis. Donde resulta que nenhuma afirmativa poderia pretender validade absoluta, s valendo relativamente s experincias e s circunstncias em que tem origem. "O homem a medida de todas as coisas, das que so enquanto so e das que no so enquanto no so", afirma Protgoras de Abdera, exprimindo o relativismo da sofistica. Outro grande representante dessa corrente, Grgias de Leontinos (c.487-380 a.C), justificando o valor da retrica, mostra que as noes propostas pelos filsofos como capazes de resolver os problemas do mundo fsico eram turvas e cheias de ambigidades: seria pelo menos to difcil falar sobre o ser quanto sobre o no-ser. Lidando apenas com suas sensaes, o homem no teria acesso direto s coisas e jamais teria a garantia de estar transmitindo a outrem, com fidelidade, aquilo que ele percebe. Resta-lhe um plano em comum com os demais: o das palavras, convenes que resumem

mltiplas sensaes. A linguagem o que compete ao homem investigar, desenvolver, aprimorar, para atender a seus interesses e necessidades. Desvinculadas da physis, no mais expresso da "alma das coisas", as palavras se dessacralizam. Mas, com isso, os valores humanos que elas exprimem perdem o peso do absoluto e da universalidade: tornam-se convencionais, circunstanciais, relativos. A moral tradicional e as normas de conduta poltica pareciam estar ameaadas pela vaga de racionalizao trazida pelos sofistas. Mas, na verdade, no com eles que tem incio a humanizao relativizadora dos valores. Eles apenas exprimem o clima cultural do Atenas daquele tempo: a relativizao dos valores e a laicizao das questes morais aparecem na prpria evoluo da tragdia grega, de Esquilo a Eurpides, passando por Sfocles. O "homem medida de todas as coisas" era mais do que a expresso do relativismo de Protgoras de Abdera: manifestava uma situao geral do momento histrico vivido pela Grcia, e particularmente por Atenas, como resultado da progressiva valorizao da "medida humana", iniciada alguns sculos antes. O prprio regime democrtico fruto daquela valorizao permitia ao cidado ateniense a experincia diria de que o homem que faz ou altera as leis, como resultado do confronto e do acordo entre interesses e pontos de vista diferentes. Embora confundido como por Aristfanes com os sofistas, Scrates desenvolver, junto aos atenienses, uma atividade sob vrios aspectos oposta dos mestres de eloqncia e da arte de persuaso. Essa atividade ele mesmo considera, como relata Plato na Apologia, a sagrada misso que lhe fora confiada pelo deus de Delfos. At esse momento, ele havia acompanhado, como pretendem alguns bigrafos, os ensinamentos de sofistas como Hpias (sculo V a.C.) e Prdicos (c.465-399 a.C). Havia tambm se encantado provisoriamente como narra o Fdon de Plato com a doutrina de Anaxgoras, que afirmava que todas as coisas do universo se tinham organizado devido ao inicial da Inteligncia ou do Esprito (Nous). Teria ainda recebido a influncia de duas mulheres, a cortes Aspsia

de Mileto e a sacerdotisa Diotima de Mantinia (a quem Scrates, no Banquete de Plato, atribui a concepo de amor que apresenta). Em 432 a.C. explode o conflito entre Atenas e a outra cidade que com ela disputava a hegemonia do mundo grego: Esparta. Scrates toma parte na guerra do Peloponeso e destaca-se pela bravura e pelas demonstraes de resistncia fsica. Durante o cerco de Potidia, salva a vida de Alcibades (c.450-404 a.C), que se tornar poltico e militar famoso e discutido, alm de dedicar a Scrates como Plato o faz declarar no Banquete um exaltado afeto. No mesmo dilogo, Alcibades revela outro trao da personalidade de Scrates que o tornava invulgar: certa vez, em Potidia, ele teria permanecido, durante 24 horas, imvel e absorto em seus pensamentos, diante da estupefao dos soldados. Mais tarde (424 a.C), Scrates teria participado novamente de campanha militar, desta vez em Dlio, quando os atenienses foram derrotados pelos tebanos. Teve ento a oportunidade de salvar a vida de Xenofonte. Mas tambm em tempos de paz sua coragem foi demonstrada. Em 406 a.C, enfrentou a ira da multido que exigia a condenao sumria dos generais tidos como responsveis pelo desastre de Arginusas quando a tempestade impediu que fossem recolhidos no mar, como estabelecia a lei, os corpos dos que pereceram no combate. Apesar das ameaas, Scrates, sorteado para dirigir a assemblia escolhida para julgar os generais,fez prevalecer a lei, impondo que houvesse tantos julgamentos quantos eram os acusados. Noutra ocasio, quando o regime democrtico foi provisoriamente interrompido pelo governo dos Trinta Tiranos, Scrates arrostou a fria desses oligarcas, ao recusar-se a participar da tentativa de seqestro dos bens de Leon de Salamina, o que considerava injusto. Diante de qualquer forma de governo e de qualquer autoridade constituda, Scrates prestava primeiro obedincia aos ditames de sua prpria conscincia. Mas o fato que teria marcado, de forma decisiva, o resto de sua existncia foi, segundo ele mesmo afirma na Apologia, a declarao, pelo orculo de Delfos a seu amigo Querefonte, de que ele era o mais sbio dos

homens. Logo ele, sem nenhuma especializao, ele que estava ciente de sua ignorncia? Logo ele, numa cidade repleta de artistas, oradores, polticos, artesos? Scrates parece ter meditado bastante tempo, buscando o significado das palavras da pitonisa. Afinal concluiu que sua sabedoria s poderia ser aquela de saber que nada sabia, essa conscincia da ignorncia sobre coisas que era sinal e comeo da autoconscincia. E viu nas palavras oraculares a indicao de uma misso a cumprir. "Desde ento", conta em seu julgamento, "de acordo com a vontade do deus, no deixei de examinar os meus concidados e os estrangeiros que considero sbios e, se me parecerem que no o so, vou em auxlio do deus revelando-lhes sua ignorncia."

O renascer na prpria almaA atividade filosfica de Scrates tinha em sua origem a crer no depoimento da Apologia platnica uma dimenso religiosa. Se, em nome da indicao contida na afirmativa do orculo, Scrates desenvolveu uma insistente investigao sobre o significado de palavras, certamente no visava, como interpretar Aristteles, definio de conceitos. Tanto que os Dilogos de Plato, considerados transcries aproximadas de conversaes efetivamente entabuladas por Scrates (os primeiros Dilogos, justamente designados "socrticos"), terminam sempre sem que se chegue a uma concluso a respeito do tema debatido. que, para Scrates, a meta seria no o assunto em discusso, mas a prpria alma do interlocutor, que, por meio do debate, seria levada a tomar conscincia de sua real situao, depois que se reconhecesse povoada de conceitos mal formulados e obscuros. A implacvel racionalizao contida na dialogao socrtica com a qual, segundo o filsofo alemo Nietzsche (1844-1900), Scrates teria amortecido a primitiva fora criadora do gnio grego significava, ao que

