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Titulo original: Liquid Fear Tradw;:iio autorizada da primeira edi<;:iio inglesa, publicada em 2006 por Polity Press, de Cambridge, Inglaterra Copyright daedi<;:iioem lingua portuguesa © 2008: Jorge Zahar Editor Ltda. rua Mexico 31 sobreloja 20031-144 Rio de Janeiro,RJ tel.: (21) 2108-0808 / fax: (21) 2108-0800 e~mai1:[email protected] site: www.zahar.com.br Capa: Sergio Camp ante Foto da cidade: Elvis Santana Foto das bolhas: Peter Rol Introduc;ao: Sobre a origem, a dinamica e os usos do medo Todos os direitos reservados. A ~rodu<;:iio niio-autorizada desta publica<;:iion , o todo ou em parte, constitui viola<;:iiode direitos autorais. (Lei9.610/98) CIP-Brasil. Cataloga<;:iio-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livres, RJ. Bauman, Zygmunt, 1925- Medo liquido / Zygmunt Bauman; tradu<;:iio,Carlos Alberto Medei- ros. - Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008. Tradu<;:iiode:Liquid fear ISBN 978-85-378-0048-5 1. Medo - Aspectos sociais. 2. AngUstia - Aspectos sociais. 3. Panico - Aspectos sociais. 4. P6s-modernismo - Aspectos sociais .. !. Titulo. CDD: 152.46 CDU: 159.964.6 Notas fndice SOCIAL E COMUNIT€RIA Prof. Carlos Barros

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Page 1: SOCIAL E COMUNIT€RIA Titulo original: Prof. … de medo de "segundo grau", urn medo, por assim dizer, social eculturalmente "reciclado", ou (como 0chama Hughes Lagrange em seu fundamental

Titulo original:Liquid Fear

Tradw;:iio autorizada da primeira edi<;:iioinglesa,publicada em 2006 por Polity Press, de Cambridge, Inglaterra

Copyright da edi<;:iioem lingua portuguesa © 2008:Jorge Zahar Editor Ltda.rua Mexico 31 sobreloja

20031-144 Rio de Janeiro,RJtel.: (21) 2108-0808 / fax: (21) 2108-0800

e~mai1:[email protected]: www.zahar.com.br

Capa: Sergio Camp anteFoto da cidade: Elvis Santana

Foto das bolhas: Peter Rol

Introduc;ao:

Sobre a origem, a dinamica e os usos do medo

Todos os direitos reservados.A ~rodu<;:iio niio-autorizada desta publica<;:iion, o todo

ou em parte, constitui viola<;:iiode direitos autorais. (Lei 9.610/98)

CIP-Brasil. Cataloga<;:iio-na-fonteSindicato Nacional dos Editores de Livres, RJ.

Bauman, Zygmunt, 1925-Medo liquido / Zygmunt Bauman; tradu<;:iio,Carlos Alberto Medei-

ros. - Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.

Tradu<;:iiode: Liquid fearISBN 978-85-378-0048-5

1. Medo - Aspectos sociais. 2. AngUstia - Aspectos sociais. 3. Panico- Aspectos sociais. 4. P6s-modernismo - Aspectos sociais ..!.Titulo.

CDD: 152.46CDU: 159.964.6

Notasfndice

SOCIAL E COMUNIT€RIAProf. Carlos Barros

Page 2: SOCIAL E COMUNIT€RIA Titulo original: Prof. … de medo de "segundo grau", urn medo, por assim dizer, social eculturalmente "reciclado", ou (como 0chama Hughes Lagrange em seu fundamental

Sobre a origeml

a dinamica e os usos do medo

o medo tern muitos olhosE enxerga coisas no subterraneo

Miguel de Cervantes Saavedra,Dom Quixote

Nao e preciso uma razao para ter medo ...Fiquei amedrontado, mas ebom ter medosabendo por que ...

Emile Ajar (Romain Gary), La vie en soi

Permitam-me afirmar minha crenqa ina-bal:ivel de que a unica coisa que devemostemer e 0 proprio medo.

Franklin Delano Roosevelt,Discurso de posse, 1933

Bizarro, embora muito comum e familiar a todos nos, e 0 alivioque sentimos, assim como 0 subito influxo de energia e coragem,quando, apos urn longo periodo de desconforto, ansiedade, pre-moni<;:6essombrias, dias cheios de apreensao e noites sem sono,finalmente confrontamos 0 perigo real: uma ameaya que pode-mos ver e tocar. Ou talvez essa experiencia nao seja tao bizarraquanta parece se, afinal, viermos a saber 0 que estava por tnisdaquele sentimento vago, mas obstinado, de algo terrivel e fada-do a acontecer que ficou envenenando os dias que deveriamosestar aproveitando, mas que de alguma forma nao podiamos - eque tornou nossas noites insones ... Agora que sabemos de ondevem 0 golpe, tambem sabemos 0 que possamos fazer, se ha algoa fazer, para afasta-lo - ou pelo menos aprendemos como e limi-tada nossa capacidade de emergir incolumes e que tipo de perda,dano ou dor seremos obrigados a aceitar.

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A experiencia de viver na Europa do seculo XVI - 0 tempo e 0

lugar em que nossa Era Moderna estava para nascer - foi resumi-da por Lucien Febvre, de maneira clara e adminivel, em apenasquatro palavras: "Peur toujours, peur partout" ("medo sempre eem toda parte").! Febvre vinculava essa ubiquidade do me do aescuridao, que come<;:avaexatamente do outro lado da porta dacabana e envolvia 0 mundo situado alem da cerca da fazenda. Naescuridao, tudo pode acontecer, mas nao ha como dizer 0 quevini. A escuridao nao constitui a causa do perigo, mas e 0 habitatnatural da incerteza - e, portanto, do medo.

A modernidade seria 0 grande salto a frente: para longe des-se medo, na dire<;:aode ummundo livre do destino cego e impe-netnivel- a estufa dos temores. Como ruminou Victor Hugo,2 demodo melancolico e de vez em quando altamente lirico: intro-duzido pela ciencia ("a tribuna politica sera transformada numatribuna cientifica"), chegani 0 tempo do fim das surpresas, dascalamidades, das catastrofes - mas tambem das disputas, das ilu-s6es, dos parasitismos ... Em outras palavras, urn tempo livre detoda a materia de que sao feitos os medos. 0 que deveria ser umarota de fuga, contudo, revelou-se, em vez disso, urn longo desvio.Cinco seculos depois, para nos que estamos na outra extremi-dade do imenso cemiterio de esperan<;:asfrustradas, 0 veredicto

de Febvre parece - mais uma vez - notavelmente adequado eatual. Vivemos de novo numa era de temores.

o me do e urn sentimento conhecido de toda criatura viva.Os seres humanos compartilham essa experiencia com os ani-mais. Os estudiosos do comportamento animal descrevem demodo altamente detalhado 0 rico repertorio de rea<;:6esdos ani-mais a presen<;:aimediata de uma amea<;:aque ponha em risco suasvidas - que todos, como no caso de seres humanos ao enfrentaruma amea<;:a,oscilam entre as alternativas da fuga e da agressao.Os humanos, porem, conhecem algo mais alem disso: uma espe-cie de medo de "segundo grau", urn medo, por assim dizer, sociale culturalmente "reciclado", ou (como 0 chama Hughes Lagrangeem seu fundamental estudo do me do )3 urn "medo derivado" queorienta seu comportamento (tendo primeiramente reformadosua percep<;:aodo mundo e as expectativas que guiam suas es-colhas comportamentais), quer haja ou nao urna amea<;:aimedia-tamente presente. 0 medo secundario pode ser visto como urn rastrode urna experiencia passada de enfrentamento da amea<;:adireta -urn resquicio que sobrevive ao encontro e se torna urn fator im-portante na modelagem da conduta humana mesmoque naohaja mais uma amea<;:adireta a vida ou a integridade.