parece, fidelidade e submisso ao orculo. Em Scrates a razo seria to mais forte e exigente quanto no teria apenas em si mesmo o motivo de sua autoconfiana. A sabedoria oracular que j havia marcado o pensamento e a linguagem de Herclito de Efeso (540-480 a.C.) parece constituir para Scrates o absoluto em que se apia a razo. Ao tentar decifr-lo, a razo no se contrai, antes se expande, e, porque o absoluto sua meta e seu ponto de referncia, ela pode e deve traar um itinerrio que no conhece limites. No cumprimento da misso de que se sente encarregado, Scrates dialoga. Geralmente o interlocutor, tido como autoridade em algum ramo de conhecimento ou de atividade, decepciona-o. Apenas nos artfices encontra alguma conscincia daquilo que fazem. Mas esses revelam um conhecimento restrito a suas especializaes e embaraam-se quando levados a opinar sobre outros assuntos, embora de geral interesse para os homens. Isso parece confirmar a Scrates o sentido da superioridade que lhe fora atribuda pelo orculo: o reencontro consigo mesmo s pode partir da conscincia da prpria ignorncia. Mas essa ignorncia, que um atributo de Scrates, no geralmente assumida pelas outras pessoas, que se julgam na posse de "verdades". Torna-se necessrio, portanto, lev-las, de sada, a despojar-se dessas pseudoverdades nica forma de torn-las aptas a caminharem em direo ao conhecimento de si mesmas. A demolio das falsas idias que fundamentam a falsa imagem que as pessoas tm delas prprias o que pretende a ironia: momento do dilogo em que Scrates, reafirmando nada saber, fora o interlocutor a expor suas opinies, para, com habilidade, emaranh-lo na teia obscura de suas prprias afirmativas e acabar reconhecendo a ignorncia a respeito do que antes julgava ter certeza. A ironia socrtica tem, assim, a funo de propiciar uma catarse: uma purificao da alma por via da expulso das idias turvas, das iluses e dos equvocos que distanciavam a alma de si mesma. Orientado por seu "demnio" (daimon), espcie de voz interior que s vezes lhe freava as iniciativas e impedia-o de dialogar com determinadas

pessoas, Scrates escolhia aqueles com os quais a conversa poderia assumir carter de reconstruo, aps o exorcismo propiciado pela ironia. Nessa outra fase do mtodo socrtico, o interlocutor transformado em discpulo levado, progressivamente, pela habilidade das questes propostas, a tentar elaborar ele mesmo suas prprias idias. No mais a repetio automtica de frmulas consagradas ou chaves herdados, embora ocos de sentido. Agora, de incio timidamente, o interlocutor-discpulo conduzido ao risco de tentar ser ele mesmo, de ele mesmo conceber idias. E de ser ele mesmo sua prpria alma. Scrates dando um exemplo que a pedagogia moderna freqentemente tenta reviver reserva-se nessa fase, chamada maiutica ou parturio das idias, um papel semelhante ao de sua me, Fenareta. Ela ajudava as mulheres a darem luz seus filhos; Scrates, que se dizia ele mesmo estril pois s sabia que nada sabia , procurava auxiliar as pessoas noutra forma de concepo, a das idias prprias: forma de se ir ao encontro de si mesmo como prescrevia a inscrio do templo de Delfos e de fazer de si mesmo seu prprio ponto de partida. Em algumas afirmativas que lhe so atribudas, Scrates compara-se aos mdicos: como estes, ele submetia, quando necessrio, o interlocutor-paciente purgao da ironia, condio preliminar para a recuperao da sade da alma, que seria o conhecimento de si mesma. E, na verdade, o sentido da filosofia que ele identificava com sua sagrada misso era o de conduzir o indivduo a pensar como quem se cura: pensando palavras como quem pensa feridas. Na escolha de seus interlocutores, Scrates no levava em conta fatores de natureza social e econmica. Seu daimon guiava-o no processo seletivo, fazendo-o perceber, com um agudo senso de oportunidade pedaggica, quais as pessoas que ainda no dispunham de condies psicolgicas para ser submetidas ao "tratamento" da ironia e da maiutica. Imbudo de esprito missionrio, Scrates, ao contrrio dos sofistas, no cobrava por seu trabalho: considerava-se a servio do deus. Assim, enquanto a atividade pedaggica dos sofistas tinha como conseqncia poltica facilitar a ascenso na vida pblica daqueles que dispunham de recursos suficientes

para pagar suas caras lies e que, portanto, j detinham em suas mos o poder econmico , a de Scrates, exercida em nome do esprito religioso, abria-se a qualquer um que manifestasse situao psicolgica favorvel realizao do processo de autoconhecimento. Essa forma de seleo dos interlocutores-educandos tornava democratizadora a pedagogia socrtica. Mas, para aquela democracia, que recusava o direito de cidadania s mulheres, aos estrangeiros e aos escravos portanto, maioria da populao de Atenas , o Scrates pedagogo e mdico de almas constitua uma denncia de suas limitaes e, conseqentemente, um perigo. No dilogo Mnon, Plato descreve Scrates realizando a maiutica com um escravo e levando-o a conceber noes sobre intrincada questo matemtica (relativa aos "irracionais"). Mesmo que no se trate, no caso, do relato de um fato efetivamente ocorrido, ou se teria sido outro o contedo da conversao entre Scrates e o escravo, no importa: a situao descrita por Plato certamente representativa do menosprezo de Scrates pelos preconceitos sociais da prpria democracia ateniense. Demonstrar publicamente que um escravo era capaz, se bem conduzido pelo processo educativo, de ter acesso s mais importantes e difceis questes cientficas era sem dvida provar que ele era pelo menos igual, em sua alma, a qualquer cidado. Era invalidar as distncias sociais e polticas entre os indivduos e mostrar que, de direito, todos eram intrinsecamente semelhantes. Porque sua misso era levar todos os homens a buscar o verdadeiro bem pelo cuidado da prpria alma , Scrates contrariava os interesses daquela minoria que detinha o poder na democracia ateniense. Assim, quando em 399 a.C. a democracia condena-o morte, ela no apenas o pune: ela se defende.

bom?Para os primeiros filsofos gregos, o homem seria explicado pelo mesmo substrato ou pela mesma natureza (physis) que justificaria a existncia de todos os seres. Se tudo era constitudo ou proviria de gua, ou

de fogo, ou de tomos, tambm o homem teria na gua, no fogo ou nos tomos as "razes" de sua realidade fsica, psquica e moral. Como transparece claramente no pitagorismo, a tica se inseria na cosmologia. Justamente a grande revoluo filosfica instaurada pelos sofistas consistiu na desvinculao do homem em relao physis universal. Certamente sob a influncia das escolas mdicas que verificavam a peculiaridade de determinadas reaes orgnicas do homem , os sofistas passam a atribuir autonomia natureza humana. Mas o humanismo que formulam apresenta-se vinculado ao ceticismo, indiferena religiosa e ao relativismo epistemolgico. Refletindo outros fundamentos, o humanismo socrtico centralizado no preceito "conhece-te a ti mesmo" caminha num sentido aparentemente semelhante, mas, na verdade, profundamente diverso. A tradio tica na cultura grega parte de Homero e Hesodo. As epopias homricas (sculos X-VIII a.C.) formulam uma tica aristocrtica que fazia da virtude (aret) um atributo inerente nobreza e manifestado por meio da conduta cortes e do herosmo guerreiro. Justamente porque identificada a atributos da nobreza, a aret homrica era usada para designar no apenas a excelncia humana, como tambm a superioridade de seres no-humanos como a fora dos deuses e a rapidez dos cavalos nobres. Originariamente, portanto, a palavra aret no tem o sentido preciso de "virtude". Ainda no atenuada por seu uso posterior puramente tico, estava de incio ligada s noes de funo, de realizao e de capacitao, denotando a excelncia de tudo o que til para algum ato ou fim. Com Hesodo (sculo VIII a.C.) que a aret passa a assumir significado mais estritamente moral: deixa de ser atributo natural de bem-nascidos para se transformar numa conquista, resultado do esforo e do trabalho enobrecedor de qualquer homem. Por isso mesmo que com Hesodo j se prope a questo do ensino da aret, que ser retomada pelos sofistas e por Scrates. Antes dos sofistas., o tema da aret e de seu ensino, desde Hesodo, estivera inserido na temtica de poetas, como Teognis, Simnides e Pndaro, que desenvolveram a chamada poesia parentica, de exortao moral. Os sofistas que transpem para a