o "medo derivado" e uma estrutura mental estavel que po-de ser mais bem descrita como 0 sentimento de ser suscetivel aoperigo; uma sensa<;:ao de inseguran<;:a (0 mundo esta cheiode perigos que podem se abater sobre nos a qualquer momentacom algum ou nenhum aviso) e vulnerabilidade (no caso de 0

perigo se concretizar, havera pouca ou nenhuma chance de fugirou de se defender com sucesso; 0 pressuposto da vulnerabilidadeaos perigos depende mais da falta de confian<;:anas defesas dispo-niveis do que do volume ou da natureza das amea<;:asreais). Vmapessoa que tenha interiorizado uma visao de mundo que incluaa inseguran<;:ae a vulnerabilidade recorrera rotineiramente, mes-mo na ausencia de amea<;:agenuina, as rea<;:6esadequadas a urnencontro imediato com 0 perigo; 0 "medo derivado" adquire acapacidade da autopropulsao.

Todos nos ja ouvimos historias de covardes que se trans-formaram em intrepidos guerreiros quando confrontados comurn "perigo real"; quando 0 desastre que tinham esperado, diaapos dia, mas em vao tentavam imaginar, finalmente ocorreu.o medo e mais assustador quando difuso, disperso, indistinto,desvinculado, desancorado, flutuante, sem endere<;:onem motivoclaros; quando nos assombra sem que haja uma explica<;:aovisi-vel, quando a amea<;:aque devemos temer pode ser vislumbradaem toda parte, mas em lugar algum se pode ve-la. "Me do" e 0

nome que damos a nossa incerteza: nossa ignorancia da ameaya e doque deve ser feito - do que pode e do que nao pode - para faze-laparar ou enfrenta-la, se cessa-la estiver alem do nosso alcance.

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Ja foi amplamente observado, por exemplo, que a opiniaode que "0 mundo la fora" e perigoso e e melhor evita-lo e maiscomum entre pessoas que raramente saem a noite - se e que che-gam a sair -, quando os perigos parecem mais aterrorizantes. Enao ha como saber se essas pessoas evitam sair de casa devido aosenso de perigo ou se tern me do dos perigos indiziveis a espreitanas ruas escuras porque, na ausencia do habito, perderam a ca-pacidade de lidar com a presenya de uma ameaya ou tendem adeixar correr solta a imaginayao ja aflita pelo medo, ao carecer deexperiencias pessoais diretas de ameaya.

Os perigos dos quais se tern medo (e tambem os medos de-rivados que estimulam) podem ser de tres tipos. Alguns amea-yam 0 corpo e as propriedades. Outros sao de natureza mais ge-ral, ameayando a durabilidade da ordem social e a confiabilidadenela, da qual depende a seguranya do sustento (renda, emprego)ou mesmo da sobrevivencia no caso de invalidez ou velhice. De-pois vem os perigos que ameayam 0 lugar da pessoa no mundo - aposiyao na hierarquia social, a identidade (de dasse, de genero,etnica, religiosa) e, de modo mais geral, a imunidade a degrada-yao e a exdusao sociais. Mas numerosos estudos mostram que,nas consciencias dos sofredores, 0 "medo derivado" e facilmente"desacoplado" dos perigos que 0 causam. As pessoas as quais eleaflige com 0 sentimento de inseguranya e vulnerabilidade podeminterpreta-lo com base em qualquer dos tres tipos de perigos - inde-pendentemente das (e frequentemente em desafio as) evidenciasde contribuiyao e responsabilidade relativas a cada urn deles. Asreayoes defensivas ou agressivas resultantes, destinadas a mitigaro medo, podem assim ser dirigidas para longe dos perigos real-mente responsaveis pela suspeita de inseguranya.

o Estado, por exemplo, tendo encontrado sua raison d'etree seu direito a obediencia dos cidadaos na promessa de protege-los das ameayas a existencia, porem nao mais capaz de cumpri-la(particularmente a promessa de defesa contra os perigos do se-gundo e terceiro tipos) - nem de reafirma-la responsavelmenteem vista da rapida globalizayao e dos mere ados crescentemen-

te extraterritoriais -, e obrigado a mudar a enfase da "proteyaocontra 0 me do" dos perigos a seguranya social para os perigos aseguranya pessoal. 0 Estado entao "rebaixa" a luta contra os me-dos para 0 dominio da "politica de vida", dirigida e administradaindividualmente, ao mesmo tempo em que adquire 0 suprimen-to de armas de combate no mere ado de consumo.

o que mais amedronta e a ubiquidade dos medos; eles podemvazar de qualquer canto ou fresta de nossos lares e de nosso pla-neta. Das ruas escuras ou das telas luminosas dos televisores. Denossos quartos e de nossas cozinhas. De nossos locais de trabalhoe do metro que tomamos para ir e voltar. De pessoas que encon-tramos e de pessoas que nao conseguimos perceber. De algo queingerimos e de algo com 0 qual nossos corpas entraram em con-tatoo Do que chamamos "natureza" (pron:ta, como dificilmenteantes em nossa memoria, a devastar nossos lares e empregos eameayando destruir nossos corpos com a proliferayao de terre-motos, inundayoes, furacoes, deslizamentos, secas e ondas de ca-lor) ou de outras pessoas (prontas, como dificilmente antes emnossa memoria, a devastar nossos lares e empregos e ameayandodestruir nossos corpos com a subita abundancia de atrocidadesterroristas, crimes violentos, agressoes sexuais, comida envene-nada, agua ou ar poluidos).

Ha tambem aquela terceira zona, talvez a mais aterrorizante,uma zona cinzenta, entorpecente dos sentidos e irritante, ate ago-ra sem nome, por onde se infiltram medos cada vez mais densose temiveis, ameayando destruir nossos lares, empregos e corposcom desastres: naturais, mas nem tanto; humanos, mas nao detodo; ao mesmo tempo naturais e humanos, embora diferentesde ambos. E a zona da qual se encarregam alguns aprendizes defeiticeiro superambiciosos, mas desafortunados e propensos aacidentes e calamidades, ou mesmo urn genio maligno que im-prudentemente se deixou sair da garrafa. A zona em que redes deenergia saem do ar, barris de petroleo secam, bolsas de valoresentram em colapso, companhias todo-poderosas desaparecem

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juntamente com dezenas de serviyos com os quais costumava-mos contar e milhares de empregos que acreditavamos serems6lidos como rochas. Onde jatos caem juntamente com suasmil e uma engenhocas de seguranya e centenas de passageiros.Onde caprichos do mercado tornam sem valor os ativos maispreciosos e cobiyados, e onde se formam (ou talvez saG forma-das?) quaisquer outras catastrofes imaginaveis ou inimaginaveis,prontas a esmagar da mesma forma 0 prudente e 0 imprudente.Todos os dias, aprendemos que 0 inventario de perigos esta longede terminar: novos perigos saG descobertos e anunciados quasediariamente, e nao ha como saber quantos mais, e de que tipo,conseguiram escapar a nossa atenyao (e ados peritos!) - prep a-rando-se para atacar sem aviso.

Mas, como observa Craig Brown, com a inimitavel perspi-cacia que e sua marca registrada, em uma cronica da decada de1990:

Por toda parte, houve urn aumento das advertencias globais. Acada dia surgiam novas advertencias globaissobrevirus assassinos,ondas assassinas,drogas assassinas, icebergs assassinos, carne as-sassina,vacinas assassinas,assassinosassassinose outras possiveiscausas de morte iminente. De inicio, essas advertencias globaiseram assustadoras, mas depois de urn tempo as pessoas passarama se divertir com elas.4

De fato, saber que este e urn mundo assustador nao signi-fica viver com me do - pelo menos nao 24 horas por dia, setedias por semana. Temos urn volume mais do que suficiente deestratagemas sagazes, os quais (se apoiados por toda especie dequinquilharias inteligentes amavelmente oferecidas nas lojas)podem nos ajudar a evitar essas eventualidades horripilantes.Podemos ate nos divertir com as "advertencias globais". Afinal,viver num mundo liquido-moderno conhecido por admitir ape-nas uma certeza - a de que amanha nao pode ser, nao deve ser, naosera como hoje - significa urn ensaio diario de desaparecimento,

sumiyo, extinyao e morte. E assim, indiretamente, urn ensaio danao-finalidade da morte, de ressurreiyoes recorrentes e reencar-nayoes perpetuas ...

Como todas as outras formas de coabitayao humana, nossasociedade liquido-moderna e urn dispositivo que tenta tornar avida com medo uma coisa tolenivel. Em outras palavras, urn dis-positivo destinado a reprimir 0 horror ao perigo, potencialmenteconciliat6rio e incapacitante; a silenciar os medos derivados deperigos que nao podem - ou nao devem, pela preservayao da or-dem social- ser efetivamente evitados. Como ocorre com muitosoutros sentimentos angustiantes e capazes de destruir a ordem,esse trabalho necessario e feito, segundo Thomas Mathiesen, pormeio do "silenciamento silencioso" - urn processo "que e caladoem vez de barulhento, oculto em vez de aberto, despercebido emvez de perceptivel, invisivel em vez de visto, .etereo em vez defisico". 0 "silenciamento silencioso":

E estrutural; e parte de nossavida diaria; e ilimitado e portanto estagravadoem nos;e silenciosoeassimpassadespercebido;e e dinamicono sentidode que,em nossasociedade,elesedifunde e setorna con-tinuamente mais abrangente.0 carater estrutural do silenciamento"exline"os representantesdo Estadoda responsabilidadepor ele;seucarater quotidiano 0 torna "inescapavel"do ponto de vista dos queestao sendo silenciados;seu carater irrefreado 0 torna especialmenteeficazemrelayaoaoindividuo;seucaratersileneioso0 torna maisfaeilde legitimare seucaraterdinarnieo0 transforma num mecanismodesilenciamentoeadavezmaisdigno de eonfianya.5

Para come yOde conversa, tal como tudo mais na vida liqui-do-moderna, a morte se torna temporaria ate segunda ordem.Ela dura ate 0 pr6ximo retorno de uma celebridade ha muitotempo esquecida ou de uma melodia ha muito tempo nao cele-brada, ate a eseavayao, por ocasiao do aniversario de falecimento,de outro escritor ou pintor por muito tempo esquecido, ou atea chegada de outra moda retro. Como as picadas se tornaram

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banais, os ferr6es nao sac - nem se sentem mais - imortais. Esteou aquele desaparecimento, se ocorrer, sera, espera-se, tao revo-gavel quanta tantos outros, antes dele, provaram ser.

Alem disso, ha muito mais infortunios sendo proclamadosiminentes do que aqueles que acabam realmente ocorrendo, demodo que sempre podemos esperar que este ou aquele desastrerecentemente anunciado acabe nos ignorando. Que computadorfoi danificado pelo sinistro "bug do milenio"? Quantas pessoasvoce conhece que foram vitimas dos acaros de tapete? Quantosamigos seus morreram da doen'ra da vaca louca? Quantos co-nhecidos ficaram doentes ou invalidos por causa de alimentosgeneticamente modificados? Qual de seus vizinhos e conheci-dos foi atacado e mutilado pelas trai'roeiras e sinistras pessoasem busca de asilo? Os pinicos vem e vao, e embora possam serassustadores, e seguro presumir que terao 0 mesmo destino detodos os outros.

A vida liquida flui ou se arrasta de urn desafio para outroe de urn epis6dio para outro, e 0 habito comum dos desafiose epis6dios e sua tendencia a terem vida curta. Pode-se presu-mir 0 mesmo em rela'rao a expectativa de vida dos medos queatualmente afligem as nossas esperan'ras. Alem disso, muitosmedos entram em nossa vida juntamente com os remediossobre os quais muitas vezes voce ouviu falar antes de ser ate-morizado pelos males que esses prometem remediar. 0 pe-rigo do bug do milenio nao foi a unica noticia aterrorizanteque the foi trazida pelas mesmissimas empresas que ja tinhamoferecido imunizar, a urn pre'r0 adequado, 0 seu computador.Catherine Bennett, por exemplo, pas a nu 0 compla por trasdo pacote que promovia uma cara terapia advertindo que as"comidas erradas sac responsaveis pelo envelhecimento nipi-do e prematuro; uma cutis cansada, enrugada e sem vida ... 0rosto cheio de rugas, curtido, seco ..." - para garantir aos pos-siveis clientes que "e possivellivrar-se das rugas para semprese voce seguir nosso programa de quatro semanas" - ao custom6dico de 119libras esterlinas [240 d6laresJ.6

o que 0 incidente do bug do milenio demonstrou, e 0 queBennett descobriu no caso do tratamento cosmdico para desafiaro medo, pode ser visto como padrao para urn numero infinitode outros casos. A economia de consumo depende da produ'rao deconsumidores, e os consumidores que precisam ser produzidospara os produtos destinados a enfrentar 0 medo sac temerosos eamedrontados, esperan'r0sos de que os perigos que tern em sejamfor'rados a recuar gra'ras a eles mesmos (com ajuda remunerada,obviamente).

Esta nossa vida tern se mostrado diferente do tipo de vida queos sabios do Iluminismo e seus herdeiros e disdpulos avistarame procuraram planejar. Na nova vida que eles vislumbraram eresolveram criar, esperava -se que a proeza de domar os medose refrear as amea'ras que estes causavam fosse urn assunto a serdecidido de uma vez por todas. No ambiente liquido-moderno,contudo, a luta contra os medos se tornou tare fa para a vida in-teira, enquanto os perigos que os deflagram - ainda que nenhumdeles seja percebido como inadministravel- passaram a ser con-siderados companhias permanentes e indissociaveis da vida hu-mana. Nossa vida esta longe de ser livre do medo, e 0 ambienteliquido-moderno em que tende a ser conduzida esta longe de serlivre de perigos e amea'ras. A vida inteira e agora uma longa luta,e provavelmente impossivel de vencer, contra 0 imp acto poten-cialmente incapacitante dos medos e contra os perigos, genuinosou supostos, que nos tornam temerosos. Pode-se percebe-la me-lhor como uma busca continua e uma perpetua checagem de es-tratagemas e expedientes que nos permitem afastar, mesmo quetemporariamente, a iminencia dos perigos - ou, melhor ainda,deslocar a preocupa'rao com eles para 0 incinerador lateral ondepossam, ao que se espera, fenecer ou permanecer esquecidosdurante a nossa dura'rao. A inventividade humana nao conhe-ce fronteiras. Ha uma plenitude de estratagemas. Quanto maisexuberantes sao, mais ineficazes e conclusivos os seus resultados.Embora, apesar de todas as diferen'ras que os separam, eles te-

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nham urn preceito comum: burlar 0 tempo e derrota-lo no seupr6prio campo. Retardar a frustrai(iio, nao a satisfai(iio.