prosa uma questo de que tradicionalmente se ocupara a poesia e isso sinal de que neles essa problemtica recebia sua definitiva racionalizao. Scrates reage ao relativismo sofistico. Ao que tudo indica, alicerado em pressupostos religiosos rfico-pitagricos, no concebe o conhecimento humano como apenas a sucesso de impresses sensveis fugazes e intransferveis ou a criao, a partir delas, dos sinais convencionais que constituiriam a linguagem. Se as palavras so geralmente um terreno instvel e uma expresso de opinio relativa e insegura, porque, segundo ele, no estariam acompanhadas da conscincia de seu significado. Mas esse significado, por sua vez, deveria emanar da prpria alma do indivduo, que constitui uma unidade subjacente s mutveis impresses dos sentidos. Na verdade, Scrates criou uma nova concepo de alma (psique), que passou a dominar a tradio ocidental. Antes, como em Homero, a psique era o "duplo" que podia se desprender provisoriamente durante o sono ou definitivamente, com a morte, mas que nada tinha a ver com a vida mental ou as "faculdades" da pessoa. Nos rficos, era o princpio superior, que se reencarnava sucessivamente, atravessando o processo purificador que a reconduziria s estrelas e a reintegraria na harmonia universal; mas, enquanto ligada ao corpo, s se manifestava em situaes excepcionais sonhos, vises, transes. Nos pensadores jnicos do sculo VI a.C, a psique era apenas uma parte do todo: poro do pneuma (ar) infinito que habitava o corpo, vivificando-o provisoriamente at escapar, como ltimo alento, na hora da morte como em Anaxmenes de Mileto; ou poro de fogo a aquecer e animar o corpo at que afinal retornasse unidade do Fogo-Razo, o Logos universal "eternamente vivo, que se acende com medida e se apaga com medida" como em Herclito de Efeso. a partir de Scrates ou pelo menos na literatura referente a ele e que se seguiu sua morte que surge a concepo de alma como sede da conscincia normal e do carter, a alma que no cotidiano de cada um aquela realidade interior que se manifesta mediante palavras e. aes, podendo ter conhecimento ou

ignorncia, bondade ou maldade. E que, por isso, deveria ser o objeto principal da preocupao e dos cuidados do homem. Essa concepo de alma torna compreensvel a tese socrtica de que virtude conhecimento e que, por conseguinte, ningum erra deliberadamente. S que aquele conhecimento nada teria a ver com as opinies flutuantes e geralmente infundadas. O conhecimento que Scrates identifica aret a episteme (cincia), no a doxa (opinio). E essa episteme que no pode ser ensinada no constitui uma cincia sobre coisas ou informaes voltadas para a obteno de prestgio ou de riquezas: o conhecimento de si mesmo, a autoconscincia despertada e mantida em permanente viglia. Bom , assim, o homem autoconstrudo a partir de seu prprio centro e que age de acordo com as exigncias de sua almaconscincia: seu orculo interior finalmente decifrado.

Cronologia480 a.C. A perda das Termpilas abre a Grcia central invaso. A frotagrega esmaga a persa em Salamina. Nascimento de Eurpides. 479 a.C. Vitria dos gregos sobre os persas em Platia, em terra, e em Micala, no mar. Trmino da segunda guerra mdica e incio da hegemoniade Atenas. 477 a.C. Formao da confederao de Delos, que se transformar, poucoa pouco, em imprio ateniense. 470 ou 469 a.C. Nascimento de Scrates. 461 a.C.(?) Anaxgoras de Clazmena fixa-se em Atenas. 460 a.C. Nascimento de Tucdides. 456 a.C. Morte de Esquilo. 449-429 a.C. Governo de Pricles. 432-429 a.C. Scrates participa da campanha e do cerco de Potidia. 431 a.C. Comeo da guerra do Peloponeso entre Esparta e Atenas. 428 a.C. Nasce Plato.

424 a.C. Scrates participa da batalha de Dlio. 423 a.C. So apresentados simultaneamente, em concurso, As Nuvens de Aristfanes e o Connos de Amipsias. 421 a.C. Paz de Ncias: fim do primeiro perodo da guerra. 415-413 a.C. A guerra recomea entre Atenas e Esparta. 406 a.C. Questo dos Arginusas e pritania de Scrates. 404 a.C. Assdio e capitulao de Atenas. Assassnio de Alcibades. 404-403 a.C. Governo dos Trinta. 403 a.C. Restaurao da democracia. 399 a.C. Processo e morte de Scrates. Bibliografia BROCHARD, VICTOR: L'Oeuvre de Socrate, trad. Paul Ricoeur, ditions du Seuil, Paris, 1956. BRUN, JEAN: Socrate, Presses Universitaires de France, Paris, 1960. BURNET, JOHN: Greek Philosophy, Macmillan & Co. Ltd., Londres, 1955. CORNFORD, F. M.: Estudos de Filosofia Antiga Scrates, Plato, Aristteles, trad. Maria Angelina Rodo, Atlntida Editora, Coimbra, 1969. DUPREL, EUGNE: Les Sophistes, ditions du Griffon, Neu chtel, 1948. GUARDINI, ROMANO: La Mort de Socrate, trad. Paul Ricoeur, ditions du Seuil, Paris, 1956. HUMBERT, JEAN: Socrate et les Petits Socratiques, Presses Universitaires de France, Paris, 1967. MONDOLFO, RODOLFO: Scrates, trad. Lycurgo Gomes da Motta, Editora Mestre Jou, So Paulo, 2.aed., 1967. TAYLOR, A. E.: Socrates, Doubleday Anchor Books, Nova York, 1954. ZELLER, EDUARD: Scrates y los Sofistas, trad. J. Rovira Armengol, Editorial Nova, Buenos Aires, 1955.

NOTA DO EDITOR

Scrates no deixou nenhum escrito. Tudo o que sabemos sobre ele sobre sua vida e sobre seu pensamento provm de depoimentos de discpulos ou de adversrios. Os historiadores da filosofia so unnimes em considerar que os principais testemunhos sobre Scrates so fornecidos por Plato e Xenofonte, que o exaltam, e por Aristfanes, que o combate e satiriza. Do confronto desses diferentes retratos que se pode tentar extrair a verdadeira fisionomia de Scrates. Como outros textos de escritores antigos, os de Plato, Xenofonte e Aristfanes so tradicionalmente divididos em passagens identificadas, em todas as edies, atravs de nmeros e/ou letras colocadas nas margens laterais.