o futuro e nebuloso? Mais uma forte razao para nao deixarque ele 0 assombre. Perigos imprevisiveis? Mais uma razao paradeixa-los de lado. Ate agora, tudo bem; poderia ser pior. Deixeficar desse jeito. Nao comece a se preocupar em atravessar aquelaponte antes de chegar perto dela. Talvez voce nunc a chegue, outalvez ela se parta em peda<;:osou se mova para outro lugar antesque isso aconte<;:a.Portanto, por que se preocupar agora?! Me-lhor seguir aquela receita muito antiga: carpe diem. Em term ossimples: aproveite agora, pague depois. Ou, estimulado por umaversao mais nova da sabedoria antiga, atualizada por cortesia dascompanhias de cartao de credito: nao deixe para depois 0 quevoce pode fazer agora. *

Vivemos a credito: nenhuma gera<;:aopassada foi tao endi-vidada quanto a nossa - individual e coletivamente (a tarefa dosor<;:amentospublicos era 0 equilibrio entre receita e despesa; hojeem dia, os "bons or<;:amentos" saD os que man tern 0 excesso dedespesas em rela<;:aoa receitas no nivel do ana anterior). Vivera credito tern seus prazeres utilitarios: por que retardar a satis-fa<;:ao?Por que esperar se voce pode saborear as alegrias futurasaqui e agora? Reconhecidamente, 0 futuro esta fora do nossocontrole. Mas 0 cartao de credito, magicamente, traz esse futuroirritantemente evasivo direto para voce, que pode consumir 0

futuro, por assim dizer, por antecipa<;:ao- enquanto ainda restaalgo para ser consumido ... Parece ser essa a atra<;:aolatente davida a credito, cujo beneficio manifesto, a se acreditar nos comer-ciais, e puramente utilitario: proporcionar prazer. E se 0 futurose destina a ser tao detestavel quanto se sup6e, pode-se consumi-10 agora, ainda fresco e intacto, antes que chegue 0 desastre e queo futuro tenha a chance de mostrar como esse desastre pode serdetestavel. (E isso, pensando bern, que faziam os canibais de ou-trora, encontrando no habito de comer seus inimigos a maneira

•No original, a expressao e: take the waiting aut afwanting, slogan muito associadoa campanhas de cartao de credito. (N.E.)

mais segura de par fim as amea<;:asde que estes eram portadores:urn inimigo consumido, digerido e excretado nao era' mais as-sustador. Embora, infelizmente, nao seja possivel comer todos osinimigos. A medida que mais deles saD devorados, suas fileiras .parecem engrossar em vez de encolher.)

Os meios saDas mensagens. Cart6es de credito tambem saDmensagens. Se as cadernetas de poupan<;:a implicam a certeza dofuturo, urn futuro incerto exige cart6es d~ credito.

As cadernetas de poupan<;:ase desenvolvem e se alimentam deurn futuro em que se pode confiar - urn futuro cuja chegada e certae que, tendo chegado, nao sera muito diferente do presente. Urnfuturo do qual se espera que valha 0 que n6s valemos - e assim res-peite as poupan<;:asdo passado e recompense seus portadores. Ascadernetas de poupan<;:a tambem prosperam na esperan<;:a/ex-pectativa/confian<;:a de que - gra<;:asa continuidade entre 0 agorae 0 "depois" - 0 que esta sendo feito neste momento, no presente,ira se apropriar do "depois", amarrando 0 futuro antes que elechegue. 0 que fazemos agora vai "fazer a diferen<;:a",determinara forma do futuro.

Os cart6es de credito e os debitos que eles facilitam assusta-riam os humildes e perturbariam ate mesmo os mais ousados.Se isso nao acontece, e gra<;:asa nossa suspeita de desconti-nuidade: nossa premoni<;:ao de que 0 futuro que vai chegar(se ele chegar, e se eu ainda estiver aqui para testemunhar suachegada) sera diferente do presente que conhecemos - em-bora nao haja como saber em rela<;:aoa que e em que grau.Sera que, daqui a alguns anos, ele vai homar os sacrificiosatualmente feitos em seu nome? Sera que vai recompensar osesfor<;:osinvestidos para garantir sua benevolencia? Ou talvez,pdo contd.rio, de transforme os ativos de hoje nos passivosde amanha, e carregamentos preciosos em fardos irritantes?Isso nao sabemos nem podemos saber, e nao ha muito sentidoem se esfor<;:arpara amarrar 0 incognoscivel.

Algumas pontes sobre as quais demoramos a nos debru<;:ar,mas que acabarao tendo de ser atravessadas, nao sao, contudo,

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suficientemente distantes para que a preocupa~ao em atravessa-las possa ser adiada despreocupadamente ... Nem todos os pe-rigos parecem suficientemente remotos para serem descartadoscomo nada mais que inven~6es fantasiosas de uma imagina~aofebril ou, de qualquer modo, irrelevantes para 0 que foi colocadoa seguir em nossa agenda. Felizmente, porem, tambem temos urnmodo de ultrapassar os obstaculos que ficaram proximos demaispara a nossa tranquilidade e nao podem mais ser negligenciados:podemos pensar neles como "riscos", e e 0 que fazemos.

Entao admitimos que 0 proximo passo a tomar e "arriscado"(pode mostrar-se inaceitavelmente caro, aproximar antigos peri-gos ou provocar outros), como todos os passos tendem a ser. Hasempre a possibilidade de nao conseguirmos 0 que desejamos esim algo bem diferente e altamente desagradavel, algo que prefe-ririamos evitar (chamamos essas consequencias intragaveis e in-desejaveis de "efeitos colaterais", ou "danos colaterais", ja que naoSaDintencionais e se situam longe do alvo de nossa a~ao). Tam-bem admitimos que e1espodem ser "inesperados" e que, apesarde nossos calculos, podem nos pegar de surpresa e, portanto,despreparados. Tendo-se pens ado, ponderado e dito tudo isso,prosseguimos mesmo assim (por falta de me1hor op~ao) como sepudessemos preyer quais SaDas consequencias indesejaveis quemere cern nossa aten~ao e vigilancia, e entao, assim, monitorarnossos passos. Isso nao surpreende: so e possive1 nos preocupar-mos com as consequencias que podemos preyer, e e so de1as quepodemos lutar para escapar. E assim, so as consequencias inde-sejadas desse tipo "pre-visive1" e que classificamos na categoriados "riscos': Estes SaDperigos de cuja probabilidade podemos (ouacreditamos poder) calcular: riscos SaDperigos calculaveis. Vmavez definidos dessa maneira, SaD0 que ha de mais proximo da(infe1izmente inatingive1) certeza.

Observemos, porem, que "calculabilidade" nao significaprevisibilidade; 0 que se calcula e apenas a probabilidade deque as coisas deem errado e advenha 0 desastre. Os calculosde probabilidade dizem alguma coisa confiavel sobre a difu-

SaD dos efeitos de urn grande numero de ac5es similares, ,mas SaDquase inuteis como meios de previsao quando usa-dos (de modo bastante ilegitimo) como guias para empre-endimentos espedficos. Mesmo que ca1culada com serie-dade, a probabilidade nao oferece a certeza de que os perigosserao ou nao evitados neste caso particular, aqui e agora, ounaquele caso, em outro lugar e momento. Mas pelo menos 0

proprio fato de termos feito nosso ca1culo de probabilidades(e portanto, por implica~ao, evitado decis5es precipitadas e aacusa~ao de irresponsabilidade) pode nos dar a coragem dedecidir se 0 resultado justifica 0 esfor~o, alem de oferecercerto grau de confian~a, ainda que sem garantia. Ao calcu-lar corretamente as probabilidades, fizemos algo razoavel etalvez ate Util. Agora "temos motivo" para considerar que aprobabilidade de ma sorte e muito elevada para justificaruma medida arriscada, ou suficientemente baixa para nosimpedir de tentar.

Com muita frequencia.> contudo, mudar 0 foco de aten~aodos perigos para os riscos se reve1a outro subterfugio - uma ten-tativa de fugir do problema, e nao urn passaporte para a con-duta segura. Como apontou Milan Kundera em Les testamentstrahis/ 0 ambiente de nossas vidas esta envolto em neblina, naona escuridao total, na qual nao veriamos qualquer coisa nemconseguiriamos nos mover: "na neblina a pessoa e livre, mas e aliberdade de uma pessoa na neblina"; enxergamos 30 ou 50 me-tros it frente, admiramos as be1as arvores que ladeiam a estradapelaqual caminhamos, observamos os passantes e reagimos aosseus movimentos, evitamos esbarrar nos outros e contornamospedregulhos e buracos - mas dificilmente conseguimos ver 0

cruzamento urn pouco mais it frente ou 0 carro que ainda esta a100 metros de distancia, mas que se aproxima de nos em alta ve-locidade. Podemos dizer que, fiel a esse "viver na neblina'~ nossa"certeza" direciona e focaliza nossos esfor~os de precau~ao sobreos perigos visiveis, conhecidos e proximos, perigos que podemser previstos e cuja probabilidade pode ser calculada - embora

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os perigos mais assustadores e aterrorizantes sejam precisamenteaqueles cuja previsao e impossivel, ou extremamente dificil: osimprevistos, e muito provavelmente imprevisiveis.

Ocupados em calcular os riscos, tendemos a deixar de lado apreocupayao maior e assim conseguimos evitar que essas catas-trofes, as quais somos impotentes para impedir, venham a minarnossa autoconfianya. Focalizando as coisas em relayao as quaispodemos fazer algo, nao temos tempo para nos ocuparmos emrefletir sobre aquelas a respeito das quais nada se pode fazer. Issonos ajuda a defender nossa saude mental. Mantem distantes ospesadelos, e tambem a insonia. Mas nao nos torna necessaria-mente mais seguros.

Nem torna os perigos menos realistas. Nosso palpite/in-tuiyao/suspeita/premoniyao/convicyao/certeza de que isso eassim pode tirar um cochilo, mas nao pode ser posto para dormireternamente. Repetidas vezes, e nos ultimos tempos num rit-mo visive1mente ace1erado, os perigos nos lembram que elespermanecem realistas, apesar de todas as medidas de precau-yao que tomamos. De modo intermitente, mas bastante re-gular, sao retirados da cova rasa em que foram enterrados,apenas alguns centimetros abaixo da superficie de nossa cons-ciencia, e lanyados brutalmente a luz de nossa atenyao. Sucessi-vas catastrofes oferecem amavelmente tais oportunidades - e emprofusao.

Muitos anos atras, e alguns anos antes que os eventos do 11de Setembro, 0 tsunami, 0 furacao Katrina e 0 terrivel saItosubsequente nos preyos do petraleo (ainda que misericordio-samente por pouco tempo desta vez) propiciassem essas opor-tunidades horriveis de acordar e ficar sabrio, Jacques Attalirefletia sobre 0 fenomenal sucesso financeiro do filme Tita-nic, que superou todos os recardes de bilheteria anteriormen-te obtidos por filmes-catastrofes aparentemente semelhantes.Ele entao ofereceu a seguinte explicayao, notavelmente plau-sivel quando a escreveu, mas que, alguns anos depois, nos soanada menos que profetica:

o Titanic somos nos, nossa sociedade triunfalista, autocongratulatoria,cega e hipocrita, sem misericordia para com seus pobres - uma socie-dade em que tudo esta previsto, menos os meios de previsao ...Todosnos imaginamos que existe urn iceberg esperando por nos, oculto emalgum lugar no futuro nebuloso, com 0 qual nos chocaremos paraafundar ouvindo musica ...8

Doce musica por assim dizer, suave,·mas estimulante. Mu-sica ao vivo, em tempo real. Os ultimos sucessos, os interpretesmais celebres. Sons retumbantes que ensurdecem, cintilantes lu-zes estroboscapicas que cegam. Tornando inaudiveis os sussur-ros debeis dos pressagios, e invisivel a enormidade dos icebergsem seu silencio majestoso.

Sim, icebergs - nao um iceberg, mas muitos, provavel-mente em numero grande demais para serem contados. Attaliidentificou varios deles: financeiro, nuclear, ecolagica, social(decifrando este ultimo como a expectativa de tres bilh6es de"redundancias" na populayao do planeta). Se estivesse escre-vendo agora, em 2005, ele certamente estenderia a lista - re-servando uma posiyao e1evada para 0 "iceberg terrorista" ou 0

"iceberg do fundamentalismo religioso". Ou, talvez mais prova-velmente,o iceberg da "implosao da civilizayao" - um icebergque pode ser recentemente observado, na esteira das aventu-ras militares no Oriente Medio ou da visita do Katrina a NovaOrleans, numa especie de ensaio com figurino e em toda a suamonstruosidade horripilante.

Implosao, nao explosao, portanto diferente na forma daquelaem que os temores do "colapso da ordem civilizada" - temores queacompanharam nossos ancestrais pelo menos desde a epoca em queHobbes proclamou que a bellum omnium contra omnes, a guerra detodos contra todos, era 0 "estado natural" da humanidade - tende-ram a se articular durante a fase "salida" da Era Modema.

Nao houve revolucionarios na Louisiana nem lutas ou bar-ricadas nas ruas de Nova Orleans; ninguem se rebe10u contraa ordem das coisas e decerto nao se descobriu nenhuma rede

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clandestina conspirando para atacar 0 atual sortimento de leisnem 0 esquema juridico vigente. Chamar 0 que aconteceu emNova Orleans e arredores de "colapso da lei e da ordem" nao esuficiente para se apreender totalmente 0 even to, muito menossua mensagem. A lei e a ordem simples mente se desvaneceram- como se nunca tivessem existido. Subitamente, os ha.bitos e ro-tinas aprendidos que guiavam 90% ou mais das atividades davida quotidiana perderam seu sentido - um sentido que nor-malmente e demasiado. auto-evidente para que se pense nele.Os pressupostos ticitos perderam sua forya. As seqiiencias cos-tumeiras de causa e efeito fragmentaram-se. 0 que chamamosde "normal" nos dias de trabalho ou "civilizayao" em ocasi6esfestivas mostrou ser, literalmente, da espessura de uma folha depapel. A inundayao encharcou, empastou e carregou essa folhaem pouquissimo tempo.

No Centro de Deten~ao 3 de Rapides Parish em Alexandria, quenormalmente abriga criminosos condenados, ha agora 200 novosinternos ... evacuados de cadeias inundadas em Nova Orleans.

Eles nao tern papeis indican do se foram condenados pOl'embriaguez au tentativa de assassinato. Nao ha nenhum juiz paraouvir as alega~6es, nenhum tribunal designado para tomar seusdepoimentos e nenhum advogado para representa-los ...