PLATODEFESA DE SCRATESTraduo de Jaime Bruna

ExrdioNo sei, Atenienses, que influncia exerceram meus acusadores em vosso esprito; a mim prprio, quase me fizeram esquecer quem sou, tal a fora de persuaso de sua eloqncia. Verdade, porm, a bem dizer, no proferiram nenhuma. Uma, sobretudo, me assombrou das muitas aleivosias que assacaram: a recomendao de cautela para no vos deixardes embair pelo orador formidvel que sou. Com efeito, no corarem de me haver eu de desmentir prontamente com os fatos, ao mostrar-me um orador nada formidvel, eis o que me pareceu o maior de seus descaramentos,

salvo se essa gente chama formidvel a quem diz a verdade; se o que entendem, eu c admitiria que, em contraste com eles, sou um orador. Seja como for, repito-o, verdade eles no proferiram nenhuma ou quase nenhuma; de mim, porm, vs ides ouvir a verdade inteira. Mas no, por Zeus, Atenienses, no ouvireis discursos como os deles, aprimorados em nomes e verbos, em estilo florido; sero expresses espontneas, nos termos que me ocorrerem, porque deposito confiana na justia do que digo; nem espere outra coisa quem quer de vs. Deveras, senhores, no ficaria bem, a um velho como eu, vir diante de vs plasmar seus discursos como um rapazola. Fao-vos, no entanto, um pedido, Atenienses, uma splica premente; se ouvirdes, na minha defesa, a mesma linguagem que habitualmente emprego na praa, junto das bancas, onde tantos dentre vs me tendes escutado, e noutros lugares, no a estranheis nem vos amotineis por isso. Acontece que venho ao tribunal pela primeira vez aos setenta anos de idade; sinto-me, assim, completamente estrangeiro linguagem do local. Se eu fosse de fato um estrangeiro, sem dvida me desculpareis o sotaque e o linguajar de minha criao; peo-vos nesta ocasio a mesma tolerncia, que de justia a meu ver, para minha linguagem que poderia ser talvez pior, talvez melhor e que examineis com ateno se o que digo justo ou no. Nisso reside o mrito de um juiz; o de um orador, em dizer a verdade.

Duas Classes de AcusadoresCumpre, Atenienses, me defenda, em primeiro lugar, das primeiras aleivosias contra mim e dos primeiros acusadores; depois, das recentes e dos recentes. Com efeito, muitos acusadores tenho junto de vs, h muitos anos, que nada dizem de verdadeiro. A esses tenho mais medo que aos da roda de nito 1, posto que estes tambm so temveis. Mais temveis, porm, senhores, so aqueles, que, encarregandose da educao da maioria de vs desde meninos, fizeram-vos crer, com acusaes inteiramente falsas, que existe certo Scrates, homem instrudo, que estuda os1

nito, rico industrial e poltico, fracassou como general no ano 409 a.C e, processado por isso, salvou-se corrompendo os juzes. Passando ao partido popular, cooperou na derrubada da tirania dos Trinta e tornou-se muito influente. Figura, com Meleto e Lio, entre os acusadores de Scrates no processo. (N. do T.)

fenmenos celestes, que investigou tudo o que h debaixo da terra e que faz prevalecer a razo mais fraca. Por terem espalhado esse boato, Atenienses, so esses os meus acusadores temveis, porque os seus ouvintes acham que os investigadores daquelas matrias no crem tampouco nos deuses. Depois, esses acusadores so numerosos e vm acusando h muito tempo; mais ainda, falavam convosco na idade em que mais crdulos podeis ser, quando alguns de vs reis crianas ou rapazes, e a acusao era feita a inteira revelia, sem defensor algum. De tudo, o que tem menos sentido no se poderem dizer nem saber os seus nomes, salvo quando se trata, porventura, de um autor de comdias. Os que, por inveja, ou malquerena, vos procuravam convencer, mais os que, convencidos, por sua vez convenciam a outros, todos esses so os mais embaraosos; nem sequer possvel citar aqui em juzo nenhum deles e refut-lo; o defensor inevitavelmente obrigado a combater como que sombras, a replicar sem trplica. Em concluso, concordai comigo em que meus acusadores so de duas classes: os que acabam de acusar-me e os de antanho, a quem aludi; admiti, tambm, que destes me deva defender em primeiro lugar, pois que a suas acusaes destes ouvido primeiro e muito mais que s dos ltimos. Bem, Atenienses, mister que apresente minha defesa, que empreenda delir em vs os efeitos dessa calnia, a que destes guarida por tantos anos, e isso em prazo to curto. Eu quisera que assim acontecesse, para o meu e para o vosso bem, e que lograsse xito a minha defesa; considero, porm, a empresa difcil e no tenho a mnima iluso a esse respeito. Seja como for, que tomem as coisas o rumo que aprouver ao deus, mas cumpre obedecer lei e apresentar defesa.

Acusaes AntigasRecapitulemos, portanto, desde o comeo, qual foi a acusao donde procede a calnia contra mim, dando crdito qual, me moveu Meleto2 o presente processo. Vejamos: que mesmo o que afirmam os caluniadores em sua difamao? Como se faz com o texto das acusaes, leiamos o das suas: "Scrates ru de pesquisar indiscretamente o que h sob a terra e nos cus, de fazer que prevalea a razo mais2

Meleto, ou Melito, poeta de segunda ordem, cuja obra no chegou at ns. (N. do T.)

fraca e de ensinar aos outros o mesmo comportamento." mais ou menos isso, pois o que vs prprios veis na comdia de Aristfanes3 um Scrates transportado pela cena, apregoando que caminhava pelo ar e proferindo muitas outras sandices sobre assuntos de que no entende nada. Dizendo isso, no desejo menoscabar tais conhecimentos, se que os possui algum no ser desse crime que me h de processar Meleto mas a verdade que no tenho deles, Atenienses, a mais vaga noo. Invoco o testemunho da maioria de vs mesmos, pedindo que vos informeis mutuamente e digam aqueles que alguma vez ouviram minhas conversas h muitos deles entre vs. Dizei-o, pois, mutuamente, a ver se algum de vs me ouviu alguma vez discorrer, por pouco que fosse, sobre tais assuntos. Assim ficareis sabendo que do mesmo estofo tudo o mais que por a se fala de mim. Na realidade, no tm fundamento nenhum essas balelas; tampouco falar verdade quem vos disser que ganho dinheiro lecionando. Sem embargo, acho bonito ser capaz de ensinar, como Grgias de Leontino4, Prdico de Ceos e Hpias de lis. Cada um deles, senhores, capaz de ir de cidade em cidade, persuadindo os moos que podem freqentar um de seus concidados a sua escolha e de graa a deixarem essa companhia e virem 20c para a sua, pagando e ficandolhes, ainda, agradecidos. Por sinal, encontra-se entre ns outro sbio, um de Paros; veio para uma temporada segundo soube. Fui, por acaso, visitar um homem, que tem pago a sofistas mais dinheiro que todos os outros reunidos; trata-se de Clias, filho de Hiponico. Eu lhe perguntava (ele tem dois filhos): "Clias, dizia eu, se teus filhos fossem potros ou garrotes, saberamos a quem ajustar como treinador para lhes aprimorar as qualidades adequadas; seria um adestrador de cavalos ou um lavrador; como, porm, eles so homens, quem pensas tomar como seu treinador? Quem mestre nas qualidades de homem e de cidado? Suponho que pensaste nisso, por teres filhos. Existe algum, dizia eu ou no existe? Existe, sim, disse ele. Quem ? tornei eu; de onde ? quanto cobra? Eveno, Scrates, respondeu ele de Paros, por cinco minas." Fiquei, ento, com inveja desse Eveno, se que senhor dessa arte e leciona a to bom preo. Por mim, bem que me3

Aristfanes. clebre e grande comedigrafo; punha em cena personagens e temas da poca, polemizando a respeito de poltica, costumes e idias. Na comdia das Nuvens, ridiculariza e calunia a Scrates, apresentando-o como um charlato. (N. doT.) 4 Grgias, Prdico e Hpias eram sofistas, isto , professores; propunham-se a tornar seus discpulos sophi, ou seja, hbeis, preparados. O primeiro ensinou filosofia e retrica; o segundo, moral e gramtica; o terceiro, de tudo. (N. do T.)

orgulharia e enso-berbeceria de ter a mesma cincia! Pena que no a tenho, Atenienses.