E uma implosao da rede judiciaria jamais vista desde desas-tres como 0 incendio de Chicago em 1871 ou 0 terremoto de SaoFrancisco em 1906, ocorridos em epocas tao mais simples a pontode serem inuteis do ponto de vista de ajudar a compreender esteevento.9

"Ninguem faz ideia de quem sejam essas pessoas ou do mo-tivo de estarem aqui" - assim resumiu a situayao urn dos advoga-dos designados para 0 centro de detenyao. Essa afirmayao curta eincisiva comunicou mais do que a implosao da "rede judiciaria"formal. E nao foram apenas os presos, apanhados no meio deum processo juridico, que perderam sua denominayao social e

de fato as identidades pelas quais eram reconhecidos e que eramusadas para colocar em movimento a cadeia de ay6es que refletia/determinava seu lugar na ordem das coisas. Muitos outros sobrevi-ventes tiveram 0 mesmo destino. E nao apenas sobreviventes ...

No distrito comercial do centro, numa parte seca da rua Union'" urn cadaver '" As horas se passaram, as sombras da hora dotoque de recolher se insinuaram, 0 corpo ficou la... Veio a noite,e depois a manha, depois 0 meio-dia, e outro por-do-sol sobreurn filho morto da Crescent City' ... 0 que e notavel e que, numarua importante de uma grande cidade norte-americana, urncadaver possa decompor-se durante dias, como carni~a, e issoseja aceitavel. Bem-vindos a Nova Orleans, no pos-apocalipse ...Moradores descarnados emergem da mata inundada para dizercoisas estranhas e depois retornar a podridao. Carros trafegam nacontramao pela Interstate e ninguem liga. Incendios irrompem,cachorros comem carni~a e os antigos signos dos les bans tempsforam substituidos por rabiscos amea~ando que os saqueadoresserao mortos a tiros.

o incompreensivel virou rotina.1O

Enquanto alei desapareceu de vista, juntamente com osadvogados, e os cadaveres esperavam em vao pelo enterro, aestrategia do "aproveite agora, pague depois", que tornou taogratificante a "civilizayao como a conhecemos", se recolheu. 0aces so de compaixao e as freneticas performances de relay6espublicas dos politicos mitigaram 0 imp acto por algum tempoe ofereceram alivio temporario a pessoas carregadas de velhasdividas, mas agora privadas da renda que, esperavam, lhespermitiria salda-Ias. Mas tudo isso mostrou ser um pedodocurto. "Dentro de seis a nove meses", previu um reporter doNew York Times, a Fema" tera ido embora, os grupos ligados asigrejas tambem e os credo res voItarao a exigir seu dinheiro";ll

•Apelido de Nova Orleans. (N.E.).. Federal Emergency Management Agency (N.E.)

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"uma pessoa que tinha urn born emprego antes do Katrinahoje pode ter uma renda muito diferente", enquanto "milha-res e milhares de pessoas nao tern mais taloes de cheque, apo-lices de seguros, documentos do carro (nem carro), certidoesde nascimento, cartoes da previdencia ou carteiras" ... Quandoescrevo estas palavras, nao se passaram seis meses, mas, numacidade que era uma das joias da coroa norte-americana, "asluzes brilham em dezenas de bairros, porem a escuridao seespalha por 40% da cidade", "cerca de metade de Nova Or-leans carece de gas natural para cozinhar ou se aquecer", "osbanheiros da maio ria das casas ainda nao estao conectadosao sistema de esgotos da cidade" e cerca de urn quarto destaainda nao tern agua potavel.12 E restam poucas esperanyas deque as coisas possam mudar para melhor.

Menos de tres meses depois de 0 furacao Katrina arrasar Nova Or-leans, a legislayao de ajuda permanece adormecida em Washingtone 0 desespero esta crescendo entre as autoridades daqui, as quaistemem que o·Congresso e 0 governo Bush estejam perdendo 0

interesse por seu' destino ... 0 senso de urgencia que estimulou aayao em setembro esta se escoando rapidamente.13

Poucos anos antes de 0 Katrina chegar as praias norte-ame-ricanas, Jean-Pierre Dupuy encontrou urn nome para 0 que viriaa acontecer: ''A irmpyao do possivel e do impossivel".14E adver-tiu: para evitar a catastrofe, primeiro e precise acreditar na suapossibilidade. Epreciso acreditar que 0 impossivel e possivel. Quea possibilidade sempre espreita, inquieta, debaix:o da carapayaprotetora da impossibilidade, esperando 0 momento de irrom-per. Nenhum perigo e tao sinistro, nenhuma catastrofe fere tantoquanta as que sao vistas como uma probabilidade irrelevante.Considera-Ias improvaveis ou nem mesmo pensar nelas e a des-culpa para nao fazer nada contra elas antes que atinjam 0 pontoem que 0 improvavel vira realidade e subitamente e tarde demaispara aliviar seu impacto,que dira impedir sua chegada. E, no

entanto, e exatamente isso que estamos fazendo (ou melhor, naofazendo) - diariamente, sem pensar. ''A situayao atual nos mos-tra", observa Dupuy, "que 0 anuncio de uma catastrofe nao pro-duz nenhuma mudanya visivel, seja na nossa forma de condutaou em nossa maneira de pensar. Mesmo tendo sido informadas,as pessoas nao acreditam na informayao que receberam:'lS Elecita Corinne Lepage: ''A mente rejeita [tal anuncio], dizendo asi mesma que isso simplesmente nao e possivel."16 E conclui: 0

obstaculo mais terrivel a prevenyao de uma catastrofe e sua in-credibilidade ...

oApocalypse Now (a propria expressao e urn desafio a nossaideia de probabilidade) foi reencenado. Nao no cinema nem noteatro da imaginayao, mas nas mas centrais de uma grande cida-de norte-americana. "Nao em Bagda nem em Ruanda, mas aqui"- eis como Dan Barry', escrevendo de uma cidade em que 0 im-possivel revelara a possibilidade oculta em si mesmo, anuncia amais nova produyao cinematograficaY Desta vez 0 apocalipsenao ocorreu na longinqua floresta do Vietna, onde se encenoua versao original de Apocalypse Now, nem nas praias tenebrosasdos continentes sombrios em que Conrad localizou 0 "corayaodas trevas" a fim de tomar legivel sua mensagem para seus lei-to res civilizados - mas aqui, no corayao do mundo civilizado,numa cidade aclamada por sua beleza e joie de vivre e que atepoucos dias antes continuava sendo urn ima para milhoes de tu-ristas circulando pelo planeta em busca das delicias da arte e dadiversao de alto nivel- as mais louvadas e cobiyadas dadivas dasforyas criativas da civilizayao.

o Katrina revelou 0 segredo mais bem guardado da civili-zayao: que - como disse espirituosamente Timothy Garton Ash,em urn ensaio sob 0 titulo amplamente revelador de "Ele sempreesta embaixo" - "a casca de civilizayao sobre a qual caminhamose sempre da espessura de uma hostia. Urn tremor e voce fracas-sou, lutando por sua vida como urn cao selvagem."

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Nao consigo deixar de sentir que havera mais, muito mais disso,a medida que nos aprofundarmos no seculo XXI. Ha tantosgrandes problemas que poderiam empurrar a humanidade paratras ... se grandes extens6es do planeta fossem atormentadas portempestades, inunda<;6ese mudan<;asde temperatura imprevi-siveis, 0 que ocorreu em Nova Orleans pareceria urn cha entreamigos.

Em certo sentido, essestambem seriam furac6es produzidospelo homem ["asconseqiienciasde osEstadosUnidos continuarembombeando di6xido de carbono como senao houvesseamanh~"].Mas tambem ha amea<;asmais diretas de seres humanos a Qutrosseres humanos ... Suponha que uma bomba suja ou mesmo umapequena arma nuclear seja ativada por urn grupo terrorista numagrande cidade. E ai?18

Questoes retoricas, com certeza. A mensagem de Ash e que aamea<;:ade desciviliza<;:ao(termo que ele tirou de urn dos roman-ces de Jack London) e assustadoramente real: "Remova as ba-ses elementares da vida civilizada, organizada - comida, abrigo,agua potavel, urn minimo de seguran<;:apessoal - e em questaode horas voltaremos ao estado de natureza hobbesiano, a guerra detodos contra todos:'

Poder-se-ia discutir com Ash sobre se existe tal "estado denatureza" a que se poderia voltar, ou se a afamada "guerra de to-dos contra todos" e antes uma condi<;:aoque emerge ao fim do"processo civilizador", 0 momenta em que a "casca fina comouma hostia" e quebrada pelo choque de uma catastrofe naturalou produzida pelo homem. Se realmente existe uma "segundalinha de trincheiras" - embora inundada, lamacenta, malcheiro-sa e de outras formas inospita aos seres humanos -, na qual aspessoas criadas pela e para a "vida civilizada" podem recair, umavez implodido 0 seu habitat "natural secundario". Ou se urn dosaspectos integrantes do processo civilizador nao e uma inten<;:aoprecisamente oposta: evitar 0 "retrocesso" tornando os seres hu-manos "viciados em civiliza<;:ao",e portanto "dependentes" dela,

e despindo-os ao mesmo tempo de todas as habilidades alterna-tivas que permitiriam a coabita<;:aointer-humana caso fosse ras-pado 0 verniz das maneiras civilizadas. Mas esse e, admito, urnargumento menos importante, de certa forma, ja que "marginal"- crucial, talvez, para os filosofos da cultura, mas amplamenteausente e irrelevante no que se refere ao topico que estamos dis-cutindo; 0 topico que, eu sugeriria, pode ser mais bem descritocomo 0 "complexo" ou "sindrome do Titanic".

A "sindrome do Titanic" e 0 horror de atravessar a "casca finacomo uma hostia" da civiliza<;:aopara cair naquele vazio destitui-do das "bases elementares da vida civilizada, organizada" ("ci-vilizada" precisamente porque "organizada" - rotineira, previsivel,com codigos de comportamento determinados). Cair sozinho ouacompanhado, mas em todo caso sendo expulso de urn mundo emque as "bases elementares" continuam sendo fornecidas e onde haurn poder controlador com 0 qual se pode contar.

o ator principal (embora silencioso) na historia do Titanicfoi, como sabemos, 0 iceberg. Mas 0 iceberg, esperando "la fora"numa emboscada, nao foi 0 terror que destacou essa historia emmeio a miriade de historias de terror/desastre semelhantes. Esseterror foi toda a a<;:aoviolenta que aconteceu "aqui", nas entra-nhas do luxuoso transatlantico: por exemplo, a falta de urn planosensato e viavel para evacuar e salvar os passageiros de urn navioque afundava, ou a aguda ausencia de botes de seguran<;:ae coletessalva-vidas - algo para 0 que 0 iceberg "la fora", na escuridao danoite subartica, serviu apenas de catalisador e, ao mesmo tempo,papel de tornassol. Aquele "algo" que "sempre esta embaixo", masespera que saltemos nas gelidas aguas subarticas para sermosconfrontados diretamente por ele. Algo ainda mais aterrorizantepor permanecer oculto a maior parte do tempo (talvez todo 0

tempo), e assim pegando suas vitimas de surpresa sempre quesai rastejando de sua toca, sempre as apanhando despreparadase incapazes de reagir.

Oculto? Sim, mas nunca mais distante que urn simples arra-nhao. A civiliza<;:aoe vulneravel; nunca esta mais que a beira do

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abismo. Como Stephen Graham escreveu de maneira comovente,nos "ficamos cada vez mais dependentes de sistemas complexose distantes para sustentar a vida': e, portanto, mesmo "pequenasdescontinuidades e inaptidoes podem ter efeitos enormes e em se-rie sobre a vida social, economica e ambiental" - particularmentenas cidades, onde e vivida a maior parte da vida da maioria denos, os lugares "extremamente vulneraveis a ruptura provo-cada externamente". "Agora mais do que nunca, 0 colapso dasredes de infra-estrutura urbana em funcionamento provocapanico e temores de colapso da ordem social em funciona- .men to".19 Ou, como revel a Martin Pawley, citado por Graham,"0 medo de uma desarticula~ao em grande escala dos servi~osurban os" e agora "endemico na popula~ao de todas as grandescidades".20

Endemico ... Parte da vida diaria. Nao ha necessidade de umagrande catastrofe, ja que urn pequeno acidente pode desencadearuma "desarticula~ao em grande escala".A catastrofe pode chegarsem anuncio - nao havera trombetas advertindo que as inex-pugnaveis muralhas de Jerico estao para desmoronar. Ha razoesmais que suficientes para ter medo - e, portanto, para imergirao som de musica suficientemente alta a ponto de abafar os sonsproduzidos pela fragmenta~ao das muralhas.

Os temores emanados da "slndrome do Titanic" san os de urncolapso ou catastrofe capaz de atingir todos nos, ferindo cega eindiscriminadamente, de modo aleatorio e inexplicavel, e en-contrando todos despreparados e indefesos. Ha, contudo, outrosmedos hao men os, se e que nao mais, aterrorizantes: 0 me do deser pin~ado sozinho da alegre multidao, ou no maximo separa-damente, e condenado a sofrer solitariamente enquanto todos osoutros prosseguem em seus folguedos. 0 medo de uma catastrofepessoal. 0 me do de se tornar urn alvo selecionado, marcado paraa mlna. 0 medo de cair de urn veiculo em rapida velocidade, oude ser jogado pela janela, enquanto 0 resto dos viajantes, comos cintos de seguran~a devidamente afivelados, acha a viagem

ainda mais divertida. 0 medo de ser deixado para tras. 0 medoda exclusao.

o fato de tais medos nao serem absolutamente imaginariospode ser confirmado pela autoridade dominante da mldia, quedefende - visivel e tangivelmente - uma realidade que nao se podever nem to car sem a ajuda dela. Os reality shows, essas versoesliquido-modernas das antigas morality plays*, testemunhamdiariamente em favor da vigorosa realidade dos medos. Comoindica 0 nome que assumem (reality show), urn nome que naosofre oposi~ao dos espectadores e que so e questionado poruns poucos pedantes particularmente presun~osos, 0 que elesmostram e real; mais importante, contudo, indica tambemque "real" e aquilo que mostram. E 0 que mostram e que ainevitabilidade da exclusao - e a luta para nao ser excluldo- e aquila no qual a realidade se resume. Os reality shows naoprecisam ficar repetindo a mensagem: a maio ria de seus es-pectadores ja conhece essa verdade; e precisamente essa fami-liaridade profundamente arraigada que os atrai aos bandospara as telas de TV.

Acontece que tendemos a descobrir algo agradavelmente re-confortante quando ouvimos melodias que sabemos de cor. Etendemos a acreditar muito mais no que vemos do que no queouvimos. Pense na diferen~a entre "testemunha ocular" e urn"mero ouvir falar" (voce alguma vez ouviu falar em "testemunhaauricular" ou urn "mero ver falar"?). As imagens san muito mais"reais" do que palavras impressas ou faladas. As historias quecon tam ocultam quem as conta, "aquele (ou aquela) que poderiamentir" e, portanto, desinformar. Diferentemente dos interme-diarios humanos, as cameras "nao men tern", "dizem a verdade"(ou pelo menos e 0 que fomos treinados a acreditar). Gra~as aimagem, cada urn de nos pode, como desejava Edmund Hus-ser! (que, mais que qualquer outro filosofo, era consumido pelo

* Tipo de alegoria teatral, muito popular na Europa nos seculos XV e XVI, emque 0 protagonista e confrontado por personificayoes de varios atributos moraisque tentam estimula-lo a escolher 0 caminho do bem. (N.T.)