Cincia e Misso de ScratesUm de vs poderia intervir: "Afinal, Scrates, qual a tua ocupao? Donde procedem as calnias a teu respeito? Naturalmente, se no tivesses uma ocupao muito fora do comum, no haveria esse falatrio, a menos que praticasses alguma extravagncia. Dize-nos, pois, qual ela, para que no faamos ns um juzo precipitado." Teria razo quem assim falasse; tentarei explicar-vos a procedncia dessa reputao caluniosa. Ouvi, pois. Alguns de vs achareis, talvez, que estou gracejando, mas no tenhais dvida: eu vos contarei toda a verdade. Pois eu, Atenienses, devo essa reputao exclusivamente a uma cincia. Qual vem a ser a cincia? A que , talvez, a cincia humana. provvel que eu a possua realmente, os mestres mencionados h pouco possuem, qui, uma sobre-humana, ou no sei que diga, porque essa eu no aprendi, e quem disser o contrrio me estar caluniando. Por favor, Atenienses, no vos amotineis, mesmo que eu vos parea dizer uma enormidade; a alegao que vou apresentar nem minha; citarei o autor, que considerais idneo. Para testemunhar a minha cincia, se uma cincia, e qual ela, vos trarei o deus de Delfos 5. Conhecestes Querefonte, decerto. Era meu amigo de infncia e na tambm amigo do partido do povo e seu companheiro naquele exlio de que voltou conosco. Sabeis o temperamento de Querefonte, quo tenaz nos seus empreendimentos. Ora, certa vez, indo a Delfos, arriscou esta consulta ao orculo repito, senhores; no vos amotineis ele perguntou se havia algum mais sbio que eu; respondeu a Ptia6 que no havia ningum mais sbio. Para testemunhar isso, tendes a o irmo dele, porque ele j morreu. Examinai por que vos conto eu esse fato; para explicar a procedncia da calnia. Quando soube daquele orculo, pus-me a refletir assim: "Que querer dizer o deus? Que sentido oculto ps na resposta? Eu c no tenho conscincia de ser nem5

Em Delfos havia um templo, onde Apoio dava orculos, predizendo o futuro. A aluso ao exlio sofrido pelos partidrios da democracia, no ano 404 a.C, quando se instalou em Atenas a tirania dos Trinta. (N. do T.) 6 Assim se chamava a sacerdotisa do templo de Delfos, que formulava os orculos. (N. do T.)

muito sbio nem pouco; que querer ele, ento, significar declarando-me o mais sbio? Naturalmente, no est mentindo, porque isso lhe. impossvel." Por longo tempo fiquei nessa incerteza sobre o sentido; por fim, muito contra meu gosto, decidi-me por uma investigao, que passo a expor. Fui ter com um dos que passam por sbios, porquanto, se havia lugar, era ali que, para rebater o orculo, mostraria ao deus: "Eis aqui um mais sbio que eu, quando tu disseste que eu o era!" Submeti a exame essa pessoa escusado dizer o seu nome; era um dos polticos. Eis, Atenienses, a impresso que me ficou do exame e da conversa que tive com ele; achei que ele passava por sbio aos olhos de muita gente, principalmente aos seus prprios, mas no o era. Meti-me, ento, a explicar-lhe que supunha ser sbio, mas no o era. A conseqncia foi tornar-me odiado dele e de muitos dos circunstantes. Ao retirar-me, ia concluindo de mim para comigo: "Mais sbio do que esse homem eu sou; bem provvel que nenhum de ns saiba nada de bom, mas ele supe saber alguma coisa e no sabe, enquanto eu, se no sei, tampouco suponho saber. Parece que sou um nadinha mais sbio que ele exatamente em no supor que saiba o que no sei." Da fui ter com outro, um dos que passam por ainda mais sbios e tive a mesmssima impresso; tambm ali me tornei odiado dele e de muitos outros. Depois disso, no parei, embora sentisse, com mgoa e apreenses, que me ia tornando odiado; no obstante, parecia-me imperioso dar a mxima importncia ao servio do deus. Cumpria-me, portanto, para averiguar o sentido do orculo, ir ter com todos os que passavam por senhores de algum saber. Pelo Co, Atenienses! J que vos devo a verdade, juro que se deu comigo mais ou menos isto: investigando de acordo com o deus, achei que aos mais reputados pouco faltava para serem os mais desprovidos, enquanto outros, tidos como inferiores, eram os que mais visos tinham de ser homens de senso. Devo narrar-vos os meus vaivns nessa faina de averiguar o orculo. Depois dos polticos, fui ter com os poetas, tanto os autores de tragdias como os de ditirambos e outros, na esperana de a me apanhar em flagrante inferioridade cultural. Levando em mos as obras em que pareciam ter posto o mximo de sua capacidade, interrogava-os minuciosamente sobre o que diziam, para ir, ao mesmo tempo, aprendendo deles alguma coisa. Pois bem, senhores, coro de vos dizer a

verdade, mas preciso. A bem dizer, quase todos os circunstantes poderiam falar melhor que eles prprios sobre as obras que eles compuseram. Assim, logo acabei compreendendo que tampouco os poetas compunham suas obras por sabedoria, mas por dom c natural, em estado de inspirao, como os adivinhos e profetas. Estes tambm dizem muitas belezas, sem nada saber do que dizem; o mesmo, apurei, se d com os poetas; ao mesmo tempo, notei que, por causa da poesia, eles supem ser os mais sbios dos homens em outros campos, em que no o so. Sa, pois, acreditando super-los na mesma particularidade que aos polticos. Por fim, fui ter com os artfices; tinha conscincia de no saber, a bem dizer, nada, e certeza de neles descobrir muitos belos conhecimentos. Nisso no me enganava; eles tinham conhecimentos que me faltavam; eram, assim, mais sbios que eu. Contudo, Atenienses, achei que os bons artesos tm o mesmo defeito dos poetas; por praticar bem a sua arte, cada qual imaginava ser sapientssimo nos demais assuntos, os mais difceis, e esse engano toldava-lhes aquela sabedoria. De sorte que perguntei a mim mesmo, em nome do orculo, se preferia ser como sou, sem a sabedoria deles nem sua ignorncia, ou possuir, como eles, uma e outra; e respondi, a mim mesmo e ao orculo, que me convinha mais ser como sou. Dessa investigao que procedem, Atenienses, de um lado, tantas inimizades, to acirradas e malficas, que 2jD deram nascimento a tantas calnias, e, de outro, essa reputao de sbio. que, toda vez, os circunstantes supem que eu seja um sbio na matria em que confundo a outrem. O provvel, senhores, que, na realidade, o sbio seja o deus e queira dizer, no seu orculo, que pouco valor ou nenhum tem a sabedoria humana; evidentemente se ter servido deste nome de Scrates para me dar como exemplo, como se dissesse: "O mais sbio dentre vs, homens, quem, como Scrates, compreendeu que sua sabedoria verdadeiramente desprovida do mnimo valor." Por isso no parei essa investigao at hoje, vagueando e interrogando, de acordo com o deus, a quem, seja cidado, seja forasteiro, eu tiver na conta de sbio, e, quando julgar que no o , coopero com o deus, provando-lhe que no sbio. Essa ocupao no me permitiu lazeres para qualquer atividade digna de meno nos negcios pblicos nem nos particulares; vivo numa pobreza extrema, por estar ao servio do deus.

Alm disso, os moos que espontaneamente me acompanham e so os que dispem de mais tempo, os das famlias mais ricas sentem prazer em ouvir o exame dos homens; eles prprios imitam-me muitas vezes; nessas ocasies, metem-se a interrogar os outros; suponho que descobrem uma multido de pessoas que supem saber alguma coisa, mas pouco sabem, qui nada. Em conseqncia, os que eles examinam se exasperam contra mim e no contra si mesmos, e propalam que existe um tal Scrates, um grande miservel, que corrompe a mocidade. Quando se lhes pergunta por quais atos ou ensinamentos, no tm o que responder; no sabem, mas, para no mostrar seu embarao, aduzem aquelas acusaes contra todo filsofo, sempre mo: "os fenmenos celestes o que h sob a terra a descrena dos deuses o prevalecimento da razo mais fraca". Porque, suponho, no estariam dispostos a confessar a verdade: terem dado prova de que fingem saber, mas nada sabem. Como so ciosos de honradas, tenazes, e numerosos, persuasivos no que dizem de mim por se confirmarem uns aos outros, no de hoje que eles tm enchido vossos ouvidos de calnias assanhadas. Da a razo de me atacarem Meleto, nito e Lio tomando Meleto as dores dos poetas; nito, as dos artesos e polticos; e Lio, as dos oradores. Dessarte, como dizia ao comear, eu ficaria surpreso se lograsse, em to curto prazo, delir em vs os efeitos dessa calnia assim avolumada. A tendes, Atenienses, a verdade; em meu discurso no vos oculto nada que tenha algum.a importncia, nada vos dissimulo. Sem embargo, sei que me estou tornando odioso por mais ou menos os mesmos motivos, o que comprova a verdade do que digo, que mesmo essa a calnia contra mim e so mesmo essas as suas causas. o que haveis de descobrir, se investigardes agora ou mais tarde.

A Denncia de MeletoNada mais preciso dizer para defender-me, diante de vs, das mentiras de meus primeiros acusadores. Tentarei, em seguida, defender-me de Meleto, esse honrado e prestante cidado, como se proclama, e dos acusadores recentes. Novamente, j que se trata de outros acusadores, tomemos tambm o texto de sua acusao. Reza ele mais ou menos assim: "Scrates ru de corromper a mocidade e de no crer nos deuses em

que o povo cr e sim em outras divindades novas." Essa a natureza da queixa; examinemo-la parte por parte. Diz que sou ru de corromper a mocidade. Mas eu, Atenienses, afirmo que Meleto ru de brincar com assuntos srios; por leviandade, ele traz a gente presena dos juzes, fingindo-se profundamente interessado por questes de que jamais fez o mnimo caso. Vou tambm procurar demonstrar-vos que assim . Dize-me c, Meleto: Ds muita importncia a que os jovens sejam quanto melhores? Dou, sim. Faze, ento, o favor de dizer a estes senhores quem que os torna melhores; evidentemente o sabes, pois que te importa. Descoberto o corruptor, segundo afirmas, tu me conduzes presena destes senhores e me acusas; portanto, faze o favor de dizer quem os torna melhores; conta-lhes quem . Ests vendo, Meleto, que te calas e no sabes o que dizer? Com efeito, no achas que isso feio e prova que no fazes o mnimo caso, como eu disse? Vamos, bom rapaz, fala; quem que os torna melhores? So as leis. No isso o que estou perguntando, excelente rapaz; pergunto que homem , o qual, para comear, sabe exatamente isso, as leis. As pessoas presentes, Scrates; os juzes. Que dizes, Meleto? Os presentes so capazes de educar os moos e os tornam melhores? Sem dvida. Todos? Ou uns sim e outros no? Todos. Boa notcia nos ds, por Hera! Sobejam os benfeitores! Que mais? E esses da assistncia os tornam melhores ou no? Eles tambm. Que dizer dos conselheiros? Tambm os conselheiros. Mas, ento, Meleto, acaso os homens da assemblia, os eclesiastas corrompem a mocidade? Ou eles todos tambm a tornam melhor?

Tambm eles. Logo, no assim? todos os atenienses a tornam gente de bem, menos eu; eu sou o nico a corromp-la! isso o que dizes? Exatamente isso o que digo. Que imensa desdita apontas em mim! Responde tambm a esta pergunta: no teu entender, com os cavalos sucede o mesmo? Toda gente os melhora e um s os vicia? Ou se d inteiramente o contrario: quem os sabe melhorar um s, ou muito poucos, os adestradores; a maioria, quando trata de cavalos e os monta, vicia-os? No assim, Meleto, com os cavalos e com todos os outros animais? Sem dvida, quer o negueis tu e nito, quer o afirmeis. Que bom para os moos, se h um s a corromplos e os outros todos a fazer-lhes bem! Ora, Meleto, ests dando provas acabadas de que nunca te preocupaste com a mocidade e revelando claramente a tua indiferena para com o crime de que me acusas! Por Zeus, Meleto, dize-nos mais uma coisa; melhor habitar entre cidados prestimosos ou entre daninhos? Meu caro, responde; minha pergunta faclima! No verdade que sempre os daninhos acabam fazendo mal a quem est perto, e os prestimosos algum bem? Decerto. Haver, ento, quem queira receber de seus companheiros antes danos que benefcios? Responde, bom homem; a lei manda que respondas. H quem prefira o dano? No, claro. Adiante. Trouxeste-me aqui como algum que corrompe e perverte a mocidade por querer ou sem querer? Por querer, ora essa! Como assim, Meleto? Tu na tua idade me superas tanto a mim na minha, que tu sabes que os maus sempre acabam fazendo algum mal a seus mais prximos e os bons algum bem, e eu sou to ignorante que nem mesmo sei que, se tornar malfazejo algum do meu convvio, me arrisco a receber dele algum dano? E, segundo dizes, tamanho mal eu o fao por querer? A mim no me convences disso, Meleto; nem creio que convenas outra pessoa. No; ou no corrompo, ou, se corrompo, sem querer; numa suposio como na outra, ests mentindo. Se, porm, corrompo sem

querer, a lei no manda trazer-me aqui por semelhante erro involuntrio, mas tomarme de parte, ensinar-me, ralhar comigo; evidentemente, depois de aprender, deixarei de fazer o que sem querer ando fazendo. Tu, porm, evitaste, no estavas disposto a ajudar-me com teus ensinamentos e me trouxeste aqui, para onde a lei manda trazer quem precisa de castigo e no de lies. Ora, Atenienses, est demonstrado o que eu dizia: Meleto jamais fez o mnimo caso t dessa questo. Sem embargo, dize-nos, Meleto: por que processo corrompo eu a mocidade, segundo afirmas? Ou claro que, segundo a tua denncia, ensinando-os a no crer nos deuses em que o povo cr e sim em outras divindades novas? No afirmas que os corrompo ensinando isso? exatamente isso que proclamo em alto e bom som. Ento, Meleto, por esses mesmos deuses de que agora se trata, fala com mais clareza ainda, a mim e a estes senhores; no consigo entender se afirmas que ensino a crer na existncia de certos deuses nesse caso admito a existncia de deuses, absolutamente no sou ateu, nem esse o meu crime, se bem que no sejam os deuses do povo, mas outros, e por serem outros que me processas ou se afirmas que no creio mesmo em deus nenhum ensino isso aos outros. Isso o que afirmo, que no crs mesmo em deus nenhum. Meleto, tu s um assombro! Com que intuito dizes isso? Ento eu no creio, como toda gente, que o sol e a lua so deuses? Por Zeus, senhores juzes, ele no cr, pois afirma que o sol pedra e a lua terra. Tu supes estar acusando o Anaxgoras7, meu caro Meleto ! Dessa forma, subestimas os presentes, julgando-os to iletrados que ignorem que os livros de Anaxgoras de Clazmenas que andam cheios dessas teorias. Logo de mim que os moos aprendem ligaes que eles podem, vez por outra, comprar na orquestra, quando muito por trs dracmas e depois rir de Scrates se as quiser impingir como suas, tanto mais umas to originais! Enfim, por Zeus, isso o que pensas de mim? que no creio em deus algum? No cr, por Zeus; ele no cr em deus algum!7

Anaxgoras, filsofo da escola jnica, mestre e conselheiro de Pricles, clebre por ter concebido a existncia duma Mente, Nous, ordenadora do Universo. Por dar explicaes naturalistas dos fenmenos celestes, foi condenado por impiedade a exilar-se de Atenas em 432 a.C. Suas obras, como as de outros autores, podiam ser compradas no local do teatro destinado ao coro, denominado orquestra. N. do T.)