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desejo de encontrar uma forma livre de erro, a toda prova,pelo desejo de atingir "a verdade dos fatos"), retornar zuruckzu den Sachen selbst - "de volta as coisas em si". Quando con-frontados com uma imagem fotograficamente/eletronicamenteobtida, nada parece erguer-se entre nos e a realidade; nada quepossa capturar ou distrair nosso olhar. "Ver para crer" significa"eu you crer quando vir", mas tambem "no que eu vir, acredi-tarei". E 0 que vemos SaDpessoas tentando excluir outras pessoaspara evitar serem excluidas. Uma verdade banal para a maioriade nos - mas que evitamos, com certo grau de sucesso, articular.Os reality shows fizeram isso por nos - e somos gratos por isso.o conhecimento que os reality shows apresentam seria, de outraforma, difuso, recortado em fatias e peda<;:osnotoriamente difi-ceis de cotejar e de extrair um sentido.

o que os reality shows nos ajudam a descobrir (seja delibe-rada ou inadvertidamente, de modo explicito ou indireto), porexemplo, e que as institui<;:6es politicas a que viemos a recorrerem caso de problemas, e que aprendemos a ver como guardias denossa seguran<;:a,formam - como John Dunn recentemente assi-nalou - um mecanismo ajustado para servir a "ordem do egois-mo", e que 0 principio fundamental de constru<;:ao dessa ordeme "apostar nos fortes" - "uma aposta nos ricos, ate certo pontofor<;:osamente nos que tem a felicidade de ja 0 serem, mas acimade tudo nos que tem a habilidade, a coragem e a sorte para setornarem ricos",21Mas quando se trata de evacuar um navio queesta afundando ou de encontrar um assento no bote salva-vidas,habilidade e coragem se mostram de pouca valia. Talvez a sorteseja entao a unica salva<;:ao- mas esta, notoriamente, e um rarodom do destino, um daqueles que SaDpoucos e vem em longosintervalos.

Milh6es descobrem diariamente essa verdade assustadora -como ocorreu com Jerry Roy, de Flint, Michigan, que ingressoutres decadas atras na General Motors, mas agora "enfrenta apossibilidade de perder 0 emprego ou aceitar uma drastica re-du<;:aosalarial", ja que "a GM, antes um simbolo incontestavel

do poder industrial da na<;:ao",se tornou "uma sombra do queera no passado, e com ela se foi a promessa pos-Segunda Guer-ra Mundial do trabalho fabril blue-collar como um caminhoseguro para 0 sonho norte-americano". De que valia podemser a habilidade e a coragem quando "todos esses lugares queantigamente eram fabricas agora sao apenas estacionamentos",enquanto a companhia que era proprietaria deles "esta buscan-do refazer ou ate romper seus contratos de trabalho", tentandorealizar "grandes cortes nos pIanos de saude e nos beneficiosda aposentadoria" e transferindo "milhares de empregos parao estrangeiro"?22

As oportunidades de ter medo estao entre as poucas coisas quenao se encontram em falta nesta nossa epoca, altamente caren-te em materia de certeza, seguran<;:a e prote<;:ao.Os medos SaDmuitos e variados. Pessoas de diferentes categorias sociais, eta-rias e de genero SaDatormentadas por seus proprios medos; hatambem aqueles que todos nos compartilhamos - seja qual for aparte do planeta em que possamos ter nascido ou que tenhamosescolhido (ou sido for<;:adosa escolher) para viver.

o problema, porem, e que esses medos nao fazem sentidofacilmente. Como surgem um a um numa sucessao continua,embora aleatoria, eles desafiam nossos esfor<;:os(se e que os fa-zemos) para estabelecer liga<;:6esentre eles mesmos e encontrarsuas raizes comuns. Esses medos sao ainda mais aterradores porserem tao dificeis de compreender; porem mais aterradores aindapelo sentimento de impotencia que provocam. Nao tendo con-seguido entender suas origens e sua l6gica (se e que seguem umalogica), tambem estamos no escuro e na incerteza quando se tra-ta de tomar precau<;:6es- para nao falar em evitar ou enfrentar osperigos que eles sinalizam. Simples mente nos faltam ferramentase habilidades. Os perigos que tememos transcendem nossa ca-pacidade de agir; ate agora nao chegamos sequer ao ponto depodermos conceber claramente como seriam as ferramentas ehabilidades adequadas a essa tarefa, que dira conseguir come<;:ar

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a planeja-las e cria-las. N6s nos encontramos numa situa<;:aonaomuito diferente da de uma crian<;:aconfusa; para usar a alegoriade Georg Christoph Lichtenberg tres seculos atras, se uma crian-<;:abate numa mesa porque esbarrou nela, "n6s, em vez disso, emfun<;:aode choques diferentes, porem similares, inventamos a pa-lavra Destino, contra a qual proferimos acusa<;:6es".23

o sentimento de impotencia - 0 impacto mais assustadordo medo - reside, contudo, nao nas amea<;:aspercebidas ou ima-ginadas em si, mas no espa<;:oamplo, embora abominavelmentemobiliado, que se estende entre asamea<;:as de que emanam osmedos e nossas rea<;:6es- as disponiveis e/ou consideradas rea-listas. Nossos medos tambem "nao fazem sentido" de outra ma-neira: aqueles que assombram as multid6es podem ser surpreen-dentemente semelhantes em cada caso singular, mas se presumeque sejam enfrentados individualmente, por cada urn de n6s,usando nossos pr6prios - e, na maio ria dos casos, dolorosamenteinadequados - recursos. Com muita freqiiencia, nao est:! imedia-tamente claro 0 que nossa defesa ganharia se juntassemos nossosrecursos e procurassemos maneiras de dar a todos os sofredo-res a mesma oportunidade de seguran<;:aem rela<;:aoao medo.Para piorar ainda mais as coisas: mesmo quando (e se) os be-neficios de uma luta conjunta san apresentados de maneiraconvincente, permanece a questao de como reunir e manterjuntos os lutadores solitarios. As condi<;:6esda sociedade indi-vidualizada san in6spitas a a<;:aosolidaria; elas militam contraa visao da floresta por tras das arvores. Alem disso, as florestasantigas, antes paisagens familiares e facilmente reconheciveis,foram dizimadas e e improvavel que novas florestas as substi-tuam, ja que 0 cultivo da terra tendeu a ser repassado a peque-nos proprietarios agricolas que trabalham individualmente. Asociedade individualizada caracteriza-se pelo afrouxamentodos la<;:ossociais, esse alicerce da a<;:aosolidaria. Tambem e·notavel por sua resistencia a uma solidariedade que poderiatornar esses la<;:osduraveis - e seguros.

Este livro e urn inventario (muito preliminar e incompleto) dosmedos liquido-modernos. E tambem uma tentativa (muito pre-liminar, mais rica em perguntas do que em respostas) de pro-curar suas fontes comuns e os obstaculos que se acumulam nocaminho de sua descoberta, e de encontrar maneiras de coloca-los fora de a<;:aoou torna-los inofensivos. Este livro, em outraspalavras, e apenas urn convite a se pensar em agir, e a agir demaneira ponderada - nao urn livro de receitas. Seu unico prop6-sito e alertar-nos quanta a enormidade da tare fa com que (cons-cientemente ou nao, voluntariamente ou nao) decerto teremosde nos defrontar durante a maior parte do seculo atual, a fim deque a humanidade possa leva-la a cabo e emergir ao final destemeSillO seculo se sentindo mais segura e autoconfiante do que sesentia no seu come<;:o.