Tu no mereces f, Meleto, nem mesmo a tua prpria, ao que parece. Este homem, Atenienses, acho que por demais temerrio e estouvado e me fez esta denncia apenas por temeridade e estouvamento de juventude-; ele d a impresso de estar propondo uma adivinha para me experimentar: "Ser que o sbio Scrates vai perceber que estou brincando e me contradizendo, ou ser que o vou lograr com os demais ouvintes?" Penso que ele se contradiz na denncia, como se dissesse: "'Scrates ru de crer nos deuses em vez de crer nos deuses." Isso de quem est brincando. Examinai comigo, senhores, por que penso que ele diz isso; tu, Meleto, responde-nos. Vs, de vossa parte, lembrai-vos do que vos pedi no comeo e no vos amotineis se eu arranjar a discusso minha maneira habitual. Existe, Meleto, uma pessoa que acredite na existncia de coisas humanas e no na dos homens? Que ele responda, senhores, e no levante protestos sobre protestos! H algum que no acredite em cavalos e sim na equitao? no creia em flautistas, e sim na arte de tocar flauta? No h, excelente homem; se no queres tu responder, eu o direi a ti e aos demais presentes. Responde, porm, pergunta que vem aps aquelas: h quem acredite em poderes demonacos, mas no que existam demnios? No h. Obrigado por teres respondido, embora contrariado, sob a coao do tribunal. Por conseguinte, afirmas que eu acredito e ensino que h poderes demonacos; sejam novos, sejam antigos, segundo dizes, acredito em poderes demonacos; foi o que juraste na denncia. Ora, se acredito em seus poderes, fora concluir que acredito em demnios. No assim? Sem dvida; fao de conta que concordas, j que no respondes. Os demnios, no verdade que os consideramos deuses ou filhos de deuses? Sim ou no? Por certo. Logo, se acredito em demnios, estes ou so uma sorte de deuses e eu teria razo afirmando que ests propondo uma adivinha por brincadeira, dizendo que eu creio em deuses em vez de crer em deuses, pois que acredito em demnios ou so filhos de deuses, uma sorte de bastardos, nascidos de ninfas ou de outras mulheres

a quem os atribui a tradio e que homem pode acreditar em filhos de deuses e no em deuses? Seria a mesma aberrao de quem acreditasse serem os machos filhos de guas e jumentos, sem crer em guas e jumentos. No, Meleto, no admissvel que tenhas apresentado essa denncia sem o propsito de nos pr prova, salvo se foi falta de um crime real por que me processes; de convenceres algum, por estpido que seja, de que uma mesma pessoa possa acreditar em poderes demonacos e divinos, mas sem acreditar em demnios, deuses e 28a heris, no existe a mnima possibilidade. Por conseguinte, Atenienses, a ausncia da culpa a mim imputada na denncia de Meleto no parece demandar longa defesa; basta o que foi dito. Algum, talvez, pergunte: "No te pejas, Scrates, de te haveres dedicado a uma ocupao que te pe agora em risco de morrer?" Eu lhe daria esta resposta justa: "Ests enganado, homem, se pensas que um varo de algum prstimo deve pesar as possibilidades de vida e morte em vez de considerar apenas este aspecto de seus atos: se o que faz justo ou injusto, de homem de brio ou de covarde. No teu entender, no teriam mritos os semi-deuses que pereceram em Tria; entre eles o filho de Ttis8, que desdenhava tanto o perigo em confronto com o passar por uma vergonha. Querendo ele matar a Heitor, sua me, uma deusa, lhe disse parece que mais ou menos estas palavras: "Filho, se matares a Heitor para vingar a morte de teu amigo Ptroclo, tu prprio morrers; pois, dizia ela, o teu destino te espera logo depois de Heitor." Ele, apesar de ouvir a advertncia, fez pouco caso do perigo de morte e, porque temia muito mais viver com desonra, respondeu: Ficai, porm, certos de que verdade o que eu dizia h pouco, que muita gente me ficou querendo muito mal. O que me vai condenar, se eu for condenado, no Meleto, nem nito, mas a calnia e o rancor de tanta gente; o que perdeu muitos outros homens de bem e ainda os h de perder, pois no de esperar que pare em mim. "Morra eu assim que castigue o culpado, mas no fique por aqui, alvo de risos junto das curvas naus, como um fardo da terra." Cuidas que ele se preocupou com o perigo de morte? A verdade, Atenienses, esta: quando a gente toma uma posio, seja por a considerar a melhor, seja porque tal foi a ordem do comandante, a, na8

Ttis, nereida, divindade marinha, foi me de Aquiles, heri da llada; aqui, alude-se a uma cena do canto XVIII, desse poema. (N. do T.)

minha opinio, deve permanecer diante dos perigos, sem pesar o risco de morte ou qualquer outro, salvo o da desonra. Grave falta, Atenienses, teria cometido eu, que, em Potidia, em Anfpolis e Dlio, permaneci, como qualquer outro, no posto designado pelos chefes por vs eleitos para me comandar e ali enfrentei a morte, se, quando um deus, como eu acreditava e admitia, me mandava levar vida de filsofo, submetendo a provas a mim mesmo e aos outros, desertasse o meu posto por temor da morte ou de outro mal qualquer. Seria grave e ento deveras com n justia me haveriam trazido ao tribunal pelo crime de no crer nos deuses, pois teria desobedecido ao orculo por temor da morte e supondo ser sbio sem que o fosse.

Justificao de ScratesCom efeito, senhores, temer a morte o mesmo que supor-se sbio quem no o , porque supor que sabe o que no sabe. Ningum sabe o que a morte, nem se, porventura, ser para o homem o maior dos bens; todos a temem, como se soubessem ser ela o maior dos males. A ignorncia mais condenvel no essa de supor saber o que no sabe? talvez nesse ponto, senhores, que difiro do comum dos homens; se nalguma coisa me posso dizer mais sbio que algum, nisto de, no sabendo o bastante sobre o Hades9, no pensar que o saiba. Sei, porm, que mau e vergonhoso praticar o mal, desobedecer a um melhor do que eu, seja deus, seja homem; por isso, na alternativa com males que conheo como tais, jamais fugirei de medo do que no sei se ser um bem. Portanto, mesmo que agora me dispenssseis, desatendendo ao parecer de nito, segundo o qual, antes do mais, ou eu no devia ter vindo aqui, ou, j que vim, impossvel deixar de condenar-me morte, asseverando ele que, se eu lograr absolvio, logo todos os vossos filhos, pondo em prtica os ensinamentos de Scrates, estaro inteiramente corrompidos; mesmo que, apesar disso, me disssseis:9

Segundo criam os gregos, aps a morte, iam as almas para o Hades, espcie de limbo, lugar escuro e frio, situado no mago da terra, onde continuavam a viver, como sombras. (N. do T.)

"Scrates, por ora no atenderemos a nito e te deixamos ir, mas com a condio de abandonares essa investigao e a filosofia; se fores apanhado de novo nessa prtica, morrers"; mesmo, repito, que me dispenssseis com essa condio, eu vos responderia: "Atenienses, eu vos sou reconhecido e vos quero bem, mas obedecerei antes ao deus que a vs; enquanto tiver alento e puder faz-lo, jamais deixarei de filosofar, de vos dirigir exortaes, de ministrar ensinamentos em toda ocasio quele de vs que eu deparar, dizendo-lhe o que costumo: 'Meu caro, tu, um ateniense, da cidade mais importante e mais reputada por sua cultura e poderio, no te pejas de cuidares de adquirir o mximo de riquezas, fama e honrarias, e de no te importares nem cogitares da razo, da verdade e de melhorar quanto mais a tua alma?'" E se algum de vs redargir que se importa, no me irei embora deixando-o, mas o hei de interrogar, examinar e confundir e, se me parecer que afirma ter- adquirido a virtude e no a adquiriu, hei de repreend-lo por estimar menos o que vale mais e mais o que vale menos. o que hei de fazer a quem eu encontrar, moo ou velho, forasteiro ou cidado, principalmente aos cidados, porque me estais mais prximos no sangue. Tais so as ordens que o deus me deu, ficai certos. E eu acredito que jamais aconteceu cidade maior bem que minha obedincia ao deus. Outra coisa no fao seno andar por a persuadindo-vos, moos e velhos, a no cuidar to aferradamente do corpo e das riquezas, como de melhorar o mais possvel a alma, dizendo-vos que dos haveres no vem a virtude para os homens, mas da virtude vm os haveres e todos os outros bens particulares e pblicos. Se com esses discursos corrompo a mocidade, seriam nocivos esses preceitos; se algum afirmar que digo outras coisas e no essas, mente. Por tudo isso, Atenienses, diria eu, quer atendais a nito, quer no, quer me dispenseis, c quer no, no hei de fazer outra coisa, ainda que tenha de morrer muitas vezes.

Quem Perderia Mais com a CondenaoNo vos amotineis, Atenienses; mantende o favor que vos pedi, no vos amotinando com o que digo, mas ouvindo-me; acredito que ouvir-me vos ser realmente proveitoso. Estou, verdade, para dizer outras coisas que talvez vos faam

gritar, mas no faais isso de modo algum. Ficai certos de uma coisa: se me condenardes por ser eu como digo, causareis a vs prprios maior dano que a mim. A mim dano algum podem causar Meleto e nito; eles no tm foras para tanto; no creio que os cus permitam que um homem melhor sofra danos de um pior. Eles podem, sim, mandar-me matar, exilar-me, privar-me dos direitos; talvez eles e outros pensem que essas so grandes desgraas; eu no; eu penso que muito pior fazer o que ele est fazendo, tentando a execuo injusta de um homem. Neste momento, Atenienses, longe de atuar na minha defesa, como poderiam crer, atuo na vossa, evitando que, com a minha condenao, cometais uma falta para com a ddiva que recebestes do deus. Se me matardes, no vos ser fcil achar outro igual, outro que embora seja engraado diz-lo por ordem divina se aferre inteiramente cidade, como a um cavalo grande e de raa, mas um tanto lerdo por causa do tamanho e precisado de um tavo que o espevite; parece-me que o deus me imps cidade com essa incumbncia de me assentar perto, em toda parte, para no cessar de vos despertar, persuadir e repreender um por um. Outro igual no tereis facilmente, senhores, mas, se me crerdes, vs me poupareis. Bem pode ser que, aborrecidos como quem dormia e foi despertado, deis ouvidos a nito e, repelindo-me, me condeneis levianamente morte; depois, passa-reis o resto da vida a dormir, salvo se o deus, cuidadoso de vs, vos enviar algum outro. Podeis reconhecer que sou bem um homem dado pelo deus cidade por esta reflexo: no conforme natureza do homem que eu tenha negligenciado todos os meus interesses, sofrendo, h tantos anos, as conseqncias desse abandono do que meu, para me ocupar do que diz respeito a vs, dirigindo-me sem cessar a cada um em particular, como um pai ou um irmo mais velho, para o persuadir a cuidar da virtude. Se auferisse proveito, se meus conselhos fossem pagos, meu procedimento teria outra explicao; mas vs mesmos o estais vendo: meus acusadores, to descarados em todas as outras acusaes, no foram capazes da extrema impudncia de exibir testemunha de que alguma vez tenha recebido ou pedido remunerao. Porque da verdade de minhas alegaes exibo, suponho, uma prova cabal: minha pobreza.

Absteno da Poltica

Pode parecer esquisito que eu me azafame por todo canto a dar conselhos em particular e no me abalance a subir diante da multido para dar conselhos pblicos cidade. A razo disso em muitos lugares e ocasies ouvistes em minhas conversas: uma inspirao que me vem de um deus ou de um gnio, da qual Meleto fez caoada na denncia. Isso comeou na minha infncia; uma voz que se produz e, quando se produz, sempre me desvia do que vou fazer, nunca me incita. Ela que me barra a atividade poltica. E barra-me, penso, com toda razo; ficai certos, Atenienses: se h muito eu me tivesse votado poltica, h muito estaria morto e no teria sido nada til a vs nem a mim mesmo. Por favor, no vos doam as verdades que digo; ningum se pode salvar quando se ope bravamente a vs ou a outra multido qualquer para evitar que aconteam na cidade tantas injustias e ilegalidades; quem se bate deveras pela justia deve necessariamente, para estar a salvo embora por pouco tempo, atuar em particular e no em pblico. Disto vos posso dar provas valiosas; no argumentos, mas fatos, que o que acatais. Ouvi o que me sucedeu, para saberdes que no tenho, por medo da morte, transigncia nenhuma com a injustia e que, por no ceder, teria perecido. O que vou dizer banal, de leguleio, mas verdade. Com efeito, Atenienses, jamais exerci um cargo pblico; apenas fiz parte do Conselho. Calhou que a pritania10 coube minha tribo, a Antiquida, quando do processo dos dez capites que deixaram de recolher os mortos da batalha naval; vs os quereis julgar em bloco, o que era ilegal, como todos reconhecestes depois. Naquela ocasio fui o nico dos prtanes que me opus a qualquer ao ilegal vossa, votando contra; os oradores estavam prontos a processar-me, a mandar-me prender; vs os incitveis a isso aos brados. Embora! Achei de meu dever correr perigo ao lado da lei e da justia, em vez de estar convosco numa deciso injusta, por medo da priso ou da morte. Isso foi ainda no regime democrtico. Doutra feita, aps a instaurao da oligarquia, fui chamado com outros quatro Rotunda pelos Trinta e estes nos ordenaram que fssemos a Sala-mina buscar a Leo Salamnio para morrer; a muitas10

Os delegados das tribos, em que se dividia o povo ateniense, ao Conselho dos Quinhentos, espcie de cmara deliberativa, chamavam-se prtanes. Alude-se ao processo dos comandantes da batalha naval de Arginusas, em 406 a.C. (N. do T.)

outras pessoas eles davam ordens semelhantes, no intuito de comprometer o maior nmero possvel. Nessa ocasio, de novo, por atos, no por palavras, demonstrei que morte desculpai a rudeza da expresso no ligo mais importncia que a um figo podre, mas a no cometer nenhuma injustia ou impiedade, a isso sim dou o mximo valor. A mim, aquele governo, poderoso como era, no conseguiu forar-me a uma injustia; ao deixarmos a Rotunda, os quatro seguiram para Salamina e trouxeram Leo, mas eu voltei para casa. Bem podia ter morrido